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ORIENTALISMOS

E LITERATURA
André Bueno [org.]
Reitor
Mario Sérgio Alves Carneiro

Chefe de Gabinete
Bruno Redondo

Direção
Pró-reitora de Extensão e Cultura
Cláudia Gonçalves de Lima

Produção
Obra produzida e vinculada pelo Projeto Orientalismo,
Proj. Extens. UERJ Reg. 6078, coordenado pelo Prof.
André Bueno [Dept. História].

Rede
www.orientalismo.net

Rede
https://aladaainternacional.com/aladaa-brasil/

Ficha Catalográfica
Bueno, André [org.]
Oriente 23: Orientalismos e Literatura. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Proj.
Orientalismo/ UERJ, 2023. 139 p.
ISBN: 978-65-00-77513-6
História da Ásia; Orientalismo; Literatura; Diálogos Interculturais.

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Apresentação

Oriente 23 é uma coleção de livros dedicada aos estudos orientais


no Brasil. Construída a partir dos debates realizados no 7º Simpósio
internacional de Estudos Orientais, organizado pelo Projeto
Orientalismo da UERJ, Oriente 23 é formada de maneira
interdisciplinar e transversal, conjugando as mais diversas
experiências no campo dos estudos das civilizações do oriente
próximo e do extremo oriente. Fazendo uma abordagem
multitemporal e intercultural, a coleção emprega estratégias
decoloniais no estudo do orientalismo, das civilizações asiáticas e
dos trânsitos culturais entre os muitos orientes possíveis,
procurando compreender suas características originais e sua
recepção no imaginário e na intelectualidade ocidental. Nesse
sentido, a coleção Oriente 23 é formada por uma série de volumes
que compreendem cada uma dessas dimensões espaço-
geográficas e culturais, buscando transmitir ao público uma nova
perspectiva de conhecimento, capaz de ampliar os horizontes
intelectuais, acadêmicos e educacionais do contexto cultural
brasileiro. Estão aqui presentes estudos dos mais diversos campos,
que tentam apreender a variedade das expressões das culturas
asiáticas, de moda torná-las inteligíveis ao público brasileiro. Seja
bem-vindo a nossa coleção!

Volumes de Oriente 23:

 Orientalismos e Literatura
 Orientalismos: Mídias e Arte
 Visões do Orientalismo
 Estudos sobre Oriente Médio
 Estudos Chineses
 Estudos Japoneses
 Estudos Coreanos
 Estudos Asioindianos

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Sumário
LITERATURA COREANA EM REESCRITA: CRIANDO IMAGENS DE CASTELLA, por Alexsandro
Pizziolo........................................................................................................................................... 7
“O QUE FAZER COM O CÉU NO DIA EM QUE ELE REALMENTE CAI” E O CANTO DO BODE: USOS
DA HISTÓRIA EM A SOMBRA DAS TORRES AUSENTES, por Álvaro Ribeiro Regiani .................... 16
ORIENTES E ORIENTALISMO EM GILBERTO FREYRE: OLHARES SOBRE OS INDIANOS, por Arlindo
Souza ........................................................................................................................................... 25
OS SAMURAIS: PARA ALÉM DAS VISÕES ROMÂNTICAS, por Arthur D´Elia dos Santos .............. 31
LEIBNIZ E OS JESUÍTAS: O IDIOMA PRIMORDIAL, O I CHING E O INTERCÂMBIO DE CULTURAS,
por Carmen Lícia Palazzo............................................................................................................. 37
JAPANESENESS: O ORIENTALISMO JAPONÊS, por Cássio Gabriel de Campos Silva .................... 46
“TÃO NECESSÁRIOS UM AO OUTRO COMO HOMEM E MULHER”: REPRESENTAÇÕES DO JAPÃO
E COREIA EM COREA, THE HERMIT NATION (1911), por Emannuel Henrich Reichert ............... 54
UM ENTERRO CELESTIAL NEM DIURNO E NEM NOTURNO, MAS CREPUSCULAR: UMA ANÁLISE
DA OBRA XINRAN À LUZ DO IMAGINÁRIO DURANDIANO, por Jander Fernandes Martins e
Vitória Duarte Wingert ................................................................................................................ 61
IMAGENS E IMPRESSÕES DO JAPÃO ANTES E DEPOIS DA ABERTURA DOS PORTOS DE 1854, por
Levi Yoriyaz .................................................................................................................................. 70
AS REPRESENTAÇÕES DO ÓPIO NO JORNAL DIÁRIO DE PERNAMBUCO, por Lohanna de Lima
Tavares e Carlos Eduardo Martins Torcato ................................................................................. 78
A MODERNIDADE EURO-ORIENTAL DE AMIN MAALOUF: APONTAMENTOS PARA DIÁLOGO por
Manoel Adir Kischener e Everton Marcos Batistela .................................................................... 86
A DIÁSPORA COREANA NO JAPÃO: APONTAMENTOS NA OBRA LITERÁRIA PACHINKO, DE MIN
JIN LEE , por Maria Gabriela Moreira e Nayla Lumy de Andrade Kuroki .................................... 94
LAFCADIO HEARN E A REESCRITA DO ROMANCE DA LANTERNA DE PEÔNIA, EM “A PASSIONAL
KARMA”, por Maria Silvia Duarte Guimarães ........................................................................... 100
A NARRATIVA EM APORIA NO SÉCULO DAS LUZES: DENIS DIDEROT, O ROMANCE E O ORIENTE,
por Ricardo Hiroyuki Shibata..................................................................................................... 106
NOITES ÁRABES: ANTOINE GALLAND (1646-1715) E AS MIL E UMA NOITES, por Ricardo
Hiroyuki Shibata ........................................................................................................................ 113
CHAMPURAMENTO - UM CONCEITO POÉTICO, por triZ périZ.................................................. 120
CHAMPURAMENTO - UM CONCEITO POÉTICO - NA PRÁTICA, por triZ périZ ........................... 125
A MEMÓRIA E A IDENTIDADE NA NARRATIVA DO ROMANCE A POLÍCIA DA MEMÓRIA, DE YOKO
OGAWA, por Allana da Silva Araujo .......................................................................................... 132

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LITERATURA COREANA EM REESCRITA: CRIANDO IMAGENS
DE CASTELLA, por Alexsandro Pizziolo

O presente trabalho é um estudo de caso que pretende oferecer uma reflexão


acerca dos elementos capazes de influenciar a produção e a recepção de um
texto traduzido em sua cultura receptora. A partir de temáticas oriundas dos
Estudos da Tradução, analiso os constituintes paratextuais de Castella, de Park
Min-Gyu, publicado no Brasil em 2022 pela editora Martin Claret, em tradução
de Nick Farewell.

O eixo teórico que embasa minha investigação está situado numa interseção
entre três campos que têm se mostrado bastante produtivos dentro dos
Estudos da Tradução. O primeiro deles é o sub-ramo do campo conhecido pelo
nome de Estudos Descritivos da Tradução [DTS], uma das correntes mais
influentes por décadas a fio. Uma das principais contribuições dessa corrente é
a concepção da “tradução como um fato da cultura de chegada” [Toury, 2012,
p. 18], que suscita uma atitude epistemológica que concebe a investigação do
texto traduzido a partir de questões que surgem na cultura que o produz. A
orientação descritivista do ramo, também depreende que o texto traduzido deve
ser analisado para que se compreenda a sua função sistêmica no sistema
literário receptor. Dentro dos DTS, me afilio particularmente ao pensamento de
André Lefevere [1992] e aos desdobramentos dos seus conceitos de reescrita
e patronagem, que serão centrais ao estudo aqui proposto.

O segundo campo a que recorro para embasar este trabalho é o que ficou
conhecido nos Estudos Literários como a Teoria do Paratexto, a partir do
conceito de paratexto, “aquilo por meio de que um texto se torna livro e se
propõe como tal a seus leitores” [Genette, 2009, p. 9]. Nos Estudos da
Tradução, a partir de Şehnaz Tahir-Gürçağlar [2002], o conceito de paratexto
tem sido utilizado para pensar o potencial que essa produção textual (num
sentido semiótico) tem de produzir sentidos acerca do texto traduzido que ela
acompanha e como esses discursos influenciam a recepção de tais textos.
McRae [2012], Wu e Shen [2013] e Carneiro [2014] desenvolveram
problemáticas importantes a respeito do prefácio do tradutor, e Gerber [2012],
com sua reflexão acerca das capas e ilustrações do livro traduzido agrega
ainda mais ao debate acerca dos paratextos.

Por fim, outro campo que alimenta a fundamentação teórica deste estudo é o
que, a partir dos anos 1990, começou a se chamar de Sociologia da Tradução.
O campo, de matriz teórico-metodológica múltipla, tem sido pioneiro em
produzir estudos que tenham como foco os agentes por trás do processo
tradutório, especialmente os tradutores. Neste trabalho, especificamente, aplico
o conceito de habitus do tradutor, desenvolvido por Gouanvic [2005] a partir de
Bourdieu [1986].

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Breve descrição de Castella, de Park Min-Gyu
Castella é uma antologia de contos do escritor sul-coreano Park Min-Gyu,
publicada no Brasil em junho de 2022, pela editora Martin Claret, com tradução
de Nick Farewell. Publicada originalmente em 2005 sob o título 카스테라
[kaseutera, em romanização[ na Coreia do Sul, a antologia reúne dez contos
escritos entre 1999 e 2004. A edição brasileira pode ser enquadrada dentro do
que é conhecido no mercado editorial como edição de luxo, com um projeto
gráfico original assinado por José Duarte T. de Castro, com capa, quarta capa
e guarda ilustradas pela artista coreano-brasileira Ing Lee; conta ainda com
capa dura e fitilho para marcar as páginas.

Em relação aos prefácios, Castella apresenta uma introdução, assinada pelo


tradutor Nick Farewell, e um texto de Park intitulado “Palavras do autor para a
edição brasileira”, que antecedem os contos. Concluem o exemplar uma seção
denominada “Crítica”, que conta com o ensaio “Em zigue-zague, vapt-vupt,
pulando obstáculos”, assinado pelo crítico literário Su-Jung Sin e mais uma
“Palavra do autor”, presentes na edição de 2005.

A folha de copyright da obra vem ao final do exemplar, listando os profissionais


envolvidos na publicação. É neste espaço que os agentes da tradução tem o
seu crédito devidamente garantido. Por lei, este é o único espaço em que o
tradutor precisa ser creditado. Qualquer espaço extra que ele possua no
exemplar é uma demonstração de sua visibilidade. Essa seção será de
particular importância para a análise aqui empreendida, assim como o prefácio
do tradutor e a capa de Castella.

Os agentes da reescrita
A concepção de sistema literário de Lefevere [1992] prevê dois fatores de
controle da literatura escrita e reescrita, sendo um interno e outro externo. O
primeiro deles, que exerce um controle interno dos procedimentos literários,
encontra-se na figura dos profissionais, “críticos, resenhistas, professores,
tradutores” [Lefevere, 1992, p. 14], figuras que também podem ser apontadas
como reescritores, aqui denominados ‘agentes da reescrita’. O outro fator
regulador do sistema literário, de ordem externa, situa-se no que Lefevere
chama de patronagem, os “poderes [pessoas, instituições] que podem
promover ou impedir a leitura, a escrita e a reescrita da literatura” [Lefevere,
1992, p. 15]. Os poderes, reforça Lefevere, devem ser entendidos como uma
formulação foucaultiana de poder, que tem menos a ver com a ideia de
repressão e mais a ver com a ideia de controle. A patronagem preocupa-se,
portanto, com aspectos ideológicos e econômicos, delegando aos profissionais
a parcela do trabalho que está preocupada com a poética, que é manipulada
sob os princípios da patronagem. Neste trabalho, o foco recai sobre os agentes
da reescrita.

A tradução, enquanto prática de reescrita, tem o poder de criar a imagem de


um autor, de uma obra, de uma literatura, como afirma Lefevere [1990; 1992].
A partir do exame dos paratextos de Castella, selecionei dois agentes que se

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destacam particularmente. A partir da introdução ao livro assinada pelo tradutor
faço uma análise em que aciono a discussão feita pela Sociologia da Tradução
a respeito do papel dos tradutores como agentes da tradução, assim como uma
análise do prefácio à luz das discussões concernentes ao paratexto. Destaco
também a ilustradora da capa do livro, Ing Lee, analisando capa do livro
mediante outros trabalhos de Lee e capas de outras edições do Castella pelo
mundo, a fim de destacar a atuação da capista.

O tradutor
Sob o pseudônimo de Nick Farewell, o coreano naturalizado brasileiro Lee Gyu
Seok, escreveu 7 romances, dentre eles o best-seller GO [Devir, 2007],
selecionado pelo Ministério da Educação e Cultura para integrar o catálogo das
bibliotecas de escolas por todo o país. Em seu website e em suas redes
sociais, Farewell se apresenta como escritor e roteirista, tendo escrito, além
dos romances, roteiros para o cinema e a televisão. A tradução de Castella é
uma tarefa até então inédita em seu portfólio.

Genette [2009] identifica todo texto que precede e sucede o texto propriamente
dito no livro como prefácio, sejam eles intitulados “prefácio”, “introdução”,
“prólogo”, “posfácios”, “nota do editor” etc. A introdução à Castella, assinada
pelo tradutor, faz as vias de prefácio à tradução. Carneiro [2014] afirma que é
possível “encarar o prefácio de tradutor como um subgênero em relação ao
gênero prefácio, que guarda semelhança na organização retórica, mas que
possui características próprias, específicas ao contexto da tradução” [Carneiro,
2014, p. 109]. Para Genette [2009], trata-se de uma questão de autoridade
exercida pelo autor/editor do original, que influencia na leitura de seu texto por
meio do prefácio. Na tradução, os prefácios adotam uma série de atitudes
possíveis. O(s) prefácio(s) em análise terá(ão) um comportamento que, em
parte, é único, mas que também pode ser enquadrado num horizonte
minimamente controlado de efeitos discursivos. Dois trechos do prefácio de
Farewell são elucidativos em relação às possibilidades do prefácio.

Logo no início da sua introdução, que recebe o título de “Coma um pedaço de


Castella e tome um gole de estranha alegria”, o tradutor informa ao leitor:

“Mas o que quero fazer neste prefácio é acrescentar uma dimensão a mais no
entendimento do estranho e maravilhoso mundo de Min-Gyu. Avesso a
entrevistas e exposição na mídia, tive o privilégio de conhecê-lo e ser seu guia
pelo igualmente estranho e maravilhoso Brasil. A experiência, que acrescenta
uma dimensão a mais e faz com que minha experiência de tradução adquira
um significado quase de realismo fantástico — como na literatura de Min-Gyu
(talvez a literatura de Min-Gyu devesse ser chamada de realismo intergaláctico)
— segue abaixo.” [Farewell, 2022, p. 6, grifo do autor]

O prefácio de Nick Farewell narra seu encontro com o autor Park Min-Gyu
numa visita oficial ao Brasil. Farewell parece querer com esse texto criar uma
conexão entre o público brasileiro e o autor sul-coreano a partir dessa anedota,
que faz referências à cultura coreana e à relação de amizade entre tradutor e

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autor. Predomina a função de introduzir o público leitor ao autor e à obra,
identificada por Wu e Shen [2013] em seu trabalho.

O tradutor também demarca o seu lugar de autoridade e o seu projeto


tradutório, a partir da enumeração de fatores que diferem a língua coreana da
língua portuguesa, desempenhando as funções 1, 2 e 3 apresentadas por
McRae [2012]: “(1) destacar as diferenças de culturas e idiomas, (2) promover
a compreensão da cultura de origem, (3) promover a compreensão do papel e
da intervenção do tradutor” [McRae, 2012, p. 72]. Isso fica ainda mais evidente
no segundo trecho selecionado:

“Outro desafio foi a natureza gramatical do coreano. As frases em coreano


terminam com verbo. Vem sujeito, adjetivo, objeto, tudo antes, e depois vem o
verbo. Ou seja, é normalmente invertido em relação ao português. Em um
primeiro momento, pensei em traduzir como seria na maneira direta em
português. Mas aí perderia o suspense que a língua coreana naturalmente gera
por você saber antes o sujeito, adjetivo, objeto, etc. Antes. Você perderia o
sabor do texto.” [Farewell, 2022, p. 10-11]

Aqui, novamente, a intervenção do tradutor fica clara e ele reitera as diferenças


que ele identifica entre a língua da cultura de partida e a língua da cultura de
chegada e o seu papel enquanto mediador das duas línguas. A partir disso, é
possível pensar a respeito de seu habitus e na imagem que ele constrói de si
no prefácio em análise. Nick Farewell é um escritor antes de tudo, Castella é a
sua primeira tradução. Em seu texto, ele se coloca como um coreano
naturalizado brasileiro, criando um laço entre o autor, coreano, e o leitor da
obra, o público brasileiro. Acredito que essas duas identidades forjam a
persona construída nesse prefácio, um escritor coreano e brasileiro que tenta,
a partir de seu texto, criar uma espécie de ligação entre as duas culturas, a
mesma ligação pretendida com a publicação do próprio Castella no Brasil.

Jean-Marc Gouanvic [2005], ao apropriar-se do conceito de habitus de


Bourdieu para pensar a prática tradutória, defende que o habitus do tradutor
deve ser analisado a partir de sua realização numa determinada tradução,
numa determinada época [Gouanvic, 2005, p. 159], empreendendo uma leitura
da história pessoal do tradutor, ressaltando, especificamente, a sua formação
intelectual, para propor uma reflexão acerca do trabalho do tradutor enquanto
agente, principalmente no que diz respeito à seleção de títulos publicados, às
estratégias tradutórias e às redes construídas pelos tradutores ao longo de sua
trajetória profissional.

Toda a trajetória pessoal e profissional de Farewell informa o seu habitus


tradutório que, embora seja recente, já conta com a possibilidade de se
expressar na composição do prefácio à sua tradução. A partir do paratexto, é
possível fazer uma reflexão a respeito do sujeito tradutor, e seria difícil
identificar um “lugar” mais propício do que o prefácio para essa tarefa. O
prefácio é o local de maior visibilidade do tradutor, onde ele toma a palavra
para si e se faz visível.

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A respeito da visibilidade do tradutor, identifico Nick Farewell na categoria de
tradutor-escritor, “aquele que, além de traduzir como atividade cotidiana ou
esporadicamente, é também um escritor ou poeta” [Carneiro, 2014, p. 161]. A
introdução de Farewell é o primeiro texto a que temos acesso na edição
brasileira de Castella, precedendo até o sumário da obra. Funciona como um
verdadeiro preâmbulo. O leitor que não folhear a obra e resolver ignorar essa
parte, terá seu primeiro contato com a obra de Park Min-Gyu por meio das
palavras de seu tradutor, que causam um efeito no leitor da obra.

A capista
Ing Lee é uma quadrinista e ilustradora coreano-brasileira. Além de sua
ancestralidade marcada, Lee carrega em sua identidade o fato de ser surda
oralizada. A ilustradora tem uma atuação destacada nas redes sociais,
utilizadas para diversos fins, como a divulgação de seus trabalhos ou de
conteúdos a respeito da elaboração de capas e projetos gráficos que ela
assina, além de conteúdos sobre a cultura coreana, como resenhas de livros,
fatos históricos etc.

Como é possível ver nos trabalhos disponíveis no portfólio da artista – dentre


os principais, destaco as zines Sam Taeguk [independente, 2018] e Geum
[independente, 2020], e as capas de Aos prantos no mercado [Fósforo Editora,
2022] e Amêndoas [Rocco, 2023] –, Lee possui um traço muito característico,
que remete a uma mídia bastante explorada em sua produção, as histórias em
quadrinhos. Desde 2016, Lee está envolvida com a publicação de tiras, seja
por meio de zines em coautoria com outros artistas ou por iniciativas individuais
como João Pé-de-Feijão. Embora recente, sua produção é extensa e é possível
enxergar em seu trabalho uma estética muito particular carregada de uma obra
a outra. Identifico que esse mesmo estilo é perceptível na capa da edição
brasileira de Castella [Figura 1].

Figura 1 – Fonte: Rocco, 2022

Além do estilo característico presente no traço de Lee, chamam atenção na


capa o esquema de cores adotado, onde predominam o bege [a “base”], o azul
[o fundo da geladeira na ilustração de Lee] e o vermelho [do título e de alguns
itens da ilustração da geladeira]. A ilustração de Lee é uma metonímia da
antologia, onde temos uma geladeira aberta, povoada pelos personagens que
habitam os contos de Park Min-Gyu. A geladeira é o personagem central do

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conto que dá título à antologia, “Castella”, e a ilustração acaba funcionando
como uma metáfora da obra de Park. A geladeira abriga tudo aquilo que o
autor oferece ao leitor. Temos os personagens fantásticos como a girafa, o
polvo, o pelicano e o guaxinim, mas também temos itens corriqueiros de uma
geladeira tipicamente coreana, como é o caso do pote de kimchi, um tipo de
conserva que é a base da alimentação da população coreana. O bolinho de
Castella também está na geladeira, assim como um exemplar de As viagens de
Gulliver, de Jonathan Swift, citado no livro.

Posta em contraste com capas de outras edições de Castella ao redor do


mundo, a edição brasileira chama bastante atenção por suas escolhas. A
edição original coreana [Figura 2], apesar de trazer as criaturas de Park, possui
uma coloração esmaecida, longe dos tons vibrantes da edição brasileira. A
tradução japonesa [Figura 3], por sua vez, apresenta a foto do interior de uma
geladeira contendo apenas o bolo que dá título à antologia. A capa da tradução
argentina [Figura 4] é a que mais se aproxima da intenção da capa de Ing Lee,
pois aposta na multiplicidade de cores que as histórias do autor oferecem. No
entanto, arrisco que o esquema de cores da edição brasileira não é uma
coincidência. Além de remeterem à estética quadrinística de Lee, o uso de
azul, vermelho e bege [funcionando como um branco, pois é de um tom similar
ao das páginas do livro] é um esquema de cores recorrente na publicação de
antologias de literatura coreana no Brasil, fazendo referência às cores da
bandeira da Coreia do Sul. O fato de Castella ser o primeiro exemplar de
literatura coreana publicado pela Martin Claret ter um projeto gráfico que
aposta nessas cores não me parece coincidência. O uso do hangul [escrita
coreana] na capa e o destaque ao pote de kimchi na ilustração de Lee, como
que para afirmar que se trata de uma geladeira coreana, também são pistas de
que nada na seleção desses aspectos a serem ressaltados é arbitrário. Em seu
texto, Gerber [2012] fala sobre a perpetuação de estereótipos a respeito da
cultura do texto de partida no processo de ilustração de uma tradução na
cultura de chegada. O que identifico na edição brasileira de Castella é
justamente o oposto, quando temos a atuação de uma profissional como Ing
Lee. Seu trabalho junto à editora Martin Claret parece caminhar para que haja
um reforço dos signos tipicamente coreanos na ilustração da capa do livro,
atitude que conversa com o seu habitus profissional, de ilustradora e
quadrinista, e pessoal, de mulher coreano-brasileira.

Figura 2 – Fonte: Munhakdongne, 2005

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Figura 3 – Fonte: CRANE, 2014

Figura 4 – Fonte: Hwarang Editorial, 2021

Considerações finais
Ao tomar um exemplar de literatura traduzida como objeto de análise, é
possível encontrar em seus paratextos marcas dos agentes da reescrita
implicados no processo de tradução e publicação dessas obras. A partir do
paratexto do livro traduzido é possível refletir acerca do papel dos agentes
implicados no processo de reescrita, à luz dos Estudos Descritivos e da
Sociologia da Tradução, pois o paratexto reserva em sua natureza essa dupla
característica de ser texto, mas não fazer parte do texto traduzido.

Trata-se de um limiar, uma soleira, como afirmou Genette. Os agentes


produzem discursos que ressignificam as reescritas e, a partir disso, é possível
desenvolver uma reflexão a respeito do papel deles em vista do contexto
sociocultural em curso na produção de cada uma dessas obras. Logo, o
paratexto pode ter grande importância para uma investigação que evidencia as
marcas deixadas pelos agentes da reescrita e há uma grande potência em
explorar essas marcas à luz de uma teoria sociológica que reflita a respeito do
agente em sua composição como tal, na trajetória que o levou a ocupar aquela
posição e em como aquela produção específica se enquadra na sua prática
profissional à luz do seu habitus.

Essa abordagem é particularmente proveitosa no que tange as antologias de


literatura coreana publicadas no Brasil, ricas em paratextos e mais ricas ainda
em seus agentes, que estabelecem redes que merecem ser estudadas,
servindo de base a um estudo a respeito da inserção da literatura coreana no

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Brasil, mas também à própria lógica de publicação de literatura traduzida no
mercado editorial brasileiro.

Referências
Alexsandro Pizziolo é mestrando do Programa de Pós-graduação em Estudos
da Linguagem, na linha de pesquisa Linguagem, sentido e tradução, no
Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
[PUC-Rio], pesquisador associado da Coordenadoria de Estudos Asiáticos
[CEÁSIA], vinculado ao Centro de Estudos Avançados da Universidade Federal
de Pernambuco [CEA-UFPE] e bolsista FAPERJ Nota 10. E-mail:
alex.pizziolo@gmail.com.

BOURDIEU, Pierre. The Forms of Capital. In: RICHARDSON, John G. (org.)


Handbook of Theory of Research for the Sociology of Education. Tradução para
o inglês de Richard Nice. Westport, CT: Greenwood Press, 1986. p. 241-258.

CARNEIRO, Teresa Dias. Contribuições para uma teoria do paratexto do livro


traduzido: caso das traduções de obras literárias francesas no Brasil a partir de
meados do século XX. Tese (doutorado) – Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro, Departamento de Letras, 2014.

CLARET, Equipe Editora Martin. A Editora. Disponível em:


https://www.martinclaret.com.br/a-editora/. Acesso em: 26 jun. 2023.

FAREWELL, Nick. Introdução. In: MIN-GYU, Park. Castella. Tradução de Nick


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GENETTE, Gérard. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. São


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GERBER, Leah. Marking the Text: Paratextual Features in German


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Elements in Translation. Bern: Peter Lang, 2012. p. 43-61.

GOUANVIC, Jean-Marc. A Bourdieusian Theory of Translation, or the


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INGHILLERI, M. (Ed.) Bourdieu and the Sociology of Translation and
Interpreting. The Translator, Special Issue. Manchester, UK: St. Jerome, 2005.
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LEFEVERE, André. Translation: Its Genealogy in the West. In: BASSNETT,


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_____. Translation, Rewriting and the Manipulation of Literary Fame.


London/New York: Routledge, 1992.

14
MCRAE, Ellen. The Role of Translators’ Prefaces to Contemporary Literary
Translations into English: An Empirical Study. In: GIL-BARDAJÍ, Anna et al
(ed.). Translation Peripheries: Paratextual Elements in Translation. Bern: Peter
Lang, 2012. p. 63-82.

PARK, Min-Gyu. Castella. Tradução de Nick Farewell. São Paulo: Martin Claret,
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TAHIR-GÜRÇAĞLAR, Şehnaz. What Texts Don’t Tell: The Uses of Paratexts in


Translation Research. In: HERMANS, Theo (org.). Crosscultural
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TOURY, Gideon. Descriptive Translation Studies and Beyond (Revised Edition).


Amsterdam: John Benjamins, 2012.

WU, Yi-Ping; SHEN, Ci-Shu. (Ir)reciprocal Relation between Text and Paratext
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PELLATT, Valerie. Text, Extratext, Metatext and Paratext in Translation.
Cambridge: Cambridge Scholars Publishing, 2013. p. 103-119.

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“O QUE FAZER COM O CÉU NO DIA EM QUE ELE REALMENTE
CAI” E O CANTO DO BODE: USOS DA HISTÓRIA EM A
SOMBRA DAS TORRES AUSENTES, por Álvaro Ribeiro Regiani

Como reverter um estereótipo diante de um evento-trauma como o 11 de


Setembro sem cair no perigo de narrar uma história sob um único ponto de
vista? E, efetivamente, sem silenciar mais o impacto causado aos norte-
americanos e aos povos árabes, evitando cair nos dilemas de contrapor
narrativas por conta de um viés antiamericano ou antiislâmico? A par dessas
perguntas, ao analisar os usos históricos deste passado recente se faz
necessário entender a estrutura de um evento e distingui-lo dos efeitos mais
imediatos, ou seja a comoção transformada em ação política que justifica a
animosidade, mesmo que implicitamente. Neste sentido, ao interpretar À
sombra das torres ausentes (2004), espera-se contribuir para um debate
voltado a percepção das diferenças como algo constitutivo para o pensar
historicamente, em sua crítica aos estigmas sociais.

A autoficção do cartunista Art Spiegelman em À sombra das torres ausentes


retrata os atentados ao World Trade Center e a tragédia que se seguiu em
Nova York, por meio de uma justaposição entre a memória traumática e a
liberdade artística, ele faz um autorretrato para traçar uma sátira política do 11
de Setembro. Embora deixe claro que a queda das duas torres foi uma
consequência do ódio fundamentalista em resposta ao imperialismo norte-
americano e das maquinações políticas arquitetadas pela coalizão
conservadora-mercantil de Bush-Cheney, no enquadramento entre a
lembrança e a ficção, sua graphic novel reforçou um estereótipo contra os
povos árabes e condicionou uma comoção pública análoga às versões de
notícias comprometida com o Departamento de Defesa dos Estados Unidos na
“guerra contra o terrorismo”.

Desse modo, os enquadramentos feitos por Art Spiegelman não fogem aos
condicionamentos de sua cultura histórica e À sombra das torres ausentes
constitui-se como um uso público da história. Ao refletir sobre a caracterização
desses usos, facilmente se chega a utilidade dos mesmos e seus efeitos. Por
um lado, grupos de interesse, instituições e indivíduos utilizam a história e as
narrativas historiográficas para a produção e representação de um imaginário
social que atende aos desejos e vontades de públicos específicos. Por outro,
professores e historiadores, comprometidos com a ciência histórica,
fundamentam o ensino e a pesquisa nos “problemas práticos da vida” como
condição para “orientar a vida dentro da estrutura do tempo” [RÜSEN, 2006, p.
8; p. 15].

Nesta discussão, cada público possui um tipo consciência histórica, sendo


distinta a adequação da memória coletiva aos desejos e vontades identitárias.

16
Evidentemente, a consciência histórica não é fixa ou homogênea, dada que a
mesma se constitui na tensão entre a dinâmica e a conservação da vida
pública que decorre de variações e inovações, bem como de repetições e
continuidades. Mas, o produto cultural produzido pelos meios de comunicação
de massa, em larga medida cristaliza certas imagens por serem “produtos
adaptados ao consumo das massas e que em grande medida determinam esse
consumo” [ADORNO: HORKHEIMER, 1986, p. 92].

Tomando essas reflexões como premissas teóricas, a investigação da


consciência histórica produzida nos meios de comunicação de massa aponta
para uma discussão sobre os usos públicos da história no ensino de história.
Neste sentido, procura-se neste ensaio compreender como a arte sequencial
produz interpretações do passado recente que “orienta o passado e projeta
futuros”, mas que também impulsionam “carências de orientação” [SADDI,
2012, p. 217]. Especificamente, analisa-se A sombra das torres ausentes com
o objetivo de articulá-la no debate de como as mídias, em especial as
vinculadas ao jornalismo, formam uma comoção pública a partir de uma versão
de um evento e, a longo prazo, possibilitam a institucionalização de uma
memória coletiva por meio da recordação dos fatos.

Desse modo, A sombra das torres ausentes configura-se como um exemplo


dos usos da história na construção de uma versão hegemônica de comoção
pública que influencia a capacidade de reagir com indignação ou de refletir
eticamente sobre a alteridade. Contudo, a discussão almejada neste ensaio
não é nova no campo da história do jornalismo, porém, inova quando refletida à
luz da didática da história, em particular sobre as constituições de sentido
sobre a identidade cultural. Neste caso, interpreta-se os discursos que tornam
a identidade árabe idêntica ao terrorismo e suas consequências por meio dos
enquadramentos narrados por Art Spiegelman, em que uma memória sensível
transforma-se em um retrato político, ideologicamente direcionado a um uso da
história para definir como a cidade de Nova York foi vitimada por
fundamentalistas e pela ganância de políticos conservadores.

“Terroristas de cabeça oca” e o canto do bode


A representação gráfica em A sombra das torres ausentes desenrola-se a partir
do olhar testemunhal de Art Spiegelman no momento em que “colidem História
Mundial e História Pessoal”. Nesta intersecção, entre um sobrevivente e um
narrador, Spiegelman testemunha os atentados contra as torres gêmeas e
narra o seu “enraizamento” à um “um núcleo não desfeito no caldeirão de
etnias”, bem como o “afeto pelo bairro caótico que posso sinceramente chamar
de lar”. [SPIEGELMAN, 2004, s.p]. Do ponto de vista narrativo, Art Spiegelman
organiza suas “experiências passadas por meio de recursos disponíveis no
presente”, como explicam Marta Rovai e Ricardo Santhiago [ROVAI;
SANTHIAGO, 2020, p. 31].

Neste sentido, o olhar testemunhal de Art Spiegelman compõe-se por outros


dois, a do recém “enraizado” a cidade de Nova York e o do “pária” judeu para
constituir o seu “ato de criação” autobiográfica. Ele já havia feito algo similar em

17
outra história em quadrinhos, Maus (1991-1993), ao retratar personagens
autobiográficos em um contexto dramático [MAZUR; DANNER, 2014, p. 185].
Desse modo, ao integrar a perspectiva do sobrevivente, do nova-iorquino e do
judeu, Spiegelman tornou coincidente a autoria, a narração e a personagem em
um episódio trágico e, assim, interpretar o 11 de setembro por meio da sátira
política:

[SPIEGELMAN, 2004, p.2]

Neste enquadramento, em um torpor traumático, a personagem Art Spiegelman


encontra-se entre um terrorista da Al-Qaeda e um político conservador norte-
americano para criar uma justaposição entre os efeitos particulares com as
causas gerais que explicam o 11 de Setembro. Neste paralelo, Spiegelman
dialoga com o público-leitor, aproximando-se deste pela imaginação literária
guiada pelos cartoons em sua mesa de trabalho e, igualmente, transformando-
se em um. Evidentemente que a sua animalização não correspondia a uma
simples infantilização. De forma análoga ao feito em Maus, Spiegelman
sobrepôs “um dos piores horrores do mundo moderno com um estilo associado
ao prazer da infância”, mas afastou-se da “malícia ou ironia excessiva” e
representou a “coisa animal”, mantendo “proporções humanas em suas figuras”
[MAZUR; DANNER, 2014, p. 185].

18
Neste entrelaçamento entre a animalização e a humanização, a perspectiva do
pária dirige o enquadramento, a auto-representação de um rato-humano
aproxima-se da comunidade multiétnica de Nova York, mas coloca-se distante
da política. Entre a caracterização dos terroristas da Al-Qaeda e dos políticos
conservadores, a personagem Art Spiegelman procura explicar os atentados.
Embora o seu objetivo não fosse aumentar o coro nacionalista e islamofóbico,
a interpretação de Spiegelman sobre o 11 de Setembro foi que os nova-
iorquinos foram as vítimas e os culpados seriam os fundamentalistas e a direita
norte-americana, conforme ele registrou em palavras:

“Naqueles primeiros dias depois do 11/9 me perdi construindo teorias


conspiratórias sobre a cumplicidade de meu próprio governo no que
acontecera, teorias que fariam o orgulho de qualquer francês. (Minha
suscetibilidade à conspiração tem raízes no passado remoto, mas seu pico
anterior fora atingido depois das eleições de 2000). Só voltei aos eixos quando
ouvi árabes-americanos paranóides jogando toda a culpa nos judeus. Concluí
que não era tão importante assim saber até que ponto exatamente meus
“líderes” já estavam informados sobre os seqüestros - bastava constatar que na
mesma hora eles haviam instrumentalizado o ataque para a sua própria
agenda” [SPIEGELMAN, 2004, p.2].

Desconsiderando o preconceito contra os franceses, na conjunção entre a


imagem e a fala de Art Spiegelman, do ato terrorista da Al-Qaeda e das
paranóias dos ‘árabes-americanos’, não há um sentido político nessas ações,
apenas a radicalidade das reivindicações. Ao destituir a política como uma das
motivação, Spiegelman representa a interdependência como algo impossível e
o aparecimento dos atores na cena pública como maquinações, fazendo assim
um uso invertido da história, algo que fica mais claro na curta sátira abaixo:

[SPIEGELMAN, 2004, prancha III]

19
Se lida convencionalmente e depois de ponta cabeça, há uma pequena sátira
em 12 quadros de dois personagens, Lovekins e Muffaroo, que partem para um
palácio encantado e deparam-se com um gênio que os alerta sobre dois
armários. Ao abrirem o primeiro saem fadas e a história parece encontrar um
desfecho: “As fadas voltam para dentro do armário e Muffaroo fecha a porta. ‘O
que será que tem no outro?’, Lovekins pergunta. ‘Ah, isso nunca saberemos!’,
responde o velho Muffaroo”. Mas, ao continuar a leitura, só que de ponta
cabeça, a sátira continua. Eles, ao abrirem a porta proibida, são cercados por
uma horda de duendes que ‘lança-os para cima e de um lado para o outro’.
Logo depois, um imenso touro joga os dois para longe. No último quadro, o
narrador diz: “‘mais assustados que feridos’ e um deles decide ‘nunca mais
ceder à vã curiosidade’”. A metáfora não poderia ser mais clara: para explicar
os atentados do 11 de setembro deve-se percorrer e repetir a mesma história
em uma continuidade que depende da inversão do ponto de vista para ser
compreendida em sua totalidade.

Interpreta-se que o uso da história feita por Art Spiegelman reside nessa
pequena fábula que exige do leitor uma mudança de perspectiva para a
compreensão da frase “o céu está caindo” e da comoção esperada nessas
páginas:

[SPIEGELMAN, 2004, p. 9]

Por um lado, a comoção representada em cada quadro evoca um sentimento


de compaixão, sendo um elemento importante para a formação de uma
consciência ética. Mas por outro, a compaixão é sustentada por imagens
estereotipadas dos árabes transformando-se em um uso político. Se um dos
objetivos de À sombra das torres ausentes foi o afastamento da política, os
usos políticos das representações gráficas apontam para outra direção, nessas
páginas os terroristas se associam aos animais em tudo que ameaça a

20
comunidade multiétnica, mas, curiosamente, suas ações não são sustentadas
por instituições políticas como o exército ou um Estado-nação. Conforme visto
até aqui, os terroristas são indivíduos paranóicos e de “cabeça oca”, como um
bode com turbante [SPIEGELMAN, 2004, p. 9]:

[SPIEGELMAN, 2004, p. 8]

De modo contraditório, a sátira política de Art Spiegelman foi ao encontro da


versão oficial e da mídia comprometida com o Departamento de Defesa dos
Estados Unidos. Embora crítico da junta Cheney-Bush e dos grupos de
interesse conversadores, infelizmente, os efeitos de comoção de À sombra das
torres ausentes foi ambíguo. Ao mesmo tempo que narra uma tragédia
humanitária, reforça uma política racista contra os árabes, na definição, mesmo
que satírica, de um sujeito que está sempre fora de uma comunidade, não
como um pária, mas de alguém que traz somente o terror como um bode
enfurecido.

Entretanto, Mohammed Atta não era um ‘terrorista de cabeça oca’ ou um


‘bode’, segundo narra o crítico literário e ensaísta Gore Vidal, ele estava no
comando dos 19 homens que sequestraram os quatro aviões em 11 de
Setembro. Morreu na colisão com a primeira torre. Contudo, dias antes do
atentado, Atta havia recebido 100.000 dólares do general Mahmoud Ahmed,
chefe do Inter Services Intelligence (ISI) - a agência de espionagem
paquistanesa. A ISI, a partir de 1979, começou a receber apoio financeiro,
logístico e treinamento de outra agência de espiões, a CIA dos Estados Unidos,
que financiou uma contra-ofensiva à invasão do Afeganistão pelos soviéticos.
Entre 1982 e 1992 mais de cem mil estrangeiros foram treinados pela CIA por
intermédio da ISI. Mas, em 1988, Osama Bin Laden criou a Al Qaeda (A Base),
“um conglomerado de células terroristas islâmicas quase independentes,
espalhadas em pelo menos 26 países” [VIDAL, 2003, p. 74].

“Washington fechou os olhos para a Al Qaeda”, relata Gore Vidal, assim como,
para a presença de Mahmoud Ahmed no dia 10 de setembro na capital dos
Estados Unidos [VIDAL, 2003, p. 74]. Em 11 de Setembro, pela televisão foi
possível ver o presidente dos Estados Unidos, George Bush lendo um livro
cercado por crianças de uma escola primária na Flórida. Segundo ainda
segundo Vidal, eles conversavam sobre um bode encontrado em um livro.
Etimologicamente, a palavra “tragédia” vem de dois radicais gregos: “tragos” e
“oide”, respectivamente conotam “bode” e “oide” e “canto”, juntas “tragoidia”,
significam o “canto do bode” [VIDAL, 2003, p. 76]. Essa conjunção explica-se
pelos sacrifícios dados a Dionísio durante a peça teatral, assim que um bode
era sacrificado o coro cantava.

21
Contemporaneamente, Gore Vidal significou esse canto através dessas
palavras: “é bastante cabível um lamento como esse, cantando em sátiras
antigas, ter sido ouvido novamente no momento exato em que fomos atingidos
pelo fogo no céu, e teve início para nós uma tragédia cujo fim nossa vista não
alcança” [VIDAL, 2003, p. 76]. Algumas coincidências demonstram como a
sátira é importante como um recurso estilístico e, igualmente, como uma opção
política, por apresentar de forma sutil o que não se pode narrar ou mesmo se
afastar do sátiro:

[SPIEGELMAN, 2004, p. 8]

Considerações finais
Em larga medida, o enquadramento feito em À sombra das torres ausentes
contribui para a constituição da consciência histórica em um contexto político
específico. Como se viu, das memórias traumáticas à produção de uma sátira
política, este HQ se caracteriza por um uso da história que organiza uma
memória, mas, paralelamente, reforça um estereótipo racista. Sendo uma
interpretação, esta demonstra uma perspectiva que deve ser historicizada de
modo a destacar as relações de poder e as estratégias discursivas que
circundam um evento histórico. Neste sentido, uma reflexão voltada ao ensino
de história deve, sobretudo, historicizar as diferenças para uma aprendizagem
em que os alunos(as) identifiquem que o passado está inscrito no presente,
seja em sua continuidade ou nos usos das histórias.

Da tragédia a sátira, À sombra das torres ausentes representa uma


interpretação possível sobre o 11 de Setembro que busca, sobretudo, narrar
um “sentimento de deslocamento” que derivam “da ausência de protesto contra
ultrajes enquanto eles estavam sendo cometidos”. Mas, infelizmente, como o
próprio Art Spiegelman comenta, “o que antes era impronunciável começa
agora a ser publicado fora da imprensa alternativa marginalizada e dos
programas cômicos da madrugada na tevê a cabo. No outono de 2003, o New
York Times publicou o meu perfil na seção de Artes, incluindo a famosa
prancha em que apareço sentido-me ‘aterrorizado’ pela Al-Qaeda e por meu

22
próprio governo, prancha que dois anos antes provocara tremores explícitos
em alguns editores” [SPIEGELMAN, 2004, s.p.].

Entretanto, o que essa sátira não aduz foram os efeitos da tragédia. Em 2004,
na prisão de Abu Ghraib, em Bagdá, no Iraque, um conjunto de fotos foi vazado
na internet sobre a tortura e o abuso sexual de prisioneiros, acusados
indiscriminadamente de terrorismo. Veiculadas como risíveis e consideradas
pelo governo dos Estados Unidos como casos isolados por Donald Rumsfeld, o
Secretário de Defesa, que antes de fazer uma retratação pública sobre o
ocorrido, disse que estás “nos definiam como americanos” [BUTLER, 2015, p.
111]. Apesar da declaração e das condenações de militares, não foi revertida a
política concentracionária e as condições de milhares de presos. O que nos
leva a uma última pergunta: quais vidas podem ser narradas após o 11 de
setembro?

Em 2007, um outro caso de tortura foi gravado em copos descartavéis e


entregues a advogados na prisão de Guantanamo em Cuba, Abdurraheem
Aamer um prisioneiro escreveu:

Paz, eles dizem.


Paz de espírito?
Paz na Terra?
Paz de que tipo?

Eu os vejo falando, discutindo, brigando…


Que tipo de paz eles estão buscando?
Por que eles matam? O que estão planejando?

É apenas conversa? Por que discutem?


Matar é tão simples assim? É esse o plano deles?

Claro que sim!


Eles conversam, eles discutem, eles matam -
Eles lutam pela paz
[AAMER. apud. BUTLER, 2015, p. 90]

“Nossa capacidade de reagir com indignação, antagonismo e crítica


dependerá”, explicou Judith Butler, “em parte, de como a norma diferencial do
humano é comunicada através de enquadramentos visuais e discursivos
[BUTLER, 2015, p. 118]. Há dores piores do que a morte, uma delas é a tortura
e esta nunca é risível.

Referências
Dr. Álvaro Ribeiro Regiani é professor de História das Américas e das Áfricas
na Universidade Estadual de Goiás - Câmpus Nordeste.

23
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. A indústria cultural: o esclarecimento
como mistificação das massas. In. COHN, Gabriel (Org.). Theodor W. Adorno.
São Paulo: Editora Ática, 1986.
BUTLER, Judith. Quadros de guerra: Quando a vida é passível de luto?
Tradução de Sérgio Tadeu de Niemeyer Lamarão e Arnaldo Marques da
Cunha. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2015.

MAZUR, Dan; DANNER, Alexander. Quadrinhos: História moderna de uma arte


global. De 1968 até os dias de hoje. Tradução Marilena Moraes. São Paulo:
WMF Martins Fontes, 2014.

ROVAI, Marta Gouveia de Oliveira; SANTHIAGO, Ricardo. Educação em


direitos humanos & Narrativas biográficas. Santo André, SP: Universidade
Federal do ABC, 2020.

RÜSEN, Jörn. Didática da História: passado, presente e perspectivas a partir


do caso alemão. Práxis educativa, Julho-dezembro, ano/vol 1,número 002.
Universidade Estadual de Ponta Grossa, Brasil, 2006.

SADDI, Rafael O parafuso da didática da história: o objeto de pesquisa e o


campo de investigação de uma didática da história ampliada. Acta Scientiarum.
Education, vol. 34, núm. 2, julio-diciembre, 2012, pp. 211-220.

SPIEGELMAN, Art. À sombra das torres ausentes. Tradução de Antonio de


Macedo Soares. São Paulo: Cia das Letras, 2004.

VIDAL, Gore. Sonhando a guerra: sangue por petróleo e a Junta Cheney-Bush.


Tradução de Ricardo Silveira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

24
ORIENTES E ORIENTALISMO EM GILBERTO FREYRE:
OLHARES SOBRE OS INDIANOS, por Arlindo Souza

Gilberto Freyre é reputado como um dos autores que “inventaram o Brasil”. Sua
obra é vasta e sua importância é reconhecida no Brasil e no exterior. Contudo,
mesmo para este tão conhecido e estudado autor, pelo caráter sobejamente
prolífico de sua produção, existem ainda pontos a serem debatidos e
analisados, de onde destacamos as suas abordagens sobre “os orientes”. Aqui,
o que temos investigado é não apenas a sua vasta e inexplorada interlocução
com autores orientalistas (das mais variadas procedências) – e de onde
provém, naturalmente, a sua “fonte” orientalista – , mas o próprio orientalismo
que, consequentemente, emerge em seus escritos. Temática sobre a qual
desenvolvemos a tese provisoriamente intitulada “Os Orientes de Freyre e o
orientalismo lusotropicalista na «Questão de Goa» (1954-1961): reflexos no
jornal Diário de Notícias de Lisboa”, tendo esta pesquisa resultado na produção
de artigos e participações em congressos e simpósios ao longo dos últimos
quatro anos.

No decorrer dos nossos estudos sobre a produção freyreana, quando o


assunto em questão são os orientes (ou as “não-Europas” de um modo geral)
por ele abordados, constatamos que o conceito de orientalismo de Edward
Said ali se aplica em perfeita conformação. Afinal, Said define orientalismo
como uma visão essencializada sobre o “outro”. Mais precisamente, como uma
“distinção ontológica e epistemológica (...) entre «o Oriente» e (a maior parte
do tempo) «o Ocidente»”. Distinção esta que, reproduzida por uma “enorme
massa de escritores (...) poetas, romancistas, filósofos, teóricos políticos,
economistas e administradores imperiais”, serviu e serve como “ponto de
partida para elaboradas teorias, épicos, romances, descrições sociais e relatos
políticos a respeito do Oriente, dos seus povos, costumes, «mente», destino e
assim por diante” [Said, 1990, p. 14] – sendo desta forma, como ver-se-á, que
Freyre procede ao abordar as “não-Europas”.

Todavia, se o orientalismo, também segundo Said, é um “estilo ocidental para


dominar, reestruturar e ter autoridade sobre o Oriente” [Said, 1990, p. 15], e
Freyre fora um brasileiro, portanto, um homem não oriundo de um país
imperialista, Marta Pacheco Pinto torna o conceito mais abrangente ao afirmar
que o “fenómeno orientalista coloca-se (...) como um [fenómeno] de natureza
gnosiológica e representacional” [PINTO, 2013, p.100], que pode ser
“entendido ou não como reflexo de um vínculo colonial e ocupação efectiva de
um território oriental”. Assim, nesta acepção, ao se instituir como doxa, ao
espelhar uma visão do mundo com a qual um grupo sociocultural age em
conformidade, o orientalismo está relacionado mais à identidade na qual

25
determinado grupo sociocultural se enxerga (ou deseja ser enxergado) do que
estritamente com a sua posição de agente dominante no jogo geopolítico.

E será precisamente deste “lugar de fala”, a saber, o Ocidente (mas o


“Ocidente Ibérico” – tratamos deste assunto em SOUZA, 2020), que Freyre
lançará seu olhar para Orientes, Áfricas e Trópicos. Com uma “agenda”
preocupada em salvar o “complexo lusotropical” das influências culturais tanto
das não-Europas (estas, as “verdadeiras ameaças”) quanto do “outro Ocidente”
(o ocidente anglossaxão, “burguês”, “carbonífero”, “imperialista” etc.) no
contexto pós-Segunda Guerra Mundial, ao defender que o Brasil seria “o futuro”
líder do mundo lusófono, Freyre termina por se aproximar (e “ser aproximado”)
do Estado Novo salazarista. Que, então desejoso de defender suas posições
imperiais “agarrara-se” ao conceito de lusotropicalismo. Conceito este que
concorria para a afirmação de que a presença portuguesa nos “trópicos” era
“efetivamente benéfica” para os povos colonizados, ao contrário
(supostamente) da forma mais exploratória dos imperialismos burgueses
representados por Inglaterra, França, Bélgica, Holanda etc.

Destarte, para a construção discursiva da legitimidade da autoridade


portuguesa (hegemonia, no caso da sua intenção para o caso do Brasil) no
“complexo lusotropical”, ainda colonial nos anos 1950/1960, encontramos, nos
textos freyreanos, toda uma série de essencializações de cariz eminentemente
orientalista. As quais partiam do princípio de que os povos dominados (aqui,
em questão, os goeses) estariam mais bem servidos se estivessem sob a
tutela dos portugueses (ideia do “fardo do homem português” implícito no “mito
imperial” salazarista apontado por Fernando Rosas [ROSAS, 2001, p.1034]).
Afinal, estes os “civilizaram” e “cristianizaram” melhor do que qualquer outro
europeu. Pois ainda que Freyre aponte a “transigência”/tolerância como um
caráter “castiçamente português”, é certo que o autor brasileiro celebrava as e
predominâncias do elemento cristão europeu em suas colônias.

Vê-se, portanto, com frequência Freyre utilizar-se de tropos orientalistas para


tratar dos indianos e goeses “não assimilados”. Emergindo noções como a de
que os orientes eram lugares de “aventura”, “do místico”, “de magia”, “do
exótico”, “do irracional”, “do vasto”, “do femeal”, “de ameaça”, “de cores”, “de
odores”, “de riquezas”, “de corrupção”, “do edêmico”, “do burlesco”. E, os
orientais, eram “lascivos”, “femeais”, “traiçoeiros”, “ingratos”, “ameaçadores”,
“suscetíveis”, “despóticos”, “submissos”, “frágeis”, “emasculados” etc., mas, por
outro lado “sábios”, “puros”, “imaculados”. Pois, ao fim e ao cabo, as
essencializações orientalistas não correm apenas no sentido “negativo”, mas
também no “positivo”. Não obstante um “positivo” que mantém o oriental em
uma posição subalterna: ao invés de intelectuais, são sábios, místicos; ao invés
de honestos, de bom caráter, são puros e imaculados. Sempre de modo a
opor, por exemplo, a racionalidade Ocidental à irracionalidade Oriental: os
“mágicos” orientais e os “lógicos” ocidentais – expressão comparativa que
surge em Aventura e Rotina, de 1953, mas que se repete com mais força em
Insurgências e ressurgências atuais, de 1983.

26
E é com esta abordagem orientalista que Freyre, ao tratar dos inícios da
presença lusa no “Oriente”, relata que o Ocidente (leia-se o ocidente ibérico, o
português, sobretudo) é o elemento masculino, fecundador, e o Oriente o
elemento feminino. Aqui, para o autor, o próprio momento das “Grandes
Navegações”, fora uma “Idade sociologicamente viril” [FREYRE, 1953b, p. 99].
E, ao chegar aos “orientes”, os portugueses logo fizeram “sentir sua presença
na «imensa Ásia», (...) como [homens] capazes de amar mulheres orientais e
ser por elas amados. Capazes de fecundar mulheres de cor e fazer sair dos
seus ventres portugueses também de cor...” [FREYRE, 1953a, p. 347]. E se o
elemento “feminizador” do oriente fica evidente no trecho acima, outro
elemento orientalista também aparece: o tratar a Ásia como um local
incomensurável, imenso. E, por isso mesmo, palco em que os intrépidos
europeus podem realizar mil heróicas aventuras.

Mas, se os portugueses possuíam um ímpeto “másculo” e “viril”, por outro lado,


os hindus, por exemplo, possuíam características “de mulher” [FREYRE,
1953b, p. 59], “de efebos” [FREYRE, 1953a, p. 307] – um “costume muito
oriental de substituir-se às vezes a mulher pelo menino bonito” [FREYRE,
1953b, p. 114] – ou mesmo “assexual” [FREYRE, 1953b, p. 94]. E, quando não
femeais, Freyre descreve os hindus como “melancólicos”, e os “mestiços
euroasiáticos” “como doentes, melancólicos”. Frágeis e inferiores fisicamente,
como se vê no como no trecho a seguir: “Não é de se estranhar num grupo de
renegados desses, a inferioridade física que faz deles uma população tão
fraca. Tão mofina. Tão sensual – mesmo para o Oriente” [FREYRE, 1936, p.
637]. Aqui, curiosamente, apesar de parecerem doentes, eles surgem, nesta
descrição, como sensuais – não sendo claro o que autor quer dizer com
“sensuais mesmo para o Oriente”. Menção esta (à “fragilidade física dos
indianos”) que aparece também em Aventura e Rotina [FREYRE, 1953a, p.
349].

Sobre os mestiços “anglo-indianos” e “luso-indianos” Freyre participa que:

“Enquanto o mestiço de português com indiano pode levar-se a situações de


maior enlevo social, mesmo quando cacogênico, (...) na Índia parece para os
homens envelhecerem [mais frequentemente] como Gandhis, feios e até
grotescos, do que como o belo Tagore que conheci nos meus dias de
estudante (...) nos Estados Unidos. [Tagore] que foi na velhice uma espécie de
Goethe indiano: um Goethe com olhos e cabelos quase de mulher e barba
quase de profeta”. [FREYRE, 1953a. p. 351]

Aqui as descrições físicas dos indianos e dos luso-indianos aparecem mais


uma vez carregadas de estereótipos orientalistas. Primeiramente destacamos a
“ressalva” que Freyre faz aos luso-indianos. Em um primeiro momento o autor
ressalta a possibilidade de mobilidade social no meio “indo-português”
(referindo-se a Goa), mas o que nos chama atenção é o uso de uma expressão
própria de uma sorte de antropologia física que Freyre alegava combater: a
expressão “cacogênico”. Ora, esta é um termo (cacogenia) que designa
“degeneração racial” derivada de miscigenações entre “raças” de “níveis

27
diferentes”, deixando claro mais uma vez como Freyre não rompe
definitivamente com uma antropologia física mais racialista que havia (ainda)
em seu tempo – não obstante estejamos a falar de um texto de inícios dos
anos 1950, mais precisamente de trinta anos após o seu “clássico” CG&S que
é quando se supõe que Freyre tenha se descolado deste tipo de abordagem.

Relativamente aos indianos, as colocações de Freyre chegam a extremos,


denotando dois lados orientalistas: aquele que inferioriza os “orientais” e aquele
que, de alguma forma, busca os “exaltar”. Assim, ou eles são “feios e
grotescos”, como Gandhis (notem o plural, pois, sob o orientalismo, os orientes
e orientais facilmente se confundem, até se transformarem numa turba
disforme e indistinguível, sem individualidade alguma), ou sábios, belos,
beirando o etéreo e, mais uma vez feminino, como Tagore. Destacaríamos,
assim, aqui, também a associação do “oriental” com uma imagem idealizada de
sábios e profetas, mais místicos do que racionais, mais “mágicos” do que
“lógicos”.

Esta “imagem” emerge quando são descritos/mencionados intelectuais,


juristas, homens de letras e eruditos de formação acadêmica (científica,
portanto) mais do que consistente, como Tagore, Gandhi e Panduronga
Pirsulencar. Ao falar, por exemplo, sobre o “professor Pirssulencar”, Freyre
descreve que pareceu, ao ouvi-lo, ouvir cantos Marata numa voz "orientalmente
doce" [FREYRE, 1953b, p. 272]. Já quando Freyre se refere ao líder Gandhi,
diz que este lhe parece alguém “Com um ar menos de letrado de instituto que
de sábio bom das Mil e Uma Noites. Com corpo magro, moreno e sempre
muito limpo e protegido apenas por um lençol branco que era também o tapete
voador em que viajava...” [FREYRE, 1953b, p. 165].

Ora, aqui aparecem os já citados estereótipos do oriental sábio (e tenhamos


em conta que Gandhi possuía um diploma de Direito e uma formação
acentuadamente ocidentalizada), ascético, limpo, que parecia usar um tapete
voador etc, mas também aparece o que se nos apresenta como uma
verdadeira confusão tipicamente orientalista: Gandhi era um homem hindu,
mas Freyre entendeu que ele se parecia com um alguém que, não demoraria
muito, sairia em um “tapete mágico voador” – sendo que as histórias do “Livro
das Mil e Uma Noites” são um conjunto de histórias escritas em persa e em
árabe. Distante, portanto, de ser, como Gandhi, hindus.

O caráter “etéreo” dos hindus aparece, ainda, em outro breve trecho de


Aventura e Rotina, onde são referidos como “que de tão asceticamente hindus
parecem ex-homens já desencarnados...” [FREYRE, 1953a p. 405],
fantasmagóricos e frágeis. Por outro lado, no que diz respeito ao
comportamento cotidiano do indiano, Freyre encontra uma conexão (um tanto
desconcertante) deste com o brasileiro. Para ele, indianos e brasileiros são
afeitos a “intrigas, falsidade, boatos, sussurros... bizantinismo... [FREYRE,
1953a, p. 348]. Atribuições estas, sobre os “orientais” que são colocadas por
Said como marcadamente orientalistas.

28
A ideia de um Extremo Oriente “colorido”, “encantado”, e “delicado” também é
fartamente observada em Freyre. Lá, no Oriente, os animais ficavam
“orientalmente soltos à rua” e os frutos eram milagrosos, coloridos,
perfumados, e afrodisíacos [FREYRE, 1953b, p. 68]. Neste aspecto, o livro Um
Brasileito em Terras Portuguesas pode ser visto como um exemplo de que se
pode ver o “oriental” de modo “positivo” mas, mesmo assim, orientalista,
essencializado. Nele, Freyre “fala pelos orientais”, diz “como eles eram”, os
“conhece através da ciência” (sempre citando estudiosos ocidentais
especialistas em Oriente...), versa sobre a sua religiosidade, sobre seus traços
psicológicos e sociais, de modo que o “método orientalista” de produzir saber
reproduzindo representações sobre o “outro” é aqui fartamente observado.

Detectamos essencializações de ordem orientalista, ainda (e curiosamente),


quando Freyre fala sobre determinadas características dos portugueses. E elas
começam quando Freyre analisa os primeiros momentos dos portugueses no
Oriente. Os “Orientes eram cores” [FREYRE, 1953b, p 109]; lugares de
descobertas e de um “idílio voluptuoso” [FREYRE, 1953b, p. 109]; onde “o
cotidiano era misturado ao fantástico” [FREYRE, 1953b, p 112]; lugar de “todos
os pecados” [FREYRE, 1953b, p 114]; lugar de “mistérios e exotismos
tropicais” [FREYRE, 1953b, p. 114]; de “águas misteriosamente tropicais”
[FREYRE, 1953b, p. 117]; dos “excessos do álcool” [FREYRE, 1953a, p. 67];
lugar onde os jovens manifestavam a “tendência a desejar casamentos
exóticos com “mulher de cor” em “uniões aventurosas” [FREYRE, 1953b, p
118]; cujos aspectos fantásticos ficaram imortalizados na obra Peregrinação,
do célebre orientalista do século XVI Fernão Mendes Pinto [FREYRE, 1953b, p.
118].

Concluindo. Ao perscrutarmos: a vasta interlocução de Freyre com os autores


orientalistas de seu tempo (e de antes); o próprio contexto em que o autor vive
e escreve; assim como as relações sociais e profissionais que trava. Temos
que seria virtualmente incontornável que, na mais branda das hipóteses, se
encontraria uma tópica orientalista em sua obra. No entanto, quando nos
detemos mais atentamente em seus escritos – considerados como um todo,
mas, especialmente, aqueles produzidos num contexto de maior aproximação
do autor com o Estado Novo Salazarista, portanto, a partir de fins dos anos
1930 e início dos anos 1940 – vemos que, desde O Mundo que o Português
Criou (1940), livro chave para o conceito de lusotropicalismo e que não
inocentemente ganha este novo título justamente no ano da comemoração
portuguesa do “Duplo Centenário” [CASTELO, 1999], as ideias orientalistas
aparecem com mais frequência e clareza. No entanto, este viés orientalista do
“mestre de Apipucos” é tema em que estão sendo dispensadas ainda apenas
as “primeiras tintas”.

Referências
Arlindo José Reis de Souza é doutorando pelo Programa Interuiniversitário de
Doutoramento em História pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade
de Lisboa.

29
CASTELO, Cláudia. O modo português de estar no mundo: o luso-tropicalismo
e a ideologia colonial portuguesa: 1933-1961, Porto, Edições Afrontamento,
1999

FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos. São Paulo, Nacional, 1936.

________________. Aventura e Rotina: Sugestões de uma Viagem à procura


das Constantes Portuguesas de Caráter e Ação. Rio de Janeiro, José Olympio,
1953a.

________________. Um Brasileiro emTerras Portuguesas. Rio de Janeiro,


José Olympio, 1953b.

________________. Insurgências e ressurgências atuais. Rio de Janeiro:


Editora Globo, 1983.

PINTO, Marta Pacheco. Traduzir o outro oriental. A configuração da figura


feminina na literatura portuguesa finissecular (Atónio Feijó e Wenceslau de
Moraes). Tese de doutoramento. Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa. 2013.

SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo:


Companhia das Letras, 1990.

ROSAS, Fernando. O salazarismo e o homem novo: ensaio sobre o Estado


Novo e a questão do totalitarismo. Instituto Ciências Sociais da Universidad de
Lisboa. In Análise Social, Vol. 35, No. 157, HISTÓRIA POLÍTICA (Inverno de
2001), pp. 1031- 1054

SOUZA, Arlindo J. Reis de. Os Orientes e Ocidentes de Freyre: tópica


Orientalista em Casa-grande & Senzala e o Ocidente em Sobrados e
Mucambos, in. Revista de Estudios Brasileños, Salamanca, Vol 7 – n. 14.
Ediciones Universidad de Salamanca, p. 153-167, 2020

30
OS SAMURAIS: PARA ALÉM DAS VISÕES ROMÂNTICAS,
por Arthur D´Elia dos Santos

O presente texto visa se contrapor às visões romanticamente antagônicas de


Inazo Nitobe e do mangá Samurai X acerca dos samurais. Para isso será
tomado como exemplo a história dos quarenta e sete Ronin; que inclusive já foi
tema de filme. Entre os mangás e animes também tem outras muitas obras
envolvendo a temática samurai. Como é o caso do arco de Wano em One
Piece. Desse modo, o tema acaba sendo de extrema importância para a
reflexão no que tange aspectos éticos e morais.

Ronin era o nome dado a um samurai sem senhor. Isso poderia ocorrer por
demissão ou quando o senhor era executado ou despromovido [HENSHALL,
2014]. Geralmente esses samurais que não tinham a quem servir
perambulavam pelo Japão causando perturbações a aldeões ou inquietando
autoridades [HENSHALL, 2014]. No entanto, os quarenta e sete representariam
na verdade a real virtude samurai. A seguir será exposta, a partir de Kenneth
Henshall, a história dos quarenta e sete Ronin:

“Em 1701, o seu senhor, Asano Naganori (1665-1701), de Ako, em Harima


(Prefeitura de Hyogo), tinha sido insultado por Kira Yoshinaka (1641-1703), o
chefe do protocolo do xogum. Asano tinha puxado da sua espada no castelo do
xogum, uma ofensa capital. Teve de fazer seppuku e o seu domínio foi
confiscado à família. Quarenta e sete dos seus samurais servidores, agora sem
senhor, juraram vingar a sua morte, tirando a vida a Kira. Ocultaram o seu
intento durante dois anos, fingindo levar uma vida dissoluta, e depois atacaram
e mataram Kira num momento em que estava sem guarda, colocando a sua
cabeça no túmulo do seu senhor” [HENSHALL, pág. 87, 2014].

Apesar da conduta de tais samurais estarem de acordo com o código de ética


da classe, o bushidô, ainda assim foram condenados por terem tomado a lei
nas suas próprias mãos [HENSHALL, 2014]. O resultado disso foi o suicídio
num seppuku (enfiar a espada contra o próprio abdômen) coletivo. Ora, essa
história trás alguns pontos que seriam primordiais para a teorização de Inazo
Nitobe: a honra e a lealdade como valores dos samurais. Ambos que, de certo
modo, foram muito presentes por conta da influência confucionista
[HENSHALL, 2014]. Para compreensão da teoria de Nitobe é necessário antes
entender o contexto em que ele está imerso, ou seja, o período Meiji (1868-
1912).

Trata-se de um momento da história japonesa marcado pela adoção de um


sistema nacional de ensino, forte centralização política, fim de privilégios da
classe samurai como o de carregar duas espadas e pouco a pouco seu

31
fenecimento, investimento no setor têxtil e indústria nacional. Aqui entra
também outros dois aspectos que serão importantes para o posterior
imperialismo japonês: busca pela legitimação política e militar junto com a
construção de uma poderosa marinha [UNZER, 2020]. Cabe dizer que os
japoneses não eram reconhecidos como “civilizados” pelos ocidentais (era raça
“amarela”); isso vai gerar um ressentimento que depois será crucial para a
primeira guerra mundial. Tempo depois o Japão vai demonstrar soberania ao
derrotar a Rússia na guerra russo-japonesa de 1905 [UNZER, 2020].
Estes componentes no que se passava globalmente são bastante
compreensíveis de existirem por conta do nacionalismo que pairava sobre a
Europa [NUNES, 2011]. Também vai ser nesse momento da história que no
Japão o xintoísmo vai se tornar religião oficial do Estado [NUNES, 2011]. A
extinção da classe dos samurais vai culminar na criação de uma imagem
heroicizada deles cujo objetivo vai ser o desenvolvimento de uma identidade
nacional [NUNES, 2011].

O bushidô, que foi um termo cunhado para representar a ética dos samurais do
Japão, vai ser utilizado para difusão de uma política nacionalista [NUNES,
2011]. O processo de unificação japonês partiu da já mencionada idealização
do samurai, o qual era agora considerado um herói. Após esta breve
exposição, pode-se agora avaliar as considerações de Nitobe e refletir sobre
sua teorização, os quarenta e sete Ronin e o que de fato significava o samurai
ao longo da história japonesa a partir de uma perspectiva crítica.
Sobre a honra, Inazo afirma o seguinte: “O sentido de honra, implicando uma
consciência vívida do valor e da dignidade pessoais, não poderia deixar de
caracterizar o samurai, nascido e criado para valorizar os deveres e privilégios
de sua profissão” [NITOBE, pág. 59, 2019]. Esta consideração não está longe
do que de fato ocorria, sobretudo quando no período Edo da história japonesa
os samurais tinham sobre si o dever moral de recusar o deleite em casas de
prostituição que se formavam [UNZER, 2020].

Por conseguinte, a lealdade vai ser o outro atributo fundamental. Porém, seu
conteúdo é a reverência e fidelidade ao senhor [NITOBE, 2019]. Isso fica
evidente nesta consideração: “A vida sendo considerada como um meio de
servidão a seu mestre, e seu ideal sendo assentado sobre a honra, toda a
educação e todo o treinamento do samurai eram coordenados com este
propósito” [NITOBE, pág. 71, 2019]. Outras virtudes requeridas são:
benevolência, autocontrole e simplicidade [NITOBE, 2019]. Agora, uma real
idealização e romantização dos samurais pode ser vista na seguinte colocação:

“[...] O que ele carregava em seu cinturão era um símbolo do que carregava em
sua mente e em seu coração – lealdade e honra” [NITOBE, pág. 96, 2019].
Trata-se de uma forma de enxergar os samurais como se fossem aqueles que
atingiram a plenitude de caráter e um modelo ético a ser seguido. Conforme diz
Nunes: “A versão do bushidô de Nitobe se tornou mais difundida no ocidente, e
um dos principais pontos que chamam atenção na obra é a presença da
imagem idealizada do samurai como um herói nacional que deveria servir de

32
modelo de identidade nacional a todos os japoneses visando à unificação de
todos os povos do arquipélago” [NUNES, pág. 66, 2011].

Nitobe vai expressar de forma mais cristalina a essência por trás de sua
teorização bem como da função histórica dos samurais na sociedade nipônica
quando aborda a questão da mulher. Ele compara o sacrifício, subserviência
que a mulher deveria realizar ante ao marido e sua casa com o modo como
este último teria de se portar diante do seu senhor ou “suserano”. Para
explicitar isso que foi dito: “A capitulação de si própria da mulher em nome do
bem de seu marido, casa e família era tão desejável quanto o sacrifício do
homem pelo bem de seu senhor e país. A renúncia, sem a qual nenhum
enigma vital pode ser resolvido, era a tônica da lealdade do homem assim
como do âmbito doméstico da mulher. Ela não era mais escrava do homem do
que seu marido era do senhor feudal, e o papel que cumpria era reconhecido
como naijo, “o suporte interior”. Na escala ascendente dos deveres contratuais
figurava a mulher, que se sacrificava pelo homem de modo que ele pudesse se
sacrificar para o mestre [...]” [NITOBE, pág. 104-105, 2019].

Aqui percebe-se como o pensador evoca a defesa da propriedade privada e da


hierarquia social por meio de uma obrigação moral entre os que mandariam e
os que obedeceriam. É um posicionamento conservador e romântico
envolvendo bushidô e os samurais. Contudo, essa já mencionada classe
guerreira ao longo da história japonesa sempre tinha a missão de defender as
terras dos grandes proprietários, guerrear quando estes estavam em meio a
alguma disputa e reprimir insurreições camponesas [HENSHALL, 2014]. Ou
seja, toda esta moral que aparentemente exala fortes virtudes humanas
sempre foi um meio para justificar um processo de dominação de classe.

Os quarenta e sete Ronin estão inclusos nessa lógica na medida em que


sentem a necessidade de honrar seu senhor assassinando Kira. Precisam
demonstrar sua lealdade ao vingar seu mestre. E a honra ao não deixar o
suserano na mão mesmo após a morte.

O que foi dito até aqui é ainda insuficiente pela carência de demonstração da
gênese dos samurais. Foi mencionado alguns deveres com os quais a classe
guerreira deveria se comprometer. No entanto, para a continuidade da presente
investigação no sentido de romper com a imagem idealizada dos samurais,
torna-se necessário explicitar seu surgimento. Seguindo Yamashiro, a chave
pode ser a disputa por terras por volta do séc. VIII em diante: “Convém
lembrarmos que estamos diante de uma sociedade eminentemente agrária, na
qual praticamente toda a atividade econômica está ligada ou depende da
produção agrícola. Por isso mesmo, toda tensão social, todos os conflitos,
armados ou não, giram quase sempre em torno de questões de terra. E,
enquanto a aristocracia metropolitana se compraz na fruição da vida de lazer e
culto ás belas artes e amor livre [...], surge e evolui no campo a classe samurai.
Em meio à labuta árdua cotidiana do lavrador e de incessantes conflitos
fundiários (estes mais violentos nas áreas pioneiras), forja-se o caráter marcial
e espartano dos novos guerreiros.” [YAMASHIRO, pág. 45, 1993].

33
Vai ser com a revolta de Taira Masakado e a grande mobilização que ocasiona
um relativo sucesso militar nas suas tomadas de posições contra o governo
central; valendo destacar a supressão realizada por grupos guerreiros [MOTTA,
2018]. O termo “samurai” vai surgir posteriormente no séc. X conforme aponta
Motta [pág. 6, 2018]: “Tal fato denotava a consolidação desta nova força no
jogo de poderes daquele momento. Com o reconhecimento da importância
estratégica, militar e política que estes guerreiros exerceriam a partir daquele
momento, a corte estimula a cooptação dos mesmos. Então, a partir do Século
X, começam a surgir a denominação samurai para estes guerreiros [...]”.

Nada mais óbvio num contexto de guerras contínuas do que o surgimento de


uma classe guerreira. Existem outros exemplos na história como é o caso de
Esparta. Estrategicamente tais indivíduos tornaram-se cada vez mais
importantes para os confrontos envolvendo a terra [MOTTA, 2018]. Tendo os
samurais se constituído como uma elite guerreira latifundiária que chega a
governar o país do sol nascente por sete séculos. A forma de governo vem à
tona após o fim de um conflito conhecido como Guerra Genpei (1180-1185).
Trata-se de uma guerra civil que teve clãs samurais como protagonistas; tendo
o clã Minamoto saído vencedor e depois disso estabelecido o xogunato
[MOTTA, 2018]. É uma forma de governo altamente militarizada cabendo ao
imperador funções unicamente religiosas. O xogum vai ser o representante
político-administrativo [TURNBULL, 2016].

Esta breve exposição serve como pano de fundo para desvencilhar-nos de um


outro extremo em se tratando dos samurais: a comunhão entre ímpeto
guerreiro e a recusa do assassinato. Conforme aponta Motta [pág. 12, 2018]:
“Na história acompanharemos a redenção de Kenshin Himura que após muita
matança decide mudar completamente sua vida e achar a paz que ele tanto
sonhou.”

A escolha de Kenshin é de participar dos combates usando a parte cortante da


espada voltada para o próprio corpo, evitando assim que ele acabe matando
seus adversários [MOTTA, 2018]. Se Nitobe está em busca de um símbolo
para pregar identidade nacional, em Samurai X entra em cena a mudança
gerada pelo período bakumatsu: o fim do shogunato e retorno do poder para as
mãos do imperador. Como expõe Feijó: “Durante o Shogunato Tokugawa o
Japão fechou suas portas para o exterior. Este cenário, que durou
aproximadamente dois séculos e meio sofreu uma mudança na segunda
metade do século XIX uma vez que o bakufu, pressionado pelas potências
ocidentais (principalmente pelos Estados Unidos) acaba abrindo suas portas
para diversas nações, como resultado uma nova guerra civil começa. A este
período de turbulência que levou ao final do Shogunato Tokugawa e o retorno
do poder de fato às mãos do imperador deu-se o nome de bakumatsu.” [FEIJÓ,
pág. 37, 2013].

O mangá é uma grande metáfora deste contexto histórico. Percebe-se aqui o


contraste com Nitobe, porém sem abandonar o aspecto romântico. Enquanto

34
Inazo enxerga no samurai um ser humano praticamente perfeito, íntegro e
suprassumo moral, em Samurai X tem a trajetória de um guerreiro que se
recusa matar e mesmo assim sai vitorioso em combates. De um lado tem o
exagero em torno da vida guerreira e do outro a redução disso a algo que
historicamente seria inaceitável (inclusive considerando a gênese da classe
guerreira): não matar em confrontos.

Portanto, o que se pode aqui afirmar contra estas tendências é: os samurais


constituíram uma classe social cujas atribuições era a defesa da propriedade
latifundiária dos seus senhores, a proteção destes últimos, participação em
guerras por terras e a repressão dos camponeses quando se agitavam. Sua
moral estava mediada pelos interesses particulares da classe dominante
japonesa da época. Não se tratando, contudo, de um atendimento da
“comunidade” (ainda que formada unicamente por homens proprietários de
escravos desde o nascimento atenienses) como fora em Atenas, e sim da
correta manutenção de uma sociedade altamente hierarquizada com os
indivíduos da classe dominante em posição de constante antagonismo.

Referências
Arthur D’Elia dos Santos é mestrando em Filosofia da UERJ.

FEIJÓ, L. C. C. Narrativa e representação nos quadrinhos: a restauração Meiji


(1868) nos mangás. 2013. 135 f. Dissertação (Mestrado em História) -
Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2013.

HENSHALL, K. História do Japão. 2 Ed. Lisboa: Edições 70, 2014.

MOTTA, L. M. V. . Análise da Construção Identitária Arquetípica do Samurai nos


Mangás. In: XIV Encontro Estadual de História, 2018, Porto Alegre.
Democracia, liberdade e utopias. Anais [do] 14 Encontro Estadual de História
da ANPUH-RS. Porto Alegre: ANPUH-RS, 2018. p. 1-15.

NITOBE, I. O caminho do samurai. Brasil: Pé da Letra, 2019.

NUNES, G. P. . A Ética Samurai no Japão Meiji. Gama (Rio de Janeiro) , v. 13,


p. 56-69, 2011.

TURNBULL, Stephen..Samurai Warfare. London: Cassel Imprint, 1996.

UNZER, E. Período Edo ou Tokugawa (1603-1868). 2020. Disponível em:


https://youtu.be/Nl6SywnP1Qc.

UNZER, E. Era Meiji (1868-1912). 2020. Disponível em:


https://youtu.be/SrJAJMWDUIo.

UNZER, E. Era Taishô (1912-1926). 2020. Disponível em:


https://youtu.be/f5jsKEP-Nzc.

35
YAMASHIRO, José. História dos Samurais. São Paulo: Ibrasa, 1993

36
LEIBNIZ E OS JESUÍTAS: O IDIOMA PRIMORDIAL, O I CHING E
O INTERCÂMBIO DE CULTURAS, por Carmen Lícia Palazzo

Introdução
No início da chamada Idade Moderna e até o final do século XVII os europeus
interessavam-se pelo debate em torno do que poderia ter sido um idioma
primordial, anterior ao acontecimento bíblico que ficou conhecido como a
“confusão das línguas” da Torre de Babel [Gênesis 11]. Personalidades como
Guillaume de Postel [1510-1581], John Webb [1511-1680], Athanasius Kircher
[1602-1680], Claude Duret [1570-1680] e muitos outros escreveram sobre o
assunto e levantaram dúvidas sobre a possibilidade de se recuperar a fala e
até mesmo a escrita dos primeiros seres humanos.

Durante vários séculos e, certamente, durante todo o período medieval, não


era questionada a afirmação de que o hebraico teria sido a língua de Adão
[ECO, 2028, p. 90]. No entanto, à medida em que os europeus foram
conhecendo com mais detalhes as civilizações sofisticadas do Médio e do
Extremo Oriente, crescia o interesse em adaptar às suas cronologias a dos
eventos relatados no Antigo Testamento. Ciência e religião alimentavam-se
mutuamente no pensamento pré-iluminista, mas também alguns
questionamentos abriam caminho para olhares mais detalhados sobre
sociedades não europeias.

A busca do que poderia ter sido o idioma primordial estava presente entre as
muitas discussões sobre a China, no entanto outros assuntos, como a
descoberta do I Ching e sua imaginada correspondência com a aritmética
binária estudada pelo matemático e pensador alemão Gottfried Wilhelm Leibniz
[1646-1716], assim como a antiguidade da milenar civilização chinesa, eram
parte das reflexões, não apenas dos missionários que se encontravam no
Império do Meio, mas também de pensadores europeus.

O interesse no idioma primordial


Em uma época na qual não se duvidava da historicidade de Adão e Eva, de
Noé, do Dilúvio, do episódio da Torre de Babel, enfim, de todo o relato bíblico,
passava-se também a conhecer melhor o Egito e a China, principalmente
através de informações oriundas de mercadores e missionários, ativos nos
contatos com as sociedades geograficamente distantes da Europa. Fazia-se,
então, necessário repensar a cronologia da história do mundo e também alguns
de seus desenvolvimentos. Para os que acreditavam, como o jesuíta
Athanasius Kircher, que a mais antiga civilização era a egípcia, o idioma
primordial estaria registrado nos hieróglifos, que ele tentava, ainda que sem
sucesso, decifrar [KIRCHER, 1643].

37
Ao fascínio pelo Egito, que permaneceu por um longo tempo no imaginário
europeu, foram acrescentadas uma grande quantidade de informações sobre a
China, que se revelava ainda mais antiga do que o império dos faraós. O
próprio Kircher demonstrou interesse pela civilização chinesa, apesar de seu
conhecido encanto pelos temas egípcios, que muita vezes o conduziram a se
aproximar de questões ligadas ao ocultismo [GLASSIE, 2012]. O jesuíta
alemão publicou uma obra tratando da China com grande riqueza de
informações, boa parte delas fornecidas por inacianos que viviam no Império
do Meio e que com ele se correspondiam [KIRCHER, 1667/1670].

Ainda que Kircher mantivesse sua opinião de que a língua primordial seria
conhecida quando fossem decifrados os hieróglifos, a discussão na Europa
desenvolveu-se também em outras direções. John Webb, polímata britânico
que escreveu acerca de diversos assuntos, publicou um livro sobre o que ele
considerava a probabilidade do chinês ter sido o primeiro idioma da
humanidade. Em seu texto, Webb desenvolveu uma detalhada reflexão na qual
identificava Noé com o imperador Yao, que os chineses também associavam à
lembrança de um dilúvio [WEBB, 1669, p. 54-55]. Noé teria, então, chegado até
a China, mas como os chineses, segundo as considerações de Webb, não
estavam na região da Torre de Babel, não vivenciaram a dita “confusão das
línguas” conseguindo manter entre si o idioma original. Ainda de acordo com
John Webb, que analisou também textos de outros autores seus
contemporâneos, a língua primordial tinha permanecido através dos séculos
sob a forma escrita dos antigos caracteres chineses e o estudo de suas origens
em um passado distante, se viesse a ser feito, poderia levar a informações
históricas importantes [Ibidem, p. 57-59 e p. 145].

Por mais estranhas que tais reflexões nos pareçam atualmente, elas ocuparam
as mentes de grandes pensadores da época. Sem dúvida o interesse pela
história chinesa era balizado pelas problemáticas do cristianismo o que, no
entanto, não excluía um verdadeiro fascínio da parte de diversos inacianos que
viviam uma profunda imersão naquele mundo tão distinto da Europa. Mundo
que eles, através de seus relatos e de sua correspondência, apresentavam
detalhadamente a pensadores europeus que nunca chegaram a se deslocar
para a Ásia.

Os jesuítas e Gottfried Wilhelm Leibniz: interpretações do pensamento


chinês
O relato escrito pelo jesuíta português Gabriel de Magalhães [1610-1677]
circulou na Europa inicialmente em sua tradução para o francês e foi, então,
muito lido, sob o título de Nouvelle Relation de la Chine contenant la description
des particularitez les plus considerables de ce grand empire. O idioma chinês
também despertou seu interesse e, embora Kircher e seus seguidores tivessem
sempre insistido na precedência cronológica dos hieróglifos, Magalhães
afirmava que os caracteres chineses antecediam a escrita egípcia:

“Ainda que os egípcios se gabem de terem sido os primeiros a possuir letras e


hieróglifos, é certo, porém, que os chineses os tiveram antes deles. Todas as

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outras nações tiveram uma escrita comum, que consiste em um alfabeto de
mais ou menos vinte e quatro letras que têm aproximadamente o mesmo som,
ainda que sua imagem seja diferente; mas os chineses têm cinquenta e quatro
mil quatrocentas e nove letras, que exprimem o que elas significam com tanta
graça, vivacidade e força, que nem parecem caracteres, mas vozes e línguas
que falam ou, melhor dizendo, figuras e imagens que exprimem e representam
vivamente o que elas significam, tão admirável que é o artifício dessas letras.”
[MAGAILLANS, 1668, p. 84. Tradução nossa]

Na verdade, não eram os egípcios os mais interessados na questão ou os que


“se gabavam” da antiguidade de sua escrita, mas os europeus que procuravam
enquadrar a história de toda a humanidade em uma datação que se
conformasse ao texto sagrado cristão. Em tal contexto, os chamados “jesuítas
de Luís XIV” que, além de religiosos eram cientistas e viajavam com o apoio da
Academia de Ciências de Paris, também demonstraram interesse em entender
melhor a cronologia daquele império que desafiava uma leitura literal do Antigo
Testamento. Entre eles, o padre Joachim Bouvet [1656-1730] foi especialmente
ativo em suas reflexões e no debate acerca de muitos aspectos da civilização
chinesa, incluindo características específicas de sua espiritualidade.

O monarca francês tinha enviado um grupo de jesuítas-cientistas para a China,


à revelia do Padroado português, com o objetivo de que os padres se
dedicassem a fazer diversos levantamentos sobre questões astronômicas e
geográficas, importantes para que a França pudesse elaborar mapas acurados
sobre a Ásia. Os componentes daquela que ficou conhecida como “Missão de
Luís XIV” deixaram a França no ano de 1685, passando inicialmente pelo reino
do Sião e, depois, chegando ao império chinês [GALLICA, s/d]. O objetivo, bem
além da catequese, era o de realizar atividades muito ao gosto da época, de
crescente curiosidade científica e de desenvolvimento do comércio, com a
pujante movimentação de mercadorias na chamada Rota Marítima da Seda.

Não foi, porém, sem percalços a presença dos jesuítas franceses no Império do
Meio. Os padres já estavam há um certo tempo, exercendo atividades de
cientistas junto à corte chinesa, quando o rei de Portugal, D. João V, colocou
entre os assuntos que deveriam ser discutidos por uma embaixada liderada por
Alexandre Metelo a Beijing, uma clara demanda de proibição da admissão de
novos jesuítas, a não ser daqueles estritamente vinculados ao Padroado
português. [SALDANHA, 2005, p. 26; p. 101-102]. No entanto, naquela
oportunidade, os franceses que atuavam sem o controle de Portugal já haviam
conquistado prestígio e apoio de uma considerável parte do mandarinato e do
próprio imperador, desde a chegada da referida “Missão de Luís XIV”.

O relacionamento dos inacianos franceses com Kangxi [1654-1722; reinado


entre 1661-1722] ocorreu em condições excepcionalmente favoráveis,
principalmente dado o interesse do imperador pelas ciências, em especial pela
matemática, astronomia e cartografia, assuntos de domínio dos jesuítas em
geral e dos franceses em particular. Joachim Bouvet, por sua vez, manifestou
grande entusiasmo pelo I Ching e o analisou tentando demonstrar que, no

39
passado, os chineses teriam seguido uma religiosidade monoteísta. Para ele, o
criador do I Ching, que era, então, atribuído na China ao personagem mítico
Fuxi, teria sido contemporâneo de Noé. Bouvet procurava fazer referência a
personagens míticos ocidentais e asiáticos, na época considerados históricos,
em um relato unificado que associava os chineses com figuras do Antigo
Testamento. Tal corrente de interpretação da Bíblia ficou conhecida como
“figurismo” [LACKNER, 1991, p. 129-149].

O “figurismo” era um método aplicado na exegese bíblica, de modo que fosse


possível encontrar as “figuras” do monoteísmo em textos mais antigos. Tais
explicações, no ambiente europeu do século XVII e início do XVIII, eram tidas
como científicas e as notícias de que diversos jesuítas, e mais destacadamente
o padre Joachim Bouvet estavam estudando o assunto, chegaram a Leibniz,
que tinha grande interesse pela China, não apenas pela questão da aritmética,
mas também dentro de suas reflexões sobre a diversidade das culturas.

Leibniz, embora fosse luterano, passou, então, a manter uma ativa e muito
densa correspondência com diversos inacianos, entre eles os franceses
Joachim Bouvet e Charles Le Gobien, ambos empenhados em levar adiante
uma discussão sobre a antiguidade da civilização chinesa [PERKINS, 2008 e
LEIBNIZ, 1987]. O matemático e pensador alemão defendia a importância do
aprendizado que poderia surgir do contato entre culturas distintas. Em 1697 ele
publicou pela primeira vez a Novissima Sinica, reeditada em 1699, uma obra
com vasta documentação dos jesuítas [LEIBNIZ, 1699] e com um texto
introdutório de sua autoria, no qual deixava claro que considerava importante e
enriquecedor, para ambas as partes, o relacionamento entre europeus e
chineses [LACH, Donald, 1957].

Leibniz interessou-se também sobre uma questão que começava a ser


discutida na Europa e que viria a se constituir em um problema grave para a
Companhia de Jesus, principalmente junto ao Vaticano: a chamada querela
dos ritos chineses, ritos que os jesuítas aceitavam como parte da necessária
acomodação para facilitar as conversões. O padre Le Gobien, procurador das
Missões da China, escreveu uma carta para Leibniz relatando que os
missionários que estavam naquele império tinham enviado para Kangxi um
documento no qual explicavam seu entendimento sobre os ritos, pedindo que o
imperador desse a sua opinião acerca daquela interpretação. O objetivo seria o
de divulgar na Europa um texto contendo uma explicação clara sobre o
assunto, com a chancela de Kangxi, para evitar críticas ao método de
acomodação dos inacianos à cultura chinesa. Le Gobien, então, na mesma
carta, informou a Leibniz que:

“O imperador, tendo feito examinar tal escrito e o examinando ele mesmo,


respondeu que não havia nada nele que não fosse muito conforme à grande
doutrina (...) e que tudo que ele continha era muito verdadeiro e que não havia
necessidade de nenhuma correção. Essa decisão que está registrada nos
arquivos do palácio e que tem força de lei, é datada de 30 de novembro de
1700.” [LE GOBIEN in LEIBNIZ, 1734, p. 69-70. Tradução nossa]

40
A carta de Le Gobien demonstra preocupação com o aval do imperador para a
maneira como os padres interpretavam os ritos, considerados de caráter civil e
não religioso, o que estava, então, sendo alvo de contestação na Europa e
também na China, em geral por missionários de outras ordens. Mesmo que
Leibniz fosse protestante, portanto, em princípio, não participasse da discussão
sobre os métodos de catequese de uma ordem católica, os padres o
consideravam um interlocutor qualificado para, entre os europeus, difundir seus
posicionamentos e defender o comportamento de acomodação às práticas
chinesas.

Sem dúvida, o entendimento dos inacianos, tanto dos ritos quanto dos escritos
de Confúcio, estava influenciado pela vontade de levar adiante a atividade
missionária. Aliás, cabe destacar que a tradução dos textos mais importantes
do confucionismo para língua portuguesa, realizada bem posteriormente pelo
padre Joaquim Guerra, entre 1973 e 1981, também pode ser vista de forma
semelhante, ancorada na religiosidade católica. Conforme escreveu o sinólogo
e professor André Bueno:

“A questão que se insere aqui é a seguinte: qual a dimensão dada à figura de


Confúcio e aos clássicos chineses, dentro de uma perspectiva religiosa católica
defendida pelo Padre Guerra, que se apropriou da figura do sábio chinês e
tentou transformá-la numa espécie de profeta do cristianismo, inspirado por
Deus, dentro de uma lógica própria de sincretismo e conversão proposta,
secularmente, pelas teorias missionárias jesuíticas? (BUENO, 2021, p.1)

Na mesma linha de tentar uma aproximação entre o pensamento europeu e


chinês, o padre Joachim Bouvet, que também se correspondeu com Leibniz,
empenhou-se em demonstrar a importância da análise do I Ching, cuja
estrutura, segundo o jesuíta, se assemelharia à aritmética binária do pensador
alemão. Interessando-se pelo assunto, o próprio Leibniz também passou a
discorrer sobre a presença do 0 e do 1 nos traços do I Ching e escreveu um
artigo para a Academia Real de Ciências francesa detalhando o seu raciocínio.
Nele, fez referência ao padre Bouvet, que teria lhe chamado a atenção para a
combinação das linhas do Livro das Mutações e também para o fato de que o
lendário imperador Fohy (também conhecido como Fuxi) poderia ser
considerado o primeiro, em tempos muito antigos, a pensar em uma aritmética
binária [LEIBNIZ, 1703].

Pesquisadores de épocas posteriores discordaram das interpretações de


Leibniz e de Bouvet para o I Ching, pela associação a cálculos de análise
combinatória. No entanto, o que ambos queriam mostrar, no século XVII, era
que os chineses, em tempos muito antigos, haviam atingido um alto grau de
civilização, ainda que muitas das informações importantes pudessem estar
perdidas. Os chineses, por sua vez, atribuíam ao personagem lendário Fuxi a
invenção dos caracteres e tantas outras descobertas e criações que seriam a
base da milenar cultura do Império do Meio. Todo esse caldo de relatos, de
fantasias, de mitos também chineses era apropriado, assim, pelos europeus,

41
para construir imagens de uma China fascinante, mas que deixava de ser a
extrema alteridade, em função de interpretações que a aproximavam de uma
história comum de toda a humanidade.

Diferente dos objetivos dos jesuítas, que pretendiam demonstrar que a China já
havia, na Antiguidade, conhecido algo semelhante a uma religiosidade
monoteísta e, talvez, segundo eles acreditavam, fosse a detentora do idioma
primordial, Leibniz interessava-se com mais empenho em demonstrar a
importância do relacionamento entre culturas distintas. Seu escopo era mais
amplo, ainda que não excluísse as considerações de ordem religiosa. Mesmo
sendo protestante, em mais de uma oportunidade manifestou-se explicitamente
favorável às atividades dos missionários católicos na China, tanto porque ele
mesmo defendia uma catequese sobretudo cristã, quanto, e talvez
principalmente, pelo fato de que ela favoreceria o intercâmbio entre as culturas
europeia e chinesa. Leibniz justamente considerava tal possibilidade porque os
jesuítas, além de missionários, eram cientistas junto à Corte imperial. E, ao
intercâmbio entre culturas distintas, ele dava o nome de “comércio de luz” [TAI,
1990, p. 55], destacando a importância das trocas culturais, que defendia como
benéficas para ambos os lados.

Era complexo, portanto, o debate que transcorria nos primórdios da Idade


Moderna acerca de todo o contexto das possíveis relações da Europa com o
Império do Meio. Na época, dificilmente se distinguiria, de maneira muito clara,
religião de ciência. Não há dúvida de que havia o interesse maior na catequese
e que a leitura da história chinesa dava-se dentro do arcabouço mental cristão,
mas também, mesmo da parte dos jesuítas, observava-se o desejo de
reconhecimento de suas atividades como cientistas, principalmente em se
tratando do grupo que foi enviado à China por Luís XIV, com o apoio da
Academia de Ciências de Paris. E, no nosso entender, foi justamente esse viés
da possibilidade de reflexões de caráter científico, é claro que tendo-se em
vista o conceito de Ciência no início da modernidade, que aproximou os
jesuítas de Wilhelm Gottfried Leibniz.

Considerações finais
Uma análise das discussões que circulavam na Europa no século XVII e início
do XVIII nos mostra que as atividades dos jesuítas, especialmente na China,
não se restringiam à catequese. Muitos deles, com acurada formação científica,
eram herdeiros intelectuais de astrônomos e matemáticos como Cristopher
Clavius [1538-1612] que havia sido professor do Colégio Romano e reformador
do calendário que ficou conhecido como Gregoriano [KNOBLOCH, 1988].
Interessavam-se, portanto, em entender os meandros de uma História que
descobriram ser muito mais antiga do que poderiam imaginar, com alguns
personagens míticos, outros reais, mas transmissores de conhecimentos
milenares, tanto na escrita quanto na matemática e na filosofia. Descobertas
reais, especulações, construções imaginárias, eram múltiplos os tema para a
vasta correspondência que os padres mantinham com pensadores europeus.

42
Tais considerações, muito amplas para uma discussão mais aprofundada no
presente texto, podem conduzir a pesquisas mais acuradas, detalhando a
atuação dos jesuítas da denominada Missão Francesa em debates sobre
questões de interesse nas discussões filosóficas e científicas da época. Leibniz
e também diversos inacianos constituíram-se numa ponte para os novos
olhares sobre a China, que surgiriam a partir de meados do século XVIII,
menos preocupados, então, com a busca do idioma primordial ou com as
narrativas bíblicas e mais interessados em explicar a presença da Razão no
pensamento chinês, ainda que não desvinculados das preocupações da própria
Europa. Na medida em que diversos questionamentos eram levantados, abria-
se caminho para que pensadores como Voltaire e outros incluíssem a presença
do Império chinês em suas reflexões.

Referências
Carmen Lícia Palazzo é doutora em História pela Universidade de Brasília,
UnB, professora aposentada do centro Universitário de Brasília, CEUB,
membro do Instituto Histórico e Geográfico do DF, IHG-DF e pesquisadora com
foco no tema de olhares europeus sobre a Ásia, principalmente China e Oriente
Médio, intercâmbio de culturas e análise de relatos de viajantes. E-mail:
carmenlicia@gmail.com

BUENO, André. A conversão cristã de Confúcio: avaliação crítica da tradução


dos clássicos chineses feitas pelo padre Joaquim Guerra (1973-1981).
SinoBios, 1: Projeto Orientalismo, 2021, p. 1-4.

ECO, Umberto. A busca da língua perfeita na cultura europeia. São Paulo:


Editora Unesp, 2018.

GALLICA. Première Mission Française en Chine, XVIIe. siècle. Disponível em:


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siecle?mode=desktop

GLASSIE, John. A man of Misconceptions: the life of an eccentric in an age of


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KIRCHER, Athanasius. La Chine d’Athanase Kirchere de la Compagnie de


Jesus: illustrée de plusieurs monuments tant sacrés que profanes (…).
Amsterdam/ Waesberge: Jean Jansson & les héritiers d’Elizée Weyerstrasse,
1670. Tradução da edição latina de 1667. Disponível em:
https://repository.ou.edu/uuid/b0e587f3-e579-5d1c-862f-
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————. Lingua aegyptiaca restituta, opus tripartitum. Roma, 1643. Disponível


em: https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1097707/f2.item

KNOBLOCH, Eberhard. “Sur la vie et l'œuvre de Christophore Clavius (1538-


1612)”. Revue d'histoire des sciences, vol. 41, julho a dezembro,1988, p. 331-

43
56. Disponível em: https://www.persee.fr/doc/rhs_0151-
4105_1988_num_41_3_4100

LACH, Donald (comentários e tradução) e LEIBNIZ, Wilhelm Gottfried. Preface


Novissima Sinica. Honolulu: University of Hawaii Press, 1957.

LACKNER, Michael. “Jesuit Figurism” in LEE, Thomas H. C. (ed.) China and


Europe: Images and Influences in Sixteenth to Eighteenth Centuries. Hong
Kong: The Chinese University Press, 1991, p. 129-149.

LE GOBIEN, Charles. “Lettre du P. Le Gobien à M. Leibniz” in LEIBNIZ,


Gottfried Wilhelm. Recueil de diverses pièces sur la philosophie, les
mathématiques, l'histoire, &c. par M. de Leibniz. Hamburgo: Abram
Vandenhoeck, 1734, p. 68-70. Disponível em:
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k110509c/f1.item.r=Joachim%20Bouvet

LEIBNIZ, Gottfried Wilhelm. Novissima sinica historiam nostri temporis


illustratura in quibus de christianismo publica nunc primum autoritate (...). 2a.
edição, 1699. Disponível em:
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k1159391.r=Novissima%20sinica%20histori
am%20nostri?rk=21459;2

————. Explication de l’arithmétique binaire, qui se sert des seuls caractères


O et I avec des remarques sur son utilité et sur ce qu’elle donne le sens des
anciennes figures chinoises de Fohy. Mémoires de mathématique et de
physique de l’Académie royale des sciences, 1703. Disponível em:
https://hal.science/ads-00104781

————. Recueil de diverses pièces sur la philosophie, les mathématiques,


l'histoire, &c. , par M. de Leibniz. Hamburgo: Abram Vandenhoeck, 1734.
Disponível em:
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k110509c/f1.item.r=Joachim%20Bouvet

————. Discours sur la théologie naturelle des Chinois, plus quelques écrits
sur la question religieuse de la Chine. Tradução, apresentação e notas de
Christiane Frémont. Paris: L’Herne, 1987.

MAGAILLANS, Gabriel de. Nouvelle Relation de la Chine contenant la


description des particularitez les plus considerable de ce grand empire. Paris:
Claude Barbin, 1668.

PERKINS, Franklin. Leibniz and China: a commerce of light. Cambridge:


Cambridge University Press, 2004.

SALDANHA, António Vasconcelos de. Embaixada de D. João V de Portugal ao


Imperador Yongzheng, da China (1725-1728). Tradução e notas chinesas de
Jin Guo Ping. Lisboa: Fundação Oriente, 2005. [Agradeço ao historiador dr.
Jorge Leão que me enviou essa obra]

44
TAI, Li-Chuan. “Commerce de lumière: Deux missionnaires naturalistes français
et leurs œuvres muséales en Chine” in Revue de la BNF, vol. 3, n. 36, 2010, p.
56 a 64. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-de-la-bibliotheque-
nationale-de-france-2010-3-page-56.htm#no1

WEBB, John. Historical Essay Endeavoring a probability that the language of


the Empire of China is the Primitive Language. Londres: Nath Brook, 1669.
Edição fac-similar, Charleston: Legare Street Press, s/d.

45
JAPANESENESS: O ORIENTALISMO JAPONÊS,
por Cássio Gabriel de Campos Silva

Edward Said em seu livro publicado em 1979, Orientalismo: O Oriente como


invenção do Ocidente, examinou a representação do Oriente através da ótica
Ocidental e como isso foi usado para justificar o imperialismo europeu, uma vez
que este faz uma construção do Oriente como uma cultura exótica, estática e
inferior. Apesar da expressão ter sido amplamente divulgada por Said, o
Orientalismo desenvolve-se desde o século XVIII com o maior contato europeu
com a Ásia e norte da África, onde artistas, escritores, e acadêmicos passaram
a criar uma grande quantidade de conteúdo sobre o oriente, enfatizando
estereótipos que criavam uma imagem inferior destes povos, além de
ameaçadoras para o estilo de vida europeu.

O Japão da Era Meiji (1868 – 1912), iniciado com a Restauração Imperial sobre
o governo militar dos Tokugawa, é caracterizado como um período de
mudanças extremas no governo e na sociedade japonesa. Estas mudanças
foram tão grandes que, apesar de alguns historiadores denominarem o período
de Restauração Meiji, foi uma verdadeira revolução, derrubando praticamente
todas instituições arcaicas do Xogunato Tokugawa, e substituindo-as por
instituições “modernas” do ocidente. Segundo Benedict Anderson, o sucesso
da Restauração Meiji, bem como a ocidentalização do Japão, só teve sucesso
devido a três fatores fortuitos: “Primeiramente foi o relativo elevado grau de
homogeneidade etno-cultural japonesa resultado de dois séculos e meio de
isolação e pacificação interna pelo Bakufu. [...] Segundo, a antiguidade única
da casa imperial [...] e a presença do emblemático Japanese-ness [...], que
facilitou a utilização do Imperador para os propósitos oficiais-nacionalistas do
governo [...]. Terceiro, a entrada de bárbaros foi abrupta, massiva, e violenta o
suficiente para fazer com que a população politicamente conectada buscasse
programas de autodefesa nacional com o novo governo.” [Anderson, 2016,
p.95 – 96, tradução nossa]

Anderson, apesar de atribuir ao Japaneseness como um dos fatores fortuitos


para o sucesso da Restauração Meiji e a modernização do Japão, em
momento algum ele explica o termo. Na língua inglesa, adjetivos terminados
em “ness”, tornam-se substantivos com o significado de “estado, condição,
qualidade”, portanto podemos traduzir Japaneseness como “a qualidade de ser
Japonês”, porém isso fica muito aquém do real significado do termo. Portanto,
o objetivo deste projeto é definir o que pode ser entendido como Japaneseness
durante o período Moderno Japonês (1868 – 1945), demonstrando sua
similaridade com o Orientalismo descrito por Edward Said, assim como tornou-
se um fator crucial para o sucesso do governo Meiji e sua influência no
Imperialismo japonês do século XX. Para alcançar tal objetivo, analisaremos

46
como foi feita a ocidentalização do governo Meiji, bem como isso influenciou o
discurso da expansão imperialista japonesa.

Religião e o Governo Meiji


O Japão, desde 1639, durante o governo Tokugawa, teve suas fronteiras
fechadas para o mundo, mantendo pouquíssimo contato com alguns
comerciantes holandeses no porto de Nagasaki e nas Ilhas Ryukyu, que,
apesar da forte influência do governo Tokugawa, oficialmente eram um reino
independente e um estado tributário da Dinastia Qing, por este motivo
conseguiram manter certa autonomia e seu comércio com navios chineses. No
entanto, no começo do século XIX, manter esse isolamento tornou-se cada vez
mais difícil. A ilha de Ezo (atual Hokkaido), sofreu com duas incursões russas,
que destruíram alguns assentamentos japoneses, a presença de navios
europeus e norte-americanos em águas asiáticas cresceu exponencialmente,
principalmente britânicos, levando o Xogunato a fortalecer as defesas das
margens. No entanto, notícias do continente sobre o resultado da Guerra do
Ópio chegaram aos líderes do governo, fazendo-os iniciar alguns tratados de
comércio com potências ocidentais para que o Japão não se tornasse uma
colônia. Porém tais tratados eram desiguais e deixavam o Japão em uma
posição semi-colonial, os quais seriam revistos quando o arquipélago
alcançasse um nível de modernização reconhecida pelos europeus. Essa
abertura repentina das fronteiras juntamente com a corrupção generalizada da
classe samurai que resultou em diversos problemas administrativos e
econômicos, levaram à queda do Xogunato Tokugawa e à Restauração Meiji.
Entretanto, diferentemente do que aqueles que lutaram pela Restauração
esperavam, o novo governo não tinha força suficiente para expulsar os
estrangeiros e muito menos de desfazer os Tratados Desiguais sem levar o
país à guerra com as forças ocidentais, iniciando assim uma verdadeira
odisseia para a modernização do Japão, visando o reconhecimento dos países
ocidentais e a revisão dos Tratados Desiguais.

Apesar da forte influência ocidental na modernização do Japão, o governo Meiji


não se submeteu completamente aos invasores estrangeiros, adaptando as
ideias alienígenas ao método vernáculo, começando a desenhar o primeiro
rascunho do que se tornará o orientalismo exclusivo japonês. Uma das
primeiras ideias ocidentais a serem adaptadas foi o conceito de religião. Como
Hardacre afirma: “quando ideias sobre religião originada na Europa e América
vieram para o Japão, elas entraram em uma sociedade que não possuía um
conceito ou termo equivalente, não havia uma ideia de uma esfera diferente da
vida que poderia ser chamada de religião, e nem que uma religião genérica
poderia haver variantes como o Cristianismo, Budismo etc” [Hardacre, 1989,
p.63, tradução nossa]. Sendo uma demanda dos países dos Tratados a
liberdade de livre prática religiosa, o Japão viu a necessidade de colocar tudo
sob um mesmo teto. Trent Maxey vê essa generalização através da
burocratização da religião, o qual ele chama de “gramática da religião” e a
define como: “as regras conceituais e administrativas que governam e articulam
as políticas de Estado relativas à religião.” [Maxey, 2014, p.2, tradução nossa]

47
A primeira tentativa para aplicar essa gramática da religião, foi tentar
transformar o Xintoísmo como a religião oficial do Governo Meiji, sendo
fortemente defendido por intelectuais do período pré-moderno (chamados de
Kokugaku-sha, ou Nativistas), e também por seus sucessores durante a Era
Meiji, como a essência da identidade Japonesa [Hardacre, 2017], portanto,
enxergando na religião indígena a oportunidade perfeita para consolidar seu
governo sem ser pela força, encontrando legitimidade em suas ações e no
reconhecimento do Imperador como governante supremo. Antes da
Restauração Meiji, o Imperador já realizava rituais xintoístas com intuitos
religiosos e tradicionais, porém após a Restauração, atos oficiais do passaram
a ter formatos ritualísticos, como por exemplo o Juramento Imperial de 1868,
que pretendia expor as intenções do imperador para com o Japão, como por
exemplo a união dos corações e mentes do povo por uma melhor
governabilidade do império; quebrar as amarras das tradições malignas e
basear suas ações nos princípios das leis internacionais; entre outras.
Entretanto, como John Breen atesta: “o Juramento é ‘performativo’, nunca é
apenas um texto, uma declaração ou um conjunto de declarações. Um
juramento é, por definição, uma performance e, dadas certas condições –
notavelmente o uso de símbolos e sua proximidade íntima do sagrado – essa
performance se torna em um ritual.”[Breen, 1996, p.409, tradução nossa]

Fonte: Inui, N. (1928). Proclamation of the Imperial Oath


「五箇條御誓文」Gokajō no go-seimon[Painting]. Meiji Memorial Picture
Gallery, Shinjuku, Tokyo, Japan.

48
Como podemos ver na imagem acima, a Proclamação do Juramento Imperial,
apesar de ter sido um ato oficial do governo, ele é extremamente ritualístico,
onde todos os participantes usam roupas ritualísticas, o Imperador, cercado por
um biombo de três faces, fica no meio do ambiente, e, no lugar de maior
prestígio onde todos podem ver, possui um pequeno santuário com itens de
purificação onde o imperador realizaria as oferendas às deidades e uma mesa
baixa com o juramento escrito, o qual seria lido por Sanjo Sanetomi em nome
do Imperador Meiji. Essa inserção da religião no governo, era visto por seus
líderes como uma maneira ocidental de exercer o poder e unificar o povo em
prol de uma causa comum, chegando ao seu ápice, após várias idas e vindas,
no final do Período Meiji com o que foi chamado de Estado Xintoísta.

O Estado Xintoísta começou a ser esboçado após líderes do governo


perceberem o problema de utilizar os Kamis como figuras centrais para a
unificação do povo, chegando à conclusão de que a figura central do país
deveria ser o Imperador, porém sem abandonar o poder ritualístico do
Xintoísmo. Essa transição chegou a uma conclusão na Promulgação da
Constituição Imperial em 1889, onde, como podemos ver na imagem abaixo,
diferentemente da Proclamação do Juramento Imperial, o Imperador Meiji está
localizado na posição mais nobre do ambiente, não estando escondido por
biombos, pelo contrário, estando em um patamar mais elevado em relação aos
presentes, e usando roupas militares ocidentais, demonstrando sua alta
posição como líder supremo das forças armadas.

Fonte: Adachi, G. (1889). View of the Issuance of the State Constitution in the
State Chamber of the New Imperial Palace. [One sheet of a triptych of
woodblock prints; ink and color on paper]. The Metropolitan Museum of Art.
New York, NY, United States of America.
https://www.metmuseum.org/art/collection/search/55247?ft=imperial+japan&am
p;off
set=0&rpp=40&pos=34

Japaneseness e o Estado Xintoísta

49
A promulgação da Constituição Meiji contou como um marco para o fim do
período semi-colonial japonês, uma vez que após a promulgação, o Japão
passou a fazer parte do cenário internacional e passou a ter força o suficiente
para revisar os Tratados Desiguais firmados na primeira metade do século XIX.
Mas também é um marco para o começo do desenvolvimento imperial-
colonialista japonês, bem como de sua própria forma de orientalismo, o
Japaneseness.

Japaneseness não foi algo espontâneo que surgiu na sociedade Japonesa,


mas foi desenvolvido pelo governo através do Estado Xintoísta e endossado
pela Constituição. Tal endosso pode ser encontrado em diversos Artigos da
Constituição, porém como podemos ver no prêambulo da versão inglesa
comentada por Itō Hirobumi, e ausente na versão japonesa, objetiva deixar
claro para os estrangeiros que o Japão não possui uma cultura exótica, estática
e inferior, mas sim que está em pé de igualdade, inclusive como cultura
superior e capaz de “levar a civilização” a povos menos desenvolvidos:

“PREÂMBULO. Tendo, em virtude das glórias de Nossos Antepassados,


ascendido ao Trono de uma sucessão linear ininterrupta por eras eternas;
desejando promover o bem-estar e desenvolver as faculdades morais e
intelectuais de Nossos amados súditos, os mesmos que foram favorecidos com
o benevolente cuidado e afetuosa vigilância de Nossos Antepassados [...].” [Itō,
1889, p. XI, tradução nossa]

Outro ponto importante que deve ser chamado atenção na Constituição Meiji, é
o Artigo 28, onde lê-se: “Súditos japoneses devem, dentro dos limites não
prejudiciais à paz e à ordem, e não antagônicos aos seus deveres como
súditos, gozar de liberdade de crença religiosa” [Constituição Meiji, 1889, in Itō,
1889, p.53, tradução nossa]. Portanto, os deveres dos súditos, como a
reverência ao Imperador e a participação em rituais e festivais promovidos por
Santuários Xintoístas, ultrapassavam o direito de crença religiosa. Essa
reverência e ritualística, os ideais de desenvolvimento moral e intelectual dos
súditos, bem como a ótica de superioridade japonesa, foram transportados
para colégios de toda a nação através do Édito Imperial sobre Educação de
1890.

Abaixo, traduzimos o Édito Imperial sobre Educação de 1890, onde é possível


as características do Japaneseness:

“Faça saber vocês, nossos súditos


Nossos antepassados imperiais fundaram Nosso Império sobre uma base
ampla e eterna, e seus súditos sempre unidos em lealdade e piedade filial
tem de geração em geração ilustrado a beleza deste. Esta é a glória do
caráter fundamental de Nosso Império, e nele também encontra-se a origem de
Nossa educação. Vocês, Nossos súditos, sejam filiais com seus pais, afetuosos
com seus irmãos e irmãs; como maridos e esposas sejam harmoniosos, como
amigos sejam verdadeiros; Mantenham-se na modéstia e moderação;
estendam sua benevolência à todos, busquem o aprendizado e cultivem as

50
artes, e deste modo desenvolverão faculdades intelectuais e poderes
morais perfeitos; ademais, desenvolverão os bens públicos e promoverão os
interesses comuns; sempre respeitem a Constituição e observem as leis; caso
alguma emergência surja, ofereçam-se corajosamente para o Estado; e
assim guardar e manter a prosperidade de Nosso Trono Imperial
contemporâneo com os céus e a terra. Deste modo vocês não serão apenas
Nossos bons e fiéis súditos, mas tornarão ilustres as melhores tradições de
seus antepassados. O Caminho aqui estabelecido é de fato os
ensinamentos legados por Nossos Ancestrais Imperiais, a serem
observados por Seus Descendentes e súditos, infalivelmente por todas as
eras e verdadeiro em todos os lugares. É Nosso desejo colocá-lo com toda a
reverência nos corações, em comum com vocês, Nossos súditos, para que
todos possamos alcançar as mesmas virtudes.” [Édito Imperial sobre
Educação, 1890, como citado por Hardacre, 1989, p.121 –122, tradução e
grifos nossos]

Uma característica do Orientalismo de Said é a forma com a qual países


ocidentais retratavam o Oriente, sendo em obras de arte, textos acadêmicos,
obras literárias, entre outros. O Japaneseness age de forma mais discreta, não
criando uma imagem inferior do outro, mas exaltando as características
japonesas. Como é possível ver nos grifos acima, o povo japonês, ao seguir os
ensinamentos legados pelos ancestrais, os quais são infalíveis em todas as
eras e lugares, garantirão a continuidade eterna do Império do Japão.
Podemos ver na imagem abaixo outra forma de mostrar a superioridade
japonesa, onde o Édito Imperial sobre Educação juntamente das imagens do
casal Imperial (o qual representam a harmonia matrimonial descrita no Édito)
deveria ser reverenciado por todos, alunos e professores, não importando sua
fé ou religião. O Édito também deveria ser armazenado em um local especial,
muitas vezes assemelhando-se a santuários xintoístas, e o conjunto também
deveria ser mantido em segurança, como se a própria encarnação do
Imperador estivesse no documento e nas fotos, havendo casos em que
pessoas sacrificaram suas vidas para proteger os documentos em caso de
incêndios e acidentes.

51
Fonte: The Imperial Rescript on Education 「教育勅語下賜」Kyōiku Chokugo
Kashi [postcard]. 「明
治大正昭和大絵巻 」大日本雄弁会講談社.

Conclusão
Apesar das limitações deste trabalho, o autor tenta demonstrar que o
Japaneseness do Período Meiji, diferentemente do que Anderson afirma, não
era uma característica fortuita e inerente da população do período e
responsável pelo sucesso da Restauração Meiji e sua Modernização, mas foi
uma criação influenciada pelas potências ocidentais nos mesmos moldes do
Orientalismo de Said. O Édito Imperial sobre Educação assim como a
Constituição Meiji, foram dois marcos na organização do Japaneseness como
uma ideologia nacionalista e imperialista. Deste momento em diante, o Japão
não era mais peão no complexo jogo de dominação colonial. O Império
Japonês não só aprendeu táticas orientalistas, como as assimilou na
mentalidade da sociedade. O que antes era um medo de tornar-se colônia de
alguma potência ocidental, tornou-se em um desejo de exportar seu “sucesso”
aos demais países “inferiores” do Leste asiático. A vitória japonesa sobre o
antigo gigante asiático, na primeira Guerra Sino-Japonesa (1894 – 1895), e
sobre um país ocidental, na Guerra Russo-Japonesa (1904 – 1905), deu ao
Japão a supremacia militar necessária para expandir o Japaneseness para
além do arquipélago japonês.

52
Referências
Cássio Gabriel de Campos Silva é estudante PHD do Departamento de
Sociologia da Universidade Metropolitana de Tokyo, mesma universidade na
qual obteve o título de Mestre das Artes em Sociologia. O autor também é
historiador graduado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo.
Kiyoto Tanno é professor do Departamento de Sociologia da Universidade
Metropolitana de Tokyo e orientador do primeiro autor (Cássio). Professor
Tanno é especializado em estudos de migração, sociologia do trabalho de
trabalhadores estrangeiros e estudos étnicos. Formou-se em 1991 no
departamento de Economia da Universidade de Kanagawa e em 2003 obteve
seu PHD em sociologia na Universidade de Hitotsubashi.

ANDERSON, Benedict. Imagined communities: reflections on the origin and


spread of nationalism. Revised edition. London ; New York: Verso, 2016.

BREEN, John. “The Imperial Oath of April 1868: Ritual, Politics, and Power in
the Restoration” in Monumenta Nipponica, Vol. 51, n.4, Inverno, 1996, p. 407–
429. Disponível em: https://doi.org/10.2307/2385417

HARDACRE, Helen. Shintō and the State, 1868 – 1988. New Jersey: Princeton
University Press, 1989.

HARDACRE, Helen. Shintō: A History. New York: Oxford University Press,


2017.

ITŌ, Hirobumi. Commentaries on the constitution of the empire of Japan.


Tokyo: Igirisu-hōritsu gakko, 1889.

MAXEY, T. The Greatest Problem: Religion and State formation in Meiji Japan.
Massachusetts: Harvard University Press, 2014.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São


Paulo: Companhia das Letras, 2007. (tradução de Rosaura Eichenberg)

53
“TÃO NECESSÁRIOS UM AO OUTRO COMO
HOMEM E MULHER”: REPRESENTAÇÕES DO
JAPÃO E COREIA EM COREA, THE HERMIT NATION
(1911), por Emannuel Henrich Reichert

Em uma oportunidade anterior, analisei um capítulo pouco conhecido da


história do conceito de orientalismo, mostrando que algumas das críticas
centrais elaboradas por Edward Said estavam prefiguradas em um artigo de
1912 do religioso e orientalista americano William Elliot Griffis [Reichert, 2021].
No conciso “A literary legend: “The oriental”” (“Uma lenda literária: “O
oriental””), Griffis demonstra consciência do oriental como um estereótipo
inventado, os interesses financeiros em promovê-lo e as desigualdades de
gênero envolvidas, embora não se ocupe da relação saber-poder entre o
conhecimento produzido pelos orientalistas “sérios” e o imperialismo
contemporâneo. Agora verificarei se o próprio Griffis aplicou na prática suas
conclusões teóricas. O objeto de análise será a forma como ele representou o
Japão e a Coreia na edição de 1911 do seu livro Corea, the hermit nation
(Coreia, a nação eremita).

A realidade “por trás” das representações receberá menções en passant, sem


ser o foco. O objetivo não é investigar se as observações do livro estão mais ou
menos corretas, pois não há uma correspondência unívoca entre fatos e
representações. Uma mesma realidade pode ser objeto das interpretações
mais díspares, cada uma elaborada a partir de um certo ponto de vista,
formada por filtros, seleções, ênfases, esquecimentos e juízos de valor
voluntários e involuntários.

A relação entre Japão e Coreia no final do século 19 e início do 20 é de


particular interesse por ser um caso de imperialismo em que os dois
envolvidos, metrópole e colônia, eram países asiáticos. A dominação japonesa
sobre a Coreia seguiu moldes semelhantes à expansão colonial de países
ocidentais: o uso da diplomacia de canhoneiras para abrir os portos coreanos
em 1876, influência política e econômica crescentes, guerras contra China e
Rússia por influência na região, o estabelecimento de um protetorado em 1905
e, finalmente, a anexação em 1910. A semelhança não é coincidência; o Japão
Meiji adotou as práticas imperialistas então em voga da mesma forma que
importou e adaptou outras instituições do Ocidente [Duus, 1995, p. 11-12].

Griffis (1843-1928) trabalhou como professor no Japão no início da década de


1870. Foi um de numerosos estrangeiros contratados pelo governo Meiji para
trazer ao Japão a tecnologia e instituições de modelo ocidental necessários
para preservar a independência em um cenário internacional desfavorável

54
[Hirakawa, 1989, p. 466]. De volta aos Estados Unidos, tornou-se pastor e
combinou a atividade religiosa com um grande volume de escritos e palestras
voltados a promover o conhecimento do Japão e dos japoneses [Ota, 2023, p.
17-18]. Sua obra principal foi The mikado´s empire (O império do micado),
misto de história japonesa e observações pessoais, publicado em 1876 e
reeditado sucessivas vezes com o acréscimo de novos capítulos acerca dos
acontecimentos mais recentes.

O interesse de Griffis pela Coreia, segundo ele conta, começou enquanto


morava no Japão e visitou Tsuruga, antigo local de contato entre os dois
países, onde “enviados coreanos desembarcavam a caminho da corte do
micado” [Griffis, 1911, p. ix]. Contudo, a Coreia foi para ele um interesse
secundário em comparação ao Japão, tanto que jamais pisou na Terra da
Manhã Tranquila e desconhecia o idioma coreano. Para escrever Coreia, a
nação eremita, Griffis baseou-se em materiais traduzidos e uma considerável
bibliografia em inglês, francês, alemão e japonês. Apesar do caráter de
compilação, o livro foi bem-sucedido, com nove edições entre 1882 e 1911.
Assim como fez com O império do micado, o autor manteve a obra atualizada
nas reedições, adicionando novos capítulos que levam a narrativa além de
1882. A edição de 1911, última e mais completa, foi publicada apenas um ano
antes do artigo em que Griffis denuncia a invenção estereotipada do oriental, o
que leva a supor que suas ideias estavam aproximadamente no mesmo nível
de maturidade ao escrever ambos os textos.

Por trás das declarações de isenção e imparcialidade do prefácio, o relato de


Griffis tem lado definido: a favor do Japão, do imperialismo e da missão
civilizadora. A integração da Coreia ao Japão seria para benefício mútuo: “no
mundo moderno, Japão e Coreia são tão necessários um ao outro como
homem e mulher” [Griffis, 1911, p. 513]. Ele argumenta que a única culpada da
perda de independência da Coreia foi ela mesma, em decorrência de uma
opção pelo isolamento, tradicionalismo, cultura chinesa e atraso:

“Não há nada de misterioso na perda da soberania coreana e sua absorção


pelo Império Japonês. Uma análise de sua história e dos movimentos mundiais
desde 1866 mostra inexoravelmente a lei da causa e consequência. Foi a
fraqueza da Coreia estar não apenas isolada do mundo, mas em seu
isolamento exagerar a importância da antiguidade a ponto de deixar a nação
indefesa no choque moderno de civilizações, quando Oriente e Ocidente estão
se encontrando para se fundir em uma sociedade mundial. A primeira
enfermidade dos coreanos de mente insular vem do longo contato com a
história e literatura chinesas. Embora estimulante para o intelecto, isso
paralisou a iniciativa mental e sufocou a originalidade. Os coreanos
imaginavam que a China era o começo e fim de toda a sabedoria. Acrescente-
se a isso a ilusão de que um saber literário bastava para preservar a sociedade
e a soberania nacional” [Griffis, 1911, p. 510].

Em geral Griffis reconhece a existência de distinções entre os coreanos,


separando a nobreza governante yang-ban e o povo, opressores e oprimidos.

55
Os verdadeiros vilões por trás da anexação da Coreia foram os yang-ban,
despóticos e retrógrados, responsáveis pela situação precária do país:

“Com a Guerra Russo-Japonesa, a Coreia foi salva de se tornar uma província


russa e o rei e a corte tiveram um momento supremo para reformas que, se
executadas, trariam uma nova vida à nação. A Coreia teria permanecido um
Estado soberano se o governante e as classes governantes estivessem à
altura da oportunidade. Não era para ser. Com o despotismo no palácio e uma
classe letrada atada a tradições rígidas, mas profundamente ignorante do
mundo e da época, havia abaixo deles uma população oprimida, mergulhada
na superstição, pela qual o governo nada fez. Na falta de uma classe média
inteligente, a reforma na Coreia, exceto vinda de fora, talvez fosse moralmente
impossível” [Griffis, 1911, p. 507].

Entre os nobres nocivos ao país, Griffis destaca o papel das mulheres, que
responsabiliza por intrigas palacianas em detrimento do interesse coletivo.
Culpa em particular a rainha Min por abrigar no palácio inúmeros parasitas que
viviam às custas do povo - cabe mencionar a postura resolutamente anti-
influência japonesa por parte da rainha, que levou ao seu assassinato em 1895
a mando do diplomata japonês Miura. Provavelmente o posicionamento político
da rainha foi um fator relevante para moldar a opinião de Griffis, através da sua
consulta a fontes japonesas. No Japão, ao contrário da Coreia, a alta política
era assunto de homens, o que ele entende ser positivo: “no Japão, a posse de
cargos por mulheres do palácio foi abolida. No palácio em Seul, sua influência
podia anular em segredo os negócios públicos” [Griffis, 1911, p. 480].

A oposição entre elite yang-ban e povo era praticamente absoluta: ociosos x


trabalhadores, arrogantes x dóceis, xenófobos x hospitaleiros, mentes fechadas
x receptivos, letrados x ignorantes. Ao fazer o contraste entre o governo “mau”
e a população “boa”, talvez o autor tivesse a intenção de isentar a maioria da
responsabilidade pela decadência política, como que a dizer que os coreanos
enquanto indivíduos eram melhores que a Coreia enquanto país. Contudo, um
termo adicional da oposição complica o quadro: os yang-ban eram dotados de
agência, enquanto o povo era passivo e capaz de se contentar com pouco. A
elite poderia, se fosse menos cobiçosa e mais patriótica, ter mudado os rumos
da Coreia. O povo, acostumado ao jugo da opressão, era incapaz de fazê-lo:

“As dificuldades no rumo da reforma eram estarrecedoras. Os obstáculos


principais estavam nas duas classes de que a sociedade coreana é composta -
opressores e oprimidos. Os yang-ban, ou privilegiados, com maior ou menor
erudição chinesa, pareciam não ter noção de patriotismo que não o lucro. Seu
atributo principal era o vampirismo político. Por outro lado, a atitude supina do
povo comum, acostumado há séculos à opressão sistemática, era
desanimadora. Para eles o governo decente, quer dizer, aquele que podia ser
tolerado sem rebelião, significava a graça dos seus amos e governo sem
roubos. Uma característica que chama a atenção em quase todas as cidades
coreanas é as fileiras extensas de tabuletas de pedra ou ferro que celebram os

56
méritos dos governadores ‘bons’, quer dizer, mais ou menos decentes” [Griffis,
1911, p. 515].

A exceção à passividade popular mostrou-se igualmente improdutiva. O relato


condena com firmeza a resistência aos japoneses, mostrada como um ato de
ignorância, quando não de banditismo puro e simples:

“Infelizmente, a Coreia de mentalidade medieval, como o Japão bárbaro de não


tanto tempo atrás, buscou remédio para as supostas injustiças no assassinato.
De maneira e pouco inteligente, recorreu-se a espadas e balas para deter o
carro do progresso. Rápidos para julgar mal e impacientes para esperar
resultados, os assassinos selecionaram como primeiras vítimas os melhores
amigos do seu país. Os fracos e frustrados tentaram o suicídio como remédio e
meio de dissuasão. Os insurgentes do chamado Exército Justo eram muito
frequentemente assaltantes do seu próprio povo” [Griffis, 1911, p. 516].

O panorama traçado por Griffis de uma Coreia dividida entre nobreza parasita e
povo subjugado acaba por justificar o imperialismo japonês em nome do bem
dos próprios dominados. Se os coreanos fossem bons, a anexação seria
moralmente injustificável. Se fossem maus, a missão civilizadora seria inútil.
Griffis torna a intervenção estrangeira viável e aceitável, mesmo necessária, ao
representar a sociedade coreana como dividida entre uma pequena minoria má
e estagnada que oprime sem cessar e uma massa benevolente, mas que se
submete quase que incondicionalmente aos governantes. Para modernizar a
Coreia, os yang-ban precisavam ser afastados do poder porque, em seu
tradicionalismo e egoísmo exacerbados, haviam se mostrado incapazes da
tarefa. Tampouco o povo podia empreender a modernização sozinho, porque
havia sido deformado pelo mau governo, ficando reduzido à docilidade ou a
gestos fúteis de violência. Os coreanos não estavam habilitados a salvar o
próprio país, logo, alguém de fora precisaria fazê-lo por eles. O célebre dito de
Marx, adotado como epígrafe do Orientalismo de Said, aplica-se perfeitamente
à população da Coreia descrita por Griffis: “eles não são capazes de
representar a si mesmos, necessitando, portanto, ser representados” [Marx,
2011, p. 143].

O livro A nação eremita é, no que concerne à Coreia, orientalista no sentido


saidiano do termo: o saber a serviço do poder, uma forma de exercício e
constituição do poder, o saber-poder em que seus elementos estão
emaranhados a ponto de não se distinguirem. Griffis tece um discurso que
reduz os coreanos a dois grupos distintos, mas mais ou menos homogêneos,
ambos incapazes de preservar a soberania nacional. Dessa forma, legitima aos
leitores a ação imperialista do Japão.

O Japão descrito no relato tem características em comum tanto com a Coreia


quanto com os países ocidentais. O Japão era a Coreia que deu certo, que
enfrentou o atraso e ingressou definitivamente no mundo moderno, ou seja,
adotou o modelo ocidental de civilização. A Coreia atual continuava a ser como
o Japão de outrora, o que facilitava a tarefa dos japoneses ao torná-los ciente

57
dos desafios que enfrentavam. Ao contrário dos yang-ban interesseiros e
ociosos, a classe samurai japonesa havia renunciado às suas pensões
hereditárias em nome do patriotismo e se empenhado em trabalho produtivo
[Griffis, 1911, p. 498, 513]. Apenas para exemplificar o olhar idealizado de
Griffis para o Japão, vale lembrar que a perda “voluntária” de privilégios legais
e financeiros dos samurais envolveu cálculos políticos por parte dos envolvidos
e coerção governamental, e que houve várias revoltas de samurais
tradicionalistas e insatisfeitos na década de 1870, a mais famosa sendo a
Rebelião de Satsuma, comandada por Saigô Takamori, anteriormente um dos
líderes da Restauração Meiji [Vlastos, 1989, p. 382-402].

O ingresso na família das nações modernas dotou o Japão de grande força, à


qual correspondia um senso de responsabilidade. Griffis explica as guerras
contra a China (1894-1895) e Rússia (1904-1905) não por uma política de
buscar a hegemonia regional, mas pelo bem do povo coreano. Por uma curiosa
inversão de papéis, o ator decisivo na expansão eram os próprios
conquistados, cuja fraqueza obrigava a ação conquistadora. No prefácio à
edição de 1906, pouco após o término da Guerra Russo-Japonesa e
estabelecimento do protetorado sobre a Coreia, o autor explica:

“A ascensão do Japão, em meio século de contato direto com o Ocidente, à


posição de um Estado moderno, capaz de primeiro humilhar a China e depois
lutar com sucesso contra a Rússia, afetou vitalmente a Coreia, por cuja
independência o Japão pela segunda vez foi à guerra contra uma potência
muito mais rica em recursos naturais” [Griffis, 1911, p. vii].

Griffis admite que houve aspectos negativos da presença japonesa,


especialmente em duas situações: atos de brutalidade e espoliação cometidos
por “uma horda de aventureiros insolentes de classe baixa” e excessos ao
reprimir insurreições [Griffis, 1911, p. 499, 516-517]. Mas eram erros que não
invalidavam o caráter progressista da nova administração em prol da qualidade
de vida: construção de escolas, hospitais, portos, ferrovias, estradas e pontes,
melhor aproveitamento da terra, sistema tributário justo, policiamento, reformas
legais e, mais importante de tudo para o missionário, liberdade religiosa e
possibilidades de expansão do cristianismo [Griffis, 1911, p. 518-520]. A nação
eremita retrata o imperialismo japonês usando um artifício retórico comum aos
impérios ao pressupor que a essência do império é boa e evidências em
contrário não passam de erros, desvios ou atos isolados que mantêm a
benevolência fundamental intacta; que qualquer brutalidade ou abuso pode ser
minimizada com um apelo à essência de “quem nós somos” [Morefield, 2014].

A nação eremita destoa da condenação que Griffis fez à estereotipação do


“oriental”, sem por isso ser uma obra orientalista típica. Coreia e Japão
recebem tratamentos opostos: enquanto a Coreia é de fato estereotipada como
um país retrógrado e incapaz de conduzir o próprio destino, o Japão é
considerado moderno e progressista. O Japão de Griffis só tem de asiática a
localização geográfica, sendo em quase todos os demais aspectos semelhante
às potências ocidentais, inclusive no fardo de trazer as luzes aos povos

58
atrasados, mesmo a malgrado destes. A exceção na ocidentalização narrativa
do Japão é a fraqueza do cristianismo em solo nipônico, que leva a uma
inversão momentânea dos termos: o autor espera que a liberdade religiosa
implementada na Coreia faça prosperar ali a obra dos missionários e, uma vez
convertida, a colônia possa trazer a salvação cristã à metrópole.

É uma questão pertinente, mas que escapa aos objetivos desta investigação,
saber em que medida Griffis foi influenciado pela natureza das fontes que
consultou e seu conhecimento linguístico, pois tinha acesso direto a obras
japonesas, mas dependia de traduções para material coreano. É bastante
provável que ele tenha adquirido parte da visão depreciativa da Coreia em
textos “orientalizantes” de autores japoneses.

As descrições do livro refletem as relações de poder entre os dois países ao


mesmo tempo que as reforçam, legitimando ao público leitor a perda de
soberania coreana. O cristianismo, único fator importante em que o Japão não
é equivalente aos países do Ocidente, acaba por se tornar um elemento
justificador do expansionismo imperialista, dadas as perspectivas de
evangelizar o império a partir da colônia. O discurso orientalista marca o texto,
mas apenas no tratamento dado à Coreia. Para Griffis, que evita enxergar o
Império Japonês sob a ótica do “perigo amarelo”, a modernização do Japão
demonstra a possibilidade de um país passar de “oriental” a “ocidental”.

Da análise de Coreia, a nação eremita aqui realizada, constata-se que os


conceitos de Said devem ser tratados com cautela antes de aplicados ao caso
do Japão. Por outro lado, pode-se dizer que isso reforça a teoria exposta em
Orientalismo; se o saber dos orientalistas estava intimamente ligado ao poder,
é previsível que ele seria diferente em um país cujo poder permitia uma
equiparação aos países ditos civilizados.

Referências
Emannuel Henrich Reichert é Doutor em História pela Universidade de Passo
Fundo. Atualmente trabalha na Secretaria de Planejamento, Governança e
Gestão do Estado do Rio Grande do Sul.

DUUS, Peter. The abacus and the sword: the Japanese penetration of Korea,
1859-1910. Berkeley: University of California Press, 1995.

GRIFFIS, William Elliot. Corea, the hermit nation. 9. ed. New York: Charles
Scribner´s Sons, 1911.

HIRAWAKA, Sukehiro. Japan´s turn to the west. In: JANSEN, Marius B. (ed.).
The Cambridge History of Japan. Volume 5: The Nineteenth Century.
Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 432-498.

MARX, Karl. O 18 de brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, 2011.

59
MOREFIELD, Jeanne. Empires without Imperialism: Anglo-American decline
and the politics of deflection. New York: Oxford University Press, 2014.

OTA, Yuzo. William E. Griffis The Mikado´s Empire (1876). In: SAEKI, Shôichi;
HAGA, Tôru (eds.). Masterpieces on Japan by Foreign Authors: From
Goncharov to Pinguet. Singapore: Springer Nature, 2023, p. 17-20.

REICHERT, Emannuel Henrich. Griffis e a lenda do Oriental: Uma denúncia do


Orientalismo antes de Said. In BUENO, André (org.). Mundos em Movimento:
Orientalismo. Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2021, p. 146-152.

VLASTOS, Stephen. Opposition movements in early Meiji, 1868-1885. In:


JANSEN, Marius B. (ed.). The Cambridge History of Japan. Volume 5: The
Nineteenth Century. Cambridge: Cambridge University Press, 1989, p. 367-431.

60
UM ENTERRO CELESTIAL NEM DIURNO E NEM NOTURNO,
MAS CREPUSCULAR: UMA ANÁLISE DA OBRA XINRAN À LUZ
DO IMAGINÁRIO DURANDIANO, por Jander Fernandes Martins
e Vitória Duarte Wingert

Para começo de conversa...


O presente artigo analisa uma das obras mais famosas da renomada autora
chinesa que ganhou destaque internacional por suas obras literárias que
exploram questões sociais, culturais e históricas da China contemporânea, a
saber, Xinran. Assim, o presente artigo dá continuidade ao empreendimento
realizado, alhures, pelos autores. (Wingert; Martins, 2018).

Nesse sentido, aqui, nos debruçamos analiticamente sobre outra obra da


autora, na perspectiva da Teoria Geral do Imaginário de Gilbert Durand (2002).
Nosso objetivo é mostrar que, apesar do enredo, contexto e situação vivida
pelos personagens (reais) do livro, serem e estarem imersos em uma cultura
chinesa e tibetana, há traços que indicam que, na perspectiva durandiana, as
manifestações culturais vividas (personagens) são marcadas por uma estrutura
noturna, enquanto sua face narrada (autora) parece estar estruturada
diurnamente, logo, como síntese deste processo cultural, tem-se a narrativa em
uma estrutura dramática, portanto, noturna sintética.

Dentre as ene possíveis motivações que justificariam a escolha, elegemos essa


obra como objeto de análise, uma vez que, tanto quanto as outras obras da
autora (Xinran, 2007; 2009), não somente é posto em xeque a representação e
posição das mulheres orientais, como também, relações entre humanos e não-
humanos. (Wingert; Martins, 2018)

No entanto, apesar de ser outra obra da autora que impele a desconstrução


dessa imagem pitoresca de um “oriente inventado” (Said, 2007). Aqui, toma-se
o fenômeno que deu vida para a narrativa, como objeto analisado, um enterro
celestial, portanto, “morte” perspectivada (tibetanos, protagonista, autora do
livro), à luz da Teoria do Imaginário (Durand, 2002).

Xinran, uma mulher diurna em um contexto noturno


Como sugere o subtítulo, apresentar a autora torna-se imperativo no presente
trabalho. Apesar de adotar o pseudônimo Xinran, seu nome de nascimento é
Guo Xinran, nasceu em Pequim, China, em 1958. (Wingert; Martins, 2018) A
obra "Enterro Celestial" ("Sky Burial"), é um de seus livros mais famosos,
publicado originalmente em 2004, é outro livro importante de Xinran. Nessa
obra, Xinran conta a história de Shu Wen, uma mulher chinesa que se aventura
em uma jornada pelo Tibete em busca de seu marido, um médico militar

61
desaparecido. (Xinran, 2004) Ao longo de sua carreira literária, Xinran
continuou a escrever sobre questões relacionadas às mulheres e à sociedade
chinesa, lançando outras obras significativas, como "As boas mulheres da
China” (2004) e “Testemunha da China: vozes de uma geração silenciosa”
(2009).

Deste modo, Xinran é considerada uma voz importante na literatura


contemporânea chinesa, trazendo à tona histórias e experiências pessoais que
muitas vezes são negligenciadas ou suprimidas. Sua abordagem sensível e
empática ao retratar as vidas das mulheres chinesas contribuiu para uma maior
compreensão das complexidades sociais e culturais do país.

Assim, para entender o contexto social e cultural em que Xinran escreveu


"Enterro Celestial", é importante considerar tanto a história da China quanto a
situação específica do Tibete durante o período em que o livro se passa. A
China passou por grandes transformações sociais e políticas ao longo do
século XX. Durante a Revolução Cultural (1966-1976), o país experimentou um
período de intensa agitação política e profundas mudanças sociais, fruto da
implementação das políticas comunistas lideradas por Mao Zedong. Não
obstante, a questão da disputa territorial acerca do Tibete.

Nesse sentido, "Enterro Celestial" foi publicado em 2004, mas a história do livro
se passa nas décadas de 1950 e 1960, logo, está inscrito e marcado por
eventos significativos na história chinesa. No livro, Xinran explora a história de
Shu Wen, que se aventura no Tibete em busca de seu marido desaparecido. O
Tibete é uma região com uma cultura e uma identidade distintas, e
historicamente tem sido um ponto de tensão entre a China e o Tibete devido às
disputas sobre autonomia e independência. No Ocidente, tal disputa ganhou
proeminência e espaço pelo forte movimento e campanha de talvez o seu mais
famoso tibetano, Dalai Lama.

De acordo com a obra (Xinran, 2004), a história de Shu Wen se desenrola no


momento de ocupação chinesa no Tibete, na década de 1950. Assim, o
contexto social e cultural em que Xinran escreveu "Enterro Celestial" é
marcado por transformações sociais na China e pela situação política delicada
no Tibete. Devido a isso, a narrativa permite ao leitor vislumbrar um olhar
sensível sobre as experiências individuais em meio a essas dinâmicas
históricas, retratando questões de identidade, cultura e relacionamentos entre
diferentes grupos étnicos e culturais.

Sobre a obra, suas temáticas e personagens...


Inicialmente, cabe destacar que se trata de uma obra de ficção, porém,
baseada em eventos reais. Resumida e inicialmente, em Enterro Celestial
(2004) é narrado a história de Shu Wen, uma jovem enfermeira chinesa que
decide deixar sua vida na China para ir atrás de seu marido, Kejun, médico
militar, que fora designado para uma missão no Tibete. Sua decisão em ir atrás
de seu marido, deve-se por receber a notícia da morte dele, ou seja, o enredo
se desenvolve em torno da busca de Shu Wen por Kejun. (Xinran, 2004)

62
Como estilo narrativo, a obra apresenta outros personagens, também, com
suas histórias é possível identificar, nesses cenários, o abrupto processo de
aculturação e enculturação, que marcam processos de colonização e que, hoje,
diante dos estudos decoloniais.

Vejamos: SHU WEN: protagonista, é apresentada como uma mulher corajosa


que parte em uma jornada perigosa para encontrar seu marido, por ser médica
dermatologista, consegue autorização para realizar missão no Tibete. KEJUN:
O marido de Shu Wen, médico oficial do Exército de Libertação Popular chinês.
Sua história pessoal e sua ligação com o Tibete desempenham um papel
central no enredo do livro. É em torno de sua morte (tratada inicialmente como
desaparecimento) que a história se desenrola. ZHUOMA: é uma jovem tibetana
que se torna uma figura importante na vida de Shu Wen. A partir do encontro
com a protagonista, e dos laços de amizade estreitados, tem-se contato com a
perspectiva cultural e das tradições do Tibete. QIANGBA, O VELHO ERMITÃO:
o mesmo é apresentado em capítulo próprio, e nele, pode-se adentrar à cultura
tibetana, tanto na perspectiva budista, quanto das tradições locais Bö. Para
nós, aqui está a chave de compreensão do artigo que propomos, tanto quanto
para o desfecho da narrativa, uma vez que é através deste personagem que a
protagonista se vê diante do fenômeno “enterro celestial”. (Xinran, 2004, p.
117-131, e pp. 132-141)
Além disso, o livro aborda uma série de temas significativos, quais sejam:

“Amor e devoção”: A história central gira em torno do amor de Shu Wen por
seu marido e sua devoção em encontrá-lo. (Xinran, 2004, pp. 20-35)
“Identidade e pertencimento”: Shu Wen enfrenta desafios em sua identidade
pessoal enquanto navega entre a cultura chinesa e tibetana. O livro levanta
questões sobre a formação da identidade em um contexto multicultural e as
tensões resultantes dessa interação. (Xinran, 2004, pp. 36-82) “Consequências
da ocupação”: O livro aborda as consequências da ocupação chinesa no
Tibete. Xinran explora as histórias individuais de tibetanos que foram afetados
pela presença chinesa, revelando o impacto nas tradições culturais, na religião
e nas relações interpessoais. (Xinran, 2004, pp. 82-94). “Espiritualidade e fé”: A
jornada de Shu Wen pelo Tibete a expõe a práticas espirituais e crenças
religiosas tibetanas. O livro explora as noções de espiritualidade, fé e
transcendência em meio à adversidade. (Xinran, 2004, pp. 95-140)

Assim, temos um entrelaçamento temático ao longo do enredo de "Enterro


Celestial". Buscando identificar elementos estruturantes do mesmo, é possível
identificar estruturas que substanciam a condição humana, as complexidades
culturais e as experiências individuais em um dado contexto histórico e político.
Todas, estruturas figurativas passíveis de serem identificadas por meio das
inúmeras narrativas míticas e imagéticas, que retratam as diversas condições
humanas, porém todas condicionadas aos dois fenômenos angustiantes em
que o sapiens se enreda, a morte e o esvair do tempo. (Durand, 2002)

Do imaginário celestial à um enterro celestial

63
A dimensão imaginária do ser humano tem sido objeto de estudo e fascínio ao
longo dos séculos. Desde mitos e rituais até narrativas contemporâneas e
práticas simbólicas, o imaginário desempenha um papel fundamental na
construção da identidade individual e coletiva. As estruturas antropológicas do
imaginário referem-se aos padrões, símbolos e significados subjacentes que
dão forma às representações simbólicas e imaginárias de uma determinada
cultura ou sociedade. (Durand, 1979; 1985; 1989; 1995; 1996; 2002; 2004a;
2004b; 2008)

Assim sendo, o autor propõe que o imaginário humano possui uma estrutura
subjacente que transcende as diferenças culturais. Essa estrutura
antropológica do imaginário é composta por padrões simbólicos e arquétipos
que são compartilhados pelas sociedades humanas que, como se vê no
conjunto de sua obra, é a materialização concreta de regimes de imagens
(diurno e noturno), estruturadas em narrativas heróicas, místicas e/ou sintéticas
que são reflexos psíquicas de reflexos dominantes biológicos (bípede, sucção e
cópula), que instauram (ou permitem a instauração) de esquemas verbais
heroicos, antifrásicos e dramáticos. (Durand, 2002)

Mais ainda, o autor propõe a existência de arquétipos e estruturas mitológicas


subjacentes ao imaginário humano, que se manifestam em símbolos, mitos,
rituais e obras de arte. Ele analisa esses símbolos e suas relações,
identificando padrões recorrentes e universais. Com essa abordagem, busca-
se revelar as estruturas profundas do imaginário coletivo e compreender como
essas estruturas influenciam a cultura, a identidade e a subjetividade dos
indivíduos. (Durand, 1979; 1985; 1989; 1995; 1996; 2002; 2004a; 2004b; 2008)

Metodologicamente, o imaginário como diretriz de estudos, vale ressaltar aquilo


que o autor francês formulou e denominou de mitodologia, que por sua vez,
divide-se em mitocrítica e mitanálise. Enquanto, a mitocrítica analisa os mitos
pessoais, que dão orientação aos projetos de vida de cada indivíduo e que
também comungam projetos mais amplos que são relativos à coletividade. Já a
mitanálise, por sua vez, é um método de investigação fundado em uma
racionalidade hermenêutica, a qual tem como um de seus principais intentos,
localizar e interpretar as imagens, os símbolos e os mitos no imaginário,
presentes nas mais variadas culturas, regiões e momentos históricos. (Durand,
1979; 1996)

Portanto, resumidamente, temos como premissas da Teoria Geral do


Imaginário dois regimes:

“[...] O Regime Diurno tem a ver com a dominante postural, a tecnologia das
armas, a sociologia do soberano mago e guerreiro, os rituais da elevação e da
purificação; o Regime Noturno subdivide-se nas dominantes digestiva e cíclica,
a primeira subsumindo as técnicas do continente e do habitat, os valores
alimentares e digestivos, a sociologia matriarcal e alimentadora, a segunda
agrupando as técnicas do ciclo, do calendário agrícola e da indústria têxtil, os

64
símbolos naturais ou artificiais do retorno, os mitos e os dramas
astrobiológicos. [...] (Durand, 2002, p. 58, itálicos do original).

Nesse sentido, cremos que Ana Taís Barros (2010, p. 135, itálicos do original),
traduz elucidativamente o que o autor francês postula:

“[...] No universo mítico heróico, a ação fundamental é da distinção,


engendrada pelo reflexo postural, que privilegia as sensações à distância, visão
e audiofonação: é pondo-se de pé que o homem libera a vista e o ouvido,
podendo melhor exercer esses sentidos; libera também a mão que se ergue
tanto para o combate quanto para o julgamento. No universo mítico místico, a
ação primordial é confundir, sugerida pela dominante da descida digestiva,
trazendo imagens de intimidade, calor, alimento, substância etc. No universo
mítico dramático (regime noturno), a ação predominante é reunir, que se
coaduna com a dominante copulativa e suas constantes rítmicas [...]”.

Enfim, a totalidade desses fenômenos produzidos e acumulados pelo conjunto


da humanidade, explicados acima e que encontramos nas mais variadas
formas narrativas e imagens que, por meio de sua capacidade psicobiológica
se eleva a condição de ser subjetivamente pensante (Imaginário) tenta dar
conta desta condição, genuinamente, humana, que é a busca incessante de
vencer o tempo e a morte, por um lado, e a eufemização desta condição se
entregando e abraçando o tempo incontrolável e a morte, por outro lado.
(Durand, 2002)

Análise: um enterro noturno, narrado diurnamente?


O ritual funerário em "Enterro Celestial", pode ser acessado a partir do capítulo
7, intitulado “Qiangba, o velho ermitão”, e é nesse capítulo que se inicia a
apresentação da tradição tibetana funeral e, por conseguinte, a cosmovisão
tibetana de morte. Tema caro para os autores que tratam narrado começa
com a preparação do corpo do falecido. Os familiares e amigos lavam e vestem
o corpo com roupas tradicionais, demonstrando respeito e honra ao falecido.
Em seguida, o corpo é colocado em um caixão, muitas vezes feito de madeira,
decorado de forma elaborada e simbólica. (Xinran, 2004)

Durante o ritual, há uma série de práticas e crenças que são seguidas. São
feitas orações e incensos são queimados como forma de comunicação com o
mundo espiritual. Músicas e cantos podem ser entoados para acompanhar o
processo. Os familiares e amigos também trazem oferendas, como comida,
bebida e objetos simbólicos, para serem colocados ao lado do caixão. Uma
parte importante do ritual é o corte de mechas de cabelo dos familiares
próximos do falecido. Isso simboliza a união e a conexão entre os vivos e os
mortos. As mechas de cabelo são então colocadas no caixão como uma forma
de acompanhamento e proteção espiritual para o falecido. Após o ritual, o
caixão é levado para o local de enterro, que pode ser um cemitério ou um local
designado. O enterro em si pode variar dependendo das crenças e costumes
familiares. Alguns podem preferir o enterro em covas individuais, enquanto

65
outros podem optar por enterros em colinas ou montanhas sagradas. (Xinran,
2004)

Quanto ao fenômeno, segundo grandes mestres da espiritualidade tibetana,


denominam como “Powa”, que seria uma espécie de treinamento para o
processo de morte, reencarnação ou a cessação do ciclo de nascimento-morte.
(Chagdu Tulku, 2019; Gyatso, 2006; Rinpoche, 1999) Esses temas se
entrelaçam ao longo da narrativa, proporcionando uma reflexão sobre tradições
culturais. (ALDROVANDI, 2008)

A morte, na perspectiva durandiana, atravessa os dois pólos das grandes


imagens, assim como, os três esquemas verbais que estruturam essas
mesmas imagens/narrativas (heróicas, místicas e sintéticas). Levando em
consideração o “quadro isotópico” de Durand (2002), a morte enquanto
fenômeno que, em suas múltiplas facetas (túmulo, morada, luz, trevas, céu,
inferno, iniciação, sacrifício, berço...) perpassa os regimes, as estruturas de
imagens e identificáveis através de sua simbologia e esquemas verbais, nos
permitiu identificar o que se segue: “os arquétipos heroicos (diurnos)”: luz,
trevas, cume, o herói, a asa... Através do ato de “separar” as partes do corpo
do falecido, no ritual de enterro celestial. “Os arquétipos místicos (noturnos)”: a
morada, a mulher, o centro, a mãe, o animal gigante. Através do ato de
confundir e eufemizar o abraço da morte. (Durand, 2002, p. 443)

Simbolicamente, temos ainda: o mantra e o sol como “símbolos heroicos”,


elementos recorrentes no texto. Enquanto, o túmulo, o ventre, o mandala, o
berço como “símbolos místicos”. Temos ainda, o universo militar, tematizar
todo o contexto narrativo, dinâmicas bélicas que, simbolizam a estrutura
diurnas culturais e que perpassam a jornada de Wen Shu até a revelação
derradeira, o suicídio de seu marido Kejun. (Xinran, 2004).

Assim, evidenciamos se tratar de uma obra características da condição de


ocidentalização do oriente, tanto quando desta orientalização do ocidente,
condição destas mesclas dinamizadas por processos culturais e econômicos,
retrato da “mundialização e globalização” instaurada nos últimos 40 anos
(Canclini, 2000). Isto é, temos um contexto narrativo (livro), em caráter diurno,
sob a ótica de uma autora privilegiando um tom narrativo heroico. Em
contrapartida, a análise e leitura da obra, na perspectiva durandiana (Durand,
2002), permite-nos captar o relato de uma dada cultura (colonizada), que é
representada em seu caráter/aspecto noturno (especialmente, o fenômeno da
morte e do funeral). E que, como síntese dessa dinâmica, na concretude dos
personagens reais, identificamos um “trajeto antropológico” noturno sintético,
uma vez que Wen Shu, Tibete, China, marido suicida, personagens
coadjuvantes (QiangBa, Zhouma...) e narradora só se entrecruzam seus
trajetos, no plano narrativo, portanto, na condição de drama, na estrutura
dramática, naquele limiar diurno-noturno, crepuscular. (Durand, 2002, p. 443)

Conclusão

66
Neste paper, discutimos a autora Xinran e seu livro "Enterro Celestial".
Fornecemos uma visão geral da carreira literária de Xinran, destacando seu
papel como uma renomada escritora chinesa que aborda questões sociais e
culturais em suas obras. Exploramos o contexto social e cultural em que
"Enterro Celestial" foi escrito e, em seguida, descrevemos o enredo do livro, os
temas recorrentes e as principais personagens.

Também, dedicamos um subcapítulo para discorrer sobre o arcabouço teórico


que norteou o presente trabalho, a Teoria Geral do Imaginário postulada por
Gilbert Durand. Para que assim, houvesse condições de apresentar os
achados da análise acerca do ritual funerário tibetano realizado com o marido
procurado da personagem nacionalista chinesa Wen Shu.

Assim, Enterro Celestial (2004) é uma obra literária significativa de Xinran, que
possui relevância histórica e cultural, pois, entendemos que a obra oferece,
além de uma visão da sociedade chinesa, uma compreensão global
promovendo reflexão sobre questões sociais e culturais importantes.

Por fim, temos uma cultura oriental, a qual acreditamos alicerçada em um


regime de imagens noturnas, percebidas através dos rituais funerários
tibetanos, vivido por uma personagem real, e narrada por uma personagem
que já vive culturalmente os condicionantes da mundialização cultural (Canclini,
2000).

Concluindo, tal fato, nos impele, à luz da teoria durandiana, a propor o


entendimento de que, com o avanço e complexificação das dinâmicas
vertiginosas instauradas no último século passado, as grandes imagens que
arregimentaram culturalmente a humanidade, em diurno (ocidente) e suas
narrativas de enfrentamento e controle do tempo e da morte, e noturno
(oriente) com suas narrativas que eufemizam a soberania do tempo e da morte,
percebemos que, nesta obra chineses, tibetanos e ocidentais parecem
partilharem da mesma angústia e medo, em especial, “face à morte”.
Entretanto, esmiuçando a obra fica evidente que, a angústia narrada advém da
perspectiva ocidentalizada da narradora e do leitor, uma vez que, tanto
protagonista quanto personagens envolvidos no rito funerário eufemizam tal
fenômeno vivido por Kejun e Qiangba.

“[...] Pôs a mão no bolso onde guardava a fotografia de Kejun. Ao passar os


dedos sobre a imagem [...] murmurou as palavras ‘Om mani padme hum’. No
céu, uma família de gansos voava para casa. Ali não havia abutres sagrados
nem enterros celestiais [...].” (Xinran, 2004, p. 156)

Referências
Jander Fernandes Martins é Mestre e Doutor em Processos e Manifestações
Culturais (Universidade FEEVALE). Pedagogo (UFSM) e professor concursado
em Rede Municipal de Campo Bom-RS. E-mail: martinsjander@yahoo.com.br

67
Vitória Duarte Wingert é Mestra em Processos e Manifestações Culturais
(Universidade Feevale). Doutoranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social
(Universidade Feevale). Licenciada em História (Universidade FEEVALE).
Professora concursada em Rede Municipal de Campo Bom-RS. E-mail:
vitoriwingert@hotmail.com.

ALDROVANDI, Cibele Elisa Viegas. O monge, a morte e o estupa: práxis e


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69
IMAGENS E IMPRESSÕES DO JAPÃO ANTES E DEPOIS DA
ABERTURA DOS PORTOS DE 1854, por Levi Yoriyaz

Apresentação do tema
Com o advento da reabertura dos portos japoneses, com a chegada dos norte-
americanos em 1854, o Japão foi pressionado a permitir a prática comercial
dos demais portos com as nações europeias. Cidades portuárias como
Hakodate, Shimoda, Nagasaki e Yokohama passaram a estar provisoriamente
sob o domínio dos norte-americanos e dos ingleses, pelo princípio de
extraterritorialidade.

A aplicação da extraterritorialidade dependia da existência de um meio de


aplicar localmente a legislação dos países de origem das comunidades
estrangeiras. Diante da inviabilidade de usar os tribunais domésticos, sediados
a milhares de quilômetros, a solução normativa era a criação de tribunais
consulares. Por exemplo, os quatro consulados (norte-americanos) instalados
em Yokohama, Kobe, Nagasaki e Hakodate tinham entre suas funções a de
servir de tribunal sempre que um cidadão dos Estados Unidos fosse o réu – a
acusação, civil ou criminal, podia partir de japoneses, americanos ou outros
estrangeiros. O papel de juiz cabia ao cônsul, um agente do governo. Nessas
cidades, eram estabelecidos consulados que seriam sedes administrativas
responsáveis em gerir assuntos legais no campo civil, criminal e de trâmites
comerciais. Os protocolos e as normas que os consulados utilizavam eram
baseadas nas leis dos seus respectivos governos. Assim, todos os casos
judiciais que ocorressem dentro do perímetro das cidades portuárias que
continham um consulado inglês ou americano seriam julgados segundo as leis
da respectiva embaixada, fosse o processo provocado por um estrangeiro
europeu ou japonês.

Enquanto isso, na Europa, a impressão dos europeus sobre o Japão se alterou


de maneira drástica, principalmente graças à pintura e aos objetos artísticos.
Em 1856, foi divulgado um relato oficial da expedição do Comodoro Perry em
Washington que foi acompanhado de duas reproduções de ukiyo-e de Utagawa
Hiroshige (1797-1858). A tela Crossing Oho-e-gawa, in the province of Suruga
(1856) de Hiroshige, foi apresentada em Washington e, em seguida, divulgada
pelo The Illustrated London News em 13 de dezembro de 1856.

No mesmo ano, o ceramista Félix Braquemond (1833-1914) introduziu para a


França, em Paris, os 15 quadros (esboços) de Hokusai (1760-1849). O impacto
da difusão dos álbuns dos Mangás de Hokusai fez com que os produtos
japoneses se tornassem moda no cotidiano parisiense, assim como serviu de
referência para escritores e artistas ocidentais no interesse de se aprofundar
nas técnicas do ukiyo-e. Em 1859, a edição da Narrativa da missão de China a

70
Japão de Earl de Elgin nos anos 1857-1858, por Laurence Oliphant, secretário
de Lord Elgin, divulgou coleções de objetos artísticos japoneses por todo o
império britânico.
Essa animosidade se dava na aquisição de quimonos, leques e xilogravuras,
de modo que esses artigos foram considerados, pelos europeus, como
materiais de luxo e arte refinada. Desse modo, os ornamentos e as obras de
arte japoneses se tornaram manifestações da beleza exótica, o que também
despertou grande interesse dos europeus, especialmente na França, para as
artes. O fascínio que os artistas tinham a respeito da arte japonesa era por
buscarem técnicas e expressões que saíssem do padrão tradicional, isto é, se
desvincularem das referências greco-romanas e desfazerem o compromisso da
arte com a moral ou com qualquer intenção pedagógica.

Dessa forma, a imagem do Japão na Europa se tornou uma descoberta


artística, de modo que os porcelanatos e as vestimentas japonesas exprimiram
uma beleza de civilização que os europeus desconheciam. Isso cativava os
olhares dos europeus de forma que os ornamentos davam fineza aristocrática e
elegância. Segundo Lily Litvak, as peças, artigos e ornamentos japoneses eram
elementos considerados exóticos para os europeus, mas esse exotismo não se
dava no julgamento de que os objetos japoneses apresentavam uma beleza
emanada da natureza ou advinda de uma fonte fora do campo da civilização.
Litvak descreve:

“De todos os exotismos, o Japão tinha algo especial, diferente. O país do sol
nascente já havia seduzido por suas estranhas formas, por sua rica e
interessante coloração, por seus frescos e doces matizes. Agora, apresentava-
se sobretudo como um protótipo de arte aristocrática, com chancela de riqueza
e elegância. Atraía por sua atmosfera de civilização mais refinada que o
Ocidente”. (LITVAK, 1986, pg. 113)

O exotismo que os europeus viam no Japão era um misto da contemplação da


beleza natural expressada nas paisagens japonesas de ukiyo-e e dos produtos
cotidianos japoneses, a saber, o uso de leques, porcelanas, sombrinhas,
biombos e quimonos. A adoção de vestimentas e até mesmo a reprodução de
costumes, como o consumo de chá verde nos porcelanatos japoneses e
chineses, se tornaram hábitos de perfil aristocrático e de fineza. Em outros
termos, a apreciação do exótico, nesse caso, estaria ligada ao consumo de
artigos que são novos para a civilização ocidental, mas são adotados como se
fossem parte dessa mesma civilização.

Japonismos: Nihon imaginado nas artes e na literatura


O japonismo (como fenômeno de adoção e assimilação de objetos e temas
relacionados com a cultura japonesa) favoreceu o desenvolvimento de
movimentos artísticos, como o impressionismo, e pintores de outros países
como James McNeil Whistler (1834-1904)43, Claude Monet (1840-1926),
Edgar Degas (1834-1917) e Vincent van Gogh (1853-1890). A atração das
técnicas japonesas se dava pela presença das cores vivas, os tons claros,
brilhantes e sem sombras, com contornos fortes, o uso da superfície plana, a

71
perspectiva de vista aérea, a paginação inusitada, características que
instigaram uma nova orientação da sensibilidade artística europeia. A
referência não se dava na imitação das técnicas de ukiyo-e, mas na apreensão
do uso das cores, habilidades de desenho e inclusão de paginação nas
pinturas, na busca de manifestar expressões artísticas fora dos grandes salões
de arte.

Ainda na França, o ukiyo-e como referência para a produção artística não se


deu apenas por meio da técnica e uso de cores e gravuras, mas também
influenciou na seleção de temas e de novos personagens na composição da
pintura artística. Edgar Degas, por exemplo, tomou referências de Hokusai, nos
volumes IX e XII dos Mangás de 1814, os quais têm o foco de mostrar a
banalidade de gestos cotidianos por meio da representação de mulheres no
banho. Seus trabalhos enfrentaram críticas e espanto do público e da imprensa
parisiense, pois as pinturas femininas apresentadas eram julgadas como
eróticas e obscenas por exibirem imagens de atos que são de propriedade
íntima e banal. Isso distanciava do padrão da postura adequada e da moral que
uma modelo de arte deveria ter.

Outro exemplo que podemos levantar é a obra Madame Chrysantème serviu de


material para a ópera de Giacomo Puccini (1850-1824), Madame Butterfly
(1904), que apresenta um cenário e narrativa semelhantes aos do romance de
Loti. O enredo se passa na cidade de Nagasaki e os personagens são um
oficial norte-americano e uma jovem japonesa. A trama se dá num romance
entre ambos os protagonistas em que a mulher, Cio-Cio (remetendo a
“borboleta” – chou, em japonês), representa a figura de uma gueixa que porta
um comportamento frágil, doce e infantil. No encerramento do romance, a
jovem japonesa é abandonada pelo oficial americano, Pinkerton, que regressa
aos Estados Unidos com uma nova esposa, o que a leva a cometer suicídio no
final. A narrativa de Puccini, no entanto, apresentou maior aprofundamento e
estudo sobre a cultura japonesa em comparação com a Madame Chysantemè,
de Loti. A diferença foi que Puccini se ateve à pesquisa a respeito dos aspectos
linguísticos japoneses, assim como o estudo da música e da teatralidade
nipônica pelo contato com Sada Yakko (1871-1946), atriz e gueixa japonesa
que realizou tours teatrais nos Estado Unidos e na Europa em 189956. Yakko
apresentou a Puccini citações japonesas no teatro quanto ao uso de leques, o
rito de chá, a exuberância do obi e do ikebana58 e a cerimônia de harakiri.
Todavia, ambas as narrativas, tanto de Loti como de Puccini, estabeleceram
uma imagem do Japão como uma paisagem estática que transmite a
impressão de que toda mulher japonesa apresenta um comportamento de
gueixa, com um perfil frágil, submissa e destituída de vontade própria.

Lafcadio Hearn: a busca do exótico e da essência japonesa


O japonismo também produziu obras literárias de viagem e o escritor Lafcadio
Hearn foi um dos exemplos cujos escritos se tornaram referência a respeito do
Japão nos países anglófonos. Sobre Hearn, ele teve sua carreira como
jornalista “errante” em Nova York nos anos de 1860-1870, e mais tarde teve
contato com os romances de Percival Lowell, onde conheceu temas e assuntos

72
sobre o Japão. Fascinado pela arte e cultura japonesa descritas nas obras de
Lowell, Hearn viajou para o Japão em 1890, como correspondente do jornal
Harper’s Magazine, de Nova York. Nesse período, também atuou como
professor da língua inglesa na Universidade Imperial de Tóquio e de Waseda, e
mais tarde buscou obter a cidadania japonesa, tomando o nome de Koizumi
Yakumo.

Segundo o crítico literário Giorgio Sica, Hearn foi considerado “sinônimo de


Japão” para os leitores da língua inglesa graças ao seu olhar gentil e
meditativo, a viração refinada de sua melhor prosa e sua sensibilidade pelo
particular pelo detalhe aparentemente insignificante, mas denso de
ressonâncias e mistério67. Dos romances e trabalhos que Hearn desenvolveu
sobre o Japão, se destacam Glimpses of Unfamiliar Japan, de 1894, e Kokoro:
Hints and Echoes of Japanese Inner Life, de 1896.

Em Glympses of an Unfamiliar Japan, Hearn descreve suas impressões a


respeito da cultura japonesa durante a sua estadia no Japão. Ele registra os
locais, cidades, ruas, templos e vilarejos e, a partir disso, procura destacar
elementos culturais e sociais que o distinguem da sociedade ocidental. Desse
modo, os pontos abordados vão ser diferenças religiosas, arquitetura, etiqueta
e gestos sociais. Outro aspecto interessante que podemos observar na
descrição de Hearn é a discussão a respeito da diferença da organização
linguística japonesa para o sistema alfabético ocidental: o autor entende que
forma como o alfabeto japonês é explicado parece se tratar da contemplação
de uma obra artística que apresenta tons de exotismo:

“An ideograph does not make upon the Japanese brain any impression similar
to that created in the Occidental brain by a letter or combination of letters – dull,
inanimate symbols of vocal sounds. To the Japanese brain an ideograph is a
vivid picture: it lives; it speaks; it gesticulates. And the whole space of a
Japanese street is full of such living characters – figures that cry out to the
eyes, words that smile or grimace like faces”. (HEARN, 1894, pg. 12)

A comparação que Hearn faz sobre a característica da fonética e da escrita


entre a língua japonesa e a europeia se dá no âmbito estético e artístico. Seus
argumentos alegam que os ideogramas japoneses são parte integrante na
composição da paisagem urbana de Tóquio, comentando que a sua forma se
mistura com a ambientação da cidade, além delas serem mais “vivas” que os
símbolos e caracteres ocidentais. A imagem que o autor nos apresenta sobre
os caracteres japoneses, descritos de maneira vívida e em movimento, nos traz
uma impressão de uma beleza exótica. Isso foge do que se espera de uma
discussão que trata da forma dos caracteres de um alfabeto de maneira mais
sistemática e funcional, como Hearn descreve a combinação das letras
ocidentais, denominando-as como tediosas ou desinteressantes. Ainda
discutindo sobre o trecho de Glympses of an Unfamiliar Japan, outro ponto que
pode se destacar é o argumento que o autor usa ao alegar que a diferença da
elaboração de desenvolver um sistema de comunicação e escrita entre a
cultura japonesa a do ocidental seria pelo fator biológico. Apesar de o autor

73
sugerir que sua discussão se passa no quesito psicológico de um indivíduo
japonês, pautada no comportamento de um público de classe média, isso ainda
estabelece um divisor de águas em que a “civilização ocidental” carrega o peso
um objeto que representa o progresso ou o requisito que promove a evolução e
aperfeiçoamento de toda comunidade humana. Logo, o que Hearn acaba
propondo não é comparar diferentes culturas ou sociedades, mas insinuar que
a adoção da civilização ocidental é atingir uma nova etapa de desenvolvimento
social humano.

Manuel de Oliveira Lima: ‘Japão’ imaginado por uma perspectiva


brasileira
As obras de Hearn chegaram a ser referência ocidental sobre a cultura
japonesa e tiveram repercussão até mesmo no Brasil. Elas inspiraram, por
exemplo, o diplomata Manuel de Oliveira Lima (1867-1928)70 a visitar o Japão
e, mais tarde, escrever a obra No Japão: impressões da terra e da gente, em
1903. Manuel Lima é um dos primeiros brasileiros a desenvolver uma obra a
respeito da cultura japonesa.

A obra apresenta as observações e análises empíricas do próprio autor, de


quando residiu em Tóquio nos anos finais da década de 1890. Sua obra
também desenvolve uma breve narrativa da história do Japão por meio do
levantamento de relatos de viagem do padre Francisco de Assis e de outras
referências sobre o Japão, como as de Lafcadio Hearn. O diplomata brasileiro
menciona outros autores e estudos de fontes sobre a Terra do Sol Nascente,
como os orientalistas da Asiatic Society of Japan, no caso, o professor Basil
Hall Chamberlain, assim como desenvolve críticas e observações a respeito
das impressões de outras obras e narrativas que mencionam o Japão. Por
exemplo, Lima comenta que os apontamentos e descrições sobre a cultura
japonesa por Loti em Madame Chrysanthemè são superficiais e caricatos, pois
a sua narrativa representa a imagem da mulher e a sociedade japonesa como
um objeto passivo e submisso, de modo que a personalidade feminina é
desprovida de vontade. No entanto, a apresentação que Lima faz sobre o
Japão ainda introduz o aspecto de um país exótico, descrito pelo autor como se
fosse uma obra de arte preenchida por paisagens e cores vivas:

“O Japão, porém, reúne às graças da natureza, o prestígio de um passado


heroico cujos contornos se somem nas brumas da mais complicada, curiosa e
poética mitologia; o exotismo de uma civilização completa, de todo diferente
das demais, cuja marca chinesa e búdica empalideceu na aclimatação e foi
avigorada por tons próprios, tão quentes e resistentes quanto o vermelho e
dourado das suas lacas finalmente a sedução de uma arte estranha, cuja
fascinação ainda não se esgotou, antes parece diariamente avolumar-se”.
(LIMA, 1903, pg. 4)

A descrição que Manuel de Oliveira faz sobre o Japão, de semelhante modo,


lembra das representações que os artistas impressionistas na França fizeram a
respeito do País do Sol Nascente. A leitura nos dá a impressão de que o autor
está descrevendo uma descoberta de uma nova cultura e a menção do Japão

74
ser exótico por apresentar uma “civilização completa” causa o impacto de
estranheza, como se o esperado fosse a cultura japonesa ser desprovida de
traços que poderiam ser julgados como “civilizados”. Encontramos fascinação e
conflito da parte do autor quando notamos que, na sua narrativa, Lima
reconhece que o perfil da sociedade japonesa comporta a definição de
“civilização” segundo os parâmetros europeus, mas ao mesmo tempo tem-se o
sentimento de estranheza devido aos fundamentos dessa mesma civilização
diferirem dos modelos que o autor tem maior familiaridade.

Para Manuel Lima, os japoneses e chineses apresentavam um perfil de uma


civilização pautada em tradições e fundamentos religiosos, estabelecendo uma
sociedade estável e funcional na qual todo ser nela inserido necessariamente
se encarregaria de realizar um papel em prol do funcionamento da
comunidade, fosse no sentido econômico ou político. Nesse sentido, Lima julga
tanto os japoneses e chineses como “civilizações atrasadas” pois, segundo ele,
sacrificam o progresso em troca de estabilidade:

“As raças do Oriente são atrasadas nos seus pensamentos, quando os


medimos pela nossa presunçosa craveira; desconhecem tanto a nossas
concepções de conforto físico como os nossos ambiciosos conflitos
intelectuais, e mostram-se alheias à nossa anarquia moral. Para elas a
metafísica e a ética são imutáveis, e os preceitos assim tornados inalteráveis
ganham em rigidez o que perdem em progressividade”. (LIMA, 1903, pg. 7)

A consideração que Lima faz sobre o povo japonês é como se os tratasse


como uma sociedade que “chegou na condição de civilizada”, porém, com o
passar do tempo acabou se estagnando, ficando “presa ao passado” e deixou
de “progredir”, o que o faz concluir que os japoneses, assim como os chineses,
seriam “raças atrasadas”. Esse julgamento toma o mesmo argumento que
Lafcadio Hearn desenvolve nas suas obras. As descrições e explicações a
respeito dos japoneses são realizados como se todas as suas características
sociais e culturais fossem intrínsecas da “raça japonesa”, sendo estas
atribuições advindas da própria natureza biológica deles.

Dessa forma, tanto nas descrições de Hearn e de Lima, apesar de haverem


observações ricas sobre a história e a cultura do Japão que tentaram retirar
qualquer imagem caricaturesca ou superficial, ainda não havia passagens que
abordam o Japão como um espaço exótico. Mesmo reconhecendo as
características sociais, históricas e culturais, a referência que esses autores
tomam como modelo de civilização e progresso ainda é o Ocidente.

Até aqui, pudemos observar a trajetória de como as impressões e as imagens


criadas pelas viagens e relatos de navegadores, padres, diplomatas e
escritores ocidentais sobre o Japão foram se moldando no decorrer do tempo.
Essas literaturas permitiram expandir o horizonte dos europeus a respeito da
sua concepção de mundo por meio da acessibilidade de novos continentes e
povos, via o desenvolvimento das navegações e de registros cartográficos.
Mas vale ressaltar que esse movimento se deu por meio de um fundo político e

75
econômico, de modo que, com o advento da transição do século XVIII ao XIX,
a expansão imperialista das nações europeias fez com que as nações
asiáticas, como no caso do Japão, se tornassem paisagens exóticas, onde
seus materiais culturais se tornariam em atrativos de consumo. Dessa forma, a
imagem de Oriente apresentada pelo Ocidente tem, como parte de sua
formação, atividades e projetos de conquista e de dominação territorial, o que
ironicamente permitiu mais tarde a apreciação da arte e da cultura japonesa.

Referências Bibliográficas
Levi Yoriyaz é doutorando em História na área de História Cultural do
Programa de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas na
Unicamp, sob a orientação da Prof.ª Dr. Raquel Gryszczenko Gomes Alves.
Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/5526528700450072.

Fontes

LIMA, Manoel de Oliveira. No Japão: impressões da terra e da gente. Rio de


Janeiro: Laemmert & C. 1903.

WILDE, Oscar. The Complete Works of Oscar Wilde, vol. 1. In: FONG, B. &
BECKSON. K. (orgs). Poems and Poems in Prose. Oxford: Oxford University
Press, 1993.

Referências

BAUDERLAIRE, Charles. O Pintor da Vida Morderna. Belo Horizonte:


Autêntica, 2010.

DOWNER, Lesley. Madame Sadayakko: The Gueixa who Bewithced the West.
New York: Gotham, 2004.

KUNIYOSHI, Celina. Imagens do Japão: uma utopia de viajantes. São Paulo:


Estação Liberdade, 1998

LITVAK, Lily. El sendero del tigre: exotismo en la literatura española de finales


del siglo XIX (1880-1913). Madri: Taurus, 1986.

MINER, Earl. The Japanese Tradition in British and American Literature.


Princeton: Princeton Univerity Press, 1958.

REICHERT, Emmanuel Henrich. O imperialismo legal e seus limites: um estudo


da extraterritorialidade americana no Japão (1858-1899). Florianópolis: XXVII
Simpósio Nacional de História lugares dos historiadores – velhos e novos
desafios, p. 1-11, 2015.

SICA, Giorgio. O vazio e a beleza. De Van Gogh a Rilke: como o Ocidente


encontrou o Japão. Campinas: Unicamp, 2017.

76
TAKASHINA, Shuji. Problemas do Japonismo. In: O Japonismo. Paris: Edições
da reunião dos Museus Nacionais, 1988.

WATANABE, Toshio. Preface. In: Japan and Britain In: An aesthetic dialogue
1850-1930. Londres: Lund Humphries, Barbican Art Gallery; Setagawa Art
Museum, 1991.

77
AS REPRESENTAÇÕES DO ÓPIO NO JORNAL DIÁRIO DE
PERNAMBUCO, por Lohanna de Lima Tavares e Carlos
Eduardo Martins Torcato

A presente comunicação tem por objetivo discutir a trajetória histórica do uso


do ópio, desde seus primeiros usos, sua introdução na sociedade chinesas e
os conflitos desencadeados, fazendo uma ligação entre a utilização da droga e
os discursos racistas e orientalistas atrelados aos chineses, problematizando a
presença desses discursos na mídia brasileira, usando como principal fonte o
periódico Diário de Pernambuco.

Na sociedade chinesa antiga o uso do ópio era disseminado como método


terapêutico, porém geralmente só acessível para pessoas da alta sociedade.
Com a chegada dos europeus levou a uma maior disponibilidade do produto,
levando a uma disseminação do uso, incluindo outras camadas sociais:

As caravanas de mercadores passavam por regiões produtoras de papoulas,


fazendo desse produto algo caro, exótico e só utilizado pelas classes altas
chinesas. Ele teria sido introduzido pelos árabes nessa região por volta do
século VIII. (TORCATO, 2022, p.35)

Apesar do uso bastante comum, as fontes consultadas deixam transparecer


uma certa opiofobia, desde o século 19. Por exemplo, dentro das notícias do
periódico Diário de Pernambuco, onde a maior parte dos anúncios de xaropes
deixavam explícito que em sua formulação existia o “ópio venenoso”, como por
exemplo a notícia “Xarope do Bosque” da edição 00068 de 1850: “Regula as
funções usuais sem necessidade de outra qualquer medicina, fortifica o
sistema e purifica o sangue. Não contém, nem mercúrio, ópio, ou outro
qualquer ingrediente venenoso, e é feito unicamente de raízes e ervas.”
(DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 23/03/1850, p.3).

A partir da expansão do ópio, sobretudo na China, e seu uso medicinal,


surgiram novas substâncias derivadas deste elementos, os chamados opióides.
Um dos mais populares opióides é a morfina, que surgiu no século XIX e que
rapidamente se popularizou na Europa e América do Norte como um eficaz
analgésico:

Ele é um potente analgésico natural que diminui o ritmo de atividade das


funções do intestino ―por isso era usado para obter a constipação (em casos
de diarréias muito fortes, como na cólera)―. Também diminui o apetite, o que
gera uma economia para os menos desfavorecidos. Ele também ajuda a
aguentar o calor excessivo e os trabalhos monótonos (Courtwright, 2001). Por
todas essas utilidades, não é surpresa

78
que ele tenha se tornado um importante produto comercial. (TORCATO, 2015,
p.56 apud COURTWRIGHT, 2001)

Destarte, durante meados do século XIX outras substâncias derivadas do ópio,


além da morfina, surgiram, como atropina (1833), cocaína (1859), cafeína
(1860), efedrina (1885), mescalina (1888) e outros. Essa expansão e
surgimento de novas tecnologias é um passo importante na chamada
revolução psicoativa (TORCATO, 2022).

Entretanto, o ópio, apesar de ser conhecido por suas propriedades analgésicas


e ter se expandido na indústria farmacêutica, também era usado para outros
fins além das questões de saúde. Na China o ópio era conhecido popularmente
como parte da “arte dos alquimistas, do sexo e das cortesãs” (CARNEIRO,
2018, p.88), ou seja, era um entorpecente utilizado como lubrificante social de
forma parecida como os ocidentais fazem em relação ao álcool. A relação do
ópio com os bordéis chineses se deu pelo consumo da droga visando um fim
sexual, uma vez que um dos efeitos deste entorpecentes é o aumento da
libído, além de prolongar o ato sexual, retardando a ejaculação do homem e
esticar o orgasmo feminino. Por esse motivo a droga era popularmente
conhecida por alguns como o “remédio da primavera”. (CARNEIRO, 2018,
p.89). Além das cortesãs e os frequentadores de bordéis, os chamados
coolies, os trabalhadores chineses, faziam parte do público consumidor chinês.
Habitualmente, esses trabalhadores consumiam a droga com o intuito de
desopilar e aproveitar suas propriedades analgésicas, que auxiliavam no alívio
de suas dores e tensões musculares.

A forma de consumir o ópio era bem versátil, podendo ser consumido em


pílulas, em pó, líquido ou, em sua forma mais popular, o laudano. O laudano
consistia em uma mistura líquida usando vinho branco, açafrão, canela, cravo e
ópio criada pelo alquimista Paracelso, o que explica sua menção na
nomenclatura “arte dos alquimistas”. (CARNEIRO, 2018). O laudano era uma
das formas mais famosas entre o público ocidental consumidor de ópio:

Em Londres, a Apothecaries Company vendia ao menos 26 preparados de


ópio. Havia para todas as opções, mas, segundo Virginia Berridge, o láudano
se tornou mais tarde a mais popular forma de ópio. Todos deviam ter em casa,
era como a aspirina ou o paracetamol daqueles tempos (CARNEIRO, 2O18,
p.90, APUD BERRIDGE).

Na China, contrariamente, uma das formas mais comuns de consumir o ópio


era através do ópio fumado através de um cachimbo. Esse hábito de fumar o
ópio recebeu uma forte influência do tabaco, que havia sido introduzido na
China através dos portugueses, que se popularizou rapidamente na China,
onde chegou a ser proibido em 1644, mas devido a sua difusão essa restrição
não teve êxito (CARNEIRO, 2018).

No século XIX, a substância da vez em entrar na categoria “proibida” foi o ópio.


Em 1729, durante a Dinastia Qing, o uso recreativo do ópio foi proibido pelo

79
imperador Yongzheng. Essa proibição estava diretamente ligada com as
representações do ópio na sociedade e sua relação com o mandarinato, uma
vez que o ópio era uma droga comumente encontrada em bordéis, o que
simbolizava uma degradação moral (SPENCER, 1996).

Dessa forma, a proibição do ópio estava ligada a tentativa de erradicar as


práticas ligadas a vida noturna chinesa, uma vez que naquele momento a
cultura chinesa tinha uma forte influência do confucionismo, onde a resposta
dada por Confúcio para atingir a virtude perfeita estava com o autocontrole,
juntamente com a restrição. Entretanto, a proibição dessa substância não
barrava sua alta demanda na sociedade chinesa, pelo contrário, a partir de sua
proibição a sua procura aumentou, além da substância passar a ser mais
valorizada devido ao seu difícil acesso. A partir disso, deu se origem a uma
rede clandestina de comércio ilegal de ópio (CARNEIRO, 2018).

A partir do estabelecimento do comércio ilegal de ópio, alguns países


começaram a traficar o ópio para a China. Os portugueses foram os primeiros a
vender o ópio do tipo malwa, que podia ser consumido em uma combinação
conhecida como madak, além deles os holandeses também chegaram a
comercializar esta substância:

O ópio começou também a ser importado da colônia holandesa de Batávia, na


ilha de Java, ao longo do século XVIII. O madak continha, além de ópio, outras
plantas, como a maconha e o tabaco, e foi contra esse uso, que se estabeleceu
no estreito de Tawan, que foi promulgada a proibição de 1729 (CARNEIRO,
2018, p.93).

Entretanto, posteriormente os britânicos se tornaram os principais exportadores


de ópio, uma vez que exportavam o ópio em sua forma pura. O fato de
oferecerem um ópio genoíno, o qual sua qualidade era superior a qualidade do
madak, fez com que se tornasse popular entre os usuários, formando assim um
comércio monopolizado pelos britânicos (CARNEIRO, 2018).

O comércio do ópio envolvendo a China e a Inglaterra beneficiou fortemente a


economia inglesa, uma vez que havia uma carência ao que se diz respeito às
relações comerciais entre os países. Isso se dava pelo fato de que a China se
tratava de um grande exportador, principalmente de chá, porcelana e tecidos, o
que ocasionava um grande fluxo de entrada de prata no país. Porém, devido a
grande autonomia chinesa, juntamente com a concepção culturalmente
construída, em que todas as coisas vindas do Ocidentes eram julgadas com
desdém, como coisas sem serventia para a população chinesa, isso fazia com
que a o fluxo de saída de prata fosse praticamente inexistente, o que gerava
uma balança econômica deficitária (SPENCER, 1996). O comércio ilegal do
ópio se tornou extremamente lucrativo para a Inglaterra, “tão lucrativo que se
avaliava na época que nenhum outro produto no mundo poderia se equiparar
em volume de rendas ao tráfico do ópio” (CARNEIRO, 2018, p. 95).

Entretanto, tendo em visto que o ópio era ilegal na China, o tráfico desta

80
substância não só ia contra as leis proibicionistas propostas pelo imperador
chinês e os valores morais estabelecidos na sociedade chinesa, mas também
ameaçava a economia do país, que agora se encontrava em posição de
desvantagem. Sendo assim, esses fatores acabavam causando conflitos entres
as autoridades chinesas e ingleses, o que junto com as leis proibicionistas,
ocasionou a maior guerra envolvendo a China: A Guerra do ópio, nos anos de
1839-1842 e 1859-1862.

Esse evento foi noticiado por vários jornais, inclusive o Diário de Pernambuco,
uma vez que foi uma peça chave para a guerra que aconteceria
posteriormente, além de que a partir desse derramamento, os ingleses
perderam uma significativa quantia de dinheiro:

O comércio da Inglaterra com a China continua. Esta notícia chegou a Londres


pela via dos Estados Unidos. Um edicto particular, que adiante transcrevemos,
foi publicado em Cantão, para tornar a abrir-se e comércio. O superintendente
inglês entrou com 35 caixas de ópio das quais duas mil pertenciam a
negociantes americanos. O valor deste gênero, segundo os cálculos dos
americanos era de 12 milhões de dólares (27 milhões de cruzados). (DIÁRIO
DE PERNAMBUCO, 1840, p.2)

Após o fim da guerra, foi apresentado em 29 de agosto o Tratado de Nanquim,


que foi responsável por estipular várias condições, tais como a abertura de
portos para comercialização com estrangeiros, libertação de prisioneiros
britânicos, paz entre chineses e ingleses, além de assegurar o pagamento de
uma indenização devido ao ópio derramado em mar aberto em 1839:

Em 15, chegaram os comissários Kee Ying Elipo, e Gnú, e depois das visitas
de cerimônia, começaram as negociações, as quais terminaram em 29, com a
assignatura do tratado, cujas bases, segundo a circular de Sir II Potinger,
datada do mesmo dia, são as seguintes:

1. Paz e amizade perpétua entre Inglaterra e a China


2. A China pagará vinte e um milhões de pesos em três anos. (DIÁRIO DE
PERNAMBUCO, 13/01/1843, p.1)

No periódico Diário de Pernambuco é possível encontrar notícias que retratam


a relação da China e dos Estados Unidos a partir do tratado 1844. A notícia
intitulada “Mensagem do presidente dos Estados Unidos” da edição 23 de 29
de janeiro de 1858, relata a suspensão do comércio chinês com estrangeiros
estadunidenses causado pelos episódios conflituosos na cidade de Cantão:

Ocorrências recentes com a China foram desfavoráveis a uma revisão do


tratado com aquele império de 3 de julho de 1844; no intuito de garantia e
extensão do nosso comércio. O vigésimo quarto artigo deste tratado estipulo
uma revisão do mesmo, no caso da experiência mostrar ser isto necessário;
(DIARIO DE PERNAMBUCO, 29/01/1858, p.1)

81
Espelhados nos tratados surgidos anteriormente, vários outros países fizeram
acordos com a China, entre eles a França, que chegou a estipular em seu
tratado a permissão da religião católica no território chinês, permitindo a
presença de missionários no país. Com os inúmeros tratados surgidos que
garantiam o comércio chinês com os estrangeiros, as expectativas sobre esse
comércio eram altas. Era esperado que as cinco cidades escolhidas - Cantão,
Fuzhou, Ningbo, Xangai e Xiamen - prosperassem e apresentassem um bom
desenvolvimento (CARNEIRO, 2018).

As Guerras do Ópio foram conflitos que acabaram devastando a China, não só


em questões econômicas, como foi crucial para alimentar o orientalismo, um
discurso racista acerca dos chineses durante o século XIX, fruto do darwinismo
social, que predomina até hoje na sociedade moderna. O Orientalismo surgiu
em meados do século XVIII na Europa como uma forma de estudo sobre o
Oriente e seus atributos, podendo ser considerado uma construção de ideias
de cunho cultural. Entretanto, esse estudo se baseia em ideias construídas a
partir do imaginário oriental idealizado pelos povos ocidentais. O autor Edward
Said, em sua obra denominada “Orientalismo”, define a concepção de Oriente
como “[...] era quase uma invenção européia, e fora desde a antiguidade um
lugar de romance, de seres exóticos, de memórias e paisagens obsessivas e
experiências notáveis” (SAID, 1990, p.13).

Destarte, Edward Said (1990) descreve o orientalismo como um instrumento de


manutenção política europeia, no qual criava uma representação fabulosa dos
países orientais, no qual eram retratados como povos inferiores aos ocidentais.
Dentro dessa perspectiva, também era incluída a China, que apesar de ser
aclamada mundialmente pela sua arquitetura, tecidos e decorações, também
era descrita como um país inferior aos países ocidentais, sendo em aspectos
culturais ou econômicos, esse discurso se intensificou após as Guerras do
Ópio no século XIX.

Esse discurso, um tanto fluido, conseguia se adequar a várias esferas do


conhecimento, desde livros de gêneros literários, panfletos, livros acadêmicos
ou até mesmo jornais. Isso possibilitou que o orientalismo se perpetuasse na
sociedade, de forma que é possível encontrar evidências nos meios de
comunicação que expõe essas falas.

As relações entre Inglaterra e China eram periodicamente usadas como uma


forma de crítica ao imperialismo britânico e à mediação da sua marinha no
comércio, principalmente de escravizados. A notícia retirada da coluna
denominada “Diário de Pernambuco”, na edição 00017 de 22 de janeiro de
1863, é um exemplo deste tema. A China é usada como exemplo em análise
do cenário conflituoso entre Brasil e Inglaterra durante a crise diplomática de
1963. Dentro da notícia, a China é usada como referência, em um comparativo
negativo com o México:

“Não evangelizamos sentimentos de animosidades nacionais, mas em tais


conjunturas preferimos dizer com Francisco I: tudo perdemos, menos a honra;

82
preferimos o México, lutando pela dignidade própria, à China, recebendo
insensível o ópio que lhe mina as forças physicas (sic) e lhe abate o caráter
moral”. (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 22/01/1863, p.1).

A partir dessa notícia se pode perceber que quando se tratava da China, o ópio
era atrelado automaticamente ao país, devido aos acontecimentos anteriores,
juntamente como a Primeira Guerra do Ópio, sendo relacionado de forma
negativa, fortalecendo a ideia de que os opiáceos prejudicava não só o físico,
como também infligiram a moral dos homens. Os chineses eram retratados
como uma população entregue a imoralidade causada pelo ópio e totalmente
passiva, uma vez que aceitaram o comércio livre de ópio proposto pelo Tratado
de Nanquim após a vitória inglesa no ano de 1842.

É possível encontrar em outras notícias como o comunicado do dia 13 de


março de 1841, edição 00058, “Notícias Diversas- As delícias do ópio na
Turquia”, e o do dia 23 de fevereiro de 1846, edição 00044A, “Rio de Janeiro –
Política Geral”, passagens que retratam o uso do ópio como algo destrutivo
para a humanidade, agressivo a integridade física e mental do sujeito, e que
debilitava a sociedade chinesa: “Terríveis são os efeitos do ópio entre os Chins:
contra os princípios de humanidade existe esse comércio mortífero do ópio:
quem o promove? Os Ingleses” (DIÁRIO DE PERNAMBUCO, 13/03/1846, p.2).

Podem ser encontradas outras ocorrências ao longo do jornal que evidenciam


ainda mais a problemática sobre o uso de opiáceos e os chineses. A partir
dessas ocorrências é possível notar a imagem chinesa que foi construída
dentro do território brasileiro durante o século XIX e analisar a forma a qual era
reproduzido pela imprensa local os discursos sobre o assunto, onde a China
frequentemente era relacionada com as questões envolvendo passividade,
vícios e imoralidade.

A preconcepção que a impureza e a dependência a drogas estava entranhável


no sangue chinês e que essas características seriam passadas para qualquer
sujeito que derivasse dessa etnia estava ligada aos discursos racistas, uma vez
que:

“o racismo atribui um único conjunto de traços físicos e/ou mentais reais ou


imaginários a grupos étnicos específicos, com base na crença de que essas
características são transmitidas de geração para geração” (BETHENCOURT,
2018, p. 17).

Apesar dos termos “raça” e “racismo” serem atuais, surgidos entre o fim do
século XIX e início do século XX, juntamente com a teoria das raças, que seria
o fator determinante para o racismo, no século XVI, os missionários jesuítas já
declaravam alguns costumes “bizarros” e certa inferioridade, como citava o
jesuíta Valignano: “Uma característica comum a todos esses povos (e não me
refiro apenas às raças brancas da China e do Japão) é a falta de distinção e de
caráter. Tal como diria Aristóteles, eles nasceram para servir e não para
comandar.” (BETHENCOURT, 2018, apud VALIGNANO, p.214).

83
Apesar do orientalismo e os preconceitos relacionado com os chineses seja
antecedente a eclosão do consumo de ópio e a Guerra do Ópio na China,
esses eventos foram determinantes para alimentar este discurso, uma vez que
a droga se tornou um aspecto comumente atrelado, mesmo erroneamente, aos
chineses, a fim de contribuir para a reafirmação desse discurso que busca
demonstrar a inferioridade dos povos orientais. No entanto, as temáticas
envolvendo a China e as questões raciais e orientalistas no século XIX ainda
são campos poucos explorados e invisibilizados dentro da historiografia, por
mais que sejam uma parte importante da história e que manifestou grande
influência na sociedade, tendo em vista que mesmo após o século XIX alguns
estigmas permanecem e se enraizaram dentro da estrutura social, sendo
presentes até os dias atuais. Por mais que o discurso orientalista esteja
gravado nas mentalidades dos sujeitos atualmente, dado que não é incomum
discursos e termos pejorativos em relação a essa raça e sua cultura,
principalmente ligado a culinária chinesa e alguns costumes que são vistos
como “bizarro” pelos ocidentais, ainda assim as questões raciais envolvendo
chineses ainda são invisibilizadas.

Referências
Lohanna de Lima Tavares é graduanda em História pela Universidade do
Estado do Rio Grande do Norte (UERN). email: lohannatavares@alu.uern.br
Carlos Eduardo Martins Torcato é doutor em História Social pela Universidade
de São Paulo (USP) e professor do Departamento de História, do
PROFHistória e do PPGCISH pela UERN. email: carlostorcato@uern.br

Fontes
China.Diário de Pernambuco, 13/01/1843, p.1.

Diário de Pernambuco. Diário de Pernambuco, 22/01/1863, p. 1–2.

Mensagem do presidente dos Estados Unidos. Diário de Pernambuco,


29/01/1858, p.1.

Notícias Diversas- As delícias do ópio na Turquia. Diário de Pernambuco,


13/03/1846, p.2.

O Commercio de Inglaterra com a China. Diário de Pernambuco, 08/01/1840,


p. 2.

Rio de Janeiro – Política Geral. Diário de Pernambuco, 23/02/1846, p.1-2.

Xarope do Bosque. Diário de Pernambuco, 23/03/1850, p.3.

Outros
BETHENCOURT, Francisco. Racismos: das cruzadas ao século XXI. São
Paulo: Companhia das Letras, 2018.

84
CARNEIRO, Henrique. Amores e sonhos da flora: afrodisíacos e alucinógenos
na botânica e na farmácia. São Paulo: Xamã, 2002.

__________. Drogas: a história do proibicionismo. São Paulo: Autonomia


Literária, 2018.

SAID, Edward W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São


Paulo: Companhia das Letras, 1990.

SPENCE, Jonathan D. Em busca da China moderna. São Paulo: Companhia


das Letras, 1996.

TORCATO, Carlos Eduardo Martins. Uma história das drogas no Brasil.


Mossoró, RN: EDUERN, 2022.

85
A MODERNIDADE EURO-ORIENTAL DE AMIN MAALOUF:
APONTAMENTOS PARA DIÁLOGO por Manoel Adir Kischener
e Everton Marcos Batistela

Introdução
Amin Maalouf (Beirute, 25 de fevereiro de 1949) é um intelectual libanês
radicado na França desde 1976. Retorna ao mercado editorial brasileiro com a
publicação/tradução de novo e polêmico livro: “O naufrágio das civilizações”
(2022). Antes mais conhecido por “As Cruzadas vistas pelos árabes” publicado
nos anos 1980.

Propriamente pelos títulos o leitor já poderá ter certa ideia de que a escrita de
Maalouf caminha mais por uma Filosofia da História no primeiro caso e, uma
História vista de baixo, com temas marginais, por uma nova interpretação da
narrativa histórica, no segundo título, onde, de acordo com Zatta (2009, p. 1,
com acréscimo) o autor “[...] pôde aproveitar a onda de novos estudos acerca
do ‘orientalismo’ trazida com a obra de [Edward] Said”.

O recente livro traduzido para o português de Amin Maalouf também poderá


ser visto como uma escrita de História. Pois, por ele perpassa, seja pela
perspectiva do autor ou com o recurso da memória de seus pais, toda uma
história do século XX, especialmente a da região geográfica e histórica do
Levante (que “[...] se estende desde o Oriente Médio até o sul dos Montes
Tauro, sendo limitada, a oeste, pelo Mediterrâneo; a leste, pelo Deserto da
Arábia setentrional e pela Mesopotâmia”, conforme define a Wikipédia) –
enquanto “[...] um forte modelo de coexistência harmoniosa” (Maalouf, 2022, p.
12) –, cara à narrativa de sentido do escritor, pois descende de lá.

Neste sentido, “O naufrágio das civilizações” é um texto sensível e instigante,


que mexe no vespeiro do que seja a Modernidade, do que ela foi, do que
representa como promessa ou até mesmo ensaio pois ainda poderia se
desenvolver mais na visão do autor, especialmente na região citada do
Levante. A Modernidade é formadora, e atinge a todos. no entanto, a inicial,
enquanto projeto, é prenhe de europeidade, de valores ditos ocidentais tendo o
continente europeu o centro e, ao mesmo tempo, o umbigo do mundo. É a
partir da Europa que tudo gravita.

Assim, escritas como a de Maalouf são indispensáveis para reeducar o olhar


enquanto viventes do tempo presente; sabe-se de uma Modernidade-comum,
mas com temporalidades diversas (leia-se a melhor para poucos, a terrível/ou a
fechada para muitos, principalmente no impedimento aos acessos básicos à
vida em cidadania em um mundo globalizado.

86
Destarte, contribui sobremaneira à História ensinada por cumprir requisitos, por
lançar mão de olhares históricos, leia-se pontos de vista/de narrativa diversos
do convencional, daquilo que consta nos livros didáticos que a maioria dos
professores da Educação Básica acessa, ou mesmo do expõe a grande mídia,
na quase ojeriza ao árabe (na diversidade dos povos). É um outro árabe que
aparece e ganha protagonismo, mesmo nas derrotas, que abrolha na narrativa
de Amin Maalouf.

Pois, de acordo com Dias (2009, p. 19) “[...] Maalouf reequaciona também a
História e os padrões que têm vindo a modelar a sociedade a partir de outros
ângulos de visão, isto é, a partir de perspectivas que não foram as privilegiadas
na perpetuação de alguns factos históricos”, que, talvez o autor, porte-se, de
acordo com outro autor, como “[...] o historiador de perspectivas inusitadas e o
embaixador dos imigrantes” (Kettani, 2012, p. 180, traduzido).

No entanto, seu novo livro é de uma escrita moral. Como que a pressagiar o
naufrágio do título e, por vezes, no que se depreende, a reproduzir (passa a
impressão de certo saudosismo) o tellus europeu, como no trecho (Maalouf,
2022, p. 202): “[...] não posso negar que sou tomado, hoje, por certa desilusão.
Esperava outra cosia de meu continente de adoção: que oferecesse à
humanidade inteira uma bússola; que a ajudasse a não perder o rumo”.

É, desta forma, uma escrita de cobrança do papel da Europa enquanto sentido


e guia modernizador e, a partir da ação de alguns personagens históricos em
interação com a região do Levante, o tom de denúncia, dos desacertos, dos
atos que ajudaram a desestabilizar a região.

Por outro lado, em uma entrevista o autor revê esta postura e reconhece “[...] a
ausência de liderança. Não acho que os EUA ofereceram um exemplo de
liderança moral nos últimos anos. Ainda há o elemento da democracia, mas a
credibilidade não está lá. E a Europa não está tendo esse papel. Ela não teve
capacidade e poder para exercer esse papel. Então, ninguém o exerce”
(Maalouf, 2020, s./p.). O mundo estaria assim, sem um guia moral, pois perdeu
o leme.

Isto exposto e, unindo-se e ao mesmo tempo em discordância, Del Roio (1998,


p. 9) expõe que “Atualmente a ideologia [...] império universal do Ocidente
atende pelo nome de ‘globalização’”, de onde entende-se que as influências
múltiplas desde a Europa e seu congênere Estados Unidos espraiam-se mundo
afora, no mais das vezes sem a devida contestação histórica. Disso exposto,
infere-se a questão-problema: qual será a visão de Modernidade de Amin
Maalouf e em que sentido ela poderá contribuir ao ensino de História?

A modernidade de Amin Maalouf e seus limites


A Modernidade é tema caro aos estudos de Amin Maalouf. Na sua primeira
obra traduzida no Brasil, o autor questiona: “Seria preciso, ao contrário,

87
enredar-se resolutamente pela via da modernização correndo o risco de perder
a própria identidade?” (Maalouf, 2007, p. 244).

É o mesmo dilema-desafio posto às periferias ou franjas do mundo


propriamente capitalista ou mesmo nas suas expressões de penetração ou
formas invisíveis, não obstante as da/na fronteira, aquelas que mantém o
sistema-mundo do “[...] povo da mercadoria” tal como define Davi Kopenawa
(Kopenawa e Albert, 2023, p. 407, ênfase acrescida).

Será neste mundo confuso em sua geografia de sentido e de temporalidades


históricas múltiplas em convívio e em embate, de “[...] extraterritorialidade, da
qual os ocidentais se beneficiaram” (Maalouf, 2022, p. 49, traduzido), que os
outros mundos deverão se reinventar, com as condições que a própria
Modernidade oferece?

É o repto que permanece, pois como o próprio autor responde, na obra


recente, “Antigamente, os homens tinham a impressão de que eram criaturas
efêmeras num mundo imutável” (Maalouf, 2022, p. 11) e na atualidade, inverte-
se, pois “[...] o nacional não existe mais; só há o local e mundial” (apud Viveiros
de Castro, 2023, p. 17)? Talvez, até por isso, se impõe a necessidade de
defesa de um “manifesto convivialista” (Caillé et al, 2013).

Mas, conviver com todos? Até com os arautos dos ditames da Modernidade,
especialmente aquela inacabada ou que chega ao resto do mundo enquanto
fábula (Santos, 2010)? A Modernidade inventa o outro, apressadamente
definido como o não moderno.

Neste sentido, modernos ou não, compartilhando o mesmo planeta, será


preciso exercitar o compreender outros como defende LaCapra, (2023)? Mas
assim sendo, será possível concordar com o encaminhamento/a cobrança
inserida na questão de Karegeye (2015, p. 146, traduzido): “Onde, então,
devemos situar o etnocentrismo, o hegemonismo e o imperialismo senão do
lado de ‘nós’ que exclui ‘Eles/Eles/Eles’?”?

Para Amin Maalouf sim, mas de forma conciliatória e permeada pela questão
da identidade. E nisso a perspectiva, recorrente no livro recente, do retorno ao
Levante histórico, busca uma resposta, ou quiçá uma ideologia, um guia, pois
lá reuniam-se, segundo ele, “[...] várias comunidades de diferentes
sensibilidades”, onde um “[...] ‘arcaísmo’ trazia em si, apesar das aparências,
promessas de uma verdadeira modernidade” (Maalouf, 2022, p. 46 e 63).

Mas o que constitui e/ou mantém a Modernidade? Uma tríade, ao se levar em


conta o que guia a preocupação de Maalouf: o Marxismo, o Liberalismo e os
arranjos que estes dois sistemas podem (ou puderam, nas suas várias
tentativas, do Socialismo real, ao capitalismo singular da atual China ou mesmo
o Estado de bem-estar social da era de ouro do pós II Guerra Mundial
conseguiram) dar ao capitalismo.

88
E é sob a égide do olhar de partícipe, de nascido no Líbano e radicado há anos
na França, então, da crítica árabe e da influência europeia, especialmente a
francesa, que se constitui a noção de Modernidade de Amin Maalouf; então,
aqui definida como uma Modernidade euro-oriental.

Mas não sem a devida crítica do autor à esta Modernidade mais europeia: em
outra obra, pois “A verdadeira questão não é se estamos lidando com um
conflito entre antigo e moderno, mas por que, no curso da história humana, a
modernidade é às vezes rejeitada: por que ela nem sempre é vista como
progresso e como um desenvolvimento bem-vindo” (Maalouf, 2000, p. 43,
traduzido).

Trata então Amin Maalouf das permanências do tradicional, visto às vezes


depreciativamente como antigo em convívio e, de certa forma de troca, com o
dito moderno?

Das temporalidades históricas a que José de Souza Martins expõe na


sociedade brasileira dos tempos de apologia de uma agricultura exportadora
feita sem pessoas, de vazios rurais e balança comercial cheia, bancada
basicamente por máquinas de precisão, que, ao contrário, mais aponta para a
permanência de uma história lenta e contraditória, de silenciamentos do
homem simples, tal como exposto em Kischener (2021)?

Será então, a melhor das adaptações possíveis da Modernidade ao considerar


as condições do local, mesmo que este local já está embretado pelo mundial,
como exposto antes? Deveria ser, de acordo com o autor “[...] uma
modernidade completa livremente concedida, não uma modernidade
eviscerada imposta pela força” (Maalouf, 2000, p. 91, traduzido).

Que é aquela mesma Modernidade compulsória que, por vezes é ressaltada


em um lado só na História. Como é o caso emblemático da personagem
inglesa de Winston Churchill (1874-1965), ícone e herói do mundo (?) dada a
sua atuação da II Guerra Mundial?

Para Maalouf, não. Pois o autor revela uma dúbia faceta na ação churchilliana,
pois “Churchill em pessoa se dedicou a derrubar o governo do doutor
Mossadegh [Mohammed Mossadegh, 1880-1967], um democrata cujo único
crime fora o de reivindicar para seu povo uma parte maior nas receitas
petrolíferas [em 1952 no Irã]” (Maalouf, 2022, p. 37-38, com acréscimo).

Por esta e outras ações na região do Levante, de acordo com o autor foi por
terra o ensaio melhor de convivência existente, pois “[...] no Egito, Churchill
favoreceu a emergência do nacionalismo árabe na sua versão autoritária e
xenófoba”, e no Irã, “[...] pavimentou a via ao Islamismo khomeinista” (Maalouf,
2022, p. 38).

89
Assim o modelo de convivência ideal ruiu, o Levante histórico já referenciado,
depois acentuado na derrota do símbolo da resistência árabe, o general Gamal
Abdel Nasser (1918-1970) em 1967, do Egito para Israel.

Sobre uma das tríades, o Marxismo, Amin Maalouf afirma que “Sua falência foi
catastrófica, na proporção de seus erros, e facilitou o mergulho do mundo na
ruína que presenciamos hoje” (Maalouf, 2022, p. 75), especialmente quando o
autor revela a situação do Levante histórico, descrente de um modelo de
democracia, após ter tentado, em vários locais/oportunidades, com o
Socialismo real, e ter caído, na atualidade, aos pés da intolerância religiosa.

Mas, também o Marxismo pode ser visto como “[...] a memória da ‘normalidade’
do mundo árabe, destacando que este foi, por muito tempo, tocado pelos
mesmos sonhos e pelas mesmas ilusões que o restante do planeta cultivou”,
alimentados pelo que os ideais marxianos de contestação e crítica ao
capitalismo propagaram, especialmente a defesa das minorias, pois “[...] não foi
somente aos proletários que Marx prometeu [...] a salvação” (Maalouf, 2022, p.
83 e 78).

Enfim, é sob a áurea do Levante histórico, da crítica à intolerância religiosa, da


verificação dos acertos e erros das apostas do passado, da defesa das
identidades culturais que pode-se propagar que a Modernidade é “[...] um
modelo em crise, incapaz de resolver os problemas da pobreza nas suas
próprias cidades, incapaz de atacar o desemprego, a delinquência, a droga e
tantos outros flagelos” (Maalouf, 2000, p. 89, traduzido) comuns a este tempo.

E por si só discuti-la, faz pensar que mudar ou moldá-la, adaptada ao local,


com as características do mundial, será possível, é o grande ensinamento de
Amin Maalouf expõe.

Considerações finais
Por fim, a partir do exposto, causa certa melancolia a ausência de sintonia da
obra de Amin Maalouf com a perspectiva decolonial, por exemplo desde os
autores e/ou modelos demonstrados por Gonzaga (2022), a dar rumo e a evitar
o possível naufrágio alegado pelo escritor, pois ao se dividir o mesmo barco,
pelo menos as opiniões/sugestões deveriam vir de todos os pontos cardeais, a
fazer ver base sólida para enfrentamento.

Mas talvez este não era o intento do autor como sugerem Bouvet e Kettani
(2014, p. 1, traduzido), pois de acordo com eles, Maalouf “Reivindica
reiteradamente este papel de mediador entre o Oriente e o Ocidente, prega um
mundo de multiculturalismo e identidade múltipla”, o que pode parecer um
limite de alcance de sua obra, pois também pesa a influência mais europeia na
constituição de sua Modernidade euro-oriental.

Quanto ao papel de mediador, o faz considerando, provável, a linha de defesa


do Islamismo enquanto tradição de matriz sunita, como assevera a boa
tradição de Al Ghazzalli (1058-1111), que Bannerth (1977, p. 216) comenta que

90
“[...] o homem permanece no meio do ser criado, devendo recusar toda
diferença de sexo, raça ou espoliação econômica, conforme o versículo do
Alcorão: ‘Há de formar-se a partir de vocês uma comunidade de pessoas que
proclama o bem’ (3, v. 104)”.

E que a máxima de Amin Maalouf, em evento como este, se dissemine, como o


próprio define: “Não podemos dizer que a história nos ensina isto ou aquilo, ela
dá-nos mais questões do que respostas, e muitas respostas para cada
questão” (apud Alves, 2013, p. 41). Nisso, com certeza, a escrita maaloufiana
contribui, e muito.

Para arrematar uma última e, em espécie de conclame ao diálogo: “Ninguém


mais a bordo do navio dos homens pode ignorar os icebergs em sua rota, e a
necessidade, custe o que custar, de evitá-los” (Maalouf, 2022, p. 253) e, estes
estão por toda parte, seja na intolerância, na pobreza e desigualdades
sociais/econômicas, nas narrativas de pensamento único (em que Amin se
afasta e apresenta ao leitor uma outra história árabe) etc. todos prenhes dos
descompassos e das diferentes temporalidades históricas de uma Modernidade
no mínimo inconclusa.

O que fazer?

Referências
Manoel Adir Kischener é historiador, doutor em História pela Universidade
Estadual de Maringá (UEM) e professor contratado de Educação Básica na
Escola Estadual Marquês de Caravelas, Carazinho - RS.

Everton Marcos Batistela é filósofo, doutor em Sociologia e professor da


Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), campus Dois Vizinhos.

ALVES, Marta M. Política, humanidade, diversidade. A propósito do


pensamento de Amin Maalouf. Évora: Universidade de Évora, 2013 (Mestrado
em Relações Internacionais e Estudos Europeus).

BANNERTH, Ernest. O homem no Islamismo. Trad. Carlos L. de Mattos e


Carlos A. L. Caldenhof. In: GADAMER, Hans-Georg; VOGLER, Paul (Orgs.).
Nova antropologia: o homem em sua existência biológica, social e cultural. São
Paulo: EPU/EDUSP, 1977, p. 193-217.

BOUVET, Rachel; KETTANI, Soundouss El. Introduction. In: BOUVET, Rachel;


KETTANI, Soundouss El (Dircs.). Amin Maalouf: une oeuvre à revisiter.
Québec: Presses de L’Université du Québec, 2014, p. 1-8.

CAILLÉ, Alain et al. Manifesto Convivialista: declaração de interdependência.


S./Trad. São Paulo: Annablume, 2016.

DEL ROIO, Marcos T. O império universal e seus antípodas: a ocidentalização


do mundo. São Paulo: Ícone, 1998.

91
DIAS, Maria J. C. Amin Maalouf: a Literatura como mediação entre Oriente e
Ocidente. Porto: Universidade do Porto, 2009 (Mestrado em Estudos Literários,
Culturais e Interartes).

GONZAGA, Alvaro de A. Decolonialismo indígena. 2ª ed. São Paulo: Matrioska


Editora, 2022.

KAREGEYE, Jean-Pierre. L’individu social et les promesses du “nous”.


Présence Africaine, Paris, n. 192, v. 2, p. 139-157, 2015.

KETTANI, Soundouss El. “Origines” ou la fabrique romanesque d’Amin


Maalouf. Nouvelles Études Francophones, Lincoln, vol. 27, n. 1, p. 180-193,
printemps 2012.

KISCHENER, Manoel A. Marxismo, modernidade e cotidiano em José de


Souza Martins: as temporalidades da História em descompasso. Maringá:
UEM, 2021 (Doutorado em História).

KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamá


yanomami. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. 1ª ed., 17ª reimpr. São Paulo:
Companhia das Letras, 2023.

LACAPRA, Dominick. Compreender outros: povos, animais, passados. Trad.


Luis R. Gil. Belo Horizonte: Autêntica, 2023.

MAALOUF, Amin. O naufrágio das civilizações. Trad. Arnaldo Bloch. 3ª reimpr.


São Paulo: Vestígio, 2022.

MAALOUF. Amin. Amin Maalouf: “O mundo está sem uma bússola moral”.
Entrevista a Paulo Beraldo. Estadão, São Paulo, 06/12/2020. Disponível em:
https://www.estadao.com.br/internacional/amin-maalouf-o-mundo-esta-sem-
uma-bussola-moral/ acesso em 11/07/2023.

MAALOUF, Amin. As Cruzadas vistas pelos árabes. Trad. Pauline Alphene e


Rogério Muoio. 4ª ed., 3ª reimpr. São Paulo: Editora Brasiliense, 2007.

MAALOUF, Amin. In the name of identity: violence and the need to belong.
Trad. de Barbara Bray. New York: Penguin Books, 2000.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à


consciência universal. 19ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2010.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Prefácio: O recado da mata. In:


KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamá
yanomami. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. 1ª ed., 17ª reimpr. São Paulo:
Companhia das Letras, 2023, p. 11-41.

92
ZATTA, Angela. O espelho do outro: As Cruzadas vistas pelos árabes. Revista
Tempos Acadêmicos, Criciúma, v. 1, p. 1-5, 2009.

93
A DIÁSPORA COREANA NO JAPÃO: APONTAMENTOS NA
OBRA LITERÁRIA PACHINKO, DE MIN JIN LEE , por Maria
Gabriela Moreira e Nayla Lumy de Andrade Kuroki

O presente artigo tem como propósito a exposição de relevantes questões


diaspóricas concernentes aos sujeitos coreanos residentes no Japão, em
consonância com a narrativa literária de Pachinko, da escritora Min Jin Lee.
Cumpre destacar que não se almeja, tampouco dispõe-se do espaço
necessário, para exaurir a discussão entre o conhecimento histórico e a trama
do livro, mas sim instaurar o campo para reflexões mais aprofundadas. Nesse
sentido, optou-se, primeiramente, por uma breve elucidação acerca da referida
ficção histórica, com o intuito de enfatizar certos aspectos inerentes à obra,
interligando-os à própria análise histórica e social. A diáspora, como veremos,
não é um fenômeno simples, tem laços estreitos com a individualidade dos
sujeitos diaspóricos, condicionando tanto comportamentos quanto identidades.

Apresentaremos, de forma concisa, a história de Pachinko. Apesar dos


inúmeros personagens que a obra nos leva a conhecer, a figura central é
Sunja, o fio condutor entre as várias gerações que são abordadas. Ela é a filha
de um pescador aleijado e uma mãe dedicada que possuem uma pequena
estalagem em Yeongdo, um distrito de Busan. O enredo inicia-se em território
coreano, em 1910, quando o Japão anexou a Coreia. Ainda adolescente, Sunja
se apaixona por Hansu, um coreano muito rico que tem negócios na cidade.
Quando ela descobre que está grávida - e que seu amante é casado - ela se
recusa a ser comprada pelos planos de Hansu. Em vez disso, ela aceita uma
oferta de casamento de um ministro gentil que estava se hospedando com ela
e a mãe, durante uma pausa no caminho dele para o Japão. Após a decisão de
abandonar sua casa e ir viver com o marido em Osaka, a trama desencadeia
uma saga dramática que ecoa através das gerações.

Nos agradecimentos presentes ao término da obra, a autora compartilha


conosco um pouco de sua trajetória de vida e sua experiência como escritora,
revelando que somente ao se estabelecer em Tóquio e entrar em contato com
a comunidade coreana residente ali é que ela efetivamente encontrou
inspiração para a criação de Pachinko. A partir das diversas entrevistas
realizadas com membros dessa população, a autora pôde compreender que,
embora tenham sido vítimas de acontecimentos históricos adversos, cada um
deles transcendia essa condição singular. Ela diz ter ficado comovida com a
envergadura e a complexidade das pessoas que conheceu. Acreditamos que a
habilidade da autora em compartilhar brilhantemente essas vivências através
da narrativa literária, efetivamente condensa a intrincada conjuntura das
gerações de coreanos diaspóricos vivendo em solo japonês.

94
A história de sobrevivência retratada na obra ressoa profundamente sobre a
essência da humanidade e identidade, aspectos cruciais quando abordamos o
tema da diáspora, constituindo, assim, um relevante objeto de discussão no
contexto desta análise. Sob o olhar atento da história, Pachinko pode vir a ser
uma leitura extremamente útil para adentrar nas sensibilidades e memórias que
um tema como este carrega em seu conteúdo. Neste sentido, encontramos na
literatura, um campo que se constitui a partir do complexo espaço social e
cultural, e que, portanto, se apresenta como uma configuração lírica da
realidade. Sua análise, ainda que permeada pelo debate entre a narrativa
histórica e literária, se constrói como uma leitura possível no resgate da
memória e da história. O historiador Valdeci Rezende Borges propõe que: “[…]
a literatura, seja ela expressa nos gêneros crônica, conto ou romance,
apresenta-se como uma configuração poética do real, que também agrega o
imaginado, impondo-se como uma categoria de fonte especial para a história
cultural de uma sociedade.” [BORGES, 2010, p.108]

A história cultural, que dentro de suas vertentes se inclina sobre diversos


gêneros textuais para a construção de sua escrita, enfatiza o resgate das
memórias coletivas e individuais em sua produção [SANTOS, 2007, p. 119], e é
a partir da experiência histórica pessoal que também se faz possível a criação
literária. Entre outras questões, a história cultural tem se esforçado na busca
pela sensibilidade no passado e pelas práticas culturais do sensível, essas
encontradas muitas vezes nos arquivos das artes e literatura. Sob esse
aspecto, a historiadora Sandra Pesavento propõe que:

“A sensibilidade revela a presença do eu como agente e matriz das sensações


e sentimentos. Ela começa no indivíduo que, pela reação do sentir, expõe o
seu íntimo. Nesta medida, a leitura das sensibilidades é uma espécie de leitura
da alma. Mas, mesmo sendo um processo individual, brotado como uma
experiência única, a sensibilidade não é, a rigor, intransferível. Ela pode ser
também compartilhada, uma vez que é, sempre, social e histórica.”
[PESAVENTO, 2007, p. 13-14]

A produção literária pode então ser posta como uma alternativa para a
representação histórica e social, que permeada de sensibilidade, auxilia na
reconstrução da memória coletiva e individual. Ela é em si a testemunha de sua
época e um produto sociocultural que representa as experiências humanas do
seu tempo histórico [BORGES, 2010, p.98]. E justamente é dentro do entrelaço
da história e da literatura que se constitui Pachinko.

A primeira frase do capítulo inaugural da obra de Min Jin Lee é apresentada


como: "A história falhou conosco, mas não importa" [LEE, cap. 1, livro 1]. A
partir desta colocação, interpretações diversas podem ser feitas. Aqui,
estabeleceremos uma conexão com as observações de Sonya Ryang em
relação ao apagamento das histórias de coreanos e outros ex súditos coloniais.
A mencionada historiadora argumenta que o Japão emergiu do período pós-45
como vítima da violência extrema perpetrada pelas forças aliadas. Nesse

95
contexto, uma consciência japonesa de vitimização frente aos eventos
derradeiros da Segunda Guerra Mundial foi desenvolvida, ao passo que os ex-
colonizados acabaram sendo relegados ao esquecimento. Tal processo de
apagamento histórico foi alcançado primordialmente por meio de um programa
de invisibilidade sistematicamente imposto, especialmente através da
revogação da cidadania japonesa de todos os coreanos residentes no Japão
em 1952 [RYANG, 2009, p. 63]

Em contexto amplo, o mundo durante e após as duas grandes guerras


mundiais, deixaram muitas populações em situação de violência, insegurança e
crises. O século XX é um século de grandes convulsões históricas. Ryang não
localiza a origem da diáspora coreana nos anos de colonização japonesa
(1910-1945), uma vez que durante esse período muitos coreanos migraram
entre os territórios em busca de melhores oportunidades de trabalho. O cenário
passa por uma transformação radical com a divisão artificial das duas Coreias,
a Coreia do Norte e a Coreia do Sul, ocorrida durante a Guerra da Coreia. A
partir desse marco histórico, uma parcela significativa da população coreana foi
confinada no arquipélago japonês. Ela ressalta que uma data precisa, de
qualquer forma, não poderia marcar o início de uma diáspora, visto que esta
depende do fator da consciência diaspórica daqueles que deixaram sua pátria,
não somente de um simples abandono físico da terra natal [RYANG, 2009, p.
4]. Dessa forma, faz-se sentir a complexidade deste fenômeno.

Pachinko apresenta algumas cenas que denotam a situação de extrema


penúria enfrentada pelos coreanos em terras japonesas. A descrição do bairro
em que eles residiam, caracterizado como uma espécie de vilarejo caótico,
composto por casas minúsculas, precárias e desiguais, situado em uma
vizinhança suja e malcheirosa. Em determinado trecho, é dito: "este lugar é
adequado apenas para porcos e coreanos". Outras duas sentenças presentes
no livro evidenciam a condição de inferioridade sofrida: “Os japoneses acham
que os coreanos são sujos, mas eles não têm escolha a não ser viver na
imundície” [LEE, cap. 14, livro 1]; “Viver todos os dias na presença daqueles
que se recusam a reconhecer sua humanidade exige muita coragem” [LEE,
cap. 5, livro 2]. A diáspora é então vivenciada como uma forma de vida, uma
vez que indivíduos desprovidos de uma pátria encontram-se constantemente
em situação de insegurança; se a morte não está iminente, ao menos é a
percepção que prevalece [KIM, 2017, p. 15].

Mark E. Caprio e Yu Jia demonstraram como as políticas e interesses


internacionais, principalmente dos Estados Unidos, interferiram na repatriação
dos coreanos após a libertação coreana do domínio colonial japonês. Na
exposição dos autores, eles fazem a análise de um relatório, produzido pelo
Escritório de Serviços Estratégicos (mais tarde a CIA), o “Aliens in Japan”, que
imitou muitos dos estereótipos negativos usados pelos japoneses para julgar a
anexação da Coreia em 1910 por seu país, bem como sua administração
contínua da península coreana. Nesse relatório, encontramos esta mesma
inferiorização do povo coreano que Pachinko buscou demonstrar. O relatório
listou duas razões para separação entre japoneses e coreanos, sem

96
possibilidades de assimilação entre eles: primeiro, os japoneses
desencorajaram a integração coreana e, segundo, como conta o relatório, os
coreanos estabelecidos no Japão eram muito pobres, não tinham instrução,
tampouco eram qualificados, ou seja, muito inferiores aos japoneses. Diz ainda
que eles pareciam ser “lentos e preguiçosos”, e não eram tão conscientes da
limpeza quanto os japoneses [CAPRIO; JIA, 2009, p. 27].

Norbert Elias e John Scotson, em uma análise brilhante dos estabelecidos e


dos forasteiros de uma cidade, entende a referida condição de inferioridade
como uma estratégia para realçar a suposta superioridade do outro, neste
caso, dos japoneses. Eles colocam que:

“… os sintomas de inferioridade humana que os grupos estabelecidos muito


poderosos mais tendem a identificar nos grupos outsiders de baixo poder e que
servem a seus membros como justificação de seus status elevado e prova de
seu valor superior costumam ser gerados nos membros do grupo inferior -
inferior em termos de sua relação de forças - pelas proprias condicoes de sua
posição de outsiders e pela humilhação e opressão que lhe são concomitantes
(…). A pobreza - o baixo padrão de vida - é um deles” [ELIAS, 2000, p. 28]

Identidades diaspóricas
Stuart Hall expõe duas perspectivas de identidade cultural. Valendo-nos de
conceitos históricos, diríamos que a primeira delas pode ser caracterizada
como uma identidade totalizante, na qual a visão macro é privilegiada. Já a
segunda abordagem da identidade cultural enfatiza as diferenças, as rupturas e
descontinuidades. Segundo Hall, a primeira categoria concebe a identidade
cultural “em termos de uma cultura compartilhada, uma espécie de ‘um
verdadeiro eu’ coletivo, escondido dentro de muitos outros ‘eus’, mais
superficiais ou artificialmente impostos, que pessoas com uma história e
ascendência compartilhadas têm em comum” [HALL, 1990, p. 223]. Para o
autor, essa concepção de identidade cultural desempenhou um papel crítico
em todas as lutas pós-coloniais, uma vez que, apesar dos rasgos ensaiados ao
longo da história, ainda é possível chegar a um lugar comum.

Myung Ja Kim ao investigar a trajetória da construção do processo diaspórico e


sua tendência de afastar-se consideravelmente da entidade cultural original,
aproxima-se da perspectiva da segunda identidade cultural apresentada por
Stuart Hall. Enquanto o primeiro eixo enfatiza a origem comum e um senso de
continuidade, o segundo eixo, que Kim explora, revela uma profunda
irregularidade. Nesse contexto, a identidade mostra-se inconstante, sem
fixidez, uma vez que as circunstâncias redefinem seus limites. Kim chega a
conclusão de que essas identidades diaspóricas estão se tornando
significantes [KIM, 2017, p. 26]. Neste segundo caminho, Hall conceitua a
identidade cultural enquanto:

“uma questão de 'tornar-se', bem como de 'ser'. Pertence ao futuro tanto


quanto ao passado. Não é algo que já existe, transcendendo o lugar, o tempo,
a história e a cultura. As identidades culturais vêm de algum lugar, têm

97
histórias. Mas, como tudo o que é histórico, elas passam por uma
transformação constante. Longe de serem eternamente fixados em algum
passado essencializado, elas estão sujeitas ao contínuo 'jogo' da história,
cultura e poder” [HALL, 1990, p. 225, tradução nossa]

Em Pachinko, acompanhamos três gerações de coreanos no Japão, primeiro


Sunja, depois seus filhos e os filhos deles. A questão geracional desempenha
um papel significativo na formação das identidades diaspóricas. Sonya Ryang
divide a diáspora em dois modelos distintos: o "clássico" e os "estudos
culturais". No modelo clássico, ocorre um deslocamento forçado da pátria em
decorrência de perseguição étnica, acompanhado por um forte sentimento de
pertencimento. Nesse cenário clássico, como exemplificado pelos judeus, a
experiência diaspórica frequentemente culmina em politização e coletividade.
Por outro lado, no modelo dos "estudos culturais", observa-se uma constante
insegurança de vida e crises de identidade. A autora destaca que a primeira
geração pode se encaixar na forma diaspórica clássica, visto que foi deslocada
de suas raízes familiares para o país que colonizou sua pátria e,
posteriormente, com a divisão das Coreias, o retorno se torna complicado. No
entanto, para as gerações seguintes, nascidas no Japão, surge uma situação
complexa: “eles são estrangeiros em uma terra natal que poderia se tornar sua
referência cultural e prática, mas não sua verdadeira terra natal ou pátria.”
[RYANG, 2009, p. 3, tradução nossa].

A construção de si, enquanto indivíduo, será marcado por esta dupla referência
na vida de alguém que pertence a uma segunda, terceira geração diaspórica.
Essa identidade apresenta-se em um estado de convulsão, caracterizando o
modelo de sujeito diaspórico categorizado nos "estudos culturais" de Sonya
Ryang. Myung Ja Kim compreende que os coreanos remanescentes no Japão
muitas vezes assumem formas de nome japoneses ou usam pseudônimos
japoneses, permitindo que eles se misturem com os japoneses na vida
cotidiana, mas percebem que sua identidade ambígua mascara uma
desvantagem subjacente em termos de suas próprias vidas sociais [KIM, 2017,
p. 2].

A escritora Min Jin Lee criou personagens diaspóricos que enfrentam


complexas crises identitárias, abrangendo aspectos de classe, cultura, etnia e
preconceitos. Através desses personagens e da narrativa literária elaborada,
temos a oportunidade de adentrar em um mundo marcado por sensibilidades
históricas. Concluímos que:

“Pachinko é uma bela história das dificuldades dos imigrantes em terras


estrangeiras […]. Os coreanos sofreram com a discriminação que todos os
imigrantes enfrentam, além de uma dimensão adicional que vem de terem sido
sujeitos coloniais. Não está perdido para o leitor que, embora o jogo de salão
pachinko seja o negócio da família, também pode ser visto como uma metáfora
para a vida dos próprios personagens. Eles serão engajados em conflitos no
mundo ao nascer, e colidirão contra um lado do jogo e acertarão outro.” [MALI,
2019, p. 8, tradução nossa]

98
Referências
Maria Gabriela Moreira possui graduação em História pela Universidade
Estadual de Maringá. Atualmente cursa o mestrado no Programa de Pós-
Graduação em História na Universidade Estadual de Maringá, sendo membro
do Laboratório de Estudos Medievais [LEM]
Nayla Lumy de Andrade Kuroki é graduanda em História pela Universidade
Estadual de Londrina.

BORGES, Valdeci Rezende. História e literatura: algumas considerações. rth|,


v. 3, n. 1, p. 94-109, 2010.

CAPRIO, Mark E.; JIA, Yu. Occupation of Korea and Japan and the origins of
the korean diaspora in Japan. In: RYANG, Sonia; LIE, John. Diaspora without
Homeland: Being Korean in Japan. California: University of California Press,
2009, p. 22-38.

DOS SANTOS, Zeloí Aparecida Martins. História e literatura: uma relação


possível. Revista Científica/FAP, v. 2, n. 1, 2007.

ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders:


sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000.

HALL, Stuart. Cultural Identity and Diaspora. In: J. Rutherford (Ed.), Identity:
Community, Culture, Difference. London: Lawrence & Wishart, 1990, p. 222-
237

PESAVENTO, Sandra. Sensibilidades: escrita e leitura da alma. In:


PESAVENTO, Sandra; LANGUE, Frédérique. Sensibilidades na história:
memórias singulares e identidades sociais. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2007.

KIM, Myung Ja. The Korean Diaspora in Postwar Japan: geopolitics, identity
and nation-building. 2017.

LEE, Min Jin. Pachinko. Rio de Janeiro: Intrínseca. Ed. digital, 2020.

MALI, Dev Singh. Immigrants’ Sense of Dislocation and Identity Crisis in Min Jin
Lee’s Pachinko. Kirtipur: Central Departmental of English, 2019.

RYANG, Sonia. Introduction. Between the nations: diaspora and koreans in


Japan. In: RYANG, Sonia; LIE, John. Diaspora without Homeland: Being
Korean in Japan. California: University of California Press, 2009, p. 1-21.

99
LAFCADIO HEARN E A REESCRITA DO ROMANCE DA
LANTERNA DE PEÔNIA, EM “A PASSIONAL KARMA”, por
Maria Silvia Duarte Guimarães

Lafcadio Hearn foi um escritor que viveu no Japão, dedicando grande parte de
seus livros ao país. Nascido em 1850 na Grécia, mas criado na Irlanda, Hearn
se mudou para os Estados Unidos ainda jovem, onde começou sua carreira
como jornalista. Ele passou por Cincinnati, Nova Orleans e pela Martinica antes
de aceitar uma oferta da Harper’s Weekly e se mudar para o Extremo Oriente.

O escritor chegou ao Japão em 1890, algumas décadas após a Restauração


Meiji tirar o país do isolamento político proporcionado pelo Xogunato
Tokugawa. O trabalho de Hearn consistia em escrever artigos que
descrevessem o Japão para o leitor ocidental e, mesmo que tenha se
desvinculado da Harper’s Weekly rapidamente, devido a conflitos de interesse,
ele continuou a exercer a função de “intérprete do Japão” até o fim de sua vida.

Contos, ensaios, artigos e coletâneas. Hearn escreveu extensivamente sobre a


cultura, os costumes e, principalmente, sobre o folclore japonês. Seu livro mais
famoso é Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things, uma coletânea de
narrativas cujo foco é o sobrenatural, como fantasmas, reencarnações e yokai,
isto é, seres fantásticos japoneses. Além disso, ao final do livro há uma seção
separada que inclui três ensaios sobre insetos: borboletas, pernilongos e
formigas.

Além de Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things, também podem ser
destacadas In Ghostly Japan e Glimpses of Unfamiliar Japan, coletâneas de
natureza similar à primeira. Em uma nota introdutória a Kwaidan, Hearn afirma
que seus contos são traduções de narrativas que encontrou em antigos livros
japoneses, ou transcrições de relatos que ouviu de contadores de histórias.
Segundo Michael Dylan Foster, em The Book of Yokai, porém, os textos de
Hearn não podem ser considerados simplesmente traduções ou transcrições
de narrativas que já existiam, mas trata-se de uma reescrita destas. Foster
afirma:

Hearn probably never mastered Japanese well enough to collect and translate
these tales by himself. In his early years in the country, he relied on a translator
or his wife to collect stories orally, and in the later years he would carefully work
through written texts, retelling them in his clear English prose. While his
interests tended toward local legends, folktales, and beliefs, ultimately Hearn
was not an ethnographer but a creative writer; his objective was not to

100
scientifically record narratives but to recreate them in a literary format. [Foster,
2015, p. 57]

Segundo Foster, então, Hearn não era completamente fluente em japonês e,


por isso, frequentemente recorria a ajuda de tradutores para compor suas
narrativas. Isso confere à sua obra um traço singular, uma vez que acentua o
caráter de reescrita de suas histórias. Em muitos de seus textos, o escritor
acrescenta detalhes sobre como ouviu ou onde leu a narrativa pela primeira
vez, podendo também comentar a sua opinião sobre as personagens ou sobre
os fatos descritos.

No ensaio “O narrador”, Walter Benjamin afirma que a arte de narrar é “uma


forma artesanal de comunicação”, [Benjamin, 2012, p. 221] e não
coincidentemente ela foi capaz de florescer no meio artesão. Diferente da
informação, cujo objetivo é transmitir o “puro em si” [Benjamin, 2012, p. 221] do
que é relatado, a narrativa “mergulha a coisa na vida do narrador para em
seguida retirá-la dele” [Benjamin, 2012, p. 221]. O filósofo ressalta que é
comum que contadores de histórias iniciem seus relatos descrevendo as
circunstâncias nas quais os ouviram, tal como Hearn o faz em seus textos.
Benjamin compara esses narradores a oleiros, cujas mãos deixam marcas em
cada um dos vasos que produzem.

O conto “A Passional Karma”, de Hearn, se inicia desta forma. O escritor


explica que, após ver uma peça de teatro em Tóquio, é aconselhado por um
amigo a escrever o conteúdo de sua história em inglês. Não se trata, porém, de
uma tradução extremamente fiel do original, uma vez que Hearn afirma que
procurou focar no aspecto fantasmagórico da trama, sendo que “[h]ere and
there we found it necessary to condense the original narrative; and we tried to
keep close to the text only in conversational passages - some of which happen
to possess a particular quality of psychological interest” [Hearn, 2022, p. 37]. O
escritor afirma:

One of the never-failing attractions of the Tokyo stage is the performance, by


the famous Kikugoro and his company, of the Botan-Doro, or ‘Peony Lantern’.
This weird play, of which the scenes are laid in the middle of the last century, is
the dramatization of a romance by the novelist Encho, written in colloquial
Japanese, and purely Japanese in local color, though inspired by a Chinese
tale. I went to see the play; and Kikugoro made me familiar with a new variety of
the pleasure of fear. [Hearn, 2022, p. 36]

Desse modo, Hearn não somente escolhe reduzir a narrativa original, como
também modifica seu título. A expressão “Botan-doro” pode ser traduzida,
literalmente, como “lanterna de peônia”, mas o escritor escolhe dar ao seu
relato o título de “A Passional Karma” ou, em português, “um karma passional”.
Em Yurei: The Japanese Ghost, Zack Davisson sugere que a escolha de Hearn
possa ter sido motivada pelo seu desejo de focar no aspecto budista da
narrativa, uma vez que, diferente de outras versões do relato, o escritor

101
descreve os personagens como amantes não apenas em uma, mas em várias
encarnações.

De acordo com Hearn, a peça de teatro teria sido baseada em um romance de


San’yutei Encho que, por sua vez, teria se inspirado em um antigo conto
chinês. No entanto, Davisson sugere que a versão de Encho não é a única nem
mais antiga reescrita da história, sendo esta tendo sido publicada em japonês
pela primeira vez em 1666, por Ryoi Asai. O pesquisador afirma que “Ryoi Asai
liked to work with source material, something he could take apart and rebuild,
rather than creating from scratch” [Davisson, 2020, p. 100]. Desse modo, para a
sua coletânea de kaidan, ou “contos estranhos”, Otogi boko, Asai adaptou
narrativas de contos budistas chineses, editando aqueles que achava mais
interessantes de acordo com o seu gosto.

Jian deng xin hua é, segundo Davisson, o livro usado como referência por Asai.
Escrito por Qu You no início da dinastia Ming [1368-1644], trata-se de uma
coletânea de contos eróticos disfarçados de lições budistas moralizantes. A
versão de Qu You é uma narrativa dividida em duas partes: na primeira, um
jovem é seduzido pelo fantasma de uma mulher e morre; na segunda, ele é
levado ao juiz do mundo dos mortos e, juntamente com o fantasma que o
seduziu, enfrenta um julgamento moral. Davisson afirma:

Ryoi Asai had no interest in obscure Chinese customs or otherworldly judges


and moral punishment. He wasn’t looking to give a sermon. Ryoi moved the
setting to Kyoto and jettisoned all of the didactic elements, including the whole
second half of the story. The removal of the religious elements of the story is
particularly interesting when you consider that Ryoi Asai himself was a Buddhist
priest. [Davisson, 2020, p. 101-102]

Dessa forma, Asai não somente muda a localidade dos fatos narrados para o
Japão, mas também recorta toda a segunda parte da história. Em sua versão,
Encho também faz certas modificações. Como se tratava de uma peça teatral
e, especialmente, de um rakugo, um tipo de performance na qual apenas um
ator conta ao público a narrativa, pode-se dizer que era uma versão mais
flexível. Em quase todas as suas encenações, ela se modificava. Encho
também mudou o nome de alguns personagens, e adicionou um final um pouco
mais feliz para o relato, quando comparado ao texto de Asai.

Para Davisson, a influência do público é notável em ambas as versões. Asai


escreveu no período Edo, e “his audience craved gore and chills more than
anything else” [Davisson, 2020, p. 105]. No entanto, Encho escreveu no
período Meiji, e seu público já havia tido um contato mais extenso com a
cultura ocidental. Peças como as de William Shakespeare já eram conhecidas
e haviam se tornado populares e, talvez por isso, ele tenha dado à sua versão
um final mais romântico.

“A Passional Karma” relata o romance da jovem O-Tsuyu e de Hagiwara


Shinzaburo. O-Tsuyu era a filha de Iijima Heizayémon, um samurai que vivia na

102
região de Yedo, e era conhecido por sua violência. Como a jovem e a madrasta
não se davam bem, ela havia se mudado para uma casa em Yanagijima,
levando consigo apenas uma criada. Um dia, o médico da família a visitou,
levando consigo Hagiwara, um samurai belo e educado. Os personagens se
apaixonam à primeira vista e, já nesse primeiro encontro, confessam o amor
que sentem um pelo outro. Quando se despedem, O-Tsuyu sussurra ao ouvido
de Hagiwara que, caso eles não voltassem a se encontrar, ela certamente
morreria.

A afeição dos jovens não passou despercebida ao médico, que, com medo da
reação que o pai da garota poderia ter, se recusou a levar o samurai consigo
em outras visitas que fez à residência de O-Tsuyu. O primeiro encontro foi,
então, o único que os jovens tiveram em vida. Hagiwara não poderia visitar a
casa de O-Tsuyu desacompanhado, uma vez que isso implicaria em uma
quebra de etiqueta e, não recebendo nenhum convite do médico, não foi capaz
de visitá-la. Alguns meses depois, a garota morreu acreditando que seu amor
não era correspondido. Sua criada, O-Yoné, também morreu pouco tempo
depois, devido a tristeza que sentiu pelo destino de sua senhora. Ambas foram
enterradas juntas.

Hagiwara tomou conhecimento da morte de O-Tsuyu apenas algum tempo


depois do ocorrido. Surpreso, triste e desconsolado, o samurai decide realizar
os ritos budistas para a morte da garota. Hearn narra: “But as soon as he found
himself again able to think clearly, he inscribed the dead girl’s name upon a
mortuary tablet, and placed the tablet in the Buddhist shrine of his house”
[Hearn, 2022, p. 41]. Dedicado, Hagiwara fazia oferendas e repetia mantras
todos os dias perante a tábua mortuária de O-Tsuyu.

O segundo encontro do casal se deu durante o Bon, o festival dos mortos.


Hagiwara encontrou O-Yoné e O-Tsuyu, que carregava consigo uma lanterna
de peônia, andando perto de sua casa. Em um primeiro momento, e mesmo
após alguns dias, o samurai não percebe que a garota e sua criada estão, na
verdade, mortas, e demonstra surpresa e alegria ao reencontrá-las. Ainda
apaixonado, Hagiwara não consegue conter o seu desejo, e mantém relações
sexuais com O-Tsuyu por vários dias. A garota e a criada o encontravam
sempre à noite, quando não eram vistas por nenhum vizinho.

Davisson aponta que o sexo entre os vivos e os mortos é um tema recorrente


na literatura japonesa, principalmente quando se trata de yurei. Ele afirma:

Sex is the cornerstone of “Botan doro”, the tale of Otsuyu and the Peony
Lantern. The taboo nature of the tale is designed to titillate, not frighten. And
that has kept the story alive for centuries. Of all the kaidan told and retold in
Japan, “Botan doro” has stayed relevant the longest. Because sex - especially
when combined with death - never goes out of style. [Davisson, 2020, p. 100].

Yurei é o termo japonês que designa um tipo muito específico de criatura


sobrenatural: fantasmas femininos. Enquanto o termo yokai parece designar

103
uma variedade maior de seres fantásticos, como raposas [kitsune] e guaxinins
[tanuki] que possuem poderes, ou objetos animados [tsukumogami], yurei
apresenta uma descrição mais bem definida. São fantasmas de mulheres, com
longos cabelos negros desgrenhados, que podem ser descritas como muito
belas, como O-Tsuyu, ou como aterrorizantes. Davisson sugere, ainda, que em
grande parte dos relatos, esses fantasmas se apegam ao mundo dos vivos
motivados por um grande ódio, ou por um grande amor.

Talvez o exemplo mais conhecido de yurei pelo público ocidental seja Sadako
Yamamura, protagonista do filme Ringu, de 1998. O sucesso de Sadako foi tão
grande que ela ganhou uma adaptação estadunidense, a personagem Samara
Morgan, do filme O Chamado, de 2002. Embora americana, Samara conserva
os elementos típicos de uma yurei: os longos cabelos e escuros, a palidez, o
aspecto assustador e o rancor que a prende ao mundo dos vivos.

Diferente de Sadako e Samara, porém, O-Tsuyu não é assustadora, pelo


contrário, é extremamente bela, sedutora e não possui um grande rancor.
Embora tenha morrido acreditando que Hagiwara não correspondia suas
afeições, ela não se prende ao mundo dos vivos por ódio, mas sim por amor.

Amor e morte estão fortemente entrelaçados no enredo de “A Passional


Karma”. No final do relato, os corpos de Hagiwara e O-Tsuyo são encontrados
sem vida, em um contraste assustador: o dele ainda saudável, mas o dela em
decomposição. Davisson afirma que, em todas as suas versões, essa
justaposição de vida e morte é sempre o seu climax.

Hearn, portanto, não faz nada muito diferente do que Asai e Encho já haviam
feito antes. Ele reescreve o romance da lanterna de peônia, focando nos
elementos que, na sua opinião, seriam mais interessantes aos olhos do público
ocidental. Ele também adiciona seu próprio ponto de vista, abrindo a sua
narrativa com um breve relato da circunstância em que conheceu a história, e
de porque decidiu reescrevê-la. Ao final do texto, o escritor relata como tentou,
sem sucesso, encontrar o túmulo das personagens na cidade onde se passa a
história. Como os oleiros que Benjamin menciona, que deixam as marcas de
seus dedos em suas obras, estas são as marcas que Hearn deixou em Botan
doro.

Referências
Maria Silvia Duarte Guimarães é doutoranda em Estudos Literários, Teoria da
Literatura e Literatura Comparada na Universidade Federal de Minas Gerais.

BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov.


In: _______. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre a literatura e
história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense,
2012. p. 213-240.

DAVISSON, Zack: Yurei: The Japanese Ghost. Seattle: Chin Music Press,
2020.

104
FOSTER, Michael Dylan. The Book of Yokai: Mysterious Creatures of Japanese
Folklore. Oakland: University of California Press, 2015.

HEARN, Lafcadio. Glimpses of Unfamiliar Japan. Singapore: Tuttle Publishing,


2009.

HEARN, Lafcadio. In Ghostly Japan. Singapore: Tuttle Publishing, 1971a.

HEARN, Lafcadio. Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things. Singapore:


Tuttle Publishing, 1971b.

HEARN, Lafcadio. Of Ghosts and Goblins. Great Britain: Penguin Random


House UK, 2022a.

HEARN, Lafcadio. A Passional Karma. In: ______. Of Ghosts and Goblins.


Great Britain: Penguin Random House UK, 2022b.

RINGU. Direção: Hideo Nakata. Japão: Toho Co., Ltd., 1998. (96 min).

O CHAMADO. Direção: Gore Verbinski. Estados Unidos: DreamWorks


Pictures, 2002, (115 min)

105
A NARRATIVA EM APORIA NO SÉCULO DAS
LUZES: DENIS DIDEROT, O ROMANCE E O ORIENTE, por
Ricardo Hiroyuki Shibata

Um leitor do início século XVIII tremia nas bases quando ouvia a palavra
“Oriente”. Havia pouco, os turcos sitiaram a cidade de Viena por um longo
período e as notícias de empalamentos em massa era moeda corrente. E ainda
ecoava nos corações europeus a horda de mongóis que, por onde passavam,
tinha por hábito empilhar as cabeças dos inimigos em montículos – de fato,
uma obra de engenharia na qual eles eram exímios. O medo gera fascinação,
já dizia aproximadamente um filósofo maquiavélico, rescendendo a enxofre.

Neste contexto, a tradução de As mil e uma noites, realizada por Antoine


Galland, entre 1704-1717, foi um divisor de águas. A partir daqui, a obra de
Galland, cuja fortuna crítica já é considerável (CHEBEL, 2010), inspirou
diversos clássicos que compuseram a experiência das “belles lettres” no
interior do século das Luzes. Até meados do século XVII, a cultura ocidental
projetava uma imagem evanescente, algo embaçada e difusa, da Pérsia, da
Arábia e demais regiões do Oriente. Isto, em grande parte, por falta de
informações ou mesmo por falta de interesse. A situação mudou radicalmente
e, portanto, uma mudança de mentalidade estava em curso, com a ascensão
de vários sultanatos orientais e com o incremento da religião islâmica,
ameaçando as grandes monarquias do Ocidente. A resposta foi o
estabelecimento de vários tratados comerciais e um diálogo fundado em
inumeráveis trocas diplomáticas.

O que seguiu a publicação de vasta matéria histórica, cuja temática versava


sobre o modo de constituição política desses potentados orientais (MÉZERAY,
1640; VERDIER, 1653; CHASSEPOL, 1676; RICAUT, 1683), e com a posterior
representação teatral dessa temática, em seus vários matizes, com grande
sucesso de público, notadamente, em Molière e Racine (MOLIÈRE, 1670;
RACINE, 1672). Antoine Furetière, em seu Dictionnaire (1690), definia o
“Oriente” como uma região geográfica que compreendia Levante, Pérsia, China
e Japão. Essa imprecisão territorial correspondia também a um imaginário
difuso, em que o Oriente mesclava exotismo de base, pitoresco surpreendente
e vários aspectos do maravilhoso e da fantasia, com elementos das culturas da
Índia, Arábia e Pérsia. Mas, no século XVII, conforme disse Laurent Wauquiez,
tudo isso, de fato, correspondia aos turcos, a seu Império e – no interior da
cultura política – ao despotismo e às inúmeras formas de tirania. (WAUQUIEZ,
2012, p.151)

106
Os lances iniciais de As mil e uma noites são bem conhecidos. O sultão da
Pérsia foi traído por sua esposa e decidiu vingar-se de todas as mulheres do
Reino. Essa traição fez o sultão tomar medidas drásticas: “ele resolveu que
todas as noites se casaria com uma mulher diferente para, depois, estrangulá-
la na manhã seguinte” (GALLAND, 1717, v.1, p.27). Uma após outra, de
diversas hierarquias sociais (a filha de um oficial subalterno, de um burguês...),
cada mulher era recebida em matrimônio para ser cruelmente executada ao
amanhecer. Nesse conjunto, até aquele momento, nenhuma delas
impressionava por seu destaque em termos de virtude. Porém Sherazade, a
filha do grão Vizir, homem de confiança do sultão e algoz das infelizes
esposas, se sobressaía:

“Sherazade tinha uma coragem muito acima de seu sexo e um espírito


indômito com uma perspicácia admirável. Ela tivera contato freqüente com os
livros e possuía uma memória tão prodigiosa que nada do que tinha lido lhe
escapava. Ela tinha se dedicado igualmente à filosofia, à medicina, à história e
às artes. Ela também fazia versos muito melhores que os poetas mais célebres
de seu tempo. Além disso, ela era dotada de uma beleza extraordinária e uma
virtude muito sólida coroava todas as suas belas qualidades”. (GALLAND,
1717, v.1, p.28-29)

Com uma confiança inquebrantável, ela mesma se voluntariou para esposar o


sultão com o intuito de cessar esse ciclo de assassinatos que assolava o
Reino. Após o matrimônio, ela põe em prática o seu plano: contar estórias de
tal modo extraordinárias que o sultão, encantando, ficaria na expectativa de
outras narrativas de igual atração. Porém, ao final, ela arrematava que “a
seguinte estória seria ainda mais surpreendente (...) se o sultão me deixar viver
e me conceder a permissão de contá-la na noite seguinte” (v.1, p.54). Deixar o
sultão e, por conseguinte, os leitores, nessa “inquietude cruel”, cuja potência é
manter a curiosidade para saber o fim da narrativa (“eu estou curioso para
saber o final”, v.1, p.55), é a grande estratégia discursiva dos contos.
Sherazade promete, muitas vezes, que a melhor parte da narrativa ainda está
por vir (“o que resta é o melhor do conto”, v.1, p.60). Neste circuito, a
curiosidade do sultão vai sendo atiçada (“ela conseguiu atiçar a curiosidade do
sultão”, v.1, p.63), paulatinamente, com seu processo contínuo de
retroalimentação.

O universo de efabulação maravilhosa desses contos surpreendeu até mesmo


o próprio Antoine Galland, conforme seu “Avertissement”, por seu caráter
imaginativo e divertido:

“Se os contos desta espécie são agradáveis e divertidos pelo maravilhoso que
se distancia do que reside no cotidiano, isto acontece porque eles transportam
para aquilo que está muito além do que aconteceu, uma vez que eles estão
repletos de acontecimentos que surpreendem e revolvem o espírito e que
fazem ver o quanto os árabes ultrapassam as outras nações neste tipo de
composição”. (GALLAND, 1717, v.1, p.xxij)

107
Galland continua explicando que, no interior dos contos, podia-se encontrar o
“verdadeiro” Oriente, muito mais do que nos relatos de viagem, realizados por
aventureiros, exploradores ou diplomatas, ou mesmo na matéria histórica,
fundada em documentação. Dizia ele que:

“Eles devem agradar ainda pelos costumes e pelos hábitos cultivados pelos
Orientais, pelas cerimônias de sua religião, tanto pagãs quanto muçulmanas, e
estas narrativas são melhor ressaltadas nos autores que as concebem do que
nas ilações dos viajantes. E nisto, todos os Orientais, Persas, Tártaros e
Indianos, se fazem distinguir e espelham o que eles são, não apenas os
soberanos, mas também as pessoas da mais baixa condição. Dessa forma,
sem precisar experimentar a fadiga que seria visitá-los em seus próprios
países, o leitor terá aqui o prazer de vê-los agir e de ouvi-los falar. Tomamos o
cuidado de conservar seus traços, de não nos distanciarmos de suas
expressões e de seus sentimentos. Eliminamos aqueles textos, apenas quando
eles não estavam em conformidade com as boas regras sociais”. (GALLAND,
1717, v.1, p.xxiij)

Antoine Galland destaca assim o aspecto estritamente moral dos contos, vale
dizer, a relação entre o elogio das virtudes e a admoestação dos vícios a partir
da matriz prudencial. Nesse sentido, o seu circuito de articulação opera no
interior do aperfeiçoamento individual, porém com vistas à participação do
cidadão nas questões da política, da cidade e do Estado.

“Não é por pouco que aqueles que lerem estes contos estejam predispostos a
aproveitar os exemplos de virtude e de vício que ali vão encontrar. Eles podem
ter a vantagem que a leitura de outros tipos de conto não possui, pois são mais
próprios a corromper os costumes do que a corrigi-los”. (GALLAND, 1717, v.1,
p.xxiv)

Pois bem, se para os europeus, o Oriente evocava o medo e a fascinação,


faltava acrescentar aquele toque de pimenta, cujo tempero, sem embotar o
gosto, causava a picância necessária para surpreender. Aqui, pode-se
perfeitamente referir Voltaire, com sua ironia impagável, em Zadig (História
Oriental, 1757) (VOLTAIRE, 2002, p.7-80), ou Montesquieu e seu diagnostico
político apurado nas Cartas Persas (1721). Porém, tudo isso está em Denis
Diderot, em que pesam as doses de romancista destro.

A ambientação das Joias Indiscretas (1748), de Diderot, é claramente inspirada


nas Mil e Uma Noites, mas o leitor mais avisado consegue reconhecer, com
certa facilidade, em algum de seus personagens orientais, vários membros da
corte do Rei Sol, em particular, o monarca Luís XIV e sua dama favorita, a
marquesa de Pompadour. Trata-se de uma obra satírica com pitadas de
sarcasmo cruel e de uma crítica ao despotismo e ao poder da Igreja Católica
sobre a consciência dos fieis, valendo-se do temor do pecado e da hipocrisia
da virtude. Esse é também o mote de um conto de Diderot (ainda pouco
estudado e de mesma ambientação oriental), O Pássaro Branco, escrito circa
1748 e publicado por primeira vez em 1778.

108
Essa apropriação de personagens e da atmosfera orientais, que viraram moda
pela obra de Galland, foi uma jogada de mestre. E foi justamente essa
hermenêutica em diapasão satírico, com agenciamento dos demais usos de
linguagem indireta, que se transformou em estratégia prevalente da
Enciclopédia, como explicava o próprio Diderot. Ela teria então uma utilidade
cifrada, em que pesavam mistérios a serem descobertos; assim, seu desvendar
e seu significado mais profundo se deixariam revelar com o passar dos anos e
com o julgamento (distanciado e prudente) da posteridade. Seria, no entender
de Diderot, uma arte de deduzir os argumentos por meios subreptícios.
(WILSON, 2012, p.232s)

Dessa forma, a racionalidade mais estreita, fundada em silogismos lógicos,


seria impactada frontalmente por essa viragem estratégica nas formas comuns
de pensar. Esse novo método, conforme diz o verbete “Enciclopédia”,
possibilitaria instaurar um novo procedimento para burlar os censores a partir
de um tratamento mais sutil do conhecimento e estabelecer uma rede de
referências cruzadas que permitiria ao leitor tirar as suas próprias conclusões.
Um bom exemplo disso é a relação (algo inusitada) entre os verbetes
“antropofagia” e “comunhão”. O que interessava a Diderot era o manejo da
linguagem e certos usos das técnicas narrativas, ligados à atmosfera mágica
do Oriente e ao universo exótico da Arábia, com grande aproveitamento desse
fluxo constante de interesse pela obra de Galland. Isso, porque, de fato, os
contos orientais quadravam perfeitamente com a definição de “romance”, quer
dizer: “Por romance, entendia-se até agora um tecido de acontecimentos
quiméricos e frívolos, cuja leitura era perigosa para o gosto e para os
costumes”. (DIDEROT, 2000, p.16)

Entretanto, numa fase posterior da produção intelectual de Diderot, essa


definição deveria ser ampliada e repensada, pois a impressionante obra do
escritor inglês Samuel Richardson (ele se referia ao romance Clarissa)
relacionava o trabalho do gênio com a inspiração à virtude, isto é, a busca do
bem e a extirpação dos vícios. E, mais especificamente, no Elogio de
Richardson (1762), tratava-se de uma moral em ação, que debulhava as
máximas e os ditos sentenciosos, com seu esquadro geral e abstrato, em
narrações mais concretas e particulares (MATTOS, 2004). A partir disso, a
variabilidade de situações e a sua sucessão, com sua rapidez de reviravoltas e
contornos, são jogadas à frente dos leitores como uma instância experiencial
de grande relevância. A virtude de Richardson é destacar a ancoragem de sua
narrativa nos fatos e eventos da realidade com referenciais próximas ao
universo de conhecimento do leitor.

“Esse autor não faz correr o sangue ao longo dos lambris; ele não vos
transporta em absoluto a países afastados; ele não vos expõe em absoluto a
seres devorados por selvagens; ele não se encerra em absoluto em locais
clandestinos de devassidão; ele não se perde jamais nas regiões do feérico”.
(DIDEROT, 2000, p.17)

109
Ou seja, Richardson não investe nas ilusões momentâneas ou no impacto do
efêmero:

“O mundo em que nós vivemos é o lugar da cena; o fundo de seu drama é


verdadeiro; suas personagens têm toda a realidade possível; suas figuras são
tomadas do âmbito da sociedade; seus incidentes estão nos costumes de
todas as nações civilizadas; as paixões que ele pinta são tais como eu as
experimento em mim; são os mesmos objetos que as excitam; elas têm a
energia que eu lhes reconheço; os contratempos e as aflições de suas
personagens são da natureza daquelas que me ameaçam incessantemente;
ele me mostra o curso geral das coisas que me cercam”. (DIDEROT, 2000,
p.17)

É que a obra de Richardson, explicava Denis Diderot, assemelhava-se a


Moisés (“um evangelho trazido a terra”) e aos trágicos gregos (Eurípedes e
Sófocles) com o sentimento de comiseração quando a virtude é espoliada.
Entretanto, em vez dos caracteres aristocráticos ou da bendição de alguns
eleitos que fazem parte do povo escolhido, as personagens de Richardson são
aquelas do cotidiano e dos eventos comezinhos do dia-a-dia das grandes
metrópoles. “Elaborei uma imagem das personagens que o autor pôs em cena:
suas fisionomias estão aí; eu as reconheço nas ruas, nas praças públicas, nas
casas; elas me inspiram pendores ou aversões” (DIDEROT, 2000, p.22). Ora,
essas assunções quadram perfeitamente com o projeto pedagógico da
Ilustração, em que se destacavam elementos civilizatórios de grande
envergadura. Nesse sentido, uma moral que se flagra em ação seria
estrategicamente capaz de oferecer respostas satisfatórias para os dilemas
mais contundentes da sociedade. As especificações das personagens, as
descrições particulares da paisagem e a relação precisa da cronologia a partir
da sucessão de fatos e eventos faziam parte desse efeito de “realismo”, com
relevante ganho didático, que tanto encantaram os leitores a partir da metade
do século XVIII. (WATT, 2010, p.11-13)

Como se sabe, a obra literária de Samuel Richardson foi um marco


representativo na história do romance. No século anterior, Miguel de Cervantes
já havia advertido que a leitura obstinada dos romances de cavalaria fazia o
leitor criar moinhos de vento na imaginação e que, a partir desse descontrole,
acabava por inocular em si mesmo a doentia obsessão da fantasia com suas
imagens sem substância (KLEIN, 1998, p.76s). Com a obra de Gallant, a
matéria de cavalaria e a busca de honra foram substituídas pelas noites árabes
e pelo pitoresco das excentricidades orientais, permanecendo o mesmo
enquadramento discursivo. Porém, com Richardson, a intriga e as suas
inúmeras reviravoltas, agora se desenrolavam em ambientes domésticos e no
interior da família burguesa, com um olhar bisbilhoteiro sobre o modo de vida, a
descrição física e o comportamento das personagens. O que coadunava
estrategicamente com os novos horizontes do individualismo econômico, do
liberalismo de Locke (WATT, 2010), da mudança de público leitor (DARNTON,
2009) e com a secularização da sociedade (THOMAS, 2003).

110
Conquanto Diderot tivesse surfado na moda oriental com sucesso, ele
percebeu, desde o inicio, as potencialidades desse novo tipo de romance, mais
adequado às questões pragmáticas e à existência comezinha presente no
cotidiano dos cidadãos. Foi, em 1760, numa reunião festiva na casa do barão
d’Holbach, que os philosophes discutiram a obra richardiana, com base nas
traduções do abade Prévost – Pamela (1742), Clarissa (1751) e Charles
Grandisson (1755). Os ânimos se exaltaram e o debate pegou fogo,
rapidamente. Diderot escreveu a Sophie Vollant, em carta de 21 de outubro de
1760, que os romances de Richardson causaram grande comoção, angariando
simpatias e ódios, em igual potência em seus extremos (LAFON, 2004,
p.1258s). De fato, não havia meio termo. Voltaire e Marmontel mantiveram-se
fieis às formas literárias antigas. Diderot, para lançar uma pá de cal na moda
do Oriente, preferiu aproveitar as técnicas do romance, investindo fortemente
em outro gênero – o teatro.

Referências
Ricardo Hiroyuki Shibata é Doutor em História/Teoria Literária
(Unicamp/Universidade Nova de Lisboa), Pós-Doutor em História da Cultura
(UFPR) e Professor do Depto de Letras da Unicentro/Paraná.

BUFFAT, M.. Éloge de Richardson. In: MORTIER, R. & TROUSSON, R..


Dictionnaire de Diderot. Paris: Honoré Champion, 1999.

CHASSEPOL, François. Histoire des grands visirs. Amsterdam: Abraham


Wolfgank, 1676.

CHEBEL Malek. Dictionnaire amoureux des Mille et une nuits. Paris: Plon,
2010.

DARNTON, Robert. The Case for Books. Past, Present, and Future. New York:
Public Affairs, 2009.

DIDEROT, Denis. Elogio a Richardson. In: _____. Obras II. Estética, poética e
contos. São Paulo: Perspectiva, 2000, p.15-28.

GALLAND, Antoine. Les mille et une nuits. Contes arabes. Paris, 1717.

KLEIN, Robert. A Forma e o inteligível. São Paulo: Edusp, 1998.

LAFON, Henri. Notice. In: DIDEROT, Denis. Contes et romans. Paris: Éditions
Gallimard, 2004.

LEPAPE, P.. Diderot. Paris: Champs/Flammarion, 1991.

MATTOS, Franklin de. A Cadeia Secreta. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.

MÉZERAY, S.. Histoire générale des Turcs. Paris: Sébastien Cramoisy, 1640.

111
MOLIÈRE. Le Bourgeois Gentilhomme. Paris: Claude Barbin, 1670.

RACINE, Jean. Bajazet. Paris: Pierre Monnier, 1672.

RICAUT, Paul. Histoire des trois derniers empereurs turcs. Paris: Chez la
Veuve Louïs Billaine, 1683.

THOMAS, Keith. Religion and the decline of magic. Studies in popular beliefs in
16th and 17th-century. London: Penguin, 2003.

VERDIER, Gilbert S. du. Abrégé de l’histoire des Turcs. Paris: Guillaum de


Luyne, 1653.

VOLTAIRE. Contos. São Paulo: Abril Cultural, 2002.

WATT, Ian. A ascensão do romance. Estudos sobre Defoe, Richardson e


Fielding. São Paulo: Cia das Letras, 2010.

WAUQUIEZ, Laurent. Les Mille et une nuits: un best-seller des Lumières. Les
Cahiers de l’Orient, 2012, n.105, p.149-156.

WILSON, Arthur. Diderot. Tradução Bruna Torlay. São Paulo: Perspectiva,


2012.

112
NOITES ÁRABES: ANTOINE GALLAND (1646-1715) E AS MIL E
UMA NOITES, por Ricardo Hiroyuki Shibata

Foi a partir da tradução francesa de As mil e uma noites, por Antoine Galland
(1646-1715), realizada entre 1704 e 1717, que as narrativas árabes e seu
universo, que mesclava elementos de exotismo e de maravilhoso,
transformaram-se em grande fonte de inspiração para a composição de
inúmeras obras particularmente genais do Iluminismo no século XVIII. Basta
referir que Montesquieu, Voltaire, Diderot e Marmontel, surfaram na onda das
Arábias, com bastante sucesso.

Em meados do século XVII, o interesse europeu pelo Oriente, em particular, o


Levante, a Pérsia e a Índia, ganhou um fôlego extremo. E isso se deveu ao
incremento dos contatos comerciais, acordos diplomáticos, relatos de viagem e
matéria histórica correlata, que rapidamente moveu a curiosidade dos leitores
da época. (WAUQUIEZ, 2012, p.152)

O lugar de nascimento desses contos orientais ainda hoje é controverso.


Provavelmente, foram concebidos na Pérsia em tempos remotos, de origem
popular e folclórica; depois, foram traduzidos para o árabe na dinastia dos
califas Sassânidas (circa 224 d.C. a 651 d.C.), o que alavancou sua difusão
pelos países do Oriente. Na construção de sua narrativa, é possível flagrar
elementos da religião egípcia (o uso de talismãs com seus poderes
sobrenaturais, por exemplo) e uma forte influência de cultura da Índia (a
organização social em castas é destaque aqui). Sua difusão pela Europa se
deu pelas invasões muçulmanas na Península Ibérica entre os séculos VII a XI,
com a passagem definitiva da tradição oral para a cultura escrita acontecendo
no século XII. (GAULMIER, 1965, p.13)

Segundo Antoine Galland, os contos árabes que ele apresentava em tradução


para o francês eram, de fato, um conjunto de crônicas dos reis da dinastia
Sassânida, antigos reis da Pérsia, cujos domínios se estendiam das Índias em
ambas as porções continental e insular, para além do rio Ganges, chegando
até a China. Elas se referiam a um rei desta poderosa casa dinástica, cujo
governo ocorreu numa época imemorial. Seu reinado baseava sua excelência
na conquista do coração de seus súditos. Nesta política amorosa, o que se
fazia era ratificar sua prudência, sua sabedoria, seu valor e, como garantia, a
reputação belicosa de suas tropas muito bem disciplinadas (GALLAND, 1717,
v.1, p.1).

Mas, qual foi exatamente o percurso trilhado por Antoine Galland? Por que foi
justamente ele quem produziu o maior best-seller dos primórdios da Ilustração?

113
A sua biografia, mesmo tratada em linhas gerais, dá pistas certeiras quanto a
isso.

Antoine Galland, nascido em 1646, dedicou-se à filologia, à epigrafia e à


numismática árabes, a partir das quais publicou vários estudos sobre a cultura
e a história orientais (origem do café, crônica de sultões turcos, coleção de
aforismos, dicionário de medalhas, descrição de cidades, tradução do Alcorão,
notas gramaticais etc.). Sua paixão sempre se destacou pela busca de novos
manuscritos, livros, antiguidades e demais curiosidades orientais. Viajou
frequentemente pelas terras do Levante e pela Pérsia entre os anos de 1670 e
1688. Em seguida, ensinou língua árabe no Collège Royal entre 1709 a 1715,
ano em que faleceu. Os doze volumes da edição original de Mille et une nuits,
Contes arabes, traduits en français par M. Galland foram publicados ao longo
de 14 anos, conforme a seguinte cronologia: 1704 (volumes I, II, III e IV); 1705
(volumes V e VI); 1706 (volume VII); 1709 (volume VIII); 1712 (volumes IX e X);
e 1717 (volumes XI e XII). (WAUQUIEZ, 2012, p.151).

Victor Chauvin, em seu Bibliographie des ouvrages arabes, informa que a obra
de Galland recebeu 20 reedições ao longo do século XVIII e 54 reedições entre
1811 e 1820. Um enorme sucesso editorial da época das Luzes. Com esse
recorde, foi traduzido, ainda no século XVIII, para as principais línguas
europeias (inglês, alemão, italiano, holandês, dinamarquês, grego, russo...),
sendo que as versões em língua inglesa e alemã saíram antes mesmo da
publicação dos últimos volumes da edição original. E não parou por aí. No
século XIX, seu sucesso editorial continuou impressionante, com o surgimento
de edições em outras línguas (português, espanhol, sueco, polonês, romeno,
húngaro...). (CHAUVIN, 1892)

A despeito da edição em árabe ter sido publicada em Calcutá em 1814, as


traduções posteriores ainda se baseavam na edição de Galland, com destaque
para as versões de Edward Lane (1839-1841) e Sir Richard Burton (1885-1888)
(JAROUCHE, 2006, v.I, p.29). De fato, o sucesso de Galland se deveu, em
grande medida, as estratégias discursivas que ele escolheu para realizar a sua
tradução. A questão linguística propriamente dita era fundada na eleição de
uma dicção aristocrática a partir de um estilo com marcas classicizantes. O que
agradava um público formado pelos membros dos altos círculos sociais. Além
disso, conseguia manejar o registro coloquial e particular do original árabe.
Isso, porque a ambientação inicial dos contos eram os colóquios ou reuniões
informais, em que se dispunha de um tempo dedicado à narração de enredos
ficcionais.

Galland também agregou outras narrativas que, por um lance de sorte, fizeram
com que os contos ganhassem notoriedade não apenas no século XVIII, mas
ao longo dos séculos seguintes. Refiro-me às narrativas dedicadas a relatar as
aventuras de Aladim e a lâmpada mágica, Ali Babá e o seu séquito de ladrões,
as desventuras do príncipe Ahmed e os poderes sobrenaturais da fada Pari
Banu. Como se sabe, essas narrativas, hoje famosas, não faziam parte do
original árabe, conforme testemunham a tradição manuscrita recolhida no

114
século XII. Elas foram compiladas por Galland diretamente por informação do
monge maronita Hana, entre os anos de 1709 e 1713, e depois devidamente
adaptados e incorporados ao conjunto dos contos. Sem dúvida alguma, o ponto
mais interessante no interior das estratégias manejadas por Galland, foi a
criação da personagem Sherazade como guardiã desse conjunto de narrativas
e como voz privilegiada que recuperava toda essa tradição oral.

O próprio Antoine Galland explicava, no volume VII de suas As mil e uma


noites, que ele fora responsável pela organização das narrativas em diversas
noites e pela invenção de um outro enredo principal para dar suporte à
narração central do conjunto de contos. Aqui, entravam em cena o diapasão
inicial – um sultão traído por uma de suas esposas que resolve assassinar
todas as outras mulheres de seu harém –, e o surgimento de Sherazade, que
contava na lista de esposas a serem assassinadas, mas que escapa da morte
por um subterfúgio inteligente.

Há um dispositivo literário de âmbito muito sagaz que Antoine Galland manejou


para construir uma estrutura particularmente sedutora, pois conseguiu prender
o leitor a cada um dos relatos da narrativa. Vale dizer, a técnica do “mis-en-
abîme” se constitui por um narrador principal, cuja função é apresentar os
dados centrais da narrativa: a ambientação na cultura árabe, o marido traído e
inconsolável, a esposa que escapa da morte por sua habilidade em relatar
narrativas maravilhosas que atiçam a curiosidade do marido algoz, e a
sequência de narrativas que vão se encadeando num contínuo.

“Senhor, – disse Sherazade nesta altura – aquilo que vossa Majestade acaba
de ouvir, deve sem dúvida parecer-lhe maravilhoso, mas, o que falta contar, é
ainda muito mais. Estou convencida de que concordareis com isso na próxima
noite, se houverdes por bem permitir-me que acabe esta história. O sultão
anuiu, levantando-se porque já era dia”. (GALLAND, v.1, p.137).

Assim, Sherazade é um dos narradores nesse conjunto impressionantes de


contos, que possuem, ainda, outros narradores dispersos e menos conhecidos,
cujos relatos adensam e complexificam a narrativa em sua totalidade. A argúcia
de Antoine Galland, com esses níveis escalonados de narrador, é encadear
todos os elementos do enredo. É Sherazade que passa a palavra para esses
outros narradores, que, por sua vez, dão voz a outras narrativas.

Pois bem, Gustave Lanson explicava, em seu Histoire de la litterature


française, que “foi uma das obras que mais modificaram a imaginário literário
do século XVIII francês” (LANSON, 1895, p.852s; ver também MAY, 1986,
p.10-11). Paul Hazard, em sua La crise de la conscience européenne,
acrescentava que os contos árabes de caráter maravilhoso acabaram por
conquistar os leitores europeus, porque quadravam perfeitamente com a
necessidade humana de contar e ouvir estórias. Além disso, essas narrativas
fantasiosas eram o aspecto complementar ao século das Luzes, que valorizava
sobremaneira o pensamento lógico-dedutivo e à racionalidade da Ilustração.
Mesmo porque:

115
“Quando Sherazade começou seus relatos noturnos e começou a expor,
incansável, os recursos infinitos de sua imaginação alimentada por todos os
sonhos da Arábia, Síria, do imenso Levante, quando descreveu os usos e
costumes dos orientais, as cerimônias religiosas, os hábitos domésticos, toda
uma vida radiante e variada, quando ela mostrou como se podia reter e cativar
os homens, não por sábias deduções de ideias, não por raciocínios, mas pelo
brilho das cores e pelo prestígio das fábulas: então, toda a Europa ficou ávida
de ouvi-la”. (HAZARD, 1961, p.340-341).

Em verdade, o século XVIII não é apenas a época da razão, mas também da


busca por uma forma de expressão constituída no interior das “belas letras”.
Assim, há um equívoco a ser esclarecido plenamente. Aquela que define que
os leitores que se encantaram com os relatos de Sherazade e com a magia do
Oriente buscavam mero prazer, entretenimento ou satisfação pessoal.
Entretanto, pode-se pensar em outro escopo, em especial, a partir do próprio
contexto mais imediato em que o texto foi produzido. Tratava-se, antes de tudo,
de um discurso de matriz exemplar, quer dizer:

“[um] sistema de metáforas e analogias que mantêm uma relação de espelho


com seu contexto de enunciação, têm a função de mover alguém a praticar
determinada ação ou então demovê-lo de praticá-la. As histórias exemplares
são um discurso de autoridade e pretendem provar que a inobservância de
suas proposições resulta em prejuízo: 'se você agir assim, ou se você não agir
assim, irá suceder-lhe o mesmo que sucedeu a x'”. (JAROUCHE, 2006, p.22)

Ou ainda:

“A existência e a valorização da história exemplar pressupõe, como parece


óbvio, um mundo em que a experiência é pensada como algo que se comunica
e cuja possibilidade de transmissão é dada pela repetição: são estruturas
semelhantes que se reproduzem incessantemente, sem que no entanto
possam ser reduzidas, em seu funcionamento no interior de determinado
quadro narrativo mais amplo, a um processo previsível e automático, visto que
a própria dinâmica interna da narrativa determina o resultado das sucessivas
histórias exemplares que se vão sucedendo”. (IDEM, IBIDEM, p.22-23).

De qualquer forma, esse Oriente era uma miragem, que diz mais sobre a
cultura francesa (europeia, por extensão) da época do que sobre a cultura dos
sultões e odaliscas. Se o Oriente foi incorporado ao cânone literário, a partir
das traduções de Galland, isso se deveu pelo fato de ser compatível com os
valores sociais e práticas letradas do período.

Deve-se ressaltar que Antoine Galland escreveu à época do reinado de Luís


XIV para um público aristocrático e cortesão. Foi nesse sentido que Galland
eliminou de sua tradução os elementos excessivamente exóticos dos contos
árabes para torná-los mais familiares à vida francesa, em particular, do
cotidiano da Corte parisiense. Ele mudou os nomes das frutas orientais para

116
termos mais conhecidos pelos leitores franceses e apresentou em resumo as
descrições dos jardins completando-os com detalhes dos laranjais do palácio
de Versalhes. Ele suprimiu as repetições e excesso de detalhes, típicas da
fonte original árabe, cujo sentido inicial era dado pela produção oral. Essas
supressões, aditamentos e demais intervenções textuais eram, de fato,
ornamentos ou embelezamentos que fizeram a sua tradução mais
compreensível para o leitor ocidental, sem, com isso, obviamente, mudar a
essência do conteúdo original. (DUFRENOY, 1946, p.132)

É justamente por isso que, em sua versão, desapareceu o caráter oral dos
contos. Houve a supressão das poesias e todo um trabalho de estilização da
linguagem grosseira com acento nos aspectos sexuais própria dos salões e
cafés para os quais foram originalmente concebidos. Nessa passagem da
oralidade para o âmbito de uma prática letrada classicizante, Galland não
apenas trouxe a atmosfera oriental para a Europa do período, mas também
forjou uma forma de comunicação mais palatável ao gosto do início do século
XVIII. Conforme disse Jorge Luis Borges (1997, p.81), “Sabe-se muito bem que
desinfectaram as Noites”. O resultado dessa depuração textual deveria circular
pelos ambientes refinados em que o público mundano, formado tanto por
homens quanto por mulheres, obedecia a regras prescritas nos códigos de
cortesia.

Antoine Galland nada havia inventado ou, pelo menos, nada dizia de muito
novo acerca do universo cultural do Oriente, em que pese o seu enorme
sucesso editorial, de público e de crítica, e seu impacto para a posteridade.
Mesmo porque as categorias de “novidade” e “invenção” eram completamente
alheias à mentalidade da época. Ele mesmo havia referido, em sua introdução
à Bibliotheque Orientale, de D'Herbelot, que um “orientalista” não buscava
rever ou acrescentar algo de novo ao conceito de Oriente que o leitor já
possuía. Tratava-se tão somente de reforçar estereótipos, amplificar noções já
cristalizadas e satisfazer expectativas preconcebidas. Quer dizer, o maior
esforço discursivo seria em reformular, reescrever ou parafrasear uma
narrativa, cujo enredo central já estava pronto. Nesse sentido, a tradução da
cultura árabe, tornando-a compreensível para o público europeu, seria mais
uma peça no jogo de xadrez em que o Ocidente se mostrava superior ao
Oriente. Como disse Edward Said, lapidarmente: “Pois aquilo que o orientalista
faz é confirmar o Oriente aos olhos de seus leitores; ele nem quer nem tenta
abalar convicções já arraigadas.” (SAID, 1996, p.75).

Pela mesma época de Galland, um outro compilador francês de contos árabes,


François Pétis de La Croix, publicou o seu Les milles et un jours, em cinco
tomos, entre os anos de 1710 e 1712 (DE LA CROIX, 1710-1712). E é
particularmente claro que os dois compiladores se basearam em fontes
comuns. Ambos contaram os mesmos hábitos e costumes aos quais se
agregaram imagens desconcertantes e cenas repletas de aventura. Ambos
tiveram o mérito de ter vulgarizado o mundo inusitado e exótico do Oriente para
o público ocidental. E ambos também nutriram o desejo comum de descortinar
o lado fabuloso dos povos estrangeiros.

117
Para finalizar, em tempos de pós-revoluções burguesas e em outro contexto
socio-político, Edward Lane traduziu o universo oriental com a intenção de
fazer frente a Antoine Galland conforme outro escopo cultural. Segundo Jorge
Luis Borges, ele transformou os contos orientais numa verdadeira “enciclopédia
de evasão”. Mesmo porque:

“nem as altas noites egípcias, nem o opulento e negro café com sementes de
cardamono, nem a frequente discussão literária com as doutores da lei, nem o
venerado turbante de musselina, nem o comer com os dedos, fizeram-no
esquecer o seu pudor britânico, a delicada solidão central dos senhores do
mundo”. (BORGES, 1997, p.79).

Lane havia moralizado os contos por meio da supressão dos elementos


mundanos ou qualquer menção a situações de sedução ou de fervor amoroso.
A honra e a distinção, ligadas ao pudor e à contenção dos sentimentos,
levaram a distorções e a ocultações, e, portanto, a uma reescrita radical. Foi
Richard Burton quem trouxe de volta ao interior dos contos essa atmosfera
erótica e sensual, com descrições detalhadas dos ambientes e personagens,
com o uso de uma linguagem popular, grosseira e objetiva. Seu público agora
se constituía pelos leitores das camadas burguesas do século XIX. E a
preferência romântica pelo exotismo, lugares distantes e inusitados, dava a
tudo um colorido selvagem e bárbaro; assim, o Oriente referia estrategicamente
à fascinação pelo proibido, pelo assombroso e pelo interdito.

Referências
Ricardo Hiroyuki Shibata é Doutor em História/Teoria Literária
(Unicamp/Universidade Nova de Lisboa), Pós-Doutor em História da Cultura
(UFPR) e Professor do Depto de Letras da Unicentro/Paraná.

BORGES, Jorge Luis. Os tradutores das mil e uma noites. São Paulo: Globo,
1997.

CHAUVIN, Victor. Bibliographie des ouvrages arabes ou relatifs aux arabes


publiés dans l'Europe chrétienne: de 1810 à 1885. Liége: Vaillant-Carmanne,
1892.

DE LA CROIX, François Pétis. Les milles et un jours. Contes persans. Paris:


Auguste Desrez, 1710-1712.

DUFRENOY, Marie-Louise. L’Orient Romanesque en France 1704-1789.


Montréal: Editions Beauchemin, 1946.

GALLAND, Antoine. Les mille et une nuits. Contes arabes. Paris, 1717.

GAUMIER, Jean. Introduction. In: GALLAND, Antoine. Les Mille et une nuits:
contes arabes. Tradution de Antoine Galland. Paris: Garnier/Flammarion, 1965.

118
HAZARD, Paul. La crise de la conscience européenne. Paris: Fayard, 1961.

JAROUCHE, M.M. Introdução, In: ANÔNIMO. Livro das mil e uma noites. Rio
de Janeiro: Globo, 2006, p.v-lvii.

LANSON, Gustave. Histoire de la litterature française. Paris: Hachette, 1895.

SAID, Edward W. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

WAUQUIEZ, Laurent. Les Mille et une nuits: un best-seller des Lumières. Les
Cahiers de l’Orient, 2012, n.105, p.149-156.

119
CHAMPURAMENTO - UM CONCEITO POÉTICO, por triZ périZ

A presente argumentação versa sobre o livro de poemas, Taotologias, do


autor Rui Rocha, residente na região administrativa de Macau, na China. A
pesquisa investigou como a voz poética criada pelo autor conseguiu expressar
os preceitos filosóficos, religiosos e culturais, tanto os ocidentais quanto os
orientais, por meio de elementos linguístico-literários, construindo uma obra
champurada, a qual apresenta imagens-mensagem dos espaços-tempo
ocidentais e dos orientais. Para tanto, buscou-se historicamente os elementos
relevantes à composição das escritas da obra, bem como buscou-se
geograficamente os elementos linguístico-literários constitutivos dos espaços-
tempo figurados nos poemas. Além disso, houve uma pesquisa filosófico-
religiosa, uma vez que as escritas de Taotologias são revestidas dessa
temática. Em consonância a esse estudo, aprofundou-se a investigação das
ferramentas estratégicas linguístico-literárias, entendendo que todas as
imagens-mensagem foram erigidas tanto na forma como no conteúdo de
maneira champurada, ou seja, confluindo tanto para a cultura ocidental quanto
para a oriental, perfazendo-se assim a construção de um conceito poético,
denominado champuramento.

Conectar-se com os fatos histórico-geográficos da cidade de Macau, China,


faz-se de fundamental importância para o estudo de alguns dos poemas da
obra Taotologias. Esse conhecimento possibilita compreender como é feito o
processo de criação, elaborado por uma voz poética que percorre
mutativamente os vários ciclos, compostos de inúmeros naipes, os quais
engendram as camadas champuradas das rotas dessa obra. Isso
proporcionaria uma forma de leitura que deixa a percepção mais fluida quanto
à depreensão da montagem das imagens-mensagem produzidas nos poemas.

Em sequência disso, a mutabilidade poética de Taotologias é para o próprio


autor, Rui Rocha, uma forma literário-linguístico de expressar a visão,
champurada, da paisagem citadina asiática. Vale dizer que essa mutabilidade é
apresentada pelas imagens-mensagem, que são imagens dialogadoras da
mensagem poética ideográfica asiática. Conforme as palavras do autor, “um
dos aspetos da [...] poesia é a tentativa de expressar precisamente essa
paisagem linguística/gráfica que a cidade nos sugere” (ROCHA, In Entrevista).
Ainda, continuando o seu comentário, ele afirma que: “A essência da poesia
[...] é a captação do mistério das coisas e dos seres e a vibração da sua
eternidade. A poesia é uma estética que pode ser apresentada, sentida, mas
não pode ser traduzida facilmente pela linguagem. Razão pela qual [é] tão
difícil a arte da tradução em geral, mas muito particularmente a tradução da
poesia. Wittgenstein, no seu Tratactus Logico-Philosophicus, disse do que não

120
podemos falar (os valores), devemos manter o silêncio.” (ROCHA, In
Entrevista).

Portanto, há uma pretensão de se identificar, nos versos de Taotologias, o


silêncio filosófico-religioso, coordenador de uma sensibilidade champurada
capaz de conectar elementos ocidentais e orientais, os quais se fazem
imagens-mensagem pelas estratégias literário-linguísticos de alegoria, difração,
cronotopia, tropo, gradação sensorial geográfica, bem como a emotividade
transposta pela hermenêutica da voz poética, além de aspectos da fauna e
flora mundial.

A relação histórica de Macau com a Língua Portuguesa dá-se desde 1513.


Essa cidade chinesa foi e tem sido, desde a chegada dos portugueses, no
século XVI, uma porta de acesso para a entrada da civilização ocidental, na
China e vice-versa (SIMAS, 2007). Esse intercâmbio cultural entre o ocidente e
o oriente moldou não só a identidade da cidade macaense, como também o
olhar champurado da voz poética que se expressa nos versos de Taotologias.
Hodiernamente, desde 2018, esse território insular chinês, Região
Administrativa Especial de Macau (RAEM), junto à RAE de Hong Kong,
desponta-se como a maior metrópole do mundo. Elas foram ligadas por uma
ponte de 29,6 km, com uma seção de 22,9 km acima do nível do mar e outra
abaixo, por um túnel submarino (HARVEY, 2014). O território chinês, tanto
peninsular/insular, quanto continental, apresenta-se como um dos últimos
espaços globais de transição econômica, no que tange à ordem capitalista
ocidental. A China, em especial após a reforma Deng, entre os anos 1970 e
1980, teve um dos seus maiores períodos de industrialização, tomando
grandes proporções, segundo Kissinger (2011). Esse processo de
industrialização traz impactos à urbanização, o qual reverbera na literatura
composta em Taotologias.

A análise crítico-literário-linguística da obra Taotologias apresenta como


problema a indagação sobre como os textos fazem-se estruturados, à media
que deixam transpassar o processo de champuramento, de modo que esse
processo constrói uma produção simbólica subjacente à construção dos textos,
podendo se afirmar que é um processo que se opera na infra-língua, por
intermédio da ferramenta “close reading”, partindo da elaboração entremeada
de todos os elementos estratégicos usados para compor a poesia da imagem-
mensagem emblemática, desencadeando-se, assim, a estética da obra. Além
disso, o processo em questão apresenta uma fricção entre a infra-língua e a
linguagem, a qual desencadeia um contorno próprio do champuramento no
resultado dessa composição emblemática.

A criação da palavra “champurado”, e suas derivações, é uma proposta que


trabalhada durante as análise das escritas dos poemas, embasada nos estudos
de Bhabha sobre o hibridismo. Já a conceituação mensagem-imagem proposta
para delimitar o constructo poético, foi elaborada a partir da união dos
elementos linguístico-literários aos preceitos filosófico-religiosos, bem como
aos fatos histórico-geográficos dentro da composição poética de Taotologias,

121
tendo como substrato o conceito de imagem-pensamento (“imagem de
pensamento”) de Walter Benjamin (2004). A partir desse conceito, ele diz ser
difícil nomear o que temos diante dos olhos (p.22). Para Benjamin a imagem é
uma forma dialética da imobilidade; logo, a imagem pode ser entendida como a
concretude de uma possível abstração, que se pretende materializar. E ele
continua argumentando que isso, ao se expor o nome de algo, é, na verdade,
um feito, o qual se faz sentir sobre a autoria, a qual se utiliza dessa ferramenta
linguística, denominada nomeação, pois tal autoria tem o poder de restrição,
ampliação, ou seja, de escolha. Essa imagem dialética, consequentemente,
abarca o processo de composição, que se divide em duas vias. Uma pela
concepção criativa, a qual se esvai quando da consumação da obra. A outra,
verificada após a consumação dessa obra e alcançanda a partir do interior da
própria obra, sendo a criatividade sua feminilidade e a visualização do interior
da obra a sua masculidade, coadunando em um todo, que é a própria obra em
si. O termo imagem-pensamento é também uma referência ao poeta Mallarmé,
o qual constrói a imagem-poética do não “saigner par l'image de la pensée”
(sangrar pela imagem de pensamento). Além disso, propõem-se que a
recepção de leitura da obra é a de que a suavidade do Dao, símbolo daoista,
em conjunto, subsidiário, com a sensibilidade zen e o amor universal cristão,
assim como o moísmo, visam a uma sincronicidade e à quebra da linearidade
do tempo-espaço, possivelmente, levando o leitor a experienciar, por meio dos
elementos específicos da estruturação da obra, as imagens-mensagem
champuradas, veiculadas pela condução hermenêutica da voz poética, uma
vez que a cultura, a filosofia e a religião são construtos artísticos e estéticos
capazes de unirem o mundo concreto e o mundo simbólico da vida, que se
apresentam pela arte literário-poética (SCHOPENHAUER, 2006).

Logo, à medida que as possibilidades se apresentam durante as inúmeras


leituras dos textos de Taotologias, identificam-se as estratégias literário-
linguísticas. Essas são de suma importância para que se coloque, diante dos
leitores um arsenal capaz de fazê-los depreender as nuances literárias, e
mesmo linguísticas, que se apresentam nos textos em português produzidos
por um usuário da Língua Portuguesa, mas, muitas vezes, distante literário-
linguisticamente deles.

O título da seção “taotologias”, bem como o título da obra, Taotologias, podem


ter como análise a alusão ao Dao (Tao), símbolo daoísta (taoista), traduzido
como caminho, o qual é entendido como um constante retorno. Os títulos, da
seção e da obra, são compreendidos, dessa forma, como o estudo do caminho
poético. Esse título (Taotologias com “o”) poderia ser confrontado ao termo
“tautologia” (tautologia com “u”), palavra de origem grega. Tautologia é um
conceito usado em Lógica, que é uma ciência e arte do raciocínio (ocidental). O
raciocínio é uma forma de processamento simbólico de informações que visa
tornar explícitas formas de conhecimento que antes estavam implícitas
(BUCHSBAUM, 2006). Tautologia, então, dentro da Lógica, é uma fórmula de
proposições, que é sempre verdadeira para todas as possíveis valorações de
suas variáveis. Ou seja, se houver um conjunto negativo, ou um conjunto
positivo, ou um conjunto negativo e positivo, o resultado será sempre

122
verdadeiro. A tautologia busca, portanto, o resultado verdadeiro continuamente,
mesmo que causa e efeito venham um após outro, seja pela validação negativa
ou pela validação positiva. O Dao busca o verdadeiro continuamente, embora
causa e efeito sejam simultâneos, pelo equilíbrio entre as ações negativas e
ações positivas. Donde se pode depreender que tanto o ocidente, em sua
tradição transcendentalista, quanto o oriente, em sua tradição imanentista, e
muitas vezes, também transcendentalista, podem se cruzar, porque pleiteiam o
mesmo fim: a verdade. Por conseguinte, os títulos, da obra e da seção, são um
provável jogo de palavras, analisado, foneticamente, como um trocadilho com a
palavra “tautologia”. Separando-se o morfema “tao”, tem-se a alusão à
simbologia, do Dao (Tao), do ciclo, enquanto que o morfema “tau” se remete à
redundância. Este último morfema, mesmo apresentando uma conotação
pejorativa, na concepção ocidental, ainda se coaduna com a ideia de constante
retorno, na concepção oriental, sendo ambos um reforço, ou positivo ou
negativo, dos fatos que se repetem de alguma forma. Para além disso, tem-se
que o prefixo grego “tauto-” da palavra “tautologia” com uma significação de “o
idêntico”, “o mesmo”. Essa possível atribuição pode reverberar na obra
Taotologias como um encontro com o outro, quando dos poemas referentes
ao humano, bem como também pode deixar a ver um desencontro,
apresentado nos poemas referentes ao social. A obra é uma coletânea de
assuntos experienciados por uma voz poética. Uma das possíveis maneiras de
leitura desses textos é sob o símbolo zen, indutor de uma leitura em 360º,
portanto cíclica, em que essa voz conduz as viagens poéticas, que englobam
tantos os hemisférios ocidentais quanto orientais, por entre as imagens-
mensagem impressas pela linguagem no livro. É uma rota literária de
conhecimentos esparsos coletados pelos caminhos percorridos por tal voz
poética. Esse possível caminho cíclico é entendido, conforme a experiência do
Dao, como subjacente à obra, por meio do conceito de alegoria, sendo sutil
como a pintura oriental (chinesa) e a sensibilidade imaginativa poética ocidental
(portuguesa). Encontram-se, na obra, as estratégias literário-linguísticas
próximas à técnica poética hai-ku, processos de epigenética das cores, teoria
dos jardins, urbanidade, bem como uma nuance de eroticidade, além da
cronotopia.

A arte de composição poética macaense, segundo entendimentos de Devid


Brookshaw, em língua portuguesa da obra Taotologias, permeia a colocação
dos vocábulos em meio aos versos, o que se entrelaça à forma literária poética,
muitas vezes apresentada em forma de um pequeno poema, com uma métrica
próxima à tradição lírica hai-ku, apresentando um conteúdo circunscrito não só
ao diálogo com a Natureza, mas também com uma forte conotação subjetiva,
mais afeita à poética ocidental. Logo, não só a forma como também o conteúdo
da elaboração de composição da obra Taotologias fazem-se champurados,
em quase toda a sua totalidade. A obra Taotologias, parece favorecer uma
leitura em 360º – ao modo do constante retorno do Dao –, tanto pelo conteúdo,
que vai do Dao ao social, quanto pela forma, que começa em pequenos versos,
cresce e volta aos pequenos versos.

123
A palavra “champurada”, bem como suas flexões e derivações, delineada por
intermédio das explanações das escritas da obra, é uma gênese de
significância transferencial das culturas usadas na criação das escritas da obra
Taotologias, como embasamento, na performance cultural, em que se expõem
os poemas, entrelaçando, portanto, os entendimentos culturais aos
entendimentos literário-linguísticos. Conceituação criada, especialmente, para
identificar, na obra Taotologias, o processo criativo genuinamente macaense.
A criação dessa conceituação foi concebida, como uma espécie de derivação
concernente à localidade macaense, a partir da conceituação de hibridismo de
Bhabha, sendo uma espécie de amálgama de todos esses substratos
constitutivos da análise crítico-literária. Também, a expressão imagem-
mensagem é um construto embasado por ideogramas chineses que imprimem
na linguagem a imagem do signo, unindo artisticamente significado ao
significante.

Referências
triZ périZ (beatriz jobim pérez senra) é Prof. Mestra em Literatura como
marketing: preceitos ocidentais e orientais, sincronicidade expressa pela
linguagem imagética, por intermédio da cronotopia, pela UFJF, Brasil.

BENJAMIN, Walter. Imagens de Pensamento. Lisboa: Assirio & Alvim, 2004.

BUCHSBAUM, Arthur. Lógica Geral. São José (SP): [s. n.], 2006.

HAVEY, David. Cidade Rebeldes. Trad. Jeferson Camargo. Paulo: Martins


Fontes, 2014.

KISSINGER, Henry. On China. New York: The Penguin Press, 2011.

ROCHA In entrevista. In SENRA, Beatriz Jobim Pérez. Taotologias, de Rui


Rocha: uma poética do champuramento. 2023. 145 p. Orientador: Alexandre
Graça Faria. Dissertação (mestrado acadêmico) - Universidade Federal de Juiz
de Fora, Faculdade de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras, 2023.
1. imagem-mensagem; 2. champurado, 3. linguístico-literário, 4. oriente, 5.
ocidente.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. São


Paulo: Acrópolis, 2006.

SIMAS, Mônica. Margens do destino: Macau e a literatura em língua


portuguesa. São Caetano do Sul: Yendis, 2007.

124
CHAMPURAMENTO - UM CONCEITO POÉTICO - NA PRÁTICA,
por triZ périZ

A seção “taotologias” da obra Taotologias, do auto Rui Rocha, residente de há


mais de 40 anos na cidade de Macau, na China, inicia-se com poema a seguir,
pelo qual se pode comprovar o coneito poético de champuramento que é o
processo constitutivo de uma produção simbólica subjacente à construção dos
textos poéticos, podendo se afirmar que é um processo que se opera na infra-
língua, por intermédio da ferramenta “close reading”, partindo da elaboração
entremeada de todos os elementos estratégicos usados para compor a poesia
da imagem-mensagem emblemática, apresentada da obra como um todo,
desencadeando-se, assim, a estética dessa obra.

o lance de escada
desceu pelo teu tornozelo
pisando pelo fim da tarde

pouco havia a dizer


da sombra do vento
que varria o chão

talvez a lua
ou o ladrar do cão
que ecoavam no beco
(ROCHA, 2016, p.09)

A imagem poética depreendida do poema “o lance de escada” é a de um


movimento, que perpassa todo o poema. Essa movimentação inicia-se nos três
primeiros versos, com a escolha dos significantes “desceu” e “pisando”, de
modo que o deslocamento continua até o último verso, por meio da escolha
dos significantes: “vento” e “varria”, no segundo terceto; “ladrar” e “ecoavam”,
no último terceto. Por meio de um processo de sinestesia, a mobilidade é
montada pela união da possível imagem da sombra do crepúsculo, que desce
pelas pernas de alguém, ou de algo, até chegar ao seu tornozelo com o
possível som do movimento dessa sombra, som esse criado pela imagem
acústica advinda dos vocábulos “vento” e “varria”. Ainda, quanto à mobilidade,
nos versos quatro, cinco e seis, a palavra “sombra” é qualificada por um
adjunto adnominal, “do vento”, que empresta a ela a justa ideia de
deslocamento, reforçando o primeiro terceto. Essa sombra, ventosa, varre o
chão, intensificando a imagem da movimentação. Além disso, o ato de varrer o
chão pode ratificar a ideia de som, dentro do processo de sinestesia,
unificando, assim, imagem e som, perfazendo um signo com sua imagem
acústica (SAUSSURE, 2012). Ter-se-ia, portanto, como possibilidade de
imagem-mensagem, do ponto de vista do observador, uma escada em espiral,

125
para que a ideia de mobilidade dessa sombra, perpassando pelo corpo de um
hipotético transeunte, por exemplo, fosse concretizada.
Há, nesse poema, a observação de uma Natureza que se pode denominar de
natureza urbanizada, indo ao encontro do processo de desintoxicação citadina.
Esse processo de desintoxicação urbana é demonstrando por meio do contato
com a Natureza, o qual se dá de forma silenciosa e calma, proporcionando,
dessa maneira sossegada, a possível desintoxicação das emoções
incorporadas pela voz poética, por meio do silêncio advindo dessa Natureza,
que se coaduna com os preceitos filosófico-religiosos do daoismo. No poema,
verifica-se esse processo por meio da simples contemplação da cena que se
apresenta.

Nos últimos versos, a lua parece entrar em contraste com a sombra, podendo
criar uma nuance de claro e escuro. O elemento lua, que “talvez [...] /[...]
[ecoava] no beco”, permite depreender uma expansão sinestésica da luz,
advinda desse satélite, a qual se espraiava pela localidade “beco”,
preenchendo-o, assim como o som do cão também preenche esse mesmo
“beco”.

Isso pode ser verificado no ladrar do cão que corrobora com esse processo
acústico. A voz poética utiliza do verbo “ecoavam” e expande a sonoridade por
meio dos significantes “chão/cão” e “eco/beco”. O significante “beco”, em
alguns momentos, seria um anteparo para o som, para o movimento, podendo
ter sua significação entendida como beco da urbanização que, no momento da
análise do significado, poderia ser o enclausuramento da imagem sombria do
ser transeunte citadino, em Macau. Faz-se necessária a informação de que o
significante “beco” contém também a denominação de logradouros. Logo,
“beco”, no português macaense e também no de Portugal, pode ser, pela via
imagética do poema, uma montagem de rua, desfazendo-se, assim, a imagem
de beco, possivelmente construída por um leitor brasileiro das grandes
metrópoles, nas quais há muitos becos, entendidos como pequeninas vielas,
muitas vezes sem saída.

Em consequência disso, verifica-se que a estratégia do fazer poético é


evidenciada, a priori, por meio da imposição da dificuldade em adentrar no
significado da palavra, que utiliza o fundo e a forma dos vocábulos escolhidos
de modo sinestésico, articulando um efeito estético, o qual, em um segundo
momento, viabiliza a aliança do significante com significado. Isso resulta em
uma ação comunicativa literária alegorizada, que se pode chamar de amplitude
espacial do sensível, expondo a percepção champurada (BHABHA, 1998).

Faz-se imprescindível informar sobre o uso da estratégia de champuramento,


que é conceituação criada especialmente para identificar, na obra Taotologias,
o processo criativo genuinamente macaense, com uma espécie de derivação,
localmente compreendida, da conceituação de hibridismo. Para tanto, entende-
se, de suma importância, a compreensão sobre o Papiaçam ou patuá
macaense (BATALHA, 1994), denominado crioulo macaense, sendo uma
língua crioula de base portuguesa, formada em Macau, a partir do século XVI,

126
influenciada pelas línguas chinesas, malaias e cingalesas, com formação
influenciada pelo idioma inglês, tailandês, japonês e de algumas línguas da
Índia. Esse Papiaçam apresenta a palavra champurado para designar a gênese
de tais idiomas, transmutados, dessa forma, em uma língua macaense
(PEREZ, 2016). Logo, as cenas das imagens-mensagem elaboradas nos
versos de Taotologias encontram-se descritas dentro do que, por analogia,
pode-se denominar champuramento, pois resulta de uma gênese igualmente
cultural. Para se acompanhar melhor o curso da metodologia proposta para as
escritas da voz criada por Rocha, nesse poema, o conceito supracitado é
entendido como uma transmutação da significação dos vocábulos inseridos nos
versos, por meio da combinação de fones escolhidos com o sistema da
linguagem, em que se reproduz a obra, estruturando, assim, os versos e,
dentro deles, os signos, a partir de diversas maneiras de ordená-los ou colocá-
los em oposição (BHABHA, 1998, p.183-4). Dessa maneira, na performance
cultural, em que se expõe o poema, tem-se uma percepção euro-asiática dessa
gênese de significância transferencial das culturas usadas como
embasamento, entrelaçando, portanto, os entendimentos culturais aos
entendimentos literário-linguísticos.

Essa percepção champurada também é vislumbrada em Seabra Pereira


(2015), via cultura filosófico-religiosa, quando a obra Taotologias é descrita
como uma possível convergência contrastante entre orientação discursiva
prevalecente na tradição poética ocidental e oriental. Esta última é baseada na
tradição poética do Chan (zen), além de se basear no próprio ato de escrita
econômica em relação ao sentido da escrita poética por meio de um olhar e de
um sentido do lugar, centrando o texto em relatos sensíveis do aqui e agora,
prefigurando a apreensão do estar, que possibilita a transcendência da
dimensão do texto. E ainda tem-se a visualização da presença da Natureza. Há
também o espírito e a forma da tradição poética ocidental, a qual centra-se no
logos e apresenta, muitas vezes, uma eloquência verborrágica. Apesar disso, o
aspecto espiritual oriental, também pode ser associado à disposição de espírito
e à intuição do sagrado e do divino da escrita ocidental, no tocante a uma visão
contemplativa cristã, via místicos cristãos, como, por exemplo, Mestre Eckhart.
Feita essa explanação sobre a conceituação de champuramento pode-se
identificar por meio do vocábulo “escada”, também, essa estratégia literária
macaense, quando se observa que tal vocábulo pode aludir ao arquétipo de
escada, o qual contém em si o simbolismo da escada remetente à tradição
platônica, portanto pensamento ocidental. Segundo essa tradição, descreve-se
a ascensão da alma a partir do mundo sensível, material, elevando-se degrau a
degrau, em direção ao mundo inteligível, ideal. Isso, no poema, pode ser lido
em conjunção com o vocábulo “beco”, um topos da geografia imaginativa,
possivelmente com referência a um lugar da cidade de Macau, emprestando
um elemento oriental para a construção da imagem-mensagem champurada.

Essa escada pressupõe, dessa maneira, uma hierarquia e um movimento, para


que a ascensão ocorra. Esse movimento é verificado no poema, embora ele se
dê pela via descensional. Por esse olhar, a escada do poema, ou mais
imageticamente a sombra que desce essa escada, apresenta-se em posição

127
contrária ao que, culturalmente, atribui-se ao que pode ser o símbolo da
ascensão e da valorização, associados à verticalidade, com a relação à terra e
ao céu. No caso, seria do céu à terra. Completando a simbologia do arquétipo
escada, tem-se que seus degraus podem simbolizar os planos da mente e os
planos de existência, no aspecto espiritual. Já no aspecto mental pode
simbolizar uma via de comunicação descensional ao inconsciente, o que para
os leitores mais afeitos à psicologia junguiana seria uma possibilidade de
leitura, e um ascensional ao consciente. O intermédio dessa comunicação,
também faz-se possível, quando se permanece parado em algum degrau da
escada, podendo simbolizar o sedentarismo mental e/ou espiritual. Os degraus
são pontos de passagem por onde se pode compreender o que ficou para trás
e vislumbrar o que vem adiante. Dessarte, a escada possibilita escolha, a qual
pode estar relacionada à obtenção ou carência de algum tipo de valor. Ainda,
vislumbrando a imagem-mensagem da escada, contemplada na primeira
estrofe do poema, observa-se um processo de personificação, o qual termina
na expressão “fim da tarde”, colocando em evidência a teoria da cronotopia de
Bakhtin, a ser discutida mais adiante junto ao topos beco. Tal expressão
evidencia o trabalho com a ideia de tempo, um tempo crepuscular, remetendo,
novamente, à Natureza. Somando-se a essa análise, tem-se o símbolo
“escada” trabalhado no peoma de Li Bai, amplamente divulgado pela tradução
de Ezra Pound, como “Lamento da escadaria de jade”. Um dos mais
conhecidos poemas do mundo ocidental, traduzido, provavelmente, de uma
versão japonesa, uma vez que Pound atribui o poema a Rihaku, denomiação
japonesa para o poeta chinês Li Bai. Observa-se detalhes, como ser a
escadaria de jade, por isso a ênfase na títulação “Lamento da escadaria de
jade”. Essa escadaria seria de um provável palácio. Os lamentos podem-se
referir a alguma razão de queixa, as quais em decorrencia das citadas meias
de seda, podem ser atribuídas a uma dama da corte desse palácio. E ainda
sobre estar visível a “lua de outono” pode haver o entendimento de que o
tempo não é desculpa. Essa lua despontou no horizonte, pelo fato de o orvalho
ter branqueado os degraus e entrado nas meias da imagem construída da
provável dama. Há uma tradução feita por Ricardo Primo Portugal e Tan Xiao,
diretamente do original chinês:

玉阶怨
玉阶生白露
夜久侵罗袜
却下水晶帘
玲珑望秋月

Lamento da escadaria de jade


Degraus de jade nasce o branco orvalho
tardia noite a entrar nas meias seda
Baixa a cortina em contas de cristais
lua de outono vaza em transparências

128
pela qual se pode verificar a confluência temática subjacente a ambas
literaturas ocidental e oriental, corroborando enfaticamente em um possível
champuramento que se desenlaça nas escritas de Taotologias.
Quanto ao “beco”, no qual se pode assistir o desenrolar da imagem-
mensagem, topos de empréstimo oriental, pode-se depreender que o autor faz
referência ao Beco de São Domingos, um sítio que também faz parte do Centro
Histórico de Macau, localizado no Largo de São Domingos. Esse local público
faz parte da construção da primeira igreja de arquitetura ocidental, realizada
pelos dominicanos espanhóis, os quais, após terem sido obrigados a sair de
Macau, tiveram seus domínios repassados aos administradores dominicanos
portugueses.

A Igreja de São Domingos, cujo nome completo é “Igreja do Convento dos


Dominicanos de Nossa Senhora do Rosário”, tradução do nome originalmente
em espanhol, foi fundada, em 1587, por frades dominicanos espanhóis,
oriundos de México, então colônia espanhola. A população chinesa da
localidade macaense denominava-a de Pan Cheong Miu, que em tradução livre
seria Pagode de tábuas de madeira. Essa denominação deveu-se ao fato de a
construção religiosa ter sido feita em madeira, sendo refeita em alvenaria no
século XVII. Já em 1834, devido à expulsão e extinção de todas as ordens
religiosas no Império Português, a Igreja de São Domingos foi confiscada pelo
Governo de Macau e fechada ao culto católico. Com o abrandamento da
política anticlerical portuguesa, no final do século XIX, o Governo de Macau
devolveu a administração religiosa à Confraria de Nossa Senhora do Rosário
da Mãe de Deus, retomando os cultos católicos (BRAZÃO, 1957). Já no século
XX, em 1994, a igreja foi restaurada e reaberta e, em 1997, apresentou-se
como um novo Museu de Arte Sacra, instalado em três andares do renovado
campanário e da torre sineira. Essa edificação está incluída na Lista dos
monumentos históricos do Centro Histórico de Macau, bem como na Lista do
Património Mundial da Humanidade da UNESCO (MACAO TURISM, 2022).

O topos usado para denominar o elemento “beco”, pelo exposto imediatamente


antes, vai ao encontro de que a eleição do elemento oriental “beco” também já
se encontra champurada em sua raiz, visto que era uma passagem utilizada
por ocidentais, durante a sua história, considerando essa possibilidade de
leitura. Sobre esse topos e também sobre o tempo, em o “fim da tarde”, pode-
se verificar outra estratégia literário-linguística observada nessa primeira
estrofe. Entende-se a composição cronotópica dessa imagem-mensagem,
segundo o conceito de cronotopos de Bakhtin, pelo qual se depreende a união
do “movimento visível do tempo histórico, indissociável da ordenação natural
de uma localidade e do conjunto dos objetos criados pelo homem,
consubstancialmente vinculados a essa ordenação natural [...]”, ao
espaço/localidade, uma vez que “[tudo], neste universo, é espaço-temporal,
tudo é cronotopo autêntico. Obtém-se assim o mundo concreto, visível e único
do espaço humano e da história humana, ao qual se referem todas as imagens
nascidas da imaginação criativa” (BAKHTIN, 1997, p.252-265). Nessa análise,
faz-se necessário enfatizar que isso perpassa a dissecação apurada da
“palavra [que] está sempre carregada de um conteúdo ou de um sentido [...]

129
vivencial. É assim que compreendemos as palavras e somente reagimos
àquelas que despertam em nós ressonâncias [...] concernentes à vida.”
(BAKHTIN, 1997, p.70).

Consequentemente, a teoria de Bakhtin vai ao encontro do que se pretendeu


demonstrar como hipótese de leitura para o poema em análise. Ainda dentro
dessa discussão, sobre o uso do vocábulo “localidade”, nesta dissertação,
afirma-se estar condizente com o conceito de espacialidade de Borges Filho,
em que “espacialização [...] [é] a maneira pela qual o espaço é instalado dentro
da narrativa [...] [remetendo-se] à ideia de focalização” (2007, p.61), que
converge para o que se demonstra nas escritas desse poema. Essa proposição
de Borges Filho junto a sua afirmação de que “o conceito de paisagem está
ligado à ideia do olhar [...]” (p.52), embora ele não cite Collot em suas
referências bibliográfica, está intimamente ligada à conceituação geo-literária
de Collot, para o qual “paisagem literária” é “[a] paisagem [que] aparece, assim,
como uma manifestação exemplar da multidimensionalidade dos fenômenos
humanos e sociais, da interdependência do tempo e do espaço e da interação
da natureza e da cultura[...]” (2013, p.9, grifo nosso). E continua: “a paisagem é
também um procedimento estratégico” (p.11), definido como “um espaço
percebido, ligado a um ponto de vista: é uma extensão de uma região [...] que
se oferece ao olhar de um observador” (p.17). Logo, fica evidente que tanto
Borges Filho e Collot têm o mesmo entendimento sobre a paisagem, no que se
refere ao olhar do observador sobre ela e ao fato de que tais formas de
contemplá-la entram em conexão com processo de champuramento
estabelecido como olhar hibridizado da composição poética em Taotologias.
Faz-se prudente abordar que o conceito de paisagem de Borges Filho está
atrelado ao polo da beleza e da feiura (2007, p.52-3), que vai ao encontro do
conceito de Arte, que é de suma importância para o entendimento do processo
de champuramento, que está sendo demonstrado. Além desse modo de leitura,
tem-se a possibilidade de uma análise da localidade “beco” criada pelo
processo de topoanálise, conforme conceito de Bachelard e segundo as
técnicas propostas e ampliadas por Borges Filho, a ser explicada durante a
análise dos demais poemas.

Além do proposto, o uso do vocábulo “localidade”, nesta dissertação, também


está condizente com o conceito de espaço literário, de Maingueneau (2018), o
qual ele propõe ser uma localidade paradoxal, uma paratopia, a qual não é
ausência de lugar, mas uma difícil negociação entre lugar e não-lugar, uma
localização [...]. Logo, paratopia é uma invenção de uma
paisagem/espaço/lugar paralelo ao que já existe, pontualmente como poder-se-
ia depreender da imagem-mensagem em questão. Para criar esse novo locus
usa-se de códigos linguísticos, ethos, cenografia entre outros (p. 68).

Espaço Literário, desse modo, será “um campo, lugar de confronto entre
posicionamento estético, que investem de maneira específica gêneros e
idiomas” (p.90-92).

Referências

130
triZ périZ (beatriz jobim pérez senra) é Prof. Mestra em Literatura como
marketing: preceitos ocidentais e orientais, sincronicidade expressa pela
linguagem imagética, por intermédio da cronotopia, pela UFJF, Brasil.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

BATALHA, Graciete. N. Língua de Macau: o que foi e o que é. Revista de


Cultura, Macau, n.20, 2 série, [n. p.], jul./set. 1994. Disponível em:
http://www.icm.gov.mo/rc/viewer/32001/2088. Acesso em: 23 nov. 2019.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998.

BORGES FILHO, Ozíris. Perspectivas Espaciais. In: BORGES FILHO, Ozíris.


Espaço e literatura: introdução à topoanálise. Franca (RS): Ribeirão Gráfica e
Editora, 2007, p. 57-172.

BRAZÃO, Eduardo. Macau Cidade do Nome de Deus na China. Barcelona:


Ultramar, 1957.

COLLOT, Michel. Poética e Filosofia da Paisagem. trad. Ida Alves. Rio de


Janeiro: Oficina Raquel, 2013.

MACAO TURISM. Tesouro de Arte Sacra. Disponível em:


https://www.macaotourism.gov.mo/pt/sightseeing/museums-and-
galleries/treasure-of-sacred-art. Acesso em: 29 mar. 2022.

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. São Paulo: contexto, 2018.

PEREZ, Sérgio. Macau Champurado. Youtube, 22 set. 2016. Disponível em


https://www.youtube.com/watch?v=luqX4AM0zO0. Acesso em: 03 fev. 21.

ROCHA, Rui. Taotologias. Macau (China): Labirinto, 2016.

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. ed. 28. São Paulo:
Cultrix, 2012.

TAN, Xiao & PORTUGAL, Ricardo P. Antologia da Poesia Clássica Chinesa:


Dinastia Tang. São Paulo: UNESP, 2013.

131
A MEMÓRIA E A IDENTIDADE NA NARRATIVA DO
ROMANCE A POLÍCIA DA MEMÓRIA, DE YOKO OGAWA, por
Allana da Silva Araujo

O romance A Polícia da Memória, da japonesa Yoko Ogawa, foi lançado em


língua japonesa em 1994, pela editora Kodansha Ltd., cuja publicação
brasileira, com tradução de Andrei Cunha, foi lançada pela editora Estação
Liberdade em 2021. A Polícia da Memória narra a história de uma escritora que
vive em uma ilha controlada por uma instituição responsável por ditar o que
deve ou não ser apagado da memória de seus habitantes. Essa escritora ajuda
seu amante — e editor — a se esconder da polícia da memória, uma vez que
ele é uma das poucas pessoas da ilha que não são afetadas pelos sumiços
(maneira com que nomeiam o fenômeno dos esquecimentos).

No decorrer da narrativa, vários elementos são adicionados de modo que haja


uma relação entre memória e identidade. A cada sumiço de objetos
aparentemente comuns e inofensivos, memórias relacionadas a esses também
desaparecem, causando o surgimento gradativo de vazios na identidade não
apenas dos habitantes da ilha, como também dela própria.

A primeira característica que chama a atenção é o fato de que nenhum dos


personagens possuem (ou são identificados com) um nome próprio. Com
exceção de R, personagem que chega mais perto de ter uma identidade e um
dos únicos ativos na narrativa que não são afetados diretamente pelos
sumiços, o professor Inui, um velho amigo dos pais da protagonista, e a própria
protagonista, todos os outros são identificados por suas profissões ou funções
sociais. Nem mesmo a ilha tem um nome, o que ajuda a descaracterizá-la
como um local de acolhimento ou um lar:

‘Hoje, a chapelaria do outro lado da rua é uma loja de guarda-chuvas. O


marido de minha babá passou de motorneiro da balsa a guarda-noturno de
um silo. Uma amiga minha da escola, mais velha que eu, de cabeleireira, se
transformou em parteira. Nunca vi as pessoas reclamarem disso, nem quando
passavam a ganhar menos. Ninguém expressa pesar nem saudade. Além do
quê, todos sabem que resmungar pode causar suspeita e chamar a atenção da
polícia secreta’. [Ogawa, 2021, local. 124, grifo nosso]

O trecho acima é apenas um dos muitos exemplos que se tem desse processo
de perda de identidade presente na narrativa. O ex-balseiro passa a ser
chamado de “o velho” à medida em que toma espaço de destaque no enredo,
mas nunca pelo seu nome; a esposa do professor Inui é referida apenas como
esposa, bem como o filho do casal é referido como “o filho de oito anos”; e a

132
esposa de R, que é identificada como Senhora R, dando a entender que ser
uma esposa é o único papel que lhe cabe naquela sociedade.

Paim et al. (2019, p. 200) diz que a identidade se estabelece a partir das
interações internas e externas, o que faz da identidade algo não fixo, instável,
já que “[...] é possível afirmar que as identidades precisam ser vistas a partir do
panorama social, visto que se constroem na diferenciação com os outros e na
relação com os indivíduos e o meio que nos cercam [...]”. Essa diferença fica
clara à medida que a narrativa avança e percebemos que as identidades dos
indivíduos afetados e não afetados pelos sumiços são bem demarcadas: os
indivíduos afetados não se importam de perder as lembranças relacionadas
aos objetos que somem e apenas se adaptam à sua nova condição, enquanto
os indivíduos que lembram têm que conviver com a nostalgia causada por
essas lembranças sem poder compartilhar com outras pessoas.

No decorrer da narrativa, embora a narradora-personagem e protagonista seja


uma das pessoas afetadas pelos sumiços, há vários relatos de memórias com
seus pais. O primeiro deles é de quando sua mãe, capturada pela polícia da
memória há alguns anos por ser uma das pessoas que não eram afetadas
pelos sumiços, conta-lhe como a ilha era antes de a primeira coisa desaparecer
e o quão abundante era de coisas, além de mostrar-lhe as coisas sumidas que
havia guardado em uma cômoda: fita de cetim, um guizo, uma esmeralda, selo
para cartas, perfume… Todos esses objetos ligados não só às memórias
individuais e afetivas, como também à memória coletiva:

‘– Naquela época, todo mundo conseguia apreciar um aroma. Hoje em dia,


ninguém mais sabe o que é isso. Não é mais vendido em lugar nenhum, nem
ninguém mais quer comprar perfume. O perfume desapareceu no outono do
ano em que me casei com seu pai. Todos trouxeram seus perfumes de casa e
se reuniram à beira do rio. As pessoas destampavam os frascos e despejavam
o líquido no rio. Houve aqueles que, com expressão arrependida, depois
levavam os frascos vazios ao nariz. Mas já não havia mais ninguém que
conseguisse sentir o aroma. E, assim como o perfume desapareceu, todas as
memórias relacionadas a ele também se evaporaram. O perfume se
transformou em algo inútil, degradado ao nível de uma água de segunda
classe. Depois disso, por dois dias, em toda parte havia um cheiro tão forte que
dava náuseas. Muitos peixes morreram. Mas não houve quem se importasse,
porque o belo aroma se apagara do coração de todos’. [Ogawa, 2021, local. 88]

Mais tarde, a narradora-personagem mostra essa cômoda para seu editor e


amante, R, e, quando encontram os objetos sumidos escondidos em estátuas
que sua mãe havia feito, R fica feliz e nostálgico com o reencontro com objetos
que haviam sumido 15 anos antes, compartilhando assim uma memória com a
mãe da escritora. Sobre isso, o sociólogo francês Maurice Halbwachs [1990, p.
16] diz que:

‘[...] nossas lembranças permanecem coletivas, e elas nos são lembradas pelos
outros, mesmo que se trate de acontecimentos nos quais só nós estivemos

133
envolvidos, e com objetos que só nós vimos. É porque, em realidade, nunca
estamos sós. Não é necessário que outros homens estejam lá, que se
distingam materialmente de nós: porque temos sempre conosco e em nós uma
quantidade de pessoas que não se confundem. [...]’

O sumiço dos pássaros é um dos que mais afetam as memórias individuais da


narradora-personagem, uma vez que seu pai havia sido um pesquisador que
estudava pássaros e trabalhava em um observatório de aves silvestres, local
que ela visitava com frequência. O trecho a seguir ilustra essas visitas:

‘Meu pai era pesquisador. Estudava pássaros. Trabalhava em um observatório


de aves silvestres no alto das colinas do sul. Por uns quatro meses no ano, ele
se mudava para lá e fazia coleta de dados, tirava fotos, cuidava da incubadora,
essas coisas. Eu ia visitá-lo com frequência, sob o pretexto de levar a ele algo
para comer. Os outros pesquisadores, mais jovens, me mimavam com
biscoitos e chocolate quente.
Sentava-me no colo de meu pai e ficava espiando com o binóculo. [...] O
binóculo era muito pesado para uma criança, e logo meus braços começavam
a formigar. Quando isso acontecia, meu pai me ajudava delicadamente,
sustentando o peso do instrumento com a mão esquerda. Quando estávamos
os dois assim, bem perto um do outro, eu ficava com vontade de lhe perguntar
se ele sabia que, na antiga cômoda do ateliê, havia coisas secretas. Mas logo
me vinha à mente a imagem de minha mãe com o olhar parado contemplando
a lua crescente pela janela do porão, e a voz me faltava’. [...] [Ogawa, 2021,
local. 109-116]

Junto a essas lembranças, havia o sentimento de não reconhecimento em


relação às coisas desaparecidas, como podemos observar no trecho a seguir:

‘[...] Será que algum dia eu vira esse bicho com meu pai no observatório? No
momento em que pensei nisso, ocorreu-me que meu coração perdera todas as
informações relacionadas a pássaros que um dia pudesse ter tido. Desde o
significado da palavra “pássaro”, passando por meus sentimentos por eles, até
minhas memórias relacionadas a esses bichos — tudo se perdera’. [Ogawa,
2021, local. 141]

Halbwachs [1990] nomeia esse sentimento como o esquecimento pelo


desapego de um grupo, no qual determinada memória na qual estamos
inseridos nos parece estranha, como se outra pessoa estivesse em nosso lugar
e:

‘[...] ainda que esse fato possa ser localizado no tempo e no espaço, mesmo
que parentes ou amigos disso me fizeram uma descrição exata, acho-me em
presença de um dado abstrato, para o qual me é impossível fazer corresponder
qualquer recordação viva: não lembro de nada. E não reconheceria mais tal
lugar pelo qual passei certamente uma ou várias vezes, nem tal pessoa que
certamente encontrei. [...]’ [Halbwachs, 1990, p. 17]

134
No decorrer da narrativa, a pergunta “por que as memórias são tão perigosas?”
se torna cada vez mais frequente ao passo que a polícia da memória se torna
cada vez mais truculenta e violenta. A resposta não fica clara ao fim do
romance, mas o enredo deixa evidente que se trata de uma sociedade que vive
em um regime totalitário, no qual pessoas que têm suas memórias intactas são
potenciais riscos, uma vez que podem se rebelar. Por isso, elas são
perseguidas, e, quando encontradas pela polícia da memória, nunca mais são
vistas:

‘Eles vinham se mostrando cada vez mais autoritários e violentos. Pensando


bem, quinze anos antes, quando vieram buscar minha mãe em casa, acho que
aqueles eram os primeiros caçadores de memórias. Tinham acabado de
descobrir que havia pessoas especiais que não esqueciam o que deviam
esquecer, e a polícia secreta estava tentando prender todas. Até hoje ninguém
sabe onde foram parar todos os detidos’. [Ogawa, 2021, local. 263]

Quando a narradora-personagem percebe que a polícia da memória está cada


vez mais violenta e que R corre risco de vida, oferece a ele abrigo no alçapão
de sua casa, onde funciona um depósito de livros. Após os riscos que ela e o
velho balseiro correm para escondê-lo, os dias se passam com R acumulando
coisas desaparecidas em seu esconderijo, enquanto tenta fazer com que a
escritora e o velho balseiro lembrassem dessas coisas:

‘— Você quer se lembrar das coisas que perdeu?


— Não sei. Na verdade, não sei nem do que exatamente eu deveria me
lembrar. Quando uma coisa me some, o sumiço é completo. Não fica nada
para trás. Tenho de continuar vivendo com um coração oco. cada vez com
mais buracos. Por isso, imagino o seu coração como algo gelatinoso, mais
resistente, translúcido, que muda de aparência conforme a luz nele incide’.
[Ogawa, 2021, local. 1085]

É assim que fica evidente como os mundos de ambos são diferentes, porque,
enquanto R quer que sua amante recupere suas memórias, ela acha o esforço
inútil e extremamente cansativo. Isso fica claro quando ocorre o
desaparecimento das fotografias, como mostra o trecho a seguir:

‘Eu estava pronta para juntar todas as fotografias que tinha em casa (inclusive
a de minha mãe que estava no porta-retratos em cima da lareira) e queimá-las
no jardim, mas R insistiu que eu não fizesse isso.
— As fotografias servem para guardar as suas memórias. São um bem
insubstituível, Se você queimá-las, não tem mais volta. Não faça isso!
— Não tem nada que eu possa fazer. O sumiço já aconteceu.
— Sem as fotos, como você vai se lembrar do rosto de seu pai e de sua mãe?
— perguntou, com uma expressão séria.
— O que desaparece é a fotografia, não é meu pai nem minha mãe. Claro que
não vou esquecer do rosto deles.
— Pode ser só um pedaço de papel, mas nele fica guardado algo muito
profundo. Luz, vento, ar, o amor e a alegria das pessoas retratadas, seus

135
pudores, seus sorrisos, Você tem de guardar essas coisas. É para isso que se
tiram fotografias.
— Sim, sei disso. Eu adorava minhas fotos. Cada vez que olhava para elas,
ressuscitavam minhas mais queridas lembranças. Sentia saudades, tristeza,
um aperto no coração… As fotografias eram a bússola mais confiável que eu
tinha para andar na floresta das minhas lembranças, das minhas parcas
lembranças. Mas agora preciso renunciar a tudo isso. É desolador e doloroso
perder essa bússola, mas não sou capaz de impedir um sumiço.
— Mesmo que seja incapaz de impedir, isso não quer dizer que você precisa
queimar suas fotos. As coisas importantes da vida continuam sendo
importantes, por mais que o mundo mude à nossa volta. A essência das coisas
não muda. Se você guardar suas fotos, elas vão lhe trazer alguma coisa. Você
não pode deixar que sua memória fique cada vez mais oca e vazia…
— Mas… — eu disse, balançando a cabeça, triste. — É que já não sinto mais
nada olhando para elas. Não sinto saudades, tampouco um aperto no peito.
Para mim, são apenas papéis lustrosos. O meu coração já está oco no antigo
lugar para fotos. Ninguém sabe como reverter isso. É assim que funcionam os
sumiços. Acho que você não é capaz de entender.’ [Ogawa, 2021, local. 1236-
1252]

Aqui, a memória individual é um elemento muito forte tanto para R quanto para
a narradora-personagem, já que a falta de memórias coletivas relacionadas aos
objetos que sumiram os separa em dois grupos distintos. Halbwachs [1990, p.
22] explica que:

‘[...] se essa primeira lembrança foi suprimida, se não nos é mais possível
encontrá-la, é porque, desde muito tempo, não fazíamos mais parte do grupo
em cuja memória ela se conservava. Para que nossa memória se auxilie com a
dos outros, não basta que eles nos tragam seus depoimentos: é necessário
ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja
bastante pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrança que
nos recordam possa ser construída sobre um fundamento comum [...]’

Outro ponto relevante é que, em determinados momentos, o enredo do


romance que a protagonista está escrevendo é apresentado ao leitor e, tão
surpreendente quanto a própria história d’A Polícia da Memória, parece surgir
como uma extensão da narrativa, uma vez que relata a história de uma
estudante de datilografia cuja voz é roubada pela máquina de escrever
oferecida pelo seu professor. Sem que saiba das intenções do professor, ela
leva sua máquina para que ele possa consertá-la ou não poderia se comunicar
com ele, até que ele a mantém em cárcere, lugar em que ela vai
gradativamente sendo desumanizada: primeiro perde a voz, depois a visão, e,
por fim, todos os seus sentidos, convertendo-se em uma espécie de boneca
humana.

O romance escrito pela protagonista é importante porque, quando há o sumiço


dos romances — e, consequentemente, a queima dos livros e da biblioteca —,
a narradora-personagem inicia a sua jornada de reaprender a escrever,

136
processo que lhe é lento e doloroso, já que, para ela, escrever havia perdido o
sentido. Entretanto, ela conclui seu romance e conseguimos perceber que ele é
uma forma de eternizá-la, uma vez que, mesmo sem suas memórias, ela conta
a história do que acontece com as pessoas da ilha que são afetadas pelos
sumiços: elas se perdem de si mesmas a cada coisa que some, até chegar ao
ponto de deixarem de existir.

Helbwachs [1990, p. 32] explica que as memórias que temos mais facilidade
para lembrar são as que são comuns a pelo menos um meio, um grupo social,
enquanto que as que temos mais dificuldade de lembrar são as “[...] que não
concernem a não ser a nós, que constituem nosso bem mais exclusivo, como
se elas não pudessem escapar aos outros senão na condição de escapar a nós
próprios [...]”. Desse modo, o romance da narradora-personagem é uma de
suas memórias mais valiosas, que, ao final, acaba sendo compartilhado, por
mais que houvesse travas em sua memória.

O perder-se de si é representado fisicamente pelo sumiço da perna esquerda,


evento que causa assombramento e estranhamento aos moradores da ilha,
que não sabem lidar com uma perna inútil e que, por fazer parte de seus
corpos, não podem ser simplesmente lançadas ao fogo:

‘— O que vai acontecer?


O vizinho que trabalhava na prefeitura disse:
— Nada, ué. A ilha tem uma coisa a menos. É um sumiço como os outros.
O ex-chapeleiro, apoiado em seu guarda-chuva, opinou:
— Pois é, mas eu não estou convencido. Sinto como se meu corpo estivesse
em pedaços.
— Logo, logo você se acostuma. No início, vai ser difícil, mas não é a primeira
vez que temos dificuldade com um sumiço. Às vezes demora mais, às vezes
menos, mas sempre acabamos por aceitar a sensação de um novo oco. Não
precisa ter medo’. [Ogawa, 2021, local. 3279]

Sobre isso, Candau [2013, p. 10 apud Paim et al., 2019, p. 201] diz que
“memória e identidade se intercruzam indissociáveis, se reforçam mutuamente
desde o momento de sua emergência até sua inevitável dissolução”, o que
corrobora com a perda de identidade que as pessoas afetadas pelos sumiços
sofrem até que não reste mais nada de suas identidades individuais e sociais.
E, embora haja uma adaptação quando ocorre o sumiço de outras partes do
corpo, é inevitável que haja essa perda de identidade à medida que também se
perde a memória. A única forma de eternizar quem e o que foi a narradora-
personagem é por meio da escrita e por meio das lembranças de R, uma vez
que as palavras e histórias ecoam pelos tempos, tal qual é dito no seguinte
trecho, no qual R e a narradora-personagem conversam:
‘— Será que, mesmo depois que eu sumir, as histórias que escrevi continuarão
existindo?
— Mas é claro. As palavras que você escreveu persistirão na memória. Nada
some do meu coração. Não se preocupe’. [Ogawa, 2021, local. 3566]

137
Um pouco antes da voz da narradora-personagem, última parte de si que lhe
restou, sumir, ela diz o seguinte para R: “— Depois que eu for embora,
continue cuidando deste recinto. Quero seguir existindo em sua memória, em
seu coração” [Ogawa, 2021, local. 3607]. O esconderijo virou um lugar seguro
para as memórias, e, quando o última coisa que havia para sumir, o fez,
despersonalizando as pessoas que sofriam os efeitos dos sumiços, R se viu
livre para voltar à superfície e juntar-se aos outros que também conseguiram
manter não apenas suas memórias, como também suas identidades.

Dessa forma, por meio de R e outras pessoas que não foram afetadas pelos
sumiços e sobreviveram à caça da polícia da memória, a memória servirá não
apenas como um resgate do passado, mas também como um recurso para a
reconstrução do futuro, bem como de uma identidade.

Referências
Allana da Silva Araujo é mestranda em Letras pela Universidade Federal do
Maranhão (UFMA) e pesquisa sobre a literatura fantástica no Japão. Graduada
em Letras Português-Espanhol também pela UFMA.

HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad.: Laurent Léon Schaffter.


São Paulo: Vértice/Revista dos Tribunais, 1990.

OGAWA, Yoko. A Polícia da Memória. Trad.: Andrei Cunha. 1ª edição. São


Paulo: Estação Liberdade, 2021. Livro eletrônico.

PAIM, L. et al. “Nos becos da memória: a relação entre a memória, identidade e


escrita na obra de Conceição Evaristo”. In: Scripta Uniandrade, v. 17, n. 2, p.
196-212. Curitiba: Paraná, 2019. Disponível em:
file:///C:/Users/allan/Downloads/gbellin2,+11_V_1362_Ferreira_Paim_Umbach_
Aok.pdf. Acesso em: 29 de maio.

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