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1

BUENO, André e NETO, José M. [org.]. Antigas Leituras: Visões da


China Antiga
Original: União da Vitória/UNESPAR e Leitorado Antiguo/UPE,
2014.
Reedição: Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2022.
ISBN 978-85-65996-25-9

Disponível em Proj. Ori.: www.orientalismo.net

2
Sumário
Introdução ........................................................................................... 5
SOBRE O HUMANISMO NA CHINA; OU, DE COMO A POESIA
ORIENTOU O CÉU por Alicia Relinque Eleta ............................... 22
O CULTO DA MULHER NO NEOLÍTICO CHINÊS por Ana Maria
Amaro ............................................................................................... 56
SINOLOGIA E CONFUCIONISMO: A IMPORTÂNCIA DOS
ESTUDOS CONFUCIONISTAS PARA A COMPREENSÃO DA
CIVILIZAÇÃO CHINESA por André Bueno ................................. 78
LAO ZI E O TAOISMO por António Graça de Abreu .................. 105
O ‘RITO DE PASSAGEM DO ESCRITO AMARELO DA
CLARIDADE SUPERIOR’: RELIGIÃO E SEXUALIDADE NA
CHINA ANTIGA por Bony Schachter .......................................... 142
ZHUANGZI E ARISTÓTELES: SOBRE SER UMA COISA por
Chenyang Li ................................................................................... 168
A RELAÇÃO ENTRE LINGUAGEM E PENSAMENTO NA
ANTIGA EPISTEMOLOGIA CHINESA por Jana S. Rošker ....... 203
REFLEXÕES GENEALÓGICAS E CIRCULARES SOBRE A
FORMAÇÃO DO PENSAMENTO CHINÊS ANTIGO por Jesualdo
Correia ............................................................................................ 223
O PENSAMENTO CHINÊS DURANTE A DINASTIA HAN por
André Bueno................................................................................... 256
O CAVALO NA ANTIGUIDADE CHINESA: ENTRE O
INSTITUCIONAL E O NATURAL por Márcia Schmaltz ............ 289
OS QUATRO ANIMAIS COSMOLÓGICOS EM TÚMULOS HAN
COM MURAIS por Nataša Vampelj Suhadolnik .......................... 315

3
A REDESCOBERTA DA UNIDADE CÉU-HOMEM por Wang
Keping ............................................................................................ 363
O MESSIANISMO DO PRIMEIRO IMPERADOR por Yuri Pines
........................................................................................................ 403
BIOS ............................................................................................... 455

4
Introdução

“Homens do passado, homens de hoje – torrente que flui”1

Como idealizador e organizador da série Antigas Leituras (cujo


primeiro volume foi lançado em 2012 e o terceiro está previsto
para 2015), é um imenso prazer dar as boas vindas ao segundo
volume, dedicado inteiramente à China e tornado possível
graças ao esforço e à competência do professor André Bueno,
grande colega e amigo querido.

A proposta dessa série está expressa desde o seu título, a um só


tempo trocadilho e provocação: novos olhares sobre antigas
fontes literárias que infundem vida nova nessas leituras antigas
através da elaboração de novas perguntas. Desta feita, de
antigas leituras são construídas novas leituras, e os trabalhos
reunidos neste volume respondem à perfeição a estra
provocação.

Este livro e seu conteúdo, porém, não deixarão de suscitar uma


pergunta cuja pequenez só é comparável às sua inconveniência
e ubiquidade, pois parece brotar do nada a cada vez em que tal
temática é mencionada: pra que estudar a China? Como uma
anti-matrioshka (porque antipática, diferentemente das queridas
bonecas russas), o livro trará à tona, igualmente, um outro

1
Li Po: Com a taça na mão, interrogo a lua. In LI Po, TU Fu. Poemas
chineses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 37.

5
questionamento de equivalente impertinência: por que estudar
a Antiguidade? Tantas e tantas vezes tais indagações de asinina
natureza foram proferidas, que vem a calhar a resposta da mula
de Balaão: fustigado, o animal abriu a boca para seu dono e
perguntou-lhe “o que eu te fiz para que tu me batesse já 3
vezes?”2 Não obstante, sendo a paciência a virtude que é,
estimulemo-la.

O questionamento sobre a relevância do estudo da Antiguidade


a muitos pode parecer meramente retórica, mas não se iludam:
longe dos grandes centros (ou mesmo em suas periferias), ele
permanece vivo e pulsante; sem entrar no mérito das questões
econômicas (mais que nunca pertinentes), atentemos a um dos
motivos de tal segregação: a maneira como o conhecimento
historiográfico nacional se constituiu. Discriminamos os locais
de produção de nossa disciplina em, grosso modo, dois grupos:
os centros mais importantes (destacadamente o Rio de Janeiro
e São Paulo) produzem historiografia nacional, trabalham com
questões nacionais, enquanto os polos secundários versam
sobre as histórias regionais. Neste sistema de coisas, não se
imagina que alguém em Pernambuco deseje (ou possa)
trabalhar fora dos temas característicos ao Estado – tais como o
açúcar, a escravidão, as revoltas políticas; da mesma forma,
pareceria estranho a alguém do Paraná não pesquisar algo que
fugisse ao Paranismo e ao tropeirismo. Não obstante a
relevância dessas temáticas – dentre muitas outras que
poderíamos elencar –, nada poderia ser mais errôneo que tal
segregação. Parceira de tal antolho, ocorre certa indolência, a

2
Num, 22:27. Bíblia Hebraica. São Paulo: Sêfer, 2006.

6
ser presenciada em determinados centros de pesquisa, que se
exibe em todo seu beócio esplendor quando vincula a análise
da História Antiga a mero “desempoeirar múmias”, e estimula
os alunos da graduação a se ater a assuntos mais relevantes e
atuais.

Não há, ou pelo menos não deveria haver, histórias restritas a


determinados grupos e proibidas a outros. Existem, isso sim,
histórias bem e mal contadas; aquelas aguçam o senso crítico,
dialogam com o tempo vivido e ampliam a percepção de
mundo, enquanto estas carecem de análise e escoram-se em
velhos bordões decorados e repetidos, aparentados à coaxaria
anfíbia:

Urra o sapo-boi:

– “Meu pai foi rei” – “Foi!”

– “Não foi!” – “Foi!” – “Não foi!”3

Esse tipo particular de História não nos interessa. Não é


História Antiga, e sim história velha. “O saber histórico”, nos
ensinou Marc Ferro, “é um campo de disputas”4, e nesse

3
BANDEIRA, Manuel. Os sapos. In Antologia Poética. Porto Alegre:
Editora do Autor, 1961, p. 29.
4
Apud CAMPOS, Carlos Eduardo da Costa. Repensando a História Antiga:
Debates e Questionamentos. In BAKOS, Margaret M., SILVEIRA, Eliana

7
espaço de embates a Antiguidade se insere inteiramente,
elemento constituinte da “nossa identidade como pessoas e
como nação. Pensar sobre História Antiga é uma maneira de
pensarmos e repensarmos nosso lugar em um mundo em rápida
transformação”5. As questões prementes à nossa realidade – o
gênero, a sexualidade, a economia, as relações internacionais,
os direitos humanos, só pra citar alguns – encontram fértil
campo analítico nas fontes antigas, receptivas, que são, aos
questionamentos e às inquietações hodiernos.

Outrossim, o conhecimento e a análise da Antiguidade,


indiscutivelmente, compõem a formação do profissional de
História de nosso tempo, representando

“parte essencial e mesmo basilar do estudo do passado.


(...) Disciplinas modernas, como a sociologia de Max
Weber, fundaram-se na erudição da Altertum-
wissenschaft [o saber antigo], assim como numa pletora
de modelos interpretativos, como no caso notável das
raízes aristotélicas do habitus de Pierre Bourdieu”6.

Ávila (org.). Vida, cotidiano e morte: Estudos sobre o Oriente Antigo e a


Idade Média. Porto Alegre: Letra e Vida, 2012, p. 13.
5
GUARINELLO, Norberto Luiz. História Antiga. São Paulo: Contexto,
2013, p. 8.
6
FUNARI, P. P. A.; SILVA, G. J.; MARTINS, A. L. História Antiga:
contribuições brasileiras. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2008, p. 8.

8
E quanto à China? Por que (ou para quê) estudar uma
civilização espacial e temporalmente tão diversa da nossa? Em
1942, o célebre literato chinês Lin Yutang escrevia:

Hoje em dia o Oriente e o Ocidente não podem deixar


de encontrar-se. Causa espanto ler nos jornais da manhã
que Wendell Willkie7 esteve em Chungking uma sexta-
feira e voltou aos Estados Unidos na segunda-feira
seguinte, como se tivesse ido passar o fim da semana.
Foi quase uma mágica. Seja qual for a espécie de
cooperação que o mundo adote depois da guerra,
estamos certos de que Oriente e Ocidente terão de viver
intimamente unidos e reciprocamente dependentes.8

Passados mais de setenta anos, as palavras do prof. Lin


revelaram-se proféticas, pois não se passa único dia em que os
acontecimentos que envolvem as lideranças do imenso país
leste asiático não venham à tona: encontros de cúpula, por
exemplo, seja com a (ainda) superpotência norte-americana,
com os países europeus, ou com os BRICs, a união das
economias emergentes de Brasil, Rússia, Índia, África do Sul,

7
Político norte-americano, que concorreu à presidência pelo Partido
Republicano em 1940, contra Franklin Roosevelt, Democrata, que logrou a
vitória.
8
LIN Yutang. A sabedoria da Índia e da China: uma antologia dos tesouros
das duas grandes literaturas orientais, coligida, anotada e prefaciada por Lin
Yutang. Rio de Janeiro: Irmãos Pongetti, 1945, p. 505.

9
além da própria China, que tão recentemente quanto 15 de
julho de 2014, e em local tão próximo quanto Fortaleza, capital
do Ceará, decidiram a criação do Novo Banco de
Desenvolvimento (新开发银行), uma instituição multilateral
que funcionará como alternativa ao Banco Mundial e ao FMI.

Talvez tão importante quanto, ainda que a China ainda esteja


fisicamente distante dos brasileiros, o mesmo não ocorre com
os chineses: que grande cidade não conta, hoje, com ruas
repletas de cidadãos de olhos puxados e língua
incompreensível, vendendo produtos genérica e
pejorativamente alcunhados de xing ling? Em Atenas, nomes
tipicamente chineses são grafados em alfabeto helênico nas
marquises das lojas; em Lisboa, os produtos do dia a dia mais
em conta são vendidos pelos “chinas”, e o mesmo ocorre no
Rio de Janeiro, em Curitiba, no Recife... para onde se olha,
encontra-se a China. Uma exceção a essa ubiquidade talvez
seja, por mais irônico que possa parecer, a academia.

Em 1984, na introdução ao Atlas of China, o catedrático de


História Chinesa de Oxford. Mark Elwin, escreveu:

No momento presente, os estudos chineses (...) estão


quase completamente negligenciados, mesmo nas
nossas maiores universidades. Ficaremos mais do que
satisfeitos (...) se estas páginas ajudarem a compreender
até que ponto uma cultura geral, pessoal, quer artística
quer histórica, ou uma prática política realista requerem

10
uma profunda compreensão de uma das maiores
civilizações da Antiguidade e da Idade Média, e que é
também uma das grandes potências internacionais dos
nossos dias9

Trinta anos nos separam dessa descrição um tanto sombria, e


nas grandes universidades mundiais as cátedras de sinologia
estão mais concorridas que nunca, e as diversas disciplinas
exploram, cada qual em sua respectiva área, o universo China;
semelhantemente, no Brasil não está excluído desse processo, e
paulatinamente (amiúde com o incentivo dos Institutos
Confúcio10) os estudos sínicos firmam-se nos centros de
excelência do país. Cabe, pois, aos cursos e pesquisadores de
História, inserirmo-nos no debate, contribuindo com nosso
olhar e nossa reflexão para o esforço de compreender este novo
e importante parceiro. E nossa contribuição não é pequena,
pois como bem o explicou Mark Elwin:

9
BLUNDEN, Caroline; ELVIN, Mark. China: gigante milenário. Madri:
Del Prado, 1997, p. 12.
10
Como exemplo, temos o convênio firmado este ano com a Universidade
de Pernambuco: O Instituto Confúcio chega ao Recife como resultado de
um convênio entre a UPE e a Sede Central do Instituto Confúcio (Hanban),
em parceria com a Universidade Central de Finanças e Economia, em
Beijing. O Instituto Confúcio vai ensinar a língua chinesa, formar
professores de língua chinesa, oferecer livros e material de ensino, realizar o
exame HSK, bem como os exames para certificação de professores dessa
língua, oferecer serviço de consulta sobre a educação e cultura chinesas,
organizar atividades festivas e culturais chinesas e realizar o intercâmbio
linguístico e cultural entre a China e o Brasil.
http://www.upe.br/portal/institucional/orgaos-suplementares/instituto-
confucio/ Visualizado em 30 de outubro de 2014

11
(...) antigos textos chineses, perpetuamente
reinterpretados, tem sido compreendidos, com
demasiada facilidade, de acordo com os termos usuais
no presente. (...) Talvez seja aqui que o estudioso
ocidental tenha um papel útil a representar. Como não
está tão bem sintonizado com as sutilezas de
significados como seus colegas chineses, está muito
mais livre dos tabus, inibições e pressupostos dos atuais
chineses. De certo modo, é-lhe psicologicamente mais
fácil responder à estranheza do passado da China, pois
uma continuidade histórica não significa que –
cumulativamente – não se tenham verificado grandes
transformações.11

Como os sinólogos salientam com frequência, a China é a


civilização contínua mais antiga ainda existente; e mais do que
isso, os chineses possuem um notável senso de continuidade,
representado pela sua escrita, legível para um cidadão moderno
como o fora para um intelectual milhares de anos atrás. Logo,
uma das chaves de compreensão mais importantes para a China
atual é a China Antiga, e os vestígios que ela legou.

Diante de tudo o que foi visto, talvez as perguntas mais


apropriadas fossem: por quê não estudar a China? E por quê

11
BLUNDEN, Caroline; ELVIN, Mark. China: gigante milenário. Madri:
Del Prado, 1997, p. 12.

12
não estudar a Antiguidade? Esse estudo, essa análise, não pode
estar limitado a determinados centros escolhidos; antes, precisa
ser disseminado pelo país, “entre moringas e cenouras/
emolduradas de vassouras”, parafraseando Otto Lara de
Resende e seu poema, “Vinícius, poeta do encontro”. É esta a
tarefa à qual a presente obra se lança alegremente.

Tome-se, por exemplo, o capítulo da professora Alicia


Relinque Eleta: Sobre o humanismo na China; ou, de como a
poesia orientou o Céu. Ora, logo de início estamos em terreno
inaudito a muitos de nós, acostumados a situar o Humanismo
nos limites da Renascença italiana e, por influência desta, na
chamada Antiguidade Clássica greco-romana; a professora
Eleta amplia o horizonte deste conceito, levando-o para as mais
remotas cronologias e geografias, situando-o e às suas origens
na dinastia Zhou, milhares de anos antes de nossa era, quando
então se pensou no Ser humano como um ente “dotado de
certas qualidades, mas que deve ser transformado, educado,
cultivado, para ser capaz, em última instância, de governar os
outros”.

No texto que se segue, a professora Ana Maria Amaro transita


entre a solidez do achado arqueológico e a textura evanescente,
diáfana, do mito e da memória para entender O culto da mulher
no neolítico chinês. Nessa busca, vagamos por muitos tempos,
e partindo de nosso ensolarado hodierno, vamos até a
madrugada da civilização chinesa, sob cujo lusco-fusco
exaltou-se à mulher como “criadora de todos os homens” e à
Mãe Terra “fecunda e boa, que a todos alimenta e finalmente

13
recolhe no seu seio, renovando, em cada primavera, o ciclo da
vida”.

Para quem conhece o trabalho do prof. André Bueno, o tema


do primeiro dos seus capítulos, Sinologia e Confucionismo: a
importância dos estudos confucionistas para a compreensão da
civilização chinesa não surpreende: é o tour de force deste
jovem acadêmico carioca, que advoga em seus escritos (alguns
impressos, outros publicados em seu site) a relevância do
conhecimento da cultura chinesa, suas particularidades, e a
significação de Confúcio como eixo central dessa história,
ontem como hoje, pois, como bem nos ensina, “praticamente
impossível apreender a China de hoje sem investigar seu
passado”.

Sua contribuição seguinte, O pensamento chinês durante a


Dinastia Han, dá seguimento [indireto] ao capítulo anterior: se
lá ele visitou a fonte de onde brotou a mais relevante filosofia
sínica, aqui ele observa o rio fluindo e engordando com seus
afluentes durante a dinastia Han, “fundamentais para a
compreensão do posterior desenvolvimento do pensamento
chinês”.

No capítulo Lao Zi e o Taoísmo, o professor português António


Graça de Abreu nos brinda com erudita apresentação do
pensamento taoísta, desde a análise precisa do significado dos
ideogramas às influências e repercussões. Uma descrição
apaixonante, que passeia por entre autores, do severo
historiador Sima Qian ao não menos austero religioso Padre

14
António Vieira, numa análise que cruza tempos, oceanos e
continentes.

Em seguida, o professor Bony Schachter descreve em O rito de


passagem do escrito amarelo da Claridade Superior: religião e
sexualidade na China Antiga, a prática do sexo ritual entre os
daoístas, a que reconhece como a “estetização do sexo
praticado num ambiente onde o uso do corpo e a mobilização
de seu potencial erótico não pertencem à privacidade do
indivíduo, mas sim ao bem-estar geral de toda a comunidade”.

O ato de comparar situa-se dentre os mais importantes do


trabalho intelectual; é “confrontar sob ângulos variados,
analisar diferentes sociedades de usos e costumes”12, como
bem nos ensinou Marcel Detienne. Este importante labor
analítico é encampado pelo professor Chenyang Li em seu
texto Zhuangzi e Aristóteles: sobre ser uma coisa, no qual
realiza um “estudo comparativo desses dois importantes
pensadores [e] nos ajuda a entender algumas diferenças
fundamentais sobre Ontologia”. O esforço de compreensão do
pensamento chinês tem continuidade n’A relação entre
Linguagem e Pensamento na antiga Epistemologia chinesa, da
professora Jana S. Rošker, o qual explora as “visões específicas
e detalhadas de linguagem, e sua conexão com a percepção e
interpretação do mundo humano”.

Uma sólida contextualização histórico-social abre o capítulo


Reflexões genealógicas e circulares sobre a formação do

12
DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparável. São Paulo: Ideias e
Letras, 2004, p. 22.

15
pensamento chinês antigo, de Jesualdo Correia, opção que faz
todo sentido vis-a-vis a proposta do autor: a situação de uma
“genealogia de alguns dos fundamentos e vertentes daquilo que
constitui os fundamentos do pensamento chinês”. Se, como
afirma o ensaísta, após o marco inicial de formação da visão de
mundo chinesa (por volta do século VI antes de nossa era), a
segunda grande mudança foi a inserção do Comunismo no
século XX, não há, de fato, outra maneira para estabelecer essa
genealogia que não a localização de suas mudanças e
permanências no decorrer dessa longa História.

O capítulo O cavalo na Antiguidade chinesa: entre o


institucional e o natural, da professora Márcia Schmaltz,
cumpre um papel lamentavelmente ainda raro em nossa
produção nacional: a história das espécies que acompanham o
ser humano em suas realizações. A perspectiva que a autora
escolheu, uma arqueologia da presença física do animal e dos
significados que assumiu nas artes e na literatura, é modelar
para estudos dessa natureza.

No capítulo Os Quatro Animais cosmológicos em túmulos Han


com murais, a professora Nataša Vampelj Suhadolnik analisa a
iconografia das tumbas Han, identificando as representações
dos Quatro Animais mitológicos, os quais não apenas
encarnavam “o tempo e espaço, mas também o papel de
orientar e proteger a alma do falecido”.

A temática da ‘História Ético-ecológica’ é continuada pelo


professor Wang Keping, que no capítulo A redescoberta da
unidade Céu-Homem, analisa os “suportes essenciais e

16
relevância da unidade céu-humanidade traçando um retorno à
sua linha histórica do pensamento, com referência a
reinterpretações atualizadas”.

O livro se encerra com a discussão sobre uma das figuras mais


controversas da história mundial: o imperador Qin Huangdi.
Atualmente, espera-se de qualquer profissional de história
minimamente informado que possua, ao menos, referências
básicas dessa personagem e seu período, dados a sua
relevância. O messianismo do Primeiro Imperador, do
professor Yuri Pines, vem dissecar este monarca notável,
compreendendo e questionando o lugar excepcional que ocupa
na historiografia do seu país, e buscando uma “melhor
compreensão do papel dos monarcas na Política imperial da
China e nas relações dialéticas entre a Dinastia Qin e seu
sucessores Han”.

Verá, pois, o leitor que este livro cruza espaços largos. Seus
autores trabalham em locais tão diversos quanto as
Universidades Hebraica de Jerusalém, em Israel, Ljubljana, na
Eslovênia, a Estadual do Paraná, no Brasil, Granada, na
Espanha e do Aveiro, em Portugal; cabendo salientar,
igualmente, a reunião de estudiosos chineses, tanto da
mainland China (Beijing International Studies University,
Universidade de Macau, Fudan University de Shanghai),
quanto da diáspora (Universidade Tecnológica de Nanyang,
Singapura), muitos dos quais tem trabalhos seus publicados em
português pela primeira vez, um dado que certamente alegra
estes organizadores. Trabalhando em três continentes,
conseguimos construir um volume coerente.

17
Ao finalizar esta apresentação, gostaria de acrescentar dois
momentos em que a História da China e minha vida intelectual
cruzaram caminhos – optando, inclusive, pela primeira pessoa
para redigir esse pequeno trecho. Ingressei no ensino superior
em 1993, e era, então, um jovem acadêmico interessado na
cultura dessa civilização; não raro, tal interesse tornou-se
motivo de chacota, não apenas de colegas, mas também de
professores. Se tal ambiente, possivelmente, me desviou de um
possível caminho de pesquisa, jamais abalou minha paixão e
interesse pelo pensamento chinês.

Em 1999, aos 24 anos, fui contratado para ministrar a


disciplina de Filosofia para as turmas do Primeiro Ano do
Ensino Médio, um programa que era, basicamente, História da
Filosofia, mas que excluía Confúcio. Ao arrepio do programa,
iniciei justamente com ele minhas aulas, antes mesmo dos
gregos, usando a tradução disponível então, reeditada sem
quaisquer mudanças desde 1968. Não obstante tais limitações,
os alunos e eu pudemos apreciar um pouco (uma gota, que
fosse) do pensamento do velho Mestre Kung. Certa feita, um
dos meninos veio comentar comigo: meu pai perguntou por
que o senhor começou sua disciplina com alguém de quem não
se sabe nada, uma figura exótica como essa. Jamais tive tanta
certeza a respeito do que fazia quanto ao ouvir este comentário:
‘Que o príncipe cumpra seus deveres de príncipe; o súdito, os

18
deveres de súdito; o pai, os deveres de pai; o filho, os deveres
de filho’13.

Alguns anos antes, por volta de 1996, chegou até mim um dos
livros mais importantes à minha formação: Poemas chineses,
tradução de Cecília Meireles da poesia de Li Po e Tu Fu (sic).
Em que pese serem traduções de terceira mão – Cecília não
conhecia o chinês, como tampouco Manuel Bandeira lia o
persa, e para verter o Rubayat de Omar Khayyan, partiu da
versão francesa –, esta obra me jogou nos braços do magnífico
ébrio Li Bo, uma paixão que atravessa os anos sem demonstrar
arrefecimento. Encantou-me, particularmente, a singeleza
como a poetisa das Gerais descreveu os versos de seu colega
oriental:

Seus delicados poemas são feitos de quase nada: são


como miniaturas do excelente desenho e escolhidas
cores com luares, rios, flores palácios, vultos que
assomam com um pouco de tristeza, de saudade, de
amor e de alegria.14

Não raro, deixei-me envolver por suas cortinas de gaze, flores


desabrochando, tardes modorrentas, macacos gritando sobre as

13
CONFÚCIO. Os Analectos, XII:11. Tradução de Múcio Porphyrio
Ferreira. São Paulo: Pensamento, 1997, p. 92.
14
MEIRELES, Cecília. Homenagem a Li Po. In LI Po e TU Fu. Poemas
chineses. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996, p. 21.

19
copas das árvores, e pela melancolia que agrega tudo isso.
Sobretudo, encantei-me com aquele pequeno pedaço de
existencialismo precocemente surgido no século VIII, Bebendo
sozinho ao luar (月下獨酌):

Uma taça de vinho, sob árvores floridas

bebo só, nenhum amigo por perto

levanto minha taça, convido a lua

com ela e minha sombra seremos três.

A lua não aprecia o vinho

a sombra se arrasta ao meu lado

ainda assim, tendo a lua como amiga e a

sombra como escrava

terei alegria até o fim da primavera.

Para as canções que canto brilha a lua

na dança, a sombra me acompanha

sóbrios, nós três apreciamos a mútua companhia

20
bêbados, agora cada um segue seu caminho

talvez nunca mais nos reunamos em nossa

estranha festa

e nos encontremos, por fim, no nebuloso

rio do céu”.

Oxalá a leitura deste volume de Antigas Leituras estimule o


debate intelectual, e instigue mais e mais lusófonos a se
apaixonar pelo Império do Meio e sua história.

Prof. Dr. José Maria Gomes de Souza Neto

Professor de História Antiga (Universidade de Pernambuco)

21
SOBRE O HUMANISMO NA CHINA;
OU, DE COMO A POESIA
ORIENTOU O CÉU por Alicia
Relinque Eleta

Diz um poema:

Entre flores, uma garrafa de vinho.

Bebo sozinho, sem companhia alguma.

Eu levanto o meu copo, convido a lua brilhante.

Com a minha sombra, nós somos três.

Mas a lua não é capaz de beber;

e minha sombra, apenas segue-me.

Companheiros fugazes, lua sombra,

aproveitam enquanto é primavera.

Quando eu canto, a lua passeia;

quando eu danço, minha sombra se alvoroça.

22
Eu, sereno, e nós nos divertimos juntos;

já bêbado, cada um para o seu lado.

Minhas eternas amigas insensíveis,

Dou-lhas em compromisso ao Rio das Nuvens.1

Provavelmente, para falar sobre o humanismo na China,


poucos selecionariam esta composição de um dos autores mais
excêntricos e heterodoxos da tradição poética chinesa, Li Bai
(701-762). A voz poética aqui expressa seu próprio abandono
aos eflúvios do álcool e a busca de uma companhia que
desaparece assim que o homem é derrotado pelo vinho. Por que
o poeta evita outros seres humanos? Por que prefere essa
companhia efêmera, ingrata, carente de vontade e até mesmo
aborrecida? Talvez nenhum poema como este expresse tão
claramente o que é a verdadeira medida do universo - do tempo
e do espaço. O homem, de fato um homem frágil e
abandonado, se apresenta diante de nossos olhos como dono e
senhor de tudo à sua volta; da lua, que o segue enquanto ele
cambaleia bêbado, e ele só precisa dela para projetar sua
sombra; e essa, obedecendo ao vai-e-vem do licor, se alvoroça.

Um Dom para os Homens, o Mandato do Céu

Em seu capítulo sobre a China na Enciclopédia, Voltaire disse:


"Os chineses, ao contrário, [dos gregos] juntaram à História do

23
Céu e da Terra, e justificaram, assim, uma para a outra", e isso
é precisamente o que muitos historiadores consideram o ponto
fundamental do pensamento chinês, que pode ser resumido na
afirmação de W.T. Chan: "Se há uma palavra que pode
caracterizar toda a história da filosofia chinesa, essa palavra
seria Humanismo - não o humanismo que nega ou menospreza
um Poder Supremo, mas que professa a unidade do homem e
do céu. Neste sentido, o humanismo tem dominado o
pensamento chinês, desde o alvorecer da história".2

A posição central do homem no pensamento chinês é


frequentemente identificada com o surgimento da dinastia
Zhou (1111-249 AEC). Durante a anterior, os Yin-Shang
(1751-1112 AEC), o controle de homens por seres divinos
dominava o mundo, e as fontes arqueológicas e os poucos
textos que sobreviveram deste período atestam essa relação, e a
profusão de diferentes cerimônias e sacrifícios a eles
destinados.

A queda da dinastia Shang determina a necessidade de


justificar a mudança dinástica, e começará então a gestação de
um novo conceito legitimador de governo dos homens, o
Mandato do Céu (Tianming). Este mandato celeste vai se
tornar o ponto de referência que funcionará, durante todo o
período pré-imperial e os subseqüentes vinte séculos do
império chinês, para justificar qualquer alteração na, suposta,
sucessão natural de gobernantes3. E por mais paradoxal que
possa parecer, este novo conceito de céu que reivindica a
autorização para um homem, ou uma dinastia, para governar
sobre os outros (isto é, em suma, o que significa Tianming),

24
incidirá precisamente sobre a Figura do homem - um homem,
melhor dizendo - dotado de certas qualidades, mas que deve ser
transformado, educado, cultivado, para ser capaz, em última
instância, de governar os outros.

O "mandato do Céu" aparece em alguns dos poemas da


primeira antologia da tradição literária chinesa, o Clássico da
Poesia (Shijing, ss. XI-VII AEC?)4 – concedido a Wen Wang,
o grande sábio responsável pela ruína da dinastia Shang:

Ah, o Mandato do Céu!

Glorioso e inefável.

Ah, quão resplandecente,

A pura virtude de Wen Wang!

Se sentir compaixão por mim

e se me conceder recebê-la,

cavalgarei honrado junto a Wen Wang

e os meus descendentes o seguirão fielmente. (267)

O mandato dos céus é outorgado a quem é digno dele;


consequentemente, não recebe nenhuma data de validade, e

25
apenas na medida em que um governante ou uma dinastia siga
sendo digna de ostentá-lo, o Mandato do Céu a legitimará para
governar "tudo-debaixo-do-Céu"5:

Glorioso, glorioso, Wen Wang,

diligente, cumpre a tarefa recebida.

Grande é o Mandato do Céu.

Aí estã os descendentes de Shang.

Os descendentes de Shang

são inúmeros,

e por ordem do Senhor das Alturas

se submeteram a Zhou.

Eles foram submetidos à Zhou.

O Mandato do Céu não é eterno.

Os nobres ilustres de Yin [Shang]

oferecem libações em nossa capital. [...]

Não pensa em seus ancestrais?

26
Cultiva a florescente virtude,

Que sua voz sempre se adéqüe ao Mandato

e dele virão muitos presentes.

Antes de Yin perder seu povo

[ele] acompanhavam o Senhor das Alturas.

Mire-se no espelho de Yin.

O Mandato não é fácil [de manter]. (235)

Essa dificuldade para manter o Mandato, ou melhor, encontrar


meios que permitam retê-lo – a saber, preencher de significado
a "virtude" que o Céu requere para fazê-lo -, será o objetivo
final de diferentes pensadores da Dinastia Zhou. Esta busca, e
os esforços dos interessados (que tentam legitimar-se) é,
justamente, o ponto determinante para que se produza o
deslocamento de uma graça divina concedida sem mais, à uma
necessidade por parte daqueles, sempre seres humanos, em
aperfeiçoar-se para alcançar a virtude.

Como afirma Chan, praticamente todas as abordagens


filosóficas na China, ou, o que dá no mesmo, todas as receitas
possíveis para o governo, vão centrar-se no desenvolvimento
das relações entre os homens e em apresentar as qualidades que
aqueles que estão destinados a governar devem possuir6. Mas,
sem dúvida, quem exercerá a maior influência no pensamento

27
filosófico, ético e político da China, será o Mestre Kong (551-
479 AEC).

O Mestre, mais conhecido como Confúcio pela latinização que


os missionários chegados à China realizaram com os caracteres
de seu sobrenome (Kong) e o próprio termo "mestre" (fuzi), é o
fundador do Confucionismo, uma filosofia que se impôs como
ideologia do Estado durante todo o período imperial, e um dos
filósofos fundamentais do período antigo. Sua doutrina tem
sido geralmente considerada como a essência do humanismo,
isenta de qualquer relação com os seres divinos. Os loci
classici mencionados como referência aparecem no texto que
contém algumas de suas conversas com os seus discípulos, os
Analectos (Lunyu)7:

Fan Chi perguntou sobre a sabedoria. O Mestre disse:


"Ocupar-se com a justiça para o povo, e respeitar as
almas e espíritos, mas mantendo-os a distância, é o que
pode ser chamado de sabedoria. (6.20)

O Mestre não falava de fenômenos estranhos, violência,


desordem e espíritos. (7.20)

Jilu perguntou como ele deveria servir as almas e espíritos. O


Mestre disse: "Se você não sabe servir aos homens, acaso
saberia como servir as almas?". "E eu poderia perguntar sobre

28
os mortos?" [O Mestre] disse: "Se você não sabe sobre os
vivos, o que pode saber sobre os mortos?" (11.11)

Nestas três citações Confúcio, sem negar o mundo espiritual,


declara de forma inequívoca, seu interesse em aspectos
propriamente humanos. Porque, na verdade, é o homem que vai
dar a medida de como o mundo funciona - "O Mestre disse: 'É
o homem que engrandece o Dao, e não o Dao que engrandece o
homem" (15.28) -. E o homem, como tal, é essencialmente
social e não sabe existir, senão em relação com os demais: "O
Mestre disse:" Eu não posso formar um rebanho junto com
pássaros e animais. Se não me junto com outros homens, com
quem eu poderia fazê-lo? '"(18,6)

Entre Homens: da Humanidade aos Ritos

A arquitetura das abordagens políticas e filosóficas de


Confúcio, girará em torno da figura do "homem de virtude"
(junzi)8, e as qualidades que devem adorná-lo para ser capaz
de governar o mundo. Neste sentido, ele desenvolverá o
conceito de "humanidade" (ren), "virtude das virtudes, uma vez
que inclui todas as outras"9, que irá determinar se alguém vai
ser, afinal, o digno recebedor desse Mandato do Céu e que é
tão essencial que "o homem de virtude que abandona a
humanidade, acaso pode levar esse nome?" (4.5)

Como já dissemos em outro lugar, a "humanidade" (ren) pode


ser identificado com o sentido ético do termo em espanhol: ele
é composto, à esquerda, pela natureza do "homem" na sua

29
forma comprimida, e à direita pelo numeral "dois" (er).
Traduzido como "benevolência", "bondade" ou "humanidade",
representa precisamente a relação entre dois homens, e também
joga com a homofonia deste ideograma com a palavra
"homem" (também pronunciado ren, mas representado como
um indivíduo que caminha). Do significado original, que
parece ter possuído a noção do sentido de amor e de
condescendência do soberano para com seus súditos, a
interpretação que Confúcio lhe dará será matizada10. E,
embora nos vinte capítulos dos Analectos, quase dez por cento
das histórias ou diálogos referem-se a noção de "humanidade"
não encontramos em qualquer lugar uma definição clara e
delimitadora do que ela é. Em vez disso, o Mestre joga conosco
a deambular em torno da noção oferecendo diferentes aspectos
sobre como interpretar o conceito. As duas vezes que parece
definir mais claramente o conceito são:

Zhonggong perguntou o que é a humanidade. O Mestre


disse: "Da porta pra fora, aja como se estivesse ante o
convidado principal; aborda as pessoas como se
estivesse celebrando um grande sacrifício; Não faça aos
outros o que não gostaria que fizessem a você. Portanto,
não haverá rancor no Estado, e não haverá amargura em
casa". (12,2)

30
Fan Chi perguntou o que é a humanidade. O Mestre
disse: "Amar os homens." "E a sabedoria?" O Mestre
disse: "Conhecer os homens."

Fan Chi não entendeu. O Mestre disse: "Se você colocar


os retos acima dos infames, esses retificarão aqueles."

Fan Chi foi e se encontrou com Zixia, e disse-lhe: "Faz


pouco eu encontrei com o Mestre, e perguntei o que é a
sabedoria, e o Mestre respondeu: "Se você colocar os
retos acima dos infames, esses retificarão aqueles." O
que significa isso?"

Zixia exclamou: "Que palavras tão fecundas!" Quando


Shun tinha tudo debaixo do céu, no meio da multidão
ele escolheu Gao Yao, e a falta de humanidade se
afastou. Quando Tang tinha tudo debaixo do céu, no
meio da multidão escolheu Yi Yin, e a desumanidade
foi embora". (12.22)

O primeiro caso formula uma atitude de total respeito aos


homens e assinala, sem hesitações, a identificação de um ser
humano com todos os outros. Em seguida, afirma a identidade
entre a humanidade e o amor. Mas, tanto em um como no

31
outro, o objetivo final é o governo dos homens. A dor e o
ressentimento que poderiam levar ao caos no Estado (e em seu
referente, a família) são evitados; por outro, unindo a
humanidade/amor com a sabedoria, alude-se a dois modelos de
governos virtuosos, o lendário imperador Shun (2255-2207
AEC) e o fundador da dinastia Shang, Cheng Tang (século
XVII AEC), que escolheu como sucessores homens devotados,
apesar de sua origem plebéia. O amor referido no segundo
fragmento não significa um amor universal; a matização
imposta pela sabedoria ao amor universal, a inclui, de certa
forma, submissa dentro do mesmo conceito de humanidade, a
ponto da Humanidade determinar o que deve ser amado ou
odiado: "O Mestre disse:" Apenas aqueles que possuem a
humanidade podem amar aos homens, e podem odiar os
homens "(4.3). Apenas amar aqueles que são dignos de tal
Amor, e odiar aqueles que não são.

Esta qualidade, que parece essencial e latente em todos os


indivíduos, não necessariamente está sempre ativa, porque ao
longo dos Analectos são mencionados caos em que tanto
homens dignos quanto os plebeus a exibem ou, pelo contrário,
demonstram a sua ausência. Portanto, o Mestre diz: "Se a
vontade tende para a humanidade, não haverá mal" (4.4).

É óbvio, então, que a "humanidade" implica este sentimento ou


entendimento dos homens; que se tem de desenvolvê-la para
adquirir, pelo menos eticamente, o grau de "homem de virtude"
que, no fundo, é qualificado para liderar outros. É quando
descobrimos qual é o segredo para pôr em prática esta
qualidade:

32
Yan Yuan perguntou o que era a humanidade. O Mestre
disse: "superar a si mesmo e voltar ao ritual, isso é a
humanidade. Quando se vence a si mesmo e retorna
para os ritos, tudo sob o céu vai virar a sua humanidade.
A humanidade nasce de si mesmo, acaso poderia ser
tomada a de outros?".

Yan Yuan disse: "Eu te imploro que me indiqueis


como." O Mestre disse: "Não observe nada contrário
aos ritos; não ouça nada contrário aos ritos; não diga
nada contrário aos ritos, não faça nada contrário aos
ritos."

Yan Yuan disse: "Posso não ser muito perspicaz, mas


tentarei colocar em prática estas palavras" (12,1)

A humanidade está intimamente ligada aos ritos (li) e, ainda


que brevemente, devemos mencioná-los11. Neste sentido,
devemos compreender bem o que se esconde sob esta
denominação de "rito". O ideograma é formado pelo radical de
"sacrifício" e pelos recipientes utilizados para esses eventos. É
claro, portanto, que, em princípio, aludem exclusivamente as
cerimônias oferecidas em ocasiões especiais. No entanto, já em
tempos antigos se amplia e alarga o âmbito do seu conteúdo a
todos os eventos que destacam as relações entre os homens.

33
Nos Analectos, além de inúmeros rituais genéricos utilizados
em diferentes épocas e lugares referências, expande-se
claramente seu alcance para se referir a um conjunto de
atitudes que mostram modos de comportamento social.
Especialmente instrutivo a esse respeito é o livro 10 dos
Analectos, onde se enumeram as atitudes de Confúcio em
aspectos tanto públicos como privados de relacionamento com
os outros: como falar com um governante (10,2), o tipo de
saudação que se faz ao entrar no palácio (10,4), a forma de
levar objetos rituais (10,5), a vestimenta em situações
cotidianas ou períodos especiais, como no luto (10,6), o tipo de
alimento também para ocasiões especiais (10,8), etc.12. Na
verdade, há um vasto repertório que exemplifica em cada
situação o que deve ser a atitude e a compostura correta.

Assim, como assinala Du, os ritos "podem ser vistos como uma
externalização de ren [humanidade] em um contexto social
específico" ou, que é mesmo "um princípio de particularismo
que significa como o processo de auto-realização de ren tem
lugar"; o que para ele significa que "um confucionista sempre
exibe sua auto-formação moral no contexto social"13. E
parecem confirmar este ponto as palavras de Confúcio: "Se um
homem não tem a humanidade, de que servem os ritos?” (3.3).
No entanto, deve ser notado que esta atualização do que a
princípio se apresentava como uma atitude e um sentimento, ao
manifestar-se, mostra sempre uma posição determinante na
hierarquia. Cada indivíduo dentro da sociedade, não só se
relaciona com outros seres humanos, mas se relaciona em
função de sua posição dentro dela. Neste sentido, em

34
comparação com as duas definições opostas que em um
momento Merleau-Ponty nos oferece sobre o que é o
humanismo, primeiro definido como a "filosofia do homem
interior que não encontra nenhuma dificuldade, em princípio,
nas suas relações com os outros, nenhuma opacidade no
funcionamento da sociedade, e que substitui a cultura política
pela exortação moral"; e frente a essa como "uma filosofia que
enfrenta como problema a relação do homem com o homem, e
do estabelecimento entre eles de uma situação e uma história
que são lhes comuns"14, poderíamos identificar a primeira
posição com o conceito de ren "humanidade", em que parece
que a harmonia que rege as relações humanas. No entanto, o
conceito de "ritual" (li) confronta-nos com o problema da
posição desigual dos indivíduos na sociedade, que deve ser
resolvido em favor de um lado ou do outro na luta por posições
de privilégio.

A Transmissão da Virtude

Até agora, vimos que é o Mandato do Céu que determina quem


deve governar sobre os outros, mas para recebermos tal Dom é
necessário um "homem de virtude", e o que o qualifica como
tal é determinado fundamentalmente por sua humanidade,
manifestada através dos ritos. O que é realmente importante
neste ponto de vista é que a qualidade pode ser aprendida, pode
ser praticada e pode ser ensinada.

Provavelmente, um dos mecanismos mais revolucionários do


pensamento confucionista é precisamente essa qualidade,
35
supostamente de qualquer indivíduo, para se tornar um
"homem de virtude." A posição hierárquica que os ritos
reproduzem, e ao mesmo tempo produzem, não é, no entanto,
uma posição fixada por uma norma celeste. Não é pertencer a
um clã, em particular, que fixa a posição na sociedade, no
governo. Como mostram os exemplos de Tang e Shun,
escolhendo homens de sangue menos nobre, mas mais dignos
(veja acima), a humanidade será a pedra de toque que pode
elevá-los, em uma situação supostamente ideal, para a maior
das dignidades.

E, novamente, Confúcio oferecerá o mecanismo que permite a


qualquer um aumentar a sua virtude: a imitação de modelos de
conduta. Em primeiro lugar, os modelos que a história têm
oferecido, cujo exemplo paradigmático é Wen Wang, como
exaltado no Clássico da Poesia. Mas também, da mesma
maneira que todo o ser humano é capaz de aprender, é também
capaz de ensinar com seu exemplo; e aprender é o que levará a
aperfeiçoar-se, e a ter a possibilidade de converter-se em um
junzi15.

Zigong disse: "Se alguém derrama bênçãos ao povo, e


consegue proveito para todos, o que você acha? Pode-se
dizer que tem a humanidade?” O Mestre disse:
"Alguém assim está para além da humanidade, ele
chega a santidade. Nem Yao e Shun poderiam criticá-lo.
Aquele que possui a humanidade, querendo formar-se a
si mesmo, forma aos demais; que queira triunfar sobre

36
si mesmo, faz os outros triunfarem. Tomar o exemplo
em si mesmo pode ser dito como a direção para a
humanidade. "(6,28)

O Mestre disse: "Se os de cima gostarem dos ritos, os


de baixo se deixarão governar" (14.44)

O recurso da imitação serve para atitudes como a


humanidade, e para manifestações mais públicas, como
os ritos. Em qualquer caso, a virtude atrai a virtude - "A
virtude não está sozinha, sabe que atrai companhia"
(4,25) -. E para governar, a coerção se mostra inútil:

O Mestre disse: "guia-o com ordens, mantém com


ordens e com castigos, e o povo se irritará e perderá o
respeito; guia-o com a virtude, mantém a ordem com os
ritos, e ele terá respeito, e virá a ti."(2.3)

Mestre Ji Kang perguntou a Confúcio sobre o governo:


"Que tal executar aqueles que não têm moral para
beneficiar aqueles que têm?". Confúcio respondeu: "Se
vais governar, por que executar alguém? Se buscas o
bem, o povo será melhor. A virtude do junzi é como o

37
vento; a dos homens menores, como a grama. Quando o
vento sopra, a grama se curva diante dele." (12.19)

A influência benéfica dos modelos pode ser estendida ao longo


do tempo, e as ferramentas para conhecer o passado são os
textos. Mesmo Confúcio apresenta-se como alguém que quer
conhecer o passado e precisa estudar: "Eu não nasci sabendo;
Admiro o antigo, por isso me aplico para investigá-lo "(7,19);
por ele se pode apreciar as qualidades de seu conhecimento,
como complemento para a formação de homens de virtude: "Se
ampliamos o conhecimento com textos, e o submetemos ao
ritual, poderemos evitar de cruzar os limites" (6,25)

Mesmo sem fazer com que isso se convertesse no foco da


formação, o respeito inquestionável que ele sente por alguns
textos - o Clássico das Mutações (Yi) dos Documentos (Shu) e
Poesia (Shi) – aparece refletido em suas citações.
Especialmente este último encontra um lugar de preferência
entre os seus comentários.

A Poesia e o Governo dos Homens16

O Clássico da Poesia (Shijing) é uma antologia de 305 poemas


selecionados, de acordo com a tradição, por Confúcio entre
mais de 2.000, procedentes de diferentes territórios, e
compostos entre os séculos VII-XI aC. Segundo o Clássico dos

38
Documentos (Shujing): “O shi [e, por extensão, a poesia] diz as
intenções" (shi yan zhi).

Etimologicamente, o termo "poesia" é composto pelo radical


"palavra" (yan) mais os elementos de "pé" (chi) e "pulso,
cadência, ritmo" (cun), ou seja, a poesia é um pé que se move
em intervalos rítmicos. Seria difícil encontrar uma definição
física mais específica: a poesia aparece quase como a
personificação pura (voz/boca pé; pulso/coração) do homem.

No próprio Shijing, a palavra shi aparece apenas três vezes


para nos dizer qual o seu objetivo último, na pequena ode
n.200, e nas grandes odes, 252 e 259[17]. Nos três casos,
aparece no trecho final, como uma declaração sobre a intenção
que persegue o poema que a encerra:

Uma flor aqui, um adorno lá,

molda este precioso brocado.

Assim, esses que caluniam

Exageram mais e mais.

Uma grande boca,

Grande, forma a rede do Sul

Esses que caluniam

39
Com quem tecem suas intrigas?

Murmurando,

sussurrando,

tramais a traição.

Mas guarde suas palavras,

Pois nada as garantirão.

Rumores, murmurando

Tramais a mentira

Quem sabe se vocês

sofrerão as traições

que vocês tramam.

Os soberbos desfrutam

e sofrer os esforçados.

Céu azul!, Céu azul!

Vigia ao soberbo,

40
Se compadece dos esforçados.

Esses que caluniam

Com quem tecem suas intrigas?

Pegue aqueles que caluniam,

joguem-os aos lobos e tigres.

Se leões e tigres não os comerem,

jogue-os no Setentrião.

Se o Setentrião os rejeitar,

jogue-os nas alturas.

A estrada para o jardim de salgueiros,

desemboca na colina semeada.

O assistente Mengzi

compôs este poema (zuo wei ci shi 崘絜歌桒),

para que tantos homens de virtude

O escutem com atenção.

41
A clara crítica que supõe este poema se opõe, como no outro
lado da mesma moeda, aos outros dois poemas que pertencem
as grandes odes. Nelas, os "poemas compostos" estão em um
claro tom de exaltação às virtudes dos grandes homens. O
primeiro, n.252, supostamente feito pelo Senhor de Shao para o
jovem governante Cheng (1115-1078 AEC), se encontra a
meio caminho entre a loa e aconselhamento:

Na curva da colina

Uma rajada de vento do sul.

soberano feliz

vens passear, vens cantar, vens lançar sua voz

passeio tranqüilo, alegria confortável.

Feliz soberano, encham-se os dias de sua vida

como fizeram antes os grandes senhores.

O seu reino é vasto e esplêndido, e tu o ampliaste.

Soberano feliz,

Encham-se os dias de sua vida

42
Senhor de cem espíritos.

Seu mandato será longo, felicidade e riqueza o fortalecerão.


Soberano feliz,

Encham-se os dias de sua vida, e as bênçãos o cubram

Gozais de sustento, de alas, da piedade filial, gozais da virtude,


que as sirvam de alas

Soberano feliz,

modelo dos quatro cantos. [...]

Os carros de meu senhor,

são muitos e bem providos; os corcéis de meu senhor, são bem


treinados e rápidos.

Lanço estes versos, poucos, (shi shi bu duo) para alguém


cantar.

Finalmente, a ode 259 descreve a entrega que o soberano Zhou


fez do território de Xie ao Senhor de Shen, um modelo de
virtude entre os homens:

43
Excelso, o cume

Sagrado erguido

atinge o céu.

O cume enviou um espírito

que deu origem a Fu e Shen.

Fu e Shen são as alas de Zhou,

Que protegem os quatro Estados,

que defendem as quatro direções.

Incansável Senhor de Shen

Ao serviço dos herdeiros reais.

Ele estabeleceu seu domínio em Xie

Para ser modelo dos reinos do sul. [...]

São as virtudes do Senhor de Shen

sua gentileza, generosidade e justiça.

44
Organiza os dez mil territórios

e seu nome é ouvido nos reinos ao redor.

Jifu compôs esta canção,

De versos soberbos (qi shi kong shuo),

de melodia delicada

um presente ao Senhor de Shen.

Sem dúvida, essas duas grandes odes se aproximam bastante da


poesia proposta por Platão em sua República ideal (que jamais
existiu)18. Na primeira, pode-se duvidar se ela entraria nessa,
porque o que ela realmente contém é uma crítica contra
traidores e maledicentes, e o risco para o reino em acolhê-los.

Este tipo de fórmula final não utiliza com exclusividade o


termo shi. Em alguns outros poemas, distribuídos nas quatro
seções, aparecem expressões semelhantes em que se define
explicitamente o objetivo final de toda a composição:

É somente por seu coração mesquinho

por ele que eu escrevi este comentário (wei ci) (107)

45
Você não é bom,

te canto como um aviso (ge yi xun zhi).

Se não escutas minha advertência

lembrará quando caíres. (142)

Jiafu compôs esta canção (zuo song), para revelar os vícios do


governo,

Ele tenta transformar suas entranhas

para acalmar os 10.000 territórios. (191)

O povo não está em paz,

E tão somente te ocupas de roubar e saquear

Dizes em voz alta: “é intolerável!”

E as escondidas, sabes intrigar

Você diz: "Não sou eu"

Mas eu compus esta canção sobre você (ji zuo er ge) (257)

Existem também muitos outros poemas que, sem incluir este


tipo de fórmula, expressam uma queixa clara contra os

46
comportamentos abusivos daqueles que possuem algum tipo de
poder19.

Provavelmente, reduzir todos os poemas da antologia à crítica


ou exaltação distorce o seu amplo conteúdo20. Mas o que nos
interessa aqui é a posição privilegiada que Confúcio concede a
essa antologia na formação do homem de virtude, o aspirante
ao governo do mundo:

O Mestre disse: "Os trezentos [poemas] Shi podem ser


resumidas em uma expressão: que em sua mente não
exista o mal" (2.2)

O Mestre disse: “Desperta com o Shi, levante-se com os


ritos e complete [sua educação] com a música"(8,8) ..

Nan Rong repetiu três vezes [o verso do] "tablete de


jade branco" 21. O Mestre deu-lhe em casamento a filha
de seu irmão (11.5)

A leitura dos poemas incentiva a quem lê-lo, a ponto de seduzir


o próprio Mestre a convidar um discípulo, Nan Rong, seu leitor
fervoroso, para se juntar a sua família. Mas, sem dúvida, a
expressão mais completa do que significa a antologia, e que vai

47
influenciar toda a concepção posterior da poesia encontra-se
em 17,9, onde Confúcio desenvolve aquela expressão concisa
que "a poesia diz as intenções" para assinalar com precisão o
papel do Shijing: observar, agrupar e ordenar –
hierarquicamente –as relações entre os seres humanos,
reclamar quando não funcionarem corretamente, e igualmente,
aprender a nomear o mundo: "Discípulos, por que vocês não
estudam o Shijing? Com ele vocês podem despertar (xing),
observar (guan), juntar os homens (qun) expressar a dor (yuan).
Ajuda a servir o pai em casa, e ao soberano, fora. E, além
disso, aprendem-se muitos nomes de pássaros e animais, de
árvores e ervas. "(17,9).

No entanto, para ler os poemas, para que sirvam ao seu


objetivo final, faz falta a capacidade de interpretá-lo
corretamente, e há uma maneira específica de leitura:

Zixia perguntou: "O que significa [o verso]: ‘ belo rosto


sorridente, olhos lindos observam. Toma a seda branca
e lhe ponha cor’? 22.

O Mestre disse: "A pintura vem depois de seda branca."

Ele perguntou: "Os ritos vem depois [da


humanidade]?".

O Mestre disse: "Shang me estimula. Agora eu posso


começar a falar com ele sobre Shi". (3.8)

48
A interpretação alegórica do Shijing estabelecerá para sempre o
padrão para leitura de textos. De fato, diversas fontes mostram
que o uso extensivo de versos do Shijing se fazia tanto em
conversas privadas e públicas, e especialmente em reuniões
diplomáticas, em que a ambigüidade do verso poderia ser lida
como uma suave advertência, uma ameaça, uma súplica ou na
exposição do verdadeiro caráter de quem o declamava.
Exemplo paradigmático é recolhido no Zuozhuan (século IV
aC), no qual o Senhor de Zheng pede ao Duque de Lu que
interceda por seu território ante o Duque de Jin. Para comover
o Duque de Lu, um dos oficiais de Zheng, Wenzi, entoa o
poema "Gansos gigantes" (181) "gansos gigantes voam,
batendo suas asas; nossos filhos partiram para a guerra, sofrem
mil privações mil em terras inóspitas, quanta compaixão
despertam, pobres viúvos, pobres viúvas [...]). Um conselheiro
Lu, Zijia, desconsidera o seu pedido com o poema "Quarto
mês" (204), que narra as tristezas de um oficial solitário. Insiste
Wenzi com o poema "Caminho rápido" (54) sobre uma garota
que se lança sozinha pelas estradas, determinada a consolar seu
irmão pela morte de seus pais. Finalmente, ele obtém obter o
consentimento de Zijia confirmando seu apoio com
"Recolhendo brotos" (167, "O carro do meu Senhor, um carro
bem preparado, com quatro cavalos fortes [...]")23.

A Poesia se mostrará como a ferramenta ideal para formar e


reconhecer o homem de virtude, e quando, a partir da dinastia
Han (202 AEC - 221 EC), o Confucionismo for construído

49
como uma doutrina fechada e coerente, e se instituir como
ideologia de poder, a poesia terá um lugar proeminente nela.

Notas

1. Li Bai, “Um ponto de partida”. 100 poemas de Li Bai, trans.


A-H. Suárez Girard, Madrid, Buenos Aires, Valencia, Pré-
Textos, 2005, p. 151.

2. W. T. Chan, A Source Book in Chinese Philosophy,


Princeton, Princeton University Press, 1973, p. Três.

3. Todavia, em três estudos recentes se utiliza a retórica do


"mandato do céu" em referência a questões políticas
contemporâneas. Vid por exemplo, X. Lu, "The influence of
Classical Chinese Rhetoric on Contemporary Chinese
Political" em D.R. Heisey ed., Chinese Perspectives in
Rhetoric and Communication, Westport, Greenwood, 2000, p.
3-23 e O. Schell, Mandate of Heaven: The Legacy of
Tiananmen Square and the Next Generation of China’s
Leaders, New York, Simon & Schuster, 1995.

4. Para o Clássico da Poesia, ver última epígrafe. Há uma


versão em espanhol, cujo título Romancero Chino, distorce, em
alguma medida, a consideração sacra que, ao longo da história
chinesa, tem marcado esta antologia. (Vid. Romancero Chino,
trad. C. Elorduy, Madrid, Editora Nacional, 1984). O número
no final do poema corresponde à organização tradicional da
antologia.

50
5. O termo "tudo-debaixo-do-céu" (Tianxia) é usado nos textos
clássicos para se referir ao mundo, pois o governante o será em
todo o mundo (conhecido).

6. W. T. Chan, “Chinese Theory and Practice, with Special


Reference to Humanism”, pp. 13-14 (en Ch. A. Moore,
ed., The Chinese Mind: Essentials of Chinese Philosophy and
Culture, Honolulu, University of Hawaii Press, 1968, pp. 11-
30).

7. Confúcio não deixou nada escrito. Toda a doutrina atribuída


a ele deve ser rastreada entre os textos que ele supostamente
editou, o Clássico da História (Shujing), Primavera e Outono
(Chunqiu) e o Clássico da Poesia (Shijing), ou na compilação
destas anedotas, que contém fragmentos dos diálogos entre
Confúcio e seus discípulos, agrupados sob o título de Analectos
(Lunyu). A autoria e data de composição deste trabalho estão
ainda para serem determinadas, embora provavelmente tenham
sido escritas por autores diferentes em momentos distintos, em
torno dos séculos IV-III AEC Em espanhol há duas versões:
Confúcio, Lunyu. Reflexiones y enseñanzas, trad. A. H.
Suarez, Barcelona, Kairos de 1997, e contendo Confúcio e
Mêncio, Los cuatro libros, trad. J. Pérez Arroyo, Madrid,
Alfaguara, 1982, pp 3-143.

8. Originalmente junzi significa "filho de um nobre" e,


portanto, a tradução de A.H. Suárez como "gentleman". No
entanto, nos Analectos, o significado original é claramente
transformado em alguém que é digno de liderar os outros.

51
9. A. H. Suarez, em Confúcio, Lunyu, p. 21. Para uma
apresentação completa sobre Confúcio e suas idéias, ver A.
Cheng, Historia del pensamiento chino, Barcelona, Bellaterra
de 2002, especialmente p. 55-82.

10. Embora óbvio, é importante assinalar que o conceito de


"humanidade", o ideograma ren, sofreu mudanças
significativas no conteúdo ao longo dos séculos, e foi
profundamente modificado pelas correntes neo-confucionistas
da Dinastia Song (960-1279). Sobre a origem e evolução do
conceito de "humanidade", W. T. Chan, “The Evolution of the
Confucian Concept of Jen”, Philosophy East and West, vol. 4,
nº 4, (Jan, 1955), pp. 295-319; sobre sua interpretação nos
Analectos, vid. W.M. Du, “Jen as a Living Metaphor in the
Confucian Analects”, Philosophy East and West, vol. 31, nº 1,
(Jan, 1981), pp. 45-54; e sobre suas implicações filosóficas em
um contexto comparativo, também é interessante artigo de H.
Y. Jung, “Jen: An Existential and Phenomenological Problem
of Intersubjectivity”, Philosophy East and West, vol. 16, nº 3/4,
(Jul-Oct, 1966), pp. 169-188.

11. Sobre a relação entre a "humanidade" e "ritual", vid. M.


Roberts, “Li, Yi, and Jen in the Lun Yü: Three Philosophical
Definitions”, Journal of the American Oriental Society, vol. 88,
nº 4 (Oct-Dec. 1968), pp. 765-771; W.M. Du, “The Creative
Tension between Jen and Li”, Philosophy East and West, vol
18, nº 1/2 (Jan-Apr, 1968), pp. 29-39; y K.L. Shun, “Jen and Li
in the ‘Analects””, Philosophy East and West, vol 43, nº 3 (Jul,
1993), pp. 457-479.

52
12. S. Van Zoeren resume a formação dos Analectos em quatro
momentos diferentes. O Livro 10 pertenceria ao penúltimo
período, ou seja, quando o conceito de "ritual" (li) já tinha
estendido o seu significado para todas as atitudes ali descritas.
Vid. S. Van Zoeren, Poetry and Personality. Reading, Exegesis,
and Hermeneutics in Traditional China, Stanford, Stanford
University Press, 1991, p. 26.

13. W.M Du, “Creative tension…”, pp. 34, 36 y 36,


respectivamente.

14. M. Merleau-Ponty, Éloge de la philosophie, Paris,


Gallimard, 1989, pp. 375-376.

15. É significativo que o ideograma que designa a idéia de


"aprender", "estudar" (xue) - elaborado a partir da imagem de
uma criança com a fontanela ainda aberta e sobre a qual se
exerce influência – significa, também, “imitar”.

16. Esta seção é baseada, em parte, no capítulo “La gran tarea


del Estado. La literatura en China” publicado em J. Beltrán
Antolín ed., Perspectivas chinas, Barcelona, Bellaterra, 2006,
pp. 43-61.

17. Pequenas e grandes odes (Xiaoya e Daya, respectivamente)


são duas das quatro seções em que os 305 poemas são
divididos, sendo as outras O vento dos reinos (Guofeng) e os
hinos (músicas).

18. Embora esteja além do escopo deste artigo, é interessante


notar que o que está subjacente na expulsão dos poetas da

53
República de Platão são dois conflitos que também surgem na
China pré-Imperial: em primeiro lugar, a oposição entre poetas
e filósofos em seu papel de educadores; em segundo lugar, a
capacidade de linguagem (a escrita) para "representar"
corretamente o mundo das idéias e das realidades e, como pano
de fundo em ambos os casos, a interpretação alegórica dos
textos.

19. Wang Ching-Hsien destaca a importância das fórmulas na


composição dos poemas de Shijing, fornecendo perspectivas
interessantes sobre a sua estrutura e possível autoria. Vid.
Wang C.H. The Bell and the Drum: Shih Ching as Formulaic
Poetry in an Oral Tradition, Berkeley, University of California
Press, 1974.

20. Dois exemplos notáveis de análise antropológica e cultural


dos poemas do Clássico da poesia são M. Granet, Fêtes et
chansons anciennes de la Chine, París, Albin Michel, 1982; e
A. Waley, The Book of Songs, Nueva York, Grove, 1978.

21. O versículo a que se refere o "tablete de jade branco"


aparece no poema 256 do Shijing. A interpretação tradicional
explica o poema como uma crítica de Wen Wang para o último
imperador da dinastia Shang. O versículo em questão diz:
"Uma mancha em um tablete de jade branco, pode ser polido;
uma mancha em suas palavras, não se pode voltar atrás."

22. Os dois primeiros versos aparecem no poema 57, este


último não aparece em toda a antologia.

54
23. Zuozhuan, duque Wen, ano 13. Vid Yang Bojun, Chunqiu
Zuozhuan zhu, Pekín, Zhonghua, 1983, pp. 598-599.

55
O CULTO DA MULHER NO
NEOLÍTICO CHINÊS por Ana Maria
Amaro

“O neandethaliano não era o único tipo de homem a existir


durante a última glaciação. Com efeito, o Oriente já tinha, no
Würm I, homens mais evoluídos do que ele na Sibéria
(Afontova) e na China (Tseyang, Chilinshan, Liukiang).”

Ferreira, O. da Veiga & Leitão, Manuel, Portugal Pré-histórico.


2ed. Lisboa, Europa-América, s/d.

O letrado Yuan Tang (século I d. C.) considera quatro estádios


históricos na civilização chinesa: o primeiro caracterizado pela
utilização de armas de pedra, o segundo pela utilização do jade
(polido), o terceiro pela utilização do cobre (bronze) e
finalmente o quarto pela utilização do ferro. Esta ideia
precedeu, em muitos séculos, a de C. J. Thomsen (1836) que
considerava a pré-história humana dividida em três idades:
pedra lascada, pedra polida e idade dos metais. Quando Yuan
Tang diferenciou a pedra (shi) do jade (yu), incluía na segunda
categoria as pedras polidas em geral, de entre as quais
sobressaía o jade como material de eleição.1 Segundo este
mesmo autor chinês, foi durante o lendário reinado de Huang
Di — o Imperador Amarelo, que apareceram as primeiras
armas de jade na China.

56
O Imperador Amarelo (c. 3000 a. C.), cuja existência histórica
se perde no domínio da lenda, é o terceiro dos três Augustos ou
imperadores lendários, duma remota dinastia Xia da qual, até
aos anos 70-80 do século XX, não se tinham encontrado
quaisquer vestígios históricos. Admite-se que esta dinastia
corresponderia a uma fase avançada do Neolítico chinês, uma
vez que foram recentemente exumados no Norte da China, em
Liaunim, vestígios arqueológicos duma antiga cidade com
culto organizado e classes sociais bem demarcadas.2 O
Neolítico chinês é, porém, um período ainda mal conhecido,
por mal estudado, em resultado da escassez de dados
arqueológicos até hoje exumados em tão vasto território.
Estabelecendo comparações, no tempo, entre a pré-história
ocidental e a do Oriente, verifica-se que o período pós-glaciário
de Würm, na Europa, é equivalente, na China, ao período em
que, ali, viveu o Homem de Dali, Homo Sapiens arcaico chinês
(c. 50000 aproximadamente).

Atualmente, por carência de estudos aprofundados de geologia,


de paleoclimatologia e de pólens fósseis, é muito difícil
imaginar qual o ambiente natural das áreas ocupadas pelos
homens que viveram no Pleistoceno Médio em tão vasto
território como é o da China. Por essa altura sabe-se que ventos
do interior do continente asiático, carreando materiais
detríticos, deram origem aos atuais planaltos loéssicos e a
vastas extensões secas, que mudanças climáticas e a ação
antrópica foram, a pouco e pouco, tomando hostis à fixação do
homem. Não é de estranhar, pois, que certas áreas onde, hoje, a
caça e a coleta nos parecem impossíveis para sobrevivência

57
humana, tivessem sido ocupadas, outrora, por bandos de
homens capazes de se fixarem e desenvolverem uma cultura
neolítica cujos vestígios são ainda muito mal conhecidos.
Aliás, foi nos contrafortes dos montes Qinling, em Banpo
(Shaanxi), que foram exumados os mais antigos restos de
Hominóides e onde foi exumado, também, entre 1953 e 1957, o
mais vasto conjunto neolítico hoje conhecido na China. Esses
vestígios arqueológicos, datados de 5000-3000 a. C., oferecem-
nos uma imagem viva da primeira das grandes sociedades
agrárias que floresceram na China. A povoação era constituída
por abrigos semi-subterrâneos com coberturas feitas de
vegetais. Eram construções, circulares ou quadrangulares, com
cerca de 5 metros de diâmetro ou de lado. Admite-se que a vida
comunitária dessa aldeia se desenvolvia já nas chamadas "casas
dos homens", construções retangulares, maiores do que as
demais habitações, com cerca de 14 x 21 metros cujos vestígios
foram ali exumados. Esta aldeia era protegida por um fosso de
cerca de 100 x 200 metros, com uma profundidade de 5 a 6
metros, fosso onde corria água e que, para além da função de
defesa, tinha a vantagem de irrigar os campos vizinhos. Para
além deste fosso, encontraram-se túmulos retangulares,
repartidos por ditas zonas distintas, uma destinada a mulheres e
outra a homens, o que parece apontar para a existência de
algumas regras funerárias, a mais aparente das quais era a
separação dos sexos. As crianças, por seu turno, eram
enterradas em vasilhas de barro, no chão das próprias
residências ou nas suas imediações. Anteriormente a este
período hoje bem conhecido registrou-se, na China, um hiato
de cerca de 100000 anos, o que leva a muitas interrogações

58
sobre o que se teria passado nos finais do Paleolítico, naquele
tão vasto território até ao aparecimento das primeiras
populações neolíticas.3 Desde o Paleolítico Inferior que as
primeiras manifestações humanas apareceram extremamente
diversificadas na China. Contudo, as descobertas atuais atestam
a existência duma antiga rede humana, muito mais densa
naquele território do que a escassez de vestígios fazia até hoje
supor. Desde o final do Pleistoceno Médio e durante todo o
Paleolítico Inferior (c. 500000 a 200000 anos
aproximadamente), o Homo Erectus Pekinensis habitou nos
arredores da atual capital da China, na bacia do Rio Amarelo.
A sua utensilagem era semelhante à acheulense sendo as suas
armas simples, mas aperfeiçoadas ou endurecidas pelo fogo.
Considerado único na China durante muito tempo, este grupo
de Hominídeos, cujos primeiros restos fósseis foram exumados
nas grutas de Zougoudian nos anos 20, está hoje longe de ser
assim considerado, pois foram já exploradas numerosas outras
jazidas, quer no Norte, nomeadamente em Shaanxi, quer no Sul
da China. Os achados multiplicaram-se a partir dos anos 60 e,
atualmente, conhecem-se já vários testemunhos fósseis de
antepassados do Homo Erectus Pekinensis. Segundo alguns
antropólogos, a humanidade paleochinesa instalada na bacia
(senso latum) do Rio Amarelo evoluiu lentamente do
Paleolítico para o Neolítico, sob influência de povoações
situadas na China do Sul, região que se tornara então quente e
luminosa, e propícia à vida sob todas as formas, e muito em
especial à prática da agricultura dita "espontânea". Terá sido ali
que o cito "grupo mongolóide" terá adquirido as suas
características específicas que hoje lhe conhecemos. Para

59
outros, a neolitização da China ter-se-ia verificado no Norte,
em Gehe-Dingun, derivada da cultura Emaokon dos finais do
Paleolítico Superior.4

A verdade é que o Homo Sapiens do Paleolítico Superior


chinês era já conhecido desde os anos 20 deste século, tendo
sido os seus restos encontrados na Gruta Superior de
Zougoudian. Mas posteriormente, nos anos 50, foram
encontrados vestígios duma distribuição desta espécie por
várias províncias chinesas. Estes homens, que parece terem
evoluído mais ou menos linearmente no território chinês,
desapareceram sem se ter ainda chegado a conclusões
definitivas ao que teria sucedido até reaparecem sob a forma de
homens modernos, com características regionais mongólicas e,
já com uma cultura neolítica avançada, cerca de 3000-1000 a.
C., deixando atrás de si um grande hiato arqueológico. Não é
possível, ainda, seguir-se na China a lenta evolução de uma
economia de caça e coleta para uma economia de produção.

As aldeias neolíticas do Rio Amarelo e do vale do rio Wei


surgiram como que de repente, deixando um hiato de alguns
milênios entre estes grupos e os seus predecessores que usavam
a pedra lascada. O centro de dispersão do Neolítico chinês,
segundo a Escola de Pequim, deve ter-se situado numa grande
planície da China do Norte, comparável às terras férteis da
Mesopotâmia e do Egito antigos.

No entanto, para além dos conhecimentos que a Ciência nos


legou, e que se mostram insuficientes para explicar a evolução
biológica e cultural do homem chinês da pedra lascada para a

60
pedra polida, perdurou na tradição chinesa a história lendária
das suas primeiras Cidades-Estados bem como o próprio mito
da criação do mundo e da humanidade. Nos tempos da China
arcaica, alguns milhares de anos antes da nossa Era, foi o culto
da mãe-terra e da fecundidade que deram estabilidade à relação
mãe/filhos, relação que assegurava a continuidade ao grupo,
em detrimento das relações entre os parceiros, e também da
relação pai/filhos, tão cara à futura ética confucionista. A
mulher era a mãe. O pai era incerto, e desconhecido foi durante
muito tempo o seu papel na criação.5 Daí, a mulher não
receber, naqueles antigos tempos, o nome da sua própria
família. A Senhora Chang e a Senhora Deng eram, por
exemplo, as duas esposas do Senhor Liu que viveu antes do
século VI a. C.6 Nesses remotos tempos surgiram, na China,
numerosos contos nos quais a heroína é uma mulher. De fato
era ela a mãe, o símbolo da fertilidade e da continuidade da
família, aquela que representava o mais importante papel nas
correntes espirituais da China arcaica.

Tão forte parece ter sido o papel da mulher na antiga China, se


China se pode chamar aos antigos Estados dispersos pelo vasto
território posteriormente unificado, estados que, então, se
digladiavam pela posse de bens e de terras que, mesmo depois
de se ter transformado a sociedade chinesa numa sociedade de
estrutura patriarcal por influência de Confúcio (século VI a.
C.), no século VII d. C. foi ainda celebrada e ficou na história
uma imperatriz* que dirigiu sabiamente um mundo de homens.
Surgiram, ainda nessa altura, numerosos poemas de poetas

61
célebres, como Li Bai, que exaltavam a mulher, ao tempo
relegada a uma condição social de pura inferioridade.

A crescente influência do confucionismo acabou, porém, por


vencer e colocar a mulher definitivamente na sombra e num
lugar de absoluta subserviência aonde se manteve teoricamente
até a implantação da República (1911), mas realmente até a
bem poucas décadas. Desvalorizadas, as raparigas passaram a
não ser desejadas pelos pais. O infanticídio feminino passou a
ser corrente7 e sendo os casamentos contratados pelas famílias,
a mulher como objeto procriador passou a pertencer à família
do marido sem grandes benefícios para a sua família de
geração. Todas as normas das relações familiares faziam, na
China, parte da ordem social sendo, por isso, rigidamente
estruturadas. De divindade, a mulher passou, em alguns
séculos, à condição de verdadeira escrava. Para além dos
achados arqueológicos que fizeram perdurar essa apagada
imagem da mulher na China arcaica, o mito legou-nos,
também, a ideia do seu importante papel, como "mãe-criadora",
razão, talvez, da preponderância feminina na sociedade de
então. É de notar, porém, que pelo fato de ser bastante moderna
na China a noção de mito (conhecida por "descrição sobre os
espíritos" na literatura local), a Mitologia chinesa não pode ser
estudada com a mesma facilidade daquela que Gregos e
Romanos nos legaram, pelo que todas as interpretações têm de
ser feitas com a maior prudência. A razão da grande
dificuldade que hoje os próprios Chineses têm em tirar
conclusões dos seus antigos mitos é principalmente o marcado
desdém que os letrados de formação essencialmente

62
confucionista manifestaram, sempre, pelas "descrições
fantásticas", fazendo, por isso, com que essas histórias em que
os homens se confundiam com deuses, opostas aos valores
ortodoxos tradicionais, acabassem por chegar aos nossos dias
desprovidas de um conteúdo coerente e, por vezes, mesmo
contraditório.

É certo que os contos da dinastia Tang (618-906), o teatro dos


Yuan (1280-1368) e os romances dos Ming (1368-1644)
contêm elementos lendários interessantes. Nesta altura, porém,
já bastante tardia, as descrições tinham perdido já a frescura
dos primeiros tempos, e os empolamentos literários terão,
apenas, uma longínqua relação com as crenças antigas. Como
diz a sabedoria chinesa: "A cor, a força e o aspecto de um rio
não são os mesmos na sua nascente e na sua foz”.8

Recentemente, vários autores têm feito tentativas para agrupar


os mitos chineses em ciclos, a fim de estudar a sua estrutura e,
assim, procurar tirar deles alguns dados sobre a mentalidade e a
organização social da China arcaica. Esta é, contudo, uma
tarefa difícil e arriscada porquanto no decurso de vários
milênios muitas teriam sido as influências recebidas do
exterior, perdendo o pensamento antigo grande parte da sua
originalidade. Dos velhos mitos chineses que chegaram até nós,
parece-nos, porém, particularmente interessante o de Nu Wa,
jovem divindade que, depois de burilado o Mundo pelo
transcendente Pan Gu, se divertiu a "criar à sua semelhança"
pequenas figurinhas de barro, que deram origem à humanidade.
Para os autores chineses contemporâneos, Nu Wa era uma
deusa. Para alguns deles, irmã do próprio Pan Gu, criador do

63
Universo.9 E contam: Era indescritível o regojizo que sentia
Nu Wa pela beleza da criação; do Céu maravilhoso onde
brilhavam o Sol, a Lua e numerosas estrelas e da Terra com as
suas montanhas, rios, flores e árvores pujantes, onde pássaros e
outros animais se multiplicavam. No entanto, parecia-lhe que
havia algo que faltava nesta obra monumental. Havia
necessidade de um novo ser à semelhança dos deuses, mais
inteligente do que os outros animais, e capaz de se autobastar e
governar "todas as criaturas que se encontravam debaixo do
Céu".10

"A não ser assim — pensava Nu Wa — o Mundo acabaria


sendo como antes, deserto e solitário, não obstante as paisagens
pudessem tornar-se mais pitorescas e aumentasse o número de
seres vivos". Depois de pensar no assunto, Nu Wa apanhou do
chão um punhado de argila e modelou-a à sua imagem e
semelhança, criando pequenas figuras que podiam manter-se de
pé, caminhar e falar. Entusiasmada, Nu Wa criava numerosos
homens e mulheres que "saltavam e gritavam em seu redor". A
deusa batizou estas novas criaturas com o nome de "gente",
palavra que se representa por um ideograma que reproduz a
posição ereta e os "dois pés bem assentes no chão" (人).

Embora tivesse criado numerosos indivíduos, Nu Wa verificou


que estes não chegavam para povoar toda a Terra e, para
apressar a sua criação, pegou num pedaço de liana, atou as suas
extremidades a uma grande pedra, amontoou argila sobre
aquela e começou a agitá-la sem cessar. A argila que saltava
convertia-se, como que por magia, em pequenas figuras que
"gemiam ao nascer". Assim se criaram "pessoas diferentes" e

64
numerosas. Para que se propagassem, Nu Wa "ensinou-lhes a
contrair matrimônio" e a "organizarem-se em famílias". Nu Wa
tornou-se, assim, na criadora e mãe bondosa dos seres
humanos, e foi ela quem interveio, mais tarde, quando o Deus
do Fogo e o Deus da Água lutaram, desavindos, e uma das
quatro colunas que serviam de suporte ao Céu foi derrubada.
Com o "impacto", a Terra sofreu um grande abalo e as águas
brotaram do seu centro, "invadindo os campos e as florestas"
que, entretanto, se incendiavam com as chispas resultantes do
atrito entre as pedras que rolavam.

O espetáculo era aterrador. Nu Wa, que vivia no interior da


Terra, comovida com tamanho cataclismo, restaurou então o
Céu com pedras de cinco cores, criando, assim, o arco-íris e
devolvendo aos homens a paz que haviam perdido. Em
conseqüência do desequilíbrio sofrido pela Terra e pelo Céu, o
eixo sobre o qual girava o Universo inclinou-se e surgiram as
diferentes estações do ano, tornando-se os campos mais
prósperos e pitorescos. Por isso, as gerações seguintes dos
seres humanos sobreviventes do pavoroso Dilúvio
manifestaram a sua gratidão à sua bondosa Mãe e prestaram-
lhe culto.11

Em torno de Nu Wa as opiniões divergem. Em certas


descrições chinesas antigas, é confundida com Fu Xi, um dos
três primeiros imperadores lendários — os três Augustos —,
muito embora se lhe atribua, sempre, o sexo feminino. Para
outros autores, esta personagem é considerada irmã ou esposa
deste lendário Rei. Durante os Han (séculos III AEC- III EC
Nu Wa foi representada com corpo de serpente e cabeça

65
humana, enrolada no corpo de Fu Xi, a quem os Chineses
atribuem a criação do primeiro Estado incipiente — que iniciou
a dinastia Xia.

Os predicados da Deusa-Mãe são, porém, mais vastos: atribui-


se-lhe, igualmente, a invenção da flauta e a criação da água
corrente dos rios.12 De acordo com a tradição chinesa, apoiada
em descrições antigas destes mitos, teria sido com Fu Xi, cerca
de 9000-6000 aproximadamente, que o Neolítico começou na
China. Mas... onde?

Conta, mais a lenda do que a História chinesa, que tendo o


Neolítico começado, na China, com o imperador Fu Xi,
prosseguiu com o célebre Shen Nong, que ensinou aos homens
a cultivar a terra, e findou com Huang Di, o Imperador
Amarelo, altura em que teria aparecido a primeira Cidade-
Estado organizada, aliás, aquilo a que os Chineses chamam a
"sua civilização", uma das "quatro grandes civilizações
antigas", a par das da Suméria, Egito e Vale do Indo. O
Imperador Amarelo terá vivido há cerca de 5000 anos.
Contudo, não havia, até há pouco tempo, dados arqueológicos
que provassem a existência, em território chinês, de urna tal
cultura contemporânea das que foram estudadas noutras
grandes áreas da Terra. Os dados mais antigos, testemunhos da
existência de cidades organizadas com a sua vida política,
artística e religiosa, datavam, na China, apenas, do século XII
a. C., o que corresponde a uma época bastante tardia.

No início dos anos 80, foram descobertos, a ocidente de


Liaunim, próximo de Chifeng, na Mongólia Interior, vestígios

66
de uma antiga cultura, que ficou conhecida por Cultura de
Hongshan (Montanha Vermelha), nome da cordilheira onde
foram exumados os primeiros testemunhos da mais recuada
comunidade chinesa organizada em Estado até hoje conhecida.
A datação pelo Carbono 14 atribuiu-lhes 5000-4500 anos. Ao
que parece, pois, o lendário Imperador Amarelo e a dinastia
Xia, de que apenas a tradição conservou a memória, não são,
apenas, um mito, pois a Montanha Vermelha em Liaunim é
extremamente rica em vestígios do que teria sido essa opulenta
cultura. Encontraram-se ali, a par de objetos de cerâmica
vermelha, com decoração a negro, numerosos instrumentos
agrícolas em pedra lascada e polida, de grandes dimensões, e
ainda ornamentos, também polidos, em pedras semipreciosas,
possivelmente usados pela classe dirigente. Das peças
recolhidas, são particularmente interessantes um arado e uma
enxada de pedra, de enormes dimensões, o que parece apontar
para a importância e para o elevado nível que havia atingido,
já, a agricultura naquela região.

Recentemente, foram descobertos no mesmo local cemitérios e


ruínas de um templo erigido em honra de uma deusa, que se
admite estar relacionada com o culto da fertilidade, além de um
dragão em jade polido, verde-negro, de cerca de 26 cm, de
linhas extremamente harmoniosas. Esta representação do
dragão, exumado na aldeia de Sanxingatala, na Mongólia
Interior, é a mais antiga que se conhece na China, o que faz
recuar a sua origem emblemática cerca de dois milênios em
relação ao que, antes, se admitia.

67
De todos os achados, porém, os mais interessantes consistem
em figurinhas de barro cozido, com dimensões compreendidas
entre os 5 e os 8 cm, representando mulheres despidas, em
estado adiantado de gravidez. É flagrante o paralelismo entre
estas figuras e as Vênus aurignacenses, tanto européias como
do Próximo Oriente, até hoje conhecidas. Simplesmente, as
únicas figuras deste tipo encontradas na China, datam de há
5000 anos, ao passo que a mais antiga figura européia similar,
talhada em xisto esverdeado, data de cerca de 37-29 mil anos.
Para alguns autores, as Vênus européias eram usadas como
pendentes, desempenhando o papel de fetiches ou talismãs, em
virtude do poder de exorcismo e de proteção que, ao sexo
feminino, é atribuído por vários grupos do Mundo
Mediterrânico e Africano atuais. Alguns autores relacionam
estas Vênus européias com uma prática de magia protetora,
embora a sua relação com o culto da fecundidade seja
atualmente a opinião bastante mais vulgarmente aceite. É
natural que, na China, as estatuetas semelhantes às das Vênus
do Ocidente se destinassem ao culto da fecundidade, mas
também pode acontecer que a sua função se relacionasse com
práticas de magia protetora, com vista minorar os acidentes de
parto ou, eventualmente, contra a esterilidade, à semelhança do
que ainda hoje se verifica, por exemplo, entre os chineses
conservadores de Macau.

A apoiar esta hipótese, apareceu, no recinto do Santuário de


Hongshan, recentemente posto a descoberto em Liaunim, a
figura de uma deusa de grandes dimensões, também em barro
cozido, bastante fragmentada, da qual a cabeça é a pega que se

68
conservou em melhor estado. Apresenta olhos esféricos de jade
polido e uma fisionomia que a aparenta com as conhecidas
figuras de divindades das velhas civilizações ameríndias. Esta
deusa, cuja cabeça mede 22,5 cm de altura, é a peça mais
antiga, deste tipo, descoberta na China, pois atribuem-se-lhe,
aproximadamente, 5500 anos. O grande altar do templo que lhe
era dedicado, voltado para sul, era circular, com 2,5 m de
diâmetro, rodeado por lages de pedra muito finas, sendo a sua
superfície revestida por uma camada de pequenos seixos. Em
redor do altar, descobriram-se mais de vinte fragmentos de
corpos de diferentes figuras humanas de barro, dos quais
existem dois relativamente completos, que são seguramente de
mulheres — as ditas "Vênus chinesas" a que, atrás, nos
referimos. É de notar que as dimensões destas pequenas figuras
oscilam entre 6,8 cm e 5 cm (dimensões semelhantes à da
maioria das suas congêneres européias). Ambas estão
desnudadas e encontram-se em posição semierguida, com as
pernas levemente fletidas, o abdômen saliente em estado
adiantado de gravidez, as nádegas evidentes mas não
exageradas, e o braço esquerdo curvado, com a mão apoiada
sobre o ventre, em aparente trabalho de parto. É pena que não
se tenham encontrado as cabeças. Contudo, são de notar
particularidades somáticas, que ainda hoje são características
das mulheres orientais: esbelteza, ancas e nádegas pouco
volumosas e seios pequenos e cônicos.

Distinguem-se, do conjunto destas pequenas estatuetas, duas


figuras de mulheres sentadas, que, segundo se deduz da altura
de uma peça restaurada, teriam cerca de meio metro. Também

69
de corpo nu, com as duas mãos cruzadas sobre o ventre,
apresentam as pernas cruzadas e os pés apoiados nos joelhos. A
cintura de uma delas está adornada com uma faixa. Estas peças
são muito preciosas, pois o seu estudo será um valioso
contributo para o conhecimento da antiga cultura da "Montanha
Vermelha", relativamente afastada da bacia do Rio Amarelo,
tradicionalmente considerada o berço da civilização chinesa.
Por não se terem achado artefatos metálicos em Liaunim,
alguns autores chineses admitiram que esta cultura se
encontrava, ainda, numa fase neolítica tardia. No entanto, se
esta cultura detinha já o dragão como símbolo, e possuía um
culto organizado, deveria ter, já, uma estrutura social bastante
desenvolvida. Reforçam esta hipótese os estudos feitos nos
cemitérios de pedras empilhadas, da mesma data, situados
próximo deste templo, em pontos elevados, dispersos pelas
cotas altas da "Montanha Vermelha" e dos seus contrafortes.
Observando as ruínas no seu conjunto, verifica-se que o templo
da deusa fica no centro, estando os cemitérios distribuídos por
mais de vinte elevações dos arredores. O templo e os
cemitérios apresentam, aliás, uma visível correlação, sendo a
sua distribuição relativamente complexa, o que parece refletir a
consciência social e religiosa dos então habitantes da área.

O templo da deusa da "Montanha Vermelha" foi, ao que se crê,


construído em madeira e palha, sobre a qual se aplicou barro,
apresentando ainda vestígios de decorações murais com
motivos geométricos muito belos, pintados a vermelho e
branco. O principal compartimento era uma sala central,
distribuindo-se em redor dela várias salas laterais, com

70
construções diversificadas e complexas. Não é difícil imaginar-
se que se tratava de um local de culto, um palácio alto e
esplendoroso, onde se alinhavam estátuas de divindades de
várias dimensões.

Segundo fontes chinesas, os homens da "Cultura de Hongshan"


moldaram estátuas de deuses, para consubstanciarem neles os
seus desejos de boas colheitas e de fertilidade, pedindo, assim,
por homeopatia, à Deusa-Mãe, à mãe-terra, a felicidade pela
abundância. Acreditavam num grupo de divindades, das quais
existia uma principal uma deusa — que dirigia os restantes à
semelhança do que sucedia entre os homens. Daí, podermos
ver que o conceito religioso dos habitantes de Hongshan já
ultrapassara o estádio do culto da Natureza e do totem clássico,
encontrando-se, talvez, numa fase relativamente avançada do
Culto dos Antepassados, característico dos teísmos agrários.
Quem seria esta Deusa-Mãe? Nu Wa? A título de remate,
ocorre perguntar: Que relação poderia haver entre as Vênus
ocidentais e estas Vênus chinesas, já utilizadas, ao que parece,
por uma cultura organizada em Estado que venerava uma
Deusa-Mãe, única cabeça que se encontrou no altar do templo
que se crê ter sido levantado em sua honra? A sociedade
chinesa seria, nesta altura, matriarcal e/ou matrilinear?

É de notar que a deusa-mãe neolítica encontra-se na Europa


Central por influência do Próximo Oriente, representada sob a
forma de numerosas estatuetas em terra cozida. Interessante é
de notar, porém, a diferença entre as silhuetas das Vênus
chinesas e as do Ocidente. No Ocidente, a ausência de cabeça
bem definida, ao que parece intencional, as ancas largas e os

71
seios volumosos contrapõem-se à esbelteza das Vênus da
China, que lembram mais a de Galgenberg e a de Sireuil,
consideradas, aliás, figuras de adolescente. Se as ancas, a
esteatopigia e o volume dos seios eram realçados no Ocidente,
na China é dado, apenas, particular relevo ao ventre. Assim, a
inscrição no losango das figuras de Vênus ocidentais num dos
modelos, que Leroi-Gourhan propôs, parece não ser aplicável
às Vênus chinesas, afastando toda a relação simbólica desta
forma geométrica, com a mulher, no Oriente. A ausência dos
pés das Vênus em pedra no Ocidente também se verifica nas
Vênus da "Montanha Vermelha", mas talvez devido a fratura,
uma vez que foram achados fragmentos isolados de pés
pertencentes às figuras de maiores dimensões.

Citando o exemplo da Vênus de Brassenpony, diferente das


outras Vênus européias porque foi a face que o seu autor
esculpiu e não o corpo que lhe falta, e comparando-a com a
cabeça da deusa de olhos de jade de Hongshan, podemos
constatar que a boca daquela não está bem traçada; não tem
olhos e as orelhas estão escondidas por uma espécie de véu... É
uma mulher-mistério — "não pode ver, não pode falar, nem
ouvir". Em contraste, nota-se na Vênus-divindade chinesa uma
boca grande, bem desenhada, olhos esféricos de jade polido,
pedra considerada incorruptível e característica do Neolítico
chinês, bem como orelhas e nariz bem evidentes.

É uma divindade que vê e está atenta.

Não se encontrou ainda o resto do corpo desta Vênus da China,


nem as cabeças das pequenas estátuas disseminadas em redor

72
do seu altar. Surpreende, aliás, que todas as pequenas figuras
exumadas se apresentem sem cabeça e sem membros
completos. Resultado de algum antigo ritual? Simples acaso?

A posição das Vênus chinesas é também de assinalar. Posição


de parto? As pernas fletidas conferem-lhe o movimento que
falta à maioria das Vênus ocidentais. Estas são, de fato, figuras
imóveis, com a exceção da Vênus “dançarina” de Galgenberg e
da Vênus de Algarim.

Observando-se as figuras de barro de Hongshan, em Liaunim -


mulheres grávidas em posição de parto ao que supomos -,
poderemos aparentá-las, talvez, quanto à sua função, aos
amuletos egípcios protetores do nascimento e do recém-
nascido, descritos por Jeanne Bulté em 1991, principalmente
com um que hoje se pode ver no Museu Real da Escócia.13

Moldados em faiança egípcia, estes talismãs apresentam várias


formas, mas entre eles são muito freqüentes representações do
Deus Bé, relacionado com a maternidade, e também
representações de mulheres nuas e grávidas. Apareceram,
ainda, no Egito, muitas cabeças femininas decapitadas.
Decapitadas apareceram também as pequenas Vênus da
Montanha Vermelha mas... O que se encontrou foram os
corpos ao contrário do que sucedeu no Egito.

Rituais semelhantes? A cabeça da divindade de olhos de jade


corresponderá à do Deus Bé dos egípcios,14 cujas formas
esculpidas parece datarem dos séculos IX-VIII a. C.? Ou será a
estátua da Deusa-Mãe Nu Wa?

73
Aguardemos a descoberta de mais vestígios arqueológicos em
Liaunim e o estudo em curso dos que já foram exumados, para
que seja possível tirar conclusões mais consistentes.

Se considerarmos que o Templo do Céu, o Templo dos


Antepassados, e as Treze Tumbas dos Ming, de Pequim, são
obras-primas da nação chinesa, o altar, o templo da “Deusa de
olhos de jade” e o conjunto de cemitérios de pedras
acumuladas de Hongshan poderão acrescentar-se-lhes em
importância, na medida em que constituem o mais belo vestígio
da madrugada da sua Civilização. E mais ainda: porque essa
madrugada é uma exaltação à Mulher, à criadora de todos os
homens, à Mãe-terra fecunda e boa, que todos alimenta e
finalmente recolhe no seu seio, renovando, em cada Primavera,
o ciclo da vida, da vida que Pan Gu criou a partir do caos
quando, para todos os seres, fez, pela primeira vez, brilhar o
Sol.

Notas

1. A escultura do jade é, sem dúvida, o traço mais marcante do


Neolítico chinês que, aliás, o ultrapassou, vencendo os
milênios seguintes e merecendo as atenções dos artistas das
várias dinastias históricas do Grande Império do Meio.

2. Em Liaunim foram, também, exumados restos fósseis de


Homo Erectus com cerca de 290000 anos, seguidos de grande
hiato arqueológico.

74
3. ELISSEEFF, D. et V., La Civilization de la Chine Classique.

4. JIA Lianpo, Early Man in China.

5. Nos anos 80 foram encontrados, em Xinjiang, figuras


humanas gravadas numa elevada parede rochosa onde o ato
sexual e os órgãos genitais masculinos estão reproduzidos com
grande destaque, o que parece apontar para o valor que era já,
então, dado ao papel do pai na geração dos filhos. Admite-se
que estas gravuras e as reproduções fálicas exumadas em
terrenos próximos datem de cerca de 1500 anos AEC WANG
Binghua, Ritos da Fertilidade.

6. WERSCHUUR-BASSE, Denyse, Paroles dês Femmes


Chinoises.

7. Ainda até meados do século xx se registrou de forma


significativa esta prática na China.

8. MATHIEU, Remi, Anthologie des Mythes et Légendes de la


Chine Ancienne.

9. CHU Binjie, Relatos Mitologicos de la Antigua China.

10. Nome antigo dado ao Imperador chinês.

11. CHU Binjie, op. cit.

12. MATHIEU, Remi, op. cit.

13. Por insuficiência de restos fósseis, não foi possível calcular,


com relativo rigor, a capacidade craniana do Homem de Dali.

75
14. BULTÉ, Jeanne, Talismans Égyptíens d'Heureuse
Maternité.

* Imperatriz Wu Zetian [624 +705], da dinastia Tang

Bibliografia

Aux Origines d 'Homo Sapiens, direção de Jean-Jacques


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76
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Plon, 1974, 2 vols.

MATHIEU, Rémi, Anthologie des myhtes et legends de la


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“Revista de Arqueologia Chinesa”, (8) 1981, pp. 25-30.

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Rochas Descobertas no Xinjiang, “China Hoje", Pequim, 12 (6)
1991.

WERSCHUURBASSE, Denyse, Paroles des Femmes


Chinoises, Paris, L'Harmathan, 1993.

WILLETS, William, L'Art de la Chine, Paris, La Bibliothèque


des Arts, 1965.

77
SINOLOGIA E CONFUCIONISMO:
A IMPORTÂNCIA DOS ESTUDOS
CONFUCIONISTAS PARA A
COMPREENSÃO DA CIVILIZAÇÃO
CHINESA por André Bueno

Introdução

Em se tratando de China, nossos métodos e técnicas de


pesquisa precisam adaptar-se. A China é uma das poucas
civilizações milenárias que continuam a existir. Tal fenômeno
é desconhecido no Ocidente, e mais especificamente no Brasil:
somos heranças dos gregos, romanos, índios, portugueses e
africanos, compartilhamos fragmentos de suas formas de
pensar e agir, e nossa língua descende dessas matrizes.
Contudo, há essa distância no tempo e no espaço que nos
separa dos antigos. Não falamos latim, grego, tupi ou ioruba.
Nosso português é bem diferente daquele que veio com as
caravelas. Conhecemos a filosofia, mas não ‘praticamos’ o
platonismo. Mesmo no plano religioso, nos ressentimos da
diferença entre os antigos modelos e os desafios da vida
moderna. Nossa cultura é ‘nova’, por assim dizer.

Já a China continua a se desenvolver, sem interrupção, há mais


de cinco mil anos – isso se tomarmos como referência apenas
os núcleos urbanos e a primeira dinastia, Xia 夏. Sua escrita é
praticamente a mesma desde o século -3, e o chinês há séculos
78
é a língua mais falada do mundo. A história da cultura chinesa
é calcada num longo processo de assentamento, cujas
sucessivas camadas acumulam o passado e o re-significam
perante o contexto histórico. Um chinês de hoje acha plausível
colocar em pé de igualdade, numa discussão sobre política
moderna, Confúcio e Maozedong (Mao Tsé Tung 毛泽东). A
mente chinesa trafega num espaço em que passado e presente
se alternam, se tocam e se engendram mutuamente, gerando
indistinções difíceis de serem traduzidas para o pensamento
ocidental. Talvez não se trate, portanto, de tentar enquadrar a
China em nossas categorias epistemológicas; por outro lado,
não podemos abandonar nossos referenciais ao estudá-la, sem o
que nos dissolvemos de maneira acrítica nesse monumento
cultural. A civilização chinesa merece um exame pelo que ela
é, e se torna necessário que estabeleçamos formas de
compreendê-la. Tais métodos devem escapar do fascínio
esotérico ou do preconceito acadêmico; devem deixar a China
falar por si, exibindo as fraturas de seu discurso – e os
equívocos dos nossos próprios discursos – de tal modo que
possamos criticá-los, reformá-los e estabelecermos um
verdadeiro diálogo intercultural.

Para isso, pois, é preciso compreender a figura de Confúcio e


do Confucionismo para a sociedade chinesa. Veremos que o
confucionismo escapa de nossas classificações usuais, e nos
apresenta a complexidade da cultura chinesa. Por outro, o seu
entendimento nos permite acessar as nuances do pensamento
chinês, de sua estrutura de vida, de seu modo de olhar o
mundo. O que pretendo nesse breve ensaio é deixar-lhes uma

79
breve apresentação acerca da necessidade de entender
Confúcio para compreender a China. Ambos são
indissociáveis. É praticamente impossível apreender a China de
hoje sem investigar seu passado. É o que proporei aqui.

O Modelo do Sábio

O confucionismo é um movimento intelectual, e sua


denominação original é ‘Rujia’ 儒家, que pode ser traduzido
como ‘Escola Acadêmica’, dos ‘estudiosos’ ou dos ‘letrados’.
Ela denota um grupo que se formou em torno da figura de
Confúcio (孔夫子, -551 a -479), antigo professor da China
antiga cuja doutrina filosófica analisaremos aqui. Não há em
chinês o termo ‘confucionismo’, e essa é uma criação
ocidental, feita pelos primeiros missionários cristãos que foram
para a China no século 16. Utilizaremos o termo por
conveniência: contudo, desde já somos obrigados a notar que
não houve entre os chineses essa associação particular entre o
mestre fundador e o nome de sua doutrina. Esse detalhe
lingüístico é importante para percebermos o primeiro problema
que se interpõe quando estudamos a história da China.

Possuímos basicamente dois modelos para investigar os


grandes nomes do passado: o dos filósofos e o dos sábios-
religiosos. Os filósofos, tais como Platão e Aristóteles, legaram
um razoável material escrito, organizaram os princípios de suas
doutrinas e as transformaram em escolas. Já os ‘sábios-
religiosos’, como o filósofo Karl Jaspers [1951] propôs, são

80
figuras que não deixaram praticamente nada escrito,
extrapolaram suas fronteiras e ganharam uma dimensão
religiosa. Suas doutrinas, porém, sobreviveram ao longo dos
séculos, transformando-se em movimentos de forte cunho
social. Nessa categoria, entre muitos outros, Jaspers incluía
Jeremias, Buda, alguns pensadores gregos e Confúcio.1

Poderíamos, a partir dessa breve classificação, nos perguntar


por qual razão Jaspers transformou Confúcio numa figura
religiosa se ele, na verdade, estava muito mais próximo de um
filósofo. Confúcio foi, provavelmente, o primeiro editor de
livros da civilização chinesa, reconstituindo um conjunto de
clássicos que seriam a base educacional de sua escola. Além
disso, ele próprio teria escrito um livro, o ‘Chunqiu’ 春秋, pelo
qual esperava ser conhecido. Os livros posteriores a Confúcio
foram compilados por seus discípulos, e naturalmente somos
atraídos pela idéia de que esse seria um processo similar ao que
a tradição cristã afirma sobre a escrita dos evangelhos. No
entanto, as obras de Aristóteles também foram editadas por um
de seus discípulos, Teofrasto, e essa prática não era incomum
na época. Confúcio, portanto, deixou muita coisa escrita. Do
mesmo modo, ele nunca fez qualquer milagre, nem mesmo
operou eventos fantásticos. Na verdade, ele é conhecido por
alguns trechos absolutamente ‘não religiosos’ (do nosso ponto
de vista), presente em suas Conversas (Lunyu, 論語):

81
Fanchi perguntou o que é sabedoria.

O Mestre disse: cuide do povo, respeite os deuses e


espíritos, mas sem se envolver com eles. Isso é
sabedoria.

[...]

Zilu perguntou: como se serve aos deuses e espíritos?

O Mestre disse: aprenda a servir às pessoas, depois


pense em servir aos deuses.

Zilu perguntou sobre a morte.

O Mestre disse: aprenda antes a viver, depois aprenda


sobre a morte.

Visto assim, Confúcio poderia ser perfeitamente enquadrado na


categoria dos filósofos. A questão, porém, é que Platão não
conseguiu convencer os Dionísos de Siracusa a transformarem-
se em bons governantes. Nenhum filósofo foi invocado como o
modelador de uma sociedade, embora alguns pretendessem sê-
lo. As inspirações morais das sociedades européias vinham de
suas religiões. Com o advento do cristianismo, isso ficou ainda
mais evidente, e foi a religião que converteu os filósofos à sua
causa. Na China, porém, foi diferente. Confúcio foi o artífice
de uma profunda revolução ética na sociedade. Nos dias de
hoje, em que o comunismo não é mais capaz de convencer os
chineses, estes afirmam sem sombra de dúvida que Confúcio é

82
o grande articulador de sua cultura. Daí, podemos entender o
ponto de vista de Jaspers: afinal, como Confúcio conseguiu ser
o modelo ético de sua sociedade sem apelar para o elemento
religioso? Confúcio não invocou o poder dos deuses para fazer
funcionar a sua doutrina. Na verdade, ele nada impôs: apenas
informou que a degeneração social criaria os seus próprios
tormentos, num cálculo absolutamente racional da questão.

A capacidade de rearticular a sociedade num novo sistema, sem


requisitar a interferência de potências celestiais ou infernais,
distingue Confúcio de todos os seus contemporâneos. No
entanto, se ele conseguiu o que nenhum filósofo grego ou
romano alcançou, a amplitude e profundidade de suas reformas
só possuem equivalência, justamente, com aquelas feitas pelos
grandes sábios-religiosos. Como então definir Confúcio? Um
filósofo bem sucedido, ou um profeta sem religião?

Para os chineses, Confúcio representa a essência daquilo que


eles chamaram de ‘sábio’ (Shengren, 聖人). O sábio chinês
possui a sabedoria devido a sua capacidade em enxergar para
além das aparências, de conceber o mundo em seu sistema,
alcançando sua lógica de funcionamento. Sua interferência,
porém, não é metafísica: o sábio só é tido como sábio, na
verdade, por realizar coisas absolutamente factíveis e
concretas, alterando a conformação da sociedade. Nesse caso,
pois, Confúcio foi sábio por legar uma herança realizável; se
fizesse milagres, seria um mero feiticeiro (Fangshi, 方士). Por
essa razão, também, não existe uma doutrina dos seguidores de
Confúcio. O que existiu foi uma escola, que depois se

83
transformou num movimento intelectual de profundas
implicações sociais.

Os Estudos Acadêmicos

Em linhas gerais, o que propunha Confúcio? Uma reforma


social, baseada na Educação (Jiao, 教). A China de sua época
passava por uma terrível crise social. O império Zhou 周 (-
1027 a -220) encontrava-se dividido em reinos que guerreavam
incessantemente entre si. Um declínio generalizado da moral
estimulava a corrupção, a astúcia, a violência e a desigualdade.
Esse momento, conhecido na história chinesa como ‘Época das
Cem Escolas’ marcaria o surgimento de diversas doutrinas,
cada uma propondo um tipo diferente de solução para esses
problemas. Cada uma delas apresentava o seu próprio ‘Dao’
(ou Tao, 道), um caminho ou método para recuperar a
Harmonia (He, 和) do mundo. Confúcio entendia que as causas
da crise estavam num empobrecimento generalizado da cultura.
Sem conhecer a moral, as pessoas não podiam ser corretas. Só
se poderia conhecer a moral pela educação. Assim, pois, a
solução para os problemas da sociedade era criar um programa
completo de educação, que resgatasse na Natureza humana
(Xin, 性) o verdadeiro humanismo, Ren 仁, o desejo de viver
harmoniosamente em sociedade.

Visto assim, parece uma simplificação ou uma visão


modernizada de Confúcio, mas sua atualidade é chocante
justamente por isso. Confúcio propunha que os problemas

84
sociais eram gerados pela ignorância. Não haviam deuses
envolvidos na questão: a degradação humana era causada pela
própria humanidade. Confúcio defendia que estávamos
integrados num sistema ecológico natural (que ele chamava de
Céu, Tian 天), em que as agressões e desregramentos geravam
os efeitos negativos que assolavam a sociedade. O primeiro
capítulo do livro A Justa Medida (Zhong Yong, 中庸) define
bem isso:

O que o céu concedeu ao ser é chamado Natureza


humana 性; seguir esta Natureza é o que se chama
Caminho 道; seguir o Caminho é o que se chama
Educação 教. O caminho não pode ser abandonado por
um só instante; se pudesse, não seria o caminho. Por
isso, o ser superior espreita o que seus olhos não podem
ver e atenta-se ao que os ouvidos não podem ouvir. Não
há nada mais visível do que o que não se busca ver,
nada mais palpável que o não-tocado. Por isso o ser
superior presta atenção diligentemente a si mesmo.
Enquanto o contentamento ou a raiva, a tristeza ou a
alegria ainda não despertaram, temos a centralidade 中.
Quando estas paixões despertam de forma equilibrada e
medida, temos a Harmonia 和 (Medida). A
Centralidade é o grande fundamento do mundo; a
Harmonia, o caminho universal. Quando a centralidade
e a harmonia forem levadas ao seu ponto supremo, céu

85
e terra estarão em seus lugares, e todos os seres
prosperarão.

Para resgatar a compreensão desse sistema, Confúcio defendia


que o estudo era a via fundamental. O estudo das tradições era
designado como ‘Xue’ 學, e o estudo da ação prática como
‘Zhi’知. Ambos eram complementares, e formavam a base da
Educação (Jiao, 教). Essa é a razão pelo qual o Caminho
proposto por Confúcio acabou sendo conhecido como ‘escola
acadêmica’. Um seguidor de Confúcio era, antes de tudo, um
estudante. E no fundo, ele não se entendia seguindo Confúcio,
mas sim, as tradições. O prestígio de Confúcio residia em ter
demonstrando o quão óbvio seria a causa dos problemas
chineses, e de como se poderia resolvê-los.

A redenção pelos Estudos e pela História

A elaboração do método Confucionista consistia no estudo de


seis artes e no domínio de seis livros. As seis artes eram; o
estudo da cultura (‘ritos’), Música, Caligrafia, Matemática,
Arqueria e Cavalaria. Essas áreas contemplavam o conjunto
dos saberes básicos da época, que eram desenvolvidos depois
nos estudos superiores em uma determinada área específica. A
formação humanística era dada por seis livros que Confúcio
selecionara como os fundamentos da cultura chinesa:

86
• Yijing 易經, ou Tratado das Mutações, livro que guardava os
antigos conhecimentos sobre as teorias científicas chinesas, e
servia também como oráculo;

• Shujing 書經, ou Tratado dos Livros, continha as principais


passagens históricas das primeiras dinastias;

• Shijing 詩經, ou Tratado das Poesias, uma recolha de poemas


e canções tradicionais que apresentavam um quadro do
cotidiano dessa civilização;

• Liji 禮記, ou Recordações Culturais, é uma vasta compilação


dos costumes, ritos, hábitos, leis e visões sociológicas da época
Zhou 周;

• Chunqiu 春秋, ou Primaveras e Outonos, é uma crônica


histórica escrita pelo próprio Confúcio sobre sua época,
apresentando diversas passagens históricas para serem
analisadas pelo seu caráter moralizante;

• Yuejing 樂經, ou Tratado da Música; esse último texto foi


perdido, e se supõe que ele contivesse músicas e teorias
músicas da China Antiga, fundamentais para a Educação, na
visão de Confúcio. Uma possível parte desse tratado
sobreviveu no Liji 禮記.

Devemos notar que entre esses livros, dois são especificamente


de história (o Shujing 書經e o Chunqiu 春秋). Confúcio

87
acreditava que na história (Shi, 史) estavam contidos os
grandes exemplos morais, as experiências de vida necessárias à
descoberta da sabedoria, os eventos elucidativos que
explicariam as razões pelas quais somos hoje o que somos. A
história ensinaria a origem e as funções dos mecanismos
sociais, permitindo-nos aceitá-los, praticá-los ou mesmo
modificá-los, segundo as conveniências da época.
Compreendendo as raízes da cultura, compreendemos, por
conseguinte, o desenvolvimento da moral e da justiça (Yi, 義).
Foi isso que ele nos legou as Recordações
Culturais (Liji, 禮記)2, uma extensa compilação dos hábitos,
costumes e crenças de sua época. No passado podia ser
encontrada a fonte da sabedoria. Eis porque ele afirmou,
nas Conversas 論語: ‘amo o passado, e o imito’, e também:
‘mestre é quem sabe o antigo, e descobre o novo’.

Posteriormente, Zhuxi 朱熹 (1130 a 1200), um dos mais


destacados continuadores da escola acadêmica, afirmaria que a
doutrina poderia ser condensada em quatro livros básicos:
Conversas 論語, Justa-Medida 中庸, O Grande Estudo
大學 e O Livro de Mêncio 孟子 (Mengzi 孟子, -372 a -289,
discípulo do neto de Confúcio, Zisi 子思, e considerado o
maior autor ‘confucionista’ depois do próprio Confúcio). Esses
livros foram escritos pelos discípulos de Confúcio (a Justa-
Medida 中庸 e O Grande Estudo 大學 chegaram a ser
incluídos nas Recordações Culturais 禮記 posteriormente), e
constituiriam o cerne do pensamento acadêmico, definindo
seus temas principais. Doravante, formar-se-ia um cânone da

88
escola acadêmica, utilizado como base, até nossos dias, para o
aprendizado do Confucionismo e da Educação em geral.

O Projeto Social

Mas como todos os sábios do passado, Confúcio tinha um


problema: como aplicar essa educação na sociedade, e
transformá-la numa regra moral incorporada a mentalidade
popular? Seu modelo de cidadão era o ‘Educado’ (Junzi, 君子),
a pessoa que havia alcançado o equilíbrio, a justa medida das
coisas, em meio à sociedade. O Educado não deveria apenas
inspirar as pessoas; ele deveria governar também. Para
Confúcio, era necessário tornar a China uma nação
meritocrática, em que o valor do estudo fosse reconhecido
como forma de salvação e manutenção do bem estar social. Por
essa razão, ele sempre aconselhava seus discípulos mais
preparados a assumirem cargos na política, promovendo esse
bem estar pelos exemplos de justiça e educação. Gradualmente
esse sistema evoluiu, ao longo dos séculos, e se transformou no
conhecido sistema de exames imperiais. Ele se constituía num
vasto concurso nacional, cujo objetivo era constituir os quadros
da administração pública imperial. Esse sistema foi capaz de
sustentar o país por mais de dois mil anos, e transformou a
educação numa obsessão nacional. Ele contrabalançou os
desatinos dos déspotas, equilibrou as relações sociais por meio
da mobilidade, e apesar de todos os seus defeitos, consolidou
no país a idéia de que o estudo é a base do desenvolvimento
individual e social:

89
Para o Educado, a única maneira de civilizar o povo e
instituir bons costumes sociais é pela educação. Por isso
os antigos soberanos consideravam a educação como o
elemento mais importante, em seus esforços por
implantar a ordem no país. [...] Só por meio da
educação, pois, tornar-se-á alguém insatisfeito com o
que sabe; e só quando tem de ensinar a outrem é que a
gente dá-se conta da incômoda insuficiência dos
próprios conhecimentos. Insatisfeita com o que sabe, a
pessoa então percebe que é seu o mal, e dando-se conta
da incômoda insuficiência de seus conhecimentos
sentir-se-á impelida a aprimorar-se. (Recordações
Culturais, 禮記)

Uma Ética Não-Religiosa

Já que a base da harmonia social era o estudo, a doutrina de


Confúcio nunca se preocupou diretamente com a questão da
crença no além. Os confucionistas sempre tiveram receio de
investir na metafísica, deixando isso para o campo das opções
pessoais. De fato, pode-se ser um confucionista e acreditar em
qualquer outra coisa – budismo, daoísmo ou cristianismo –
contanto que não se quebrem as regras do trato social.

Esse era o ponto de vista fundamental de Confúcio: não se


tratava de negar a existência das divindades, mas de pôr em
primeiro lugar os negócios da terra. A ética proposta por

90
Confúcio era materialista e racional, como aparece nas
Conversas 論語:

Zigong perguntou: existe uma única palavra que possa


guiar nossa vida? O Mestre disse: reciprocidade*. Não
faça aos outros o que não quer para você. [*恕 shu:
palavra que pode ser traduzida e empregada como
reciprocidade, cortesia ou tolerância]

Outra passagem é bastante elucidativa nesse sentido:

O Humanismo (Ren, 仁) se resume em cultivar a si


mesmo e cultivar a cultura. Faça isso por apenas um dia
e todos vão seguir o Humanismo. A prática do
Humanismo tem origem em si mesmo e não nos outros
[...] cuide da cultura da seguinte maneira: não olhe, não
escute, não diga e não faça o que for inapropriado. [...]
fora de casa, aja como se todos fossem convidados
importantes. Cuide do povo como se fosse um evento
importante. Não imponha a ninguém o que não gosta
pra si mesmo. Não deixe o ressentimento pessoal se
intrometer nas coisas públicas ou nos assuntos
particulares.

91
A doutrina confucionista não era, portanto, religiosa tal como
entendemos. Confúcio defendia a existência de um sistema
ecológico, denominado ‘Céu’ (Tian, 天), que governava a
natureza por meio de leis – tais como hoje entendemos como
‘leis da natureza’. Mesmo deuses e espíritos estavam inseridos
nesse sistema. Por isso, a função da política humana era
interpretar os sinais da natureza, e convertê-las em políticas
públicas adequadas. Uma importância fundamental era dada,
por exemplo, ao calendário anual - atributo do imperador - que
regulavas as estações do ano, a época de plantio e colheita, e as
demais atividades cotidianas. Definir o calendário era adequar-
se ao curso do Celeste; contrariá-lo era investir no erro e atrair
sobre o império a calamidade. Isso fica bem claro no Tratado
dos Livros 書經:

Tian天(Céu) inspeciona o povo cá em baixo, tomando


nota da sua retidão, e regulando conseqüentemente o
seu arco da vida. Não é Tian天que destrói os homens.
Estes, pelas suas más ações, encurtam as suas próprias
vidas.

Se o ‘Céu’ 天 era uma entidade inteligente, era também


absolutamente impessoal. Na visão de Confúcio, uma conduta
de vida adequada era o mesmo que uma vida harmônica com a
natureza. A interferência do divino era relativizada na vida
comum, como vemos nesse trecho das Conversas 論語:

92
O Mestre estava doente. Zilu queria rezar por ele. O
Mestre disse: e como é isso? Zilu disse: invocamos os
espíritos de cima e de baixo. O Mestre disse: já faço
isso há muito tempo, não vai dar certo.

A Base Familiar

Confúcio deslocou o problema da crença religiosa no além para


a estruturação da sociedade. O equilíbrio social existiria em
função de uma delicada teia de relações, cujo núcleo central era
a família. Assim, a fraternidade familiar (Xiao, 孝), tornara-se
o elemento fundamental do sistema de organização dos
indivíduos e de sua relação com o governo. Confúcio pretendia
a existência de um conjunto de cinco relações sociais básicas,
postas em ordem hierárquica, que seriam as seguintes:

Cinco são os deveres da obrigação universal, e três são


as qualidades morais através das quais eles são
cumpridos. Os deveres são entre governante e
governado, entre pais e filhos, entre marido e mulher,
entre parentes mais velhos e mais jovens, e entre
amigos. Estes são os cinco deveres da obrigação
universal. Sabedoria, compaixão e coragem – estas são
as três qualidades morais dos seres humanos
reconhecidos universalmente. Não importa de que
maneira as pessoas exercitam essas qualidades morais,
o resultado é o mesmo. (Justa Medida, 中庸)

93
A partir delas, a sociedade poderia ser estruturada
dentro de uma cadeia de relações pré-determinadas, que
definiam obrigações, direitos e deveres dos indivíduos,
evitando a maior parte dos dilemas morais. Essas
obrigações eram compreendidas por meio da educação,
tanto na escola quanto no lar. Era o papel da
fraternidade familiar, aqui descrito no Tratado da
Fraternidade Familiar (Xiaojing, 孝經):

O Mestre disse: a Fraternidade é o fundamento da


virtude. Aprenda e viverá. Eu vou te ensinar. Corpo,
membros, cabelo e pele, cada pedacinho, são nossos
pais que nos deram. Tenha o cuidado de não os
envergonhar ou machucar. Essa é a primeira obrigação
da Fraternidade. Quem legar seu nome na vida, no
trabalho, e para as gerações futuras, esse alguém atingiu
a Fraternidade perfeita.

A Fraternidade começa servindo aos pais, depois ao


governante, por fim no cultivo de si mesmo.

O Tratado das Poesias diz: pense nos antigos, cultive


sua virtude.

O Mestre disse: quem ama os pais não faz mal a


ninguém. Quem respeita os pais, respeita os outros.
Amor e respeito são a base da Fraternidade com os pais:
quem dá o exemplo serve de modelo nos quatro cantos
da Terra. Por isso, mesmo o filho do Céu é fraterno. O

94
Tratado dos Livros diz: o Céu abençoa o soberano
fraterno, e todos são abençoados juntos.

O Governo

Se Confúcio pretendia que a família estabelecesse o equilíbrio


social, formando pessoas justas (Junzi, 君子), qual o papel do
governo na sociedade? O governo, na visão confucionista,
recebia o ‘Mandato do Céu’ (Tianming, 天命) para administrar
a vida dos seres, e manter a continuidade da harmonia no
mundo. Esse Mandato não era um atributo místico, e sim um
dever moral e cósmico. Implicava que alguém havia recebido o
poder para conciliar as diferenças e corrigir os erros. Nas
histórias confucionistas, os governantes mais sábios tinham
sempre um receio tremendo de assumir o poder, e quando
podiam, transferiam-no antes mesmo de morrer para um
sucessor designado, de modo a poderem aproveitar a velhice
com sossego. O Mandato, pois, não era uma benção celeste: ele
deveria ser encarado como uma dura tarefa, da qual o
imperador só poderia se beneficiar se cumprisse bem seus
deveres. Do contrário, ele poderia ser derrubado – ou, perderia
o ‘mandato celeste’, pelo qual foi investido para trazer ordem e
harmonia ao mundo:

Cumpre-nos, certamente, analisar as dinastias de Xia


夏e Yin 殷. Eu não presumo que saiba, nem digo: "A
dinastia de Xia devia gozar do favorecedor decreto do
95
Céu, durante tantos anos”; não presumo que saiba, nem
digo: "Ela já não poderia perdurar". O fato,
simplesmente, foi o seguinte: carecendo a mesma da
virtude da reverência, o decreto prematuramente caiu
por terra, com o seu favor. Analogamente, não presumo
que saiba nem digo: "A dinastia de Yin devia gozar do
favorecedor decreto do Céu precisamente durante tantos
anos”; não presumo que saiba nem digo: "Ela já não
poderia perdurar". O fato, simplesmente, foi o seguinte:
carecendo a mesma da virtude da reverência, o decreto
prematuramente caiu por terra, com o seu favor. O
imperador Zhou 周 ora herdou esse decreto - o mesmo
decreto, eu presumo, que pertenceu àquelas duas
dinastias. Que ele procure herdar as virtudes dos seus
meritórios soberanos; que o faça especialmente no
início das suas atribuições. [...] Que ele não ouse, como
imperador e em virtude dos excessos do povo na
transgressão das leis, governar com a violenta
imposição da morte; - quando o povo é dirigido com
brandura, o mérito do governo se torna patente.
Compete-lhe, na qualidade de imperador, exceder a
todos em virtude. Assim o povo o imitará por todo o
império e ele será ainda mais ilustre. (Tratado dos
Livros, 書經)

96
Nas Recordações Culturais (Liji, 禮記), Confúcio também
informa como deve proceder um bom soberano, reforçando o
sistema por ele proposto:

A arte do governo consiste simplesmente em fazer bem


as coisas, ou seja, pôr as coisas em seus devidos
lugares. Quando o próprio governante procede “bem", o
povo imita-o naturalmente no bom procedimento. O
povo apenas segue o que o governante faz - pois se o
governante não o faz, como há o de povo saber o que, e
como, fazer?

Com exceção do imperador Qinshi Huangdi 秦始皇帝(-220 -


206), e do regime comunista de Maozedong, todos os
imperadores chineses recém-empossados buscavam sempre
apresentar-se como restituidores da ordem celeste e
representantes dignos da escola acadêmica. Não restava
dúvida, aos chineses, que todas as crises derivavam do colapso
da Educação e da Família3; e que a sobrevivência e os
momentos áureos da civilização chinesa deviam a sua
existência à boa consecução desses dois elementos.

97
Confucionismo e Sinologia

Todas as questões aqui apresentadas continuaram a ser


discutidas e aprofundadas, dentro da China, ao longo dos
séculos. A escola acadêmica – ou ‘confucionista’ – teve
brilhantes continuadores, que mantiveram a postura crítica e
questionadora da doutrina de Confúcio. Devemos atentar ao
fato de que nenhum desses estudiosos – nem mesmo Confúcio
– se tornou um santo ou um deus. Autores como Hanyu
韓愈 (768 a 824) e Zhuxi 朱熹 (1130 a 1200) fizeram questão
de afastar qualquer tentativa de sacralizar a doutrina
acadêmica, mantendo o aspecto fundamental do estudo e de
uma ética laica como base do desenvolvimento humano e
científico. Foram criados ‘templos’ confucionistas que, na
verdade, eram salões acadêmicos com bibliotecas e áreas de
estudo. Os confucionistas nunca criaram qualquer tipo de
panteão espiritual: ao invés disso, eles desenvolveram
aprofundadas teorias de cosmologia e de filosofia da mente que
hoje fascinam o Ocidente.

Embora sejamos atraídos pela China mística de budistas e


daoístas, foi o confucionismo que criou a argamassa com a
qual a sociedade chinesa foi articulada. Ao estudarmos a
história da China, lemos os livros escritos pela laboriosa
produção historiográfica confucionista. Foram os acadêmicos
que recolheram e preservaram as grandes bibliotecas de textos
que nos permitem acessar o passado chinês – ainda que muito
desses escritos fossem de escolas rivais a eles. Essa paixão pelo
saber, pela ordem social, pelo valor da família e aos costumes
foi definitivamente assentada no coração dos chineses pelo

98
profundo sistema educacional proposto por Confúcio. A
educação humanística criou uma China sempre preocupada em
preservar-se, em manter-se viva ao longo da história. E na
China de agora, é o movimento do ‘Novo Confucionismo’ (Xin
Rujia, 新儒家) que vêm crescendo como alternativa política e
social a um comunismo cada vez mais enfraquecido e distante.
No passado, os chineses buscam alternativas para ao futuro,
usando uma fórmula consagrada: educar-se, aprimorar-se e
tornar-se um bom cidadão. Há milênio é isso que torna alguém,
idealmente, ‘chinês’ – mas não será, também, um bom modelo
para a humanidade em geral?

O trabalho da sinologia – o estudo da China pelos ocidentais –


deve muito, portanto, a herança confucionista. O modelo criado
por Confúcio instou os chineses a preservarem seu passado de
tal forma que hoje podemos acessá-lo e compreendê-lo, por
meio de todo o legado material e cultural que sobreviveu ao
longo dos séculos. Mas não se trata apenas disso. Se o
confucionismo nos permite estudar a China, tanto no aspecto
histórico, quanto filosófico ou antropológico, há que se pensar
se seu modelo não deveria nos inspirar também. Devemos
passar além da mera herança histórica. Compreender o
confucionismo não serve apenas para compreender a China. A
mentalidade chinesa é traduzida, pelo confucionismo, num
meio acessível de compreensão ao exercício da sinologia.
Contudo, há mais: o modelo proposto por Confúcio prova, de
certa maneira, a importância da Educação na continuidade de
uma civilização. No atual contexto, em que a Educação é
banalizada e corrompida, o exemplo do confucionismo na

99
China demonstra tacitamente que a Educação serve à
perpetuação de uma sociedade. Sem Educação, uma sociedade
está sujeita a crises violentas e destruidoras, como foram as
revoluções que ocorreram na China. Devemos dedicar nossa
atenção a experiência chinesa: esse país milenário passou por
percalços históricos aos quais podemos evitar, se deles
pudermos extrair lições históricas que evitem nossos possíveis
erros. O estudo da sinologia, pois, não é um mero exercício
diletante de investigar o outro; mas é, fundamentalmente,
buscar no outro uma via de re-significação de si mesmo. O
modelo da Educação, tão bem sucedido entre eles, mostra que
essa pode ser uma aposta correta: mas depende de uma vontade
social, ligada ao desejo de auto-aprimoramento, que alicerça o
desejo de continuidade – e ao mesmo tempo, de mudança –
dentro da sociedade.

Confúcio disse, nas Conversas 論語: ‘olhem os jovens, eles são


o futuro. Mas se eles não se preocuparem com isso, ficarão
velhos e não serão nada’. Foi justamente essa minha
preocupação, como educador, em proporcionar essa breve
apresentação sobre o confucionismo para vocês. Não pretendo
com isso defender que todos devam tornar-se sinólogos, porque
acredito firmemente que as pessoas devem seguir suas paixões
e predileções intelectuais. Contudo, não podemos mais ignorar
a realidade das civilizações asiáticas, se nos entendemos como
historiadores e especialistas em ciências humanas. Nosso país,
nossa sociedade, nossa cultura, tudo isso será construído pelo
que soubermos fazer de nós mesmos. Nesse ponto, pois, a
China – assim como muitas civilizações antigas – nos serve de

100
aviso. Nelas vislumbraremos a longa cadeia de acontecimentos
que fizeram povos desaparecerem, sobreviverem e se
reinventarem. Termino, novamente, com uma recomendação
do velho mestre sobre o caminho dos acadêmicos:

Pode-se alcançar o poder pelo conhecimento, mas ele se


mantém pela bondade. Sem bondade, o poder se perde.
Poder com conhecimento e bondade é bom, mas se
perderá se não for digno com o povo. Poder que se
alcança com conhecimento, se mantém pela bondade e
se exerce com dignidade é bom, mas ainda não é o
suficiente se não houver Cultura. (Conversas 論語)

Notas

1.De fato, a classificação de Jaspers é abrangente, e possui uma


série de contradições na escolha e definição dos ‘grandes
nomes’ da antiguidade. Usamo-la aqui apenas como referência
para discussão.

2.‘Liji’禮記tem sido tradicionalmente traduzido como ‘Livro


dos Ritos’, mas julgo inadequada e reducionista a tradução do
termo ‘Li’ apenas como ‘ritual’. Um exame breve dessa fonte
nos permite constatar que Confúcio abordava a cultura no
geral, razão pela qual optei por ‘cultura’ no lugar de ‘rito’.

101
3.A relação entre Educação e Família é tão forte na cultura
chinesa que o ideograma ‘Jia’家 pode ser usado tanto para
designar ‘casa’ como ‘escola’. A escola, pois, é a segunda casa
de todo o chinês.

Bibliografia

De minha autoria:

Mirações do Celeste, 2009; uma introdução a história e a


cultura da China numa visão tradicional, baseada nas fontes
chinesas. Disponível em: http://miracoes.blogspot.com

Cem Textos de História Chinesa, 2009; coletânea de fontes


chinesas, cobrindo da Antiguidade até os dias de hoje,
apresentando a mentalidade dessa civilização sobre os seus
mais diversos aspectos, tais como história, economia, política,
etc. Disponível em: http://chinologia.blogspot.com

Minhas traduções de Confúcio (Conversas 論語, Justa-Medida


中庸, O Grande Estudo 大學 e o Tratado da Fraternidade
Familiar 孝經) podem ser vistas em:
http://orientalismo.blogspot.com.br

Uma história das traduções de Confúcio, bem como dos


estudos confucionistas no Brasil pode ser vista no meu artigo:
“Confúcio no Brasil: um problema epistemológico”, disponível
em:

102
http://orientalismo.blogspot.com.br/2014/01/confucio-no-
brasil-um-problema.html

Os clássicos chineses, coligidos por Confúcio, podem ser vistos


em: http://chines-classico.blogspot.com

Outros autores:

Boff, L. (org.) China & Cristianismo. Petrópolis: Vozes, 1979.

Cheng, A. História do pensamento chinês. Petrópolis: Vozes,


2010. Jaspers, Karl. Way to Wisdom: An Introduction to
Philosophy. Yale: Yale University Press, 1951.

de Bary, William Theodore. The Trouble with Confucianism.


Cambridge: Harvard University Press, 1991

Hall, David L., and Ames, Roger T. Thinking Through


Confucius. Albany: State University of New York Press, 1987.

Hershock, Peter D. and Roger T. Ames, eds. Confucian


Cultures of Authority Albany: State University of New York
Press, 2006.

Ivanhoe, Philip J. Ethics in the Confucian Tradition: The


Thought of Mencius and Wang Yang-ming. Atlanta: Scholars
Press, 1990.

Jensen, Lionel M. Manufacturing Confucianism: Chinese


Traditions & Universal Civilization. Durham: Duke University
Press, 1997.

103
Jullien, F. Um sábio não tem idéia. SP: Martins Fontes, 2000.

Miribel, J. & Vandermeersch, L. Sabedorias chinesas. Lisboa:


Piaget, 2010.

Scarpari, M. China Antiga. São Paulo: Folio, 2009.

Xin Z.Y. El Confucianismo. Madrid: Cambridge University


press, 2002.

104
LAO ZI E O TAOISMO por António
Graça de Abreu

A tradição historiográfica e cultural, o pensamento filosófico


chinês – com algumas excepções -, pretende que Lao Zi 老 子
(ou Lao Tsé, Lao Tzu, Láucio) Confúcio孔夫子e Buda tenham
sido contemporâneos, habitado terras da China e da Índia nos
séculos VI e V antes de Cristo.

Ao longo de muitas dinastias, incontáveis letrados chineses têm


feito balançar as datas do nascimento e morte de Lao Zi, ou Li
Er 李耳, o mítico fundador do taoísmo, entre os anos 600
AEC e 500 AEC1 Alguma Sinologia ocidental e também
alguns estudos chineses costumam colocar Lao Zi a viver
também em tempos recuados, mas mais próximo de nós, terá
talvez nascido em 460 a. C. e falecido por volta de 380 AEC2
Certo, certo é não sabermos ao certo quando Lao Zi viveu, ou
mesmo se esta singular figura terá algum dia existido. De
origem popular, sobrevivem no entanto muitas histórias e
lendas a seu respeito. Terá nascido depois de sua mãe, de nome
Li Shi, ter engravidado ao engolir uma pérola de cinco cores
caída do céu. O menino experimentou então uma longuíssima
estada na barriga materna, a gestação prolongou-se por oitenta
e um anos. Por isso, o mestre nasceu já com cabelos brancos,
velho e sábio. 老 子Lao Zi significa exactamente “Velho
Criança”, e as crianças são sábias.

105
O Tao Te Ching 道德 经, a obra que lhe é atribuída, será
anónima, posterior à sua existência real, redigida
provavelmente no início da dinastia Han 汉 (206 a. C.-220 d.
C.), talvez até da autoria de diferentes letrados. Considera-se
que, fruto da utilização no governo dos ensinamentos de Lao Zi
e também de Confúcio, o grande imperador Han Wendi
governou a China (de 197 AEC e 157 AEC) com sabedoria e
simplicidade. E foi o filho Han Jingdi, que lhe sucedeu no
trono, quem deu finalmente ao livro o nome de Tao Te Ching.

Sima Qian 司馬遷 (145 AEC-86 AEC), o maior historiador da


China Antiga, nas suas Shi Ji 使 記, as “Memórias
Históricas”³, escreveu uma pequena biografia do presumível
autor do Tao Te Ching ou Dao De Jing onde se lê:

“Lao Zi era natural da aldeia de Qurenli, na comuna de


Lixiang, distrito de Kuxian, no reino de Zhou.4 Seu
nome de família era Li, o apelido Er e o nome de
cortesia era Dan. Ocupou funções de bibliotecário nos
arquivos do reino de Zhou.

Um dia Confúcio (551 AEC-479 AEC) visitou a capital


do reino de Zhou e encontrou-se com Lao Zi para o
questionar sobre os homens e os ritos a cumprir na vida
em sociedade.

Lao Zi disse:

106
‘Os homens de que falais não existem. O tempo
consumiu seus corpos e ossos. Deles restam apenas
umas tantas frases.

Quando o sábio encontra circunstâncias favoráveis,


sobe a um carro com cavalos, quando a situação lhe é
adversa, vagueia ao acaso. Ouvi dizer que o mercador
astuto guarda cuidadosamente as suas riquezas e parece
nada possuir. O sábio, de excelente virtude mostra-se,
rosto e a aparência exterior, como se fosse um pobre
diabo.

Digo-vos, renunciai ao orgulho, aos infindáveis desejos,


lançai fora tanta ambição e vaidade. Isso não vos serve
para nada. Eis tudo o que tenho para vos dizer.”

Encontramos aqui, além de dados sobre existência de Lao Zi,


um crítica implacável ao pensamento e moral de Confúcio que
será retomada em outros textos taoistas posteriores.

E Sima Qian continua:

Lao Zi praticava o Tao (道Dao, a Via ou Caminho) e o


Te (德De, a Virtude ou o Poder através da Virtude) e a
sua doutrina conduzia à quietação e ao indefinível.
Residiu durante muitos anos na capital5 e observou o
declínio das instituições do reino. Decidiu então

107
resignar do cargo que ocupava e viajar para o Ocidente.
Ao chegar à passagem de Hangu, foi muito bem
recebido pelo comandante militar Yin Xi que lhe pediu:

‘Antes de se retirar do mundo, escreva um livro sobre a


arte de viver.’

Lao Zi compôs então uma obra com pouco mais de


cinco mil caracteres sobre o significado do Tao e do Te.
Depois partiu, montou um búfalo e desapareceu por
detrás das montanhas. Ninguém mais soube dele.6

São estes os únicos dados conhecidos sobre a vida de Lao Zi


que, livre das paixões do mundo, desapareceu em direcção às
regiões do Ocidente (a Índia? o Tibete?) e esfumou-se na brima
e no espaço.

O historiador Sima Qian nas suas biografias recorria


largamente às narrativas da tradição oral - daí as suas
frequentes palavras “ouvi contar”, “ouvi dizer” – , mas
trabalhava com grande rigor e os seus textos costumam ser
precisos e fiáveis. Apesar destes considerandos, a brevíssima
biografia de Lao Zi escrita por Sima Qian não esclarece muito
sobre a mítica figura do fundador do taoísmo. São inúmeras as
controvérsias e debates que duram até hoje sobre Lao Zi, o
texto do mestre e a natureza do Tao entre os mais diversos
estudiosos do taoismo, chineses e ocidentais.

108
Sabemos que o letrado He Shanggong (179 AEC - 159 AEC)
compilou a obra única de Lao Zi, distribuindo o texto do Tao
Te Ching pelos oitenta e um capítulos que continuam hoje a
dar forma a quase todas as edições. Três séculos mais tarde, o
letrado Wang Bi (220-244) fixou, comentou e anotou todo o
texto, também com oitenta e um capítulos e algumas variações
relacionadas com a inserção de uns tantos caracteres que ainda
hoje são objecto de discussão. Esta divisão corresponde aos
cuidados simbolistas e numerológicos da dinastia Han (206 a.
C.-220). O número 81 é 9 elevado ao quadrado e 9 equivale a
três ao quadrado. O número 3 está associado ao Céu, à Terra e
ao Homem, o 9 organiza o disperso, o 81 tem tudo a ver com a
unidade da diversidade.7

A primeira parte do livro, o Tao Ching, mais associada ao Tao


distribui-se por 37 capítulos, a segunda parte, o Te Ching,
destaca mais o Te e engloba os restantes 44 capítulos.

Com o decorrer dos séculos, têm aparecido pequenas variantes


ao texto inicial do Tao Te Ching devidas sobretudo às
sucessivas cópias e à natureza dos materiais utilizados na
escrita dos textos clássicos antigos. Os chamados wen fang si
bao文房四寶, ou seja os “quatro tesouros do letrado”, o papel,
o pincel, a tinta da China e o tinteiro, só foram inventados na
dinastia Han (206 a.C-220) por isso se considera que muita da
literatura da China mais antiga só assume plenamente a sua
importância a partir desse período. Nos séculos anteriores, com
o império ainda dividido em reinos não unificados, com os
ideogramas ou caracteres ainda em fase de desenvolvimento e
consolidação, a produção poética, filosófica, histórica era já

109
significativa mas a escrita, os caracteres gravavam-se em
pedra, lamelas de bambu ou em seda.

Nos primeiros anos do século XX, o explorador e sinólogo


francês Paul Pelliot descobriu na cave 17, - uma das fabulosas
grutas de Dunhuang, na província de Gansu8-, um manuscrito
datado provavelmente do início da era cristã, com o Tao Te
Ching em exactamente 4.999 caracteres. Com alterações pouco
significativas, as diferentes versões da obra costumam rondar
os 5000 caracteres chineses.

Em 1973 foram encontrados num túmulo fechado no ano de


168 AEC, em Mawangdui, perto da actual cidade de Changsha,
capital da província de Hunan, duas versões do texto do Tao Te
Ching pintadas sobre seda e datadas da dinastia Han. Objecto
de imediato estudo por parte de letrados chineses e de outros
países,9 comprovaram-se leves variantes em relação ao texto
tradicional.

Em 1993 foram descobertos em Goudian, próximo da hoje


cidade de Jingmen, na província de Hubei, mais dezasseis
textos gravados em lamelas de bambu que correspondem a três
versões que seguem muito de perto os capítulos clássicos do
Tao Te Ching, datadas provavelmente do século III AEC Mas a
ordenação dos capítulos é diferente, iniciando-se a obra com a
parte referente ao Te ou De 德, a Virtude ou o Poder, e só
depois vem o Tao ou Dao 道, a Via ou o Caminho.

110
Do Tao

O que é o Tao?

No texto tradicional do Tao Te Ching, o carácter tao道 aparece


76 vezes. O ideograma 道 é composto por dois elementos. Um
significa “cabeça ou chefe”, o outro “caminhar, concluir uma
viagem.” O Tao é pois o caminho a percorrer, é fazer o
caminho, chegar ao fim e iniciar sempre um novo caminho.

O Tao é também a força natural que existe por toda a parte, o


fluir e a harmonia da Natureza, uma espécie de poder
omnipotente que acompanha a nossa vida. O homem assume-se
como uma pequeníssima parte do mundo natural.

Lao Zi, no capítulo 25 do Tao Te Ching, fala da natureza do


Tao:

Misteriosamente formado,

nascido antes do Céu e da terra,

permanece solitário, imutável,

no silêncio do vazio,

sempre presente, sempre em movimento,

talvez a mãe de tudo debaixo do céu.

Não sei o seu nome,

111
vou chamar-lhe Tao.

Não será este Tao, também o Deus criador?

De resto, Jesus Cristo também disse: “Eu sou o caminho, a


verdade e a vida”, (João, XIV, 6.)

Ouçamos o bom do padre António Vieira (1608-1697),


acreditando naturalmente, porque estamos no século XVII
português, que o Tao não chegou ao seu conhecimento. Mas o
nosso jesuíta entendia quase tudo das coisas do mundo e
escrevia assim em Salvador da Baía, no Sermão de Nossa
Senhora do Ó, no ano de 1640:

“Está a imensidade de Deus no mundo e fora do


mundo, está em todo o lugar e onde não há lugar, está
dentro sem se encerrar e está fora sem sair, porque está
em si mesmo. O sensível e o imaginário, o existente e o
possível, o finito e o infinito, tudo enche, tudo inunda.
Por onde se estende e até onde? Até onde não há onde:
sem termo, sem limite, sem horizonte, sem fim.”

Na Pequim do século XVII, o jesuíta flamengo Ferdinand


Verbiest (1623-1688), nitidamente influenciado pelo seu
estudo e conhecimento dos textos taoistas, procurava explicar
aos chineses a natureza do Deus cristão e escrevia:

112
“A essência do senhor do Céu é um espírito puro, sem
forma nem imagem que não pode ser visto, nem ouvido.
Possui em si as dez mil virtudes e felicidades. Existe
para sempre, reina para sempre, não tem fim nem
princípio. É omnipotente, omnipresente e
omnisciente.”10

Zhuangzi 庄子 (369 AEC-?), o mais importante filósofo do


taoísmo e um escritor genial – infelizmente quase
desconhecido em Portugal – explicava, com absoluta
modernidade há vinte e dois séculos atrás, no capítulo 12 do
seu livro:

“No início, era o nada e dentro desse nada estava o Tao


que deu origem a tudo quanto existe. Assim surgiu o
universo ainda sem forma. Depois, gradualmente, os
seres começaram a ter existência. A massa amorfa foi-
se dividindo e surgiu uma cadeia ininterrupta de
processos que vieram a constituir o que chamamos vida.
Criaram-se então todos os seres pela harmonia entre as
forças da estabilidade (Terra) e do movimento (Céu.)
(…) O universo como tal é a expressão do absoluto.
Tudo muda ao longo do tempo, no decurso da evolução,
de acordo com o que começa e o que acaba. O
conhecimento ensina que as coisas mudam de aspecto e
que o absoluto transforma-se em relativo. Esbate-se, por

113
isso, a distância entre o grande e o pequeno, entre o que
vem antes e o que vem depois, numa cadeia que não
tem fim.”11

O padre Joaquim de Jesus Guerra (1908-1993), que ainda tive


o gosto e prazer de conhecer em Macau e depois em Lisboa, na
sua estranha tradução do Tao Te Ching que intitula Prática da
Perfeição/Daow-Tc Keq dá-nos uma definição abrangente e
religiosa das múltiplas faces do Tao. Diz:

“A palavra Daow significa vulgarmente caminho,


andar, comportamento, virtude, moral, sabedoria, falar,
verbo, verdade, doutrina, vida, carreira de vida,
governo, política, providência, administração, Senhor,
sítio, lugar, sede, morada.” E neste livro tem muitas
vezes o sentido forte de DEUS, SER ABSOLUTO,
EXCELSO, ALTÍSSIMO, SENHOR E RAZÃO, ou
CRIADOR DE TUDO, LUZ.12

Do Te

Qualquer dicionário de chinês dá-nos para este carácter te ou


de 德, significados aparentemente diferentes como “a virtude, a
força do espírito ou do coração, a energia, a influência, o
poder”. O Te será a virtude, ou o poder, a emanência
metafísica, não com um sentido moral mas como perfeição
114
interior. É a integridade do ser humano. O carácter é composto
por três elementos chi 彳que significa “passo” mais zhi 寘 de
“justo, direito” e xin 心 de “coração”. No chinês moderno te
está sobretudo associado à virtude como poder inteligente para
a consecução de objectivos justos.

O nosso padre António Vieira, tão longe e tão próximo do


taoismo, explica: “Quem quer quanto pode, não pode mais;
quem quer menos do que pode, sempre lhe sobeja poder.”13 É
este também o Te do Tao Te Ching. E Lao Zi esclarece o poder
da virtude, do poder no capítulo 51 do Tao Te Ching:

O Tao tudo engendra,

a Virtude nutre, faz crescer,

conserva, amadurece e protege.

Produz sem se apropriar,

age sem nada pedir,

orienta sem dominar.

Eis a Virtude original.

Se o Tao é a transcendência que tudo cria, o Te é a imanência


que tudo alimenta.

115
Do Taoísmo Filosófico, do Taoísmo Religioso

Só a partir da dinastia Han, o taoísmo, Dao Jia 道家, como


escola de pensamento e filosofia de vida, ganha
verdadeiramente força e difusão pelo império. Os imperadores
da dinastia Tang (618-907) consideravam Lao Zi ou Li Er um
dos seus antepassados, seriam da mesma família Li. No ano de
731, o imperador Xuan Zong ou Li Longji decretou que todos
os mandarins deviam possuir uma cópia do Tao Te Ching e que
a obra passaria a fazer parte dos textos clássicos a estudar pelos
candidatos a letrados nos exames imperiais.

No entanto, o taoismo filosófico, um permanente manancial de


desentendimentos entendidos, de brilhante sabedoria, de genial
compreensão das sinuosidades da vida e da natureza, foi
gradualmente, a partir do século II desvirtuado e adoptado
como religião ao assumir novos contornos, associado à busca
da imortalidade, incorporando um sem número de tradições
populares, crenças ancestrais, a adoração do céu e dos
antepassados, a prática da alquimia, à mistura com alguma
ética confucionista e budista, e incontáveis superstições. Temos
um vastíssimo corpo de ideias que se reivindicam do Tao mas
que passam a incluir temas e matérias alheias ao pensamento
de Lao Zi. Falamos do Dao Jiao 道教, ou taoísmo religioso.14

Consideremos, por exemplo, a compreensão da imortalidade


para o taoismo mágico-religioso. A imortalidade será o
resultado de práticas ascéticas combinadas com a frugalidade e
o tomar de certos pós e ervas que contribuirão para o
desenvolvimento e fortalecimento do气 qi, a energia ou força

116
vital, o que faz com que a pessoa se torne independente do
corpo material. Assim a morte é uma espécie de metamorfose,
o mortal torna-se imortal. Ao morrer abandona o seu corpo mas
agora viaja pelo mundo a seu bel-prazer, goza de uma saúde
perfeita e nada lhe falta para ser feliz. Onde é que Lao Zi nos
fala de tamanhos sortilégios e assombros?

Os templos taoistas que encontramos hoje um pouco por toda a


China estão cheios de pequenos e grandes deuses, o Supremo
Imperador Celestial, a Rainha Mãe do Ocidente, etc., a
reverenciar conforme as circunstâncias,15 capazes de, por
acaso, pré destinação ou sorte, trazer mais felicidade e benesses
aos homens. É o taoismo mágico-religioso também com deuses
menores e espíritos da mais variegada espécie que engloba o
fengshui 風水, a geomância tão importante no dia a dia dos
chineses e, com avanços inquestionáveis, alguma medicina
tradicional chinesa.

Não seria esse o desígnio dos primeiros taoistas, mais abertos à


doutrina filosófica, às complexidades do mundo, à estranheza
dos dias, ao retorcido inefável da espécie humana, ao caminhar
sereno ou sobressaltado por planícies ou montanhas, ao fluir da
existência de todos nós num mundo onde a revelação divina
estará no coração de cada um, onde tudo é natural, límpido e
escuro como a sucessão dos dias e das noites.

Muito próximo do taoismo filosófico, o grande poeta Li Bai ou


Li Po (701-762), amigo do vinho e dos sublimes prazeres da
vida, completamente genial, escreveu por volta do ano 750 um
curioso poema sobre o conhecido calígrafo Wang Yuchun

117
(321-379) e o seu modo original de, depois de caligrafar os
cinco mil caracteres do Tao Te Ching, não se ocupar mais das
míseras formalidades do relacionamento entre os homens. Diz
Li Bai:

Wang Yuchun não se importava com as coisas do mundo,

mas gostava de patos.

Um dia encontrou um velho taoista

que o convidou para sua casa.

Entregou-lhe um rolo de papel branco

e pediu-lhe que caligrafasse o Tao Te Ching.

O mestre utilizou o pincel com o talento dos imortais,

acabou, recebeu uns patos como recompensa,

meteu-os no seu cesto e foi-se embora.

Esqueceu-se de dizer adeus.16

O taoismo filosófico é sempre motivo de inspiração para


calígrafos, pintores, músicos e poetas. Na grande arte chinesa,
a imanência e permanência do Tao irradia montanhas de luz e
lagos de sabedoria. E estende-se ao budismo chan 禅 ou zen,
em japonês, (do sânscrito dhyâna, que significa “meditação) a

118
entender como um penetrante diluir dos ensinamentos de Buda
no pensamento taoista. O chan ou zen só chegará ao Japão no
século XII mas começou a ter mestres e vida própria na China
a partir do sec. VI.17

Do Nome

Tao Te Ching, Dao De Jing ou ainda Tao Te King? Qual o


nome correcto da obra de Lao Zi? Em que ficamos quanto à
transliteração para alfabeto romanizado dos três caracteres
道德 经 ?

Em 1979, uma decisão do Burô Político do Comité Central do


Partido Comunista da China institucionalizou em definitivo a
adopção do sistema de transliteração dos caracteres conhecido
por hanyu pinyin 汉语拼音. Eu vivia na altura em Pequim,
trabalhava nas Edições de Pequim em Línguas Estrangeiras e o
pinyin levantou sérios problemas de utilização nas publicações
que ajudávamos a traduzir e a editar. O sistema pinyin, criado
em meados de anos cinquenta do século passado por linguistas
chineses e soviéticos, evidencia inquestionavelmente algumas
virtudes e tem, desde então, sido empregue na maioria dos
estudos de Sinologia, um pouco por todo o mundo. Enferma
porém de uns tantos defeitos, sobretudo no que diz respeito à
leitura das consoantes. É o caso do título da obra, o Dao De
Jing na grafia do pinyin. Segundo o sistema mais antigo de
transliteração em língua inglesa Wade-Giles vamos encontrar a
leitura Tao Te Ching. É frequente também surgir o título da

119
obra como Tao Te King. Ora este jing 经ou ching ou king que
significa “livro canónico” ou “obra clássica”, pronuncia-se
king nos dialectos das vastas regiões a sul do rio Yangtsé, que
englobam, por exemplo, Xangai e keng na zona de Cantão. Daí
o Tao Te King muito usado em traduções francesas que
seguem o sistema de transliteração dos caracteres segundo a
denominada “Escola Francesa do Extremo Oriente”.

Regressemos ao Dao De Jing oficial na transliteração pinyin.


Em chinês mandarim, a língua uniformizada, ensinada e falada
em todas as escolas da China não existe o som d, não se
encontram os fonemas de dedo ou dado, como em português,
mas apenas o de t de tacto ou tecto. Na pronúncia, em chinês
mandarim usam-se dois tês. Um igual ao nosso t, o outro é o
som aspirado de t. Nenhum cidadão chinês ao falar mandarim
lê 道德 como dao de, mas sim tao te, com os dois tês não
aspirados. Também 经 jing, na transliteração pinyin se lê como
ching. No caso do livro de Laozi, é o sistema de transliteração
Wade-Giles que nos dá a leitura mais aproximada dos três
caracteres, de acordo com o mandarim, a língua padrão da
grande China e de Taiwan.

Na minha humilde opinião, Tao Te Ching - e não Dao De Jing


-, será a romanização dos três caracteres mais equivalente aos
fonemas utilizados em chinês e na nossa língua. Não induzirá o
leitor em erros de leitura e pronúncia, falaremos do Tao e não
do Dao, do Te e não do De, de taoismo e não de daoismo.

Os fundamentalistas do uso pinyin não concordarão. Mas


sinólogos de todo o mundo e mesmo muitos letrados chineses

120
em obras recentes editadas na China, (ver bibliografia) já usam
Tao Te Ching e taoism, abandonando Dao De Jing e daoism.
Limito-me a expor o entendimento que tenho sobre esta
questão e a tentar ser coorente e consequente com o que acabo
de enunciar. Por isso, escrevo Tao Te Ching e taoismo.

Lao Zi e Confúcio

Lao Zi seria uns bons anos mais velho que Confúcio que
nasceu em 551 AEC Ter-se-ão encontrado uma ou duas vezes,
como de resto narra o historiador Sima Qian no texto traduzido
no início deste prefácio.

Confúcio estabeleceu um excelente sistema de valores, uma


moral, regras e ética que constituiram um molde e orientação
aceite e assumida mas raramente cumprida pela sociedade
chinesa nestes últimos dois milénios. O confucionismo
pretende, pela educação, pelos bons princípios, aperfeiçoar o
homem, melhorar a natureza humana. Todos nascemos bons e
pela formação moral, pela correcção dos erros, pelo respeito
pelos valores e pelas hierarquias, tenderemos para o bem, para
o Da Tong大同 e o Da He大 和, as utópicas “grande unidade”
e “grande harmonia” entre todos os homens.

A filosofia Taoista e os taoistas nunca aceitaram tão boas


intenções, nunca acreditaram nos homens naturalmente bons,
na benevolência, na justiça, na confiança, no respeito pleno
pelos ritos e pelas hierarquias. Consideravam a moral
confuciana como uma espécie de purga que servia para aliviar

121
os sintomas da doença, era um paliativo para enganar os
homens bem intencionados, mas não combatia a origem, a raiz
da doença.

De resto Lao Zi, tal como Confúcio, viveu numa China ainda
não unificada, dividida em feudos, em reinos governados por
príncipes e senhores de guerra que combatiam entre si, e onde
imperava o despotismo. O próprio Confúcio lamentava o facto
de os homens amarem mais a beleza feminina do que a virtude
e reconhecia que os príncipes não o ouviam.

Para os taoistas tudo é relativo, tudo assume um duplo aspecto,


o bom e o mau interpenetram-se, o yin e o yang são duas partes
de um mesmo todo. Daí a solidez, agilidade e inovação
permanente do pensamento taoista comparado com o
conservadorismo e os impraticáveis – por causa dos defeitos
inerentes a toda a espécie humana -, princípios da moral
confuciana.18

No capítulo 13 do seu Livro, Zhuang Zi, o brilhante filósofo do


taoismo, fala de uma conversa entre os mestres Lao Zi e
Confúcio. Deste modo:

Lao Zi perguntou a Confúcio:

-Diz-me, em que consiste a benevolência e o dever


moral para com o nosso semelhante?

Confúcio respondeu:

122
-Consiste na capacidade de se encontrar a alegria em
todas as coisas, no amor universal, sem egoísmos. São
estas as características da benevolência e do dever
moral para com o nosso semelhante.

Lao Zi exclamou:

-Que disparate!... Será que o amor universal não está


em contradição consigo próprio? Não será a vossa
eliminação do egoísmo uma manifestação desse
mesmo egoísmo? Temos de considerar que o império
não pode perder a sua fonte de alimento. Existe o
universo regular e contínuo, existem o sol e a lua que
seguem o seu curso e as estrelas que têm posição fixa
nos céu, existem os animais, as aves vivendo
invariavelmente em conjunto, existem os arbustos e as
árvores sempre a crescer. Deves ser como eles e seguir
o Tao. Esse é o caminho da perfeição.

No capítulo 14, Zhuang Zi descreve outro hipotético


encontro entre o velho Lao Zi e o jovem Confúcio.
Nos seguintes termos:

“Confúcio foi ver Lao Zi e falou-lhe em benevolência


e rectidão: Lao Zi disse-lhe:

Se te entrar um grão de mostarda num olho ao debulhar


o trigo, nesse momento o lugar do Céu e da Terra e as

123
quatro direcções tudo se alterará no teu espírito. Se um
mosquito ou uma vespa te picar, podes passar toda a
noite acordado. Quando forçadas, a benevolência e a
rectidão perturbam o coração e provocam a maior
confusão. Tu, senhor, se queres que os homens não
percam a sua simplicidade natural, se queres imitar o
movimento do vento, se queres permanecer com os
atributos naturais que são teus para quê usar tanta
energia? É como rufar num grande tambor quando se
busca uma criança perdida. O ganso da neve não
necessita de tomar banho todos os dias para permanecer
branco, nem o corvo precisa de se pintar para ficar
preto. O branco e o preto vêm com a simplicidade
natural, não se questionam. A fama e os louvores
procurados por muitos homens não os fazem maiores do
que eles realmente são. Quando secam as águas dos
charcos, os peixes procuram ainda uma poça para salvar
a vida, salpicando-se, humedecendo-se com lama. Não
teria sido muito melhor se, na altura própria, se
tivessem dispersado por lagos e rios ?

Depois de ver Lao Zi, Confúcio regressou a casa e


durante três dias não pronunciou uma palavra. Um dos
seus discípulos perguntou-lhe:

-Mestre, conheceste agora Lao Zi. Como é que


argumentaste, como é que o corrigiste ?

Confúcio respondeu:

124
-Acabei de ver um dragão. Um dragão enrosca-se e
mostra a sua forma, distende-se e evidencia o seu
poder, voa para as nuvens e respira, alimenta-se do yin
e do yang. Eu mantive-me de boca aberta, não fui
capaz de a fechar. Como podia argumentar, como
podia corrigir Lao Zi?19

No Livro V, capítulo VIII do Lie Zi, outra obra taoista que


terá sido escrita no sec. III AEC, talvez também da autoria de
Zhuang Zi, encontramos uma interessantíssima crítica a
Confúcio feita por dois meninos. Assim:

Confúcio viajava um dia pelo leste do Império quando


encontrou duas crianças que discutiam uma com a
outra. Perguntou-lhes o porquê da querela. Um dos
rapazes disse:”Eu penso que quando o sol nasce está
mais perto dos homens. Ao meio dia está mais
afastado” O outro rapaz era de opinião contrária. Para
ele, o sol ao nascer estava mais longe e ao meio dia,
mais perto.

Disse o primeiro: “Quando o sol se levanta é grande


como a roda de um carro, ao meio dia não é maior do
que um prato. O que está mais longe, parece mais
pequeno, o que está perto parece maior. Não será
assim?”

125
O outro rapaz argumentou: “Quando o sol se levanta é
pálido e frio, mas ao meio dia é quente como água a
ferver. É frio o que está mais longe, é quente o que está
mais perto. Não será assim?”

Confúcio foi incapaz de dar uma resposta à questão.


Então as duas crianças desataram a rir e exclamaram:
“Quem é que disse que vós sois um homem sábio?”20

Ora se até as crianças não confiavam na sabedoria de Confúcio,


como é que os mais crescidos e experimentados no caminhar
pelos múltiplos atalhos, estradas, alamedas e avenidas da vida
iam, nos séculos vindouros, acreditar nas “verdades” do
Mestre?

Conclusão

Os oitenta e um capítulos do Tao Te Ching de Lao Zi são um


extenso poema, prodigioso, fascinante de relevância,
modernidade e sabedoria fluindo ao encontro do tudo e do
nada, a precisão sem contornos, os conceitos poderosos e
frágeis, obscuros como a noite e límpidos como a claridade do
dia. Uma obra aberta a diferentes interpretações. A magia da
simplicidade e da transcendente profundidade do texto.

O Tao é o caminho para a meta mesmo quando não há meta,


nem caminho. Caminante, no hay camino,/se hace el camino al

126
andar, escreveu o grande poeta sevilhano António Machado
(1875-1939).

Leão Tolstoi leu o Tao Te Ching numa das primeiras traduções


franceses, experimentou traduzi-lo do francês para russo e,
influenciado pelo pensamento do mestre chinês, escreveu no
seu Diário a 10 de Março de 1884: “As pessoas deviam-se
conduzir como a água de que fala Lao Zi. A água corre quando
não encontra obstáculos. Quando encontra um dique pára.
Quando aparece uma fenda no dique, a água continua o seu
caminho. Fechada num quadrado, assume-se como um
quadrado. Se o espaço é arredondado, a água é redonda. Por
isso, a água é a mais importante e a mais forte de todas as
coisas.”21

Tao Qian ou Tao Yuanming (375-427) um dos grandes poetas


da China Clássica escreveu um poema sobre arte de viver
segundo a “verdade essencial”, ou seja, o Tao. Assim:

A minha cabana junto ao caminho dos homens,

mas não oiço o chiar de carroças e cavalos.

Como é possível?

Um coração liberto faz o silêncio à sua volta.

A leste, entre a folhagem, vou colher crisântemos,

na distância, meus olhos deslizam pelas colinas do sul.

127
Ao entardecer, o ar fresco da montanha,

o regresso das aves voando aos pares.

Em tudo isto existe a verdade essencial,

sim, mas onde as palavras para explicar e definir?

Como explicar o Tao?

E como entender a China sem conhecer o taoísmo, um dos


pilares do pensamento chinês?

Em frases sibilinas, o livro de Lao Zi diz e desdiz, afirma e


nega, constrói e destrói, faz e desfaz. Para desentendendo
entender o impossível possível, a ambiguidade das coisas do
mundo, a energia e a ausência de força, o positivo e o negativo,
o calor e o frio, a seca e a inundação, o alto e o baixo, a vida e
a morte, o amor e o ódio, o céu e a terra, o belo e o feio, a
esquerda e a direita, o anterior e o posterior, o duro e o mole, o
húmido e o seco, o leve e o pesado, o interior e o exterior, a
virtude e o vício, a ordem e a desordem, o prémio e o castigo,
a alegria e a tristeza, a riqueza e a pobreza, o crescimento e a
decadência, a paz e a guerra, o amor e o ódio, o masculino e
tudo o que se refere ao homem e o feminino e tudo o que tem a
ver com a mulher.

Ainda a força em movimento ou em repouso, o ar exalado e o


ar inspirado, o que emite, semeia e fecunda e o que recebe,
engendra e transforma. Simplesmente o yin e o yang que

128
regem a nossa vida natural, opostos mas não contraditórios,
entrando um por dentro do outro, as duas partes de um mesmo
todo.

O homem do Tao passa ao lado da guerra, da opressão, da


inveja, das pequenas e grandes misérias do mundo. Assume-se
como uma pessoa tolerante, humilde, em paz consigo próprio e
com tudo o que o rodeia. Reconcilia-se com a vida e com o
mundo.

Embora num contexto diferente, recordo mais palavras do


nosso padre António Vieira:

“Oh, se nós homens entendêssemos esta política natural


e doméstica, e nos persuadíssemos a ela, quão
descansada seria esta vida que nós, pelo desgoverno da
nossa vontade, e pelos excessos da nossa vontade,
fazemos tão cansada e trabalhosa!”22

Notas

1.Wang Keping, The Classic of Dao, Pequim, Foreign


Languages Press, 1998, introdução, pag. i.

2.Entre outros, por exemplo, Patrick Carré, Lao Zi, em


Dictionaire de la Literatture Chinoise, Paris, PUF, 2000,
pag.157. Também Fung Yu-lan, A History of Chinese
Philosophy, Peiping, Henri Vetch, 1937, pag. 170 e sgs. E

129
Anne Cheng, Histoire de la Pensée Chinoise, Paris, Ed. du
Seuil, 1997, pag. 176 e segs.

3.As “Memórias Históricas” englobam cento e trinta capítulos


com biografias de personalidades famosas e incursões no modo
de governar, nas realidades quotidianas, desde a alta
antiguidade chinesa até ao reinado do imperador Han Wudi
(140 AEC – 87 AEC). A obra foi começada por Sima Tan (? –
110 AEC) e concluída pelo seu filho Sima Qian.

4.No actual distrito de Luyi, na província de Henan.

5.A actual cidade de Luoyang, na província de Henan.

6.Citado por Jean Grenier, em L’esprit du Tao, Paris,


Falmmarion, 1973, pgs. 29 e 30, que segue a velha tradução
das “Memórias Históricas” de Sima Qian, que data de 1842
feita por Stanislau Julien (1797-1873), um dos primeiros
grandes sinólogos franceses. Ver também a tradução de Luís
Gonzaga Gomes em O Livro da Via e da Virtude de Láucio,
Macau, Separata da Revista Mosaico, 1952, pag. 7 e 8.

7.Não por acaso, o chinês Gao Xingjian高行健, prémio Nobel


da Literatura 2000, também divide 靈山 Lingshan靈山, “A
Montanha da Alma”, o seu mais famoso romance, por oitenta e
um capítulos. O poeta Casimiro de Brito no seu Na Via do
Mestre, Guimarães, Ed. Pedra Formosa, 2000, escreve também
oitenta e um poemas que confessa terem nascido quase de um
diálogo continuado com Lao Zi.

130
Apenas uma curiosidade: o número 81 é tão importante para o
taoismo mágico-religioso que vários textos posteriores ao Tao
Te Ching consideram que uma boa relação sexual deve ter em
conta, o vai-e-vem do falo do homem no sexo da mulher
repetido oitenta e uma vezes. Assim se alcançará o êxtase, um
bem sucedido orgasmo.

8.Os deuses da Rota da Seda concederam ao autor deste estudo


e texto, o privilégio de entrar e de conhecer a maravilha, por
duas vezes, do espaço mágico da cave 17 de Dunhuang, nos
anos 2004 e 2010.

9.Ver uma tradução francesa deste texto Lao Tseu, Le


Véritable Tao Te King, (trad. Eulalie Steens), Monaco, Ed. du
Rocher, 2002.

10.Ver a minha introdução e a tradução completa deste texto


Jiaoyao Xulun 教要序論 Princípios da Doutrina Cristã,
xilografado em caracteres chineses que se encontra na
Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa, manuscritos,
série vermelha, nº 950 A, em Sinica Lusitana, (trad. Roderich
Ptak, António Graça de Abreu e Zhang Weimin), Lisboa,
Fundação Oriente, 2000, pags. 56 a 61.

11.Pode-se encontrar na tradução inglesa em The Book of


Chuang Tzu, (trad. Martin Palmer), Londres, Penguin Arkana,
1996, pag. 97. Em francês, o mesmo texto em L’oeuvre
complète de Tchouang-tseu (trad. Liou Kia-hway), Paris,
Gallimard, 1969, pag. 104.

131
12. Prática da Perfeição/Daow-tq Keq, Macau, Jesuítas
Portugueses, 1987, pags. 50 e 60.

13.Padre António Vieira, Sermão do Terceiro Domingo depois


da Epifania, 1641.

14.Para uma análise de conjunto das práticas e rituais do


taoísmo religioso na China, ver Taoism, (vários autores)
Pequim, Foreign Languages Press, 2002.

15.São os templos dedicados aos Deuses da Cidade, da


Riqueza, da Cozinha, da Terra, dos Infernos, etc.

16.Poemas de Li Bai, trad. António Graça de Abreu, Macau,


ICMacau, 1991, pag. 86.

17.Para uma síntese breve, mas conhecedora e bem elaborada


de Lao Zi e do Taoismo, ver Ana Cristina Alves, A Sabedoria
Chinesa, Cruz Quebrada, Casa das Letras, 2005, pags. 25 a 33.

18.“Compared with Confucianism preached by Confucius and


Mencius, Lao Zi’s Taoism is more systematic, more prudent
and more coherent.” Gu Zhengkun, Lao Zi: The book of Tao
and Teh, Pequim, Peking University Press, 1995, pag. 25.

O grande Lu Xun (1881-1936), talvez o maior escritor do


século XX chinês, vai mais longe e num ensaio de 1925
intitulado Apontamentos à Luz da Lâmpada, diz: “O
confucionismo come pessoas, para além disso este banquete de
carne humana persiste ainda hoje, e há muita gente que deseja
que ele prossiga.”, citado por Liu Xiaobo, Prémio Nobel da Paz

132
2010, em Não tenho Inimigos, não conheço o Ódio, Alfragide,
Casa das Letras, 2011, pag. 371.

19.A partir da tradução inglesa de A. C. Graham, Chuang-tzu,


The Inner Chapters, a Classic of Tao, Londres, Mandala, 1986,
pgs. 128 e 129.

20.A partir da tradução francesa de Benedykt Grynpas, Lie


Tseu, Le vrai classique du vide parfait, Paris, Gallimard, 1961,
pag. 161.

21.Citado por Xu Yuanxiang e Yin Yongjian, Lao Tzu, The


Eternal Tao Te Ching, Pequim, China Intercontinental Press,
2007, pag. 72.

22.Padre António Vieira, Sermão dos Bons Anos, 1641. Todas


as citações do nosso grande jesuíta provêm de António Vieira,
Sermões, Porto, Lello & Irmãos, 1959.

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140
Yin Zhihua, Taoism, Pequim, Foreign Languages Press, 2002.

Netografia

São tantas e tão diversas as referências ao Tao Te Ching no


mundo da net, quase sempre de desiquilibrado estudo e nada
confiável rigor, que cito aqui apenas algumas hipóteses sérias
de busca e trabalho. Consultar:

*Departement of Religion, University of Florida, com “useful


links to Internet resources on Daiosm and Chineses
Philosophy”.

*Taoist Culture and Information Center, Hong Kong.

*Taoist Studies in the World Wide Web, maintained by


Fabrizio Pregadio.

*The China WWW Virtual Library, Internet Guide for Chinese


Studies, Heidelberg University.

141
O ‘RITO DE PASSAGEM DO
ESCRITO AMARELO DA
CLARIDADE SUPERIOR’:
RELIGIÃO E SEXUALIDADE NA
CHINA ANTIGA por Bony Schachter

Introdução

O rito sexual daoísta – do qual nos chegaram poucos, porém,


importantes documentos – é o último expoente de uma forma
cultural da alta antiguidade já não mais aceita pelo mores
chinês no período entre a dissolução da dinastia Han e a
fundação da dinastia Sui, isto é, os anos 220-589. A não
aceitação dos ritos daoístas que envolviam o ato sexual terá seu
auge com as críticas budistas e as reformas litúrgicas
promovidas tanto pela linhagem da Claridade Superior quanto
por Kou Qianzhi, no século V. Este processo culminará com a
proibição do ritos daoístas de natureza sexual e a sua completa
extinção durante o século X. O ritos eram praticados pelos
daoístas no contexto de sua vida comunal e com fins
preponderantemente religiosos. Por este motivo, o rito sexual
era uma expressão da religiosidade chinesa antiga e não pode
ser confundido com outras abordagens do sexo no contexto
daquela cultura, tal como a perspectiva médica, a terapêutica, a
voltada para a procriação e, ainda, aquela relativa ao amor
“livre” e ao entretenimento. As abordagens médica e

142
terapêutica são bem documentadas. Se alinham a esta categoria
as fontes primárias que discutem ou mencionam a medicina
chinesa em sua relação com as artes do quarto房中術, isto é, as
práticas de higiene sexual voltadas para o prolongamento da
vida.

A ideologia apresentada em textos como o Clássico das


Mutações poderia explicar a suposta “naturalidade” do
matrimônio e a função do ato sexual por meio das noções
básica de Yin 陰e Yang 陽, os princípios sexuais masculino e
feminino determinantes das noções de “homem” e “mulher”. O
par Yin-Yang, isto é, os opostos que descrevem as alternâncias
do mundo natural, tais como o dia, a noite, o calor, o frio etc,
quando aplicadas ao plano social e político, geram a ideia de
que há algo como “o homem”, e algo como “a mulher”. Assim,
Yin e Yang deixam de ser apenas descrições dos padrões de
comportamento do mundo natural e passam a ser princípios
normativos e definidores dos gêneros masculino e feminino.
Mais importante ainda, pela associação das noções de Yin e
Yang enquanto princípios do funcionamento da natureza com a
sua dimensão definidora de gênero tem-se como resultado um
sistema capaz de definir não apenas quem é o “homem” e
quem é a “mulher” como, também, os papéis a serem
executados pelos mesmos no contexto da vida social. Assim
também ocorre no rito de passagem, onde os participantes do
rito são definidos não apenas pela sua relação com o Dao como
também pela sua situação enquanto membros de uma
comunidade onde são vistos em termos de “homem” e
“mulher”. Em outras instâncias da cultura antiga chinesa, a

143
questão do gênero não é tão bem delimitada. Estas duas noções
assumem contornos nítidos quando se referem ao matrimônio e
ao papel de subordinação da mulher em relação ao homem.

O matrimônio previa a formação da unidade básica da vida


política e social chinesa, isto é, a família (jia). De acordo com
textos como o Grande Ensinamento 大學, a família 家 é o
cerne da vida pública e privada: o soberano ideal é aquele que
regula o reino como faria com a sua própria vida doméstica.De
qualquer modo, durante a antiguidade chinesa, a existência do
matrimônio enquanto instituição não tornava o indivíduo do
gênero masculino automaticamente subordinado a práticas
estritamente heterossexuais, posto que há registros históricos
de práticas homossexuais realizadas antes com o fim do amor,
do entretenimento e da admiração mútua entre homens do que
por qualquer outro vínculo legitimador. Em outras
circunstâncias, pode ocorrer de o “homem” definir a si mesmo
como a “mulher”, ou vice-versa. Este é o caso do poeta
Quyuan, que ao discursar sobre o seu rei fala acerca de si
mesmo como sendo a sua “beldade”美人, numa alusão às
relações de amor entre ambos, onde ele assumia um papel que
não lhe estava necessariamente nem reservado nem negado
pela cultura antiga. Neste sentido, o rito de passagem sexual é
uma manifestação do que há de mais convencional no mores
chinês, pois os participantes do mesmo tem a sua relação de
gênero definida, ao fim e ao cabo, pela mesma lógica do
matrimônio, segundo a qual o coito legítimo é aquele
executado entre o macho e a fêmea. Nem o sexo oral, nem o
coito anal ou relações entre indivíduos do mesmo gênero ou a

144
livre iniciativa são pressupostos pelo rito sexual daoísta. Do
mesmo modo, nem a modalidade médica, nem a terapêutica, a
relativa ao amor livre e ao entretenimento poderiam explicar o
fenômeno da prática sexual no contexto do rito daoísta. Este
estava imbuído de noções de natureza abstrata que precisam ser
exploradas de modo a que se possa entender as finalidades do
coito no âmbito de tal religião. Assim sendo, deve-se
considerar tal atividade pensando-se o espaço em que era
executada. O problema do espaço nos leva à questão do
estabelecimento da primeira instituição religiosa daoísta, em
fins da dinastia Han (202 a.E.C. a 220).

O Caminho do Mestre Celestial

Em fins do século II, o império chinês já não era mais capaz de


exercer a sua autoridade por todo o seu extenso território.
Rebeliões populares começaram a eclodir, muitas vezes tendo
como fundo temas religiosos. Este é o caso da Rebelião dos
Turbantes Amarelos 黃巾起義, liderada por Zhang Jue
張角.Não se sabe quando o líder dos Turbantes Amarelos
nasceu, mas a data da sua morte, o ano de 184, é certa, e foi
neste ano que a sua impressionante rebelião foi reprimida com
sucesso. O pano ideológico da revolução liderada por Zhang
Jue era, provavelmente, o Tratado da Suprema Paz太平經. Por
este motivo, a Rebelião dos Turbantes Amarelos também ficou
conhecida como Caminho da Suprema Paz太平道. Tal livro
propunha a visão de uma sociedade ideal onde os princípios
confucionistas aliados a uma leitura esotérica da história

145
chinesa substituiriam os sofrimentos enfrentados pelo povo
chinês durante a dinastia Han.

A luta contra as forças mobilizadas por Zhang Jue exauriram


mais ainda o poder imperial, já abalado por disputas políticas
internas. O enfraquecimento do poder central foi um dos
eventos que tornaram possível a fundação do daoismo como
uma teocracia. É no contexto de rebeliões que varriam a China
no final da dinastia Han que surgiu o assim chamado Caminho
do Mestre Celestial 天師道, movimento que guarda
semelhança com a Revolução dos Turbantes Amarelos.
Segundo relatos tradicionais, no ano de 142, Taishang Laojun
太上老君 apareceu numa revelação feita a Zhang Daoling
張道陵 no monte Heming 鶴鳴, em Sichuan. O objetivo de tal
aparição seria o estabelecimento de uma nova aliança entre os
deuses do daoismo e o povo. O Caminho da Grande Paz e o
Caminho do Mestre Celestial compartilhavam certas práticas
religiosas e uma motivação política comum, qual seja, o fim da
dinastia Han e o estabelecimento de uma teocracia daoísta. Um
elemento fundamental desta nova religião de feições
teocráticas seria a abolição dos sacrifícios animais realizados
no âmbito do culto estatal. O estado daoísta deveria substituir o
governo decadente do império Han, realizando o ideal da
Grande Paz que era justamente o tema principal da rebelião
liderada por Zhang Jue. Um elemento interessante é que a era
de Grande Paz seria precedida por eventos apocalípticos, dos
quais apenas aqueles que seguissem o Mestre Celestial
poderiam se salvar. Este conjunto de pessoas salvo pelos
ensinamentos de Laojun e destinado a viver a era da Grande

146
Paz era chamado, nos documentos da religião, por Povo-
Semente 種民. Assim sendo, o Caminho do Mestre Celestial e
a Revolução dos Turbantes Amarelos se configuram como dois
importantes movimentos político-religiosos do fim da dinastia
Han. O primeiro, se afirmará como o início do daoismo
histórico, enquanto o segundo será suprimido pelas forças
imperiais no curso de violentas batalhas.

Não é possível afirmar com certeza a existência de uma figura


histórica chamada Zhang Daoling. Pesquisadores
contemporâneos acreditam que Zhang Daoling não foi mais do
que uma lenda inventada por Zhang Lu 張魯, o seu suposto
neto e, provavelmente, o verdadeiro fundador do Caminho do
Mestre Celestial. Zhang Lu, mesmo sem jamais ter declarado
independência formalmente, governou seu estado teocrático de
modo independente durante os anos 180. No entanto, esta
situação chegará ao fim quando Cao Cao 曹操 afirmar sua
hegemonia no norte da China. Sem um exército capaz de lutar
com as forças de Cao Cao de maneira equilibrada, e sem o
talento militar do mesmo, Zhang Lu se renderá no ano de 215,
de maneira pacífica. Tão pacífica que ele receberá títulos de
nobreza e verá membros de sua família casando com o
poderoso clã de Cao Cao.

Historiadores contemporâneos veem em Zhang Lu o principal


organizador do movimento em comunidades divididas pela
China em vinte e quatro paróquias. Cada paróquia治 possuía
líderes comunitários conhecidos por Libadores 祭酒, e o mais
importantes dentre os libadores era chamado por Grande

147
Libador 大祭酒. O termo libador indica a própria função de
tais membros durante os rituais, quando eram empregadas
quantidades moderadas de bebidas alcoólicas nos serviços
sagrados. A classe dos libadores irá evoluir para uma linhagem
de sacordotes cujo ofício é passado de pai para filho. Não
apenas chineses Han como, também, outras etnias vivendo na
China, estrangeiros e mulheres eram aceitos como membros da
nova religião, dotada de propósitos universalizantes. As
comunidades contavam, também, com Casas de Caridade 義舍,
onde os passantes e os indigentes poderiam se alimentar e se
hospedar de graça, constituindo um excelente atrativo para o
aumento de seguidores em tempos de instabilidade econômica
e política. Parte das provisões era mantida com a contribuição
anual de cinco sacas (斗, aproximadamente nove litros) de
arroz por ano para a instituição por parte dos seus membros. A
Ordem Ortodoxa Unitária 正一派 contemporânea clama uma
ligação direta com o movimento religioso do Mestre Celestial
Zhang Daoling, embora a legitimidade e a validade histórica de
tal ancestralidade seja questionada por historiadores da
religião, que muitas vezes, e felizmente, não possuem
compromisso com qualquer programa de ordem religiosa.

Em termos doutrinários, além da proibição de sacrifícios


animais mencionada anteriormente, é importante destacar,
ainda, alguns outros aspectos. Segundo a Aliança da Pureza
清約: “Os deuses não comem nem bebem. O mestre não recebe
dinheiro. 鬼神不食師不收錢” A aliança entre seres humanos e
deuses deveria se dar fora das trocas pressupostas pelos
alimentos e pelo dinheiro. Os documentos remanescentes

148
mostram que para os membros das comunidades do Caminho
do Mestre Celestial, cada atividade cotidiana e não apenas a
execução dos ritos, tinha conotação religiosa. Este fervor
religioso, no entanto, não pode ser considerado um elemento
normativo da sociedade chinesa antiga. Nem todos os chineses
do período Han viam o mundo como um lugar habitado por
deuses e demônios. Na verdade, certos eruditos confucionistas
consideravam as práticas daoístas e dos fangshi como
devaneios, quimeras. Confucionistas não necessariamente
negavam a existência dos deuses e espíritos cultuados pelas
massas. Mas eles mesmos possuíam o seu próprio programa de
ritos, cujo objeto de culto não envolvia os mesmos deuses.

Ao mesmo tempo, ao contrário do que pensa o senso-comum,


na China antiga havia a noção de pecado (em chinês: 罪 ou
過). Nas comunidades daoístas, a doença e a morte eram
explicadas como sendo causadas pelos pecados e pelas ações
demoníacas engendradas pelos mesmos. Obviamente, o
referencial para o pecado conforme descrito nos documentos
daoístas não possui relação com o Deus judaico-cristão,
representando antes uma combinação do mores chinês com os
códigos religiosos do Mestre Celestial. O pecado, contudo,
poderia ser expiado por meio da entoação ritual do Tratado do
Caminho e da Virtude e por meio de rituais dirigidos aos Três
Oficiais 三官, isto é, o Oficial do Céu 天官, o Oficial da Terra
地官 e o Oficial da Água 水官. Estas três divindades seriam
também responsáveis pelo estado de saúde das partes superior,
média e inferior do corpo, respectivamente. Enfatize-se
também que os primeiros usos do Tratado do Caminho e da

149
Virtude parecem ter sido destinados à recitação ritual, e não à
leitura.

Taishang Laojun e os Três Oficiais não eram os únicos deuses


dos daoístas antigos. Todo homem e toda mulher recebiam, a
cada iniciação, um documento chamado registro 箓. A cada
registro correspondiam determinados talismãs 符 e divindades
神, cujos nomes por si mesmos seriam capazes de evocar a sua
presença. Pronunciando o nome de um deus se poderia
expulsar a presença indesejada de um demônio ou começar um
processo de cura, pois na comunidade do Mestre Celestial a
suspeição de doença era um elemento constante pairando sobre
todos os indivíduos.

A noção de pneuma 氣, um conceito universal em todos os


âmbitos do pensamento chinês, assumirá características
peculiares em tal movimento. Aqui, pneuma indicará uma
espécie de poder que transcende todos os fenômenos ao mesmo
tempo em que os cria e neles se transforma. Os ritos imperiais
seriam representativos dos pneumas dos seis céus 六氣, que
deveriam ser combatidos para que dessem lugar aos três
pneumas 三氣 puros do Caminho, chamados por pneuma do
Início 始, do Princípio 元 e do Mistério 玄, e aos quais
corresponderiam três cores, a saber, branco, azul e amarelo,
visualizadas por ocasião dos rituais. Outro aspecto importante
da teologia do daoismo nesta fase será a personificação dos
pneumas e a sua burocratização. Os pneumas não apenas
assumem a forma de deuses nos quais os seres humanos podem
identificar a si mesmos como, também, a sua estrutura de

150
organização nos documentos daoístas irá se comportar como
uma imagem espelhada da burocracia estatal. Assim, os deuses
são representados como soberanos, generais, oficiais, soldados,
conselheiros. Registros, talismãs, espadas, selos, carimbos,
água consagrada, invocações e rituais eram as armas usadas
pelos daoístas na batalha diária contra os demônios que lhes
traziam doenças, sofrimentos e, em última instância,
sustentavam o governo Han.

Em um ambiente marcado por tão densa atmosfera religiosa, a


prática sexual certamente seria de alguma maneira
ressignificada. Os registros que nos chegaram do Caminho do
Mestre Celestial indicam que também o sexo era entendido
como um elemento da vida comunal, e não apenas do âmbito
do privado, um conceito cuja própria existência no contexto
referido nós temos razões significativas para questionar. É um
consenso entre os scholars que a prática ritual do sexo era
realizada com o objetivo de regular os ciclos de alteração
cósmica, de criar proximidade entre os membros e de promover
iniciações. O termo “ciclos de alteração cósmica” não apenas
parece místico demais para o contexto acadêmico, ele de fato
exige explicações. Determinados documentos mostram que os
daoístas do Caminho do Mestre Celestial entendiam que o sexo
ritual deveria ser praticado em determinadas datas, em dias
“auspiciosos” tais como indicados por meio de determinados
cálculos calêndricos. De qualquer modo, o ato sexual praticado
durante o rito não se resumia à penetração e não era realizado
necessariamente com o objetivo da longevidade ou da
procriação. Na verdade, a penetração era apenas uma das

151
etapas de um complexo programa que envolvia visualizações
思, estímulos sonoros, exercícios respiratórios, massagens,
toques.

O corpo, no âmbito deste ritual, não era o corpo moderno, mas


sim um corpo comunal, onde a experiência do sexo é esvaziada
de elementos recreativos para revestir-se com a importância de
um ato capaz de alterar os ciclos do tempo, as estações do ano,
sendo representado tanto como a origem de bençãos quanto de
desgraças para toda a comunidade. Não era tanto o encontro de
um corpo com o outro, mas sim a atualização dos laços de toda
a comunidade com o âmbito divino por meio de recursos
simbólicos, imaginativos e físicos. Neste sentido, não havia
espaço para a iniciativa individual. Segundo Robinet, tanto a
escolha dos parceiros quanto o próprio modo como o ato ritual
era executado eram minuciosamente coordenados pelo
sacerdote responsável, que acompanhava todo o processo. Há
razões para supor que tal rito tenha suas origens nas práticas
orgiásticas chinesas descritas por Maspero, embora não se
possa tirar conclusões precipitadas sem as provas
arqueológicas que ainda faltariam para tal. O rito sexual tal
como descrito nos documentos do Mestre Celestial não envolve
o uso da possessão. Na verdade, nos documentos que chegaram
aos dias de hoje, o rito sexual é apresentado como uma arte que
envolve paciência e atenção aos detalhes e à memorização de
várias etapas que, pode-se presumir, não poderiam ser
ignoradas ou ter sua ordem alterada. Tal rito prima pela
simetria e pela estetização do sexo praticado num ambiente
onde o uso do corpo e a mobilização de seu potencial erótico

152
não pertencem à privacidade do indivíduo, mas sim ao bem-
estar geral de toda a comunidade dos daoístas.

Etapas do rito

Não há consenso entre os pesquisadores no que se refere ao


número de etapas exato do rito. O próprio documento não é
muito claro, pois há divisões paragráficas que trazem consigo o
número ordinal logo após o título que lhes corresponde
enquanto outras passagens trazem apenas o título paragráfico,
mas não o número ordinal que corresponderia à etapa referida
pelo título. Caso se concorde com o uso do numeral ordinal tal
como apresentado no texto, o rito poderá ser dividido em vinte
etapas. Entretanto, esta divisão excluiria outras etapas
igualmente importantes. No documento em si ocorre ainda o
fenômeno de divisão de uma mesma etapa em diversas sub-
etapas. O meu objetivo não é fornecer uma leitura
extremamente detalhada do documento, mas sim uma visão
geral dos elementos que o compõem. O texto envolve a
repetição intercalada de um determinado número de recursos
litúrgicos. Deste modo, uma descrição extremamente
minuciosa tornaria a leitura enfadonha e, de certo modo,
confusa. Algumas das etapas terão o texto correspondente
traduzido, enquanto a maioria, não.

A. Entrar no oratório 入靖. Depois de entrar no oratório, o


homem e a mulher assumem as posições Yin e Shen relativa

153
aos doze ramos terrestres. Se ajoelham e recitam um texto
pedindo a participação no rito de passagem. O Mestre
concorda, afirmando que o dia é propício para a realização do
mesmo:

入靖陽立寅上陰立申上求過者長跪言某以肉人千載有幸得
染道化求法經時未蒙過度稽首歸依乞丐生活便再拜師答言
今日吉合當為橋梁求者重言願蒙成就答曰當為啟白弟子伏
惟受恩復再拜師便執手引之東向

Entrar no oratório. O homem [yang] fica de pé sobre a posição


Yin. A mulher [yin] fica de pé sobre a posição Shen. Aquele
que pede a participação no rito de passagem se ajoelha,
dizendo: “O iniciado Fulano teve a sorte que só se encontra
uma vez em mil anos de ser transformado pelo ensinamento do
Caminho. No momento de pedir a escritura ritual, não tendo
passado ainda pelo rito de passagem, inclino-me em reverência
e refúgio, implorando pela vida.”, quando então deverá
reverenciar de novo. O Mestre responde dizendo: “O dia de
hoje é auspicioso e, portanto, propício a servir para o prósito da
Ponte. As solenes palavras daquele que pede [mostram] que
deseja ir de encontro à realização.” A resposta diz: “Pelo
propósito da anunciação, o discípulo recebe a benção
humildemente.” Então, reverencia de novo, quando então se
pegará sua mão conduzindo-o para a direção leste.

B. Visualizar Oficiais e Soldados 存吏兵. Nesta etapa os


participantes visualizam os deuses presentes em seus

154
respectivos registros, isto é, o documento que comprova sua
iniciação e adesão à comunidade do Caminho do Mestre
Celestial. O objetivo desta etapa é convocar as deidades
marciais do daoismo para que eliminem os desastres:

[...]各嗚鼓十二通各思所佩籙上功曹使者將軍吏兵冠顯衣服
羅列行伍衛臣妾前後左右當為臣妾致四方生氣消災散禍

[...] Cada um toca o tambor doze vezes. Cada um visualiza os


Emissários do Mérito Superior, os Generais, Oficiais e
Soldados com suas coroas e vestimentas. Dispostos em
formação, eles protegem o servo e a serva à frente, atrás, à
esquerda e à direita. Eles irão expandir o pneuma das quatro
direções, eliminar desastres e dispersar calamidades pelo servo
e pela serva.

C. Visualizar o pneuma branco 思白氣. Esta etapa consiste na


visualização do pneuma branco, que deverá banhar todos os
órgãos internos, tendões e canais de circulação do pneuma:

各思丹田白氣大如六寸面鏡出在兩眉中問漸大光明照耀之
頭上下灌身雨體徹見五藏六府九宮十二室四支五體關節筋
脈孔竅營衛表裹一切莫不朗然如此一過止

155
Cada um visualiza o pneuma branco do campo do elixir do
tamanho de um espelho de seis cun saindo do espaço entre as
duas sombrancelhas, a sua luz aumenta gradualmente,
iluminando o topo da cabeça. Abaixo ela banha o corpo,
vendo-se completamente os cinco órgãos, as seis vísceras, os
nove palácios, as doze câmaras, os quatro membros, os cinco
corpos, as juntas, os tendões, os meridianos, os orifícios, as
funções dos pneumas Ying e Wei. Dentro e fora, não haverá
nada que não esteja claro e iluminado. Assim se faz uma vez.

D. Visualizar o pneuma régio 思王氣. O pneuma régio é


aquele relacionado a uma determinada estação do ano. Cada
pneuma régio possui a sua própria cor. Esta etapa demonstra
que o rito sexual exigia visualizações diferentes de acordo com
a estação do ano em que era praticado:

各思王氣春思東方青氣潤澤我身赤氣相之夏思南方赤氣黃
氣相之秋思西方白氣黑氣相之冬思北方黑氣青氣相之四季
思中央黃氣白氣相之仰頭以鼻納氣低頭咽之下至丹田中上
昇崑崙

Cada um visualiza o pneuma régio. Durante a primavera se


visualiza o pneuma verde da direção leste banhando o corpo,
sendo complementado pelo pneuma vermelho. Durante o verão
se visualiza o pneuma vermelho da direção sul, sendo
complementado pelo pneuma amarelo. Durante o outono se

156
visualiza o pneuma branco da direção oeste, sendo
complementado pelo pneuma negro. Durante o inverno se
visualiza o pneuma negro da direção norte, sendo
complementado pelo pneuma verde. Durante as quatro estações
se visualiza o pneuma amarelo do centro, sendo
complementado pelo pneuma branco. Erguendo a cabeça, o
pneuma é recebido pelo nariz. Descendo a cabeça ele é
absorvido até o campo do elixir, subindo pelo centro até o
Kunlun.

E. Absorver os Três Palácios 咽三宮. Os Três Palácios


correspondem a três tipos de pneuma, que são o pneuma do
Céu, da Terra e da Água. É possível que tais pneumas possuam
relação com o culto aos Três Oficiais, deuses que no Caminho
do Mestre Celestial estão associados a ritos de confissão e
expiação dos pecados. Esta etapa envolve a visualização dos
pneumas, sua absorção pelos canais de circulação dos mesmos
e o uso de invocações:

各思三元生氣正白來下周帀覆身因仰頭以鼻納生氣言天一
宮生氣當來生我低頭咽之令滿腹下丹田中上昇泥丸地水如
天法咒咽訖仰頭以鼻納生氣天地水三宮生氣當共來生我身
低頭咽之令滿腹下丹田中上昇泥丸三宮生氣浩然正白覆身
體貫達五藏六府十二支干間如此一過止

157
Cada um visualiza o pneuma da vida plenamente branco dos
três princípios descendo, circulando e cobrindo todo o corpo,
quando se ergue a cabeça para captar o pneuma de vida com o
nariz, dizendo: “Pneuma de vida do primeiro palácio celeste,
venha me vivificar”. Desce-se a cabeça, absorvendo-o, fazendo
com que preencha o campo do elixir abaixo e com que suba
pelo centro até a pílula de lama. As invocações da terra e da
água são tal qual o método do céu. Depois de absorver-se [tais
pneumas], levanta-se a cabeça para captar o pneuma da vida
com o nariz. O pneuma da vida dos três palácios do céu, da
terra e da água deverá vir vivificar o nosso corpo. Descendo a
cabeça, absorve-se [tais pneumas], fazendo com que
preencham o campo do elixir abaixo e com que subam pelo
centro até a pílula de lama. O pneuma da vida dos três palácios
é vasto e completamente branco. Ele cobre o corpo, alcançando
o espaço entre os cinco órgãos, as seis vísceras e os doze ramos
e troncos. Assim se faz uma vez.

F. Anunciar o serviço 啟事. O texto correspondente a esta


etapa é relativamente extenso e envolve a invocaçao de
inúmeros deuses, bem como o uso de textos no formato de
petições, que devem ser lidos pelos participantes do ritual de
modo a comunicar às deidades as suas intenções e pedidos.
Esta parte faz uma espécie de sinopse do ritual, anunciando o
seu início, as divindades a serem invocadas, os objetivos do
rito (por exemplo, curar as doenças治病e alcançar a condição
de Povo-Semente 得在種民輩中, os métodos empregados (o

158
Rito da Grande Passagem das Oito Gerações八生大度之法) e
o seu desfecho por meio do anúncio do mérito.

G. Pular a rede terrestre 越地網. Esta etapa ainda inclui a


liberação da rede celeste釋天羅. Os participantes realizam uma
invocação com o objetivo de excluir a si mesmos do livro da
morte e serem inscritos no registro da vida除我死籍上我生錄.
A referência aos livros da vida e da morte será ainda mais
acentuada nas escrituras das linhagens da Claridade Superior e
do Tesouro Numinoso, onde o fato de se ter ou não o próprio
nome inscrito nos registros divinos é determinado pela conduta
do devoto, pelo fato de ter recebido iniciação ou não e pela sua
participação nos ritos daoístas.

H. Reverenciar os Quatro Senhores 朝四尊. Como explicado


no tópico anterior, os Quatro Senhores são deuses criados a
partir da personificação do conceito de doze ramos terrestres.
Os envolvidos imploram novamente pela participação no rito
de passagem, além de pedirem pela eliminação dos desastres.

I. Visualização 存思. Os pneumas azul, amarelo e branco são


visualizados, presumivelmente são os pneumas de mesma cor
chamados por Mistério, Princípio e Início. Segundo o trecho,
estes três pneumas se unem, tendo “um aspecto túrbido,
parecido com o ovo de uma galinha”一混沌狀似鸚子. A
referência ao ovo de galinha remete a um dos mitos de criação
chineses segundo o qual no início dos tempos o universo era
um todo indiferenciado onde repousava Pangu盤古.

159
J. Dez Deuses 十神, combinar os nomes dos Vinte Veneráveis
配十二尊名, visualizar os Cinco Deuses 思五神. Esta etapa
repete procedimentos já executados em etapas anteriores
(implorar para participar do rito, pedir pela exclusão do nome
nos livros da morte, eliminação dos desastres e participação no
Povo-Semente), só que desta vez invocando a presença dos
Dez Deuses já mencionados acima.

K. Oito Gerações 八生. Nesta etapa começa o intercurso sexual


propriamente dito. Consiste em oito sub-partes. Os
participantes devem desfazer a posição de mãos dadas 解手e
executar as Oito Gerações, cujos nomes sugerem a
movimentação realizada no coito sexual sem, no entanto,
fornecer detalhes das ações executadas. A cada sub-etapa
corresponde a visualização de determinados deuses.

L. Ingerir a vida e expelir a morte 食生吐死. Nesta etapa o


Mestre ajuda os discípulos a “remover as vestes” 解衣e a
“prender os cabelos soltos” 結散髮. O homem se posiciona à
esquerda e a mulher à direita. De mãos dadas, eles “inspiram o
pneuma da vida delicadamente com o nariz” e “expiram o
pneuma da morte delicadamente com a boca”以口微微吐死氣.

M. Distribuir os Nove Palácios 布九宮. Esta etapa envolve


uma complexa coreografia que faz uso de vários gestos feitos
com as mãos de ambos os participantes, toques e invocações. O
corpo humano e as posições que o mesmo ocupa são
associados aos conceitos de troncos, ramos e oito trigramas.
Budistas criticaram duramente esta etapa do ritual, dizendo que

160
“com os quatro olhos e as duas línguas de frente um pro outro,
praticavam o Dao no campo do elixir”
四目兩舌正对行道在於丹田. Esta sentença sugere uma crítica
à proximidade física entre o homem e a mulher bem como ao
coito, uma vez que o campo do elixir se encontra no baixo-
ventre, na região próxima aos genitais. As etapas seguintes
continuam executando coreografias e técnicas correlatas
àquelas descritas até agora.

N. Retornar os deuses 還神. Nesta fase começa o desfecho do


ritual. A hoste de deuses é visualizada. Os pneumas de diversas
cores são levados de volta para os respectivos órgãos e partes
do corpo tanto do homem quanto da mulher. A esta etapa se
seguem outras fases, incluindo visualizações do assim chamado
pneuma régio, massagens, pedidos similares aos realizados nas
etapas anteriores. Nota-se, portanto, que o rito se desfecha de
modo semelhante ao processo do início, reforçando a sua
estrutura simétrica e repetitiva.

O. Anunciar o mérito 言功. Esta é a última parte do rito. Como


no princípio, os participantes se voltam para o leste, de mãos
dadas. Ajoelham-se por um longo tempo, tocando o tambor por
doze vezes. Mais uma vez reforçam seu compromisso com a
comunidade, fazendo pedidos na forma de petições e
agradecendo pela benção da participação no rito de junção dos
pneumas.

161
Além do Rito de Passagem ele mesmo, outros documentos
citam o rito acima descrito. A maioria das fontes que citam o
Rito de Passagem – sejam elas budistas ou não – apresentam
fortes críticas ao mesmo, pois o fato de seus participantes
empregarem o ato sexual como um recurso litúrgico é
considerado uma violação do mores chinês. Escandalizados, os
budistas deixaram diversos registros de sua consternação diante
do rito sexual. Mesmo fontes daoístas o reprovam, num
processo que se tornará cada vez mais grave a partir do século
V. Nas Declarações dos Autênticos 真誥 – uma coletânea de
revelações feitas pelos deuses daoístas a Yang Xi 楊曦,
coletânea esta fortemente ligada ao estabelecimento da
linhagem da Claridade Superior – há comentários relativos os
ritos de natureza sexual praticados no âmbito do movimento do
Mestre Celestial. Para o Homem Perfeito do Puro Vazio
清虛真人, o “caminho do amarelo e do vermelho” 黃赤之道,
isto é, a prática do rito sexual – amarelo e vermelho são cores
representativas dos pneumas do homem e da mulher – “não é
ocupação dos Seres Perfeitos”非真人之事也. Já a Senhora
Ziwei 紫微夫人 entende que embora o rito sexual seja um
“segredo essencial do prolongamento da vida” 長生之秘要, ao
mesmo tempo, “não é o caminho superior” 非上道也. Os Seres
Perfeitos 真人, “são chamados por marido e mulher, mas não
praticam as obras dos mesmos” 名之為夫婦不行夫婦之跡也.
Tais registros são característicos do processo de internalização
das práticas sexuais do Caminho do Mestre Celestial, que na
linhagem da Claridade Superior assumirão cada vez mais uma
dimensão metafórica, ao invés de literal. Isto é, os trechos

162
acima demonstram que quando da formação da linhagem da
Claridade Superior, o rito daoísta começava a passar por
reformas, entre elas a crescente exclusão do rito sexual.

Fundamental para a repressão dos ritos sexuais daoístas será a


reforma litúrgica proposta por Kou Qianzhi (365-448). Por
meio de uma série de manobras políticas, Kou Qianzhi terá
grande influência no reino de Wei do Norte 北魏, governado
pelo clã Tuoba 拓跋, da etnia Xianbei 鮮卑 (uma etnia proto-
mongol). Em seu Preceitos do novo código entoado nas nuvens
雲中音誦新科之誡, Kou Qianzhi afirma que no ano de 415 se
deparou com uma comitiva divina liderada por Taishang
Laojun, que lhe teria ordenado “retificar o daoismo, excluindo
os ritos falsos dos três Zhang, o aluguel em arroz e os impostos
em dinheiro bem como a arte da junção dos pneumas do
homem e da mulher.” 清整道教除去三張偽
法租米錢稅及男女 合氣之術. Os “três Zhang” são Zhang
Daoling, Zhang Heng e Zhang Lu. Kou Qianzhi, com a
autoridade conferida pela suposta revelação de Laojun,
declarou a si mesmo como o novo Mestre Celestial, começando
não apenas a eliminação do rito de junção dos pneumas como,
também, dos ritos de auto-imolação e dos banquetes comunais
praticados no contexto daquela comunidade.

163
Considerações finais

A descrição do rito sexual daoísta no contexto do Caminho do


Mestre Celestial nos proporciona uma outra história do
daoismo já bem conhecida pelos sinólogos em âmbito
internacional mas praticamente ignorada pela nova geração de
pesquisadores brasileiros e portugueses voltados para o tema
“China”. Aqui, me esforcei para apresentar não o daoismo
“filosófico” de Laozi e Zhuangzi – uma construção póstuma
bastante diferente do que nos dizem as fontes primárias
pertinentes – mas sim o daoismo histórico, com ênfase na
comunidade de grande fervor religioso formada na China
durante o período final da dinastia Han. Curiosamente, é
justamente desta comunidade que se origina o primeiro
comentário conhecido ao Tratado do Caminho e da Virtude,
bem como as primeiras informações do uso que se fazia do
documento no contexto da religião antiga: este não era lido
como objeto de estímulo à reflexão, mas sim como uma das
fontes das diretrizes morais do Caminho do Mestre Celestial,
ao mesmo tempo em que era recitado durante ritos para a
dissolução dos pecados. Embora não se possa dizer que o texto
atribuído a Laozi tenha sido produzido com tal finalidade, por
outro lado, não se pode negar que foram estes foram os
primeiros usos dados ao texto. O rito sexual, por sua vez,
atendia a funções religiosas similares àquelas da recitação de
escrituras sagradas, já que se destinava a absolver os devotos
dos pecados, evitar desastres, obtendo-se a cura não por meio
de uma prática higiênica, mas sim através da ação dos deuses
daoístas que, de acordo com a visão de mundo dos daoístas

164
antigos, seriam capazes de expulsar demônios e suas
influências nocivas. Por fim, cabe reforçar que o rito sexual era
realizado no contexto de expectativas escatológicas, de modo
que a junção dos pneumas realizada de modo correto seria
capaz de garantir aos membros da comunidade religiosa um
lugar entre os componentes do povo escolhido daoísta.

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167
ZHUANGZI E ARISTÓTELES:
SOBRE SER UMA COISA por
Chenyang Li

A questão de ser pode ser entendida como a questão da


natureza das coisas, e do que e como elas estão no mundo;
nossa compreensão do ser tem profundas implicações para a
nossa forma de entender o mundo como um todo. Neste
sentido, o filósofo daoísta chinês Zhuangzi (Chuang Tzu, ca.
375-300 AEC) e Aristóteles têm perspectivas bastante
diferentes. Um estudo comparativo desses dois importantes
pensadores nos ajuda a entender algumas diferenças
fundamentais sobre Ontologia.

Ser como Identidade

A mesa que estou usando para escrever este artigo pode ser
vista de duas maneiras. Primeiro, é uma mesa do senso-comum
que tem extensão, ocupa um pedaço de espaço, e é substancial.
Em segundo lugar, é realmente uma massa de elétrons com um
amplo espaço vazio neles. Presumivelmente, há apenas uma
mesa aqui. Agora, qual delas é a coisa? Algumas pessoas
dizem que só há uma coisa que é auto-idêntica, e tem atributos
ou propriedades. Então a questão é, o que é isso? No caso
acima, é a mesa uma propriedade da massa de elétrons, ou é a
massa de elétrons uma propriedade da mesa? Outros podem

168
insistir que há realmente duas coisas que coincidem no espaço.
Então, há apenas dois delas, ou há mais? Qual é a relação entre
elas, além de sua coincidência espacial? Geralmente estas
perguntas são investigadas através dos conceitos de ser e
identidade.

A questão do ser é de extrema importância, pois, se estamos


conscientes disso ou não, muitos dos pontos de vista de uma
pessoa sobre outros aspectos do mundo são dependentes de
seus pontos de vista sobre esta questão. Por uma questão de
fato, todas as pessoas, filósofa ou não, da mesma forma, tem
alguma opinião sobre isso, embora a maioria das pessoas tenha
suas opiniões tacitamente. As implicações de diferentes pontos
de vista sobre esta questão fundamental são profundas. As
pessoas que têm perspectivas diferentes sobre esta questão
mantém, fundamentalmente, diferentes visões de mundo . Suas
visões de mundo pode ser tão radicalmente diferente que
dificilmente compartilham uma base comum, suficiente para
transmitir um ao outro, suas posições sobre questões
relacionadas.

Meu foco é sobre a questão de ser como "identidade”, ou seja,


a questão do que um existente pode estar dizendo para ser.
Acredito que as visões dominantes sobre esta questão, no
Oriente e no Ocidente, são muito diferentes, e que muitos
outros pontos de vista diferentes são conseqüências desta
diferença fundamental. Por esta razão, é fundamental que nós
entendamos suas diferenças, se quisermos compreender os dois
lados, e suas perspectivas em muitas outras questões.

169
Grosso modo, a visão dominante no Ocidente tende a ver o
mundo como um conjunto de elementos básicos ou "tijolos"
(por exemplo, átomos) que são estendidos no espaço e formam
o mundo em grande parte através da organização espacial. A
partir desta perspectiva, a mudança é apenas nas aparências, e o
mundo é estático em um nível fundamental. O foco filosófico,
dentro deste pressuposto, é geralmente o de identificar os
elementos básicos ou tijolos fundamentais e, em seguida,
explicar como a mudança é possível em um mundo no qual a
maioria dos elementos são estáticos (i.e., Descartes). Em
contraste, muitos filósofos orientais acreditam que o elemento
fundamental, ou elementos, do mundo são mais sutis e sem
forma. Para esses filósofos, a natureza fundamental do mundo
é a mudança. A estática é encontrado apenas no aparecimento
de um mundo que é essencialmente dinâmico. Um de seus
desafios aqui é explicar a constância aparente na mudança.

Na tradição chinesa, o chamado "cinco elementos (wu xing)",


nomeados como metal, madeira, água, fogo e terra, são
entendidos não como cinco "tijolos", estáticos, mas princípios
dinâmicos que são os próprios agentes. Os cinco elementos
podem ser comparados aos “quatro elementos” do antigo
filósofo grego Empédocles, ou seja, água, ar, fogo e terra. Eles
são, no entanto, muito diferentes na verdade, já que os "cinco
elementos" chineses não são matéria inerte que tem de ser
ativada a partir do exterior por alguns princípios externos como
os "quatro elementos" de Empédocles são. Um Confucionista
do período Han, Dong Zhongshu, disse: "xing zhe xing ye",
isto é, "xing" significa "agir" ou "se comportar" (Chunqiufanlu,

170
“Wuxing xiangsheng”). Portanto, “wu xing" pode ser melhor
traduzido como "cinco agentes " ou " cinco processos".

Os "cinco elementos", se acredita, são cinco tipos de qi (chi).


Os chineses acreditam que o elemento fundamental ou material
do mundo é qi , o que foi devidamente traduzido para o Inglês
como "força-energia". Ao contrário de átomos, na filosofia
chinesa qi é intangível, dinâmico, e ainda constitui a infinidade
de coisas no mundo. Este conceito de algo intangível como
fundamento da realidade pode parecer incompreensível para
muitos ocidentais. Felizmente, a física moderna tem
proporcionado um instrumento útil para dar sentido a este
conceito. Qi não é exatamente a “energia” na física moderna,
mas se pode compreender como, no nível fundamental do
mundo, a energia, que é intangível e dinâmica, é equivalente ou
conversível para a matéria, e temos uma boa analogia para
trabalhar com a compreensão do qi chinês.

Enquanto o "qi" denota a realidade no nível fundamental, a


nossa vida cotidiana, no entanto, lida principalmente com as
chamadas entidades de "médio porte", tais como cadeiras ,
cavalos e árvores. A maioria das pessoas, tanto no Ocidente
como no Oriente, parecem concordar que há de fato essas
entidades. Isso não significa, porém, que eles concordam com a
forma como o mundo é, neste nível. O entendimento chinês
dominante sobre o mundo é fundamentalmente fluido, como
extensões de Qi nos mais variados níveis do mundo, incluindo
o nível dos objetos de "médio porte". Neste capítulo, vou
comparar o ponto de vista de Zhuangzi, um filósofo daoísta
chinês, com a visão de entidade, bastante influente no

171
Ocidente, e derivada de Aristóteles. Eu vou mostrar que eles
não são apenas diferentes, mas também, como a ontologia de
Zhuangzi é uma alternativa viável para a ontologia aristotélica.

O Ser do boi

Uma visão comum do ser no Ocidente é assim: uma entidade


cai em uma determinada substância sortal [categorial] de
categoria ‘S’ e é um ‘s’; há outras coisas que podem ser ditas
dos ‘s’, mas aquelas são apenas qualidades ou propriedades; ser
‘s’ é seu ser primário, e determina a identidade da entidade. Por
exemplo, a entidade é um boi, que se enquadra na categoria
sortal substância “boi”. Ser um indivíduo boi determina a
identidade da entidade; ser marrom, ter sete pés de
comprimento, composto de massa m, etc, são as suas
propriedades. Esta é uma opinião defendida, explícita ou
implicitamente, por muitos filósofos ocidentais.

A origem deste ponto de vista pode ser rastreada até a doutrina


de Aristóteles de ousia, ou seja, o ser primário ou substância,
como é geralmente interpretado.1 Aristóteles discute o
problema da ousia em Metafísica, principalmente nos "livros
centrais". Suas discussões são longas, meticulosas, e às vezes
inconsistentes. Os comentadores estão, muitas vezes,
amplamente divididos em relação sobre qual é realmente a
posição de Aristóteles sobre essas questões. Aqui, eu apresento
Aristóteles em uma interpretação mais ou menos padrão.
Aristóteles propõe que a filosofia é a ciência do ser enquanto
ser. Ele afirma:
172
O ser tem muitos significados, como estabelecemos
anteriormente, no livro ddicado aos diversos
significados dos termos. De fato, o ser significa, de um
lado, essência e algo determinado, de outro, qualidade
ou quantidade e cada uma das outras categorias. Mesmo
sendo dito em tantos significados, é evidente que o
primeiro dos significados do ser é a essência, que indica
a substância [de fato, quando perguntamos a qualidade
de alguma coisa, dizemos que é boa ou má, mas não
que tem três côvados ou que é homem; ao contrário,
quando perguntamos qual é sua essência, não dizemos
que é branca ou quente, mas que é um homem ou que é
um deus] (Metafísica, 1028a 10-17)

Assim, há muitas maneiras em que se pode falar da qualidade


essencial de uma entidade individual, mas apenas uma maneira
refere-se a substância primária ("a que" ou "alguma coisa"), as
outras são predicados (ou propriedades). É a este ser primário
que o "o que é ser" ou essência (to ti en einai) pertence. Assim,
Aristóteles reduz a pergunta "o que é ser?" para a pergunta "o
que é substância?". A maneira pela qual Aristóteles fala sobre
essência e ser primário indica claramente que ele acredita que
para cada entidade individual (ou, pelo menos, uma entidade
natural) só há uma essência e um ser primário. Pois a essência
de uma entidade é (determinado por) sua forma;
presumivelmente, uma entidade tem apenas uma forma,

173
portanto uma entidade só pode ter uma essência. Uma entidade
pode ter um ser secundário, mas apenas um ser primário.

Disso seguem várias reivindicações aristotélicas


interlacionadas no que diz respeito à identidade de uma
entidade. Primeiro de tudo, a visualização de uma entidade
como uma coleção de suas partes constituintes não revela a
realidade da entidade. A essência pertence à entidade como um
todo, e não às suas partes constituintes. Desde que o ser
primário de uma entidade é determinado pela sua essência
cujas partes constituintes não possuem, o ser primordial de uma
entidade não pode ser revelado por uma análise de suas partes.
Em outras palavras, uma entidade é um particular isto, mas não
somente um isto, mas também é um definitivo aquilo, isto é, o
isto-desse modo. Ele não pode ser um isto, sem ser também de
um certo modo. Em segundo lugar, para Aristóteles, porque só
há uma essência em uma entidade, só há apenas um ser
primário na mesma, e, portanto, não há uma única resposta
objetiva direita para a questão do que uma entidade é
primariamente. A resposta certa é aquela que revela a essência
da entidade e substância primária. Em terceiro lugar,
Aristóteles afirma que a essência de uma entidade está ligada a
sua espécie, e da espécie a que pertence a entidade mantém a
entidade primária do ser. Assim, a retirada dos membros das
espécies significa a perda da entidade primária do ser e,
portanto, a sua destruição. Estes pontos de vista representam
uma parte substancial da metafísica aristotélica; muitas
observações filosóficas são baseadas neles.

174
A metafísica da Zhuangzi, um quase contemporâneo de
Aristóteles, pode ser vista em dois níveis. No nível
fundamental, cada coisa pertence ao Dao, ou o Caminho. O
Dao é a verdade última do universo. Cada coisa no mundo tem
sua raiz no Dao. Neste sentido, todos são um, e as diferenças
entre as coisas são insignificantes do ponto de vista do Dao. No
nível da entidade, cada pessoa física pode ser tanto um "isto" e
um "aquilo". Ser "isto" não exclui a sua também ser um
"aquilo". Os dois níveis estão ligados entre si, e um indivíduo
ser “isto” e ser “aquilo” são formas de o Dao de se apresentar .
A seguir vou me concentrar no segundo nível, sobre a questão
da identidade de uma entidade.

Para Aristóteles, ser uma substância primária é ser um membro


do tipo mais baixo de substância, por exemplo, o ser boi é um
ser primário.2 Assim, deixar de ser um boi significa perder seu
ser primário, e nosso reconhecimento da entidade como o boi
indivíduo é o único caminho certo para nós reconhecermos seu
ser primário. Curiosamente, Zhuangzi também usou o boi fazer
seu ponto. Mas ele tem uma percepção diferente do que um boi
é. Em sua história sobre o “Cozinheiro Ding”, o cozinheiro diz:

Quando comecei a retalhar bois, via diante de mim bois


inteiros. Após três anos de prática, não mais via os
animais inteiros. [...] Recaindo nos princípios eternos,
vou resvalando pelas grandes juntas, ou cavidades,
como se apresentam, obedecendo à constituição do
animal. Nem chego a tocar nas ligações do músculo e

175
do tendão e muito menos tento cortar os grandes ossos.
Um bom cozinheiro substitui o facão uma vez por ano -
porque sabe cortar. Um cozinheiro ordinário, uma vez
por mês - porque só sabe picar. Mas tenho usado esse
facão durante dezenove anos e embora tenha retalhado
milhares de bois, o fio se mantém tão aguçado como se
tivesse sido amolado agora mesmo.

Ele explica ainda,

Pois nas juntas sempre existem espaços e o fio de um


facão, quase sem espessura, basta inseri-lo nos espaços.
Na verdade, há muito onde usar a lâmina. Foi assim que
consegui conservar meu facão durante dezenove anos
com o fio igual ao dos que acabam de passar pela pedra
de amolar. (Zhuangzi, “Yangshengzhu”).

O objetivo principal da história de Zhuangzi é de nos dizer


como encontrar o nosso caminho no mundo. Ele sugere que
isto pode ser feito através de conhecer e usar, de forma
adequada, as coisas no mundo. Depois de três anos de treino
apurado, o cozinheiro Ding não mais via o boi como uma coisa
inteira, mas um pacote de carne e ossos. Para Zhuangzi, o
cozinheiro Ding não estava enganado. O que o cozinheiro viu
foi real. A entidade foi certamente também um boi. O que isto

176
mostra é que um boi pode ser reconhecido não só como um boi
individual, mas também como um pacote de carne e ossos.
Assim, ao contar a história Zhuangzi sugere que, como um ser,
a entidade é tanto um boi e um pacote de carne e ossos. Isso é
diferente de Aristóteles, que escreve:

Assim a matéria é parte também da estátua, considerada


como composto concreto do bronze; mas não é parte da
estátua considerada como pura forma. De fato, deve-se
designar a forma e cada coisa naquilo que tem de forma
e não se deve nunca exprimir o aspecto material da
coisa em si e por si. (Metafísica, 1035a 5-10)

Em certo sentido, o bronze é uma parte da estátua como uma


entidade, e carne e ossos são partes de um boi (Metafísica,
1035a 2-5).3 Mas essas peças não são os elementos de forma
da entidade. A partir de Aristóteles, por vezes, parece-se
acreditar que o ser primário de uma entidade é a sua forma, em
certo sentido essas partes não são partes constitutivas do ser
primário da entidade. Um boi como um todo tem a essência de
ser um boi, enquanto que as partes não possuem esta essência.
Aristóteles trata da relação entre um pacote de carne e ossos de
um lado e um boi no outro como a relação entre potência e ato.
O pacote de carne e ossos é a matéria em que existe o potencial
para ser um boi. É a forma que dá a realidade da entidade e faz
com que seja um boi real.4 O ser primário da substância é
exclusivamente o boi.
177
Zhuangzi, no entanto, acredita que a análise de suas partes
constituintes é uma abordagem legítima para a realidade de
uma entidade. Por um lado, o seu ser boi não esgota toda a sua
existência. É um boi, mas também é um pacote de carne e
ossos. A entidade de ser um pacote de carne e ossos não é
apenas uma potencialidade. O pacote de carne e ossos é tão real
como o boi. Aos olhos de Cozinheiro Ding, não é o caso de que
o pacote de carne e ossos se realizam sendo um boi, nem é a
entidade potencialmente um pacote de carne e ossos que irá se
realizar após o boi ser morto. A seus olhos, a entidade é um
pacote de carne e ossos. Por outro lado, Zhuangzi não
reconhece essência ou ser primário. Ele não acredita que não
há tal coisa como a essência que determina exclusivamente o
ser da entidade. Portanto, a entidade ser um agregado de peças
não é menos real do que ser um boi.

Assim, conceitualmente, Zhuangzi vê a entidade em um nível


diferente do fato de ser um boi ou um pacote de carne e ossos.
Apesar de ser um boi, e ser um pacote de carne e ossos, não são
o mesmo modo de ser, eles são a mesma entidade que tem
ambas as maneiras de ser. Ao contrário da visão aristotélica de
que cada particular é um isto-aquilo, Zhuangzi coloca:

Não há nada que não seja "isto"; não há nada que não
seja "aquilo". O que não pode ser visto por "aquilo", (a
outra pessoa) pode ser compreendido por mim. Daí eu
digo, "isto" emana "daquilo"; "aquilo" também deriva
"disto". [...] Assim , o sábio não se preocupa com estas

178
distinções , mas vê todas as coisas da maneira que são.
“Isto” é também “aquilo”, e “aquilo” também é “isto”.
[...] Quando não há mais separação entre "isto" e
"aquilo", isso é chamado de pivô do Tao. No pivô no
centro do círculo pode-se ver o infinito em todas as
coisas (Zhuangzi – “Qiwulun”).

Para Zhuangzi, nós sempre olhamos para as coisas a partir de


um certo ponto de vista. Se eu começar a partir de onde estou e
ver uma coisa como um "isto", então isso também torna
possível para mim ver o que um outro vê como um "aquilo".
Por isso, ver como um "isto" e ver como um "aquilo"
dependem uns dos outros e se complementam. Isso nos mostra
a sua própria maneira que, além de ser um "isto" (ou seja, um
boi), a entidade é também um "aquilo" (ou seja, um pacote de
carne e ossos). Apesar do ser da entidade não se limitar a ser
um boi e ser um pacote de carne e ossos (que também é um
agregado de moléculas, etc.), estas são maneiras para que ele
seja um isto e um aquilo. Porque ser um boi e ser um pacote de
carne e ossos são dois modos de ser da mesma entidade, um
boi individualmente é um pacote de carne e ossos, e um
agregado particular de partes é um boi. Somente quando não
vemos apenas como um boi, mas também como uma entidade
que é ao mesmo tempo um "isto" e um "aquilo" é que podemos
chegar ao pivô do Dao.

Aos olhos de Zhuangzi, o fato de que o boi dura mais tempo do


que o pacote de carne e ossos não significa necessariamente

179
fazer a entidade mais que um boi. Para ele, medidas
quantitativas são sempre relativas. Pode-se dizer que a ponta de
um cabelo macio é pesado, o Monte Tai é pequeno, uma
criança que morre na infância tem uma vida longa, e (longevo)
Progenitor Peng morre jovem (Zhuangzi–“Qiwulun”). Tudo
depende do contexto. Mesmo que o pacote de carne e ossos não
dure tanto quanto o boi, dura o tempo suficiente para torná-lo
uma entidade. Se chamarmos o boi um "isto", então o pacote de
carne e ossos é um "aquilo" A entidade pode ser tanto um
"isto" e um "aquilo".

Pode-se objetar: talvez em vez de uma entidade, o que temos


aqui são realmente duas entidades, um boi e um pacote de
carne e ossos; embora espacialmente coincidentes , eles não
são a mesma entidade. Aristóteles, no entanto, não parecem
favorecer essa visão . Ele esforça-se para a unidade de uma
entidade. Quando ele fala da estátua e do bronze, ele parece ter
tratado o bronze apenas como matéria. Em vez de sugerir que
existem duas entidades, uma estátua e um pedaço de bronze,
ele a trata como uma entidade. Aristóteles escreve:

[...] como dissemos, a matéria próxima e a forma são a


mesma realidade; uma é a coisa em potência e outra é a
coisa em ato. Portanto, buscar a causa de sua unidade é
o mesmo que buscar a causa pela qual o que é um é um:
de fato, cada ser é unidade, e o que é em potência e o
que é em ato, sob certo aspecto, é uma unidade.
(Metafísica 1045b 17-21)

180
Ele rejeita explícitamente a sugestão de que um indivíduo pode
ser dois. Ele acredita que a matéria e a forma são a mesma
unidade, mas não é o caso em que há uma estátua e um pedaço
de bronze:

Algumas coisas, depois de serem geradas, são


denominadas por aquilo de que se geram, isto é, por sua
matéria, não com o mesmo nome da matéria, mas com
um adjetivo extraído dele: a estátua, por exemplo, não é
dita mármore, mas marmórea; [...] Por isso, de quem é
curado não se diz que é enfermo, mas que é homem e
homem sadio. [...] como naquele caso, o objeto não é
denominado por aquilo de que provém, também nesse
caso a estátua não é chamada madeira, mas designada
com o adjetivo derivado: isto é, lenhosa e não lenho, ou,
ainda, brônzea e não bronze, marmórea e não mármore.
De fato, considerando tudo isso mais profundamente,
não se pode dizer em sentido absoluto nem que a
estátua derive de madeira, nem que a casa derive do
mármore, porque a matéria da qual algo deriva deve
transformar-se e não permanecer como era. Por isso nos
exprimimos desse modo. (Metafísica, 1033a 6-23)

Assim, depois de tornar-se os tijolos de uma casa, os tijolos


(como tijolos) não existem mais, após o bronze se tornar uma

181
estátua, o bronze (como bronze) não existe mais. Depois de
tornar-se uma casa ou uma estátua, eles só existem como as
propriedades de outra coisa. Assim, quando alguém aponta
para a estátua e pergunta "quantas entidades existem?" A
resposta para Aristóteles é definitivamente “uma”.

Uma das razões para concordar com Aristóteles a este respeito


é que a abordagem das duas entidades infla o número de
entidades no mundo. Não é o caso em que há um boi mais um
pacote de carne e ossos, há apenas uma coisa que é tanto um
boi e um agregado de partes. Suponha que duas pessoas
disputassem sobre se a entidade é um boi ou um pacote de
carne e ossos. Se houvesse duas entidades, não haveria disputa,
porque eles estariam falando sobre duas entidades diferentes,
um boi e um agregado de partes: enquanto se poderia sustentar
que um boi é um boi, o outro iria considerar que um pacote de
carne e ossos é um pacote de carne e ossos. Mas sabemos que a
disputa é sobre a mesma entidade. Podemos querer dizer aos
disputantes que sim, é um boi, mas também é um pacote de
carne e ossos. Aqui os dois "seres" devem referir-se à mesma
entidade ou a sentença não faria sentido. Na história de
Cozinheiro Ding, o cozinheiro vê um agregado de partes da
mesma entidade no que os outros vêem um boi. A entidade só
pode ser aquilo que é, ao mesmo tempo, um boi e um pacote de
carne e ossos. Em um certo momento, o boi ‘t’ e o pacote de
carne e osso ‘p’ são uma e a mesma entidade.

Conhecendo o que existe

182
Porque Aristóteles acreditava que uma entidade só tem uma
essência e um ser primário, segue-se que, para Aristóteles, não
há uma única resposta objetiva direita para a questão do que
uma entidade é primriamente. Ele sustenta que a questão do
que uma coisa é refere-se essencialmente ao ser primário
(Metafísica, 1030a 23-24). Em outras palavras , o "o que é" de
uma entidade pertence ao ser primário, e para outras categorias
meramente potenciais e derivadas, é meramente como uma
qualidade ou quantidade. Por exemplo, uma entidade ‘o’ é um
membro da espécie boi, e que ‘um boi’ é a resposta certa para a
pergunta "o que é?". Zhuangzi nega que haja ser primário e que
não há uma única resposta objetiva direito de a questão do que
uma entidade é. Ele acredita que dizer que a entidade é um boi
não é a única maneira correta de responder à pergunta sobre o
que a entidade é, e que a entidade é um pacote de carne e ossos
também é uma forma adequada de responder a pergunta.

Zhuangzi não achava que, como Aristóteles aparentemente


fazia, há uma maneira "objetiva" de conhecer. Ele escreve:

Conhecer o que o Céu faz, e o que homem faz, não seria


o máximo de conhecimento [...] No entanto, há um
problema. Conhecer depende de condições que só são
combinadas mais tarde. E essas condições não são fixas.
Como podemos saber (com certeza) o que se deve ao
Céu , mas não se deve ao homem, ou vice-versa?
(Zhuangzi -“Dazongshi”)

183
A palavra chinesa para "Céu", "Tian", também pode ser
traduzida como "natureza" neste contexto. Não é difícil
descobrir aqui a intenção de Zhuangzi. Para ele, conhecer não é
como o espelhamento de uma realidade objetiva (ou seja, o que
o Céu ou natureza faz) . É sempre inevitável situar-se sob
algumas circunstâncias. Estas circunstâncias não são fixas e
não podem ser separadas da entidade ("o que é devido para o
Céu") e do conhecedor ("o que é devido ao homem"). O
caminho do Dao, por Zhuangzi , não é colocar os dois em
oposição, mas para vê-los em unidade.

Este modo de pensar pode ser chamada de "pensamento


interativo". As coisas são sempre relacionais e situacionais, e
devem ser vistas como tal. Ver as coisas dentro das relações e
situações é ver as coisas numa rede em que vários fatores
interagem uns com os outros, é ver as coisas em contexto, em
perspectiva.

Então, como é que a entidade é um boi e que a entidade é um


pacote de carne e ossos e ambos estão corretos? Zhuangzi
acredita que "um caminho começa a existir através das pessoas
que passam por ele; uma coisa é assim porque as pessoas
dizem que é" (Zhuangzi-“Qiwulun”). Originalmente não havia
caminhos no mundo. Um caminho emerge somente após
andarmos nele. "Dizer" (wei), que também pode ser traduzido
como "nomear" aqui, pode ser entendido como o
reconhecimento. Uma coisa é (disse) assim porque nós a
reconhecemos desta forma. A entidade individual é um boi
quando a reconhecemos assim, e é um pacote de carne e ossos
quando a reconhecemos assim. Isto pode soar um pouco

184
subjetivista. Mas não deve ser tomado no sentido de que
podemos ver uma entidade de forma arbitrária. Zhuangzi
continua o comentário dizendo: "Por que isso? Por ser assim.
Por que não? Por não ser assim”. É inerente a uma coisa que
ela seja de algum lugar que é dela, de algum lugar que é
permitido a ela. Não é arbitrário para alguém reconhecer uma
entidade como “alguma coisa”, pois a entidade tem a sua
própria natureza e sua própria função. A partir disso, pode-se
dizer que uma coisa ser em si não é uma pura invenção nossa.
O Dao tem seus meios. Temos a visão de que um boi é mais
um boi do que um pacote de carne e ossos, ou vice-versa,
porque chegamos a reconhecê-lo dessa forma. Podemos fazer
isso por causa de seu "ser assim". No entanto, não é verdade
que só existe uma maneira certa de reconhecer as coisas.

A visão de Zhuangzi parece ainda mais atraente quando


olhamos para entidades artificiais. Em analogia ao exemplo da
estátua de bronze de Aristóteles, eu posso fazer uma pergunta
semelhante: é o meu anel de uma substância primária, que tem
uma propriedade de ser ouro, ou é este pedaço de ouro a
principal substância que tem a propriedade de ser um anel? Por
um lado, esta peça de ouro é uma substância primária, se
alguma coisa é uma substância primária, no sentido
aristotélico; por outro lado, não há nenhuma razão para que o
meu anel não deva ser uma substância primária quando outras
entidades individuais, tais como tijolos e estátuas, são
substâncias primárias. Se houver apenas uma substância
primordial nesta entidade, o que é isso? Zhuangzi não teria
nenhum problema em dizer que ele é ao mesmo tempo ambas,

185
com nenhum ser mais primário do que o outro sem um
contexto. Neste ponto, um aristotélico pode querer recuar e
afirmar que apenas entidades naturais são substâncias. Se assim
for, pelo menos, a ontologia de Zhuangzi teria a vantagem de
cobrir ambas as entidades naturais e entidades artificiais.
Zhuangzi se opõe ao pensamento dogmático. Ele afirma:

O Dao nunca teve fronteiras, afirmações nunca devem


ser constantes. É por um "é isto" que demarcações são
feitas. Deixe-me dizer algo sobre demarcações .
Esquerda e direita, a ordem e o decoro, dividir e
discriminar entre alternativas, competir mais e brigar
mais: estes eu chamo de nossos oito poderes... Para
"dividir", então, é preciso deixar algo indivisível, para
"discriminar entre alternativas" é preciso deixar algo
que não é uma alternativa. "Como pode ser isso?", você
pode perguntar . O sábio mantém isso em seu peito, os
homens comuns discutem alternativas para mostrá-lo
para o outro. Por isso eu digo: para "discriminar entre
alternativas" é falhar em ver alguma coisa (Zhuangzi –
“Qiwulun”).

Os oito poderes são maneiras de definir os limites das coisas no


mundo. Algumas pessoas usam as quatro primeiras potências
para delimitar o "é isto" e "não é isto" nas relações humanas;
alguns outros usam os últimos quatro poderes para delimitar a
"é isto" e "não é isto" em nosso conhecimento geral do mundo.
186
Para Zhuangzi, todos eles estão fundamentalmente
equivocados. Ele sustenta que o Dao não tem fronteiras e o ser
de uma entidade tem alternativas. Quando as pessoas comuns
perguntam "O que é isso?" elas usam os oito poderes para
desenhar fronteiras, dividir as coisas, e discriminar entre as
alternativas, a fim de mostrar um definitivo "é isto" ou "não é
isto" das coisas. Mas a mesma coisa é tanto " Isto aí é" e " Isto
não é". Aderir obstinadamente ao "é isto" de uma entidade é
discriminar alternativas. Ao fazê-lo , a pessoa é impedida de
ver a realidade do Dao.

O que Zhuangzi aqui diz sobre os "Oito Poderes" é similar a


doutrina das coisas na Metafísica e Categorias de Aristóteles.
Aristóteles faz uma distinção entre substância e qualidades,
geração e alteração, fazer e ser feito, etc. Por exemplo, ele
afirma que, entre muitas coisas que podem ser ditas de uma
entidade "o que é", só há uma maneira de falar dela como uma
substância, sendo o resto qualidades. Para Zhuangzi, ficarmos
profundamente envolvidos em tais disputas como se um boi ou
um pacote de carne e ossos fosse uma substância é ficar longe
do Dao, porque não conseguimos ver o outro lado da realidade.
Por exemplo, na distinção entre um boi como substância e um
pacote de carne e ossos como uma potencialidade da
substância, não conseguimos ver que o que pode ser dito de um
boi como uma substância, e também pode ser dito sobre o
pacote de carne e ossos. O agregado de partes, como o boi,
pode ser tratado como uma "substância" que tem certas
propriedades. Conhecer o Dao não é discriminar alternativas,
mas estar aberto a elas. Portanto, sustentar obstinadamente que

187
a entidade é apenas um boi ou um pacote de carne e ossos é
totalmente unilateral. Zhuangzi observa:

Mas cansar o intelecto numa ligação obstinada com a


individualidade das coisas, não reconhecer o fato de que
todas as coisas são uma Única - chama-se a isso "Três
pela Manhã". O que é "Três pela Manhã?" Um tratador
de macacos disse a respeito das rações de nozes, que
cada macaco devia comer três nozes pela manhã e
quatro à noite. Desse modo os macacos ficavam com
muita fome. Então o tratador resolveu que eles
poderiam ter quatro nozes pela manhã e três à noite e
com esse arranjo todos ficaram satisfeitos. O numero de
nozes continuou a ser o mesmo, porém havia uma
diferença devida aos gostos e aversões [“é isto”]. Por
isso, o verdadeiro Sábio suaviza as coisas com seu “é
isso, não é isso” e descansa no natural Equilíbrio do
Céu. A isto se chama “deixar duas escolhas
acontecerem”. (Zhuangzi–“Qiwulun”).

Aqui Zhuangzi defende a ideia de que tudo pertence ao Dao.


Ele critica aqueles que não conseguem perceber isso como
"três pela manhã (macacos)". A crítica de Zhuangzi também se
aplica aos aristotélicos que sustentam que uma entidade
individual tem apenas um ser primário. Os aristotélicos estão
presos em uma forma hierárquica de pensar. Para eles, é
preciso dar um definitivo "um/outro" tipo de resposta entre
188
coisas como "três todas as manhãs e quatro todas as noites" e
"quatro todas as manhãs e três todas as noites", e apenas uma
resposta pode estar certa.

Zhuangzi não nega que existe alguma diferença entre "três a


cada manhã e quatro todas as noites", de um lado, e "quatro
todas as manhãs e três todas as noites", por outro. Mas ele
acredita que a diferença não é significativa o suficiente para
que se mantenha uma adesão obstinada de um contra o outro.
Do ponto de vista do Dao os dois estão enraizados na mesma.
Os macacos não conseguem ver que "três todas as manhãs e
quatro todas as noites" e "quatro todas as manhãs e três todas
as noites" são o mesmo em quantidade. Aristotélicos também
são "três a cada manhã", porque eles afirmam que apenas uma
resposta é em última análise correta, e eles não conseguem ver
que, do ponto de vista do Dao, “ser um boi com a propriedade
de ter o pacote de carne e ossos" e "ser um agregado de partes e
ter a propriedade de ser um boi" são o mesmo em quantidade.
Estas são duas formas diferentes de ser a mesma coisa.
Disputar quem tem a primazia absoluta é como os macacos
brigando se eles têm três nozes todas as manhãs e quatro todas
as noites, ou quatro todas as manhãs e três todas as noites.O
sábio, compreendendo o pivô do Dao, veria a Unidade dos dois
lados e permaneceria flexível.

Reconhecendo que uma entidade pode ser tanto um “isto" e um


"aquilo”, Zhuangzi está disposto a julgar como melhor ou pior
visões do que uma entidade seria com base na prática. Isto é o
que ele quer dizer ao afirmar que o "o que isto é" das coisas
"vai pela circunstância".

189
Em Zhuangzi, encontramos uma conversa entre Nie Que e seu
mestre Wang Ni:

"Você sabe alguma coisa sobre a qual todas as coisas


concordam 'É isto?'"

"Como eu poderia saber isso?"

"..."

Se um homem dorme num lugar úmido, fica com


lumbago e morre. Mas o que me diz de uma enguia?
Viver no cimo das árvores é vida precária e mexe com
os nervos. Mas o que me diz dos macacos? Qual o
"habitat" indicado para a enguia, o macaco e o homem?
Qual o perfeitamente certo? Os seres humanos se
nutrem de carne, os veados de ervas, as centopéias de
pequenas cobras, as corujas e os corvos de
camundongos. Desses quatro, qual o que tem,
absolutamente, o gosto perfeito? O macaco une-se com
a fêmea que tem cabeça parecida com a do cão, o gamo
com a gazela, a enguia com os peixes, enquanto os
homens admiram Mao Qiang e Xishi, à vista de quem
os peixes mergulham profundamente n'água, os
pássaros alçam vôo alto no ar e os veados fogem
correndo. Contudo, quem diria qual o perfeito padrão de
beleza? Em minha opinião, os princípios da boa
vontade de do dever, os caminhos do certo e do errado

190
são confusos: como eu poderia escolher entre eles?
(Zhuangzi–“Qiwulun”)

Aqui pela boca de Wang Ni, Zhuangzi expressa seu próprio


ponto de vista. Ele tem como alvo a questão de um universal
"É isto", em um sentido mais amplo, estendendo-se a ética bem
como para a estética. Ele certamente inclui a metafísica. Para
ele, não há um consenso sobre um universal "É isto", o que
mostra não só que não podemos chegar a tal estado, devido ao
fato de que cada um de nós está sempre situado em
circunstâncias, mas também que não existe tal realidade. Uma
entidade tem o seu ser e funções. Como nos aproximamos e
avaliamos, isso realmente depende da prática em que estamos
envolvidos. Dizer que a entidade é um boi e dizer que é um
pacote de carne e ossos são duas formas de abordar a mesma
entidade. Quanto ao caminho que é certo, ele realmente
depende do contexto em que a entidade é reconhecida. A
maneira apropriada de reconhecer uma entidade depende do
propósito que temos para ela, e o propósito varia ao longo do
tempo e de lugar para lugar. Por exemplo, se usarmos a
entidade como animal de fazenda, é melhor reconhecê-la como
um boi; para o Cozinheiro Ding, não ver somente um boi
mostra que ele encontrou o seu caminho no mundo. É muito
importante para o cozinheiro Ding que um boi não seja apenas
um animal inteiro, mas também um agregado de partes. Por
apenas não ser como um todo, mas um pacote de carne e ossos,
é possível ao Cozinheiro Ding encontrar "muito espaço" no
meio para passar sua lâmina. Para ele, a entidade como um

191
pacote de carne e ossos não é uma forma meramente potencial
como Aristóteles sustentava. É um ser real para se lidar. Desta
forma, a metafísica relativista de Zhuangzi e sua ênfase na
prática estão ligadas.

Um aristotélico talvez não negasse diretamente que às vezes


faz mais sentido tratar a entidade como um pacote de carne e
ossos, ao invés de como um boi inteiro. Ele pode tentar, de
duas maneiras, evitar uma flagrante contradição em sua visão
metafísica que a entidade é principalmente um boi. Primeiro,
ele pode sustentar que há duas entidades, um boi e um
agregado de partes, enquanto o boi é principalmente um boi, o
pacote de carne e ossos é principalmente um agregado de
partes. Como já apontado anteriormente, desta forma, o
aristotélico não só vai contra o próprio Aristóteles, mas
também infla o número de entidades em todo o mundo através
da duplicação de entidades. Em segundo lugar, ele pode optar
por dizer que há apenas uma substância primária; enquanto a
substância primária é o boi, às vezes é útil se concentrar em
suas potencialidades, e não na substância primária; o caso do
Cozinheiro Ding é um exemplo.

Esta última visão tem duas desvantagens em comparação com


a visão de Zhuangzi. Em primeiro lugar, para Aristóteles, a
matéria não pode existir sem forma, e potencialidade não pode
existir sem a realidade. Se o pacote de carne e ossos é apenas
uma potencialidade, não pode existir realmente. Isto é
obviamente falso. Não é o caso de que o pacote de carne e
ossos só existe como carne e ossos depois que o boi está morto.
É um pacote de carne e ossos, mesmo quando o boi ainda está

192
vivo. Nós diríamos que depois o boi está morto, é o mesmo
pacote de carne e ossos que resta. Para Cozinheiro Ding, o
conjunto de peças é um ser real, que não depende de qualquer
outra coisa. O relato de Zhuangzi, por isso, funciona melhor
aqui. Em segundo lugar, e mais importante, tratando o pacote
de carne e ossos apenas como potencialidade, nas contas
aristotélicas, só podemos abordar o conjunto de partes através
do boi. É uma abordagem indireta. Em contrapartida, o caso de
Zhuangzi nos permite abordar diretamente a entidade como o
agregado das peças. Dado que a entidade é realmente um
pacote de carne e ossos, em vez de tomar a entidade como um
pacote de carne e ossos por conveniência, tomamos a entidade
como a entidade em seu ser real. Em outras palavras, nós o
tratamos como um pacote de carne e ossos, porque ele próprio
é um agregado de partes. Assim, a metafísica de Zhuangzi
fornece uma base adequada para a sua filosofia prática, e este
último reforça a plausibilidade de sua metafísica.

Transformação da Borboleta

O terceiro contraste entre Aristóteles e Zhuangzi sobre a


questão do "ser" é encontrada em seus pontos de vista sobre se
a mesma entidade pode sobreviver a uma mudança no conceito
de substância sortal. Os Conceitos de substâncias sortais são
conceitos como "boi" ou "cavalo". Tais conceitos designam
substâncias aristotélicas. Passar por uma mudança no conceito
de substância sortal significaria tornar-se um tipo diferente de

193
substância. A questão aqui é saber se uma entidade pode
manter a sua identidade através de uma tal mudança.

Aristóteles une a essência de uma entidade para sua espécie.


Ele escreve: "portanto, não poderá haver essência de nenhuma
das coisas que não sejam espécies últimas de um gênero, mas
só daquelas" (Metafísica 1030a 12-13). Para entidade, manter-
se o que é, possuir sua essência, é pertencer à espécie a que
realmente pertence. Portanto, deixar de pertencer a sua espécie
equivale a deixar de possuir a sua essência, o que equivale à
destruição da entidade. Isso significa que nenhuma entidade
pode sobreviver a uma mudança no conceito de substância
sortal.

Essa visão aristotélica é muito influente nos debates


contemporâneos sobre a questão da identidade. Por exemplo,
David Wiggins, um aristotélico contemporâneo, sustenta que a
substância sortal ou a categoria de conceito na qual uma
entidade cai é essencial para a identidade da entidade.
Nomeadamente, "para um x e qualquer categoria de f, se f é
uma categoria de substâncias, então, se x pertence à f, x
pertence sempre f", em outras palavras, "para ser, uma coisa só
precisa apenas cumprir este último, ou estar próxima ao
conceito último de f".5 Por exemplo, a entidade é um boi. É a
mesma entidade, desde que ele seja um boi e, assim, se
enquadra no mesmo conceito de substância sortal de "boi".
Assim, quando uma entidade não cai sob o mesmo conceito de
substância sortal, a entidade não é mais a mesma entidade.
Desta forma, os conceitos de substância primária, essência e
necessidade estão ligados. A entidade é primariamente um boi,

194
é essencialmente um boi, e é, necessariamente, um boi. Como
uma substância primária, a entidade não pode ser a mesma
entidade, sem ser um boi.

Zhuangzi novamente discorda. Em Zhuangzi temos a famosa


história de seu sonho de borboleta:

Certa vez eu, Zhuang Zhou, sonhei que era uma


borboleta, adejando daqui para acolá, com todos os fins
e propósitos de uma borboleta. Só tinha consciência de
minha felicidade como borboleta sem saber que eu era
Zhou. Depressa acordei e ali estava eu, eu mesmo, na
verdade. Agora não sei se eu era um homem sonhando
ser borboleta, ou se eu sou uma borboleta sonhando ser
um homem. Entre um homem e uma borboleta há,
naturalmente, uma distinção. A transição é chamada
transformação de coisas materiais (Zhuangzi–
“Qiwulun”).

Aqui Zhuangzi sugere que ele pode ser Zhuangzi (Zhou), que
sonha que é uma borboleta, ou que ele é uma borboleta que
sonha que é Zhuangzi. Ele nunca poderia saber, mas, em
qualquer caso, ele seria o mesmo indivíduo. Perder o seu status
como um espécime humano não significa destruição, mas uma
forma diferente de ser do mesmo indivíduo. Isto é, não é
necessário que ele seja um homem, mas não uma borboleta. Ele

195
pode ser uma borboleta e ainda manter sua identidade como o
mesmo indivíduo.

Se uma entidade pode sobreviver a uma mudança de categoria


de substância sortal categoria e continuar a ser a mesma pessoa
como Zhuangzi acredita, pode-se querer pressionar ainda mais,
pedindo "a mesma coisa?". A esta questão nem ao menos "o
mesmo homem", nem "a mesma borboleta" pode ser a resposta
certa. Mesmo "o mesmo animal" não faria isso, porque nós
normalmente não consideramos um homem e uma borboleta
como o mesmo animal. Zhuangzi, no entanto, não segue esta
maneira de pensar. Ele não nega que há alguma diferença entre
um ser humano e ser uma borboleta. Mas ele acredita que, do
ponto de vista do Dao, a diferença só mostra "as
transformações das coisas". Em Zhuangzi, as transformações
das coisas acontecem quando a fronteira entre "isto" e "aquilo"
é dissolvida, e a Unidade do mundo é revelada. Em tal estado,
se ele é um ser humano ou uma borboleta não importa muito,
não só porque do ponto de vista do Dao, cada coisa no mundo
pertence à Unidade do Dao, mas também porque isso poderiam
ser duas maneiras de ser a mesma coisa. A noção das
transformações das coisas torna-se mais plausível à luz da
visão de Zhuangzi na unidade do “aquilo" e "isto" da mesma
entidade. Ele nega que há essência e que a identidade de uma
entidade é determinada por qualquer coisa como essência.
Assim, dizer que uma entidade é essencialmente ou
primariamente um homem ou uma borboleta já é estar
enganado. Para ele, uma entidade pode ser tanto um "isto" e um

196
"aquilo"; pode continuar a ser a mesma entidade ao
transformar-se de uma categoria para outra.

Este ponto de vista é provavelmente o mais difícil de aceitar


para aqueles que estão acostumados à maneira aristotélica de
pensar. É, no entanto, uma extensão da dimensão temporal ou
cronológica do que Zhuangzi disse sobre a coincidência
simultânea de diferentes modos de ser de uma entidade. A
visão de que uma coisa pode sobreviver a uma mudança de
categoria substancial é baseada em tradições do pensamento
chinês. Na mitologia clássica chinesa, nos é dito repetidas
vezes que um indivíduo mantém a sua identidade depois de
passar por mudança categorial de substância. Por exemplo,
sobre o Rei Macaco da Jornada do Oeste, se diz que nasceu de
uma ágata, e que era capaz de se transformar de setenta e duas
formas variadas. Ele poderia ser um peixe ou um templo, um
velho ou uma jovem. No entanto, é o mesmo do Rei Macaco.
Sua identidade como pessoa física transcende qualquer
categoria particular com a qual a entidade está associada. Sobre
o herói de O Sonho do Quarto Vermelho, Jia Baoyu, é dito que
foi transformado a partir de um pedaço de jade. A heroína do
Romance da Cobra Branca teria vindo do processo de
transformação de uma cobra branca em uma linda mulher. Isto
não é um argumento real para Zhuangzi e contra Aristóteles.
Ele sugere, no entanto, que nesta cultura não é inconcebível
para uma entidade manter a sua identidade através de uma
mudança de categoria. Pelo contrário, esse tipo de
transformabilidade é profundamente enraizado no pensamento
das pessoas.

197
Suponha que no tempo t1 uma entidade é um membro de uma
espécie S, e no tempo t2 ele deixa de ser um S e torna-se um A.
Após t2, podemos apontar para a entidade e dizer "que
costumava ser (ou era) um S em t1, mas agora ele não é mais
um S, mas uma A". Esta frase faz todo o sentido. Para que a
sentença faça sentido para os dois "é isso", ela deve referir-se a
mesma coisa. O que é "isso?”. Zhuangzi diria que não pode ser
um/outro, e tem que ser os dois. Por exemplo, no caso do boi,
que é tanto um boi e um pacote de carne e ossos. Esta intuição
apoiaria Zhuangzi quando ele contou a sua história do sonho,
embora ele não tenha ido mais longe para dar um argumento
para isso.

Em Zhuangzi, a questão como "isto" (substância) e "aquilo"


(substância) são idênticos não se coloca. Se for perguntado
como "isto" modo de ser e "aquilo" modo de ser são idênticos,
a resposta é simplesmente que eles não são idênticos. Mas a
entidade que tem dois modos de ser é idêntica em si. É a
mesma entidade. Este ponto de vista do ser se encaixa bem na
cena descrita pela física contemporânea. No nível micro do
mundo, não há um tijolo ‘substância última do mundo’. As
partículas são também energia. Indagar sobre a substância ou o
ser primário do mundo é inútil. Não são as partículas mais do
que pacotes de energia, nem pacotes de energia mais do que as
partículas. Elas são o mesmo. O fato de que estamos mais
confortáveis com a idéia de que é partículas não é uma razão
legítima para que possamos tomar as partículas como
substâncias primárias e pacotes de energia como secundários.

198
A partir da discussão acima, podemos ver que, apesar de
Zhuangzi não fornecer uma teoria metafísica sistemática como
Aristóteles fez, no entanto, indicou uma metafísica alternativa.
Talvez a maior diferença entre Zhuangzi e Aristóteles sobre o
ser é que, enquanto Aristóteles vê as coisas como ser primário
ou substâncias, Zhuangzi não aceita a noção. Para Zhuangzi, as
coisas têm suas maneiras de ser. Uma coisa pode ser um "isto"
e um "aquilo". Apesar de "isto" ser uma maneira para que se
seja, ser um "aquilo" é uma outra maneira de ser. No entanto,
eles são maneiras diferentes para uma mesma entidade ser.
Assim, a partir desse ponto de vista, não é só o mundo um
mundo de diversidade, mas também o ser de uma entidade é a
diversidade. Uma coisa que podemos aprender com Zhuangzi é
abrir nossa mente para a diversidade do ser das entidades, e
permitir que uma entidade tenha tanto "isto" e "aquilo", e,
possivelmente, de várias maneiras, como seu ser real.

‘Um-Só’ contra a identidade ‘Um-muitos’

A Ontologia de objetos de médio porte de Zhuangzi, portanto,


pode ser chamado de uma ontologia aspectiva/perspectiva. É a
visão de que a identidade de uma entidade consiste em seus
aspectos, ou seja, suas formas de estar no mundo, e cada um
desses modos de ser é contextualmente situado e só pode ser
apresentado em perspectiva quando nos aproximamos dele. Por
conseguinte, a identidade de uma entidade consiste sempre em
uma síntese de suas diversas formas de ser. Esta ontologia é
compartilhada por filósofos chineses de várias escolas.

199
Mesmo os confucionistas, principalmente preocupados com
uma filosofia ético-política, manifestaram pouco interesse em
discutir a metafísica de entidades de médio porte, e
concordaram com Zhuangzi. Confúcio foi citado no Livro das
Mutações (Yijing) para dizer que "diferentes caminhos levam
ao mesmo destino" (Yijing–“Xici” B). Wing-tsit Chan
comentou:

A idéia de uma centena de caminhos para o mesmo


destino é uma expressão direta do espírito de síntese,
que é extremamente forte na filosofia chinesa. É a
versão confucionista da doutrina de Chuang Tzu
[Zhuangzi] de seguir dois cursos ao mesmo tempo.6

"Dois cursos" aqui, claro, não significa literalmente apenas


"dois". Podem ser mais de dois. Embora Confúcio não tenha
elaborado sua ontologia, a partir dessa afirmação, podemos
dizer que, no espírito, ele está de acordo com a ontologia de
Zhuangzi. Por exemplo, para os confucionistas, uma pessoa é
um filho, um pai, um marido, um professor, etc. Ser um filho
ou pai não é meramente uma propriedade em adição ao seu ser;
eles são partes de suas identidades; eles são seus modos de ser.
Sem esta ontologia, a teoria sócio-ética confucionista estaria
sem base. Esta ontologia estabelece uma base metafísica para
as visões de mundo de confucionistas, bem como para daoístas,
e afeta diretamente seus modos de vida.7

200
Notas

1.Como já foi apontado por diversos estudiosos, "substância" é


uma tradução enganosa para ousia. "Ser primário" parece ter
algumas vantagens em relação a "substância", mas como
"substância" tornou-se o padrão convencional (de tradução) de
ousia de Aristóteles, eu a uso de forma intercambiável.

2.Aristóteles usou o exemplo do boi nas Categorias (2b 22 28,).

3.Às vezes, Aristóteles parece acreditar que os objetos naturais


têm uma ontologia diferente de objetos artificiais (por
exemplo, Metafísica, 1043b 19-23). Mas quando ele fala sobre
a relação entre o indivíduo, a sua forma e sua matéria, ele não
mantém a distinção tão clara. A estátua, o bronze, e a forma
são seus exemplos favoritos para investigar a ousia. No seguir,
eu também uso exemplos semelhantes, embora o meu
argumento não dependa deles.

4.De acordo com a interpretação de Loux, Aristóteles afirma


que, além de ser um boi um pacote de carne e ossos, ele
também tem uma essência; é também um ousia primário. Esta
interpretação traria Aristóteles muito mais perto de Zhuangzi.
Mas parece que muitos comentaristas de Aristóteles
discordariam de Loux a este respeito. Ver Michael Loux
(1991), Primary Ousia: an Essay on Aristotle's Metaphysics Z
and H, Ithaca and London: Cornell University Press, Chapter 7.

201
5.Wiggins, David (1980). Sameness and Substance,
Cambridge, MA: Harvard University Press, 146.

6.Wing-tsit Chan (1963). A Source Book in Chinese


Philosophy, Princeton, New Jersey: Princeton University Press,
268.

7. Sob o título de "What-being: Chuang Tzu versus Aristotle"


Uma versão anterior deste artigo foi publicada em
Internacional Philosophical Quarterly (33,3), 1993: 341-353.

202
A RELAÇÃO ENTRE LINGUAGEM
E PENSAMENTO NA ANTIGA
EPISTEMOLOGIA CHINESA por
Jana S. Rošker
Na pesquisa atual, o debate sobre as dimensões
epistemológicas dos textos chineses e seu papel no contexto do
pensamento chinês tem se desenvolvido com sucesso cada vez
maior, sob a égide da redescoberta e aplicação das abordagens
metodológicas e categoriais específicas da tradição chinesa.
Este artigo irá fornecer uma visão sistemática das
características especiais que definem os discursos
epistemológicos clássicos chineses, os quais presumiam que a
percepção humana e compreensão da realidade estaria
enraizada em uma estreita ligação entre as estruturas
linguísticas e cognitivas.

Introdução

No período pré-Qin, a padronização da linguagem (e, portanto,


da percepção refletida cognitivamente) pertencia às tarefas
cruciais da filosofia clássica chinesa. A linguagem teve que ser
unificada de acordo com as normas sociais. Portanto, não é de
estranhar que a categorização elementar que define os
pressupostos essenciais e formais da epistemologia clássica

203
chinesa era intimamente ligados à questões relativas a
regulação da relação entre linguagem, pensamento e realidade.

Assim, de acordo com Chad Hansen (1989: 107-120), a teoria


clássica chinesa da linguagem oferece novos insights e uma
perspectiva distinta sobre a evolução dos discursos centrais
neste domínio.

Os paradigmas lingüísticos de Compreensão

Os debates sobre o papel da linguagem na percepção e na


compreensão do mundo foram determinadas pelo conflito entre
o confucionismo clássico e o moísmo ortodoxo, os primeiros
representando a defesa das antigas posições tradicionais,
enquanto os segundos defendiam abordagens mais utilitárias
(ibid. , p . 108). Em contraste com a posição de Confúcio
clássica, que foi formulada na Teoria de nomes apropriados
(正名 论) e que segue a concepção de que os nomes estão
implicados com a essência da realidade, a posição utilitarista
derivava da consciência sobre a relatividade da compreensão.
Assim como nós nunca podemos saber se as coisas que
percebemos são idênticas à realidade, também podemos nunca
ter a certeza se os significados que expressamos são realmente
entendidos da mesma forma a como eles foram destinados:

204
物 之 所以然 与 所以 知 之 与 所以 使人 知 之 不必
同.

As coisas como elas são, a compreensão destas coisas, e


a transmissão desta compreensão não são necessários
idênticas umas aos outros. (Mozi 2014, Jing xia : 110)

A reação a essas posições tradicionalistas e utilitárias dentro


antiga epistemologia chinesa expressou-se em dois pontos de
vista epistemológicos diferentes, mas que podem ambos serem
denominados como “uniformistas". Os fundamentos teóricos
da primeira abordagem foram estabelecidos pelo confucionista
Xunzi荀子(cerca de 230-310 AEC), e a segunda por seu
discípulo e fundador da escola legalista, Han Fei韩非 (280-233
AEC).

Embora Xunzi nunca tenha se distanciado abertamente da


escola de Confúcio, as posições que ele defendia não eram os
de um tradicionalista puro. E enquanto ele via sua
epistemologia como uma elaboração da teoria confucionista
tradicional do conhecimento, em termos qualitativos ela pode
ser considerada como uma nova reação às abordagens
tradicionais. A este respeito, Xunzi pode ser colocado entre os
precursores da teoria Legalista de conhecimento, que defendia
posições universalistas. A própria teoria de Xunzi, no entanto,
foi baseado em abordagens relativistas . Porque a linguagem
dependia de convenções sociais, ele sabia o quanto era difícil
escolher os critérios para a seleção de nomes. No entanto,

205
apesar destes pontos de vista, mesmo assim ele bruscamente
condenou o reformismo moísta, argumentando que o sistema
confucionista de padronização ainda era a melhor maneira
possível para garantir uma sociedade bem regulada e
harmoniosa. Ao contrário de Confúcio, ele não acreditava na
missão primária de uma linguagem ideal que incorporasse a
essência das realidades existentes, mas considerou nomes e
conceitos lingüísticos como meios meramente arbitrários para
expressar concretamente (objetivamente) realidades sociais.

Apesar desta diferença fundamental, por razões puramente


pragmáticas, ele continuou a defender a teoria confucionista de
nomes apropriados, convencido como estava de que os nomes
(ming 名) também transmitiam valores, servindo, assim, a
ordem social e, portanto, tinham de ser devidamente
padronizados. Xunzi também argumentou que a classificação e
categorização dos nomes não eram necessariamente tão difíceis
como parecem de primeira, os sentidos humanos perceberiam
diferentes realidades de uma forma estruturalmente muito
similar; portanto, essa semelhança fisiologicamente
condicionada serviria de base para a formação de convenções
lingüísticas comuns.

206
凡 同类 同情者,其 天 官 之 意 物 也 同;故 比方 凝 似
而 通,是 所以 共 其 约 名 以 相 期 也.

Todos os seres da mesma espécie, que possuem os


mesmos sentimentos, naturalmente, também possuem
os mesmos órgãos dos sentidos pelos quais eles
percebem as coisas da mesma maneira. Assim,
podemos nos comunicar através de comparações e
descrições. Isso também explica por que somos capazes
de estabelecer acordos universalmente válidos e comuns
sobre (a classificação dos) nomes (Xunzi 2014, Zheng
Ming: 5).

Esses contratos padronizados criam uma coordenação social


funcional - inclusive a conexão entre os atos humanos e
postulados morais possíveis. Nomes, portanto, tinham que ser
regulados de tal forma que eles poderiam servir as classes
dominantes como um instrumento formal para restaurar e
preservar seu poder político: foram precisamente estes
argumentos que, nas obras de seus seguidores, viriam a formar
a base para a epistemologia legalista que moldou a doutrina do
um dos governos mais totalitários da história chinesa.

O discípulo de Xunzi, Han Fei 韩非, um dos principais


representantes da escola legalista, desenvolveu uma filosofia
que combinava conceitos básicos das abordagens
tradicionalistas e utilitárias. Sua epistemologia, que foi baseado
nos conceitos de autoridade (wei 威) e vantagem (li 利),

207
representava um sistema unificado fundado na idéia do
absolutismo político. (Ver Han Fei 2014, Gui Shi: 1)

Posições opostas: contra a presunção de que a linguagem é


a base da compreensão

A segunda abordagem básica negou as funções positivistas da


linguagem. Esta abordagem também implicou em duas
correntes epistemológicas diferentes: a primeira foi pré-
linguística, e teve seu principal representante no taoísta Lao Zi
老子 (século 6 AEC), enquanto que a segunda corrente
encontrou o seu mais famoso expoente na confucionista
Mengzi 孟子(c. 372-289 AEC), que argumentou que as
estruturas lingüísticas não eram inatas (Hansen , 1989: 110-
111). Sua epistemologia moral foi igualmente baseada somente
na introspecção. No entanto, enquanto Laozi representou uma
corrente que pode ser definida como pré-lingüística, e embora a
escola taoísta diferisse de muitas das premissas básicas dos
ensinamentos de Mengzi, a negação da linguagem de Laozi se
assemelha a de Mengzi . Ambos sugerem que o
comportamento natural gerada por nossa constituição natural
exige o abandono da linguagem. Ambos aceitam a ação
natural, ou o comportamento gerado pela constituição natural
humana. Embora eles discordassem sobre a forma como estas
disposições naturais eram ricas e extensas, os dois estudiosos
compartilhavam a crença comum de que o comportamento
deve ser guiado principalmente pelo seu uso. (ibid.)

208
O Dao 道 de Laozi não foi restristo a qualquer tipo de estrutura
lingüística, e ainda representa o princípio cósmico básico e
também moral de tudo o que existe : 天之道...不 言 而 善 应.
‘O cósmico (Celestial) Dao não tem palavras e ainda assim nos
responde com bondade’. (Laozi , 2014,/73/, p.62)

Ele via o conhecimento (no sentido de virtudes de


aprendizagem) como uma espécie de pressão social que
impedia nossa espontaneidade natural. Na visão de Laozi, cada
conceito lingüístico é determinado pelo tempo e espaço, e
pode, portanto, representar apenas uma expressão parcial,
incompleta da realidade, que ele via como integral, dinâmica e
estruturada de forma holística. Consequentemente, a fim de
preservar a naturalidade da nossa existência, devemos retirar
todas as convenções, inclusive a da própria linguagem. Laozi
procurou, assim, um processo radicalmente diferente da
compreensão: uma introspecção não-linguística.

Para Mengzi, as qualidades inatas dos seres humanos (xing 性)


são naturalmente eliminadas para o bem. Assim, para ele, não
há necessidade de uma transformação da ignorância à
iluminação. Se um ser humano está em contato com nossa
verdadeira natureza, ele inevitavelmente vai agir para o bem.
(Allinson, 1989:17) Neste sentido, ele formulou a primeira
versão anti-linguística da epistemologia confucionista. Com
sua teoria, ele queria tanto refutar um dos princípios centrais da
teoria moísta, além de resolver (ou evitar) o problema central
da epistemologia de Confúcio, ou seja, a inserção de princípios
morais em padrões de comportamento através de interpretações

209
lingüísticas (Hansen, 1989: 110). Mengzi argumentou que a
linguagem não representava um sistema inato, e que continha a
essência das normas sociais adequadas que permitram as
pessoas viverem em uma sociedade harmônica (Mengzi, 2014
Gongsun chou shang: 2), pois ele acreditava que todas as
convenções tradicionais do confucionismo estão “inseridas” no
coração-mente humana. (ibid.: 111)

Análises lingüísticas

A próxima posição que influenciou decisivamente o


desenvolvimento de debates epistemológicos derivada das
abordagens analíticas baseadas em suposições isomórficas,
como defendido pelos representantes da escola Nominalista
(Ming jia 名家, especialmente Gongsun long 公孙龙, c. 284-
259 AEC), ou sobre o relativismo linguístico. Este último foi
elaborado por seguidores da chamada escola Neo-moísta
(Houqi Mojia 后期 墨家) através de um método de análise
puramente formal. No entanto, dois dos mais importantes
representantes da abordagem Nominalista de análise
lingüística, Gongsun long 公孙龙(c. 325-250 AEC) e Hui Shi
惠施 (c. 370-310 AEC), sustentaram visões fundamentalmente
divergentes sobre a relação entre nomes e realidades, com
Gongsun long argumentando que a construção ideal de uma
linguagem realizada ainda era de crucial importância, e que a
linguagem e a realidade social estavam inseparavelmente
ligados e eram semanticamente equivalentes, (Xiang Shiling,
2000:52), enquanto Hui Shi acreditava que os nomes (ming)

210
serviram de base para categorizar a realidade (ibid.: 51) , uma
posição que o colocou em oposição direta às teorias moístas.

Os argumentos de Gongsun Long foram fundados em cima da


premissa de Confúcio, de que a aplicação ideal da linguagem
foi baseada em uma congruência mútua completa do nome e do
objeto ao qual ela se refere. Apesar de sua postura idealista, ele
acreditava que a função crucial da linguagem permanecia a de
denominar a realidade. Esta é a hipótese que sustenta seus
principais argumentos sobre o tema, intitulado A disputa nos
Nomes e Atualidades (Ming shi lun 名實論).Com relação à
situação concreta em que a linguagem seria aplicada, cada
coisa única só poderia ter um significado único:

(主)曰: 求馬, 黃, 黑馬皆可致. 求白馬,


黃,黑馬不可至. 使白馬乃 馬也, 是所求一也.
所求一者, 白者不異馬也. 所求不異, 如黃, 黑馬,
有可有不可, 何也? 可與不可, 其相非明. 故黃,
黑馬一也, 而可以應有馬, 而不可以應有白馬,
是白馬之非馬, 審矣!

Gongsun disse: Se queremos um cavalo, isso inclui


cavalos marrons ou pretos. Mas se queremos um cavalo
branco, isso não inclui um cavalo marrom ou preto.
Suponha-se que um cavalo branco seja um cavalo.
Então, o que se quer (nos dois casos) seria o mesmo. Se
o que se quer for o mesmo, em seguida, um branco
(cavalo) não difere de um cavalo. Se o que se quer não

211
é diferente, então como é que um cavalo amarelo ou
preto às vezes é aceitável e, por vezes, inaceitável? É
claro que aceitável e inaceitável são mutuamente
contrários. Assim, cavalos amarelos e pretos são o
mesmo (na medida em que, se existem cavalos
amarelos ou pretos), podemos responder que existem
cavalos, mas não se pode responder que existem
cavalos brancos. Assim, é evidente que um cavalo
branco não é um cavalo. (Gongsun Longzi 2014:6)

Tal projecção é, evidentemente, um contraste com a aplicação


habitual de língua, para qual as pessoas tendem a usar nomes
diferentes para os mesmos objetos. Na linguagem cotidiana, os
significados das palavras geralmente se sobrepõem. Gongsun
Long tentou eliminar a sobreposição semântica, ou pelo menos
reduzi-la a um nível em que a linguagem ainda poderia ser
supervisionada e controlada.

Para os filósofos neo-moístas, no entanto, a sobreposição


semântica de termos diferentes era uma qualidade natural da
linguagem humana e, portanto, eles não viam necessidade de
eliminá-la. Eles estavam mais interessados na questão da
linguagem como um meio para categorizar a sociedade.

No entanto, dado que a complexidade variada da língua não


pode ser moldada em quaisquer estruturas reguladoras
confiáveis dentro de convenções lingüísticas, eles
reconheceram de facto a irrealidade da linguagem, concluindo
que uma padronização geral e válida da linguagem era
212
impossível. Em sua opinião, o indefinabilidade formal da
língua era, até certo ponto, uma parte de sua estrutura
intrínseca (Mozi, 2014 Jing Shuo xia: 103-140). Em vez da
busca incessante por definições das extensões semânticas de
termos, os Neo-moístas preferiam lidar com perguntas sobre
conexões causais. Eles não estavam interessados na construção
de uma linguagem ideal, conforme expresso na teoria dos
nomes; em vez disso, focaram em análises lingüísticas, o que
os levou a conclusões diametralmente opostas às idéias de
Gongsun long e aos antigos pontos de vista de Confúcio sobre
a relação entre nomes e realidades. Estas análises levaram a
concluir que as conexões entre certos nomes individuais (ming
名), eram simplesmente entendidas como entidades arbitrárias
de linguagem, de multiplas camadas e incoerentes. Enquanto
alguns termos compostos poderiam abraçar escopos semânticos
que se estendiam para além de todos os significados parciais
dos mings individuais (ou seja, as entidades linguísticas de que
foram compostos), em outros casos, o oposto era verdade
(ibid).

No entanto, os fragmentos de suas análises que sobreviveram


não contêm qualquer descoberta significativa que vai além do
reconhecimento ou o reconhecimento da natureza inconsistente
de estruturas lingüísticas . Assim, ao contrário de Gongsun
Long, as investigações não foram destinadas a estabelecer
alguma forma de teoria lingüística universal que poderia
unificar modelos divergentes de aplicação da linguagem. A
premissa fundamental de seu trabalho foi a de que as formas
formais de nomeação não poderiam abraçar a integridade

213
complexa da existência, como se refletia na realidade. A
linguagem nunca poderia alcançar, e muito menos ir além da
existência real; conseqüentemente, as características objetivas
da realidade automaticamente determinavam e limitavam as
estruturas da linguagem, e, portanto, a nossa aplicação de
construções e expressões lingüísticas: 夫辭以故生, 以理長,
以類行 ‘Expressões surgem devido a algumas razões. Elas se
desenvolvem (crescem), de acordo com as regras (leis) e são
aplicadas de acordo com as categorias (tipos)’. (ibid., Daqu:
25)

No entanto, isso não significa que a linguagem era


exclusivamente um produto de convenções sociais arbitrárias.
Apesar de sua importância fundamental, a única tentativa Neo-
moísta para estabelecer uma base formal linguística para essa
noção pode ser encontrada em sua análise da distinção clássica
entre identidade e diferença (tong yi 同异, ibid , Jing Shuo
shang: 88, 89).

A questão aqui é o problema da relatividade essencial desta


distinção no que diz respeito a diferentes contextos: a diferença
entre dois antípodas não é de modo algum mais constante do
que, por exemplo, a diferença entre as noções de grandeza e
pequenez, ou comprido e curto. De um ponto de vista realista,
isso pode aparecer paradoxal, e esse paradoxo seria formulado
e analisado por Hui Shi, um filósofo Nominalista que era o
mais próximo dos discursos taoístas. Os escritos de Hui Shi,
que segundo a tradição eram tão volumosos que eles poderiam
"encher mais de cinco carros", (Zhuangzi, 2104 Tianxia: 7) ,

214
foram totalmente perdidos, e hoje ele é conhecido apenas por
seus "Dez Postulados", que são citados na famosa obra taoísta
de Zhuangzi. Estes postulados, que foram complementadas por
uma série de paradoxos, têm atraído muito interesse nos
tempos modernos por causa de sua semelhança com
acontecimentos simultâneos na filosofia ocidental,
especialmente os famosos paradoxos do filósofo grego Zenão
de Eléia (cerca de 495-425 AEC). Por meio dessas suposições
aparentemente paradoxais, Hui Shi tentou situar o problema da
identidade e da diferença no contexto da relatividade holística.
Através de sua exposição de contradições, pelas quais ele
mostrou os limites das extensões semânticas de certos
atributos, ele quis demonstrar a relatividade do tempo e do
espaço, expresso nos nomes (ming), aplicados em diferentes
contextos.

Uma de suas contribuições mais significativas para a


epistemologia clássica da análise linguística é o seu comentário
sobre o problema geral da identidade e da diferença, que os
representantes da escola neo-moísta não foram capazes de
desenvolver a uma conclusão concisa (ibid.). Ele alegou que
quaisquer duas coisas eram sempre diferentes em alguma coisa,
não importa o quanto eles eram equivalentes em todos os
outros aspectos (caso contrário, não poderia representar duas
entidades separadas). No entanto, mesmo duas coisas que
pareciam completamente diferentes eram igualmente idênticas
em pelo menos uma qualidade, uma vez que eram as duas
partes de uma estrutura unificada (caso contrário, não seria
possível expressar, ou até mesmo considerá-las no âmbito da

215
língua). O relativismo ‘constante’ de Hui Shi foi, naturalmente,
uma resposta ao realismo Neo-moísta, que foi fundado em
cima de distinções formais como uma pré-condição necessária
para a compreensão. Como seu 11º paradoxo indica, a obsessão
Neo-moísta com definições também era redundante (ibid). Sua
categorização de identidade e de diferença, ou da relatividade
absoluta de objetos, portanto, baseava-se na impossibilidade de
definições conceituais da realidade, uma vez que cada
compreensão linguística foi necessariamente limitada a um
sentido contextualmente determinado que era incapaz de
abarcar todas as dimensões do objeto de compreensão.

A relatividade da Compreensão

Hui Shi, contemporâneo de Zhuangzi (século 4 AEC),


encontrou claramente em suas opiniões radicais um importante
estímulo para o seu próprio pensamento, e foi, sem dúvida,
influenciado por ele a elaborar seu próprio sistema
epistemológico. Para Zhuangzi, porque o conhecimento é
infinito, a capacidade humana de compreensão era muito
limitada para nos permitir ganhar qualquer conhecimento real:

吾生也有涯, 而知也無涯. 以有涯隋無涯, 殆已.

Minha vida tem um limite, mas o conhecimento não


tem nenhum. É perigoso usar o que limita para buscar o
216
que não tem limites. (Zhuangzi 2014, Yang sheng zhu:
1).

Assim, para ele, a compreensão é sempre algo relativo (ibid.,


Jiwu lun: 11). Como resultado, estamos perdidos em um
labirinto de reconhecimentos reais e falsos. Mas esta situação
aparentemente trágica é atenuada pelo fato de que não temos de
enfrentá-la sozinha, pois todas as pessoas estão ocupadas
lidando com questões sobre dominar a nossa realidade e,
portanto, com questões de natureza indefinida da nossa
existência:

人之生也, 固若是芒乎? 其我獨芒, 而人亦有不


芒者乎? 夫隨其成心而師之, 誰獨且無師乎?

Tem sido a vida humana sempre uma confusão como


essa? Como eu poderia ser a único confuso, e outros
homens não estarem confusos? Se um homem segue seu
próprio espírito e faz com que seja seu professor, então
o que ele poderá sersem um professor? (ibid. Jiwi lun:
3)

E já que são determinadas pelas limitações dos nossos sentidos,


nós naturalmente tendemos a reconhecer a verdade naqueles
tipos de reconhecimentos que acontecem para coincidir com os

217
nossos próprios sistemas de valores (ibid, Yu Yan: 1). Assim,
em última análise, é a subjetividade humana que determina o
que deve ser considerado como o verdadeiro conhecimento. A
aparente objetividade e independência da mente humana tem
sido repetidamente provada como sendo falsa, uma quimera
ilusória, que só leva ao auto-engano. A qualidade, as
características e a extensão de nossa percepção são sempre
determinadas pelas condições reais de nossa existência. Por
isso, nossas percepções - e as ações delas decorrentes - são
sempre dependentes de fatores externos, mesmo que, em última
análise, toda forma de dependência é, na verdade, uma forma
de auto-dependência. Tal dependência e determinação estão
ligadas a nossa incapacidade de reconhecer a essência do ser
(ibid., Jiwu lun, 13).

Esta posição relativista foi comum a Hui Shi e Zhuangzi. Mas


seguindo a tradição do taoísmo clássico, Zhuangzi também
acreditava na inexpressibilidade inerente à essência holística de
todo ser. Isso o levou a abraçar o método taoísta clássico de
compreensão, ou seja, a introspecção (ibid.: 5). Deste ponto de
vista, ele tentou criar uma nova abordagem para o problema
complexo de interações humanas (ibid.: 9). Para ele, a
interiorização da linguagem é um processo inerente à natureza
humana, assim como comer, beber e respirar, como qualquer
outra condição de nossa sobrevivência (ibid.: 4). No entanto, a
conexão incerta entre linguagem e pensamento não é uma via
de sentido único (Allinson, 1989: 11) e , de fato, o potencial
comunicativo da linguagem foi preso na estreita ponte entre o
transmissor e o receptor. Portanto, Zhuangzi vê a linguagem

218
como inseparavelmente ligada à compreensão; em essência, as
suas qualidades são as mesmas (Zhuangzi, 2014 Jiwu lun: 2).
Assim como o Dao em sua função de fundamento original, a
abrangente essência de todos os seres, assim como o nosso
reconhecimento a este caminho original, a própria linguagem
também é absoluta no sentido de unidade de todas as
contradições de que a compõem (ibid: 12).

Zhuangzi mostrou pouco interesse pelos problemas que


ocuparam a maioria dos filósofos do seu tempo, isto é, os
problemas de conexão diferentes, as mentes individuais em
uma unidade compreensível. Ele, evidentemente, acreditava
que os problemas de intersubjetividade não foram impostos
sobre nós a partir do exterior; ao contrário, ele viu-os como
resultado de nosso ser preso em padrões de ambições
socialmente determinados. Nós nunca poderíamos dominar
nossos destinos por intervenções contundentes na integridade
de tudo que existe, nem por distinções artificiais e falsas, nem
por avaliações absolutas; a existência humana não estava
subordinada a poderes externos, os poderes superiores
poderiam ser controlados por meio de compreensão (ibid.: 3).

219
Conclusão

Como vimos, os antigos filósofos chineses elaboraram visões


específicas e detalhadas de linguagem, e sua conexão com a
percepção e interpretação do mundo humano. Eles souberam
principalmente lidar com o design, implementação, análise,
caracterização e classificação de nomes (ou conceitos) e sua
relação com realidades. Na China antiga, esta atenção ao
conteúdo semântico levou a peculiaridades fundamentais no
desenvolvimento de inferências que também teve um grande
impacto sobre o desenvolvimento da lógica clássica chinesa. O
fato de que os antigos pensadores chineses focaram no
conteúdo ao invés de forma, é a principal característica que
define a especificidade de tais discursos chineses. Fragmentos
de tal raciocínio também podem ser encontrados na lógica do
grego antigo, especialmente nas obras de Aristóteles, embora
eles não fossem ser desenvolvidos dentro da tradição européia
de lógica até o início do século 20, com o surgimento de novas
teorias na filosofia da linguagem. Assim, a relação estreita
entre estruturas linguísticas e padrões de pensamento pertence
às características centrais que definem a natureza específica da
teoria tradicional chinesa de compreensão.

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Qin and Han. http://ctext.org/zhuangzi (15.02.2014).

222
REFLEXÕES GENEALÓGICAS E
CIRCULARES SOBRE A
FORMAÇÃO DO PENSAMENTO
CHINÊS ANTIGO por Jesualdo
Correia

天地不仁,以萬物為芻狗

Céu e Terra não são bondosos, as dez mil coisas lhes são como
cães de palha!

Lao Zi, Daodejing, III.

大道廢,有仁義

Perdido o Grande Dao, surgem a benevolência e a justiça!

Lao Zi, Daodejing, XVIII.

O período anterior ao da passagem da dinastia Shang (商朝),


ou Era Yi (殷代), para a Zhou (周朝) - cerca de 1056-50 AEC-
é visto por alguns sinólogos como aquele durante o qual se
consolidam os alicerces civilizacionais do Império do Meio, e
será em meados dessa nova dinastia, a partir do período

223
conhecido como Primavera/Outono (春秋時代, 771-476 AEC)
que se edificará, com a emergência de um logos em expansão,
a codificação da visão de mundo da China clássica e o
essencial daquilo que conhecemos hoje de seu pensamento. Tal
período representa também, no plano político, o início do
multisecular processo de desmantelamento, gradual e
inexorável, daquela ordem dinástica. Quando esse período
atinge os primórdios de seu futuro apogeu epistêmico, na era
de Lao Zi (老子) e Confúcio (Kung Zi, 孔子), a época que se
segue, a dos Estados Combatentes (Zhangguo), testemunhará a
proliferação de inúmeras escolas de pensamento (“As Cem
Escolas” – 諸子百家, zhuzi baijia) consolidando e codificando
assim uma ampla representação de mundo, um
Weltanschauung sínico, com uma sedimentada visão filosófica,
ontológica, jurídica e de statemanship, provida de rico
repertório de matizes. Tal arcabouço epistêmico resistirá ao
sobe e desce das dinastias e só será de fato transmutado, como
uma completa nouvelle ordre pelo renversement ocasionado
pela Revolução Comunista liderada por Mao Ze Dong, quando
ocorre então uma mutação de paradigma nunca vista antes na
história chinesa. A época que se prolonga a partir do período
Primavera/Outono até a emergência da China unificada, com o
colapso total dos Zhou, presencia, por conseguinte, a irradiação
de um vasto espectro de idéias, num perímetro de excepcional
magnitude, e cujos pressupostos - é importante que se enfatize
-, provinham da visão matricial de mundo, arcaica e antiga, em
curso desde pelo menos os Shang. Os mitos inaugurais da
China, que são poucos, a saber aqueles que constituirão o
alicerce de seu Weltanschauung, emergem a partir da

224
convergência de alguns poucos aspectos fundamentais das
propensões inatas ao ethos daquelas comunidades que por fim
haviam se unido sob a égide de uma ordem dinástica cuja
historigrafia mítica situa à altura do começo do terceiro milênio
anterior à Era Cristã, na dinastia denominada Xia. Contudo, de
credibilidade histórica, há de ser nos bronze datados o mais
recuadamente dos séculos XVI e ou XV AEC, e nas inscrições
em cascos de tartaruga (甲骨文), que haveremos de extrair um
bom número de informações sobre as práticas sociais. Trata-se
de um legado puramente oral que há de se presupor, sem que
contudo se possa asseverar. Asseverados são, portanto, os
monumentos literários do período Primavera/Outono em
diante, quando terá sido consolidada a feitura de uma série de
textos-fontes - em particular o Shi Ji (詩 經), Anais Poéticos, o
Shu Ji (書經), Anais Históricos, o Zuo Zhuang (左傳),
Crônicas da Margem Esquerda, e, não menos, as várias
descrições de códigos dos Cerimoniais e Etiquetas, o Li Jing
(禮經) entre elas -, do arcabouço dos quais muito da
construção filosófico-moral confuciana e, de resto, da China
como um todo, será erigida. Confucio, em prol de sua
campanha filosófica pelo soerguimento moral de uma dinastia
que lentamente se esfacela, portanto num período de
decadência dinástica e de guerras contínuas, usará os
fundamentos desses textos para edificar sua visão ética dos
assuntos do mundo, idealizando míticos períodos pretéritos da
história antiga chinesa como modelos ideais de conduta. De
certo que o grande historiador da China, Sima Qian, cerca de
700 anos depois, haveria de se referir e compilar muito de
quase todos esses registros em sua monumental Memórias
225
Históricas, Shiji (史 記). Lao Zi, tornar-se-á o protagonista
emblemático de um logos filosófico a ser designado como
Daoismo, tendo em Zhuang Zi seu coadjuvante maior, seguido
de Li Zi, com menor grau de originalidade, e um considerável
número de outros pensadores. Confúcio, o outro expoente
filosófico maior daquela época, o pensador por excelência do
Estado e da família, o restaurador de uma sabedoria antiga
vista por ele como exemplar e em decadência, representa com
sua obra e seus discípulos a outra vertente, o outro pé vetorial
do tripé-fundamento do pensamento chinês, a terceira sendo
aquela que lhes antecede e em parte norteia: o Yi Jing.

O Yi Jing, ou Zhou Yi, é sem dúvida a referência-fonte, sobre a


qual se apóia a dimensão mágica, metafísico-filosofal chinesa,
seja por seu aspecto oracular, pela riqueza de suas metáforas e
exemplos de sabedoria, seja ainda, mais especificamente, pela
dialética subjacente às suas démarches expositivas. A partir
dessa visão que lhe é própria, e em torno da sua periferia,
oscilará praticamente toda o trimilenar percurso da mente
chinesa. O arranjo dos 64 hexagramas atribuido ao rei Wang no
início da dinastia Zhou, a partir dos 8 Trigramas originais,
constitui talvez o evento intelectual mais marcante dessa
transição, um aggiornamento epistêmico que abrirá caminho
para um logos sínico vindouro. Ocorrera então uma mudança
dinástica na plena acepção do conceito clássico chinês de
revolução (ge ming), a extirpação, a retirada, destituição do
Mandato Celestial (tianming) do regime anterior para ser
reenvestida em outro soberano, acompanahada por todo um
espectro de substituições, desde os jargões oficiais, no linguajar

226
político, nos cerimoniais , datas de ritos e rituais, nos
simbolismos, nas cores imperiais... O logos chinês, essa
rationale emergente, irá paulatinamente sendo ordenado ao
longo dos próximos séculos, tipicamente em concomitância
com a proverbial paciência chinesa, tanto estigmatizada no
Ocidente sob o moto da letargia do “Império Imutável”. Mas
será sobretudo no século VIII AEC, como vimos, quando das
primeiras rachaduras da hegemonia dinástica, em meio a bélica
hybris de vários Estados que buscam soberania, que se
consolidariam os feitios dos vários registros que se tornam
canônicos. Terá início então o Período conhecido como
Primavera/Outono e a capital da dinastia se vê compelida a
mudar para parte ocidental, cada vez mais ameaçada a leste. A
rigor, embora em termos formais só venha a colapsar em 221, a
dinastia Zhou já se encontra seccionada a altura de 722 a.C, e
deixará praticamente de existir em 249. Passada a época e Lao
Zi e Confúcio, a profileração das escolas filosóficas – paralela
à exacerbação da realidade política do lento declínio da
dinastia Zhou -, provocará o surgimento igualmente de um
pensamento normatizador, de uma escola de tendência
legisferante, que embora venha a hostilizar o caráter
conservador do Confucionismo, preserverá muito do Daoismo:
a escola legalista, cujo expoente é maior Han Fei e que se
tornará doutrina de Estado quando da grande unificação que
ocorre em 221 AEC

A visão inaugural

227
O propósito desta reflexão é o de situar a genealogia e alguns
dos fundamentos e vertentes daquilo que constitui os
fundamentos do pensamento chinês, determinar seus
pressupostos e evolução até a altura do colapso da dinastia
Zhou e emergência da China Imperial, num primeiro momento
com os Qin e logo a seguir, plenamente dinástica, com os Han.
Este pensamento, cujos elementos genéricos e particulares
dizem respeito a um conjunto de traços-procedimentais
cognitivos, axiais, de vários modi deductandi com recorrência
aos paradigmas ancestrais (o conceito Dao, 道, a visão
cosmogônica inaugural da criação transposta para a polaridade
geométrica das linhas yi e yang, inteiras e partidas, relação do
não-ser com o ser e as “dez mil coisas” (wang wu) daí
decorrentes, a visão tripartite – céu, homem, terra – entre
outros, o recurso ao modelo de trânsito mão-dupla dos
universais aos particulares (visão micro e macro que se
intercorrespondem ) e certa tendência prudente ao
nominalismo. Assim, se no caso da Índia a forte pegada
metafísica, absolutista ou nihilista, impregna tal postura
existencial de maneira radical, no Império do Centro ela tendeu
a estabelecer um compromisso entre a bonheur ôntica com os
imperativos cívicos que a visão cosmológico-filosófico-social
das injunções de suas duas correntes tidas como maiores –
Daoismo e Confucianismo -, proporcionam, outorgando
idealmente ao Rei-sábio, sob a outorga do Mandato Celeste, ou
Junzi (o “homem superior“, no período clássico tardio ) o
duplo papel de sábio na esfera dos negócios do mundo (tianxia)
e harmônico em relação a si e a natureza, respeitador da ordem
cósmica, tanto por parte do Confucionismo como, por outro

228
lado, no Daoismo o telos esotérico do xian (“imortal”) ou do
zhen ren (“homem verdadeiro”), a partir das prescrições do
inventário de práticas psicosomáticas da alquimia interna (nei
dan). Esta ordem institucional que mais tarde emergirá, dotada
cada vez mais de uma “burocracia celestial” (Étienne Balazs),
do lado exotérico, confucionista ou legalista, se proporá a
servir de modelo referencial para a história subsequente do
país, tendo como pano de fundo o arcabouço emblemático de
uma sabedoria contida naquele tripé ao qual me referi mais
acima. Esta sabedoria será lembrada e citada a partir de um
repertório de máximas, exemplos históricos ou míticos, receitas
do agir e farta ritualidade nos cerimoniais e procedimentos.
Através do refinamento que o domínio dos clássicos é suposto
de propiciar – verificado pelos exames imperiais – haveriam de
ser aperfeiçoados os “funcionários e magistrados”, ou seja, essa
dupla situação de gestores exemplares das coisas do reino e de
sábios praticantes de diversos misteres, o ru shi que o ideal
confucionismo haveria de sedimentar. A visão inaugural,
própria do gênio da civilização chinesa, endógena e sui generis
até que a história ou a antropologia cultural possam provar o
contrário, é alegoricamente ilustrada pelo mito do proto-sábio
Fuxi, segunda o qual ele, num momento de inspiração e
insight, olhou para o céu (ou seja, considerou os fatores de
anterioridade e perenidade das leis cósmicas atuantes sobre a
condição humana e a natureza), olhou a seguir para a própria
natureza em suas transformações e apreciou então a condição
humana. Dessa visão, ternária, haveria ele de conceber uma
representação geométrica de linhas inteiras e partidas; o
revezamento criativo entre dois princípios antagônicos e

229
complementares, yin/yang. Para a mente pragmática do gênio
chinês, a anterioridade é situada num momento zero, no Não-
Ser, a partir do yin evolui o yang e que, acoplando ao seu
oposto yin (mas não inteiramente oposto) faz surgir o fruto, o
terceiro elemento e a partir daí as dez mil coisas (wang wu).
Sobretudo o Daoismo beberá proficuamente desse esquema e o
Daodejing o explora abundantemente em várias direções.
Havendo sido forjado, por conseguinte, desde os primórdios,
esse Weltanschauung de tamanha simplicidade, coerência e
eficácia, pouco espaço seria ensejado para a eventual
multiplicação de fabulações cosmogônicas, de politeismos ou
dogmáticos monoteísmos, ganhando com isso o processo de
sedimentação de sua rationale precocemente. É bem verdade
que o Daoismo popular geraria um bom número de variantes
mitológicas e a penetração posteriormente do budismo,
igualmente em sua variante popular, um pequeno panteão de
divindades, embora nada de nuclearmente tão significativo em
termos de permanência como substrato histórico hegemônico.
Tout court: tal disposição cognitiva original, e a eficácia com
que tais princípios opera sobre a mente do homo sinicus,
contribuirá significativamente para consolidar a visão de
mundo e os fundamentos de seu pensamento.

Hu Shi, em sua seminal, embora algo precariamente elaborada


obra sobre o desenvolvimento da lógica na China antiga (The
Development of the Logical Method in Ancient China, 1922),
usa como ponto de partida de sua démarche expositiva um
episódio da história da filosofia chinesa que talvez caiba aqui
ilustrar. Assim é que Zhu Xi, (1129-1200) da extraordinária

230
dinastia Sung, afirmava, nas pegadas do Confucionismo, que
em tudo existe uma razão e que se a mente se projetar
continuamente sobre as razões das coisas ela poderá ampliar a
consciência cognitiva infinitamente. Séculos mais tarde, o
importante pensador Wang Yangming (1472-1529) irá se
rebelar contra esse dispostivo lógico. Para Wang esse acúmulo
cognitivo progressivo é prolixamente pernicioso e dispersivo, o
importante sendo retormar o esvaziamente que retorne a uma
espécie de mente original, a um conhecimento intuitivo inato
ao ser, e não à mente como construção das representações.
Trata-se de despertar esse potencial. Quando Zhi Xi e Wang
Yang Ming decidem, a uma distância de mais de 300 anos, que
discordam quanto a modalidade do tipo de razão
neoconfucionista que advogam, eles estão concordando com
algo que é, uma vez mais, bastante peculiar à mente chinesa, a
saber, o caráter psicológico, e por assim dizer humanistico, de
suas posturas e objetivos filosóficos. Wu (coisa) que é o termo
do Neoconfucionismo e shi (objeto, pragma, na acepção latina
) constituem a centralidade de suas preocupações, e não os
procedimentos lógico-epistemológicos a rigor, ou a observação
da natureza na mesma modalidade científica em que nós a
conhecemos. Uma vez mais atuou ali o caráter pragmático da
mente chinesa. Essa digressão foi feita aqui de modo a ilustrar
certa tendência recorrente no pensamento chinês, o que enseja
não menos a que recoloquemos a famosa pergunta de Jacob
Needherland, o sinólogo e editor da monumental History of
Science and Technology in China: por quê a China não
continuou avançando em seu pensamento científico de modo a
seguir ultrapassando o Ocidente, ela que, em em tantas áreas,

231
fora precursora? O que fez com que em certos períodos de sua
história epistemológica ou tecnologica uma restauração
filosofal ou paradigmática freasse um avanço que certamente
teria ultrapassado o Ocidente mesmo na Renascença, se apenas
plenamente estimulado e açulado, tal como ocorre na China
atual? Portanto, esse comprometimento, com um escopo bem
definido e que buscava como eterno ideal uma sabedoria
operativa ao nível ôntico e institucional, profundamente
conservador em certos aspectos, fez da China um país
recorrentemente daoista e Confucianista à la fois, “mesmo que
nunca houvesse existido um Lao Zi ou Confúcio”, parodiando
aqui a máxima de Nietzsche em relação a Hegel. Tal índole,
inclinada à manutenção piramidal de poder de sua classe
dirigente, não poderia propiciar àquela inquisitiva mente um
deslocamento contínuo em direção à ciência - apesar de seu
imenso potencial cognitivo, ainda que paradigmaticamente
coibido para tal -, avanço tecnologicamente inovador, mas
perturbador em suas consequências, o que responde aqui talvez
à pergunta clássica do Needham. De certo que os paradigmas
cognitivos, tais como uma obstinada tendência a criar uma
hermética, embora ampla, correspondência entre o micro e o
macro a partir de um esquema rígido de conjuntos mais
numerológicos do que factuais: os cinco elementos, os cinco
sons, os aromas etc., etc. E então, esse extraordinário potencial
que não precisou tolher ou sacrificar pensadores por força de
dogmas ou nas fogueiras da Inquisição, teve em si mesmo o
freio que o conteve rumo a ciência tecnológica. Embora bem
mais solidamente provido de registros históricos,
razoavelmente bem confirmados, e herdeiro de uma herança de

232
anais, a China partilha com a Índia o penoso dilema filológico
da atribuição de autoria e, de resto, eo ipso, de toda a
problemática dos estemas, para sequer falar de edições
princeps, pois seria aqui um fantasia. De tal forma temos pouca
certeza quanto à integralidade e veracidade das autorias dos
textos, desde a mais alta antiguidade, passando por aqueles
atribuídos a Confúcio, ou quanto aos capítulos seja de um Lao
Zi, de um Zhuang Zi ou Han Fei, que os chineses, à exemplo
das cópias em arte, passaram a fazer espírito de bon gré mal
gré ao seu legado. Em parte tal postura se dá em função da
própria precariedade filológica a ser encontrada nessa área, de
certo, mas também trata-se de algo próprio ao pensamento e
metalidade chinesas, a saber, a individualidade não possui a
mesma conotação de absoluta exclusividade, importante sendo
sobretudo o conteúdo que tende sempre a ser visto como um
acúmulo de conhecimentos e interpolações que são
emblematicamente referidos a este ou aquele autor. Assim
sendo, sempre subsitiram as problemáticas filológicas de
autoria, seja em relação ao Yi Jing ou Shu Jing e correlatos,
seja ainda aos “clássicos” atribuídos a Confúcio e até mesmo
ao textos mais recentes, já na dinastia Ming. Por outro lado,
quando aqueles registros se asseveram como legados, de
maneira a se tornarem posteriormente incontestes, a saber, a
partir dos séculos IX-VIII AEC, tornar-se-á possivel observar
(histórica, e mesmo filologicamente), que os mesmos
procedimentos de avaliação das questões de Estado, dos
assuntos da guerra e das funções inter-classes giram em torno
da mesma mindset que haveria de predominar até a grande
passagem da queda do regime feudal e a unificação da China

233
em 221 AEC E tal eixo-modus de percepção de mundo
permanecerá vigente por cerca de 30 séculos, incluindo os dois
grandes períodos de dominação externa, seja a dos mongóis, na
dinastia Yuan, seja dos manchus, na Qin, até por fim desabar
sob o impacto de uma nova ordem, a saber a da Revolução
Comunista, que se estende ainda mais em sua radicalidade no
período atual da história chinesa guiada pelo choque profundo
das formas do saber científico-recnológico ocidentais do
capitalismo com suas tecnologias de ponta. Mas se as relações
sociais e a estrutura do Estado, sofreram transformações
mutacionais, seguidas da absorção de novos paradigmas
cognitivos nos modi da pesquisa científica, onde métodos
cognitivos ocidentais passaram a substituir quase (eu disse
quase) que por completo, o imperativo das correspondências
holisticas do macro com o micro da visão tradicional, em áreas
que vão da física à astronomia, da química às taxonomias das
ciências naturais, entre outras – o esquema mais profundo
chinês de visão holístico-intuitiva de mundo não abriu mão de
seu legado ancestral, conseguindo preservar enfoques
bifurcados em várias áreas, da geopolítica e da medicina. A
passagem do século VIII ao VII na China antiga corresponde,
grosso modo, à passagem da Grécia heróica e mítica para a
Grécia pré-clássica, na virada do século VI para o V, quando
começa a emergir um logos ordenado por crescente
despojamento das impregnações míticas, em favor de uma
rationale filosófica e político-estatal. De certo que a derrocada
dos Zhou orientais em (725 AEC) acarretou um primeiro
choque geopolítico de vatícinicas proporções, o qual se
manifestou já na própria mudança da capital tradicional dos

234
Zhou, até o reordenamento das funções públicas, recomposição
de alianças e urgentes adaptações à nova realidade política e
econômica que emergia. A partir desse momento as sementes
de uma espécie de proto-iluminismo à la chinoise já poderiam
ser cada vez mais visíveis. Trata-se do início de um longo
período de amplíssima reflexão sobre o Ser, o indivíduo e o
Estado que se extenderá por séculos, radicalizando-se
sobremaneira com os tumultuosos confrontos do período dos
Estados Combatentes, que tem início por volta da morte de
Confúcio. Neste período formativo de um pensamento chinês
propriamente dito, que situo aqui a partir do início do período
Primavera/ Outono, é sobretudo do Yi Jing, com seu farto
material de condensação de saber, com seu enfoque mágico-
pragmático e lógico-metafórico - mais do que dos exemplos e
receitas contidas nos vários cânones da época-, que os grandes
princípios filosóficos – provindos desde lá de trás pela tradição
oral milienar - de aplicabilidade seja à vida pessoal, seja ao
comportamento nos negócios do Estado, serão doravante
extraídos. As próprias imagens dos trigramas superpostos,
evocando imagens da natureza e seus atributos, deverão servir
de fios condutores para a práxis por metáforas de princípios, as
regras e receitas para práxis ôntica e social. Ora, se uma
rationale dessa natureza tornar-se-á canonizada por um
expoente-pilar do pensamento chinês, Confúcio, em sua
expressão mais apolínea e rational do status quo, retificando
nomes (zhen ming) de modo a edificar um padrão de civismo
cujas relações interfamiliares sejam axiais, então estará sendo
consolidada uma recorrência epistemológica fundamental com
implicações por toda a história da China, até que tal modelo

235
entre em crise, mais de mil anos depois, vítima de suas
contradições e em relação à realidade circundante. Tal será o
caso, em particular, com o colapso da dinastia Sung face aos
mongóis e depois de novo, com a Ming, face aos manchus,
quando não apenas o enfraquecimento da virtude dinástica é
progressivo e sua força bélica diante do inimigo externo
reduzida. No caso da queda da dinastia Ming, não se haveria de
negligenciar a crise epistêmica que se instala face a
superioridade tecnológica que a empresa mercantil colonialista
gera através dos conhecimentos científicos levados pelos
missionários jesuítas. A consciência da inevitabilidade de
adaptação aos novos saberes tornar-se-á uma urgência, mas
haverá a princípio uma multisecular morosidade para se
adaptar a ela, problema cuja solução seria resolvida pelo Japão
da Era Meiji, em meados do século XIX, antecipando-se assim
à China do vindouro movimento social de Sun Yat Sen e da
revolução Mao Zedong no século subsequente.

Representação, forma, idéia- xiang/xing

Dentre os conceitos nucleares provindos da matriz do Yi Jing,


inicialmente apenas como um esquema dicotômico de
percepção da realidade, mas já altamente filosófico em seu
potencial, o da “imagem”, xiang, posteriormente em
alternância com xing, “forma”, merece especial destaque. A
idéia central da metáfora, a ser extraída das imagens, das
analogias, e dos paralelismos é reflexo dos conteúdos
visualizados, absorvidos empiricamente pelos “rudimentares”

236
procedimenti cognoscenti. A metáfora que é trazida à tona,
curta e direta, arcaica, seja nas imagens abstratas toscas, seja
naquelas provinda dos fenômenos da natureza e extraídas das
profundezas da experiência da vida no campo, constitue o
arcabouço epistêmico desse livro inaugural. A imagem da água
reprezada em algum lugar, sem se escoar ou evaporar, propicia
uma cesta de informações sobre aquilo que é contrário ao fluir
da vida e representa um momento de estagnação nos assuntos
do império ou na vida pessoal do consulente. O pássaro que
voa, instiga a que se considere a possibilidade de criar um
dispositivo semelhante ao de suas asas, a folha que flutua, uma
embarcação, a pedra que adquire velocidade cada vez maior ao
rolar montanha abaixo enseja uma compreensão das leis da
física, mas também a criação de um caracter que evoca a idéia
de empuxo crescente, momentum, e preponderância – shi,
título do quinto capítulo do Sun Zi Bingfa. Esses
procedimentos de apreensão e representação da realidade serão
pouco a pouco fundamentados em variantes cognitivas
aprofundadas e explicitadas nos moldes do gênio e
idiossincrasia da lingua. A altura de Mozi (Mo Tzu ou Modi),
contemporâneo e contestador de Confucio, já existe em curso a
construção de um sistema lógico, do qual procedimentos de
inferência serão desenvolvidos pelo Mohismo posterior.
Banidos em parte pelos Qin, mas retomados a partir dos Han e
mais plenamente resgatado quando da penetração da do
Budismo, essa corrente ainda é tida por emblemática das
origens do pensamento lógico chinês na primeira fase do
período plenamente clássico. De certo que o impacto causado
mais tarde pela epistemologia budista, através seja da radical

237
dialética negativa do Madhyamika, seja sobretudo pela lógica-
epistemológico do Yogacara (cuja vertente mais psicológica foi
adaptada ao espírito chinês pelas bravas e idiosincráticas
traduções feitas por Xiang Zang), haveria de produzir uma
marcante influência sobre aquilo que poderíamos chamar de
um sistema epistemologico chinês mais amplo. Mas tal
influência budista só haveria de ocorrer a partir do século III da
Era Cristã (e sobretudo nos séculos VI e VII), não
sobrevivendo muito além da dinastia Tang, ainda que residual e
subrepticiamente presente nas dinastias posteriores e algo
ecoante até hoje. O peso sui generis das idiosincrasias e das
limitações sintáticas da lingua desempenhou sempre um
intergiversável e insofismável papel na construção das idéias e
das tendências aos modi cognoscendi, mas também certa
barreira à absorção de idéias exógenas, sendo a famosa querelle
filológica dos Ge Yi (“equiparação dos sentidos”) em torno dos
problemas de tradução dos textos budistas, provenientes do
sânscrito, testemunha eloquente dessa dificuldade nos
primódios do período medieval. Mas tal assertiva de
intransponibilidade de sentidos não pode ser de modo algum
mantida como absoluta, visto que na era atual ocorreu uma
transposição desobstruída das idéias ocidentais em chinês
moderno, agora já plenamente provido do recurso de dois ou
mais caracteres para traduzir conceitos e uma expandida
sintaxe, se aqui e ali artificial ao gênio da lingua. Muitos
conceitos científicos adquirem mesmo maior expressividade
quando de suas traduções em chinês moderno. A tradução do
Finnegans Wake, de James Joyce, constituiu uma temerária
mas respeitável prova disso. Assim sendo, a crítica que Marcel

238
Granet faz, de maneira a meu juizo excessivamente radical,
quanto a inadaptabilidade conceitual da lingua, foi de fato
precipitada para um sinólogo da sua envergadura (La Pensé
Chinoise, 1934). A propensão à exegese, à ortodoxia e, por
conseguinte, à escolástica à la chinoise, passou a cristalizar-se
como outro traço marcante do pensamento chinês, latente no
auge do período clássico e adquirindo plena eclosão a partir da
dinastia Han em diante. Para tal haveria sobremaneira de
contribuir aquela ïmutável e conservadora classe de “buracratas
celestiais”, os mandarins. Cronicar, repertoriar, classificar,
dispor, organizar hieraquicamente a partir de taxonomias
heterodoxas... tudo isso constitui formas de exegese, maneiras
de ordenar o mundo, a partir sobretudo de suas próprias
realidades, de suas “coisas em si, de seus vários dao(s). A
mente chinesa e o pensamento decorrente de seus vários topoi
cognitivos estiveram sempre inclinados, por outro lado, a certo
pragmatismo, o que implicava uma tendência a um
reducionismo, ao circunscrever os conhecimentos do universo
das representações à sua pragmaticidade, ôntica ou
institucional, a um dexterous modus operandi, optando-se essa
ou aquela fórmula que o hegemon do Zeitgeist ou da corrente
de pensamento predominante considerasse como a que melhor
impacto teria, a se tornar emblemática da eficácia operacional
visada. O universo das representações, em seu vasto espectro,
tenderá portanto à minimização, às máximas de saber –
prescrições, adágios dos cânones ou da sabedoria popular,
conceitualização, enfim, imagens operacionais de sentidos, de
tudo que genericamente seja representável pela imagem –
xiang ou pelo conceito nomeado, ming Da ampla visão de

239
mundo proporcionada pelo Yi Jing, um dado modus
cognoscendi haverá de exercer radical influência sobre a
formação do pensamento chinês, conferindo-lhe certo senso de
medida (metron), de harmonia entre as partes constitutivas,
sintonia da dinâmica das sutis passagens, dos eternos fluxos e
mutações. Esse pragmatismo sábio advém em parte do
imperativo da decisão a ser tomada, postura a ser assumida de
acordo com as indicações metafórico-guias, assim como do
julgamento por extensão dos mesmos, do aconselhamento
hieraquizado quanto a qual decisão deve ser tomada – ainda
que nenhuma -. e é interessante aqui não menos notar, que o
caracter que mormente é traduzido como Julgamento/juízo,
duan (斷) evoca em seu étimo á idéia de cortar, romper e, como
bem nos lembra Hu Shi, decidir vem do latim de-cidere (cidere,
cortar). Um ato de decisão, de resolução quanto ao um
direcionamento implica em cortar entre as opções de um
recorte da “realidade “oferecido pela imagem (xiang, 彖) do
trigrama/hexagrama (gua), uma de-cisão. Tão profundamente
haveria esta noção de princípios-guias (li) de se alojar nos
arquétipos dos modi cognoscendi e da visão de mundo do
chinês, que tal ensejou no ethos uma incômoda contradição:
por um lado, a mente chinesa tenderia à não-ação por força
inerente de sua postura de ascendência daoista do wei-wu-wei
(deixar que se faça algo sem que se faça algo, laisser-faire) o
que evoca e constrói a imagem de um chinês irresoluto, que se
encaixaria na perspectiva temporal da China Milenar e
Imutável; por outro, a mente chinesa estará sempre tendente à
opção que se afirma em função do Dao da situação. Portanto, e
cabe aqui enfatizar que essa opção maior, oferecida

240
hierarquicamente pelo hexagrama e por sua imagem, o é por
força da emergência preponderante de uma linha em ascensão
no interior da situação, uma linha que prepondera, que está em
status crescendi – shi! Este é o Dao da situação e o consulente
deverá se adaptar a ele, ao Dao que o hexagrama e a sabedoria
de seu julgamento descreve e presceve, e não aos ditames de
suas propensões de ego. Assim sendo, a matriz cognitiva
provinda e pervinda desse cânone inaugural, incorpora e
encapsula, convergentemente, vários outros elementos do
pensamento chinês: imagem original/arquetipal, força
emergente preponderante, a opção pela decisão maior,
hierarquizada, e a sintonia com o dao das coisas na situação em
particular. Tudo isto está girando em torno, e gravitando sobre,
um mundo de situações em curso, em movimento (dong).
Como um todo, toda essa operação oracular-cognitiva envolve
um tipo de percepção, de natureza intuitiva e paulatina a um só
tempo. Interessante notar que o percurso semântico do caracter
zhi - saber e sabedoria, composto (hui yi) construído com o yue
de “dizer” subposto a zhi “conhecer”, “saber”: o saber superior
que advém de um insight, que passa semanticamente a ter esse
sentido em Lao Zi e Confúcio, deslocando-se assim de sua
acepção antiga e arcaica que implicava a idéia de habilidade.
Uma vez mais aqui, numa sutil passagem semântica, a
indicação de que o “saber-fazer“, a habilidade do
conhecimento, sempre foi de crucial importância para a mente
pragmática chinesa. Não caberia aqui, por restrições de espaço
adentrar os labirintos do universo de correspondências entre os
planos do macro e do micro, das interrelações complementares
entre os elementos e os astros, entre as cores e os numeros,

241
entre os sons e os odores, tal como tão fartamente ocorre com o
modus complementarista dessa visão de mundo,
prescritivamente pré-dispostas, típicas das peculiaridades
cognitivas do pensamento chinês. Essa visão estrutural – e não
menos aqui e ali estrturalista - de mundo receberá, sobretudo
em sua paideia, um choque de oitava, um renversement de la
base, um aggiornamento de paradigma exatamente à altura do
colapso da era dos Estados Combatentes, quando da
implantação de uma nova ordem imperial com a dinastia Qin,
num curto primeiro momento, e a seguir, consolidadamente,
com os Han. Os resíduos adjacentes da antiga religião agrária,
com sua plêiade de deuses e divindades da natureza, de
oferendas e invocações a serem buscadas de modo a atingir um
summum bonum harmônico, visando à manutenção da ordem
própria aquela visão de mundo, o Dao maior, será agora
gradativamente substituída por um novo paradigma de práticas
religioso-populares, por um novo panteão de divindades
preponderantemente daoistas. Trata-se de uma passagem
semelhante em importância política e institucional àquela dos
Shang para os Zhou. O hegemon Qin uma vez consolidado
permite emergir um novo hegemon em termos de filosofia
política e política de estado.

Respaldado em parte pelas variantes do daoismo dito filosófico


(daojia) e refutando ferozmente o conservadorismo
confucionista dos letrados, a sabedoria popular poderá agora,
com o colapso da ordem feudal-senhorial, fazer emergir uma
sabedoria popular religiosa descrita genericamente como
daojiao, O Daoismo religioso! Se o legismo radicalizará um

242
pensamento jurídico e institucional fazendo com que a
realidade social seja definida e prescrita, a ontologia daoista se
aprofundará cada vez mais no conhecimento do corpo como a
realidade do microcosmo, dotado de uma imensa topografia,
campos de força, reservas energéticas, canais, palácios, centros
de gravidade. E este amplo universo interior será agora
povoado por um novo conjunto mitológico de entidades e
divindades, a serem nutridas, cultivadas e reverenciadas. As
novas práticas, num plano mais elevado, visam ao retorno do
status embrionarius da respiração, à implementação de dietas
alimentares regeneradoras e à imortalidade do yogin daoista,
um daoshi que almeja se tornar não apenas um zhenren (um ser
inteiro e verdadeiro) mas também um xian (o imortal),
"ideograma" composto de montanha e homem, para esse
deverá seguir, tal como o sanyasin hindu na última fase de vida
(puruSArtha) – de modo a se abrigar da banalidade do mundo.
Essa emergência do daoismo será agora irreversível, mesmo se
o confucionismo também retornará a cena política e
institucional de maneira não menos profunda e irreversível. A
escola dos legistas (fajia, 法家) emergirá no século IV AEC e
já se amplia como ideologia dos Qin ao longo da segunda
metade do século III AEC. Han Fei, que originariamente
representava uma corrente depurada do confucionismo, contra
o qual ele se rebelará, for a não menos profundamente
influenciado pelo daoismo e constitui a figura emblemática
dessa corrente. Do estoicismo de Mo Zi, ele retirará também
seus elementos de lógica e mesmo de sofística e passa a
incarnar, às vesperas da unificação sob os Qin, o profundo
desideratum do inconsciente coletivo político chinês no sentido

243
de resgatar uma ordem jurídica nos nos negócios de uma China
que se autoflagelava cada vez mais turbulenta e
esquizofronicamente. Han Zi, apenas mais tarde conhecido
como Han Fei Zi, cairia contudo em desgraça, por intrigas de
Li Si, o futuro poderoso ministro do imperador Qin, Shi Huang
Di ( 始皇帝秦) e viria a se suicidar na prisão em cerca de 233,
sem haver por conseguinte ter visto sua visão de mundo tornar-
se a ideologia dominante da nova China. O pensamento de Han
Fei (韓非) era bem mais profundo e rico do que aquilo que dele
foi feito como ideologia de estado, um legalismo seco e
despótico, caracterização que em parte correspondente a visão
cristalizada por um confucionismo ressentido. De certo que se
poderia genericamente falar de um tripé axial, a saber o
ordenamento jurídico Fa (法), portanto leis e princípios, um
método de articulação dos assuntos de estado, ou uma filosofia
administrativa shu (術) e a legitimidade terrena e celestial, shi
勢) do imperador. O Confucianismo, com sua visão
conservadora representará um obstáculo, retrógrado e
nostálgico de um passado idealizado, para a nova raison d´état
do futuro novo regime. Urgia depurar o Estado dessas forças
que preservariam o espírito da ordem feudal, desfechar um
golpe sobre elas, o que seria feito com decretos de banimento e
perseguição, assim como com a apreensão e queima de seus
escritos. Desde cima, o Imperador/governante precisa “ser
visto” como aquele que rege de acordo com os princípios mais
elevados e sublimes da sabedoria e em concordância com um
conjunto de leis “imparciais”, investido que é pelo Mandato
Celestial e provido de sua virtude (De, 德), que ele emana de si

244
como soberano, atributos que devem servir ao Estado e para
todos os súditos. Tais princípios legais deveriam portanto
passar a disciplinar a vida do estado e dos súditos. Não haveria
mais o sistema feudal, constituído de leis extremamente
severas para os crimes do povo, e um código de regras e de
ritos particulares para as classes superiores. Mantinha-se
contudo à concepção de um Imperador absoluto, quase
divinizado e para tal Qin Shi adoptaria o título duplo de
Augusto (huang) Imperador (di). Esse novo ordenamento
jurídico baseia-se em sua necessidade e fundamentação no
conceito legalista de eficácia (kong-yong). As leis passam a ser
o parâmetro regulador, do mesmo modo que os ritos o eram
antes para Confúcio. O momento de unificação político-
territorial da China, em 221 AEC, representa a consolidação de
uma passagem, uma revolução plena na qual os alicerces da
antiga ordem feudal dos Zhou haveria de ter seu mandato
celeste extirpado (gen) e uma nova ordem imposta. Mas se a
antiga civilização chinesa havia acumulado, já à altura dos
Estados Combatentes, um imenso saber em várias áreas, em
algumas outras esse pensamento permanecia ainda muito
incipiente, fosse em geografia, astronomia ou em matemática
avançada. A penetração de novos conhecimentos vindos do
exterior através das rotas comerciais, da civilização iraniana, da
hindu, grega ou mediterrânea, haveria de dar um pouco mais de
concretude a alguns desses saberes, embora muito
cursoriamente ao que se saiba. Da influência indiana teve lugar
uma ampliação das noções de matemática e de astronomia, a
qual se encontra hoje razoavelmente bem atestada pelas
pesquisas que o orientalismo produziu e, mais especificamente,

245
pela monumental obra de Jacob Needham. O pensamento
chinês que se estrutura multiplamente a partir do período
Primavera/Outono, e que se estenderá por todo o período
clássico, esvazia e reduz muito da original visão de conjunto,
holística, monadica e asincronicamente hieraquizada, das
estruturas mais antigas transmitidas pela tradição oral.
Certamente que tal ocorre por força do logos normatizador que
se afirma. De certo que a formulação do conceito de Dao, que
ocorre em Lao Zi, já é uma perda do verdadeiro sentido
estrutural original, e nisso concordam vários sinólogos
contemporâneos. As taxonomias típicas da China antiga,
bizarríssimas em termos dos arranjos das categorias– se
pensarmos em Aristóteles ou Lineu como paradigma- e
propensas a esquemas hierárquicos de correspondências
micro/macro, têm por referencial um universo de mônadas
percebidas em função dos elementos internos de suas eficácias
e devem ser aqui referidas emblematicamente como um dos
traços marcantes do modo chinês de pensar.

Céus anterior e posterior e a dicotomia das almas

Portanto, a passagem do céu anterior dos Shang para o


posterior na dinastia Zhou, concomitante com suas gradações
cada vez mais individualizantes, ou seja, com o logos chinês
depurando-se de uma dimensão preponderantemente mítica,
metafífica, holística e normatizando-as cada vez mais em
abordagens filosóficas (as “Cem Escolas”) faz com que o
próprio conceito do Dao sofra, em sua acepção mais

246
cosmogônica, um aggiornamiento filosófico, perdendo em
plenitude.,como já aludimos mais acima. O mesmo se dá com a
noção do Qi, que de sua plena expressão de pneuma cósmico,
passará a ser explorada pelas várias abordagens
psicosomáticas, e não menos pela medicina. Haverá agora uma
segmentação cada vez maior dos qi(s), um orgânico, próprio ao
ato sexual da concepção, do acoplamento do esperma com o
óvulo, ligada a alma bo; um do momento do nascimento, um qi
astral ligado a alma superior, huan. A alma bo é pressuposta de
retornar à terra quando da morte, ao passo que a huan, astral,
perdurará por mais tempo, dependendo de seu teor de
cristalização, sob a forma de gui (poltergeist, por vezes ) até
que se dissolva de novo no espaço cósmico. Mas em tudo isso,
daquela visão original, advinda dos tempos arcaicos e depois
cada vez mais adaptada e investida de novos nomes e às novas
formas das representações (ming, xiang/xing) ocorria uma
subsequência, respeitando a noção polivalente e multipolar de
vários planos hierarquizados. É deste arcabouço mais profundo
que advém a visão chinesa de multipolaridade, hoje vigente na
geopolítica chinesa. É fácil para o chinês ter essa visão,
fortemente arquetipal, porquanto seu pensamento nunca tendeu
a estratificar-se em monoteismos rígidos e tampouco em
politeísmos. E existe, em tal visão de mundo, um
extraordinário senso de liberdade de consciência, no qual as
restrições episódicas que sistemas como o legalista possa ter
pontualmente constrangido. Na visão do céu anterior que vai
sendo modificada pela emergência do logos no período dito
clássico, o mundo e o seu gerador precípuo, o cosmo, possui
uma gramática própria e cabe aos homens seguir,

247
hierarquicamente, seus protocolos de correspondências, através
de procedimentos ritualísticos, cerimoniais e outros tantos, da
vida campestre à social. Esse substrato de ritos/rituais e
convenções apropriadas permanece ainda hoje, ainda que
transubstanciados e sublimados, De novo, em suas
modalidades anteriores ou atuais, tais procedimentos e práticas
visam à eficácia. Como o pensamento chinês, em suas linhas
mais intrínsecas, não previlegiava a supremacia dos planos da
epistemologia, ainda que precaria e secundariamente tenha
imanentemente formulado variantes (com a dialética daoista e
em Mo Zi, particularmente), ocorreu algo como um certo senso
instintivo em relação às discontinuiades epistêmicas, uma
desconfiança inata de que epístemes vigentes no Zeitgeist eram
apenas aquelas que tornaram-se hegemônicas, não sendo
definitivas, tendo lugar portanto um contínuo processo de
descontinuidades. Os chineses antecipavam-se a Foucault em
mais de dois milênios, ainda que apenas pregnantemente.
Portanto, a visão de conjunto, holística do céu anterior,
transforma-se, adapta-se, transubstancia-se pela afirmação
múltipla do logos, quase da mesma forma em que tal passagem
ocorrera na Grécia dos pré-clássicos para os clássicos. De fato,
o “Meio Constante” (zhong yong), um dos textos atribuídos a
Confúcio, constitui uma eloquente expressão desta
característica maior entre os chineses, e encontramos
expressões desta consciência em praticamente todas as escolas
e em todos os pensadores. Para o chinês, o ideal como telos não
deve ser buscado, ultima ratio, nos planos metafísicos, como se
inclinam os hindus, nem tampouco na glorificação da condição
central do anthropos, como o faziam os gregos. É na integração

248
com o mundo e as leis da natureza que este equilíbrio mental,
físico e mesmo mágico, deve ser alcançado.

O posicionar-se no centro significa um oscilar contínuo, de


maneira espiral, uma espécie de tênue dialética de absorção dos
elementos do contrário que prepondera, num dado corte
sincrônico (pessoal ou histórico), asseverar as
correspondências mais inequívocas – ou supostas de o serem.
Este processo cognitivo que ocorre por absorção circular,
através de um tênue jogo dialetico cujo sujeito (ou o sujeito do
discurso que representa qualquer formulação de conhecimento)
evoca a intergiversibilidade das imagens de uma circularidade
interrompida (evocada pela caligrafia daoista), solicita uma
linguagem psicológica e gestual de neutralidade, de
impessoalidade, um observador neutro profundo que sonda
oscilante nos interstícios e não através dos espelhamentos de
superfície. Enseja também enfoques lúdicos, tais como o weiqi,
o “xadrêz” chinês, mais conhecido como Go, termo japonês.
Conclusão Sem dúvida alguma, mais do que qualquer outra
civilização, a chinesa tem mantido nuclearmente intacto, ao
longo de vários milênios, o eixo epistêmico de sua visão de
mundo não obstante as influências e incorporações provindas
de várias fontes exógenas. Essa visão primordial, esse
esquema-paradigma de percepção de si mesmo e do mundo
exterior, cristalizou na mente do homo sinicus um espaço de
manobra cognitiva incomparável e fez com que, a diferença de
outros povos, não se tornasse ele submisso a dogmas e
fundamentalismos que o teriam sujeitado a um bitolamento
existencial, talvez beyond any help.

249
Quando um filósofo moderno diz que toda palavra é já um pré-
conceito e toda definição uma limitação, ele está fazendo eco a
uma passagem emblemática inicial do Daodejing: (“aquele”)
Dao que for definido como Dao não é o verdadeiro Dao. Tão
ampla e lúcida é a consciência filosófica chinesa antiga quanto
as limitações das palavras, das definições... tão plena sua
consciência dos vários universos cognitivos (e dos princípios
de incerteza) que se adjacenciam como mônadas em
descontinuidades de hegemonia epistêmica (talvez Foucault
tenha bebido aqui) que o eixo de se pensamento estará desde
sempre irremediavelmente liberado dessa aflição. O Dao, são
muitos dao(s), pois infinitas são várias “coisas em si” que estão
para além e para aquém das imposições do problemático,
ilimitado e limitante pensar humano, de suas projeções e
intencionalidades subjetivas e não menos de suas
circunstanciais assertivas científicas. Nomear para o chinês, ou
seja outorgar com um caracter pleno de carga semântica e
semiótica alguma coisa é ato de temerária importância e por
isso o pensamento chinês se abstém tanto quanto possível de
fazê-lo. Aqui prevalesce a máxima do oráculo de Delphos: oute
legei, oute criptei, 'alla semanei... “não diz, não oculta, mas
(apenas) significa...” Quanto mais se nomeia tanto mais será
prescrito, formatado, outorgado e mesmo vaticinado. As
camadas subterrâneas, os labirintos interligados dos processos
cognitivos do pensamento chinês escapam ao domínio do
visível e podem apenas ser “captados” nos interstícios dessas
démarches de apreensão de si mesmo e do real, quase que por
osmose. A visão inaugural tríplice, mítica e emblematicamente
descrita em torno do personagem Fuxi, estabeleceu um

250
paradigma que tudo abrange, o mundo sendo visto como o
resultado da interpenetração de três planos: o céu (leia-se : a
procedência cósmica, assim como as leis que influenciam a
vida orgânica, estações do ano, cristalizações dos tipos
psicológicos, etc), a terra e sua vida orgânica, seus ciclos, suas
leis de contínuas recorrências e transformações, e o homem,
cingido entre essas duas influências maiores e por aquelas que
sua prática social vai nele incorporando através de idéias e
ideologias. O Dao que será explicitado, aludido e metaforizado
pelo logos do pensamento filosófico, muito particularmente
pelo empuxo do Daoismo como escola de pensamento, estará
em verdade restringindo aquela visão inaugural, amplíssima,
recolhendo dela pelo pensar e a pela linguagem que o permite,
um quantum explanável ou alusível, que é de resto o que o
étimo de logos, procedendo de legei, evoca. Ming, substantivo
e verbo, denota aquilo que tornou-se nomeado, restringido por
um significado, em meio a vários outros significados possíveis
ou mesmo contrários. As palavras chinesas articulam seus
significados dentro de contextos semânticos, mônadas de
adjacências semióticas. Tal fato propicia e exige que se as
compreenda por modulações e recorrer ao dicionário e pinçar
essa ou aquela definição da primeira entrada do verbete é, em
chinês clássico sobretudo, extremamente falacioso. Contexto,
instância e circunstância constituem a condição prévia para a
compreensão do que quer que esteja sendo dito ou descrito.
Portanto, para o pensameno chinês antigo, o território do não-
nomeado, o daquelas áreas da percepção intuída e visualizada,
mas não ainda formulada, é de importância primordial e não
era e não deveria ser suplantada pela limitação das

251
formulações. Assim era a visão primordial do Dao e quando as
escolas filosóficas que o descrevem, analisam e esmiuçam sua
natureza surgem e se multiplicam, muito de sua imanência já
está se esvaindo. Enfaticamente emblemática é portanto a
primeiríssima passagem do Dao Dejing, tal como
canonicamente passou a posteridade: Dao ke dao fei chang dao,
“o Dao que puder (ser descrito, definido, analisado, etc ) como
Dao não é o Dao constante!. É como se Laozi estivesse
alertando que, a partir daquele momento de formatação da
comprensão desse conceito antigo - daquela visão ampla e
simples das coisas do universo e do mundo -, haveria agora
uma impossibilidade em definí-lo, tema principal de seu livro.
Paradoxo extraordinário, axial e típico do pensamento chinês.

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255
O PENSAMENTO CHINÊS
DURANTE A DINASTIA HAN por
André Bueno

Geralmente desconsiderado no tocante a evolução do


pensamento chinês, o período da dinastia Han 漢 (-206 +221)
mostra-se, na verdade, incrivelmente fértil e fundamental para
a estruturação da filosofia chinesa. Alguns fatores são
importantes para este tipo de construção errônea: uma
tendência, por exemplo, é dos autores focarem somente o
processo das transformações políticas ou espirituais da época
como algo importante, desconectando-as da evolução de um
pensar crítico. Kaltenmark afirmou:

A Dinastia Han não se distinguiu pela originalidade dos


seus filósofos, mas é um período importante porque o
confucionismo se torna então a doutrina oficial do
Estado Imperial, e assim permanecerá até o fim do
século 19. As outras escolas filosóficas desapareceram,
a exceção do daoísmo, que ficou a ser praticamente a
única rival da escola dos letrados (Filosofia Chinesa,
1979, p.52)

Pois

256
efetivamente, o confucionismo ortodoxo dos Han já não
era o mesmo dos tempos dos Qin: tinha sido
contaminado pela teoria do Yin e Yang e dos Cinco
Elementos e mais ainda pelas teorias de Zouyan” (idem,
p.53).

J. Gernet, igualmente, insiste em que “A época dos Han assiste


ao triunfo de um tipo de pensamento que parece ter sido
aplicado sobretudo à interpretação dos presságios e às ciências
ocultas” (Mundo Chinês, 1974, p.151), e “Aos olhos dos
homens desta época, os clássicos, obras veneráveis de uma alta
antiguidade, obras de sábios eminentes, parecem conter uma
sabedoria secreta e a sua interpretação só pode ser feita por
escolas de especialistas que transmitem de geração em geração
o seu sentido oculto” (p.154).

A análise destes dois grandes sinólogos, tomados como


exemplo, poderia justificar uma leitura superficial sobre a
produção intelectual deste período, mas devemos proceder com
cuidado. Inicialmente, podemos detectar um primeiro problema
nestas duas críticas, que se constitui na contraposição teórica
entre o período Zhou 周(quando surgem as grandes linhas do
pensamento chinês) e Han. Os autores tendem a imaginar uma
descontinuidade entre o momento em que surge a filosofia
ética chinesa (com Confúcio 孔子, Laozi 老子, Mozi 墨子, etc,
a partir do século -6) e o período dos Han, posto que não se

257
preservam (ou ao menos, assim parece) as diretivas
fundamentais das escolas antigas. Ora, sabemos que estas
classificações foram criadas pelo historiador Sima Qian, no
século -1, com fins de preservar determinadas linhagens
sucessórias de mestres e idéias, mas em absoluto tais categorias
eram totalmente fechadas. Prova disso é o fato de dois dos
maiores autores legistas, Hanfeizi 韓非 e Lisi 李斯, terem sido
discípulos do confucionista Xunzi 荀子, antes de migrarem
para a corrente de Shang Yang 商鞅 e Shen Buhai 申不害.
Esta possibilidade de diálogo e transição quebra,
automaticamente, um segundo ponto nas análises usuais sobre
o pensamento na época Han: a questão da sua evolução.

Os autores ocidentais têm uma forte tendência a projetar, sobre


a história asiática, contextos ou problemas específicos de sua
própria tradição. Podemos tomar como exemplo a contínua
tentativa de caracterizar o pensamento da antiguidade tardia
romana como uma “decadência” do pensamento ocidental, em
relação aos tempos gregos ou ao auge do império romano.
Somente aqueles que estudam este período de perto conseguem
compreender os aspectos de mudança e transição que eles
englobam (como a adoção de elementos germânicos, a fusão
com o pensamento cristão, etc), adquirindo uma visão
diferenciada sobre as condições especiais em que se deram tais
transformações. O mesmo pode ser dito sobre os sinólogos que
se debruçam sobre o período Han: sua primeira tentativa é de
aplicar uma grade interpretativa que não visualiza, de imediato,
as tendências próprias do modo de pensar chinês. A filosofia
chinesa tende naturalmente a um processo sincrético, posto que

258
nasceu a partir de uma série de discussões relativas ao mesmo
corpo de conceitos (o que seria o Dao 道, ou Via, método? e
Sheng 聖, sabedoria? , etc.), e a atitude dos pensadores Han em
manter as linhas de debate principais não escapava a isso.
Como bem afirmou W. Morton, “Os chineses jamais pensaram
que, para manter uma crença, é necessário excluir outras, e o
período Han foi marcado por grande ecletismo” (Morton,
1986). Em segundo lugar, negar estas transformações ocorridas
na filosofia chinesa seria negar, igualmente, a capacidade de
evoluir e adaptar-se as novas exigências intelectuais e sociais
da época, contrariando a própria atitude crítica da interpretação
histórica.

Logo, a dinastia Han deve ser vista mais apropriadamente


como um momento em que a retomada dos debates intelectuais
e científicos enseja a formação de uma nova mentalidade
filosófica, que buscaremos apresentar, em linhas gerais, no
seguir do texto. Marcado por um processo inovador de fusões
múltiplas, o pensamento chinês ganharia contornos inéditos em
sua própria forma, alentando de modo inequívoco sua
vitalidade criativa.

O Panorama Geral

Mas há que se compreender as razões pelas quais tanto


Kaltenmark, Gernet e muitos outros autores desenvolveram
suas visões sobre o pensamento Han. Notadamente, a dinastia
Han passou por um surto de desenvolvimento técnico e

259
científico, exemplificados na difusão do papel, da bússola, na
invenção do sismógrafo e da esfera armilar (estas duas últimas,
criações de Zhang Heng 張衡, morto em +132, que ainda
adaptou sua esfera com representações do cosmo a um
mecanismo hidráulico, que lhe proporcionava movimento
contínuo, regulado por uma clepsidra). Tais criações não se
devem apenas ao gênio inventivo ou a curiosidade dos
pesquisadores, mas a uma bem estruturada teoria científica que,
desde a época dos Zhou, articulava a produção e a pesquisa dos
intelectuais chineses. Esta teoria articulava as concepções do
sistema Yin-Yang com a regra dos Cinco Agentes (Wuxing
五行, que na cosmologia chinesa seriam terra, fogo, água,
metal e madeira) cujo conjunto de relações determinava o
processo investigativo da natureza.

Obviamente que os autores ocidentais preferem negar o valor


destas teorias enquanto algo real, e por conta disso assentam-
lhe a pecha de “esotérico”. Daí a razão pela qual um autor
como Gernet se presta a uma análise desfavorável do período,
entendendo o que poderia ser uma legítima “ciência chinesa”
como pura prática mística. Do mesmo modo, a associação
destas teorias com as outras escolas (o que aponta novamente
para um processo de diálogo, e não de exclusão entre elas)
demonstra uma tentativa válida de co-relacionar as recentes
descobertas naturalistas com o pensar ético e sociológico da
sociedade. Sua relação com a política, portanto, tal como
analisada em Dong Zhongshu (que veremos adiante) é um
desdobramento, e não a causa central. Determinar de outra
maneira uma análise do pensamento Han seria fatalmente

260
incorrer no erro dos maniqueísmos históricos. Quando os
autores Han estavam falando de política, tinham uma clara
consciência do que estavam fazendo.

As iniciativas intelectuais

Um dos primeiros autores a se destacar neste panorama


intelectual dos Han foi Lujia 陸賈, autor de um livro chamado
Xinyu 新語 (Novos Diálogos). Lujia era um dos principais
conselheiros do primeiro imperador Han, Liu Bang 劉邦,
depois chamado de Gaozu 高祖. Uma certa ousadia lhe
granjeou este posto junto ao imperador: quando questionado
sobre como deveria se governar um império, ele teria
respondido com uma frase que se transformou em um dos mais
famosos epítetos confucionistas: “pode-se conquistar um
império na sela de um cavalo, mas não se pode governá-lo em
cima dela”. Lujia preocupava-se antes de tudo em compreender
historicamente os motivos que levaram os Qin 秦 a derrota, e
de que modo os Han poderiam construir uma nova sociedade a
partir disso. Suas teorias centram-se numa conjunção de
elementos confucionistas e daoístas, apresentando os primeiros
indícios do que seria o ecletismo Han. Neste trecho, por
exemplo, Lujia argumenta sobre uma das razões da queda de
Qin:

261
[Quando] Qin Shi Huangdi estabeleceu punições e pôs
em prática todo o tipo de penalidade para os mais
diversos tipos de crimes [...] também construiu a grande
muralha ao longo da fronteira com os bárbaros com a
ordem de preparar-se contra o povo Hu. Ele enviou
expedições punitivas contra grandes Estados, e anexou
os pequenos Estados. Sua autoridade sobre o povo
alcançava todo o mundo, e seus generais despachavam
tropas em todas as direções para trazer os Estados
estrangeiros a sua submissão. Meng Tian atacava os
desordeiros, Lisi administrava as leis. E assim mesmo,
mais ações atingiram o império, mais problemas
surgiram, mais leis foram feitas, um numero maior de
maldades foram produzidas [...] A Dinastia Qin falhou
porque não atingiu o meio apropriado de governar,
baseando-se exclusivamente em leis e punições duras.
No entanto, o Ser superior põe ênfase na prática da
generosidade sob sua proteção, e age de acordo com o
Caminho do Meio para angariar o apoio do povo.
Assim, o povo o respeitará por sua autoridade, e será
influenciado pelo seu exemplo. Eles aceitarão a virtude
como o guia por toda a terra, ajudarão a administrá-la e
nunca se oporão ao governo (cap. 4).

Lujia entende, aqui, que uma conduta moral, pacífica e virtuosa


é necessária para a ordenação do território, mas que tal deve se
dar sem uma interferência atuante por parte do Estado. Fica
claro que seu ideal de sociedade era um tanto confucionista

262
(pela necessidade de manter uma hierarquia e uma estrutura
administrativa, bem como de dar o exemplo moral), mas as
condições para sua execução deveriam aceitar o preceito
daoísta de uma “não ação” (wu wei 無為) consciente, sem
forçar os limites do povo (o que constituiria o erro fundamental
dos legistas de Qin).

Em torno de -150 -160, outro autor iria reforçar os pontos de


vista de Lujia. Jiayi 賈宜, autor do livro Xinshu 新書 (Novas
Recomendações) debruçou-se também sobre as questões
políticas, buscando compreender a melhor maneira de
administrar o império e evitar uma crise generalizada, tal como
a que afetou a China no final do período Qin. Jia yi enfatizou a
obrigação que o governo tinha em promover o maior número
de benefícios possíveis ao povo:

Quando um Estado está estável ou instável, isso


depende do povo: quando uma lei é seguida ou não, isso
depende do povo; a nobreza dos oficiais e a honestidade
das pessoas depende do povo; [...] somente um governo
devotado ao povo e um povo devotado ao governo
podem obter sucesso”. (Xinshu, 9)

263
A retomada confucionista

Um dos resultados práticos da idéia de Lujia consignou-se


numa retomada do confucionismo como doutrina ética oficial,
mas com uma abertura de pensamento inovadora. Em -136, por
exemplo, irá se fundar um conselho de letrados cujo número
(inicialmente em 50) irá aumentar gradualmente ao longo dos
reinados seguintes. Tal corpo era formado por uma grande
variedade de pensadores – quiçá possivelmente classificáveis
como de “todas as escolas” – que serão o cerne da Academia
imperial Han, responsável pela administração de exames,
formação do corpo burocrático e conselho educacional do
governo. Estas iniciativas visavam desenvolver os aspectos
morais e intelectuais - tanto do povo quanto dos funcionários
públicos - através de uma política de governo voltada para a
educação e o bem-estar social. Embora pareçam chavões hoje,
estas práticas eram inovadoras na época, e em longo prazo
parecem ter surtido um efeito positivo sobre a sociedade.

A formação de um grupo ativo de letrados na corte Han iria


colaborar, no entanto, na criação de uma das mais importantes
polêmicas da filosofia chinesa: a construção do Cânone
confucionista. Devido à queima de livros promovida pelo
imperador Qinshi Huangdi 秦始皇帝, os intelectuais Han
viram-se envolvidos na necessidade de reconstituir uma versão
oficial dos livros confucionistas que poderiam ter sido,
virtualmente, perdidos nesta época. Através de uma grande
exegese, em que se recorreu tanto a cópias esparsas como a
memória dos sábios, chegou-se a um texto final, recomposto,
conhecido como “Jinwen” 今文. Porém, durante o reinado de

264
Jingdi 景帝 (entre -156 -140), encontraram-se cópias antigas
de alguns textos na parede de uma casa velha que teria
pertencido a Confúcio. Estes textos seriam versões do Shujing
書經 (Tratado dos Livros), Liji 禮記 (Recordações Culturais),
Lunyu 論語 (Conversas) e Xiaojing 孝經 (Tratado da
Fraternidade Familiar), escritos em caracteres de estilo antigo
(Zhou), anteriores a síntese gramatical ordenada por Qinshi
Huangdi, e se constituiriam, pois, numa fonte original de
consulta, doravante denominados de “Guwen” 古文(‘Textos
Antigos’).

A polêmica entre os letrados se instalou, já que estes textos


apresentavam substanciais discordâncias para com os
reconstituídos, e possuíam a suposta autoridade de serem mais
antigos e veneráveis. As acusações sobre possíveis
falsificações e contradições não faltaram, e nenhum possível
acordo foi obtido na época. As diferenças fundamentais dos
textos parecem surgir no foco pelo qual foram empreendidas
suas reconstruções: enquanto o texto Jinwen privilegiava uma
textualidade científica, investigativa e ética, o texto Guwen
parecia poder ser traduzido como um guia de redenção moral,
cujas sutilezas apontavam para o sentido maior de um
humanismo confucionista. Se num primeiro momento a linha
Jinwen parece ter se firmado, graças à ação do maior sábio
confucionista da época, Dong Zhongshu, a retomada Han a
partir do século +1 parece ter sido mais favorável à linha
Guwen, que permaneceu fortemente enraizada no pensamento
chinês até o século +19, quando buscou-se recuperar os
elementos críticos e interpretativos propostos pelos escolares

265
Jinwen. Os comentadores mais famosos dos textos
confucionistas desta época (ou, melhor dito, aqueles que foram
salvos pelo tempo) são justamente da linha Guwen: Kong
Anguo 孔安國, Liu Xin 劉歆, Ma Rong 馬融 e Zheng Xuan
鄭玄, cujas contribuições foram inequívocas para o debate
confucionista. Cai Yong 蔡邕 (+133 +192) estabeleceu, por
fim, o que seria uma “versão final” dos textos confucionistas,
açambarcando contribuições de ambas as correntes, mas hoje é
grande a dificuldade em estabelecer os limites de cada uma nos
escritos. O que se vê, pois, é como tal polêmica extrapolou por
completo o período de existência dos Han, tornando-se um dos
centros de atenção da filosofia chinesa.

A síntese de Dong Zhongshu

Mas a figura de Dong Zhongshu 董仲舒 (-175-105) domina o


panorama intelectual dos Han anteriores (-206 -12), sendo a
sua primazia alcançável apenas pelo texto concorrente do
Huainanzi. Dong realizou a façanha notável de sintetizar o
confucionismo com a doutrina dos 5 agentes (wuxing),
transformado a questão da ética numa visão ecológica de
mundo. Sua concepção entendia a necessidade de demonstrar a
associação desta teoria de relações entre os elementos
universais com o corpo humano, suas ações, dinâmicas,
criando uma interpretação macro-cósmica que poderia ser
aplicável a qualquer campo do saber, desde a medicina até
sociologia, história, ciências, etc. Em seu livro Chunqiu Fanlu

266
春秋繁露 (Orvalho Precioso das Primaveras e Outonos), ele
afirma que:

“Dentro do universo existem as energias (qi) de Yin e


de Yang. Os homens estão constantemente imersos
nelas, tal como o peixe está constantemente imerso na
água” (Cap.80); “Juntos, as energias (qi) do universo
constituem uma unidade; divididas constituem Yin e
Yang; divididas em quatro, constituem as quatro
estações; (ainda mais) divididas, constituem os cinco
elementos. Estes elementos representam movimento. O
movimento deles não é idêntico. Por isso chamamos os
cinco motores (Wuxing). Esses motores constituem
cinco poderes oficiantes. Cada um, por sua vez, dá
origem ao seguinte e é submetido pelo que se lhe
segue” (Cap.13); “O céu tem cinco elementos: o
primeiro é a madeira, o segundo o fogo, o terceiro a
terra, o quarto o metal, e o quinto a água. A madeira é o
ponto de partida de (o ciclo de) os cinco elementos, a
água é a sua conclusão, e a terra é o seu centro. Esta a
sua seqüência celestial... Cada um dos cinco elementos
circula conforme a sua seqüência; cada um deles
exercita as suas próprias capacidades na realização dos
seus deveres oficiais” (Cap. 42); e por fim, “Nada é
mais perfeito do que os éteres (Yin e Yang), mais ricos
do que a terra, ou mais espirituais do que o céu. Das
criaturas nascidas da essência refinada do céu e da terra,
nenhuma é mais nobre do que o homem. O homem

267
recebe o Decreto (Ming) do céu, e por isso é mais
sublime (do que as outras) criaturas. (As outras)
criaturas sofrem vexames e miséria, e são incapazes de
praticar o amor (ren) e a retidão (yi): só o homem é
capaz de as praticar. (As outras) criaturas sofrem
vexames e miséria e são incapazes de se equiparar com
o céu e a terra; só o homem é capaz disso” (cap. 56).

O que Dong faz aqui é afirmar, primeiramente, a primazia do


ser humano na natureza e sua conseqüente autoridade moral.
No seguir, a identificação dos agentes e sua correlação com os
seres humanos demonstra, se bem empregada, suas propensões,
deficiências, virtudes e capacidades. Embora muito tenha sido
dito sobre sua tentativa de legitimar o poder do imperador tal
como uma circunstância da natureza (ou seja, o imperador o é
porque recebe o mandato do céu, o que seria uma visão
determinista), Dong buscava, na verdade, tentar entender as
múltiplas diferenças que percorrem a construção da identidade
do ser humano; e se sua explicação parece tanger a questão
biológica, sua conclusão, porém, aponta para a possibilidade
otimista de que todo ser humano pode alcançar a sabedoria,
posto que sua identidade como espécie é muito maior do que o
conjunto de suas singularidades:

“O que produz o homem não pode (ele próprio) ser


homem, porque o criador do homem é o céu. O fato dos
homens serem homens deriva do céu. O céu é
268
naturalmente o supremo antepassado do homem. É por
isso que o homem deve ser associado com o céu” (cap.
11).

Dong teria como seguidor a mente brilhante do historiador


Sima Qian 司馬遷 (-135-93), o grande escritor da história
chinesa. Reinterpretando a metodologia confucionista do fazer
histórico à luz das teorias pensadas por Dong Zhongshu, Sima
propôs, no seu Shiji 史記 (Recordações Históricas) um jeito
inovador de compreender o passado e recuperá-lo através de
uma estrutura científica de pesquisa. Ainda que hoje alguns
aspectos do método de Sima possam ser criticados (como o uso
da astronomia, a concepção cíclica de dinastias ou a
interpretação moral das fontes), sua reconstrução histórica
demonstrou-se extremamente lúcida, coerente e aprofundada
em questões de cronologia, biografia, referências, etc. A
estrutura do Shiji estabeleceu-se, igualmente, como o modelo
padrão das Histórias Oficiais da China, embora tenha sofrido
certas alterações ao longo do tempo. A concepção de legar o
saber histórico à posteridade, como um caminho para redenção
moral e exemplo ético, fica bem clara numa carta que Sima
envia a um colega seu, indicando o que ele julgava ser a
importância de sua obra:

“Aqueles que fossem cegos, como Zuo Qiu, ou


aleijados como Sunzi, que não tinha pés, não poderiam

269
nunca receber cargos; por isso se retiravam para
escrever livros a fim de expor seus pensamentos e sua
indignação, e transmitir seus escritos teóricos à
posteridade, para que esta soubesse quem eles eram. Eu
também me atrevi a não ser modesto, mas dediquei-me
a meus escritos inúteis. Reuni e compilei as velhas
tradições do mundo, que estavam dispersas e perdidas.
Examinei os feitos e os acontecimentos do passado e
investiguei as razões que havia por trás do sucesso e do
fracasso, da ascensão e do declínio, em 130 capítulos.
Desejei examinar tudo o que diz respeito ao céu e ao
homem, penetrar nas mudanças do passado e do
presente, completando tudo como o trabalho de uma
família [...]. Quando houver acabado realmente este
trabalho, irei depositá-lo na Montanha Famosa. Se ele
puder chegar às mãos de homens que o apreciem e
penetrar em vilas e grandes cidades, então, mesmo que
eu sofra mil mutilações, que arrependimento teria? Tais
assuntos podem ser discutidos com um sábio, mas é
difícil explicá-los ao vulgo”.

O Huainanzi

No mesmo período, um livro intitulado Huainanzi 淮南子(ou


“Sábios de Huainan”) corrobora a idéia de um ecletismo
filosófico pelos intelectuais Han, marcado igualmente pela
influência da escola cosmológica do wuxing, mas influenciado
de forma mais profunda pelo daoísmo. A produção do texto

270
teria sido feita por um príncipe, Liuan 劉安(? -139), que teria
caído em desgraça após colocar-se contra o poder imperial. As
atas de suas discussões com um grupo de mestres daoístas
preservou-se, porém, e nos trouxe a luz um conjunto de escritos
variados que abordam desde estratégia, cosmologia até política
e reflexão sobre a vida. O Huainanzi parecia se tratar, antes de
tudo, de uma reação à preeminência política dos confucionistas
neste período, elaborando uma proposta que buscava unir as
perspectivas dos antigos daoístas ao ambiente social do império
Han.

Suas contribuições para entender o raciocínio científico da


época são importantes, como podemos ver neste verso, por
exemplo:

“O fogo vai pra cima; A água vai pra baixo; Assim é


também o vôo dos pássaros, pra cima e o nado dos
peixes, pra baixo; As coisas que pertencem a uma
mesma classe movem-se simultaneamente; A raiz e o
tal respondem um pelo outro; Portanto, Quando o
espelho candente (=lente) vê o sol, incendeia a erva e
produz o fogo; Quando o espelho quadrado (=espelho)
vê a lua, umedece e produz água (=orvalho)”.

Embora fique patente a anuência da visão wuxing e da teoria


yin-yang em tais concepções, não devemos negar-lhes a
originalidade. Este processo rico de fusões delineou, em muitos

271
sentidos, a estrutura posterior do conjunto do pensamento
chinês.

Na mesma época, outro texto começa a desenhar uma


alternativa para o daoísmo filosófico, lançando-o numa
vertente que poderíamos considerar de cunho religioso.
Conhecido como Wenzi 文子, ele apresenta uma nova
interpretação para as obras dos antigos mestres Laozi e
Zhuangzi 莊子, e desconhece-se corretamente sua origem. Um
extrato pode ilustrar bem esta colocação:

“Sendo assim a mente é o mestre da forma, o espírito a


jóia da mente. Quando o corpo é trabalhado sem
descanso, ele entra em colapso; quando a vitalidade é
usada sem repouso, ela é exaurida. Portanto, os sábios
que estão atentos a isso não ousam ser excessivos. Eles
usam o não-ser para responder ao ser, e estão certos de
que encontrarão a razão; eles usam o vazio para receber
a plenitude, e estão certos de que encontrarão a medida
das coisas. Eles passam a vida em pacífica serenidade e
numa aberta calma, não alienando quem quer que seja
nem se apegando a ninguém. Ao abraçarem a virtude,
são calorosos e harmoniosos, seguindo deste modo a
natureza e encontrarão o caminho, e estando perto da
virtude. Eles não começam nada procurando lucro ou
algo que possa causar mal. A morte e a Vida não
causam mudanças no ser (eu), eis o espiritual. Com

272
espírito, qualquer coisa que se busca pode ser
encontrada, e tudo que é feito pode ser realizado”.

Devemos lembrar, ainda, que nesta mesma época surge o texto


do Liezi 列子, tradicionalmente associado à linhagem daoísta
como mestre de Zhuangzi. Os indícios de sua
contemporaneidade Han são evidentes: estrutura profusa,
associando textos de cosmologia, ética, política e reflexão
moral. Algumas passagens buscam contemplar a associação
intima desses elementos, tal como na pequena historieta a
seguir:

“Era uma vez um homem do país de Qi que se


inquietava que o céu um dia caísse, e ele não sabia onde
esconder-se. Isso o perturbava tanto que ele não podia
comer nem dormir. Havia outro que se afligia com a
aflição desse homem, e foi dar-lhe uma explicação,
falando assim: - O céu é formado somente de ar
acumulado. Não há lugar onde não haja ar. Sempre que
te moves ou respiras, vives justamente neste céu. Por
que precisas então preocupar-te que o céu venha
abaixo? Disse o outro homem: - Se o céu não fosse
realmente nada mais que o ar, não cairíam o sol, a lua e
as estrelas? E o homem que explicava disse: - Mas o
sol, a lua e as estrelas também não são mais que ar
(gases) acumulado que se tornou brilhante. Ainda que

273
eles caíssem, não poderiam machucar ninguém. - Mas
que seria se a terra fosse destruída? E o outro
respondeu: - A terra é somente formada de sólidos
acumulados, que enchem todo o espaço. Não há lugar
onde não haja sólidos. Quando andas e pisas no chão, tu
te moves o dia inteiro nesta terra. Por que, pois precisas
temer que ela seja destruída? Então aquele homem
pareceu compreender e ficou muito contente, e o que
lhe explicara tudo sentiu que ele entendera e também
ficou muito satisfeito. Quando Zhangluzi soube disso,
riu e disse: - O arco-íris, as nuvens e os nevoeiros, os
ventos e as chuvas e as quatro estações... Não são todos
eles formados de ar acumulado no céu? As montanhas e
os picos, os rios e os mares, o metal e a pedra, a água e
o fogo... Não são todos formados de sólidos
acumulados na terra? Uma vez que sabemos que são
formados de ar acumulado e de sólidos acumulados,
como podemos dizer que são indestrutíveis? O
infinitamente grande o infinitesimalmente pequeno não
se podem saber, explorar ou conjeturar
exaustivamente.... É matéria que se deve admitir sem
prova. Os que se inquietam com a destruição do
universo, pensam naturalmente com excessiva
antecipação, mas os que afirmam que ele não pode ser
destruído também estão enganados. Uma vez que o céu
e a terra devem ser destruídos, eles acabarão finalmente
pela destruição. E quando forem destruídos, por que nos
haveríamos de afligir com isso? Liezi soube do que
Zhangluzi falara, e riu dizendo: - Os que afirmam que o

274
céu e a terra podem ser destruídos não têm razão, e os
que asseguram que são indestrutíveis também estão em
erro. A destruição e a indestrubilidade são coisas de que
nada podemos saber. Contudo, são ambas o mesmo.
Portanto, um homem vive e nada sabe da morte; morre
e nada conhece da vida; chega e não sabe da partida; e
parte sem saber da chegada. Por que a questão de haver
ou não haver destruição deve importunar os nossos
espíritos?”

Por fim, o ilustrado comentário do Yijing 易經 (o Tratado das


Mutações) feito por Yang Xiong 楊雄 dá a nota final a este
período. Buscando uma “essência subjacente a formação das
coisas e dos acontecimentos”, Yang faz a interpretação daoísta
do texto, até então analisado sistematicamente pelos
confucionistas. O Taixuanjing 太玄經 (Tratado do Mistério do
Grande Supremo) tornou-se uma interpretação ora religiosa,
ora científica do Yijing, tendo se tornado famoso na época. A
escrita relativamente inacessível aos iniciados impediu, no
entanto, sua difusão em maior escala, como mostra este
pequeno trecho:

“O supremo mistério profundo permite [a existência] de


todas as espécies de coisas, mas sua forma física não
pode ser vista. Ela alimenta-se da vacuidade e do vazio,
e deriva sua vida da natureza. Isso correlaciona as

275
matrizes da inteligência espiritual e determina o curso
natural dos eventos”. (cap. 9)

Os Han posteriores

Perto do interregno promovido pela efêmera dinastia Xin 新


(+12 +23), a produção literária e intelectual dos Han
continuava bastante ativa. Liu Xiang 劉向 (morto em -5) foi
um destes autores prolixos, que legou uma obra vasta e
diversificada para a literatura chinesa. Ele teria sido autor de
uma obra historiográfica chamada Xinxu 新序 (Novas
Introduções), uma obra de cunho político, o Shuoyan 說苑
(Jardim das Persuasões) e uma inédita biografia de mulheres
exemplares, o Lienu Zhuan 列女傳. Ainda teria produzido uma
biografia sobre os “imortais” (Liexian Zhuan 列仙傳),
recolhido e editado também as histórias que compõe duas
fontes fundamentais da história chinesa, o Zhanguoce 戰國策
(Discursos dos Estados Combatentes) e o Guoyu 國語(Ditos
dos Estados). Liu Xiang apresenta-nos suas histórias num tom
anedótico, porém baseadas em fontes que considerava
fidedignas:

“O Rei Xuan de Zhu perguntou aos seus ministros: -


Ouvi dizer que o povo do norte teme Zhao Xisi. É
verdade isso? Os ministros não deram resposta, mas
Shiang Yi disse ao Rei: - Era uma vez um tigre que

276
procurava animais para comer e apanhou uma raposa. E
a raposa disse: “Como ousas comer-me? O Deus do
Céu me fez chefe do reino animal. Se me comeres,
estarás pecando contra Deus. Se não crês no que digo,
acompanha-me. Marcharei na frente e tu me seguirás”.
O tigre foi, pois, com a raposa, e os animais fugiram ao
se aproximarem os dois. O tigre não percebeu que os
animais não tinham medo da raposa, mas dele. Ora,
Vossa Alteza Real tem um território de cinco mil li
quadrados e um exército de um milhão de soldados, e
deu todo o poder a Zhao Xisi. Portanto o povo do norte
teme o seu poder, mas na realidade o que receia é o
exército do Rei, como os animais tinham medo do
tigre”.

Tal como Sima Qian, Liu Xiang estava preocupado em resgatar


a história como uma narrativa de cunho moral e intelectual,
fornecendo as bases para a consolidação de uma ética
confucionista. As biografias por ele propostas são um vasto
conjunto de exemplos – bons ou ruins – de comportamento,
atitude, postura e sabedoria. Neste aspecto, outros dois textos
irão juntar-se a produção confucionista deste gênero: o Kungzi
Jiayu 孔子家語 (Uma recolha de histórias curtas relacionadas a
Confúcio e seus discípulos) e o Xiaojing (ou Tratado da
Fraternidade Familiar) – este último adquiriu um grande
renome entre os chineses por tratar especificamente as questões
de relacionamento familiar, um dos pilares fundamentais das
teorias confucionistas:

277
“Pois bem, a piedade filial é a raiz de toda virtude e o
tronco do qual nasce todo ensinamento moral. [...]
Nossos corpos – cada fio de cabelo, cada fragmento de
pele – nós herdamos de nossos pais e não devemos
atrever-nos a danificá-los ou feri-los. Este é o começo
da piedade filial. Quando formamos nosso caráter
mediante a prática da conduta filial, para tornar famoso
nosso nome nas idades futuras e glorificar com isso
nossos pais, este é o fim da piedade filial. Começa com
o serviço de nossos pais, continua com o serviço do
governante, e se completa pela formação do caráter”.
Pois bem, a piedade filial é a raiz de toda virtude e o
tronco do qual nasce todo ensinamento moral. Senta-te
de novo e te explicarei a questão. Nossos corpos – cada
fio de cabelo, cada fragmento de pele – nós herdamos
de nossos pais e não devemos atrever-nos a danificá-los
ou feri-los. Este é o começo da piedade filial. Quando
formamos nosso caráter mediante a prática da conduta
filial, para tornar famoso nosso nome nas idades futuras
e glorificar com isso nossos pais, este é o fim da
piedade filial. Começa com o serviço de nossos pais,
continua com o serviço do governante, e se completa
pela formação do caráter”. (cap. 1)

O Confucionismo seria a nota dominante deste segundo


período Han. O historiador Bangu 班固(morto em +79)
continuaria também o caminho aberto por Sima Qian
escrevendo o Hanshu 漢書(Anais de Han) e o Baihutong

278
白虎通(Discussões do Palácio do Tigre Branco); o primeiro
trata-se de uma história dinástica nos mesmos moldes do Shiji;
o segundo constitui-se num tratado de orientação política e
histórica cujo alicerce é, novamente, a teoria cosmológica de
universo. Uma profunda diferença na análise de Bangu e Dong
Zhongshu deve ser notada, porém: as relações realizadas por
Ban diferem bastante da tradicional teoria dos cinco agentes,
mostrando que a ciência chinesa não passou por evolução única
e linear, como insistem os tradicionalistas e esotéricos. O
período Han é justamente o momento em que estas teorias
estão sendo discutidas, avaliadas e postas à prova. Não
devemos esperar, pois, a continuidade plena e absoluta do
pensar chinês sem um processo de crítica e contraposição fértil.

Banzhao 班昭, irmã de Bangu, é também uma das pensadoras


dignas de nota deste período; ela termina a obra do Hanshu
(Bangu morreu antes de poder finalizá-la) e escreve um
interessante tratado, chamado de Nujing 女經 (ou Nujie 女誡,
Tratado Feminino) onde explana suas concepções sobre a
relação homem-mulher, sexualidade e ética baseada numa
fusão de confucionismo e teoria Yin-Yang. Muito se têm
discutido se seu trabalho é uma apologia à subserviência das
mulheres ou uma interessante análise sobre a questão da
igualdade sexual baseado nas noções culturais da época:

“Um marido indigno não pode controlar sua esposa;


uma esposa indigna não pode exigir nada de seu
marido. Somente o equilíbrio dos dois princípios pode
harmonizar uma relação (...) Isso se inicia pela

279
educação: conforme o Liji (Livro dos Rituais), a regra é
começar a ensinar uma criança a ler aos oito anos, e
perto dos quinze elas estão aptas ao estudo da cultura.
Apenas porque isso se refere aos meninos, não pode e
deve ser igualmente outorgado às meninas? Esta é a
base do equilíbrio”.

Uma discussão aprofundada sobre este conjunto de trabalhos


filosóficos Han viria através de Wang Chong 王充(+27 + 97?),
um crítico ferrenho da ciência, pensamento e política da época.
Seu ceticismo constante formulou uma possibilidade de análise
até então pouco conhecida na época, mas Wang aparentemente
falhou por não formular respostas para suas próprias dúvidas –
ponto fatal para o pensamento chinês, ávido sempre de
soluções pragmáticas e aplicáveis. Seus questionamentos
serviram, contudo, para que não só confucionistas – como
também estudiosos das outras escolas – aprimorassem seus
discursos e sua retórica. O Luheng 論衡 (Discursos Pensados)
é uma obra prima de crítica, como podemos ver neste singelo
trecho em que se discute a questão da crença no espírito e o
problema dos fantasmas:

“Diz o povo que o fantasma de um morto tem


consciência: pode causar dano às pessoas. Pela analogia
geral com os animais, um homem morto não se torna
fantasma e é incapaz de causar dano aos vivos. O

280
homem é um animal, e um animal é também um animal.
Se um animal não se torna fantasma quando morre,
como iria tornar-se fantasma um homem?... A vida do
homem depende de seu espírito e esse espírito se
extingue quando ele morre. O espírito do homem (qi, ou
energia) vem de seu sangue e quando o sangue do
homem, após sua morte, lhe sai do corpo, o espírito, ou
energia, se exaure. A seguir, o corpo se decompõe e
torna-se pó. A que se apegaria o espírito para tornar-se
fantasma? Às vezes, comparamos um cego, ou um
surdo, à vegetação comum, que não pode ver nem
ouvir. Ora, quando o espírito deixa um homem, isso é
algo mais sério do que a mera perda da visão ou da
audição... Desde que teve começo o universo, milhões
de pessoas têm morrido, em tempos diferentes. O
número dos que hoje vivem é muito menor que o dos
que morreram no passado. Se, portanto, os mortos se
tornassem fantasmas, deveríamos encontrar um
fantasma a cada passo. Se alguém vê fantasmas junto a
seu leito de morte, deveria vê-los aos milhões,
enchendo todas as ruas, os becos, os vestíbulos e os
pátios, e não apenas ver um ou dois fantasmas... Diz o
povo que o fantasma de um morto tem consciência:
pode causar dano às pessoas. Pela analogia geral com os
animais, um homem morto não se torna fantasma e é
incapaz de causar dano aos vivos. O homem é um
animal, e um animal é também um animal. Se um
animal não se torna fantasma quando morre, como iria
tornar-se fantasma um homem?...”

281
Mas a paulatina desagregação da dinastia Han permeou uma
mudança de foco em relação às questões políticas e sociais da
época. Pensadores como Cuishi 崔寔(+135+170) voltam a
pregar uma radicalização política, como a que surge no
Zhenglun 政論 – um tratado de política calcado em teorias
legistas, do qual só sobraram fragmentos, mas cujo conteúdo
foi amplamente discutido naquele momento. Xunyue 荀悅
(morto em 209) foi um destes autores que, preocupados com a
crise premente, defendiam um fortalecimento da instituição
política Han. No Shenjian 申鑒 (Espelho das Apelações),
Xunyue propunha uma combinação das teorias confucionistas e
legistas num novo sistema que pudesse recuperar a estrutura
administrativa, moral e econômica da Dinastia, como
transparece nesta breve seleção:

“Honra e desonra são a essência da recompensa e da


punição. No entanto, ritos e educação, honra e desonra
podem ser o meios pelos quais um homem nobre
aperfeiçoa seu caráter. [...] Recompensa e punição são
as duas garras do governo. A lei que recompensa os
ilustrados, mas que também pune, prova a lealdade e
traz a ordem. A recompensa pode ser usada para
encorajar o bom povo, mas a punição deve ser utilizada
para controlar o mal”.

282
Mas o clima final da Dinastia Han pode ser compreendido
precisamente nos escritos pessimistas de Wang Fu 王符(90
+175), escritor cuja carreira começou tarde e cujo livro Qianfu
Lun 潛夫論 (Diálogos de um Eremita) deixa transparecer a
desilusão com a situação moral de seu contexto. Embora
confucionista, Wang não acreditava mais no sistema vigente, e
percebia a iminência de uma crise destruidora para a dinastia
Han.

“O maior médico é o que trata do Estado, enquanto um


bom médico (normal) trata da doença. Uma pessoa que
pensa em governar um Estado deve tratá-lo como quem
cuida do corpo. A fraqueza é a doença do corpo: a
desordem a doença do Estado. Para tratar uma doença,
apelamos para a medicina; para tratar um Estado,
apelamos para a busca de uma ordem. A doença do
corpo pode ser tratada pelo Tratado do Imperador
Amarelo; para trazer ordem ao mundo, temos os
clássicos de Confúcio. [...] Mas quem busca hoje trazer
ordem ao mundo?”

Conclusões

Esta breve introdução ao pensamento da Dinastia Han teve por


objetivo, portanto, apresentar um pouco da diversidade de
propostas e formas de entender o mundo que se desenvolveram
neste período. A perspectiva de que as correntes filosóficas do

283
contexto apresentam são fundamentais para a compreensão do
posterior desenvolvimento do pensamento chinês, e não devem
ser tidas como menores diante do período de alvorece do
pensar chinês durante a época Zhou. Como vimos, a projeção
de um passado ilustrado para a China de Confúcio é muito
mais um anseio da sinologia ocidental do que, propriamente,
uma realidade para a história dos pensadores chineses.

Atualmente, a estrutura do pensar chinês encontra-se calcada


nas investigações e sínteses criadas na época Han, que
consolidaram modo básico da civilização chinesa de investigar
a realidade. Torna-se indispensável, assim, considerar a
produção deste período como uma fase significativa de sua
história, sem o que tornam-se impossíveis ou inoperantes
quaisquer formas de conectar o pensamento chinês atual com o
seu passado fundador.

284
Bibliografia

Os manuais citados são:

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288
O CAVALO NA ANTIGUIDADE
CHINESA: ENTRE O
INSTITUCIONAL E O NATURAL por
Márcia Schmaltz

Introdução

O Ano Lunar de 2014 corresponde ao cavalo, sétimo animal na


ordem do zodíaco chinês.1 O signo é representado pelo ramo
terrestre 午 [wŭ, encilho]2, período compreendido entre as
onze e treze horas, e regente do quinto mês lunar. A presença
do equino na astrologia chinesa não é por acaso, já que nessa
cultura é considerado o primeiro dos seis animais domésticos
desde a dinastia Xia 夏 (?2.100 – 1.600 AEC).

Este ensaio discute a representação simbólica do cavalo na


cultura chinesa da pré-história até a dinastia Han Ocidental
西汉 (206 AEC – 24 EC). Inicia-se com a descrição da
presença do cavalo na região antes da pré-história. Na segunda
seção, arrolam-se mitos sobre cavalos. Na terceira seção,
descreve a introdução e desenvolvimento do cavalo como
elemento militar. Na quarta seção, descreve-se o termo cavalo
nos primeiros registros escritos e a respectiva simbologia no
que concerne aos ritos e à educação. Depois de discutir o status
do cavalo sob a égide confuciana ortodoxa e da escola das leis,
na quinta seção, analisa-se a alegoria do animal para o daoísmo
道 e a respectiva crítica às escolas filosóficas hegemônicas

289
levadas a cabo em Zhuangzi 庄子. Ao final, a partir da revisão
bibliográfica conclui-se a importância do cavalo dentro do
sistema cultural chinês sob uma abordagem filosófica até ao
período dos Reinos Combatentes (475-221 AEC).

O cavalo nos primórdios da história

As escavações paleontológicas revelam a presença de


ancestrais do cavalo há cerca de 55 milhões anos da província
de Xinjiang até Heilongjiang, cobrindo toda a região do
Noroeste a Nordeste da China (XIE, 1991, p. 4-16). Ossos de
cavalo, entre 400 e 800 mil anos A.P., também foram
encontrados nas cavernas junto do Homem de Beijing e do
Homem de Lantian, na província de Shaanxi. Em tumbas de
6.000 A.P., foram encontrados restos mortais de cavalos,
período em que também há registros da domesticação do
equídeo. Segundo a lenda, seria um legado de Huangdi 黄帝, o
Imperador Amarelo mítico (SONG, 2008, p. 2-18). Pinturas em
cavernas nas províncias de Xinjiang, Ninxia e Mongólia
Interior mostram desenhos de cavalos selvagens, atividade
pastoril, montaria, caça e, em outras regiões da China, o equino
figura como um utensílio de trabalho no arado (Ibidem).

O cavalo presente desde tempos remotos seja como alimento,


seja como utensílio de transporte, tornou o equino como um
dos elementos constituintes do modelo cultural chinês. Com o
aprimoramento das técnicas de criação e manejo, o animal
ganhará uma nova dimensão de importância. É o que se

290
mostrará nas seções seguintes, antes, porém, vide algumas
representações do cavalo na mitologia chinesa.

O cavalo na mitologia

Como dito acima, desde antes da pré-história, o cavalo já fazia


parte do cotidiano chinês, principalmente na região Norte. Em
Shanhai jing 山海经 [O livro da natureza]3 narra uma lenda ao
norte do rio Amarelo, que relaciona o cavalo à origem do
bicho-da-seda4 e ainda consta, segundo o nosso levantamento,
vinte e cinco animais míticos relacionados com o cavalo. Neste
ensaio, destaco a título ilustrativo: o Lushu 鹿蜀, descrito com
o porte físico similar a de um cavalo, cuja cabeça seria branca
com crina vermelha, pelagem de fundo alaranjada e listras
pretas como a de um tigre. O som de seu relinchar soava tão
agradável como uma música, e quem se cobrisse com seu
couro encher-se-ia de descendentes, por isso era caçado
(Shanhaijing, 2007, p. 29, 529). O taotu 騊駼 é descrito “com a
aparência como a de um cavalo, sendo garboso e indomável. O
Taotu apenas surge na Planície Central中原 quando da boa
governança de um imperador” (Idem, p. 375 e 558). O bo 駮
seria “um cambraia com dentes de serra e que come tigre e
onça” (Ibidem) e, no livro ainda consta que quem conseguisse
montar um jiliang 吉量, uma cambraia com crina vermelha e
olhos amarelos, viveria por mil anos (Idem, p. 420, 560). O
filósofo Zhang refere-se à lenda do cavalo-dragão龙马, que
entregou o Quadro do rio 河图ao mítico herói Yu 大禹 para

291
minimizar as cheias do rio Amarelo. A unificação do dragão
com o cavalo, confere força e velocidade inigualável ao mítico
animal; por isso, o provérbio longma jingshen 龙马精神 é
empregado como desejo que reine a Grande Virtude 大德
sobre a Terra (2003, p. 42-43).

O cavalo como elemento multiplicador de poderio militar

Como referimos resumidamente na primeira seção, a presença


do cavalo na Ásia é anterior ao surgimento do homem.
Inicialmente servindo como alimento, mais tarde no trabalho
agrícola, o cavalo eleva a sua importância na Antiguidade
chinesa ao ser introduzido na guerra. A revisão bibliográfica
indica que o número e a organização dos carros puxados a
cavalo e da cavalaria eram fatores determinantes de ascensão e
queda de um reinado.

O historiador Yang (2008, p.8) afirma que os achados nas


escavações arqueológicas em Anyang 安阳, Hunan 湖南,
revelam que dois cavalos eram utilizados para puxar os carros
de combate na dinastia Shang 商 (1.600-1.100 AEC). O carro
transportava três guerreiros com armadura: um condutor ao
centro, um lanceiro à direita e um arqueiro à esquerda.

No século XII AEC, surge a noroeste do império Shang, o


estado de Zhou 周, povo hábil na criação de cavalos. Zhou
possuía uma potente frota com cerca de 3.000 carros puxados
por quatro cavalos acabaria por dizimar Shang e inaugurar a

292
dinastia Zhou (1.100-770 AEC). Na dinastia Zhou houve
grandes avanços na arte de criação equestre. Inclusive um dos
grandes tratadores de cavalos real Zaofu 造父 foi reconhecido
pelo imperador Xiao 孝 (891-886 AEC), que lhe concedeu o
sobrenome Yin 嬴 e mais um condado a noroeste de Xi’an, que
se tornaria séculos depois a primeira dinastia a unificar a
China, isto é, a dinastia Qin 秦 (221-206 AEC).

A idade de ouro dos carros de combate perdurou até ao período


da Primavera e do Outono 春秋 (770-476 AEC), quando se
mostrariam obsoletos ao se deparar com as tropas invasoras
dos hunos, ao Norte do Império do Meio. O rei Wulin 武灵 do
estado de Zhao 赵 em 307 AEC, a partir do contato com os
nômades, aprendeu a equitação5 e arregimentou a primeira
cavalaria montada, que lhe conferiu maior poderio militar,
prática seguida por outros reinos. Entretanto, os carros a
cavalos ainda prevaleceriam; pois, como comenta o historiador
Sima Qian, nos Registros históricos 史记: “os cavalos de
combate dos Qin eram superiores em número, força e
velocidade”.6 Com a desintegração do império Qin (206 AEC),
a cavalaria se tornou gradativamente a força mais poderosa nas
guerras a partir da introdução de raças da Ásia Central pela
dinastia Han 汉.

A dinastia Han iniciou sua administração do império chinês em


206 AEC e houve uma grande expansão do território até ao Sul
da Manchúria (Nordeste da China), Norte da Coreia, Sul e
Sudeste da China e Norte do Vietnã. A situação permanecia
instável apenas nas fronteiras Norte e Noroeste, devido aos

293
saques constantes da confederação tribal dos hunos, que
possuíam superioridade equestre (SONG, 2008 e YANG et. al.,
2008). De acordo com a “História de Fergana” no Registros
Históricos [史记·大宛列传], a guerra entre os hunos e os
chineses era constante e, na batalha de 119 AEC, ambos
tiveram grandes baixas, sendo que a parte chinesa perdeu mais
de 80% de sua cavalaria. Nesta conjuntura, o porte e o número
de cavalos tornaram-se estratégicos para a manutenção e
expansão militar dos chineses. Desta forma, o imperador
Marcial Han Wudi 汉武帝 (157 - 83 AEC), por um lado,
delimitou áreas abertas para a criação de cavalos, por outro
lado, a fim de aprimorar a raça chinesa, enviou emissários para
a compra dos célebres cavalos de Fergana 大宛, região da Ásia
Central, em 113 AEC. Porém, a oferta dos Han foi recusada e o
seu embaixador, executado. Em retribuição à afronta, em 104
AEC, o imperador Marcial arregimentou uma campanha com
40.000 homens, que foi derrotada graças à união dos reinos
bárbaros, aliados do reino de Fergana. Entretanto, o imperador
chinês estava determinado em levar a cabo o seu plano. Assim,
no ano seguinte, outro exército com 60.000 homens foi enviado
para o Oeste. Desta vez o império tratou de subornar os reinos
vizinhos de Fergana, estabeleceu uma boa logística para o
envio de suprimentos e sitiou a capital de Fergana. Dessa
forma, em 101 AEC, conseguiu a rendição do reino rebelde e
obteve 3.000 cavalos da raça (embora apenas algumas dezenas
de qualidade superior e somente 1.000 chegaram à capital) e
sementes de alfafa. Segundo Yang (2008, p. 8) foi à custa de
dez vidas humanas por um cavalo. Com a introdução da raça
Fergana, a atividade de criação de cavalos passou a prosperar

294
na China por certo período, mas a exígua disponibilidade de
campos para a pastagem e o costume de alimentar animais com
cereais, fez com que a raça perdesse as vantagens originais
(XIE, 1991).

Em resumo, a partir da domesticação do cavalo na pré-história


e o domínio da equitação na Antiguidade, o animal adquire
status de poderio militar e político, formando um sistema de
governo centralizado e hierárquico conhecido como 马政制度
mazheng zhidu, baseado no número de cavalos dos reinos e
estados (SONG, 2008, p. 126). Sobre isto, trataremos abaixo,
sob uma perspectiva da escrita.

Registros escritos sobre o cavalo

Devido ao poderio da força militar advindo da introdução do


cavalo nos carros de combate a partir da dinastia Shang
descrito anteriormente, o cavalo se torna distintivo de status
social. Os registros da escrita mais antiga chinesa, encontrados
em inscrições em ossos escapulares e carapaças de tartaruga
甲骨文 dos séculos XV a XIII AEC, possuem mais de 80
ideogramas com o radical7 马 [cavalo] para designar as
diferentes raças, cores, idade e temperamento de cavalos, bem
como funções de tratadores, treinadores, arqueiros, entre outros
(SONG, 2008, p. 127). No Dicionário analítico de Caracteres
说文解字 de Xu Shen da dinastia Han Oriental (25 – 220), o
número de ideogramas sob o radical de cavalo ultrapassa 120
caracteres adicionando novas designações relacionados ao

295
equídeo, fornecendo evidências do domínio equestre pelos
chineses.8

Em cânones como Shijing 诗经 [O livro dos cantares], datado


do período da dinastia Zhou, há o maior número de poemas
dedicados ao equino, ora exaltado pela sua beleza e velocidade,
ora como companheiro das viagens solitárias de literatos
(YANG et. al., 2008, p. 113):

采采卷耳、不盈顷筐。嗟我怀人、置彼周行。陟彼崔嵬、
我马虺隤。我姑酌彼金罍、维以不永怀。陟彼高冈、我马
玄黄。我姑酌彼兕觥、维以不永伤。陟彼砠矣、我马瘏矣
、我仆痡矣、云何吁矣。

Eu recolhia flores, que não enchiam a minha cesta rasa.

Suspirei pelo meu amado, deixando a sua lembrança na


estrada.

Eu subia uma montanha íngreme, mas meus cavalos


adoeceram.

Brindei com o vaso dourado aos céus, esperando logo o


esquecer.

Eu subia um cume elevado, mas os meus cavalos amarelaram.

Brindei com o copo de chifre de rinoceronte, esperando logo


passar a tristeza.

296
Eu subia a um platô, mas os meus cavalos ficaram sem forças,

os meus servos caíram pelo caminho.

Oh! Quão grande é a minha dor!

(Orelhas-de-rato, Zhou Meridional, Shijing)

Há ao longo da história chinesa, belas passagens de


companheirismo entre o cavalo e o homem narradas em Shiji
史记 [Registros históricos]. Na biografia de Xiang Yu 项羽
(232 - 202 AEC), um dos generais responsáveis pela derrocada
do império Qin, que autoproclamou-se rei do Chu Ocidental e
disputou a hegemonia do império com Liu Bang 刘邦 (256 –
195 AEC), rei de Han (que acabaria por fundar a dinastia Han).
Ao ser cercado pelas tropas de Liu, Xiang Yu liberta o seu
cavalo e lamenta não corresponder à lealdade do animal, tendo
que o abandonar a própria sorte.

No capítulo Xia Guan Sima 夏官司马 [Ministro da guerra] de


Zhou Li 周礼 [O livro dos ritos de Zhou]9 há inúmeras
referências à prática da etiqueta: A permissão do número de
carros e cavalos, bem como o uso do transporte em cerimônias,
ritos e sacrifícios de acordo com a posição social. Em outro
capítulo, Di guan 地官, registra as Seis Artes10 [六艺 liu yi],
que incluía aprender equitação e as regras de condução de
carros, apenas permitida às classes aristocráticas e militares.
Assim, o cavalo é relacionado ao status de nobreza e às práticas
de civilidade.

297
O mais célebre conhecedor de cavalos na Antiguidade foi Sun
Yang 孙阳 (?680 - ?610 AEC), conhecido como Bole 伯乐,
nome da constelação do Tratador de cavalo celestial. O perito
em cavalos foi vassalo do estado de Qin 秦e escreveu Xiang
Ma Jing 相马经 [Tratado sobre cavalos], obra que se perdeu. É
no provérbio “Bole avalia cavalos” [伯乐相马 Bole xiangma]
que talvez se encontre a primeira analogia do cavalo com o
homem, pois, o dito é uma alusão a descoberta de pessoas
talentosas por um experto. Yang et. al. (2008, p. 114) observam
que Bole seria uma alusão ao rei e do desejo de
reconhecimento de um súdito pelo rei. Esses súditos talentosos
seriam cavalheiros eruditos, que atuavam como o que
conhecemos hoje por “consultores”, aconselhando os
soberanos dos Reinos Combatentes num período de disputa
pela hegemonia do Império do Meio.

É nesse período que surge o gênero fabular, empregado como


recurso retórico para o fortalecimento da argumentação e
persuadir o interlocutor em relação a alguma verdade, de
maneira implícita, sem expor uma conclusão como na versão
Ocidental. “Em Busca do Corcel” [买千里马], em Estratégias
dos Reinos Combatentes [战国策], é narrada a parábola de um
súdito, que para persuadir o rei de Yan 燕 a cooptar literatos à
serviço do reino, sugere-lhe a compra de uma cabeça de um
corcel morto à peso de ouro, como uma demonstração sincera
de valorização pessoal “ao mundo”. Em “Apresentando Yan ao
Reino de Qi” [为燕说齐] no mesmo livro, conta-se que um
vendedor de bons cavalos apenas conseguiu comercializá-los a

298
bom preço, depois de convidar Bole a visitar o seu estábulo.
Sugerindo que é melhor ter uma recomendação do que fazer a
autopromoção. Assim como para se comprar um cavalo não se
pode furtar da assessoria de entendedores de cavalos (Bole)
como sugerido em “A Visita ao Rei Zhao” [客见赵王].
Todavia, a consolidação da metáfora de tomar o corcel como o
homem virtuoso e o Bole como o bom governante ocorre em
“A Visita de Hanming ao Chunshenjun” [汗明见春申君] no
mesmo livro. Depois de três meses de espera, o virtuoso, mas
pobre Hanming consegue finalmente uma audiência com o
ministro Chunshenjun. Durante a reunião, os dois descobrem
ter afinidades e compreensão tácita, de forma que o ministro
decide conceder-lhe uma audiência a cada cinco dias. Hanming
emocionado, conta-lhe a história de um corcel que puxava
carro de sal numa montanha, que foi reconhecido e socorrido
por Bole. O relinchar estridente do corcel estreme os céus,
emocionado por ser reconhecido e liberto pelo avaliador. A
referência a essa parábola é encontrada inúmeras vezes na
literatura chinesa, como uma alegoria da busca ou da falta de
reconhecimento dos talentosos no mundo.

Em outra historieta narrada por Han Feizi 韩非子 (?280 – 233


AEC), o filósofo da Escola das Leis [法家 Fajia], propõe “um
certo savoir-faire que correspondia ao melhor saber-ser, um
modo de governar a si mesmo que constituía uma receita de
governar” (GRANET, 1997, p. 254). Conta o Han Feizi que o
rei Xiang do reino de Zhao aprendeu a arte de conduzir carros a
cavalo com Wang Yuqi. Depois de algum tempo, o rei apostou
uma corrida com Wang e, mesmo tendo o rei trocado os

299
cavalos por três vezes, perdeu a corrida para o Wang. O rei
irritado acusou treinador de não lhe ensinar tudo o que sabia.
Wang refuta a acusação, alegando que o rei não usou
corretamente as habilidades aprendidas e complementa:

凡御之所贵,马体安于车,人心调于马,而后可以
进速致远。今君后则欲逮臣,先则恐逮于臣。夫诱
道争远,非先则后也。而先后心皆在于臣,上何以
调于马,此君之所以后也。

“Mais importante ao dirigir uma carruagem é que os


corpos dos cavalos sintam-se confortáveis em relação à
carruagem e que a mente do condutor esteja em
harmonia com os cavalos. Só assim pode conseguir
grande velocidade e percorrer grandes distâncias”
(CAPPARELLI e SCHMALTZ, 2007, p. 88-89).

Xunzi [荀子] (?313-238 AEC) do reino de Zhao era um


confucionista ortodoxo. O filósofo defendia que “a natureza
humana é má; o que ela tem de bom provem do artificial”11 e
“desde a Antiguidade, o bom cavalo se torna um corcel devido
ao controle do freio, da intimidação do relho e da doma de
Zaofu”.12 Para o confucionismo, Bole e Zaofu são alegorias da
civilização para a harmonia social. Xunzi enfatizava a
influência positiva dos ritos sobre o indivíduo e esses
permitiriam fazer com que os homens aceitassem uma divisão

300
convencional das ocupações e dos recursos, o filósofo inclusive
adverte que “um pulo do corcel é inferior a dez passos e se esse
leva um dia para percorrer 600 quilômetros, um cavalo
ordinário, se tiver determinação, pode muito bem cumpri-lo em
dez dias”.13

O cavalo para o daoísmo

Se para o confucionismo ortodoxo 儒家, o moísmo 墨家 e a


escola das leis 法家 a domesticação do cavalo adquire uma
extensão de sentido do refreio do homem sobre os seus
instintos representando um ato de civilidade para o bom
convívio social; para a visão cosmológica naturalista daoísta
道家, defensora de um estado de laissez-faire, a civilização
representa a destruição da ordem natural do universo.

Zhuangzi (369-286 AEC), um dos maiores filósofos daoístas,


era do reino Song 宋, período dos Estados Combatentes. Ele é
considerado o fundador da ficção — xiaoshuo 小说 [ditos
insignificantes, conto] (ZHUANG, 2008, p. 145) e zhiguai
志怪 [registros de eventos sobrenaturais] (ZHUANG, 2008, p.
2), que se tornaram termos literários a partir de sua obra
homônima.14 Entretanto, Zhuangzi tencionava com o estilo
fabular e linguagem metafórica arguir a favor da metafísica
daoísta, num período de efervescência filosófica entre
diferentes escolas [百家争鸣], que se utilizavam de uma
linguagem rebuscada, em busca da hegemonia doutrinária dos
príncipes (SCHMALTZ, 2011a, p. 174).

301
Quando na seleção das traduções que deram origem a 50
fábulas da China Fabulosa (Capparelli e Schmaltz, 2007) e
Contos sobrenaturais chineses (Schmaltz e Capparelli, 2010) já
se havia observado certa recorrência do termo “cavalo” ma 马
em Zhuangzi: “cavalo selvagem 野马”, “todas as coisas são um
cavalo 万物一马也”, “a natureza primordial do cavalo
马之真性” e “do cavalo surge o homem马生人” e ainda a
distinção entre “o cavalo institucional国马” e do “cavalo
natural 天下马”, apenas para citar algumas referências.

No capítulo ‘O prazer da liberdade’ 逍遥游, Zhuangzi (2008,


p. 2-3) inicia a narrativa contando que no mar do norte existia
um peixe gigantesco chamado kun 鲲, que um dia se
transformou num pássaro enorme conhecido por peng 鹏
[roca], que sai a voar pelo mundo. A fábula apresenta através
do olhar da roca, uma imagem de harmonia primordial, em que
o cavalo selvagem é parte integrante da natureza, plena de
energia vital:

野马也,尘埃也,生物之以息相吹也。

302
Durante a viagem ao mar do sul, a roca viu uma tropa
de cavalos selvagens a galopar pelos prados, à poeira
levantada juntava-se a energia emanada pelos seres na
primavera, evidenciando a vitalidade de todas as coisas.
(ZHUANG, 2008, p.1).

No capítulo Casco de cavalo 马蹄, Zhuangzi revela-se


conhecedor da natureza primordial do cavalo 马之真性:

马,蹄可以践霜雪,毛可以御风寒,齕草饮水,翘
足而陆,此马之真性也。虽有义台路寝,无所用之

Os cavalos podem com seus cascos andar sobre a geada


e a neve, e com o seu pelo resistir ao vento e frio; eles
se alimentam de pasto e bebem água, empinam as
pernas e saltam: Esta é a verdadeira natureza dos
cavalos. Eles são indiferentes perante púlpitos ou
mansões. (ZHUANG, 2008, p. 91).

No mesmo capítulo, Zhuangzi ainda versa sobre a


epistemologia equina:

303
夫马,陆居则食草饮水,喜则交颈相靡,怒则分背
相踶。马知已此矣。马所知止此矣。

Quando vivem em campo aberto, os cavalos pastam e


bebem água, entrelaçam e esfregam seus pescoços um
no outro para demonstrar alegria e dão-se coices para
demonstrar a sua ira. Isto é tudo o que sabem.
(ZHUANG, 2008, p. 94).

As colocações de Zhuangzi denotam simplicidade e modéstia


素朴 [supu] de uma perspectiva dialética em defesa de sua
visão naturalista. Importante notar que o filósofo aponta no
capítulo O ajuste das controvérsias 齐物论:

以指喻指之非指,不若以非指喻指之非指也;以马
喻马之非马,不若以非马喻马之非马也。天地一指
也,万物一马也。

É preferível empregar um não conceito para descrever


que um conceito não é conceito do que utilizar um
conceito para descrever que um conceito não é um
conceito; é preferível usar um não cavalo branco para
explicar que um cavalo branco não é um cavalo do que
utilizar um cavalo branco para descrever que um cavalo
branco não é cavalo. O Céu e o Firmamento são apenas

304
conceitos e as coisas são apenas símbolos (ZHUANG,
2008, p. 20).

E no final do capítulo Felicidade suprema 至乐, Zhuangzi dá-


nos pistas de que o cavalo é uma analogia ao ser humano, parte
integrante da ontologia do Dao, já que todas as coisas
surgiriam deste (LAOZI, 2013, p. 110). Zhuangzi diz “Todas
as espécies vêm de sementes. Certas sementes, caindo na água,
tornam-se lentilhas-d'água (...) tornam-se liquens (...) que
produzem o cavalo, que produzem o Homem. Quando o
Homem envelhece, torna-se semente outra vez”15 (ZHUANG,
2008, p. 122-123, tradução de BUENO, 2009). Desta forma, os
regramentos sociais (simbolizado pela domesticação e pela
cultura, em lato sensu), impostos pela vida em sociedade
(personificado em Bole, o oleiro, o carpinteiro e, em última
instância, os governantes) teriam efeitos nocivos ao homem,
confira:

及至伯乐,曰:“我善治马。”烧之剔之,刻之雒之
,连之以羁馽,编之以皂栈,马之死者十二三矣;
饥之渴之,驰之骤之,整之齐之,前有橛饰之患,
而后有鞭厕之威,而马之死者已过半矣。陶者曰:“
我善治埴,圆者中规,方者中矩。”匠人曰:“我善
治木,曲者中钩,直者应绳。”夫埴、木之性,岂欲

305
中规矩钩绳哉?然且世世称之曰:“伯乐善治马,而
陶、匠善治埴木。”此亦治天下者之过也。

Quando surgiu [no mundo] Bole dizendo: “eu entendo


de cavalos”, tudo mudou. Os cavalos passaram a ser
marcados, a ter seus pelos tosados, seus cascos aparados
e terem de andar a cabresto e adornados. [os homens]
Colocaram-no freio e amarraram-no próximo ao cocho
no estábulo. Dessa forma, morreram dois a três de cada
dez. Depois, deixaram o cavalo passar fome e sede,
fixaram-lhe a canga para puxar carro, açoitaram-no para
galopar sob o comando da rédea, resultando na morte de
mais da metade. O [primeiro] oleiro disse: “Eu sei
muito bem como lidar com a argila, moldo-a em esferas
tão perfeitas como se fossem feitas pelo compasso, e em
cubos tão exatos como se fossem medidos pelo
esquadro”. O [primeiro] carpinteiro disse: “Eu sei muito
bem como lidar com a madeira, envergo-a na forma de
um gancho, e deixo-a reta, com o uso de um prumo”.
Mas será que a natureza da argila e da madeira tem que
se adequar ao padrão do compasso, do esquadro, do
gancho e do prumo? Entretanto, geração após geração,
homens gabam-se de Bole como o bom entendedor de
cavalos, o oleiro e o carpinteiro como bons em lidar
com a argila e a madeira. Este é o mesmo erro cometido
pelos governantes do mundo. (ZHUANG, 2008, p. 91).

306
O excerto acima sugere que Zhuangzi condena o altruísmo, a
benevolência 仁16 e a equidade, retidão 义, considerados pelo
filósofo daoísta como comportamentos artificiais adquiridos:
tudo aquilo mediante o que a civilização deturpa e falseia a
natureza. Toda invenção, todo pretenso aperfeiçoamento
(personificado em Bole, oleiro e carpinteiro) não vale mais do
que uma excrescência incômoda: os cavalos domesticados
morrem prematuramente e o mesmo acontece com os homens,
a quem as convenções sociais proíbem de obedecer
espontaneamente ao ritmo da vida universal (cf. LU, 1994, p.
381-385 e 397-399; GRANET, 1997, p. 310; ZHANG, 2003, p.
39). No excerto abaixo, Zhuangzi demonstra o efeito maléfico
da civilidade e encerra a sua arguição condenando o Sábio:

夫加之以衡扼,齐之以月题,而马知介倪、闉扼、
鸷曼、诡衔、窃辔。故马之知而态至盗者,伯乐之
罪也。夫赫胥氏之时,民居不知所为,行不知所之
,含哺而熙,鼓腹而游,民能以此矣。及至圣人,
屈折礼乐以匡天下之形,县跂仁义以慰天下之心,
而民乃始踶跂好知,争归于利,不可止也。此亦圣
人之过也。

Quando colocaram o jugo e a cabeçada sobre o cavalo,


o animal aprendeu a se colocar de lado, a curvar o
pescoço, a cuspir o freio e arrebentar as rédeas com os
dentes em sinal de resistência. A inteligência do cavalo

307
se tornou pérfida como a de um bandido. Este foi o erro
de Bole.

No tempo [mítico] de Hexu, as pessoas viviam, sem


saber o que estavam fazendo, e saíam, sem saber o seu
destino. Elas se divertiam enquanto comiam, e depois
passeavam. Isso era tudo o que faziam. Mas quando
surgiu o Sábio, com a sua ritualística e música
enquadrando a tudo e a todos, doutrinando sobre o
altruísmo e equidade para consolar o povo, as pessoas, a
partir de então, começaram a exaltar a sabedoria e as
disputas de interesses existem desde então. Este foi o
erro do Sábio. (ZHUANG, 2008, p. 94).

No capítulo Xu Wugui 徐无鬼, Zhuangzi divide os cavalos na


classe dos cavalos naturais 天下马 e dos cavalos do reino
国马, este último classificado segundo o padrão estético
humano, que para o filósofo seria inferior às qualidades
naturais do cavalo selvagem, nem sempre reconhecidas pelos
homens. No mesmo capítulo, Zhuangzi apresenta a solução de
boa governança sob o axioma naturalista Dao, através de um
suposto encontro do Imperador Amarelo 黄帝 com um menino
pastor. Huangdi pergunta ao menino como o mundo deveria ser
governado. O menino responde que não se interessa por esse
assunto, mas como Huangdi insiste em saber a sua resposta, o
jovem pastor replica: “não vejo grande diferença entre guardar
um rebanho e governar um reino. Apenas é necessário eliminar
aquilo que faz mal aos cavalos”17 (LU, 1994, p. 537-539). Se

308
entendermos que o cavalo é uma analogia ao homem e à
liberdade primordial, os males que atinge a humanidade seriam
os instrumentos de controle dos governantes, como sugere
Zhang (2003, p. 39-40)

Conclusão

Neste ensaio descreveu-se a presença do cavalo na China antes


da pré-história até a dinastia Han Ocidental, à luz dos achados
paleontológico e arqueológicos, perpassando a história e a
literatura, com o objetivo de discutir a simbologia do equino
neste modelo cultural. O cavalo adquire importância como
meio de transporte que alavanca força militar nas guerras e sua
simbologia desenvolve-se a partir da domesticação do animal.
Finalmente, discutiu-se as dicotomias filosófico-simbólicas
confuciana (entre outras escolas) e daoísta, particularmente de
Zhuangzi. Ambas as escolas partem de uma visão dialética, a
primeira consta o cavalo como o domínio do homem sobre si e
exalta a ordem social, enquanto a segunda apresenta o cavalo
como um axioma da ascese naturalista em oposição aos
regramentos impostos pela vida em sociedade. De um ponto de
vista contemporâneo, porém, o filósofo Zhang (2003, p. 74)
adverte-nos que a exaltação de regresso ao natural do daoísmo
tem de ser analisada em maior profundidade, já que ocorreu
assimilação mútua entre as escolas no decurso da história. O
pensamento confuciano atual propaga o engajamento social à
luz do espírito daoísta. Sobre isto, pretendo tratar em outro
artigo.

309
Notas

1. Sobre o sistema astronômico chinês refira-se a Schmaltz


(2011b).

2. Os ideogramas são escritos em chinês simplificado e as


transliterações fonéticas do chinês para o português estão em
pinyin, de acordo com a norma GBT 16159 (2012). Todas as
traduções são de responsabilidade da autora, salvo indicação
em contrário. As acepções ou traduções livres do chinês para o
português estão sinalizadas entre parênteses angulares.

3. Obra de autoria anônima, que reúne registros de geografia,


hábitos, costumes, lendas e mitos chineses ainda antes do
período dos Reinos Combatentes (475-221 AEC).

4. Remetemos o leitor à tradução de Schmaltz e Capparelli


(2010, p. 93-94).

5. Diferentes de outros povos indo-europeus, os chineses


usavam os cavalos apenas como utensílio de transporte.

6.
[秦马之良,戎兵之众,探前趹后蹄閒三寻腾者,不可胜数
。]

7. O elemento do ideograma que denota a sua significação e


que serve para indexar os caracteres com esse mesmo elemento
em um grupo.

310
8. Já no Dicionário Kangxi 康熙字典 organizado na dinastia
Qing (1644-1911), ultrapassa 500 ideogramas com o radical de
cavalo. Nos dias de hoje, apesar das estimas dos três a quatro
mil empregados na comunicação cotidiana, o Grande
dicionário da língua chinesa汉语大字典 Hanyu Da Zidian com
56.000 ideogramas, registra 620 ideogramas relacionados ao
cavalo.

9. Edição remanescente da dinastia Han Ocidental 西汉 (206


AEC – 24), é considerado um dos clássicos da Antiguidade,
sendo exaltada pelas escolas confuciana, moísta e das leis,
entre outras.

10.As seis aprendizagens em ordem de importância eram: Ritos


(política, moral e etiqueta), Música (música, poesia e dança),
Arco e flecha, Condução, Letras, Matemática e ciências
naturais. À plebe era apenas concedida a alfabetização e a
instrução de matemática, consideradas como uma
aprendizagem menor (YANG et. al. 2008, p. 66-67).

11. [人之性恶,其善者伪也。]

12.
[古之良马也;然而必前有衔辔之制,后有鞭策之威,加之
以造父之驶,然后一日而致千里也。]

13. [骐骥一跃,不能十步;驽马十驾,功在不舍。]

14. Isto é, Zhuangzi 庄子. Também intitulado de Nanhuajing


南华经.

311
15.
[种有几,得水则为继,得水土之际则为蛙 之衣,生于陵
屯则为陵舄,陵舄得郁栖则为乌足,乌足之根为蛴螬,其
叶为胡蝶。胡蝶胥也化而为虫……其名为鸲掇。鸲掇千日
为鸟,其名为乾余骨。乾余骨之沫为斯弥,斯弥为食醯。
颐辂生乎食醯,黄軦生乎九猷,瞀芮生乎腐蠸,羊奚比乎
不 ,久竹生青宁,青宁生程,程生马,马生人,人又反
入于机。万物皆出于机,皆入于机。]

16.Para Granet, há diversas definições em Analectos [Lunyu]


de Confúcio sobre o ren 仁. Essas podem ser indicadas como
“o respeito próprio, a magnanimidade, a boa-fé, a diligência e a
benevolência” (1997, p. 294). Para a escola confucionista, o
princípio do saber era a vida em sociedade (Idem, p. 295)

17.
[夫为天下者,亦奚以异乎牧马者哉?亦去其害马者而已矣
。]

312
Referências bibliográficas

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em: http://escritosinicos.blogspot.com/2011/06/cem-textos-de-
historia-chinesa.html. Acessado em 08/05/2014.

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China Fabulosa. Porto Alegre: L&PM, 2007.

GRANET, Marcel. O Pensamento Chinês, tradução de Vera


Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.

LAOZI. Tao te ching: livro da via e da virtude, tradução,


prefácio e notas de António Graça de Abreu. Lisboa: Vega,
2014.

LU, Qin. Zhuangzi Tongyi [Compêndio de Zhuangzi].


Changchun: Editora do povo de Jilin, 1994.

SCHMALTZ, Márcia. “Os três reis: a anatomia de um conto


não publicado”. In Cadernos de Literatura em Tradução, 12,
pp. 173-186, 2011a.

_____. “O tigre no ano do dragão”. In Aletria, v.21, n. 2, pp.


157-170, 2011b.

SCHMALTZ, Márcia; CAPPARELLI, Sérgio. Contos


Sobrenaturais Chineses. Porto Alegre: L&PM, 2010.

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ZHUANG, Zhou. Zhuangzi, glosa de Yi Li. Xi’an: Sanqin,


2008.

314
OS QUATRO ANIMAIS
COSMOLÓGICOS EM TÚMULOS
HAN COM MURAIS por Nataša
Vampelj Suhadolnik

Introdução

As escavações de túmulos com murais da dinastia Han 漢


(206AEC –220EC), que foram realizadas principalmente
na segunda metade do século XX, e ainda continuam
hoje, trouxeram à luz uma grande quantidade de um rico
material arqueológico que tem contribuído consideravelmente
para o nosso conhecimento de como o povo Han viam a vida
após a morte e seu lugar no cosmos, e como essa visão se
refletiu em sua póstuma morada subterrânea. O chamado
túmulo poço horizontal, que apareceu pela primeira vez no
período de meados de Han Ocidental, marcou uma mudança da
forma até então vigente da sepultura poço vertical. Esta nova
forma permitiu o desenvolvimento de várias câmaras com
funções distintas, e culminou em túmulos de grande porte com
várias câmaras dispostas ao longo de um eixo central, salas e
corredores laterais.1 Uma outra característica que distingue os
túmulos Han dos de períodos anteriores é o uso de tijolos e
pedras para a construção de câmaras sepulturas (Wang 1982,
175)2 . As novas sepulturas poço horizontais, feitas de tijolo e
pedra, provinham uma superfície ideal para uma variedade de
decorações (estampadas, esculpidas ou pintadas). Estes

315
enfeites, que começaram a aparecer com a nova forma
de construção nos meados dos Han ocidentais, conseguiu sua
difusão máxima durante a dinastia Han Oriental (25 -
220EC). O presente artigo focará sobre as representações dos
quatro animais cosmológicos no chamado mushi
bihua 墓室壁画, ou túmulos com murais e imagens pintadas
diretamente sobre as paredes.3 Enquanto estudos anteriores
sobre os murais das tumbas Han discutiram brevemente a duas
forças cósmicas e cinco fases,4 até o momento não houve
nenhum tratamento prolongado do conteúdo do mural e dos
Quatro animais com respeito a teoria yin yang
wuxing 陰陽五行, que fornece uma linha temática básica para
esses murais. Com base no layout arquitetônico completo e no
conteúdo pictórico de túmulos com murais, o presente artigo,
assim, irá reinterpretar a representação dos quatro animais
cosmológicos, tanto em geral quanto sobre o seu papel
específico na teoria yin yang wuxing, como é elaborada no
túmulos.

1.1 Túmulos Han com murais

Atualmente (2012), um total de cerca de 70 túmulos Han com


murais foram escavados.5 A maioria destes túmulos foram
encontrados na província de Henan 河南 (21 tumbas),
especialmente nos arredores da capital da dinastia Han
Oriental, a cidade de Luoyang 洛陽. Mais 24 túmulos foram
escavados nas áreas perto da província de Henan (nove em
Shaanxi 陕西, quatro em Shanxi 山西, três em Shandong 山东,

316
três em Hebei 河北, um em Jiangsu 江苏, dois em
Anhui 安徽e dois na província de Sichuan 四川), enquanto que
concentrações também foram encontradas em certas regiões
fronteiriças: Liaoyang 遼陽, no Nordeste (13), Gansu 甘肅 (6)
e Mongólia Interior 内蒙 (6). A maioria destes túmulos
estavam situados nos principais centros políticos, guarnições
militares estratégicas ou nas cidades economicamente e
culturalmente florescentes da época. Devido à falta de provas
materiais, o estado exato e a posição dos ocupantes dos
túmulos são muito difíceis de determinar. No entanto, com
base nos achados arqueológicos e outras pesquisas analíticas, a
maioria das tumbas foram para os funcionários importantes,
intelectuais e ricos proprietários de terras (Huang 2008, 140-
156).

O conteúdo pictórico dentro dos túmulos é bastante rico e


variado, e geralmente retrata a vida oficial e privada do
falecido, bem como uma ampla gama de seres celestiais que
ocupam o reino celestial ou estão de alguma forma ligados aos
costumes funerários que prevaleciam naquele tempo. Esta
profusão de imagens confirma uma crença generalizada na vida
após a morte. As imagens celestiais também incluem vários
corpos celestes, como o sol, a lua e as estrelas, que são na sua
maioria desenhadas a partir dos 28 casas lunares ou região do
Pólo Norte, bem como os quatro animais.

1.2 A cosmologia yin yang wuxing

317
Embora os túmulos não tenham um esquema iconográfico
padrão, e revelam uma variação considerável em termos de
temas específicos e na organização de motivos em uma
representação conceitual uniforme, dependendo da sua
localização e datação específica dentro do período da dinastia
Han, todos esses motivos parecem estar imbuídos do conceito
de yin yang wuxing 陰陽五行. De fato, como Cheng Te-kun já
observara (Cheng 1957, 180), a união das forças yin e yang,
conforme expresso na circulação constante dos
cinco xings (cinco fases), constitui um fio condutor básico nas
pinturas murais Han.

A cosmologia yin-yang wuxing vê o universo em termos da


interação de duas forças cósmicas com naturezas opostas, mas
complementares, e manifesta ela mesma na paridade ilimitada
de idéias universais, abstratas, e outras noções mais
concretas. Acreditava-se que ambas as forças estariam
presentes em todo o universo, enquanto que a sua interação,
crescimento e declínio representavam a força motriz da
natureza cósmica e todas as suas criaturas. Esta força motriz,
que gera continuamente o ciclo ininterrupto de nascimento-
morte-renascimento, manifesta-se na circulação dos cinco,
interagindo dinamicamente nas fases cósmicas (wuxing),
através do qual toda a matéria na natureza passa. A
cosmologia yin-yang wuxing era uma parte integrante do
pensamento Han, e influenciou todas as áreas da sociedade e da
cultura Han, especialmente a vida espiritual e os costumes
funerários.

318
Para representar essa dinâmica cósmica dentro de um túmulo e
alcançar um equilíbrio cósmico que poderia superar a natureza
transitória da vida humana, as duas forças foram retratadas ou
incorporadas em diferentes formas. As imagens simbólicas
mais comuns usadas para representar essas duas forças
cósmicas, com base na tradição literária e da posição das
próprias imagens, eram o sol ea lua, as duas divindades
lendárias Nüwa 女媧 e Fuxi 伏羲 (que foram muitas vezes
associados estreitamente com o Sol e a Lua), a Mãe do Reino
Ocidental (Xiwangmu 西王母) e seu parceiro complementar, o
Pai do Reino do Leste (Dongwanggong 東王公), e o motivo
de duas criaturas entrelaçadas, geralmente de sexos opostos. As
cinco fases 五行foram geralmente descritas como os Cinco
Palácios em que o Céu foi dividido, juntamente com os seus
habitantes, na forma de divindades, assistentes e espíritos
planetários, bem como uma série de animais divinos que
tinham a função de guardar os palácios. A construção de
tumbas também foi usada para transformar um objeto religioso
em um microcosmo do universo. Na verdade, câmaras-
sepulturas eram geralmente construídas com tetos redondos e
muros de suporte baseado em quadrados, de acordo com
a teoria Gaitian 蓋天說, e o conceito amplamente difundido de
um céu redondo e de uma terra quadrada. No entanto, a fim de
confirmar esse aspecto do design do túmulo, temos de
contextualizar as cenas individuais no âmbito de toda a
composição, e estabelecer as relações entre os conteúdos
pictóricos e os elementos arquitetônicos. Em outras palavras,

319
devemos interpretar as cenas pintadas dentro do contexto de
seu arranjo arquitetônico original.

Os Quatro animais cosmológicos ou Espíritos Animais (dragão


verde-azul, tigre branco, pássaro vermelho e o guerreiro Preto)
são particularmente importantes a este respeito. Conhecido
como si xiang 四象 ("quatro imagens"), si ling 四靈 ("quatro
espíritos") ou si shen 四神 ("quatro divindades"), eles
desempenharam um papel fundamental no estabelecimento dos
aspectos temporais/espaciais das representações cósmicas, ou
seja, as quatro estações e os quatro pontos cardeais, que
aperfeiçoaram a presença do cosmos externos dentro do
complexo do túmulo.

2. Os Quatro animais cosmológicos

2.1. Direções Relativas e Absolutas

O papel dos Quatro animais no esquema cosmológico do yin-


yang e dos cinco xing’s está claramente indicado no terceiro
capítulo do Huainanzi (Liu An, Huainanzi, 'Tianwen Xun',
183-188). Neste capítulo, as quatro imagens simbólicas são
representadas como quatro dos cinco animais divinos, cada um
dos quais guarda seu próprio palácio e contribui para a
circulação criativa das cinco fases (Tabela 1). Em termos
cosmológicos, o dragão verde-azul guarda o palácio oriental, e
simboliza o auge da primavera e a ascensão do yang. No sul, o
seu papel é assumido pelo Pássaro vermelho, que ajuda as
divindades do sul a equilibrar e controlar a fase de fogo, o

320
culminar das atividades de Verão e do yang. O Tigre branco
continua esse papel no quadrante ocidental, que está ligado a
decadência gradual do ano, as atividades do outono e o início
da ascensão do yin . No norte, no zênite de yin e o ponto
culminante da temporada de inverno, as divindades do norte
são ajudados e protegidos pelo Guerreiro Negro.

O papel destas figuras como tutores ou reguladores dos quatro


pontos cardeais também é indicado no trabalho
geográfico, Sanfu Huangtu6 三輔黄圖: »蒼龍、 白虎、
朱雀、 玄武,天之四靈, 以正四方« ‘O dragão verde-azul, o
tigre branco, o pássaro vermelho, e o guerreiro Preto são quatro
espíritos do céu que regulam as quatro direções’. (Wang 1995,
38)

321
Palácio do Palácio Palácio do Palácio Palácio
Norte Oriental Sul Ocidental Central

Xing - 行 Água Madeira Fogo Metal Terra

Quatro
Temporada Inverno Primavera Verão Outono direções
(quatro
estações)

Divindade Zhuan Xu Tai Hao Yandi Shao Hao Huangdi


颛顼 太皞 炎帝 少昊 黄帝

Assistentes Xuan Ming Gou Mang Zhu Ming Ru Shou Hou Tu


Divinos 玄冥 句芒 朱明 蓐收 后土

Chen xing Sui xing Ying Huo Tai bai Zhen xing
Espíritos 辰星 岁星 荧惑 太白 镇星
planetários (Estrela (Estrela do (Vagar (Grande (Estrela
Cronográfica- Ano- brilhante - branca- Calma -
Mercúrio) Júpiter) Marte) Vênus) Saturno)

Animal Guerreiro Dragão Pássaro Tigre Dragão


Negro Verde-Azul Vermelho Branco Amarelo

Tabela 1: Os cinco palácios celestes e suas correlações como


representados no Huainanzi

No Livro dos Ritos, suas direções não estão ligadas às quatro


direções "absolutas", mas sim com as quatro direções
"relativas", que são determinadas pela posição de um objeto em
relação a outro objeto: »行,前朱雀而后玄武,左青龙

322
而右白虎« ‘Na marcha, o pássaro vermelho na frente,
guerreiro negro atrás, o dragão verde-azul para a esquerda e
para a direita o tigre branco’. (Liji, 'Quli shang', 74)

O Huainanzi descreve o mesmo arranjo: "O dragão verde-azul


do lado esquerdo, o tigre branco à direita, o pássaro vermelho
na frente e atrás o guerreiro negro" (Liu
An, Huainanzi, 'Binglüe Xun', 1084). Em sua biografia de
Wang Mang, incluída em sua coleção de "vidas notáveis"
no Han shu 漢, Ban Gu (32-92EC) menciona um arranjo
semelhante dos Quatro animais quando descreve Wang Mang
encomendando suas carruagens, a serem decoradas com o
dragão verde-azul à esquerda, o tigre branco à direita, o pássaro
vermelho na frente e atrás o guerreiro negro (Ban Gu, Han
Shu , 4153). Estes arranjos são consistentes entre si: se estamos
diante de sul, então temos o pássaro vermelho na frente (sul), o
guerreiro negro atrás (norte), o dragão verde-azul à esquerda
(leste) e o tigre branco à direita (oeste) . Se projetarmos esse
arranjo sobre uma superfície plana, o pássaro vermelho está no
topo (sul), o guerreiro negro abaixo (norte), o dragão verde-
azul à esquerda (leste) e o tigre branco à direita (oeste). Esta
situação corresponde com a disposição de outras noções e
elementos do sistema wuxing. Dong Zhongshu 董仲舒(179 -
104 AEC), no Chunqiu Fanlu 春秋繁露, explica que "a
madeira está à esquerda, metal à direita, o fogo na frente, e
atrás a água" (Dong Zhongshu, Chunqiu Fanlu,
capítulo 'Wuxing Zhiyi' 五行之義, 321 ). O Baihu
Tongyi 白虎通義 acrescenta que "a água está no norte... a

323
madeira no leste... o fogo no sul... o metal no oeste"
(Baihutong, capítulo 'Wuxing' 五行, 167-168).

A mesma disposição de direções e posições incorporadas por


diferentes símbolos podem também ser encontradas na
disposição das cinco virtudes, cinco tons, cinco divindades,
etc.7 Este arranjo tornou-se, assim, um formato padronizado do
sistema cósmico, em que uma determinada seqüência de
circulação foi claramente definida, e todos os domínios do
universo conectado dentro de um sistema coerente. A
disposição espacial do pássaro vermelho como frontal, superior
e sul, o guerreiro negro atrás, abaixo e ao norte, o dragão
verde-azul à esquerda e leste e o tigre branco à direita e oeste
tornou-se uma representação padronizada dos Quatro animais,
e foi amplamente usada na arte Han. A aparência dos Quatro
animais simbolizado assim as indicações absolutas ou relativas,
e a sua circulação indica o ciclo sazonal.

2.2. Base astronômica

A associação destes animais com as quatro direções e o


aparecimento de um animal específico para cada direção
originou o sistema astronômico das chamadas 28 casas lunares
(二十八宿). Os antigos chineses dividiram o céu em 28
segmentos, ou xiu 宿, composto por grupos de estrelas, que
serviram como um sistema de referência para determinar os
movimentos do sol, da lua, dos cinco planetas e várias
estrelas.8 As 28 casas foram em seguida divididas em quatro

324
palácios, que foram atribuídos aos quatro animais. Os sete
xiu’s do Leste foram associados com o dragão verde-azul, os
sete constelações do oeste com o tigre branco, as constelações
do sul com o pássaro vermelho e o grupo norte de estrelas com
o guerreiro negro. Sima Qian (145-90AEC). 司馬遷, no
capítulo 'O Livro das Casas Celestiais' ('Tianguan shu'
天官書) de sua famosa história, Shiji 史記, dá uma descrição
detalhada de como o povo Han via o céu. Assim, aprendemos
que os quatro palácios foram dispostos ao longo do equador
celeste nas quatro direções cardeais, enquanto o quinto e
central palácio estava situado no pólo celeste. A tendência para
associar os seres humanos com o Céu, ou a chamada
"ressonância cósmica" entre o Céu eo homem
( Tianren ganying 天人感應), levou o reino celestial a se tornar
um reflexo do sistema social imperial na terra. O palácio
Central com o Pólo Norte se tornou a corte imperial celestial,
que, com o auxílio da Concha do Norte, beidou 北斗,
supervisionava os outros quatro palácios. Beidou tornou-se
assim um símbolo da carruagem do imperador, e sua circulação
em torno do Pólo Norte governava todo o reino celestial, assim
como o imperador supervisionava todas as províncias. Sima
Qian fornece o seguinte comentário:

»斗為帝車, 運於中央, 臨制四鄉. 分陰陽, 建四時,


均五行, 移節度, 定諸紀, 皆系於斗.«

325
»Beidou serve como carruagem do imperador.
Circulando em torno do centro celestial, ele controla as
quatro direções, separa o yin e yang, indica as quatro
estações e equilibra a harmonia dos cinco xings. Ele
organiza os graus dos setores solares e define todas as
unidades do ano civil. Tudo isso se refere a ‘dou’.
« (Shiji, 'Tianguan shu', 1291)

O palácio Central, por meio de Beidou, controlava os quatro


palácios, para que as 28 casas lunares tivessem suas atribuições
e fossem regidas pelas quatro animais. Enquanto Sima Qian
explica por que os palácios do Sul e Oriental foram associados
com o pássaro vermelho e o dragão verde-azul, ele não atribui
explicitamente o tigre branco ao palácio ocidental. No entanto,
ele vincula a imagem do tigre com duas casas: Shen 参
e Zi 觜, o que poderia, em conexão com quatro estrelas
maiores em torno de três estrelas em uma linha reta se parecer
com o ombro, a coxa e a cabeça de um tigre (Shiji, 'Tianguan
shu', 1306). Ele também atribui o palácio do Norte para o
guerreiro negro ("O palácio do Norte é o guerreiro negro, Xu e
Wei", Shiji, 'Tianguan shu', 1308), mas não nos dá nenhuma
razão para esta associação.

De acordo com Sima Qian, a imagem do pássaro estava ligada


ao palácio do sul, quatro de suas casas configuram claramente
a imagem de um pássaro: casa Liu 柳 era o bico do
pássaro, Xing 星 é sua nuca, Zhang 張 sua barriga e Yi 翼 as
asas (Shiji, 'Tianguan shu', 1303) (Fig. 1).

326
As casas Liu, Xing, Zhang e Yi formam, assim, a imagem de
um grande pássaro com as asas estendidas, enquanto os nomes
de algumas das casas indicam as partes de um pássaro.

Fig. 1: Casas Liu, Xing, Zhang e Yi no sul (Feng 2001, 313)

Enquanto a imagem da ave está presente em quatro das sete


casas, a imagem do dragão é ainda mais completa, e pode ser
identificada em todas as sete casas. Além disso, todas as casas,
exceto uma, são nomeadas como partes do corpo do
dragão: Jiao 角 Chifre, Gang 亢 pescoço, Di 氐 raiz (peito do
dragão), fang 方 quarto (barriga), Xin 心 coração e Wei
尾 cauda. Embora a nomeação da sétima casa Ji 箕 peneira,
não reflete qualquer parte do corpo do dragão, a sua forma
longa e retorcida já havia sido identificada com a cauda do

327
dragão, e, portanto, com o próprio dragão, nos períodos Shang
(1600-1050 AEC) e Zhou (1050-256 AEC). Uma evidência
mais explícita de que a imagem do dragão foi associada a todas
as sete casas do palácio do Leste pode ser encontrada através
da comparação do antigo personagem long 龍(dragão) com as
figuras das sete casas (Fig. 2).

Fig. 2: Comparação de caráter long 龍 com as sete casas no


palácio do Leste (1-7: Dragão em inscrições de ossos
oraculares Shang; 8-9: Dragão nas inscrições em bronze dos
Zhou Ocidentais; 10-12: As configurações das sete casas no
palácio do Leste (Feng 2001, 307)

Feng Shi comparou a imagem do dragão tal como ela aparece


nos caracteres antigos encontrados ossos oraculares Shang e
nas inscrições em bronze dos Zhou Ocidental com as sete casas

328
do palácio do leste. (Feng, 2011, 306-307). As configurações
das estrelas nas casas individuais, bem como a ligação de casas
individuais por meio da estrela determinante (距星 juxing) da
casa do Quarto (fang), revelam uma imagem fascinante que é
idêntica aos antigos pictogramas do drgaão encontrados nos
ossos oraculares e inscrições de bronze. Esta semelhança indica
que o pictograma do dragão nas inscrições antigas deriva das
estrelas e da observação astronômica. Também pode indicar
que a imagem do dragão tem sua base nas estrelas ou, o que é
mais provável, que a imagem do dragão, que desempenhou um
papel tão importante na vida dos povos Shang e Zhou, foi
projetada no céu.9

Ainda mais explícita, uma associação antiga entre o dragão


com as estrelas do leste é encontrada no hexagrama qian 乾
no Livro das Mutações. O hexagrama qian é composto de seis
linhas inteiras, enquanto os comentários para cada linha
revelam as diferentes posições do dragão da primavera ao
outono, como Shaughnessy (1997, 197-219) apontou. Por
exemplo, a parte inferior linha, chamada dragão submerso
潛龍, mostra a constelação do dragão no inverno, quando ela
não é visível acima do horizonte leste. A segunda linha, ver o
dragão no campo 見龍在田 indica a aparência do chifre do
dragão (casa lunar Chifre) acima do horizonte no início de
março. As linhas, agora pulando na profundidade 或躍在淵 e
dragão voando nos céus 飛龍在天 descreve a aparição gradual
da constelação do dragão no céu, enquanto as duas últimas
linhas, pescoço do dragão 亢龍 e ver o bando de dragões sem

329
cabeça 見群龍无首, indicam o seu mergulho e
desaparecimento de vista.

3. Representação dos Quatro Animais cosmológicos em


túmulos com murais

A associação dos quatro animais com constelações nos quatro


quadrantes do céu também está claramente representada nos
murais dos túmulos. Depois de criar a estrutura do cosmos na
forma de um teto redondo sobre o cômodo quadrado, o
próximo passo era retratar os corpos celestes no teto.

Em um túmulo descoberto pela Universidade


Jiaotong 交通大學, Xi'an, na província de Shaanxi10, em
1987, e datado do final do século I AEC, um sistema de 28
casas lunares aparece dentro de dois anéis concêntricos no teto
(Fig. 3). A divisão das 28 casas em quatro palácios
simbolizadas pelos quatro animais também é claramente
evidente. O dragão verde-azul representa seis casas no leste. O
corpo do dragão é longo e ondulado, e ele possui quatro
estrelas em suas garras, tem uma na ponta de sua cauda e oito
estrelas conectados em seu chifre, que, além da Casa Chifre
(Jiao), representam as estrelas vizinhas. No Sul podemos ver a
imagem do pássaro vermelho, que também incorpora estrelas
individuais para representar as casas do sul. O oeste revela a
imagem do tigre branco e, portanto, da casa Shen (Tríade),
enquanto a casa Zi (Bico) é descrita como uma coruja. O
domínio norte é representado pelo guerreiro negro na forma de

330
uma cobra, que está contido ou encerrado dentro de um grupo
de estrelas interligadas. De acordo com Tseng (2011, 317), os
artesãos do túmulo inseriram uma cobra dentro da casa
norte Xu (虚), enquanto Feng (2001, 315-320) por sua vez
argumenta que essas estrelas representavam duas casas do
norte, Xu e Wei (危), que a imagem do guerreiro negro deriva
destas duas casas do norte, e que as estrelas podem ser
configuradas como uma tartaruga. Ele explica ainda que a
ligação entre a tartaruga e cobra deriva da constelação de 22
estrelas (chamado Tengshe 螣蛇, cobra voadora) ao norte das
casas Xu e Wei, que se assemelha a uma serpente voadora.

Uma imagem semelhante é encontrada em um túmulo


descoberto perto de Luoyang11 (Yintun Xinmang bihuamu
尹屯新莽壁畫墓) em 2003, e datado do período Xin Mang
新莽 (9-23 EC). A câmara central contém uma imagem
celestial com base no sistema de 28 casas lunares, juntamente
com a Concha do Norte.12 O sol e a lua ocupam o centro do
teto, com os cinco palácios celestes distribuídos ao redor deles,
e com a orientação adequada (Fig. 4). Grossas linhas marrom-
avermelhadas definem claramente o Cinco palácios, que
refletem e reforçam as cinco fases. Dentro dos cinco palácios,
casas individuais e outras constelações estão relacionados com
figuras humanas e animais, fornecendo uma imagem muito
completa do universo.

331
Fig. 3: Cena no teto de um túmulo da Universidade
Jiaotong, Xi`an, Shaanxi (Chen 2003, col. Fig. 3)

332
Fig. 4: Câmara Central de Yintun Xinmang
bihuamu (Luoyangshi di er wenwu gongzuodui de 2005,
ilustração (圖版) 7.2)

333
Fig. 5: Guerreiro negro na encosta norte em Yintun Xinmang
bihuamu (Luoyang shi di er wenwu gongzuodui 2005:
ilustração (圖版) 19)

Descritas na encosta norte estão cinco estrelas, com duas


serpentes sinuosas entre elas (Fig. 5). A posição, as duas cobras
e o número de estrelas indicam que esta é uma imagem do
guerreiro negro13, que é mais uma vez representado em termos
nas casas Xu e Wei. A imagem é praticamente idêntica a da
pintura em Xi’an, exceto pela representação das cobras, pois no
túmulo Yintun, as duas cobras se entrelaçam ao redor da
tartaruga, enquanto em Xi’an a cobra aparece dentro da
imagem da tartaruga (ver também Feng, 2005, 74). De ambos
os exemplos, podemos concluir que as cinco estrelas com a

334
serpente representam o guerreiro negro (na imagem
esquemática da tartaruga com a cobra torcida em torno dela), e
referem-se a duas casas do norte, que para este povo antigo
evocavam a imagem de uma tartaruga. Sima Qian também
observa que o "o palácio do norte é o guerreiro negro, Xu Wei"
(Shiji, 'Tianguan shu', 1308), embora sem oferecer qualquer
explicação para esta ligação. O fato dele não fornecer uma
descrição detalhada de outro animal do norte, ou do guerreiro
negro, indica que a associação do guerreiro negro com o
palácio do norte ainda não havia sido universalmente adotada e
padronizada no momento da sua escrita. Em um túmulo
pintado de Yongcheng 永城, em Henan 河南, datado do
período de Han Wudi 漢武帝, cerca de 136 AEC (Yan
2001 , 236-238), e, portanto, quando Sima Qian ainda era um
jovem, o animal do norte não é retratado como uma tartaruga,
mas tem uma escama, como um corpo de peixe. A pintura no
teto da câmara principal mostra um dragão grande e ondulado,
com chifres em um fundo vermelho, um pássaro de pescoço
longo, um tigre branco e uma estranha criatura com uma
cabeça de pato e o corpo de um peixe (Fig. 6).

335
Fig. 6: Pintura no teto da tumba Henan Yongcheng com murais
(Yan 2001, 363)

Este fenômeno também pode ser observado em outras tumbas e


pinturas da Dinastia Han anterior. Um espelho de bronze do
túmulo n. 1612, no Estado de Guo 虢國, nos cemitérios em
Sanmenxia 三門峽, Henan, e que data do nono ao sétimo
séculos AEC14, fornece uma imagem ainda mais nítida de um
antigo protótipo do animal do norte. Os Quatro animais são
representados nos quatro lados do espelho (Fig. 7), mas em
frente ao pássaro sul, encontramos uma criatura que se parece
com um cervo. De acordo com Feng (2001, 315), as
decorações pintadas em uma caixa laqueada escavado no
túmulo de Zeng Hou Yi 曾侯乙, na província de
Hubei 湖北15, de 433 AEC, também apresentam a imagem de

336
um cervo, que aparece ao lado das casas Wei e Xu do norte,
igualmente no lado norte da caixa (Fig. 8).

Fig. 7: Espelho de bronze dos cemitérios em Sanmenxia, no


estado de Guo, Henan (Zhongguo kexueyuan kaogu yanjiusuo
1959, 27)

337
Fig. 8: O esquema de uma caixa laqueada do túmulo de Zeng
Hou Yi 曾侯乙 (Feng 2001: 277)

Outro exemplo é encontrado na tumba Bu Qianqiu 卜千秋, em


Luoyang, Henan,16 que data do final da dinastia Han
ocidental, durante o período dos imperadores Zhaodi 昭帝 e
Xuandi 宣帝 (86-49 AEC). A tumba consiste em uma
passagem, uma câmara principal (construída de tijolos furados)
e salas laterais (construído de tijolos pequenos). O teto da
câmara principal, que é composto de vinte tijolos pintados,
mostra as imagens a seguir, de oeste para leste (ou seja, a partir
da parede traseira para a porta) (Fig. 9): um ser estranho na
forma de um peixe ou serpente, o sol com um corvo, Fuxi, um
homem e uma mulher que montam uma serpente, e um pássaro
de três cabeças17, Xiwangmu acompanhado por um sapo, uma

338
lebre e uma raposa com nove caudas, o tigre branco, o pássaro
vermelho, duas criaturas como unicórnios, o dragão verde-azul,
uma figura humana alada, a lua com um sapo, Nüwa e nuvens
auspiciosas.

Fig. 9: Pintura no teto da tumba Bu Qianqiu (He 2001, 29)

Tem havido um debate entre os estudiosos quanto ao que as


duas criaturas estranhas entre o pássaro vermelho e o dragão
verde-azul representam. Sun Zuoyun caracteriza essas criaturas
como xiaoyang 枭羊 (coruja-ovelha), um híbrido que combina
as características de ambos os animais (Sun 1977b, 129). Sua
identificação é baseada principalmente em descrições literárias
desse animal, e sobre o papel que o xiaoyang desempenhava
em representações da entrada para o reino celestial. Outro
estudioso chinês, He Xilin, afirma que a imagem representa

339
uma espécie de divindade do vento ou um animal divino,
feilian 蜚廉 (飛廉) (He 2002, 32-33). Embora essas
interpretações sejam geralmente confirmadas por fontes
literárias18, não devemos ignorar a composição integral da
pintura do teto, que além de entrada da alma para o céu,
também mostra claramente os quatro animais
cosmológicos. Entre o sol e a lua, há quatro animais, com o
tigre branco, o pássaro vermelho e dragão verde-azul
claramente distinguíveis. A criatura estranha no teto, portanto,
só pode se referir ao animal do norte, a fim de completar o
esquema dos quatro animais. No entanto, neste túmulo o
agrupamento dos Quatro Animais segue exemplos anteriores,
com o animal do norte na forma de um unicórnio, que derivou
originalmente a partir da imagem de um veado.19 Estes
exemplos confirmam que, antes de ser padronizado como uma
tartaruga preta, o animal do Norte foi muitas vezes
representado em uma forma um tanto vaga, ou como um
unicórnio, cobra ou peixe.

Um dos primeiros exemplos do motivo “tartaruga e cobra” é


encontrado nos tijolos decorados no mausoléu do Imperador
Wu 漢武帝 (156-87 AEC) (Tseng 2011, 255), que data
aproximadamente do mesmo período que Sima Qian associou o
palácio do norte com o guerreiro negro. No entanto, a
transformação de um cervo ou um corpo de peixe em uma
tartaruga provavelmente não se tornou uma característica
padronizada nos murais dos túmulo antes do período Xin Mang
(9-23 AEC). Com exceção da tumba acima mencionada, da
Universidade Jiaotong em Xi’an, todas as outras tumbas do

340
período Han Ocidental seguem, mais ou menos, a tradição
anterior de um animal parecido com um veado, ou retratam
apenas dois dos quatro animais. Como observamos, o túmulo
de Xi’an com 28 casas lunares em dois círculos concêntricos
no teto, mostra uma imagem esquemática de uma tartaruga nas
duas casas do norte, sendo mais consistente com a descrição de
Sima Qian do palácio do norte. Mas dois outros túmulos do
mesmo local e período ignoram o estilo contemporâneo e mais
elegante da composição, e retratam apenas dois dos animais -
ou um pássaro e dragão ou um dragão e tigre - evitando assim a
questão intrigante do animal do norte.20

Na província de Henan, perto da cidade de Luoyang, e,


portanto, a alguma distância de Xi’an, a antiga tradição é
mantida, e um animal veado aparece. Já mencionamos o
túmulo em Yongcheng, na província de Henan, com o animal
do norte representado com escamas, corpo do peixe, e o túmulo
Bu Qianqiu de Luoyang, onde ele aparece como um
unicórnio. Outro exemplo é encontrado em Shaogou 燒溝,
túmulo n. 61, em Luoyang.21 Este túmulo é composto por uma
passagem, câmara principal e duas salas laterais. A câmara
principal é dividida por uma parede divisória, com o dragão
verde-azul, tigre branco e o pássaro vermelho retratado em
torno de uma criatura grande e incomum. No canto
superior direito, podemos ver uma criatura rastejante com
pintas ao redor do corpo (Fig. 10).

341
Fig. 10: Pintura na parede divisória em Shaogou, túmulo
n. 61, de Luoyang (Detalhe da parede divisória) (Huang 1996,
96)

Sun Zuoyun (1977a, 1986) interpretou esta cena como uma


cerimônia de exorcismo e identificou a principal criatura
como Fangxiangshija 方相氏. Para Guo Moruo (1964, 4), a
cena tem um significado cosmológico, com o entrelaçamento
de duas forças cósmicas que são assistidos pelo divino, por
animais simbólicos. Ele identificou as duas figuras próximas
aos dois objetos redondos como um homem e uma mulher, que
encarnam yin e yang, enquanto os objetos redondos poderiam

342
simbolizar o sol e a lua. He Xilin (2001, 21-22) desenvolveu
essa interpretação, e identificou as duas figuras
como Fuxi e Nüwa, que detêm o sol e a lua em suas mãos. As
duas imagens com o sol e a lua refletem, assim, o
entrelaçamento de duas forças cósmicas, enquanto os outros
animais encarnam o espaço cósmico e o tempo. Enquanto He
Xilin reconhece a presença do dragão, do pássaro e do tigre, ele
não faz nenhuma menção do animal do norte, e identifica o
animal misterioso no canto superior direito, como o híbrido
coruja-ovelha, xiaoyang (He 2001, 21). No entanto, dada a
presença dos outros três animais e o significado cosmológico
de toda a cena, o animal no canto superior direito só pode
representar o animal norte na forma de um unicórnio. Esta
criatura se assemelha ao encontrado nas proximidades do
túmulo Bu Qianqiu, completando assim o esquema dos quatro
animais e as conotações de espaço/tempo da composição
completa.

Com base nesses exemplos, podemos concluir que a


representação do animal do norte, nas tumbas do final dos Han
Ocidentais, segue a tradição anterior. Um dos primeiros
exemplos de a imagem da tartaruga é encontrado nos túmulos
do período Xin Mang. Os murais da câmara dos fundos da
tumba em Jinguyuan 金谷園, de Luoyang, são datados do
período Xin Mang, ocupando o centro, a linha longitudinal do
teto e as porções superiores das paredes do leste, oeste e
norte. Estes murais retratam os assistentes divinos e tutores de
animais de todos os cinco palácios celestiais22, enquanto a
tartaruga preta e uma cobra aparecem na parede norte (Fig.

343
11). A tartaruga preta também aparece no túmulo Pinglu 平陸,
em Shanxi 山西, que data da primeira metade do século I23, e
entre as estrelas no teto do túmulo Yintun acima
mencionado. Em túmulos posteriores do período Han Oriental,
ela é encontrada frequentemente em conjunto com os outros
três animais24, indicando que o guerreiro negro já havia se
tornado um padrão representação do animal do norte durante
este período.

Fig. 11: Tartaruga preta na parte superior da parede norte no


túmulo Jinguyuan (Huang 1996, 120)

4. Papel dos animais de quatro em túmulos com murais

Os ricos conteúdos das cenas pintadas dentro dos túmulos só


podem ser interpretados corretamente dentro do contexto de

344
seu arranjo arquitetônico original, e tendo em conta todo o
programa pictórico. Com base nesta abordagem, o conteúdo
das pinturas pode ser reduzido a dois grupos básicos de cenas:
as do céu e do mundo celestial, retratados no teto ou nas partes
superior das paredes, e cenas do mundo terrestre, que cobrem
as grandes superfícies das paredes. Os Quatro animais
pertencem ao primeiro grupo, geralmente aparecendo na parte
superior das paredes ou no teto, e de acordo com as suas
indicações absolutas ou relativas. Eles muitas vezes aparecem
com estrelas, em deferência às suas origens astronômicas e a
associação com o Céu e suas 28 casas lunares. Essa conotação
celestial significava que eles encontravam-se frequentemente
na companhia do sol com um corvo, a lua com um sapo, com
outras grandes estrelas, pessoas aladas, divindades e várias
criaturas celestiais estranhas, que forneciam os componentes-
padrão de cenas celestiais. Com base nessas características, os
Quatro animais foram assim incorporados às vezes no motivo
da Entrada no Céu, onde tinham um papel importante na
condução da alma para o seu paraíso celestial. Como
descrevemos acima, as imagens de um homem e uma mulher
que montam uma serpente, e um pássaro de três cabeças
caminhando para o reino imortal de Xiwangmu, com
Fuxi e Nüwa no final da seqüência pictórica, é encontrada no
teto da tumba Bu Qianqiu (Fig. 9). O casal falecido é precedido
por um tigre, um pássaro, um animal do norte na forma de um
unicórnio e um dragão, que estão levando o casal para a lua
com Nüwa. Como Tseng indicou (2011, 293-294), embora
Xiwangmu apareça por trás das nuvens, parece que o seu
domínio imortal não é o destino final, pois a procissão continua

345
a se mover em diante. A cena pintada provavelmente tenta
recriar toda a dinâmica cósmica, encarnando as
forças yin e yang nas imagens de Fuxi com o sol e Nüwa com a
lua, e no qual o paraíso Xiwangmu é apenas uma parte do
todo. As pinturas do teto às vezes misturam os dois reinos do
Céu, ou seja, o próprio céu, com o sol, a lua e outros corpos
celestes observáveis, e o reino de um paraíso eterno, sem
qualquer distinção clara ou demarcação entre eles. As pinturas
poderiam, assim, concentrar-se em um aspecto específico
qualquer, ou combiná-los em uma representação dinâmica do
cosmos, onde a alma iria encontrar sua eterna morada ou lugar
de descanso. Os quatro animais tinham, assim, o papel de
conduzir a alma para o cosmos perpétuo, dando-lhe uma
orientação precisa sobre a sua viagem para a eternidade. Um
papel similar de orientação também é descrito no poema
'Xishi' 惜誓 (‘Dor da traição’), no Chuci 楚辞 (Elegias de
Chuci) ( Hong Xingzu 洪興祖, ed. Chu ci buzhu 楚辭補注,
228; Hawkes, 1985, 115):

Ai de mim! Eu envelheço e, declino cada dia mais;

Os anos passam rapidamente, e não vão voltar.

Eu montei no céu azul e subi a suas alturas;

Cruzando as miríades de picos abaixo, cada vez mais longe e


longe eu voei.

...

346
Eu olhei pra baixo, e vi os meandros de todos os rios,

...

E veio, onde os quatro mares me encharcam com sua espuma.

Subi até a Estrela Polar e descansei ali algum tempo,

Sugando o vapor úmido para preencher meu vazio.

Eu incitei o pássaro escarlate a voar diante de mim;

Eu andei na Grande carruagem de marfim.

O Dragão Verde retorcido desenhou seus rastros à esquerda;

O Tigre Branco corria como um corcel a minha direita;

...

Devido aos Quatro animais originarem-se da observação dos


fenômenos celestes, o seu papel como mensageiros entre o Céu
e a Terra, assim como de escoltas para os falecidos no Céu em
seu caminho rumo à eternidade, aparecem como um
desenvolvimento natural. Como emblemas dos céus ou do
firmamento, e como escolta da alma que partiu, eles também
tinham um papel protetor, com a função de exorcizar os maus
espíritos e ajudar a alma a chegar ao seu destino. Ao mesmo
tempo, sua aparência de animais ferozes pretendia assustar
qualquer intruso com a intenção de prejudicar o falecido. Por
este motivo, eles foram por vezes representados por cima da
porta, ou na porta atual das sepulturas com pedras pictóricas.25

347
Os Quatro animais aparecem, assim, em três contextos
diferentes e com papéis multifuncionais: no seu papel de uma
das quatro direções, como símbolos das estrelas e do próprio
Céu, como escoltas da alma que partiu, e, finalmente, como
protetores da tumba e de seus ocupantes. No entanto, como a
sobreposição constante de diversas noções, sem demarcações
distintas ou relações claramente definidas, é uma característica
comum na arte funerária chinesa, seus papéis eram
intimamente relacionados e determinados pelo arranjo real do
túmulo, a fim de criar um espaço cosmológico em que a alma
poderia encontrar o seu lugar de descanso eterno. Os murais e
os quatro animais devem, portanto, ser compreendidos nos
termos da cosmologia yin yang wuxing, que aparece como o
principal segmento na arte funerária Han.

Uma vez que o quadro do cosmos tinha sido reforçado pelo


teto abobadado, que incorporava explicitamente a noção de gai
tian 蓋天 ("cúpula do céu”), e, portanto, de um céu redondo e
de uma terra quadrada, tianyuan difang 天圓地方, o próximo
passo foi o de apresentar, e de alguma forma capturar ou
resumir, a essência de todos os fenômenos naturais. Isso foi
feito através da representação das estrelas no teto, do sol e da
lua, Fuxi e Nuwa, Xiwangmu, e Dongwanggong, figuras que
encarnam as duas forças cósmicas, e sua interação que
constantemente tece a urdidura e a trama do cosmos.26 Tendo
estabelecido o equilíbrio harmonioso das forças cósmicas, o
próximo passo foi incluir as quatro direções e as quatro
estações, a fim de fornecer as forças cósmicas uma orientação
mais específica no espaço e no tempo. Isso, na verdade, foi o

348
papel dos quatro animais. Finalmente, com os representantes
individuais dos cinco palácios celestiais, que encarnavam o
conceito dos cinco xings, todo o cosmos foi recriado, e o
túmulo fornecia uma imagem completa do universo externo.

Um exemplo desta forma de interpretação aparece no projeto


pictórico da câmara traseira do túmulo Jinguyuan, em
Luoyang. As paredes superiores são pintadas com os
assistentes divinos e os animais guardiões de todos os cinco
palácios celestiais (Fig. 11) (Luoyang bowuguan 1985; He
2001, 50). No centro do teto da câmara, encontramos o palácio
central com os seus próprios símbolos e divindades que regem
as quatro direções. Esta posição central é ainda reforçada pela
sua posição sobre o teto, com as outras direções descritas
abaixo, nas partes superiores das paredes. Além do palácio
central e das imagens a ele relacionadas, o teto também mostra
o sol e corvo (sul), e a lua e o sapo (norte). Como He aponta
(2001, 55-56), todo o sistema pictórico reflete a teoria yin
yang wuxing. As forças cósmicas yin e yang são indicados pelo
sol e pela lua, pássaro e sapo, que são corretamente
posicionados nos lados sul e norte da tumba, enquanto que a
circulação das cinco fases é representada pelos cinco
assistentes dos cinco palácios (Hou Tu 后土, Gou Mang
句芒, Zhu Rong 祝融, Ru Shou 蓐收, Xuan Ming 玄冥), e os
cinco animais divinos (dragão amarelo, dragão verde-azul,
pássaro vermelho, tigre branco e guerreiro negro),
[representados] entre os quatro animais, também reforçam as
conotações espaciais e temporais. Esta circulação temporal é
ainda mais evidente na pintura do teto de um túmulo

349
descoberto pela Universidade Jiaotong, em Xi’an. Aqui, os
segmentos zoomórficos e antropomórficos estão representados
dentro de dois círculos concêntricos, cujo centro coincide com
o centro do teto redondo (fig. 3). Nesta configuração, os Quatro
animais são especialmente proeminentes, e seu arranjo
específico define a orientação espacial. Como Wu Hung
mostrou (2010, 154-155), seus movimentos geram progressões
lineares que, por meio de movimentos yin e yang no ciclo
dinâmico das cinco fases, reforçam uma sensação de
movimento contínuo, circular. Toda a composição pictórica
reflete muito claramente a cosmologia desse período. O
posicionamento do sol com o pássaro no sul (yang), a lua com
o sapo e lebre no norte (yin) e os animais que representam as
28 casas (e, portanto, os palácios celestiais), distribuídos entre
os quatro pontos cardeais, refletem a integralidade da
percepção do componente espaço-tempo do universo e do
entrelaçamento de yin e yang. Os Quatro animais não
simbolizam apenas o conceito espacial, mas por meio da
progressão temporal, também simbolizam as quatro estações do
ano e uma concepção cíclica do tempo. O movimento temporal
também é corroborado pela representação gráfica de dois
círculos concêntricos, os quais, de acordo com a teoria Gai
tian, aludem a um céu circular.

350
5. Conclusão

Os Quatro animais constituem um dos motivos mais comuns


no programa pictórico dos túmulos Han com murais. Ocupando
posições precisamente determinadas dentro de todo o projeto
arquitetônico e de composição pictórica, eles encarnam as
quatro direções e as quatro estações, que determinam a
estrutura espacial e temporal da tumba. Eles asseguram, assim,
uma orientação correta para a alma do falecido, situando-a
dentro de um espaço cósmico, enquanto sua disposição correta
garante um equilíbrio cósmico e a interação harmoniosa das
forças cósmicas no círculo das cinco fases. Dadas estas
características, eles também tinham, muitas vezes, a tarefa de
guiar a alma com segurança ao seu destino final, seja a terra
imortal ou outra morada dentro do cosmos eterno. Como esta
viagem era repleta de perigos, eles também funcionavam como
protetores, que defendiam a alma dos maus espíritos e traziam
sorte. O seu papel multifuncional (como símbolos das direções
e estações, guias e protetores) cresceu, portanto, para além de
sua associação com grupos de estrelas específicas nos quatro
quadrantes do céu, e sua circulação ao redor céu.

O povo Han recriou a estrutura cósmica na forma de um teto


redondo sobre a forma quadrada da câmara, enquanto que com
os códigos simbólicos da teoria yin yang wuxing, eles
representavam a dinâmica de todo o universo. Dentro deste
contexto ideal, a representação dos Quatro animais não só
encarnava o tempo e espaço, mas também - como eles eram
particularmente adequados para o papel de orientar e proteger a
alma do falecido – situava-os em um contexto cósmico eterno.

351
Notas

1. Alguns exemplos bem conhecidos incluem o túmulo


Helingeer 和林格爾壁畫墓na Mongólia Interior, com seis
quartos, o túmulo Wangdu 望都漢壁畫墓 com cinco salas
principais ao longo do eixo central, e o túmulo Anping
Lujiazhuang 安平逯家庄壁画墓 com 10 quartos.

2. Para a evolução da construção dos túmulos Han, ver Wang


1982, 175-231.

3. Além de túmulos com murais (mushi bihua 墓室壁画 ou


bihua mu 壁画墓), os túmulos com pedras pictóricas (huaxiang
shi mu 画像石墓) e tijolos (huaxiang zhuan mu 画像砖墓)
também foram descobertos, enquanto decorações também
aparecem na sarcófagos e outros objetos funerários enterrados
dentro da tumba.

4. Ver Huang 1996, He 2001, Huang 2008, Wu 2010, Tseng


2011, Wang 2012, Cheng 2012.

5. He Xilin (2001) lista 56 túmulos que haviam sido escavados


até o final do século 20. Huang Peixian (2008) acrescentou
mais nove túmulos, principalmente novas escavações desde
2000, enquanto Vampelj Suhadolnik (2014) inclui um
adicional de cinco túmulos.

6. Sanfu Huangtu é uma das fontes mais importantes para


textuais Chang’an 長安. Ele teria sido compilado,
originalmente, no terceiro século EC, mas, mais recentemente,

352
ele foi datado entre o sexto e oitavo séculos EC, e,
provavelmente, incorpora passagens compostas em diferentes
períodos (ver Hsing 2010, 190, nota 19; 211, nota 90). Embora
fora do contexto histórico visto neste artigo, o conceito dos
Quatro Animais como reguladores das quatro direções foi
transmitido aos séculos posteriores, como pode ser visto nas
representações das Quatro animais em túmulos mais recentes.

7. Ver também Cheng 2012, 175 .

8. Para as 28 casas lunares, consulte Sun 1997, 113-119; Feng


2001, 302-320; Tseng 2011, 238-249.

9. Ver também Tseng 2011, 247.

10. Para mais detalhes, consulte Shaanxi sheng kaogu


yanjiusuo 1991.

11. Ver Luoyang shi di er Wenwu gongzuodui 2005.

12. Para uma discussão aprofundada sobre a base astronômica


do túmulo Yintun, consulte Feng 2005.

13. Além da imagem do guerreiro negro, os murais também


retratam um dragão no lado oriental e um tigre branco correndo
na parede oeste. Em contraste com os outros animais, o pássaro
vermelho não aparece como uma imagem, mas está
incorporada nas estrelas de quatro casas do sul, que configuram
o pássaro.

14. Para um relatório sobre este cemitério, consulte Zhongguo


kexueyuan kaogu yanjiusuo 1959.

353
15. Para um relatório, consulte Hubei sheng bowuguan 1989.

16. Para um relatório, consulte Luoyang Bowuguan 1977.

17. Acredita-se que, no geral, essas figuras eram das almas das
pessoas enterradas dentro do túmulo. Eles estão caminhando
para a eternidade e o reino imortal, o que é claramente
simbolizado por Xiwangmu, que aparece por trás das nuvens
em ondas.

18. Para uma discussão detalhada sobre a imagem e sua


comparação com as fontes literárias, consulte Vampelj
Suhadolnik 2009.

19. Para uma discussão detalhada, ver também Feng 2001, 317
e Vampelj Suhadolnik 2009.

20. Ver a tumba Ligong daxue n. 1 理工大學 (Xi'an shi wenwu


baohu kaogu suo 2006) e a tumba Cuizhuyuan 翠竹園 (Xi'an
shi wenwu baohu kaogu suo, 2010). Além disso, a tumba
Qujiangchi n. 1 曲江池 omite a representação dos quatro
animais por completo, no entanto, este túmulo está seriamente
danificado. Dado que nenhum objeto de sepultamento foi
encontrado, e o estilo da pintura difere de outros túmulos, a
datação permanece discutível (Xu, 1987).

21. Para um relatório, consulte Henan sheng wenhuaju Wenwu


gongzuodui 1964.

22. Para mais detalhes, consulte Luoyang Bowuguan 1985 e


He 2001, 50.

354
23. Ver também Shanxi sheng wenwu guanli weiyuanhui 1959.

24. Por exemplo, o túmulo Helingeer na Mongólia Interior (Nei


menggu zizhiqu wenwu gongzuo dui, ed. 1978), tumba Haotan
no.1 túmulo, de Dingbian County, Shaanxi
(陝西定邊郝灘1好墓) (Shaanxi sheng kaogu yanjiusuo
2004), tumba Minyue Baguaying n.1 (民樂八挂營1好墓) (Shi,
1993), e outros.

25. Por exemplo, o túmulo em Dangjiagou 党家沟, em


Mizhi 米脂, Shaanxi (Li 1995, 25), ou o túmulo em
Housijiagou 後思家溝 em Suide 绥德, Shaanxi (Li 1995,
68). Para mais uma menção destes túmulos ver Tseng 2011,
261-263.

26. Para uma discussão sobre Fuxi e Nüwa e seu papel


simbólico de yin e yang ver Vampelj Suhadolnik 2011; ver
também Feng 2001, 13-38; Tseng 2011, 277-297.

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362
A REDESCOBERTA DA UNIDADE
CÉU-HOMEM por Wang Keping

‘O Homem está caindo; sua natureza é ereta, e serve como um


termômetro diferencial, detectando a presença ou a ausência do
sentimento divino no homem’. (Ralph Waldo Emerson)

É principalmente devido à pressão eco-ambiental que as


pessoas tendem a se preocupar mais com a interação entre a
natureza e a humanidade. A história da inteligência chinesa
testemunhou uma constante sondagem nos encontros
quiasmáticos entre o céu (tian) e humanos (ren), favorável a
uma concepção nuclear de unicidade céu-humano (tian ren
heyi) como o ethos geral da filosofia chinesa. A polissemia do
conceito é estendida junto com a passagem do tempo de acordo
com o contexto sócio-cultural. Na fase atual, a tendência para
redescobrir a relevância da unidade céu-humanidade é
conduzida pela leitura de mensagens novas e mesmo modernas,
tal como em velhas concepções. Por conseguinte, torna-se uma
atividade aberta, convidando a uma segunda reflexão sobre
essa universalidade oculta para o bem comum.

Este trabalho pretende analisar os suportes essenciais e


relevância da unidade céu-humanidade traçando um retorno à
sua linha histórica do pensamento, com referência a
reinterpretações atualizadas. Toda a argumentação é destinada
a cobrir estes três sub-temas da seguinte forma: o significado
363
tríplice, a orientação bidimensional e uma alternativa
pragmática.

O Significado Tríplice

A Cultura chinesa se originou a partir de uma tradição nômade


seguido por uma contraparte agrícola. Sendo este o caso, o céu
era adorado porque foi visto como sendo tanto uma força
dominante como um meio do qual se dependia em termos de
produção de alimentos e sobrevivência humana. De acordo
com as antiguidades, o céu está acima, e a terra está abaixo,
tornando-se o universo ou a Natureza como um todo no qual
todas as coisas ou seres são gerados e conservados. Daí, essa
interação tripartida tem sido o foco de consideração no
pensamento chinês desde a antiguidade até o presente. O
Confucionismo, por exemplo, está preocupada com san cai
como as "três substâncias básicas", que envolvem tian como o
céu, di como terra, e ren como humano; e o Taoísmo está
preocupado com sida, como as "quatro grandes partes" que
compõem tian, di, ren e Tao (dao).

É devido à herança xamânica ou mágica que tian é considerado


como personificação de um mandato divino e, portanto,
concebido como o Senhor do Céu. No entanto, o Senhor do
Céu permanece e se comunica com os seres humanos, as
coisas, tribos ou sociedades através da força mágica. Ele não
está além do domínio empírico, nem é personificado em um
poder transcendental como o Deus cristão. É por isso
que tian como o céu e ren como humano interagem um com o
364
outro tão intimamente que a concepção de unidade entre os
dois veio a formar-se no período pré-Qin.

Falando em geral, a própria concepção pode ser datada de


Mêncio (c. 372-289 AEC) e Zhuangzi (c. 369-286 AEC),
desenvolvida por Dong Zhongshu (179-104 AEC), e
metafisicamente moralizada pelo Neo-Confucionismo na
Dinastia Song, especialmente a partir dos séculos 11-13 EC.
Com o passar do tempo, a idéia de tian foi estendida em um
conjunto de conceitos como Tiandi (céu e terra), Tianming (o
Mandato do Céu), Tianyi (a vontade do Céu), Tiandao (o
caminho do Céu), Xianxia (a terra debaixo do Céu), entre
muitos outros. Eu aprofundo meu olhar em três deles que eu
acho que são os mais importantes e relevantes para o interesse
geral da humanidade hoje em dia. Eles são tiandi como
Natureza, Xiandao como o Caminho Celestial e Tianxia como
a terra sob o céu ou mundo, consistindo, portanto, o significado
tríplice na noção chinesa de Tianren heyi como Unidade céu-
humanidade.

Tiandi e seus aspectos naturalistas

A tradução literal de tiandi é o céu e a terra que compõem o


universo ou a natureza como um todo. O uso do termo é muito
freqüente em muitos clássicos chineses, e quase sempre
definido em um contexto onde a natureza e a humanidade estão
interligados.

365
No Clássico taoísta Chuang-tzu (Zhuang zi), por exemplo,
lemos o seguinte: "O céu e a Terra vieram a existir juntos, e as
inúmeras coisas comigo são um".1 "O céu e a Terra têm grande
beleza, mas permanecem em silêncio... A miríade de coisas
têm princípios perfeitos, mas não dizem nada deles. O sábio é
uma pessoa que está em busca da grande beleza e dos
princípios perfeitos."2 Céu e Terra (tiandi) são os produtores
das inúmeras coisas (wanwu). A miríade de coisas se abriga no
Céu e na Terra. Todos eles se reúnem para formar a totalidade
da Natureza, que depois é sintetizada com a humanidade na
unidade. Por tal unidade, Chuang-tzu tenta equalizar todas as
coisas e justificar seu princípio de não fazer distinção. Ele
acreditava que a ordem cósmica ou harmonia não poderia ser
atingida de outra maneira que não essa. Em muitos casos, ele
aconselhava aqueles que tentavam seguir o Dao sobre a
absoluta liberdade e a personalidade independente para seguir o
curso da natureza. Isto não é simplesmente porque a natureza
opera caracteristicamente em espontaneidade ou naturalidade
(zi ran er ran), mas porque a natureza também tem grande
beleza e um silêncio virtuoso. Sob tais circunstâncias, a
natureza não é só o lugar para se viver e agir, mas também um
objeto de apreciação estética. Assim, a personalidade
idealizada do sábio no taoísmo não é apenas parte da natureza,
mas também, descobridora da beleza natural. Como é
discernido em A excursão feliz e em outros capítulos, Chuang-
tzu dava muito crédito ao valor estético de beleza natural, pois
ela nutriria a liberdade espiritual. Ele estava, de fato, pronto
para abraçar o natural, mas rejeitava o artificial. Assim, em
muitas ocasiões, ele dava um alegre charme ao natural,

366
enquanto via o artificial como uma malévola distorção, como
por exemplo, o touro domesticado pelo homem para lavrar a
terra. Tudo isso leva o seu filosofar a um naturalismo estético.

Quando se trata de Dong Zhongshu em seu Rico Orvalho nas


Primaveras e Outonos (Chun Qiu fan lu), a beleza natural é dita
para encarnar a harmonia do Céu e da Terra, e qualquer pessoa
que tenha uma mente pacífica e conduta correta é capaz de
nutrir seu corpo por meio dessa beleza.3 Em um tom bastante
carinhoso, Dong assume que a natureza é o "avô do homem",
tornando o homem como homem, uma vez que ela possui a
virtude de bondade ou benevolência (ren).4 Conclui-se que
Natureza e homem compartilham uma forte semelhança. Por
exemplo, a natureza tem o sol e a lua, o homem tem o olho
esquerdo e direito; A natureza tem quatro estações, e o homem
tem quatro membros; A natureza tem quatro tipos de poder
emocional, como a alegria revelada na primavera, no verão a
felicidade, a raiva no Outono, a tristeza no inverno, e assim faz
o homem. Natureza e homem são Um, portanto, num sentido
classificatório. Assim, surge a ordem harmoniosa, quando o
homem se identifica com a natureza. Surge uma desordem
terrível quando o homem se separa da natureza.5 A
comparação acima é ostensivamente rebuscada e logicamente
ridícula. Mas tem como objetivo lembrar a humanidade de sua
posição dependente, e sua conexão inata com a Natureza. A
ênfase na forte semelhança entre a Natureza e o homem não
tem sentido, pois que serve ao menos para deixar o homem
atender a Natureza tanto quanto ele atende a si mesmo. Isso é

367
esperançosamente propício para um necessário respeito e
cuidado emocional para com a Natureza.

Historicamente, Dong é o primeiro a cunhar o conceito de


unidade céu-humanidade, que é visto como um marco a
respeito das relações entre a natureza e a humanidade no
pensamento chinês. Um pouco como Chuang-tzu, Dong
reconheceu a beleza natural realçada pelo princípio da
harmonia adequada. Mas ele encontra esta beleza benéfica de
numerosas maneiras. Ela não é apenas esteticamente
satisfatória, mas fisicamente gratificante, e moralmente
regenerante. Em outras palavras, ela satisfaz as necessidades
estéticas, alimenta o corpo, e facilita o devir do homem como
homem por seus ricos recursos e funções variadas. No entanto,
a preocupação de Dong com isso representa um naturalismo
místico. Sua abordagem para a unidade baseia-se
essencialmente na escola de Yin e Yang, sua personificação do
Céu exemplifica um tipo de mistificação em vez de
adivinhação, e da mesma forma, a sua contemplação da beleza
natural revela algum êxtase místico.

Mêncio é um dos primeiros pensadores chineses que


promovem a noção de unicidade céu-homem. Ele percebeu a
noção acima, principalmente na visão do confucionismo. Ele,
portanto, procurou manter um equilíbrio expondo a interação
recíproca entre os dois lados. Do ponto de vista cognitivo,
Mêncio afirmava que "Aquele que esgotou xin como sua
constituição mental conhece xing como sua própria natureza.
Conhecendo sua própria natureza, ele sabe tian como o céu.
Preservar a sua constituição mental, e nutrir sua própria

368
natureza, esse é o caminho para servir o Céu".6 Este argumento
mostra como homem e céu interagem uns com os outros. Por
parte do homem em particular, exige um sentido de missão e de
mais iniciativa não só para desenvolver seu poder cognitivo e
cultivar o caráter da pessoa, mas também, para fazer unificar-se
com o céu. Como é detectado neste contexto, Céu (tian)
implica abstratamente um destino inato (Tianming), e
substancialmente na miríade das coisas (wanwu). O que se
entende por "servir ao Céu" está relacionado com o
cumprimento de um destino inato e observar a miríade das
coisas. Então, a partir de um ponto de vista pragmático,
Mêncio propõe o ideal de "amar as pessoas e valorizar as
coisas" (ren min er ai wu).7 "Amar as pessoas" (Ren Min) é o
resultado de estender carinho de seus pais para os outros em
geral. "Valorizar as coisas" (ai wu) significa o cuidado de
tomar todas as coisas ou seres de acordo com a lei da
reciprocidade. Por exemplo: "Se as estações de cultivo não
forem interferidas, o grão será mais do que pode ser
comido. Se redes estreitas não forem autorizadas a entrar nos
tanques e lagoas, os peixes e as tartarugas serão mais do que
podemos consumir. Se os machados e serras entrarem nas
colinas e florestas apenas no momento adequado, a madeira e
madeira serão mais do que podemos
usar".8 Consequentemente, as coisas ficarão protegidas e
multiplicar-se-ão; ao mesmo tempo, as pessoas estarão, por sua
vez, prontas para desfrutar de meios suficientes e viver uma
vida razoavelmente boa. Caso contrário, isso traria um
resultado negativo, com o abuso dos recursos naturais e a
privação da capacidade geradora da Natureza. Isso é muitas

369
vezes metaforicamente descrito, em chinês, como um
agricultor ganancioso, que mata a galinha poedeira de seus
ovos.

Entre os três pensadores supramencionados, a Natureza é


percebida como boa e bela a priori. Distinguida da preocupação
de Zhuangzi com o naturalismo estético e da preocupação de
Dong Zhongshu com o naturalismo místico, Mêncio parece ser
a favor de um naturalismo pragmático. Relativamente, o
naturalismo estético tende a exagerar na beleza perfeita da
natureza, ignorando o papel ativo da humanidade; o
naturalismo místico tende a reforçar a semelhança céu-homem,
a fim de projetar a afeição humana na Natureza; e o
naturalismo pragmático tende a sublinhar a independência
mútua e interação recíproca entre a natureza e a humanidade,
de modo a garantir um desenvolvimento equilibrado em prol da
existência humana como seu último telos.

Os anos 90 testemunharam o renascimento da lógica da


unicidade céu-humano. Ela ocorreu no contexto de pressão
eco-ambiental na China e em todo o mundo. Muitos pensadores
reexaminaram essa lógica, a fim de construir um conhecimento
de alto nível sobre das relações problemáticas entre o ser
humano e a Natureza. Eles consideram a natureza como um
todo orgânico do esquema cósmico, e propõe uma nova
operação da unidade céu-humano para a proteção eco-
ambiental em termos de "desenvolvimento sustentável". Em
sua mente, o todo orgânico deve ser cuidado, porque nenhuma
parte dele é uma ilha separada, e todos são responsáveis por
sua proteção. Quanto ao objetivo geral de desenvolvimento

370
sustentável, não é baseado apenas na economia, mas baseada
em moralidade, porque ele também é destinado ao bem-estar
das gerações posteriores de raça humana em sua totalidade.

Tiandao e suas expectativas moralistas

A concepção chinesa de Tiandao significa que o Caminho


Celestial concretiza-se através de sua contraparte Rendao, o
Caminho Humano. O primeiro apresenta um quadro maior de
referência para o último, como uma direção para o
desenvolvimento moral. Esta idéia pode ser rastreada até o
Livro das Mutações (Yi Jing ou I Ching) na seguinte
declaração: "O grande homem é alguém cuja virtude é
constante com o Céu e a Terra, o seu brilho como o sol e a lua,
o seu procedimento ordenado como as quatro estações...
Quando ele precede o Céu, o Céu não vai agir em oposição a
ele; e quando ele segue o céu, ele obedece ao tempo de seu
movimento".9 O que é enfatizado aqui parece ser a unidade
interativa entre o Céu e a Humanidade. Na realidade, a
mensagem chave está escondida na virtude humana e na
coerência com o Céu e a Terra. Como se percebe no
comentário sobre os dois primeiros hexagramas
de Qian (símbolo do Céu) e Kun (símbolo da Terra), a virtude
humana é preparada para assimilar a contrapartida do Céu e da
Terra. Diz-se no Grande simbolismo , "A ação do Céu é forte e
dinâmica. Da mesma forma, o homem nobre nunca deixa de
fortalecer a si mesmo".10 "A disposição da Terra tem poder de
sustentação. O homem nobre, de acordo com esta, suporta

371
todos os seres com sua generosa virtude".11 A observável ação
dinâmica do Céu é demonstrada através do ciclo incessante das
quatro estações, e o poder de sustentação da Terra através da
capacidade de carregar as montanhas, águas e todos os outros
seres. Tais atos sugerem tiandi Zhide como respectivas virtudes
do Céu e da Terra. Estas virtudes então se juntam para
formar tiandi Zhidao como o Caminho do Céu e da Terra, que
é reduzido em Tiandao como o Caminho Celestial. O homem
nobre, como uma personalidade idealizada, torna-se o que ele
está aprendendo com o Caminho Celestial. Ele se esforça para
desenvolver-se persistentemente como o céu, e da mesma
forma como a Terra, ele tenta alcançar a generosa virtude para
ajudar a todos os outros seres a crescerem adequadamente.
Suas ações trabalham para estabelecer Rendao como o
Caminho Humano para realização moral.

Esta linha de pensamento foi estendida ao longo da história das


idéias chinesas. Mêncio, por exemplo, a empurraria ainda mais
como uma exigência moral na formação de caráter. "Onde quer
que o homem nobre passe", como ele diz, "a transformação de
outros segue; onde quer que ele habite, sua influência instrutiva
é muito sutil e grande demais para ser medida; sua realização
virtuosa flui acima e abaixo, como o de Céu e da Terra".12 O
Caminho Humano está incorporado em tudo que o homem
nobre faz, e o Caminho Celestial é representado pelo que é "do
Céu e da Terra". O primeiro, supostamente, é para atingir o
nível correspondente do último. É neste ponto que a união céu-
humano é feita, e assim é a personalidade idealizada do homem
nobre. A idéia semelhante também é encontrada em A Doutrina

372
do Meio (Zhong Yong). O homem nobre é assumido como
sendo uma pessoa com a sinceridade mais completa que existe
debaixo do céu. Quando ele alcança o pleno desenvolvimento
de sua própria natureza, ele pode fazer o mesmo com a
natureza dos outros homens. Quando ele alcança o seu pleno
desenvolvimento com a natureza dos outros homens, ele pode
desenvolver por completo a natureza dos animais e
coisas. Quando ele pode fazer este trabalho, ele pode ajudar a
transformar e nutrir os poderes do Céu e da Terra. Quando ele
pode ajudar desta maneira, ele pode com o Céu e a Terra
formar uma trindade [ternion].13 O processo demonstra uma
seqüência hipotética sobre como o Caminho Humano se
mistura com o Caminho Celestial. Ele começa com a virtude da
sinceridade, que é capaz de transformar a si mesmo e aos
outros para melhor; ele passa por uma série de etapas, em
virtude da aplicação do altruísmo para outros homens, animais
e coisas, etc. Finalmente chega ao estado mais elevado possível
de formar um ternion. O ternion neste contexto envolve a união
entre os três componentes, incluindo Céu, Terra e
Humanidade. Na verdade, indica mais uma vez a união céu-
humano, e um sentido de missão por parte do humano como
humano. Para cumprir esta unidade e missão, ele chama para
uma transcendência gradual e o auto-desenvolvimento de baixo
para cima.

O Confucionismo presta mais atenção à interação recíproca


entre o Caminho Celestial e a Caminho Humano. Esta tradição
foi levada avante por confucionistas do passado para o
presente. Entre os neo-confucionistas na Dinastia Song, há um

373
acordo geral sobre anular a distinção entre o Caminho
Celestial e a Caminho Humano. Isto quer dizer, que eles
tendem a identificar a primeira com a segunda e verificar a
unidade entre os dois. Por exemplo, Zhang Zai (1020-1077
EC), argumenta que o Caminho Celestial e o Caminho Humano
parecem ser diferentes em tamanho, mas permanecem os
mesmos na sua essência, pois é através do humano que se pode
conhecer e experimentar o céu.14 Cheng Hao (1032-1085 EC),
simplesmente se recusou a distinguir um do outro. Por que ele
achava que o céu e a humanidade não eram originalmente dois,
mas um, seria, portanto, desnecessário ponderar sobre a sua
síntese de todo.15 Cheng Yi (1033-1107 EC) foi ainda mais
longe para definir a relação em termos tão concisos como se
segue: O Caminho (dao) é livre de qualquer distinção entre o
Céu e a humanidade. No entanto, ele é chamado de Caminho
Celestial quando é com o Céu, e Caminho da Terra quando é
com a Terra, e o Caminho Humano quando é com humano. O
caminho é um só. Ele é compartilhado pelo Céu, a Terra e a
humanidade por completo.16

Nas últimas décadas, confucionistas modernos tentaram reviver


o Caminho-pensamento do Neo-Confucionismo em prol da
reconstrução moral. Mou Zongsan (1909-1995), por exemplo,
fez esforços enormes para reinterpretar a expectativa moral da
unidade céu- humano. Ele coloca muita ênfase na integração da
virtude do Céu com o seu homólogo humano. Em sua mente, a
vida individual deve ser completamente conciliada com a vida
cósmica. Assim, ele afirma que a realização desta conciliação
leva à realização não apenas de ser moral, mas também para

374
dentro da sabedoria. Para cumprir este telos, deve-se seguir o
Caminho Celestial, e o modelo de sua própria natureza acima
dele. Como isso é possível, então? A ilustração de Mou dá
origem a um círculo de desenvolvimento. O círculo é composto
de quatro componentes. Lá embaixo é o devir da vida
individual cheio de possibilidades. Bem acima é o trabalho do
Caminho Celestial que é tanto religiosamente "transcendente"
(Chaoyue) como moralmente "imanente" (neizai). No lado
direito está o processo das práxis morais relativas às virtudes
do ser humano de coração (ren) e verdade (dao). No lado
esquerdo encontra-se o mandato do Céu, em constante
movimento. Calcula-se que o processo de práxis moral e o
movimento do mandato viabilizam a interação transformadora
entre a vida individual e o Caminho Celestial. Neste momento,
a vontade de vida individual sobe para combinar-se com o
Caminho Celestial como resultado da práxis das virtudes do ser
humano do coração e da verdade. Ele alimentou uma mente
moral e transformou-se em uma "vida real" (zhenshi de
shengming), "sujeito real" (zhenshi de zhuti) ou "verdadeiro
eu" (zhen wo). Enquanto isso, o Caminho Celestial
transformou-se em uma "substância metafísica" (xingershang
de shiti) e penetrou na natureza humana, quebrando assim o
estranhamento e causando a conciliação entre a vida individual
e o Caminho Celestial.17 Em linguagem simples, a vida
individual da humanidade abaixo subirá para atender o
Caminho Celestial através da práxis moral, ao passo que
o Caminho Celestial descerá para atender a vida individual do
ser humano através do movimento constante. Eles criam a
conciliação ou a unidade céu-humano em que o Caminho

375
Celestial vai se transformar em uma "realidade metafísica",
enquanto a vida individual se transformará em um ser moral ou
"verdadeiro eu". A chave para este resultado idealizado
encontra-se na práxis sincera e persistente de virtudes como a
do bondade e da verdade. Caso contrário, não há nenhuma
chance para o Caminho Celestial se tornar uma "realidade
metafísica", mas manter-se-á como uma visão abstrata pairando
no ar, e da mesma forma, a vida individual não será capaz de
tornar-se uma pessoa moral, mas se manterá como um ser
físico para a terra.

Em última análise, os confucionistas geralmente usam termos


como o Caminho Celestial (Tiandao) e o Caminho Humano
(Rendao) no discurso. Mas muitas vezes eles identificam uns
com os outros, ilustrando o Caminho Celestial a luz
do Caminho Humano para um propósito moral. Por uma
questão de fato, essa linha de pensamento é derivado de uma
estratégia de aprendizagem recomendado por Confúcio. Ao
falar sobre si mesmo com Zi Gong, Confúcio confessa: "Eu
não me queixo contra o Céu, nem resmungo contra o homem.
Meu aprendizado começa com o que está lá embaixo e passa
para o que está lá em cima. Se eu entender de tudo, talvez seja
pelo céu."18 Esta confissão reflete atitude de aprendizagem, a
estratégia e os plenos objetivos de Confúcio. Ele se concentra
no que ele está aprendendo e no que ele está fazendo progresso,
desconsiderando o que os outros possam dizer sobre ele. A
mensagem mais importante da observação é xiaxue er shangda
er, digamos, "Meu aprendizado começa com o que está lá
embaixo e passa para o que está lá em cima." Aqui, "o que está

376
embaixo" são os assuntos humanos ou compromissos sociais, e
"o que está acima" significa as virtudes da bondade e retidão
(Renyi). De acordo com Confúcio, a aprendizagem é tanto um
processo cognitivo quanto prático. Ela começa com o
conhecimento dos assuntos humanos e ações sociais, mas sua
penetração deve subir alto; assim, ela continua a facilitar a
realização e prática do "que está acima" nos termos das
virtudes acima mencionadas. Eventualmente, o processo de
aprendizagem surge com uma transformação do que é
aprendido nas virtudes esperadas (zhuan zhi wei de). Tais
virtudes, como a bondade e a retidão são todas simbolizadas no
Caminho Celestial, e exercidas na prática pelos seres
humanos. A síntese a ser feita a este respeito exemplifica a
mais alta forma de realização das quais o humano como
humano é capaz em um sentido, e no outro, ela aconselha as
pessoas a serem realistas na aprendizagem pragmática, mas
idealistas no cultivo moral. Isso, é claro, exige uma busca por
transcendência moral como uma parte fundamental da
formação do caráter.

Tianxia e seu ideal Cosmopolita

Tanto o taoísmo como o confucionismo mostraram


preocupação com Tianxia como sendo um conceito político, e
não geográfico. Sua tradução literal poderia ser "a terra sob o
céu ou o espaço sideral". Na verdade, em um sentido estrito,
refere-se que a China, uma vez, já foi dividida em muitos
estados; e em sentido amplo, significa o mundo na sua

377
totalidade. A concepção de Tianxia entre os literatos chineses é
mais do que necessária, pois ela está profundamente enraizada
na mentalidade como a meta cosmopolita ideal e definitiva de
uma missão de vida. A missão em si é composta por quatro
segmentos, abreviados como xiu qi zhi ping , o que significa
quatro tarefas importantes, como o cultivo da personalidade,
regrar a família, bem governar o Estado, e manter o mundo em
paz. A idéia é elaborada em um clássico confucionista de O
Grande Aprendizado (Da Xue):

O Grande Estudo é o caminho que ensina como


alcançar a virtude, amar o povo e atingir a perfeição.
[...] Os antigos, para manifestar a virtude no reino,
começavam por arrumar o governo. Para arrumar o
governo, ordenavam suas famílias. Para ordenar suas
famílias, cuidavam das pessoas. Para cuidar das
pessoas, corrigiam antes seus corações (mentes). Para
corrigir seus corações, buscavam pensar de modo
esclarecido. E para pensarem de forma sincera e
esclarecida, buscavam ampliar ao máximo o seu
conhecimento. A busca do conhecimento é a
investigação das coisas. Quando as coisas foram
investigadas, o conhecimento tornou-se completo. O
conhecimento completo leva ao pensamento
esclarecido. O pensamento esclarecido corrige os
corações. Corações corrigidos tornam as pessoas bem
cuidadas. Bem cuidadas, as pessoas cultivam suas
famílias. Cultivadas as famílias, o governo fica

378
organizado. Quando o governo está organizado, todo o
reino está feliz e tranqüilo. Do Filho-do-Céu
(imperador) até o povo, o cultivo pessoal é a raiz de
tudo.19

Como se observa neste quadro do Grande Aprendizado,


existem oito grandes passos de perto e de longe ou subindo de
baixo para cima, em uma seqüência lógica. O primeiro passo é
a investigação de coisas (Gewu); o segundo é a extensão do
conhecimento (Zhizhi); o terceiro é a sinceridade dos
pensamentos (Chengyi); a quarta é a retificação da mente
(Zhengxin); o quinto é o cultivo da personalidade (Xiushen); o
sexto é a regulação da família (Qijia); o sétimo é o bom
governo do Estado (Zhiguo); e o oitavo é manter o mundo em
paz (Ping Tianxia). Todas estas oito etapas formam um
processo progressivo, sustentado pela lei de causa e
efeito. Entre eles, o primeiro passo é que o processo de
aprendizagem começa com um estímulo cognitivo como a
causa, e, em seguida, leva-se à segunda fase como efeito. De
maneira similar, o restante das outras etapas acaba antes de
alcançar o objetivo último. Isso significa que todas as outras
sete etapas ou tarefas servem como premissas para "manter o
mundo em paz". A fim de manter o mundo em paz, a mais
determinante de todas as premissas é "o cultivo da
personalidade" (xiushen) como a raiz de tudo mais. Para essa
personalidade ser cultivada, não basta apenas o estudo e a
capacidade pessoal, mas a moral e retificação devem ser um
Bem. Sem esse tipo de personalidade, a família não pode ser

379
regulada, o Estado não pode ser bem governado, e,
consequentemente, o mundo não pode ser posto em paz. Na
prática, todo o processo de grande aprendizado também
demonstra o esquema confucionista de sabedoria interna e
realeza externa (neisheng waiwang zhi dao).
Comparativamente, as cinco primeiras etapas contribuir para a
criação da sabedoria interna (neisheng) que encarna a
personalidade caracterizada como tendo a maior excelência da
bondade humana e da justiça; e os três últimos passos
contribuem para o desenvolvimento de realeza externa
(waiwang) que é verificada por meio de um tratamento
adequado da família, do Estado e de todos os assuntos do
mundo.

Supõe-se que podemos ler o texto antigo e entender a situação


atual melhor. Isso só é possível por meio de estender as
implicações do texto tendo em vista o status quo. Sobre o que é
discutido acima, o mais atraente de todos não é o processo de
aprendizagem em si, mas o ideal convencional de Ping
Tianxia como "manter o mundo em paz". Olhando para o
extenso significado de Tianxia como o mundo, estamos
inclinados a compará-la com a difundida e supervalorizada
noção de Estado na política moderna. Geograficamente e
ideologicamente, a noção de Estado é, via-de-regra e em
grande parte, confinada a fronteira ou território nacional. Se
por acaso ela não produziu o nacionalismo radical, ou fez
menos danos a outras nações por causa da identidade nacional,
ela seria utilizada para justificar, ao menos, uma espécie de
patriotismo egoísta. É geralmente em nome dos interesses do

380
Estado, da força de vontade nacional e do patriotismo cego que
alguma destruição irracional e até mesmo crimes de guerra são
cometidos, juntamente com o custo desnecessário de vidas
humanas e de outros recursos. Em contrapartida, o ideal
de Tianxia é, por princípio, voltado para o mundo e, portanto,
apresenta um horizonte cosmopolita. Por ser idealista, parece
mais construtivo e recíproco por excelência no campo das
relações internacionais. Afinal de contas, pode ser utilizado
para incentivar uma visão de mundo e uma alta consciência de
cosmopolitismo.

No que respeita aos três aspectos derivados da unidade céu-


homem explicados acima, a teoria da tiandi como Natureza tem
a conotação de um esquema cósmico da práxis apropriada para
a humanidade agir de acordo com a lei da reciprocidade; a
doutrina da Tiandao como o Caminho Celestial implica um
esquema de cultivo espiritual para a humanidade buscar seu
auto-aperfeiçoamento; a concepção de Tianxia do mundo como
um todo indica um esquema político de consciência
cosmopolita, para a humanidade desenvolver uma visão mais
ampla. Essa linha de pensamento foi feita para funcionar como
uma pedra fundamental na formação da mentalidade cultural
entre os letrados em particular. Ela sempre fica aberta, a ser
redescoberta e reinterpretada com o passar do tempo, no
entanto.

A Orientação Bidimensional

381
Vale ressaltar que após a fundação em 1949 da Nova China,
como foi chamada, a lógica da unidade céu-humano foi atacada
pela ideologia oficial. O Maoísmo foi longe, a ponto de
declarar uma espécie de "guerra civil" contra o Céu ou a
Natureza. Isso normalmente é evidenciado em um dos decretos
de Mao, como segue: Inspira-se um tremendo prazer na batalha
contra o Céu, e assim o faz a partir da luta de classes entre a
humanidade ( yu tian dou, qi le wuqiong; yu ren dou, qi le
wuqiong ). Como conseqüência, a separação do céu e dos
homens foi politicamente imposta e reforçada
desenfreadamente. Esta situação perdurou por uma década ou
mais, quando a China pagou um alto preço durante o período
de erupção do Grande Salto Adiante no final dos anos 1950, e
sofreu uma grande fome em todo o país, resultado de "desastres
naturais provocados pelo homem", no início dos anos
1960. Não antes dos anos 1980 que os acadêmicos na China
reconsideraram retomar a unidade céu-humano. Mas desta vez
a metodologia manifesta uma orientação bidimensional, por
meio da "razão pragmática" (Shiyong Lixing), e neste sentido a
observação de Li Zehou se destaca por suas idéias
filosóficas. A orientação bidimensional envolve ziran
renhua como a humanização da Natureza, e ren ziranhua como
a naturalização da humanidade.

382
Ziran Renhua como a humanização da natureza

De acordo com Li Zehou, a Natureza poderia ser classificada


conceitualmente em dois modos: o externo e o interno. A
natureza externa é o ambiente de vida da humanidade,
enquanto a natureza interna são as faculdades físicas da
humanidade. Em 1999, ele faz um uso metafórico de termos
binários como "hardware" e "software" para ilustrar a
humanização, tanto da natureza externa e interna.

Em relação à humanização da natureza externa, a analogia de


"hardware" refere-se à recriação ou reforma do ambiente
natural no qual a humanidade vive. Reflete-se, por exemplo,
nos reservatórios, canais, lagos artificiais, pecuária e
agricultura, etc. feito pelo homem. Hoje em dia este tipo de
prática continua, por exemplo, no campo da transformação dos
genes biológicos de plantas e vegetais, com a ajuda da
tecnologia moderna. Então, a analogia de "software" aponta
para as mudanças cruciais que ocorreram na inter-relação entre
a natureza e a humanidade. Como resultado do
desenvolvimento do "hardware" acima mencionado, o medo e
o culto humanos para com os elementos naturais, coisas e
fenômenos gradualmente desapareceu no curso da civilização,
e foi substituído por uma afinidade estética e outras
expectativas utilitárias. Daí a beleza da paisagem natural foi
descoberta e apreciada. É neste ponto que fundamenta Li
Zehou seu argumento em uma ontologia histórica (lishi
bentilun). Como ele destaca, é o desenvolvimento histórico que
alterou as relações céu-humano e também tornou possível a
humanização da Natureza. Neste sentido, "humanização" não é

383
algo meramente conceitual ou subjetivo, mas essencialmente
antropo-ontológico. Diga-se, a relação objetiva entre a natureza
e a humanidade foi mudada historicamente, tornando assim a
natureza como parte da existência humana. Eventualmente, a
Natureza foi transformada de um objeto temerário em si para
um objeto em si mesmo acessível com a afinidade
humana. Tudo isso é a base fundamental e objetiva da
humanização da Natureza na consciência subjetiva da
Humanidade.20 Como se lê em As Quatro Palestras sobre
Estética (Meixue sijiang), Li Zehou utiliza uma visão ampla e
estreita para formular a sua observação, como segue:

A "humanização da natureza" em seu sentido amplo, é


um conceito filosófico. O céu, oceanos, desertos,
florestas selvagens e assim por diante não são
diretamente reformada pela humanidade, mas percebida
como o resultado da "humanização da natureza". Para
tal humanização, indica a medida histórica da conquista
humana da natureza, e do estágio de desenvolvimento
de toda a sociedade. Com efeito, surge uma mudança
fundamental na inter-relação entre a humanidade e a
natureza. Este abandona a pura concepção da natureza
em seu sentido estreito, e se recusa a tomá-lo como um
objeto reformado apenas através do trabalho. Em
seguida, a "humanização da natureza" em sentido estrito
é evidenciado nos objetos naturais recriados pela
humanidade, por exemplo, as flores cultivadas e grama
que parecem formosos, de fato. No entanto, como o

384
desenvolvimento social vai mais à frente, os seres
humanos tornam-se cada vez mais interessados em
contemplar essas paisagens, como tempestades e
desertos selvagens, que permanecem intocadas pelas
mãos humanas... Para essas coisas já libertas de
qualquer conteúdo prejudicial ou hostil, suas formas
sensuais transformam-se, por serem mais atraentes para
a atenção humana. Durante a contemplação dessas
formas naturais, que parecem se revoltar contra a
humanidade na aparência, é que provavelmente
experimentaremos um prazer estético de um tipo
sublime.21

A humanização da natureza é por princípio um processo que


caminha lado a lado com a progressão da civilização ou cultura
humana. Ela envolve a relação histórica entre práxis humana e
a Natureza, e transforma, direta ou indiretamente, as coisas
naturais em objetos estéticos. A este respeito, a humanização
da natureza em seu sentido estrito é operada através do trabalho
humano, e a recriação tecnológica fornece a base (senão a base
direta) para a humanização da natureza em seu sentido amplo,
isto é, é a causa básica da mudança as relações Natureza e
humanos. Em outras palavras, "a humanização da natureza, em
seu sentido amplo, poderia ter lugar apenas quando a
humanização da natureza em seu sentido estrito tem se
desenvolvido em uma determinada fase histórica".22 Os
primitivos, por exemplo, dificilmente poderia apreciar essas
cenas naturais como montanhas, águas, flores e pássaros,

385
simplesmente porque eles viviam sob o temor de Natureza que
não fora humanizada, quer no seu sentido amplo ou restrito.

No caso de a humanização da natureza interna, Li Zehou


novamente oferece uma análise analógica. Pela analogia de
"hardware", ele explica a transformação das faculdades físicas
e estruturas de DNA, etc. Trata-se de um controle humano
deliberado e recriação das faculdades naturais e suas funções
(ganguan de renhua). Como resultado, as cinco faculdades ou
sentidos, por exemplo, são humanizados ou aculturados, e nós
seres humanos, portanto, podemos desfrutar de um ouvido
musical para a música, um lado artístico para a pintura, um
olhar literário para a poesia, etc. Isto sugere que o instintivo e
sentido utilitário das faculdades, ou as faculdades, estão
gradualmente diminuído, e por sua vez sendo modificados para
funções não utilitárias, incluindo a sensibilidade estética e
gosto. A analogia de software neste contexto refere-se
principalmente à humanização dos desejos e do eros (qingyu de
renhua). O processo histórico da aculturação diferencia os
humanos dos animais, mesmo que eles compartilham algo em
comum. Especificamente falando, a longa história de fabricar e
usar ferramentas, juntamente com a organização do grupo
social, têm ajudado os organismos e funções psíquicas se
tornarem diferentes da dos animais. A diferença está
principalmente na mistura de animalidade com
culturalidade. Isto leva à formação cultural-psicológico
(wenhua xinli jiegou), em que a mentalidade de animais e a
realização cultural são sedimentados (jidian), e por isso são a
sociabilidade (racionalidade e culturalidade) e a

386
individualidade (sensibilidade e animalidade). Entre muitos
outros, um exemplo improvisado poderia ser a virtude do amor
humano se originar do puro sexo. Isto mostra o fato de que a
humanização do Natura interna fez o humano como humano a
partir de uma perspectiva moral.

Sobre este ponto, a ética humana ou razão prática é identificada


como a semente da "humanização da natureza interna"23, e
conectada com o que é o gosto humano ou a nova
sensibilidade, do ponto de vista estético.24 Isto porque
"Ambos, a humanização da natureza externa e da natureza
interna, são os produtos históricos da sociedade humana como
um todo. Esteticamente, o anterior transforma o mundo
objetivo em uma bela realidade, e traz a causa essencial do
belo, enquanto que o último ajuda na experiência subjetiva
mental do sentimento estético, e revela a causa essencial do
sentimento estético. Todos eles são atingidos através de toda a
história da práxis social".25 Com outros argumentos similares,
isso exprime o aspecto principal da hipótese de Li, de uma
sedimentação histórica (jidian lun), que é desafiada e
reexaminada por outros filósofos chineses e estrangeiros em
décadas recentes. As limitações de tamanho deste artigo só nos
permitem uma breve descrição, ao invés de uma análise crítica.

387
Ren Ziranhua como a naturalização da Humanidade

Se o termo Ziran Renhua como "humanização da natureza" foi


emprestado de Karl Marx, e ampliado a partir de um ponto de
vista histórico e antropo-ontológico, ren ziranhua como
naturalização da humanidade é principalmente inspirada no
pensamento chinês do caminho da unidade céu-humano. De
acordo com Li Zehou, a naturalização da humanidade serve
como a contrapartida da humanização da Natureza, que
representam duas dimensões do processo histórico da cultura
humana. Acima de tudo, a naturalização da humanidade tem
como objetivo a realização humana ou a totalidade da natureza
humana. Ele é pré-condicionado historicamente pela
humanização da Natureza, e aponta para o desenvolvimento
individual, em particular.

Do mesmo modo, a naturalização da humanidade é concebida


para conter pelo menos dois aspectos. Um deles é composto
por três tipos de atividades, da seguinte forma: em primeiro
lugar, estabelecer uma interação co-existente e harmonizada
entre a humanidade e a natureza, e perceber a natureza como
um abrigo para viver e descansar; em segundo lugar, retornar à
Natureza para a contemplação estética de suas belas paisagens,
e ajudar as coisas a crescerem adequadamente pelo cuidado da
flora e da fauna; em terceiro lugar, aprender a respirar
naturalmente (por exemplo, através da prática adequada
de exercícios qigong ou yoga), a fim de conciliar o ritmo do
corpo humano e do coração com o da Natureza, e alcançar a
unidade céu-humano.26 Todos eles estão associados com um
certo tipo de sentimento ou estado de espírito estético, em que

388
o racional se funde com o emocional, o sujeito identifica-se
com o objeto, e a consciência social acompanha a liberdade
individual. Em uma palavra, em virtude de naturalização da
humanidade, se poderia voltar à Natureza para "habitar
poeticamente" no mundo, em que ele pode libertar-se do
controle da racionalidade instrumental, da alienação pelo
fetichismo material, e da escravidão pela sistema de poder,
conhecimento e linguagem, etc.

O outro dos dois aspectos encontra-se em um problema


estético. Pode ser encontrada no gozo livre (Ziyou Xiangshou),
que é originado a partir da formação psicológica cultural da
pessoa, que retorna à natureza com um ser humanizado, e com
uma mentalidade socializada. Comparado com o trabalho das
faculdades humanizadas e emoções, a naturalização da
humanidade permite ao homem habitar poeticamente no
mundo, e expõe-no a libertar o gozo em um sentido estético e
espiritual. É por isso que Li Zehou afirma a superioridade da
estética sobre o cognitivo e o ético. Para a estética, não é nem a
internalização da razão (o cognitivo), nem a condensação da
razão (a ética), mas a sedimentação de razão e sentido. Sendo
este o caso, ele trabalha para facilitar "a retificação de sete
emoções humanas, incluindo alegria, raiva, tristeza, medo,
amor, ódio e desejo" (Qiqing zheng) e "a alegria na unidade
céu-humano" (Tianren le). Em outras palavras, a estética do
"livre exercício" não é nem a ética, na qual a racionalidade
domina a sensibilidade, nem o cognitivo, em que a
racionalidade molda a sensibilidade. É a criatividade
totalmente aberta e individual, em que a racionalidade e uma

389
variedade de fatores psíquicos (por exemplo, percepção,
imaginação, desejo, emoção e inconsciente) estão penetrando e
se entrelaçando uns com os outros. Esta criatividade é
importante tanto para o cognitivo quanto para o ético, porque
serve para "iluminar a verdade com o belo" (Yimei Qizhen) e
"melhorar o bem através do belo" (Yimei Chusan).27 Neste
contexto, os verdadeiros guias para a descoberta do
conhecimento real e da sabedoria, e do Bom para o cultivo da
personalidade moral.

Metaforicamente, a humanização da Natureza e da


naturalização da humanidade parecem ser duas rodas de um
simbólico movimento do carro do desenvolvimento histórico
da cultura humana. O indivíduo humano é posto lá em cima do
carro, em direção a um destino de auto-realização ou
complitude. Durante este processo, a humanidade, como uma
espécie super-biológica, desperta não apenas a "humanização
da Natureza externa" (waizai ziran de renhua), mas também a
"humanização da natureza interna" (neizai ziran de renhua),
que, em seguida, abre-se tanto para a esfera cognitiva (intuição
livre) quanto para o reino ético (livre arbítrio). Tudo isso é
estendido e misturado com a "naturalização da humanidade"
(ren ziranhua), subjacente, assim, ao domínio estético (livre
fruição). Como resultado, surge a formação psicológica e
cultural, com a ajuda de sedimentação histórica, e é a partir
dessa perspectiva da ontologia histórica e da psicologia
filosófica, que as novas implicações da unidade céu-humano
são propostas".28

390
Eu, pessoalmente, acho que mais implicações podem ser
propostas de acordo com o que é necessário. Como sabemos, a
expressão humana de idéias e sentimentos na arte pode ser
classificada em três gêneros básicos no curso da história. No
início não havia imagens e palavras. As pessoas, portanto,
expressavam-se através de sons e gestos. Surgiu então a
expressão de áudio, no gênero de música de dança. Mais tarde,
as pessoas começaram a aprender a desenhar imagens e
símbolos, a fim de manter registros ou se expressarem. Surgiu
então a expressão visual, no gênero do desenho ou pintura em
particular. Eventualmente, palavras foram inventadas e
entraram em uso. Surgiu então a expressão verbal no gênero de
literatura e poesia, por exemplo. Nos últimos séculos, a
humanidade tende a estar verbalmente presa ou subjugada por
qualquer tipo concebível de linguagem. A situação é agravada
na medida em que uma pessoa não fala palavras, mas as
palavras falam a pessoa. Este é, freqüentemente, o caso
daqueles que são relutantes em pensar por conta própria, mas
estão prontas para papagaiar de volta o que é dito por
outros. Além disso, a situação, como tal, é propício para o
retrocesso das capacidades audiovisuais. Algumas pessoas
atribuem isso à sobre-humanização das faculdades e sentidos,
como no caso dos moradores das cidades modernas, que estão
presos nos arranha-céus, e cujo contato com a Natureza é um
mero espiar da lua ou do sol no céu através das janelas, por
exemplo. Sob tais circunstâncias, a "naturalização da
humanidade" torna-se indispensável, na medida em que ela
estará apta a reavivar a sensibilidade humana em um sentido
estético. Ou seja, a sensibilidade audiovisual será reforçada

391
tanto quanto alguém for exposto a sons e cenas naturais, em
seu retorno à Natureza. Tudo isto pode ser visto como um
efeito favorável da unidade céu-humano, em certa medida.

Uma alternativa pragmática

Como explicamos antes, o significado tríplice e a orientação


bidimensional estão coligados com a lógica da unidade céu-
humano. A Hipótese de tudo isso é a mais elevada forma de
realização que o ser humano, como humano, persegue. Ela é
chamada tiandi jingjie. Sua tradução literal poderia ser "reino
do céu e da terra", e sua tradução livre poderia ser "reino
cósmico de ser", simbolizando o cultivo de uma personalidade
superior com visão universal e mente cosmopolita. Por
princípio, "o reino cósmico de ser" está preocupado
principalmente com a excelência da unicidade céu-
humano. Assim, a personalidade cósmica é capaz de servir não
só a sociedade e a humanidade, mas também, ao universo e
todas as coisas. Ele está, portanto, disposto a fazer o que for
possível para manter todos os seres ou coisas em suas posições
mais adequadas. O que ele busca é, nos termos de Mêncio, o
devir do "cidadão celeste" (tianmin).29 Essa cidadania é
esperada para transcender os limites convencionais de raça
étnica, nacionalidade, território do Estado ou fronteiras
políticas, completamente.

Em resumo, tiandi jingjie como o reino cósmico do ser é


baseado em um senso de missão de "servir ao céu" (shi tian),
fazendo o máximo para ajudar todas as coisas a crescerem
392
adequadamente no universo. Aqueles que são a favor deste
reino do ser, ver-se-ão não apenas como seres sociais, mas
também como seres universais, clamando um compromisso
pessoal com a sociedade e o universo ao mesmo tempo. Neste
caso, eles desfrutarão de uma profunda compreensão da
natureza humana, e da inter-relação entre o homem e o
universo. E em um sentido espiritual, eles parecem ter mudado
um ‘i’ no finito para o “i” de infinito, e, assim, viver em
liberdade, em vez de necessidade.

Como é percebido, o reino cósmico do ser soa tanto idealista


como abstrato. Mas ele pode tornar-se um pouco mais acessível
quando especificado em termos de renmin er aiwu, ou, amar as
pessoas e valorizar as coisas. Se for devidamente aplicado a
este respeito, o que virá em favor de ambos é a consciência
cosmopolita e a proteção eco-ambiental para determinado
grau. Por esta razão, ele pode ser recomendado como uma
alternativa pragmática para enfrentar os problemas ecos-
ambientais, de acordo com a lei da reciprocidade entre a
natureza e a humanidade.

Na minha percepção, a aplicabilidade desta alternativa é pré-


condicionada pela motivação do saber tianli como leis naturais,
e desenvolver renxin como a mente humana. Aqui tianli
também representa o princípio universal enquanto, renxin é o
amor altruísta. O conhecimento do tianli ajuda a tomar ações
racionais, ao fazer uso dos recursos naturais, e o
desenvolvimento de renxin orienta alguém a tratar as pessoas e
coisas com igual afinidade. Relativamente falando, o primeiro
exige grande abertura de espírito e perspicácia para os

393
princípios de todas as coisas através de investigação, enquanto
o segundo requer bondade humana e a adesão à virtude da
sinceridade. Ambos envolvem um sentido de missão e uma
consciência da relação recíproca. Isto porque nós, os seres
humanos, somos parte da natureza. Somos suscetíveis ao
impacto de outras espécies e coisas do mundo, e em troca
temos impacto sobre elas, pelo bem que fazemos em geral.

Principalmente a mente é concebida a desempenhar um papel


vital na condução da virtude de amar as pessoas e valorizar as
coisas, tanto para empreitadas sócio-culturais ou eco-
ambientais. Imaginem, se a mente se limitasse apenas ao bem-
estar humano adequado, ela seria muito estreita e egoísta em
consideração o bem-estar daqueles que não fossem homo
sapiens. Tal mentalidade estreita ou antropocêntrica está
inclinada a satisfazer as necessidades humanas por super-
exploração das outras coisas como os recursos naturais e
marítimos. Em seguida, a eco-desenvolvimento seria jogado
para fora do equilíbrio, e o eco-ambiente seria colocado em
perigo. Um caso desse gênero, no Norte da China, é a relativa
crise ambiental, tanto para a desertificação das pastagens
devido à criação excessiva30, quanto do aumento de
tempestades de areia, devido à desertificação em ampla
expansão. Diante deste ciclo vicioso, prevemos um avanço
decisivo a ser feita no olhar para o cultivo da mente por si só.

Então, surge a pergunta sobre como cultivar a mente em toda a


extensão, como é esperado. Tanto quanto eu possa ver, trata-se
de um processo de que existem pelo menos três fases
essenciais. Em primeiro lugar, espera-se a fazer o que Zhang

394
Zai aconselhou: "da qi xin, yi ti tianxia zhi wu ". Isto implica
uma atitude básica. De acordo com o meu entendimento, "da"
significa "largo ou grande", em frente ao seu homólogo binário
"xiao", que significa "pequeno"; "xin" se refere a "ren xin"
como a mente humana. Aqui, "da qi xin" sugere que os seres
humanos fazem o máximo para "fazer a mente
abrir". Hipoteticamente, a mente pode ser tão ampla que pode
acomodar todo o universo (renxin zhida, keyi nangkuo
yuzhou). Esta relação mente-universo é naturalmente mais
criativa e espiritual do que física ou espacial. Sua busca
transcendente pode tornar a mente muito mais ampla ou maior
do que qualquer outra coisa. Então, porque ela faz isso? É para
permitir à raça humana a "experiência e compreender a real
condição de todas as coisas sob o céu ou em todo o universo"
(yi ti tianxia zhi wu). "A condição real", como tal, incorpora a
vida e condição ambiental que afeta a condição humana, direta
ou indiretamente. "Experimentar e compreender a condição
real" não é possível a menos que tenhamos um relevante
conhecimento e empatia, pelo menos. Neste caso, o
conhecimento vem de investigar as conexões entre todas as
coisas, e a empatia, de projetar sentimentos para o
ambiente. Com este estado de mente, os seres humanos estarão
prontos para transposição deles mesmos em "todas as coisas
em todo o universo" e, naturalmente, desenvolver uma
consciência de valorização em tudo. Vale ressaltar que a noção
de Zhang Zai também implica algo negativo. Ele convida as
pessoas a ampliar a mente simplesmente porque geralmente
permanece pequenas, limitando-se somente ao domínio estreito
de ganhos e perdas pessoais. Tal mesquinhez é propícia tanto

395
para o egoísmo ou antropocentrismo; por exemplo, o privilégio
de auto-afirmar que o homem é a medida de todas as
coisas. Por isso, o cultivo de mente aberta é indispensável a
este respeito.

Posteriormente, os esforços devem ser redobrados para exercer


a segunda estratégia. Isto é, "xu qi xin, yi shou tianxia zhi
shan". Por "xu xin qi", entendemos "esvaziar a mente", como
tão seria traduzido literalmente. Seu significado real é duplo:
um é esvaziar a mente do ser auto-opinativo e egoísta, e a outra
é a de manter a mente aberta e modesta. Quando as pessoas
alcançam esta fase, elas estarão prontos para "receber e
apreciar todo o bem no mundo" (yi shou tianxia zhi shan). O
bom disso deriva não só de seres humanos e de eventos sociais,
mas também de outros seres e coisas naturais. É preciso,
portanto, aprender os méritos e as lições de outros, a fim de
fazer um bom trabalho para todos. Enquanto isso, ele precisa
apreciar os benefícios oferecidos por outros e, em seguida,
fazer-lhes um favor em troca. A idéia parece ser que uma mão
lava a outra a partir de uma perspectiva de reciprocidade. É
senso comum, por exemplo, que ninguém pode sobreviver sem
respirar o oxigênio em grande parte produzido pelas
plantas.Por isso, é o mesmo que cuidar das plantas, como
cuidar dos próprios respiradores. Caso contrário, isso seria tão
prejudicial quanto levantar uma pedra e, em seguida, soltá-la
sobre os seus próprios dedos.

Por último, mas não menos importante, é o valor prático de


seguir a terceira estratégia. Essa é a "jin qi xin, yi mou tianxia
zhi shi ". Em "jin qi xin" estão implícitas duas mensagens: uma

396
é a de "completar a mente", recuperando a mente original
(benxin) ou a boa mente (liangxin), enquanto a outra é a de
"fazer o máximo através da mente" (jinxin), tomando ações
corretas. O Confucionismo acredita que a mente é
originalmente boa, mas poderia ser coberta pelos desejos
humanos; sua bondade original pode ser recuperada, se os
desejos são reduzidos e eliminados. Isso pede um processo de
cultivo pela sinceridade moral. O que deve ser enfatizado neste
ponto é um olhar bilateral sobre o serviço da mente. O serviço,
como tal, deve ser bem-humorado e melhor implantado para
"planejar e conduzir todos os assuntos mundiais" (yi mou
tianxia zhi shi). Para cumprir esta missão, é necessário não
apenas aproveitar ao máximo a mente, mas seguir uma ordem
lógica, tornando a mente aberta para experimentar e
compreender todas as coisas no universo, fazendo a mente
vazia para receber e apreciar todo o bem do mundo, e acima de
tudo, fazendo a mente humana amar as pessoas e valorizar
todas as coisas.

Em suma, tiandi jingjie, como o reino cósmico de ser, se


caracteriza em amar as pessoas e valorizar as coisas tendo em
vista tianren heyi, a unicidade céu-humano. Como hipótese,
isso pode ser criativamente desenvolvido como uma alternativa
pragmática para realização humana e a proteção eco-
ambiental. Finalmente, na prática, ela se destina a melhorar a
qualidade de vida para a humanidade como um todo, desde que
nós os seres humanos tornemo-nos mais cosmopolitas e mais
conscientes de tian como o Céu ou a Natureza, como parte de
nosso próprio ser, por assim dizer.

397
Notas

1. Cf. Chuang-tzu, “On the Equality of Things,” in A Taoist


Classic: Chuang-tzu (trans. Fung Yu-lan, Beijing: Foreign
Languages Press, 1989), 49.

2. Cf. Chuang-tzu, Zhi bei you 知北遊 (intelligence traveling


northward), in Chen Guying (ed.), Zhuangzi jinzhu
jinyi 莊子今注今譯 (The book of Chuang-tzu newly annotated
and paraphrased, Beijing: Zhonghua shuju, 1983) , p. 563.

3. Cf. Dong Zhongshu, Xun tian zhi dao 循天之道 (act upon
the dao of heaven), in Chunqiu fanlu 春秋繁露 (The book of
Dong Zhongshu or “Rich dews in spring and
autumn”, Shanghai: Shanghai Classics Press, 1989), pp. 91-93.

4. Ibid., Wei ren zhe tian 為人者天 (heaven serves man), p.


64; Wangdao tong san 王道通三(the kingly way), p. 67.

5. Ibid., Yin Yang yi 陰陽義 (the meaning of Yin and Yang),”


p. 71.

6. Cf. Mêncio, The Works of Mencius (trans. James Legge),


13.1.

7. Ibid., 13.45.

8. Ibid., 1.4.

398
9. Cf. The Book of Changes (trans. James Legge), Hexagram 1:
Qian 乾(34.). Ver também The Classic of Changes (Trans.
Richard John Lynn, New York: Columbia University Press,
1994), p. 138.

10. Cf. The Book of Changes (trans. James Legge), Qian 乾


(the creative). Ver também The Classic of Changes (trans.
Richard John Lynn), Hexagram 1: Qian, p. 130.

11. Ibid., The Book of Changes, Kun 坤(the receptive). Ver


também The Classic of Changes, Hexagram 2: Kun, p. 144.

12. Cf. Mêncio, The Works of Mencius (trans. James Legge),


13.12.

13. Cf. The Doctrine of the Mean (trans. James Legge), 22.

14. Cf. Zhang Zai, Zhangzi zhengmeng 張載正蒙 (The just


enlightenment, ed. Wang Fuzhi, Beijing: Zhonghua shuju,
1975), p. 94.

15. Cf. Cheng Hao & Cheng Yi, Yulu 語錄 (collected sayings),
vol.s 2, 11. Ver também Chinese Philosophy Section under
Chinese Academy of Social Sciences, ed., Zhongguo zhexueshi
ziliao xuanji 中國哲學史資料選輯 (Fontes selecionadas para a
história da Filosofia chinesa, Beijing: Zhonghua shuju, 1982),
parte 1 das dinastias Song, Yuan e Ming, p. 220.

16. Ibid., vol.s 2, 18.

399
17. Cf. Mou Zongsan, Zhongguo zhexuede tezhi
中國哲學的特質 (Shanghai: Shanghai guji chubanshe,
1997), pp. 20-32, 74-81, 114-117.

18. Cf. Confucius, The Analects (trans. D. C. Lau, London:


Penguin Books, 1979), Book XIV, 35. Ver também
Confucius, The Confucian Analects (trans. James Legge),
14.35.

19. Cf. The Great Learning (trans. James Legge), 1. A versão


em Inglês que aqui ofereço traz algumas pequenas
modificações de acordo com o texto original. Por exemplo,
James Legge traduziu Tianxia como "império", e eu mudei
para "o mundo". Ele traduziu Tianxia ping em "todo o império
fez-se tranquilo e feliz", e eu revisei-o como "o mundo foi
mantido em paz." Alguns tradutores preferem dizer "o mundo
inteiro foi trazido para a paz".

20. Cf. Li Zehou, Shuo ziran renhua 說自然人化 (On the


humanization of nature), in Li Zehou, Lishi bentilun/Jimao
wushuo 歷史本體論/己卯五說 (Beijing: Sanlian shudian,
2003), pp. 242-243.

21. Cf. Li Zehou, Meixue sijiang 美學四講 (Four lectures on


aesthetics, Beijing: Sanlian shudian, 1989), pp. 88-89.

22. Ibid., p.91.

23. Cf. Li Zehou, Shuo ziran renhua 說自然人化 (On the


humanization of nature), in Li Zehou, Lishi bentilun/Jimao
wushuo 歷史本體論/己卯五說, pp. 248-259.

400
24. Cf. Li Zehou, Meixue sijiang (Four Lectures on
Aesthetics), pp. 110-125.

25. Ibid., pp. 112-113.

26. Ibid., pp. 95-96.

27. Cf. Li Zehou, Shuo ziran renhua說自然人化 (On the


humanization of nature), in Li Zehou, Lishi bentilun/Jimao
wushuo 歷史本體論/己卯五說, pp. 263-264.

28. Ibid., pp. 266-267.

29. Hierarquicamente, de acordo com a comparação de Fung


Yu-lan, "o reino cósmico de ser" está acima das outras três
categorias, incluindo "o reino moral do ser" (daode jingjie
道德境界) preocupado com os valores de humanidade e
justiça, o “reino utilitarista do ser” (gongli jinngjie 功利境界)
preocupado com a obtenção de vantagens e lucros, e "o reino
instintivo do ser" (ziran jingjie 自然境界) preocupado com a
satisfação de desejos e vontades. Cf. Fung Yu-lan, Xin yuan
ren新原人(Sobre o significado da vida humana), em Fung Yu-
lan, Zhenyuan Liushu 贞元六书(Shanghai: East China Normal
University Press, 1996), vol. 2, pp.568-649.

30. De acordo com as estatísticas oficiais, a proporção de


criação de animais em excesso na China é de até 36,1% da área
total, incluindo Mongólia Interior, Ningxia, Gansu, Tibete,
regiões de Xinjiang e Qinghai província.

401
402
O MESSIANISMO DO PRIMEIRO
IMPERADOR por Yuri Pines

Entre as muitas controvérsias a respeito da curta dinastia Qin,


poucas parecem tão dificeis para resolver como a espinhosa
questão do lugar de Qin no curso geral da história chinesa.
Gerações de estudiosos, tradicionais e modernos, começando
com Dong Zhongshu董仲舒(-195-115) tendem a vê-lo como
uma ruptura ou uma aberração: um “anti-Confúcio", uma
entidade anti-tradicionalista, que se comportou de forma
violenta e errática, e foi devidamente eliminado da paisagem
histórica da China. Outros, a maioria de notáveis estudiosos da
história institucional da China, por outro lado, tendem a
enfatizar o papel de Qin como uma parte inseparável de um
continuum histórico; Cai Yong 蔡邕(+133+192) resumiu
sucintamente: "Qin herdou [o sistema] dos últimos anos de
Zhou, e foi o precursor de Han"(秦承周末,為漢驅除).1

Embora a pesquisa atual tenda a confirmar a justeza da segunda


abordagem, e as continuidades entre o Qin e suas predecessoras
e sucessoras parecem ser evidentes por si mesmas, eu acho que
a idéia da excepcionalidade de Qin não pode ser inteiramente
descartada. Enquanto esta noção não reflete os preconceitos
ideológicos de Han e dos ‘Ru’ tardios (儒, "Confucionistas"),
ela também pode estar relacionada com algumas peculiaridades
do regime de Qin e sua auto-imagem. A seguir, mostro que em
meio a continuidades gerais, Qin adotou uma peculiar postura

403
ideológica – que eu chamo aqui de "postura messiânica", que
fundamentalmente o distingue de seu período (453-221)
antecessor dos Reinos Combatentes (-453-221) e de seus
sucessores Han (-206 +220). Para ilustrar este ponto, vou me
concentrar na noção Qin de Imperialismo que se reflete na
auto-imagem do Primeiro Imperador 秦始皇帝 (Qinshi
Huangdi, 246 a -221/210). A minha escolha não é incidental. A
instituição e conceito de Imperialismo foi a única inovação
mais importante de Qin, e sua contribuição mais significativa
para dinastias posteriores; como tal, serve como um prisma
ideal através do qual o lugar de Qin, na história chinesa, pode
ser analisado. Além disso, como nós possuímos fontes
primárias para a auto-imagem do imperador Qin, ou seja,
inscrições da estela do Primeiro Imperador, nós podemos
discutir esta tema, sem sermos demasiado dependentes das
potencialmentes tendenciosas apresentações em fontes
históricas posteriores.2

Na discussão a seguir, eu demonstro que a visão de governo do


primeiro imperador está enraizada no discurso monárquico no
período anterior dos Reinos Combatentes, do qual ele se
apropriou com sucesso, e que teve um impacto duradouro sobre
seus sucessores Han. Simultaneamente, no entanto, defendo
que a apresentação do Primeiro Imperador de seu governo
como "o fim da história" distingue-o criticamente de monarcas
anteriores e posteriores, e pode fornecer uma explicação para a
noção de excepcionalidade de Qin no plano histórico da China.
Além disso, espero que a minha discussão contribua para uma
melhor compreensão do papel dos monarcas na Política

404
imperial da China e nas relações dialéticas entre a Dinastia Qin
e seus sucessores Han.

Antecedentes: a busca pelo Verdadeiro Monarca

A eliminação dos Estados Guerreiros rivais de Qin, em -221,


foi o resultado de uma série de campanhas militares brilhantes,
mas o império estabelecido na sua sequência não era uma
criatura puramente militar. Em vez disso, a unificação do
mundo sub-celestial era uma idéia vislumbrada e elaborada por
gerações de pensadores e estadistas, muito antes dela se
materializar sob o governo Qin. Dois conceitos fundamentais,
que surgiram em meio à efervescência ideológica dos Reinos
Combatentes, foram particularmente propícios para a futura
empresa imperial: a saber, que a paz em Tudo-abaixo-do-céu
não prevaleceria até que o mundo fosse unificado, e que a
ordem política em um único estado e no futuro reino unificado
só seria possível, apenas, sob a égide de um poderoso monarca.
Essas idéias tornaram-se o alicerce sobre o qual a noção de
Imperialismo Qin foi erguido, e, mais amplamente, a base da
empreendimento imperial em geral.

Em outro lugar, eu discuti detalhadamente a ideologia do


monarquismo, e como ele surgiu no período pré-imperial
(Pines 2009, cf Liu Zehua, 1991; 2000); aqui, eu esboço apenas
brevemente os seus componentes essenciais. No discurso
monárquico do período dos Reinos Combatentes, podemos
identificar três principais tópicos: primeiro, a idéia da política
universal centrada no governante, como a única forma viável
405
de garantir a paz e a estabilidade; em segundo lugar, o conceito
do Verdadeiro Monarca sagaz como a única pessoa capaz de
trazer perfeito a ordem em Tudo-abaixo-do-Céu; e terceiro,
uma sutil, porém palpável bifurcação entre o futuro governante
ideal e atuais, soberanos medíocres, que mantinham o poder
nominal, mas foram convencido a delegar muitos de suas
tarefas ordinárias para assessores com méritos. Destes três
segmentos, o mais significativo em termos de seu impacto
sobre o Primeiro Imperador foi o segundo, ou seja, o ideal do
Verdadeiro Monarca, e no que se segue, me concentro
principalmente neste ideal.

A ideologia da monarquia no período dos Reinos Combatentes


foi formada como uma reação à fraqueza perene de poder dos
governantes durante o aristocrático período das Primaveras e
Outonos (770-453), que os antecedeu. Tendo identificdo o
declínio da posição do soberano com a deterioração geral da
ordem sócio-política, pensadores de várias inclinações
intelectuais propuseram vários argumentos em favor da
restauração do poder monárquico.

Alguns promoveram a idéia da exclusividade da posição do


governante como cabeça dos ritos e – mutatis mutandis – da
pirâmide sócio-política; outros providenciaram as condições
morais, políticas e metafísicas para a elevação do monarca.
Enquanto os pensadores divergiam em como o governante
deveria conduzir sua vida privada e pública, houve um
consenso de que o regime Monarárquico era o único arranjo
político adequado e viável: um único governante deve servir

406
como o único tomador de decisão final, e não deveria haver
limitações institucionais – distintas da Moral - para seu poder.

O governante poderia - e, aos olhos de muitos, deveria - ser


admoestado e criticado, se necessário, mas nem os ministros, e
nem os conselheiros, tinham o direito de derrubar suas
decisões; nenhum grupo era independente da sua vontade, e
nele estava a única fonte de autoridade política (e religiosa).
Essas idéias serviram como a fundação do sistema monárquico
da China nos milênios seguintes (ver Pines 2009: 25-53 e
Pines, 2012a: 44-75 para mais detalhes).

O monarquismo ferrenho dos ideólogos pré-imperiais não


significa, no entanto, de que eles eram insensíveis aos perigos
de um perverso ou inepto governante, ou para a possibilidade
de o monarca abusar de seu enorme poder.

Pelo contrário, os pensadores rivais esmagadoramente se


consideravam intelectual e moralmente superiores aos
soberanos contemporâneos, a quem eles implacavelmente
criticaram, e cuja mediocridade eles lamentavam. Foi em
oposição a essas mediocridades que os pensadores propuseram
o ideal da Verdadeira Monarca. O Verdadeiro Monarca
(geralmente identificado como "aquele que age como um
monarca" 王者, um "monarca sábio" 聖王, ou "monarca
Celestial" 天王) deveria ser um líder moral e intelectualmente
impecável, que seria capaz de cumprir os séculos de longas
aspirações das multidões, e trazer a unidade política e a ordem
perfeita.

407
Várias características principais distinguiam crucialmente o
Verdadeiro Monarca de soberanos medíocres contemporâneos.
Primeiro, ele foi identificado como um sábio - Uma
personalidade excepcional, cuja moralidade e sabedoria
elevou-o acima do resto da humanidade e, aos olhos de muitos
pensadores, transformou-o em uma personagem semidivina (ou
totalmente divina) (veja mais em Puett, 2002). Como tal, o
Verdadeiro Monarca deveria estar, moral e intelectualmente – e
não apenas sócio-politicamente – no ápice da pirâmide. Em
segundo lugar, o Verdadeiro Monarca tinha que presidir um
reino unificado, e não mais de um único estado regional. Em
terceiro lugar, o seu governo deveria ser marcado por uma
ordem sociopolítica perfeita, e por uma submissão universal.
Estes foram, aos olhos da maioria dos pensadores, as
realizações dos exemplos do passado, como os lendários Cinco
Soberanos (wudi 五帝) ou os Três Reis (san wang 三王), isto
é, os fundadores das dinastias Xia, Shang e Zhou. No entanto, a
maioria das discussões sobre o Verdadeiro Monarca não eram
dirigidas para o passado, mas para o futuro: ele era visto como
uma figura salvadora - aquele que surge “uma vez em
quinhentos anos", e cuja chegada está muito atrasada.3

Essas expectativas quase messiânicas do Verdadeiro Monarca


foram devidamente enfatizadas por representações utópicas
difundidas de paz universal, prosperidade, à boa ordem e
conformidade, todos geradas por seu governo.

Para ilustrar a visão do Verdadeiro Monarca no pensamento


político do período dos Reinos Combatentes, eu brevemente

408
me concentrarei, aqui, em Xunzi 荀子(-310-230), sem dúvida o
único pensador mais profundo, e influente, de sua época.4

Xunzi explica o essencial da regra do Verdadeiro Monarca da


seguinte forma:

Para preservar o Caminho e a virtude completa, para ser


a maior e o mais estimado, para melhorar os princípios
da cultura refinada, para unificar Tudo-abaixo-do-Céu,
para colocar em ordem até mesmo as coisas mais
pequenas, para fazer com que todo o mundo debaixo do
Céu obedeça-o e siga-o - esta é a tarefa do Monarca
Celestial.... Se Tudo-abaixo-do-Céu não for unificado, e
os senhores regionais continuarem rebeldes, então o
Filho do Céu não é o homem [apropriado].5

A unidade política, a ordem perfeita e a submissão universal


são os primeiro conjunto de características que distinguem o
Verdadeiro Monarca dos regentes ordinários. A segunda
peculiaridade da verdadeira monarca é sua capacidade de
imbuir seus súditos com uma soberba moralidade, e pôr fim
aos desvios morais e políticos:

Quando o monarca sábio está acima, ele distribui ações


deveres de obediência abaixo. Então, shi士

409
[cavalheiros] e os nobres não se comportam
irresponsavelmente, os cem oficiais não são insolentes
em seus assuntos; as multidões e os cem clãs ficam sem
hábitos estranhos e licenciosos, não há crimes de furto e
roubo, e ninguém ousa se opor a seus superiores.6

Esta perfeita ordem em que cada grupo social - de elite aos


plebeus - se uniformemente regulada pelo Verdadeiro
Monarca, deriva exclusivamente das qualidades morais e
intelectuais soberbas deste último. Esta superioridade moral e
intelectual é a terceira característica que distingue o Verdadeiro
Monarca de outros soberanos:

O [Verdadeiro] Filho do Céu é o mais respeitável em


termos de poder e posição, e não tem rivais debaixo do
céu... Sua moralidade é pura, o seu conhecimento e
bondade são extremamente claros. Ele enacara o sul, e
torna obediente Tudo-abaixo-do-Céu. Entre todas as
pessoas, não há ninguém que segure tão educadamente
suas mãos, fazendo-o seguir, e assim o transforme tão
complacentemente. Não há reclusos debaixo do Céu, a
bondade de ninguém é negligenciada, aquele que une-se
com ele está correto, o que difere dele está errado.7

410
A noção de obediência unânime, e absoluta conformidade com
a vontade do monarca verdadeiro, permeia os escritos de Xunzi
e de muitos de seus contemporâneos. Às vezes, estes
panegíricos ao Verdadeiro Monarca são erroneamente
interpretados como exemplos da inclinação "autoritária" de
Xunzi - mas este não é necessariamente o caso (Pines 2009:
82-97). Xunzi, como a maioria dos pensadores
contemporâneos, distingue claramente entre o Verdadeiro
Monarca e um soberano mediano. Este último deve gozar de
absoluta autoridade política e ritual, mas em termos de
moralidade e inteligência, ele é tacitamente entendido como
sendo inferior a seus assessores. É a tarefa dos assessores,
especialmente um ‘Ru’ [letrado] meritório como Xunzi, para
instruir o governante e ajudá-lo na realização de tarefas
cotidianas. Em contrapartida, o Verdadeiro Monarca é
percebido como moral e intelectualmente superior a seus
súditos, e consequentemente não precisa de consultas, mas sim,
ele simplesmente “distribui deveres de obediência" e, assim, dá
as ordens para todas as camadas da sociedade. Notavelmente,
mesmo os intelectuais, o shi, cujas habilidades Xunzi elogia
freqüentemente como sendo semelhantes ou mesmo superiores
aos dos governantes, espera-se que sucumbam à vontade do
monarca sábio. Na medida em que a opinião do monarca é o
único critério de bondade e maldade, a autonomia moral dos
intelectuais aparece significativamente prejudicada.

Estas observações levam-nos ao último ponto. Enquanto a


divinização do Verdadeiro Monarca eventualmente contribuiu
para reforçar a autoridade imperial, a curto prazo, ela serviu a

411
um objetivo diferente. Muitos pensadores, incluso Xunzi,
empregaram de forma consistente a imagem do Verdadeiro
Monarca em oposição aos governantes contemporâneos.
Inflando as características positivas do Verdadeiro Monarca, os
pensadores enfatizaram sua excepcionalidade.

Enquanto reinassem governantes muito aquém desse herói


superhumano, eles não poderiam esperar o mesmo grau de
obediência e submissão que o Verdadeiro Monarca pode
esperar. Além disso, como as suas capacidades não poderiam
se comparar com as de um sábio no trono, os governantes dos
Reinos Combatentes foram fortemente aconselhados a limitar
seu envolvimento em assuntos políticos cotidianos, e delegar o
seu poder a meritórios assessores (Pines 2009: 82-107).

Partindo dessa perspectiva, podemos entender por que,


novamente, Xunzi mostra sua vontade de produzir uma postura
orgulhosa e autônoma para o Verdadeiro Monarca. Embora
prometendo obediência inabalável para um futuro impecável
governante, os pensadores preservariam o direito de criticar e,
ocasionalmente, desafiar, soberanos inadequados
contemporâneos, cuja mediocridade fosse evidente na
comparação com o idealizado sábio unificador. O que Xunzi
não poderia antecipar é que um de seus contemporâneos mais
jovens, o rei Zheng de Qin, seria capaz não só de apropriar-se
do discurso do Verdadeiro Monarca, mas também, utilizá-lo
para um ataque sem precedentes contra o poder político e
autonomia intelectual da elite educada.

412
O primeiro imperador como o Verdadeiro Monarca

Em -221, depois de ter concluído com sucesso uma série de


brilhante campanhas militares que varreram os concorrentes
dos Reinos Combatentes, o Rei Zheng de Qin proclamou-se
imperador (Huangdi 皇帝, literalmente, "Augusto Soberano";
daqui em diante usarei os dois títulos de forma intercambiável
), inaugurando, assim, uma nova Era na história chinesa. Sua
participação numa década extremamente agitada, no ofício de
imperador, cheia tanto de grandes realizações como atrocidades
terríveis, fizeram dele uma das figuras mais controversas da
história da China. A complexidade desta figura, e da
confiabilidade questionável de muitas partes dos "Anais
Básicos do Primeiro Imperador" nos Registros Históricos (Shiji
史記), nossa principal fonte para a história Qin (ver Van Ess,
capítulo 7), torna o estudo do Primeiro Imperador uma tarefa
particularmente desafiadora. Felizmente, os Registros
Históricos e outras fontes preservaram os textos inscritos em
sete estelas imperiais, que, como foi brilhantemente mostrado
por Martin Kern, pode servir como uma fonte confiável para a
auto-imagem do Primeiro Imperador, e suas atividades de
propaganda.

Essas inscrições, além de algumas outras fontes históricas e


paleográficas, permitem-nos reconstruir a ideologia do
Primeiro Imperador com precisão considerável (ver Kern 2000;
Liu Zehua 2000: 128-137).

Nossa discussão do Primeiro Imperador pode


convenientemente começar com o seguinte pronunciamento

413
feito por seu séquito, e inscrito na estela erigida no Monte Yi
峄山, logo após a unificação ser alcançada (Figura 8.1):

414
追念亂世,分土建邦,以開爭理.攻戰日作,流血於野,自泰古始.
世無萬數,阤及五帝,莫能禁止.迺今皇帝,壹家天下,兵不復起.
災害滅除,黔首康定,利澤長久.

Eles [os ministros Qin] recordaram e contemplaram os tempos


de caos: Quando [os senhores regionais] repartiram a terra,
estabeleceram seus Estados,

E, assim, desenrolou-se um novo tipo de conflito.

Ataques e campanhas diárias foram travadas;

Eles derramaram seu sangue no campo aberto

Isso havia começado na mais remota antiguidade.

Através de inúmeras gerações,

Uma única [regra] era seguida depois dos Cinco Soberanos,

E ninguém podia proibi-la ou detê-la.

Agora, hoje, o Augusto Soberano

Unificou Tudo-abaixo-do-Céu em uma única família -

A guerra não surgirá de novo!

Desastres e danos foram exterminados e apagados,

O povo de cabeça preta vive em paz e estabilidade,

415
Os Benefícios e bênçãos foram duradouras e permanentes.8

Esta inscrição é um excelente testemunho da mentalidade dos


líderes de Qin no final da unificação imperial. Em primeiro
lugar, identificam o passado, incluindo a idade dos Cinco
Soberanos, como uma persistente e debilitante guerra. Em
segundo lugar, vem o Primeiro Imperador para trazer unidade,
paz e estabilidade, superando as realizações de seus
predecessores. Em terceiro lugar, promete que as conquistas do
imperador serão "duradouras e permanentes", e "a guerra não
surgirá de novo". Em algumas frases da inscrição enquadramos
a visão de passado, presente e futuro de Qin.

Analiso este conceito particular de história expressa na


inscrição do Monte Yi, na próxima seção; aqui me concentro
em uma única conseqüência da Proclamação ousada dos
oficiais de Qin, de que as realizações de seu imperador
diminuíam a dos Cinco Soberanos. Na medida em que esses
sábios governantes lendários eram rotineiramente identificados
como "Verdadeiros Monarcas" do passado, proclamando sua
superioridade sobre eles, o Imperador Qin claramente se
identificou como o Verdadeiro Monarca do presente. Esta
noção está devidamente apresentada através das inscrições na
estela. Eles sempre associam o reinado do Primeiro Imperador
com cada uma das principais características do Verdadeiro
Monarca: a universalidade das leis, a sua capacidade para
atingir ordem sociopolítica perfeita, a superioridade moral e
intelectual do imperador, e, finalmente, suas qualidades super-

416
humanas. Agora, eu examinarei brevemente estes topoi que são
onipresentes em cada uma das sete inscrições.

O primeiro e mais importante tema que permeia as inscrições é


a noção de universalidade do regime imperial, da paz e da
estabilidade que resultam da mesma. Assim, na inscrição
Langye 瑯邪 (-219), o Augusto Soberano proclama
orgulhosamente:

六合之內,皇帝之土.西涉流沙,南盡北戶.東有東海,北過大夏.
人跡所至,無不臣者.功蓋五帝,澤及牛馬.

Dentro das seis [direções] combinadas,

Esta é a terra do Augusto Soberano:

Para o oeste, ele alcança as areias fluidas,

Para o sul, ele tomou por completo onde as portas encaram o


norte.

Para o leste, ele envolveu o Mar do Leste,

Para o norte, ele vai além de Daxia.

Onde quer que existam traços humanos,

Não há nada, nem niguém, que não seja assunto seu [do
Soberano].

Seus méritos superam os dos Cinco Soberanos,

417
Seu favor se estende a bois e cavalos.9

Esta declaração é inequívoca: o governo do imperador é


verdadeiramente universal.

Embora muitos dos termos geográficos utilizados acima sejam


emprestados a partir de textos anteriores, mais especificamente
a partir do capítulo "Yu Gong" 禹貢dos Documentos
Veneráveis 尚書[Shang shu], o imperador estava ansioso para
salientar que suas conquistas territoriais ofuscavam a dos Cinco
Soberanos. Suas realizações são amparadas por uma retórica da
inclusão absoluta e abrangente do governo imperial, que se
refere repetidamente a posse do imperador de "Tudo-abaixo-
do-Céu", "As seis direções" (六合), as "Quatro extremidades "
(四極), entre outros (Kern 2000: 151-152).

A Expansão territorial está intimamente associada, nas


inscrições, com o motivo da paz universal. Este topos foi
excepcionalmente importante para o imperador, que propagou,
ainda, em todos os mercados. Um pronunciamento idêntico,
inscrito em uma série de recém- padronizados pesos e medidas,
começa com as seguintes palavras: "Em seu vigésimo sexto
ano, o imperador anexou completamente todos os senhores
regionais sob O Céu, as pessoas de cabelos negros estão em
grande paz".10

Esta afirmação é aprofundada em outras inscrições estelares. O


imperador lembra repetidamente seus súditos que "a guerra

418
acontecerá de novo", que ele "trouxe Paz a Tudo-abaixo-do-
Céu ", e que o "povo de cabeça preta está em paz, sem a
necessidade de pegar em armas". “Ele dizimou o poderoso e o
indisciplinado, resgatando o povo de cabeça preta, trazendo
estabilidade ao quatro cantos do império "; por "unir Tudo-
abaixo-do-Céu”, ele colocou um ponto final nas perdas e nos
desastres, e, em seguida, deixou seus braços de lado para
sempre", resultando no que seria a "Grande Paz" (Tai Ping
太平, um termo que eu discutirei separadamente a seguir).11

Por "unificar Tudo-abaixo-do-céu em uma família", o


imperador tinha cumprido o imperativo dos pensadores do
período dos Reinos Combatentes, como foi resumido por
Mengzi (孟子, -380-304): "A estabilidade é a unidade".12 O
segundo grande topos das inscrições é a ordem social e política
que o Augusto Soberano trouxe. "As distinções entre nobre e
medianos foram esclarecidas, os homens e as mulheres
personificam a submissão", o Augusto Soberano "uniu, e levou
concórdia para pais e filhos", e de agora em diante "os
honrados e humildes, o nobre e a mediano nunca excederão sua
posição e grau". Esta estabilidade social é acompanhada pela
segurança pessoal: "Seis parentes protegem uns aos outros, de
modo que, em última análise não há bandidos nem ladrões ".13

A Ordem política sob as "leis claras" (mingfa 明法) de Qin


se seguem: "os oficiais mantém o respeito em suas divisões, e
cada um sabe o que deve fazer"; "todos respeitam as medidas e
as regras". A noção de submissão universal, que seria tão
essencial para o Verdadeiro Monarca aos olhos de Xunzi, é

419
devidamente enfatizada: “não há ninguém que não seja
respeitoso e submisso”, "O coração de todas as multidões
tornou-se submisso " e "toda a gente está de acordo com as
ordens".14 A paz universal e a estabilidade trazem a
prosperidade universal. Esta última não chega
automaticamente, mas devido aos esforços incansáveis do
Augusto Soberano, que emula o soberano-sábio, Yu 禹,
ordenando o reino terrestre: ele "derrubou e destruiu muros
internos e externos das cidades; rompeu e abriu diques fluviais,
nivelou e removeu obstáculos perigosos, de modo que a
topografia foi corrigida".15

Estes esforços resultam numa afluência sem precedentes:


"Homens encontram alegria em seus campos, as mulheres
cultivam o seu trabalho". O Soberano "enriquece as pessoas de
cabeça preta", de modo que "todos vivem a sua vida
plenamente, e não há ninguém que não alcance suas
ambições".16 Como é observado na já referida inscrição
Langye, mesmo "Cavalos e bois" recebem o favor do
imperador.

Isso é útil para fazer uma pausa aqui por um momento, e


contextualizar todos esses pronunciamentos orgulhosos dentro
do discurso intelectual do período dos Reinos Combatentes. O
imperador indica inequivocamente que as visões de um futuro
utópico, tal como apresentado em numerosos textos dos Reinos
Combatentes, foram finalmente realizadas. Sendo assim, a
própria magnitude do do méritos do Primeiro Imperador o
qualifica como o Verdadeiro Monarca. Além disso, em função
da suas realizações, o imperador se justifica para proclamar-se

420
um sábio. Foi Xunzi, novamente, que explicou a ligação
intrínseca entre a sagacidade do monarca e o alcance do seu
sucesso:

O Filho do Céu é somente aquele que é [uma verdadeira


apropriada] pessoa. Tudo-abaixo-do-Céu é
extremamente pesado: só os mais fortes podem suportá-
lo; Ele é extremamente grande: apenas o mais
inteligente pode dividi-lo; Ele é extremamente
populoso: apenas o mais sábio pode harmonizá-lo.
Assim, aquele que não é o sábio não pode se tornar um
[verdadeiro] Monarca. Quando um sábio tem o
Caminho internalizado, realizando sua beleza, ele vai
assegurar as escalas e os pesos de Tudo-abaixo-do-
Céu.17

Xunzi implica aqui que só um governante auto-cultivado


poderia adquirir o governo universal. O Primeiro Imperador
justificadamente inverte esta ordem: é a realização da regra
universal que atesta a excepcional qualidades pessoais do
governante. Essa compreensão está devidamente presente nas
inscrições que louvam repetidamente a virtude do imperador,
sua sagacidade, e seu papel como líder moral da sociedade. O
Augusto Soberano orgulhosamente proclama -se como "sábio,
experiente, benevolente e justo", declarando que ele "irradia e
glorifica os seus ensinamentos e instruções, de modo que os
seus preceitos e princípios alcançam todos, e "proíbem e
421
pararam o lascivo e o licencioso".18 As pessoas foram
transformadas de acordo:

"Não há quem não esteja comprometido com a


honestidade e a bondade", "homens e mulheres são
puros e sinceros". A grande ordem do governo imperial
"purificou os costumes, e Tudo-abaixo-do-céu recebeu
sua influência".19

O imperador não deixa dúvidas de que ele não apenas encabeça


a pirâmide sócio-política, mas também, a pirâmide moral e
intelectual. Após Xunzi, e mesmo excedendo a sua exaltação
do Verdadeiro Monarca, o Primeiro Imperador audaciosamente
proclama-se como imensuravelmente superior a outros seres
humanos, como um monarca semidivino. Sua "auto-
divinização" (Puett, 2002) é expressa em um novo título,
adotado imediatamente após a unificação, o Augusto Soberano,
com a sua ostensiva conotação sagrada. A sua segunda
manifestação, construída com as opiniões antes citadas de
Xunzi, é a sua auto-proclamação como um sábio, um título que
tinha sido aplicada nos discurso dos Reinos Combatentes aos
antigos monarcas, mas nunca a um governante vivo.20

Assim, o imperador claramente declara que "encarna


sabedoria" (gong sheng 躬聖),21 e ele aprecia tanto seu novo
título, que o menciona não menos que dez vezes em sete
inscrições imperiais.22 Como o primeiro rei sábio, ele adota

422
uma série de medidas para reforçar seu status de super-
humano: de remodelar a terra de "Tudo-abaixo-do- Céu", como
fez o sábio demiúrgo Yu, para algo radical – e aparentemente
sem precedentes - a reformulação do panteão imperial, e ainda
a construção de projetos megalomaníacos, alguns dos quais são
discutidos por Shelach(2014, cap.3). Tudo isso distinguia
drasticamente o monarca de outros mortais. Mesmo as afrontas
feitas pelo imperador contra divindades locais, como no caso
do Monte Xiang 湘, mencionada nos Registros Históricos,
pode ser um indicativo de sua auto-percepção como um
personagem semidivino.23

Embora nenhuma delas forneça uma prova inequívoca no


sentido de que o Augusto Soberano realmente se considerava
verdadeiramente divino, está claro que, no mínimo, ele adotou
uma status público sobre-humano (cf. Yakobson, cap.9, 2014).

Uma observação final no que diz respeito a posição divina do


Primeiro Imperador deve ser feita aqui. Parece mais notável
que nenhuma das inscrições imperiais, a maioria das quais
foram feitas em locais sagrados dos Estados conquistados,
muitas vezes depois de realizar sacrifícios a divindades locais,
faça qualquer referência sobre o apoio divino para o
empreendimento político do Primeiro Imperador. Numa
marcante distinção em relação a todos os governantes
conhecidos da China, pré imperiais ou imperiais, o Primeiro
Imperador parecia indiferente com o Céu, o [Supremo]
Soberano (Di帝), ou outras divindades, salvo os espíritos dos
ex-reis de Qin, cujo apoio é devidamente reconhecido na
primeira inscrição, no Monte Yi - e numa declaração imperial
423
aproximadamente simultânea, registrado nos Registros
Históricos.24

O primeiro imperador omitir o título de Filho do Céu (Tianzi


天子) é mais uma indicação de sua indiferença para com o
Céu. É possível que o imperador acreditasse - como suas
inscrições repetidamente testemunham - que suas realizações
foram devido a seus méritos individuais, e não tinham nada a
ver com o apoio divino? Será que ele temia que, ao reconhecer
a existência de uma divindade politicamente superior, ele
colocaria em risco a sua posição - ou a de seus descendentes -
no futuro? Ou será que ele acreditava que, como um
Verdadeiro Monarca sábio, ele simplesmente estava em pé de
igualdade (ou acima?) com as forças divinas e, portanto, não
lhes devia gratidão? Provavelmente, nós nunca teremos uma
resposta para estas perguntas. Em qualquer caso, é claro que a
posição do Primeiro Imperador vis-à -vis os poderes divinos
não era de subserviência, mas, no mínimo, da igualdade, se não
de superioridade. Um homem que salvou a humanidade de
séculos de guerra e tumulto não seria o segundo de ninguém,
tanto no mundo mundano ou celestial.

424
Um Monarca Messiânico

Na discussão acima, juntamos evidências suficientes para


mostrar que o Primeiro Imperador havia firmemente se
apropriado da postura do Verdadeiro Monarca, desenvolvida
pelos pensadores do período dos Reinos Combatentes.

A seguir, analiso algumas das peculiaridades dessa audaciosa


apropriação de um sonho centenário para mostrar, inicialmente,
que o Primeiro Imperador pode bem ser identificado como
primeiro e único governante quase messiânico da China (antes
de Mao Zedong, é claro);25 e, segundo, que a sua postura
messiânica, e a redefinição posterior da noção de governo,
tornou-se um dos principais fonte de tensão entre ele e a elite
intelectual, uma tensão que continuou bem depois da morte do
Primeiro Imperador. Descrever Qin como um "regime
messiânico" pode soar errado: afinal, há distinções claras entre
a atmosfera intelectual na China durante os períodos dos
Reinos Combatentes, de Qin, e do Messiânico Oriente Médio e
Europa. A China pré-imperial não testemunhou nem
movimentos milenaristas nem profecias sobre um salvador
vindouro, e ela não tinha tanto uma literatura apocalíptica
quanto a idéia de redenção transcendente. No entanto, um
breve olhar sobre a definição de messianismo, por exemplo, no
Blackwell Dictionary of Modern Social Thought nos mostra
inúmeras características que se encaixam surpreendentemente
bem com o caso chinês. Entre elas, podemos notar a percepção
da situação atual como insuportável, uma atitude ativa, em vez
da atitude contemplativa, uma visão linear da história (do

425
sofrimento atual para a redenção futura), e uma visível e
coletiva natureza de redenção, e seus objetivos universais.26

Algumas destas características estão evidentes na discussão


prévia (por exemplo, o ativismo, a natureza coletiva e universal
da salvação), e não vou abordá-los aqui de novo. O que eu me
concentro em vez disso é a idéia de uma história linear que vai
da idade de sofrimento para a redenção final e irreversível, uma
ideia que é exemplificado na ideologia Qin,e que é importante
para a compreensão tanto do messianismo percebdio do
Primeiro Imperador quanto do lugar de Qin na história chinesa
em geral. A inscrição do Monte Yi, citada no início da secção
precedente, representa a visão de Qin de seu papel histórico
como um salvador da humanidade de sua guerra sem fim. Os
propagandistas de Qin não inventaram a idéia de que a Era dos
Estados Guerreiros causou um sofrimento insuportável para a
população: isso era visto parte integrante do discurso
concorrente. Por exemplo, uma passagem do Lushi
Chunqiu吕氏春秋, composta no estado de Qin duas décadas
antes da unificação final, afirma:

“Nossa geração é extremamente corrompida, nada pode


ser adicionado à miséria do povo de cabeça preta. A
linhagem dos Filhos do Céu tem sido exterminada, os
dignitários são lançados ao chão; líderes de idade
comportam-se com indulgência, e se afastaram do povo.
O povo da cabeça preta não têm ninguém a quem possa
reclamar”.27

426
Que a violência dos Reinos Combatentes foi considerada
intolerável, é um ponto comum; o que distingue as declarações
de Qin, no entanto, é que essa visão negativa do passado foi
radicalmente ampliada para trás, inclusive para a época dos
exemplares Cinco Soberanos. Este desprezo persistente com os
ex-governantes sábio é intrigante: afinal, seria muito mais fácil
legitimar o Império Qin, dizendo que seus líderes haviam
simplesmente restaurado o estado ideal de coisas da idade dos
Cinco Soberanos e de outros modelos antigos; mas os líderes
Qin optaram por não fazê-lo. Eu acredito que esta rejeição de
um antigo dispositivo de legitimação mostrasse uma aposta
bem calculada: isso permitiria ao Primeiro Imperador e sua
corte apresentar o império como uma entidade inteiramente
nova, a redenção final da humanidade e "o fim da história".

Os líderes Qin estavam extremamente ansiosos para destacar as


novidades de seu regime. Muitos dos passos simbólicos que
assumiram no momento imediatamente posterior ao da
unificação, tais como a festa da grandeza imperial, a melhoria
das classificações por mérito para todos, e, mais
espetacularmente, a coleta de armas de bronze para refundi-las
em sinos e enormes estátuas humanas – transmitia o forte
sentimento de uma ruptura com o passado, e o início de uma
nova Era (cf. Sanft, no prelo). Nenhum regime na longa
história da China, antes da Revolução Comunista, escarnecia
tão conscientemente do passado (gu 古), afirmando-o
infinitamente inferior ao "presente" (jin 今).28 A própria
linguagem das inscrições imperiais, que está repleta de termos
como zuo (作, ‘criar’, cinco vezes), chu (初, ‘pela primeira

427
vez’, quatro vezes ) e shi (始, ‘a princípio’, quatro vezes),
enfatiza a determinação do regime de traçar uma linha clara
entre o que foi e o que será.

Os líderes Qin não só rejeitaram o passado, mas também, com


firmeza, se apropriaram do futuro, corajosamente declarando
que a história tinha terminado. Sua propaganda não deixava
qualquer referência à possibilidade de perder seu poder, no
futuro, um topos que figura tão proeminente nos supostamente
antigos documentos Zhou do Shangshu e algumas odes do Shi
jing 詩經.29 Os líderes Qin percebiam a história não como
uma alteração cíclica de ordem e desordem como assumido por
Mengzi (Teng Wen Gong 滕文公, xia, 6.9: 154), mas, ao invés
disso, como uma longa época de desordem sob várias dinastias,
que termina com uma nova e eterna Era Qin (Pines, 2012c ).
Este desejo de conquistar o futuro foi expresso logo após a
unificação, quando o imperador decidiu abolir a tradição de dar
nomes póstumos ao últimos monarcas que, doravante, seriam
numerados, na posteridade, de acordo com a sua geração: "A
segunda geração [Imperador], A terceira geração [Imperador] e
assim por diante para as gerações inumeráveis, herdando-as
indefinidamente" (Shiji, 6: 236). Este infinitude, eternidade, e
longevidade são repetidamente mencionadas nas inscrições
Qin, e vão muito mais longe do que o tradicional esperanças de
longevidade de uma linhagem expressa nos textos dos bronzes
Zhou.30 Para os líderes de Qin, não poderia haver retorno ao
passado, com a sua fragmentação e desordem.

428
Alguns colegas podem contradizer minha afirmação sobre a
auto-imagem histórica de Qin, apontando para a adesão do Qin
à noção cíclica do desenvolvimento histórico, como
exemplificado pela adoção da água como seu elemento
cósmico, de acordo com as chamados Cinco fases (wu xing
五行), teoria associada com Zou Yan 鄒衍(-305-240 ) e seus
seguidores (ver mais em Van Ess, 2014, cap. 7). Esta opção, no
entanto, não significa que Qin deverá ser substituído por um
futuro ("terra") regime.

A aceitação de água por Qin, deve ser considera no contexto


dos "Cinco Ciclos", teoria apresentada no "Ying tong" 應同,
capítulo do Lushi Chunqiu. O esquema histórico do "Ying
tong" pode ter sido deliberadamente construído de modo a
permitir uma explicação duplamente cíclica e linear: pela
eliminação de Yao 尧 e Shun 舜 da lista dos governantes do
passado, os autores construiram alterações no passado dos
ciclos, de tal forma que deixaram que o elemento futuro, a
água, se tornasse o último dos cinco, deixando a possibilidade
de que todo o ciclo terminaria de uma vez e para sempre.
Michael Puett (2001:143-144 ) pode estar bem correto, então,
de que adoção da água líderes Qin implicava que a dinastia
nunca seria substituída.

Finalmente, é importante notar os claros motivos utópicos na


auto-representação de Qin, que buscava mais uma vez associar
o regime com o conceito de salvação final e completa.

Como observado anteriormente, Qin incorporou firmemente as


expectativas utópicas dos pensadores Reinos Combatentes em

429
sua auto-imagem, apresentando-se como o regime que
permitiria a cada indivíduo "a viver a sua vida plena, e alcançar
suas ambições", que estende a sua generosidade para "Bois e
cavalos", e que conquista a submissão universal e absoluta. Qin
foi o primeiro regime na história da China que transformou a
tão esperada utopia (literalmente: “não-lugar") de pensadores
pré-imperiais naquilo que Alexander Martynov
apropriadamente chamou de “entopia” dos imperadores
(literalmente: "neste-lugar").31

É especialmente digno de nota que em sua última inscrição, o


imperador identificou o seu reinado como uma manifestação da
Grande Paz/Grande Uniformidade (taiping 太平). Este termo
foi marginal (ou inexistente) no período dos Reinos
Combatentes, mas tornou-se onipresente da dinastia Han como
terminus classicus para utopia na terra.32 Não é impossível que
a associação deste termo com absoluta serenidade e perfeita
ordem começou com o Primeiro Imperador e, nesse caso, pode
ser um dos seus mais curiosos, e até então negligenciados,
legados intelectuais. O discurso quase messiânico adotado pelo
Primeiro Imperador, com o seu menosprezo aberto do passado,
a ênfase em seu novo regime, e suas características "entópicas"
podem ter contribuído decisivamente para a posterior
identificação do Qin como uma "aberração", ou "ruptura" na
História chinesa. No final deste capítulo, voltaremos a este
ponto, mas primeiro, eu queria explorar por que o imperador
adotou sua peculiar postura "messiânica".

Uma resposta imediata seria a de que a arrogância do


imperador refletia um certo grau de magnitude real, de seu

430
sucesso verdadeiramente sem precedentes. Eu acredito, ainda,
que havia também sérias considerações políticas por trás da
peculiar auto-representação de Qin. Politicamente, apresentar o
regime Qin como algo completamente novo, poderia ser
propício para a integração, bem sucedida, da população recém-
conquistada. Lembremos que os ocupantes mudaram
radicalmente a vida de seus novos súditos, impondo-lhes as leis
e os regulamentos administrativos de Qin, seus pesos e
medidas, escrita e moedas, ritos e leis, e até mesmo seu
vocabulário administrativo específico. Qin alterou o sistema
social dos estados ocupados pela decapitação das elites locais,
e impondo o sistema de Qin de vinte níveis de mérito.33
Poderia ter sido mais conveniente apresentar estas medidas não
como subjugação a regra de Qin, mas como uma renovação
radical, em nova medida, da vida, uma renovação que traria
paz, tranqüilidade e regime ordenado sob o Sábio Augusto
Soberano.

Além disso, e o mais importante, em termos de história política


da China, a "auto-Messianização" do Imperador (em vez de
mera auto-divinização) teve consequências radicais imediatas
para o seu papel político. Em qualquer cultura, o Messias é um
líder carismático, e Qin não foi excepção. Sendo um salvador,
um personagem que praticamente mudou a história sozinho, o
Primeiro Imperador reforçou sua posição como o Verdadeiro
Monarca, que tinha o direito para governar, e não apenas para
reinar. Na prática, isso significou a introdução de novas regras
para o jogo político, o que reforçou a autoridade do imperador
vis-à–vis seus assessores e da elite intelectual em geral.

431
Como discutido acima, inflando a imagem do Verdadeiro
Monarca, os pensadores do período dos Reinos Combatentes
não tinham a intenção de ceder a sua autonomia intelectual, ou
de prejudicar de alguma forma a sua liberdade de ação política,
que gozavam na época de divisão política. Pelo contrário, com
a promessa de concordar com o futuro governante sábio, eles
ganhariam um poder adicional contra o reinando de soberanos
de capacidade mediana, que haviam sido fortemente
encorajados a não se intrometerem em tarefas administrativas
de rotina, delegando suas tarefas cotidianas para assessores
meritórios, e se satisfazendo com o seu inigualável prestígio
ritual e posição de árbitros supremos em questões
intraburocráticas. Este acordo permitiria que os pensadores
concentrassem mais tarefas de governo nas mãos dos membros
qualificados do seu estrato, preservando a aparência de
onipotência do governante. Esta situação deveria mudar apenas
em um futuro indeterminado, sob o sábio Verdadeiro Monarca
que governaria ativamente, enquanto os oficiais só "se
submeteriam, e o seguiriam". Agora, o Primeiro Imperador
havia proclamado, com toda clareza, que a nova Era do Sábio
Monarca tinha finalmente chegado.

Tendo se afirmado como o sábio reinante, o Primeiro


Imperador exigiu – e adquiriu - um poder administrativo,
eficaz, que ia muito além do que a maioria dos estadistas
tiveram, e muito provelmente, queriam conceder. Enquanto
não devemos aceitar, de forma acrítica, as acusações sobre o
despotismo sem sentido do Augusto Soberano, conforme
indicado nos Registros Históricos, há pouca dúvida de que ele

432
não aceitou a posição de uma figura ritual, a que muitos
pensadores pré imperiais teriam ansiosamente relegado os seus
soberanos. Assim, suas inscrições proclamavam que o Augusto
Soberano "Não é omisso na regência, levantando no início da
manhã, e descansando tarde da noite", que ele “regula e ordena
de tudo no universo, não é ocioso em fiscalizar e ouvir, e que
ele “uniformemente ouve a miríade de assuntos internos".34

Não sabemos se o imperador realmente examinava os


documentos com que ele tratava diariamente, que não
descansava até que o peso do cansaço o atingisse, mas as
proclamações imperiais, e passeios constantes de inspeção para
todos os cantos mais remotos do novo reino, apresentam uma
imagem de um governante extraordinariamente ativo.35 Por
habilmente se apropriar do discurso do sábio monarca , o
"grande sábio" de Qin criou uma situação política inteiramente
nova, aplicando as fórmulas das "Cem Escolas" que,
provavelmente, nunca foram implementadas, de fato, em seu
tempo. A nova posição de um imperador, como a
personificação do Verdadeiro Monarca, tornou-se a
contribuição mais importante do Augusto Soberano de Qin
para a posteridade. No entanto, a tentativa radical do Primeiro
Imperador para concretizar um ideal secular reuniu um
ressentimento considerável. Enquanto a história do Qin é
também marcada por interpretações tendenciosas, e acusações
que mais tarde nos permitiriam reconstruir, de modo coniável,
uma atmosfera contemporânea de tribunal (Kern 2000: 155-
163; Van Ess, cap.7, 2014), as evidências existentes apontam
para uma esmagadora oposição dos intelectuais contra a

433
política do imperador. Esta oposição pode ter provocado o mais
notório dos atos do Primeiro Imperador: o "biblioclasmo" de
213 (para a discussão do que ver Kern, 2000: 188-191; cf
Pines, 2009: 172-184), e que não foi debelado depois. Em
particular , a decisão de alguns eminentes ‘Ru’ - incluindo
Kong Jia 孔甲, um descendente de Confúcio da oitava geração,
de juntar-se ao camponês rebelde Chen She 陳涉(-208) ,
tornando Chen um erudito (Shiji 121: 3116), é digno de nota.
Os membros da elite educada estavam claramente insatisfeitos
com o regime do "Sábio de Qin".36

A postura ativa do Primeiro Imperador se tornou uma de suas


principais falhas aos olhos das gerações futuras. Jia Yi 賈誼(-
200-168), o único crítico mais influente de Qin, identificou o
excesso de confiança do imperador em suas habilidades, e a
desconfiança nos ministros meritórios, como uma das
principais razões para o mau funcionamento de sua dinastia.37
Jia Yi e outros pensadores interpretaram o colapso desastroso
do império em alguns meses, sob a inaptidão e o destempero do
Segundo Imperador, como uma prova do erro da hiperatividade
monárquica. Em retrospecto, a criatividade do imperador Qin
foi longe demais. Os governantes de Han, confrontados com
esmagadora críticas de seu antecessor, tiveram que modificar o
modelo de Qin para atender as expectativas de seus cortesãos
para uma forma mais colegiada de tomadas de decisão.

Epílogo: Os ‘verdadeiros Monarcas’ sob os Han

434
O colapso de Qin ameaçou por um curto período a empresa
imperial em si. Na esteira da desintegração da autoridade
central, a maioria dos extintos Estados Guerreiros foram
restaurados , e muitas outras organizações políticas apareceram
no mapa. O mais poderoso dos potentados rivais, Xiang Yu
項羽(-202) , mesmo que brevemente, aboliu a instituição
imperial, preferindo governar sob o nome de "senhor-rei" (ba
wang 霸王). No entanto, se ele pretendia, assim, descartar o
modelo de Qin, o resultado foi exatamente o oposto de suas
expectativas. O aumento de uma lamentável turbulência,
devido ao vazio de autoridade legítima, pode ter convencido os
principais atores políticos das vantagens do sistema imperial
para garantir a estabilidade política. Assim, quando Xiang Yu
foi derrotado em -202, seu conquistador Liu Bang 劉邦 (morto
em 195) retomou o título de Augusto Soberano, que se
manteve como a designação dos governantes da China para os
próximos 2114 anos.

Como é sabido, os Han não adotaram apenas o título imperial


de Qin, mas também, a maior parte dos arranjos institucionais e
rituais da dinastia anterior, seu vocabulário e nomenclatura
específica, e muitos aspectos da sua ideologia imperial e auto-
imagem (por exemplo, Loewe 1994: 124ess). Certos topoi,
características das inscrições imperiais Qin, tornaram-se partes
essenciais de proclamações dos monarcas desde o antigos Han
e ao longo dos milênios imperiais. Assim, a maioria dos
imperadores, a não ser sob extrema coação, continuaram a
saudar a paz, estabilidade e prosperidade que eles
presumivelmente trouxeram para seus súditos; eles pretendiam

435
governar todo o reino "dentro dos mares", e também
afirmavam sua posição de líderes morais da humanidade (ver,
por exemplo, Kern 2000: 175-182). Há também continuidades
óbvias em termos de santidade e sagacidade do imperador,
embora estas sejam menos simples, como eu explico a seguir.
Em geral, a dívida de Han para com Qin é inegável.

Apesar destas continuidades, um olhar mais atento para a


retórica imperial Han indica desvios significativos em relação
ao modelo Qin. Mais notavelmente, o fervor messiânico
desapareceu. Tendo internalizado as lições do colapso
surpreendente dos seus antecessores, os imperadores Han não
se atreveram a afirmar que tinham criado um admirável mundo
novo e que a história acabara (embora essas noções
ocasionalmente ressurgissem as margens do discurso político
Han). Esta "desmessianização" dos imperadores teve profundas
consequências sobre o funcionamento da instituição imperial.
Mais notavelmente, ela permitiu uma bifurcação entre a
instituição como tal, que se manteve absolutamente inviolável,
e o imperador reinante, cuja sagacidade não era
necessariamente dada como certa. Como resultado, em um
desenvolvimento mais curioso , os imperadores Han tornaram-
se mais sagrados, mas menos sagaz que seu orgulhoso
antecessor Qin (cf. Loewe, 1994: 85-111; 121-122).

O status sagrado dos imperadores Han (e dos subsequentes) foi


construído sobre uma reafirmação das ligações entre o
imperador com a divindade suprema, o Céu. A idéia do
Decreto do Céu (ou Mandato, Tianming 天命) ressuscitou sob
Liu Bang, cujo hinos rituais agradeciam repetidamente ao Céu

436
e ao [supremo] soberano (帝) por apoiar o esforço Han (Kern,
1996); e, eventualmente, essa idéia se tornou a pedra angular
da legitimidade dinástica ao longo dos milênios imperiais. Em
sua capacidade renovada como "Filhos do Céu", os
imperadores agiam como mediadores únicos entre a divindade
suprema e o reino mundano, presidindo questões humanas e
divinas, remodelando repetidamente o panteão, e gerenciando
as múltiplas atividades sacrificiais.

Além disso, os imperadores eram percebidos como ligados ao


Céu por uma forma adicional: através de um sistema de
ressonância, o que significa que o Céu enviava presságios e
portentos para aprovar ou desaprovar sua conduta "do filho"
(Loewe , 1994: 121-141). Esta noção de acrescentar uma
dimensão sacra adicional ao regime imperial, tornou o corpo do
imperador, e, mutatis mutandis, seus parentes, assessores,
utensílios rituais, selos e outros apetrechos , sagrados. Este
estatuto sagrado foi enfatizado pelo crescente uso das cláusulas
de lesa-majestade no direito penal: qualquer crime contra a
pessoa do imperador foi posteriormente tratado com o máximo
rigor (Pines 2012a : 44-75).

Sendo firmemente incorporado a ideologia do Estado e da


prática ritual, o conceito de status divino do imperador tornou-
se parte integrante da cultura política imperial. No entanto, as
suas implicações foram bastante equivocadas. Rearmar a
existência da divindade suprema acima do imperador, e a
crença de que esta divindade pode expressar o
descontentamento com o seu homólogo humano e até mesmo
substituí-lo, serviu como um poderoso freio contra as

437
atrocidades dos monarcas. Não por acaso, os imperadores Han,
desde o imperador Wen 漢文帝 (r. 180-157), emitiam
repetidamente "Éditos de Mea Culpa" (罪己詔),
responsabilizando-se por desastres naturais ou presságios
desfavoráveis, e prometendo melhorar suas condutas,
especialmente promovendo a ascensão de funcionários (Liu
Zehua, 1996: 239-247). Parece , então, que a redefinição do
status divino do imperador sob o Han reforçou o prestígio do
imperialismo em geral, mas de certa forma reduziu o poder dos
monarcas individuais. A mesma bifurcação entre os aspectos
institucionais e individuais do imperialismo fica evidente no
conceito de sagacidade imperial sob Han. Aparentemente, os
imperadores Han rejeitaram a arrogância do Primeiro
Imperador, e repetidamente, afirmaram sua fraqueza e
inadequação. Esta mudança é mais evidente em sua postura
vis-à -vis os governantes sábios do passado , especialmente os
Cinco Soberanos. Nos Han , esses modelos foram descritos em
termos sobre-humanos, como geradores de uma ordem
cósmica, e não apenas de uma harmonia social e política,
enquanto os monarcas reinantes modestamente reconheciam
sua incapacidade de corresponder a esse ideal. Esta modéstia
está viva , por exemplo, em um edital de jovem imperador Wu
漢武帝 (r. 141-87 ), no qual ele chamou "os notáveis" para
irem até a corte e ajudá-lo na condução dos assuntos do
governo:

Ouvi dizer que durante os tempos de Tang [唐, ou seja,


Yao尧] e Yu [虞, ou seja , Shun 舜], desenharam
imagens [nas vestes das pessoas, como a punição], e as

438
pessoas não transgrediam; onde sol e lua brilhava, todo
mundo se comportava com humildade. Nos tempos dos
Reis Cheng 成e Kang 康 de Zhou, castigos mutilantes
não foram empregados, a virtude atingia pássaros e
bestas, as instruções penetraram [tudo dentro] dos
quatro mares. Além do mar, eles se expandiram para
Sujuan 肅眷; ao norte, desenvolveram Jusou 渠搜; Di
氐 e Qiang 羌 [tribos] se submeteram. Não havia nem
deslocamento de estrelas e constelações, nem eclipses
do sol e da lua; cadeias de montanhas não entravam em
colapso, rios e vales não foram bloqueados; unicórnios
e fênix viviam em pântanos próximos, o Rio Amarelo e
Rio Luo propiciaram mapas e documentos. Wuhu, o
que devo fazer para me aproximar disso [desse estado
de coisas]? Agora, como se tornou o meu dever
proteger os templos ancestrais, eu buscarei isso quando
me levantar ao nascer do sol, e contemplarei isso na
minha cama à noite. [Estou temeroso], como se
passasse por cima do abismo e não soubesse como
atravessar. Como é magnífico! Como é grande! O que
devo fazer para manifestar a esplêndida empresa e a
virtude generosa dos antigos imperadores, sobretudo
para ficar em trindade com Yao e Shun, e assim me
equiparar com as três dinastias? Me falta perspicácia, e
não posso sustentar a virtude por muito tempo. (Hanshu
6: 160-161 )

439
O Édito do imperador Wu contrasta com as declarações do
Primeiro Imperador (e mais possivelmente, foi
conscientemente projetado para ser assim). O passado é
excelente, o atual governante não pode igualar suas conquistas,
que só é com a ajuda de assessores dignos que ele pode se
aproximar do esplendor do passado. No entanto, não devemos
ser enganados pela retórica humilde do imperador Han: as
regras do jogo na era Han eram diferentes, e foi a tarefa dos
ministros embelezar seu governante, e exaltar sua suposta
sagacidade . Assim, enquanto o Imperador Wu não pretendia
ser um sábio, e usou esse epíteto exclusivamente para seus
ancestrais, seus ministros, por outro lado, rotineiramente
identificaram-no como um sábio. Um novo bon ton da corte era
o imperador proclamar humildemente sua inadequação, e até
mesmo culpar a si mesmo por vários defeitos, enquanto cabia
aos ministros saudar o soberano. Eventualmente, a voz
ministerial prevaleceia, e o termo "sábio" (sheng 聖) tornou-se
firmemente incorporado a imagem dos imperadores , tornando-
se um sinônimo do adjetivo "imperial" (Hsing, 1988; Liu
Zehua, 1998).

Então, isso significa que qualquer imperador Han poderia ser


um sábio como o Primeiro Imperador Qin? Não
necessariamente. Ao olhar mais de perto, podemos notar que
em Han, a sagacidade tornou-se mais uma característica do
escritório imperial do que de seu ocupante. Tecnicamente, o
imperador tinha de ser considerado um sábio, muito parecido
com ele tinha que ser considerado sagrado: afinal, na sua
qualidade de administrador supremo ele teve que tomar

440
decisões, entre outras, sobre questões puramente ideológicas,
por exemplo, aprovar ou rejeitar uma certa tradição exegética
ou trabalho canônico como digno de incorporação ao sistema
educacional da corte. Desde que os seus juízos seriam finais e
supostamente infalíveis, assumiu-se, para preservar o perfil da
dinastia, que o monarca era intelectualmente superior a seus
súditos. Simultaneamente, no entanto, era bem conhecido que o
trono não era ocupado, com frequência, por pessoas medíocres,
e até mesmo os imperadores-criança foram manipulados por
seus parentes ou, mais notoriamente, por eunucos da corte.
Acreditar na sagacidade desses indivíduos exigira um grande
salto de fé para a maioria dos literatos.

Se minha análise estiver correta, o principal impacto da


"revolução messiânica" de Qin foi transformar o imperador em
uma pessoa divina e sábia, então, novamente, repetindo
Martynov (1987: 29), podemos notar que Han manteve o
"padrão" da utopia, e não seu conteúdo. A posição imperial foi
continuamente considerada divina e sagaz; seu ocupante – um
pouco menos. Eventualmente, esta dicotomia entre a imagem e
a realidade provou ser um padrão muito mais viável do que o
modelo Qin de um carismático monarca "messiânico". Este
último era insustentável, especialmente devido à inevitável
acsensão eventual de um monarca incapaz sob o princípio da
sucessão linear, como o caso do famoso Segundo Imperador
prova.38

O sistema Han foi muito mais flexível. A posição sagrada da


instituição imperial como tal permitiu-lhe manter a função
principal como o símbolo da unidade universal e de ordem

441
política com o "único estimado" no topo. Simultaneamente, a
reafirmação sutil da possibilidade de que um monarca
individualmente poderia ser medíocre e inepto incentivou a
formação de sistema burocrático de "controles e equilíbrios",
que permitiu a preservação do império intacto, mesmo sob
governantes inadequados, incluindo, mais notavelmente , em
uma seqüência de criança monarcas no período Han tardio.
Embora poucos imperadores Han, e alguns imperadores
posteriores, tenham tomado sua sagacidade literalmente, e
tentado impor sua vontade sobre todas as esferas da atividade
humana que se possa imaginar (Wang Mang 王莽 [45-23
AEC] imediatamente vem à mente), a maioria foi treinada para
entender suas limitações pessoais e consultar seus assessores,
adotando uma forma muito mais colegiada de governo do que a
idéia de Qin de sagacidade imperial permitiria (ver Pines
2012a: 63-69, para mais detalhes). Finalmente, permitam-me
duas observações finais. Em primeiro lugar, eu acredito que a
adição do ângulo "messiânica" para uma análise do Qin fornece
uma possível solução para o enigma de seu lugar histórico. A
posição excepcional de Qin na história chinesa deriva não de
sua cultura nem de suas instituições, mas a partir da
mentalidade muito peculiar de seus líderes, com destaque para
o Primeiro Imperador, que reivindicou o fim da história e
exigiu a realização literal de sua onipotência teórica. Essa
mentalidade, que não é atestada tanto no período pré imperial,
ou no período imperial tardio, distingue significativamente o
Qin dos seus antecessores e sucessores. A excepcionalidade de
Qin foi, afinal de contas, uma questão de sua auto-
apresentação, e esta auto-apresentação, ao invés da

442
manipulação pós-factum dos inimigos de Qin, é em grande
parte responsável pela visão depois de Qin como uma
"aberração" histórica.

Em segundo lugar, acredito que a minha interpretação lança


uma luz adicional sobre o problema do colapso das Qin,
discutido por Shelach (2014, cap. 3). Como é sabido, Jia Yi,
em sua discussão seminal sobre as razões para o colapso do
Qin, notou a sua incapacidade de alterar e modificar seus
caminhos como a principal doença de seu governo (Shiji 6:
283) . No entanto, este é exatamente o mal comum de regimes
messiânicos em todo o mundo, mais notavelmente o regime
comunista na URSS e na China de Mao, entre outros. Tendo
prometido trazer utopia aqui e agora e acabar com a história,
estes regimes tinham dificuldades em desviar-se dos padrões
estabelecidos no momento de sua fundação, e foram
geralmente muito rígidos em termos estruturais.

Diante da dificuldade de cumprir as suas promessas, muitas


vezes eles radicalizaram escala de sua retórica "messiânica"
para esconder a crescente divergência entre imagem e
realidade, e sobrecarregar a sociedade com vários projetos
irracionais. Isto, aparentemente, foi o caso dos Qin que, como
mostra Shelach, entraram em uma espiral de projetos sempre
crescentes que visavam, entre outras coisas, projetar o seu
poder incomparável em meio as tensões crescentes de seu
regime. Embora não seja impossível que Qin poderia ter
continuado por um período mais longo se tivesse adaptado-se a
um modelo de conduta mais “normal”, acredito que a
mentalidade quase messiânica de seus governantes prejudicou

443
substancialmente essa possibilidade. Foi somente após a utopia
ter sido abandonada, o que Shelach apropriadamente chama de
império "indistinto", que, modelado após Han, adquiriu-se a
verdadeira imortalidade ou, pelo menos, a mais notável
longevidade na história política da humanidade.

Notas

Esta pesquisa foi apoiada pela Fundação para a Ciência de


Israel (Grant 1217/07) e pela Cadeira Michael William Lipson
em Estudos Chineses da Universidade Hebraica de Jerusalém.

1. O expurgo de Qin por Dong Zhongshu da linhagem das


dinastias legítimas pode ser deduzida a partir de sua construção
peculiar dos ciclos dinásticos do passado, para isso ver
Arbuckle, 1995; para a visão de Cai Yong, consultar Du duan,
1. Para um breve resumo dos pontos de vista divergentes sobre
o lugar de Qin na história, ver, por exemplo, Wang Yundu e
Zhang Liwen 1997,263-277.

2. Veja uma excelente discussão sobre as inscrições das estelas


Qin em Kern, 2000. O estudo de Kern serviu de inspiração para
a minha pesquisa. Hans van Ess [2014, cap. 7] adverte que a
reprodução das inscrições estelares por Sima Qian podem não
ser confiáveis. Estou convencido: como Kern (2000:6) mostra,
nem uma única fração das estelas apresenta uma imagem que
seja ”fundamentalmente diferente" da reprodução de Sima
Qian; além disso, a primeira das inscrições da Estela no Monte

444
Yi, que não foi reproduzida por Sima Qian, não difere
ideologicamente das outras seis estelas.

3. Mengzi ,”Gongsun Chou" 4.13: 109.

4. Para os estudos de Xunzi, ver, por exemplo, Goldin 1999;


Sato 2003, cf. Pines 2009, passim.

5. Xunzi ,”Wang Zhi” , V.9: 171.

6. Xunzi ,”Junzi", XVII.24: 450.

7. Xunzi, “Zheng lun” XII.18: 331.

8. Citado com pequenas modificações de Kern 2000: 13-14.

9. Shyi 6: 245; Kern 2000: 32-33. Aqueles ”cujas portas


enfrentam o norte” são moradores das áreas ao sul do Trópico
de Câncer, onde as pessoas supostamente “abrem a porta ao
norte para enfrentar o sol” (Kern 2000: 33n76), ver as notas de
Kern para outras identificações geográficas.

10. Veja Wang e Cheng 1999: 63-69; estas inscrições foram


discutidas por Charles Sanft em um paper apresentado numa
oficina em Jerusalém; ver também Sanft, no prelo.

11. Os citações são de, respectivamente, inscrição do Mt. Yi


(221), inscrição Taishan (219), inscrição Langye (219), a vista
ocidental e oriental da inscrição Zhifu (218); e a inscrição
Kuaiji (c. 211). Veja Shiji 6:243, 245, 249 , 250, 261; Kern
2000: 14, 21, 32, 36 , 39, 49.

445
12. Veja a inscrição do Mt. Yi (Kern 2000: 13), para “a
estabilidade na unidade” ver Mengzi, ”Lang Hui Wang” 1.6:
17-18; cf Pines 2000.

13. Citado nas inscrições Taishan e Langye (Shiji 6:243, 245;


Kern 2000: 22, 26,30,32).

14. Ver Taishan, Jieshi (215), e as inscrições Kuaiji (Shiji 6:


243, 249, 262; Kern 2000: 18, 36, 49).

15. Ver a inscrição Jieshi (Shiji 6: 252; Kern 2000: 43).

16. Ver, respectivamente, as inscrições Jieshi e Langye (Shiji


6: 252, 245, Kern 2000: 43, 28).

17. Xunzi, “Zheng lun”, XII.18: 324-325.

18. Ver, respectivamente, as inscrições Langye, Taishan e


Kuaiji (Shiji 6: 245, 243, 261; Kern 2000: 26, 22-23, 48).

19. Ver, respectivamente, as inscrições Langye e Kuaiji (Shiji


6: 245, 261; Kern 2000: 31, 48).

20. Para a importância dos títulos apropriados pelo Augusto


Soberano, ver Liu Zehua 2000: 131-136.

21. Inscrição Taishan (Shiji 6: 243; Kern 2000: 21).

22. Mais precisamente, o epíteto de “sábio” aparece em apenas


cinco inscrições: é notavelmente ausente na primeira, a
inscrição do Mt. Yi, que é um pouco mais modesta em seu tom
do que as últimas, e é ausente da inscrição Jieshi incompleta

446
(sobre incompletude desta, veja a discussão em Kern, 2000:
41n117).

23. Para a modificação radical do panteão imperial sob o Qin,


consulte Shiji 28: 1366-1367; para o castigo das Divindades do
Mt. Xiang, consulte Shiji 6:248.

24. Ver Kern 2000: 12-13 para a primeira; Shiji 6: 236 para a
segunda. Enquanto o imperador realizava devidamente
sacrifícios múltiplos, ele poderia ter focado na busca de ganhos
pessoais das divindades (por exemplo, a imortalidade, ver Poo,
capítulo 5 deste volume), em vez de apoio a seu esforço
político.

25. Deve-se lembrar que as religiões escatológicas e o


fenômeno relacionado do messianismo religioso pode ter
existido na China desde a virada da Era Comum (ver, por
exemplo, Zurcher 1982), e alguns imperadores, principalmente
Zhu Yuanzhang ( 1328-1398 CE, r. 1368-1398), adotaram o
que pode ser apelidado de uma postura messiânica; não houve
um único governante entre o primeiro Imperador e Mao
Zedong que estivesse tão ansioso para apresentar o seu governo
não como uma restauração da glória do passado , mas como um
novo começo.

26. Minha adoção do termo ”messiânico” na política dentro do


contexto religioso é influenciada pelo conceito J. L. Talmon de
”messianismo político” (ver, por exemplo, Talmon 1960).

27. Lushi Chunqiu, ”Zhen Luan”, 7.3:393-394.

447
28. Ver, por exemplo, a inscrição do Mt. Yi citada no texto, ou
a inscrição da vista leste Zhifu, que resume: ”visto contra o
velho, [nossos tempos] são definitivamente superiores" (Shiji
6:250; Kern, 2000:39). Veja também memorial de Li Si, que
iniciou a queima dos livros de 213, em que Li Si acusou seus
adversários de ”falar sobre o passado para prejudicar o
presente” (Shiji 6: 255).

29. O medo da perda potencial do mandato é evidente em


muitos textos supostamente antigos dos Zhou Ocidentais, como
o ”Kang gao" e o “Duo fang” e a “ode Wen Wang”.

30. Veja termos como ”por um longo tempo” (chang, 5 vezes)


e “para sempre" (yong, 3 vezes); referências análogas a
longevidade de ”gerações inumeráveis" (Wanshi) estão
espalhadas nos discursos citados nos ”Anais básicas do
Primeiro Imperador”. Para a busca da linhagem longeva nas
inscrições de bronze Zhou, ver Xu Zhongshu 1936.

31. Martynov (1987: 25-30) discute textos antigos Han, mas a


sua observação pode ser facilmente aplicado às estelas Qin
também.

32. O termo “Taiping” aparece nos textos pré-Qin apenas duas


vezes: no Lushi Chunqiu e Han Feizi, os quais mencionam
apenas de passagem. A única referência significativa para
Taiping em um texto pré-imperial aparece no polêmico (em
termos de datação e autoria) ”Tian Dao”, capítulo do Zhuangzi
onde este termo é explicitamente associado com ”a regra
máxima da ordem” atingido pelos ”iluminados” (ming)
governantes da Antiguidade. Para o seu uso em Han, consulte
448
Loewe 1995: 313-314. Um possível antecessor do termo
Taiping é o composto ”extrema paz/uniformidade” (zhi ping),
empregado por Xunzi (Xunzi, “Jun dao” VIII.12: 232).

33. Para as medidas de unificação Qin, consulte Shiji 6: 239-


241; para uma análise destas medidas como imposição das
instituições de Qin sobre a população conquistada, ver a
introdução à parte 2 deste volume; para a imposição do novo
vocabulário, consulte Hu Pingsheng 2009 e a introdução para a
parte 2 deste volume; para a imposição dos níveis Qin,
consultar Hsing , capítulo 4 deste volume.

34. Taishan, zhifu leste, e as inscrições Kuaiji (Shiji 6: 243,


250, 261; Kern 2000: 21, 39, 47, modificado).

35. No exame de documentos pelo imperador, o pedido teria


sido feito por ”especialistas técnicos” (Fang Shi], da corte de
Qin, como uma desculpa para o seu fracasso em ensinar ao
imperador a arte da imortalidade. Veja Shiji 6:258. De acordo
com Li Rui e Wu Hongqi 2003: 132, o primeiro Imperador
visitou trinta e oito das quarenta e seis comanderias de Qin,
isso além de seus embarques para o mar. Somente muito
poucos governantes, ao longo da história imperial da China,
puderam dar escopo as suas visitações. Para a conexão entre
peregrinações do imperador e a atividade imperial em geral,
consulte Pines, [no prelo] (b).

36. ”Sábio de Qin” (que provavelmente deve ser lido como ”o


Grande Sábio”) é a auto-denominação do Primeiro Imperador
na estela Kuaiji (Shiji 6: 261; Kern 2000: 45). As atividades de
Kong Jia na corte de Chen she e suas razões para se juntar a
449
rebelião estão resumidas nos capítulos 19-21 de Kong congzi
(Kong congzi, 409-435). Embora o livro em si seja quase
certamente falso (Ariel, 1989), é provável que tenha
incorporado materiais anteriores, que podem muito bem ser
confiáveis na medida em que as atividades de Kong Jia (a.k.a
Kong Fu) estão em questão.

37. Veja Shiji 6: 283, para o impacto de Jia Yi em avaliações


posteriores de Qin, consultar Shelach, [2014, cap. 3]. Para um
argumento um pouco semelhante contra o domínio hiperativo
de Qin como a fonte de sua desgraça, ver Lu Jia (c. 240-170
AEC) Xin Yu, ”Wu wei” 4: 62.

38. Huhai, o segundo imperador Qin, foi denegrido além da


imaginação nos registros históricos, a nossa única fonte
significativa de seu governo. No entanto, mesmo se muitas
anedotas sobre ele estiverem erradas, o próprio fato de que em
dois anos de seu governo o enorme império entrou em colapso,
em grande medida devido à deserção de seu principal exército,
prova sua inadequação além de qualquer dúvida.

450
Bibliografia

O presente artigo está no livro:

PINES, Yuri; FALKENHAUSEN, Lothar Von; SHELACH,


Gideon; YATES, Robin [orgs.] Birth of an Empire – The State
of Qin Revisited. Berkeley: University of California Press,
2014.

Os capítulos abaixo fazem parte da coletânea citada acima:

Shelach, Gideon, 2014.Collapse or Transformation?


Anthropological and Archaeological Perspectives on the Fall of
Qin. 113-140

Vas Ess, Hans, 2014. Emperor Wu of the Han and the First
August Emperor of Qin in Sima Qian’s Shiji. 239-257

Yakobson, Alexander, 2014. The First Emperors: Image and


Memory 280-300

Outras referências

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Theory of Historical Cycles and Early Attempts to Invalidate
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115.4: 585–597.

Ariel, Yoav. 1989. K’ung-Ts’ung-tzu: The Kung Family


Masters’ Anthology. Princeton, NJ: Princeton University Press.

451
Goldin, Paul R. 1999. Rituals of the Way: The Philosophy of
Xunzi. Chicago:Open Court.

Hsing I-t’ien (Xing Yitian 邢義田). 1988. “Qin Han huangdi


yu ‘shengren’ ”秦漢皇帝與“聖人”. In Yang Liansheng
楊聯陞, Quan Hansheng 全漢昇, and Liu Guangjing 劉廣京,
eds., Guoshi shilun—Tao Xisheng xiansheng jiuzhi rongqing
zhushou lunwenji 國史釋論—
陶希聖先生九秩榮慶祝壽論文集. Taibei: Shihuo chubanshe,
389–406.

Kern, Martin. 1996. “In Praise of Political Legitimacy: The


miao and jiao Hymns of the Western Han.” Oriens Extremus
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Liu Zehua 劉澤華. 1991. Zhongguo chuantong zhengzhi siwei


中國傳統政治思維. Changchun: Jilin jiaoyu.

———. 1996. Zhongguo zhengzhi sixiang shi (Qin Han Wei


Jin Nanbeichao juan) 中國政治思想史(秦漢魏晉南北朝卷).
Hangzhou: Zhejiang renmin chubanshe.

———. 1998. “Wang, sheng xiangdang er fen yu he er wei


yi—Zhongguo chuantong shehui yu sixiang tedian de kaocha
zhi yi” 王、聖相當二分與 合而為—
中國傳統社會與思想特点的考察之一. Tianjin shehui kexue

452
天津社会科学 5: 66–74. (The Monarch and the Sage: Between
Bifurcation and Unification of the Two” em breve no livro
Contemporary Chinese Thought.)

———. 2000. Zhongguo de Wangquanzhuyi 中國的王權


主義. Shanghai: Renmin chubanshe.

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Borokh, eds., Kitajskie Sotsial’nye Utopii. Moscow: Nauka,
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Thought: Origins of the ‘Great Unity’ Paradigm.” T’oung Pao


86.4–5:

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Thought of the Warring States Era. Honolulu: University of
Hawai‘i Press.

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Political Culture and Its Enduring Legacy. Princeton, NJ:
Princeton University Press.

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———. 2012b. “Alienating Rhetoric in the Book of Lord
Shang and Its Moderation.” Extreme-Orient, Extreme-Occident
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———. 2012c. “From Historical Evolution to the End of


History: Past, Present and Future from Shang Yang to the First
Emperor.” In Paul R. Goldin, ed., Dao Companion to the
Philosophy of Han Fei. Berlin: Springer Verlag, 25–45.

———. No prelo (b). “Immobilized Emperor: ‘Dynastic


Cycles’ Revisited.”

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Stanford University Press.

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Origin and Formation of the Political Thought of Xun Zi.
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Phase. London: Secker & Warburg.

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diguo shi 秦帝國史. Xi’an: Shaanxi renmin chubanshe.

Zürcher, Erik. 1982. “Prince Moonlight: Messianism and


Eschatology in Early Medieval Chinese Buddhism.” T’oung
Pao 68.1–3: 1–75.

454
BIOS

Alicia Relinque Eleta, Phd. é professora da Universidade de


Granada. Seus principais campos de atuação são Literatura
Chinesa antiga e estudos de gênero na China. Prof. Alicia é,
com certeza, uma das maiores sinólogas do mundo Hispano-
americano, com um vasto número de publicações e traduções
únicas na área. Entre elas, encontram-se El corazón de La
literatura y el cincelado de dragones [1995], Relación de las
cosas del mundo [2001], De las manos negras al sol rojo. Los
carteles de la Revolución Cultural china [2005] e La
Construcción del Poder en la China Antigua [2009]. O texto
aqui presente nessa coletânea foi retirado de Pedro Aullón de
Haro ed., Teoría del Humanismo (Vol I), Verbum: Madrid (pp.
251-269).

Ana Maria Amaro, Phd., é professora catedrática jubilada da


ISCSP-Universidade Técnica de Lisboa, fundadora e atual
presidente do Instituto Português de Sinologia. Há quase
cinqüenta anos estudando a China, com ênfase em Macau, é
provavelmente a maior sinóloga portuguesa em atividade,
tendo vivido na China durante anos, e possuindo uma vasta
produção acadêmica. Destacam-se os livros Jogos, brinquedos
e outras diversões populares de Macau [1972], O mundo chinês
[dois volumes, ] e Estudos sobre a China [1998], entre dezenas
de textos e volumes. É uma ativa colaboradora da Revista do
Instituto Cultural de Macau, e promotora dos fóruns

455
internacionais de Sinologia em Portugal, um dos mais
destacados eventos da área no mundo lusófono. O artigo aqui
presente foi retirado da Revista de Cultura de Macau, 1997.

André Bueno, Phd. é professor de História na Universidade


Estadual do Paraná. Há mais de duas décadas atua no campo da
divulgação dos estudos sinológicos no Brasil, possuindo várias
publicações relativas ao tema. Desde o ano 2000, promove o
Projeto Orientalismo [www.orientalismo.blogspot.com], que
disponibiliza fontes e textos sobre as civilizações de China e
Índia. As principais áreas de pesquisa do Prof. André são
Confucionismo e Diálogos interculturais no pensamento e na
arte.

António Graça Abreu, Phd. é professor na Universidade do


Aveiro, sendo reputado como um dos sinólogos portugueses
que melhor já conheceram a China. Além dos estudos
sinológicos, chegou a lecionar em Beijing entre 1977-83, e
realizou um vasto trabalho de tradução de obras chinesas para o
português. Entre elas, destacam-se O Pavilhão do Ocidente
(1985), Poemas de Li Bai (1990), Poemas de Bai Juyi (1991),
Poemas de Wang Wei (1993), Poemas de Han-Shan (2009) e
co-autor de Sínica Lusitana Vol. I e II (2000 e 2003). Laureado
com diversos prêmios, foi ainda autor de obras próprias, tais
como Terra de Musgo e Alegria (2005), China de Lótus (2006),
Cálice de Neblinas e Silêncios (2008), A Cor das Cerejeiras
(2010) e Toda a China (2014).
456
Bony Schachter é doutorando do Instituto Nacional de Estudos
Humanísticos Avançados (wenshiyanjiuyuan文史研究院) da
Fudan University復旦大學, Shanghai. A tese que agora
desenvolve em tal instituição se concentra na Escritura do
Soberano de Jade (CT 10 gaoshang yuhuang benxing jijing),
por meio da qual investiga a história intelectual relacionada a
tal deus e o problema da autoridade escritural na China.

Chenyang Li, Phd. é o fundador do Programa de Filosofia da


Universidade Tecnológica de Nanyang, Singapura, onde atua.
Lecionou na Universidade Central de Washington, tendo
recebido várias distinções. Seus interesses principais de
pesquisa são a Filosofia Chinesa e Filosofia comparada, tendo
publicado nove livros nesse campo, dos quais destacam-se The
Confucian Philosophy of Harmony (2013), The Tao
Encounters the West: Explorations in Comparative
Philosophy (1999) e The Sage and the Second Sex (ed. 2000).
Publicou ainda mais de cem textos e artigos em livros e
revistas especializadas, tais como Philosophy East and West e
Journal of Chinese Philosophy. Atualmente é vice presidente
da International Society for Chinese Philosophy. O artigo aqui
presente nessa coletânea foi retirado do livro The Tao
Encounters the West: Explorations in Comparative
Philosophy (1999).

457
Jana S. Rošker, Phd. é professora de História e Pensamento
Chinês no Departamento de estudos asiáticos da Universidade
de Ljubljana, Eslovênia. Possuindo uma sólida formação em
Sinologia, tendo passagens em diversas universidades chinesas
e européias, a Prof. Rošker é especializada em Filosofia,
Lógica e Epistemologia do pensamento Chinês, e possui uma
vasta publicação de livros e artigos em inglês e chinês. Entre
seus muitos trabalhos, destacam-se Searching for the Way:
Theory of Knowledge in Pre-modern and Modern China
[2008], The Yields of Transition: Literature, Art and
Philosophy in Early Medieval China [2011], Traditional
Chinese Philosophy and the Paradigm of Structure (Li) [2012]
e Modernisation of Chinese Culture: Continuity and Change
[2013]. É ainda uma ativa promotora da Associação Européia
de Estudos Chineses, divulgando a Sinologia no âmbito
europeu.

Jesualdo Correia é Orientalista, Geopolitólogo e Linguísta,


tendo diversas passagens por Moscou, Estocolmo, Paris,
Benares e Taipei. Uma visão mais ampla de suas produções
pode ser vista em: www.jesualdocorreia.blogspot.com.br

Márcia Schmaltz [1973-2018] nasceu brasileira, mas cresceu


em Taiwan. Tradutora-intérprete e professora de chinês.
Formou-se em Língua e Literaturas Portuguesas (FAPA),
Mestre em Estudos da Linguagem (UFRGS), pesquisadora
sênior na Universidade de Língua e Cultura de Beijing
458
(BLCU), foi leitora na Universidade de Pequim e professora de
chinês na Universidade de Caxias do Sul. Doutoranda em
Linguística na Universidade de Macau (UM), onde leciona
desde 2008. Em 1999, ganhou o prêmio Xerox/Livro Aberto e,
em 2001, o Prêmio Açorianos de Literatura, categoria tradução.
Traduziu Viver de Yu Hua (Companhia das Letras,
2008), Dicionários Temáticos e Visuais Bilíngues (UNESP),
Contos Completos de Lu Xun (L&PM, no prelo), entre
outros.Junto com Sérgio Capparelli publicou pela L&PM 50
Fábulas da China Fabulosa (2007) e Contos Sobrenaturais
Chineses (2010). É editora da coleção Tradução de Clássicos
Brasileiros para o Chinês (UM). Colabora com a Revista
Macau.

Nataša Vampelj Suhadolnik, Phd. é professora de História da


Arte Chinesa no Departamento de estudos asiáticos da
Universidade de Ljubljana, Eslovênia. Pesquisadora de arte
chinesa antiga, com ênfase na arte budista, a Prof. Suhadolnik
angariou uma ampla experiência com o tema, tendo feito
estudos de aperfeiçoamento em várias universidades chinesas e
européias. Entre seus mais diversos artigos e livros, podemos
destacar The Yields of Transition: Literature, Art and
Philosophy in Early Medieval China [2011], e Modernisation
of Chinese Culture: Continuity and Change [2013], realizados
em parceria com a prof. Rošker.

459
Wang Keping, Phd. é professor de Filosofia da Beijing
International Studies University [BISU], e diretor da Academia
de Ciências Sociais da Chinesa [CASS], sendo reconhecido
como uma dos maiores especialistas chineses atuais em
diálogos interculturais, filosofia comparada e estética. Possui
formação em universidades da Europa e no Canadá. Tendo já
viajado por diversos países, o prof. Wang tem uma obra ampla,
várias vezes premiada tanto em chinês quanto em inglês, cujo
valor inestimável tem sido reconhecido internacionalmente.
Entre seus trabalhos, podemos destacar, em inglês, The Classic
of the Dao: A New Investigation. [1998], Chinese Philosophy
on Life. [2005], Ethos of Chinese Culture. [2007], Spirit of
Chinese Poetics. [2008], Chinese Way of Thinking. [2009, no
qual está presente o ensaio de nossa coletânea] e Reading the
Dao: A Thematic Inquiry. [2011].

Yuri Pines, Phd. é professor da Universidade Hebraica de


Jerusalém. Seus principais campos de atuação são história,
historiografia e pensamento na China Antiga. Com uma vasta
produção acadêmica de qualidade, e tendo recebido diversos
prêmio por suas obras e pesquisas, o Prof. Pines é um reputado
especialista no campo da Sinologia. Já publicou dezenas de
artigos em revistas especializadas, além de alguns destacados
livros, tais como Foundations of Confucian Thought:
Intellectual Life in the Chunqiu Period, 722-453 B.C.E. [2002],
Envisioning Eternal Empire: Chinese Political Thought of the
Warring States Era [2009] e Birth of an Empire: The State of
Qin revisited [2014], do qual reproduzimos um capítulo

460
presente nessa coletânea. Uma visão completa do trabalho do
Prof. Pines pode ser vista em: http://www.eacenter.huji.ac.il/?id=1182

461
462
Antigas Leituras: Visões da China Antiga é uma
coletânea de artigos sobre história, pensamento e
literatura da China Antiga, coligida junto a autores
dos mais diversos países, e organizada em conjunto
pelos Profs. André Bueno [UERJ] e José Maria Neto
[UPE]. O presente volume é uma reedição revista e
corrigida.

463

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