Você está na página 1de 116

Para citar:

ANDRÉ [org.] Mulheres na China Imperial. União da Vitória,


2008. Disponível em: http://amulhernachina.blogspot.com.br/
Caso cite uma página [exemplo]: 1
Mulheres na China imperial, Página

LIN, Yutang, “A Cinderela Chinesa”, p. xx in ANDRÉ [org.]


Mulheres na China Imperial. União da Vitória, 2008. Disponível
em: http://amulhernachina.blogspot.com.br/
APRESENTAÇÃO

Seja bem vind@ a este pequeno trabalho dedicado a História da


Mulher na China.
O que apresentaremos aqui é uma sucinta, porém instigante,
seleção de textos sobre questões envolvendo o feminino desde as
antigas poesias do Shijing até documentos mais recentes da
história moderna chinesa.
Esta relação de textos seguiu, obviamente, dois critérios de básicos
de escolha: o primeiro está ligado a sua disponibilidade em
português; o segundo se constituiu em limitar as apresentações ao
tempo da China Imperial, alicerce fundamental e indiscutível de
sua cultura e sociedade.
Num primeiro momento, os textos vieram do livro "Da virtude da
mulher chinesa", de Francisco Rego, publicado em Macau, 1949.
Este livro traz um importante material sobre a Mulher na China,
se tratando de traduções de biografias e tratados sobre a mesma
da China tradicional. Dois problemas, porém, são fundamentais
nesta obra:
1o) O autor não identifica as fontes e faz uma tradução livre, que
não nos permite identificar, exatamente, de onde foram extraídos 2
os textos. Sabemos que ele recorre a Enciclopédia Ming [1644] da
Mulheres na China imperial, Página

história das mulheres, que contém os Quatro textos básicos


femininos, mas isso pouco explica. Assim sendo, as fontes aqui
apresentadas devem ser tomadas, em conjunto, para o período
moderno da história chinesa.
2o) O autor é um machista assumido, e muitas de suas seleções
foram feitas tendo por mister a defesa da submissão do feminino.
Assim sendo, apresentamos estes textos para servirem de fonte de
estudo, com as implicações e problemas que eles possam carregar
consigo.
Num segundo momento, selecionamos trechos que se encontram
na obra de Lin Yutang, estando distribuídos entre os livros "A
importância de compreender" [Porto Alegre, 1969] e "Sabedoria
da Índia e da China" [Rio de Janeiro, 1958]. Alguns textos são
fundamentais, como a questão do enfaixamento dos pés ou
mesmo, do mercado de concubinas. No entanto, temos escritos
fabulosos - como o de uma poetisa chinesa, ou a seleções do livro
das canções que mostram uma antiguidade chinesa longe do
tradicional machismo que se lhe atribui perenemente.
Falta muito ainda, e esperamos suprir estas carências no futuro.
Por agora, pedimos apenas que aproveitem esta singela
homenagem a Mulher Chinesa.

Atenciosamente
ANDRE
[André Bueno]

3
Mulheres na China imperial, Página
ÍNDICE
De Francisco Rego
Sobre conhecer
A importância do estudo
Sacrifício aos ancestrais
Servidão aos sogros
Aconselhando
Na cozinha
Da ocupação das mulheres
Prática do Luto
Boas maneiras
Como recepcionar
Compartimentos interiores
Cunhados, cunhadas e criados
Filhos, filhas, noras e genros
Os cinco deveres femininos
A Verdadeira Harmonia
Os deveres femininos
4
Mulheres na China imperial, Página

As três obediências

De Lin Yutang
Extratos do Livro das Canções
A Lenda de Ch'ienniang
Cinderela Chinesa
O Julgamento de duas Mães
Um Corpo de Mulher
A Morte de uma Rainha
Sobre como se deve amar uma mulher
A Respeito do Amor
Pensamentos profanos de uma monja
A uma Bela
Em Memória de uma mulher
Em Memória de uma criança
Uma carta de amor
Uma canção de morte
Uma Poetisa Chinesa
Sobre o infanticídio e o salvamento de crianças
A origem do enfaixamento dos pés
Mercado de Concubinas
Do encantamento as mulheres
Uma carta familiar sobre uma jovem esposa
5
Mulheres na China imperial, Página
SOBRE CONHECER

Assim nos diz o "Livro do Ritual":


"As meninas, a partir dos dez anos não sairão de casa. Aprenderão
a obediência e as graças femininas; aprenderão a trabalhar com
cânhamo e linho e a cuidar dos casulos do bicho-da-seda, cosendo
a roupa, fazendo cintos e cordões; aprenderão as cerimônias dos
sacrifícios; terão a seu cargo molhos e vinhos, cereais, frutas,
achares e carnes".
São simples e fáceis as obrigações da mulher e, mesmo assim, não
deixa a preguiça e a ociosidade de a espreitar.
A mulher, que não cumpre os seus deveres, é causadora de
confusão e destruição, na Terra.
O Imperador e a Imperatriz assemelham-se ao Sol e a Lua, ao
elemento masculino e feminino: Se concordam e vivem em paz e
harmonia, o Império gozará perfeita tranqüilidade.
O Imperador, regulando o governo e o resto de seus súbditos,
serve de exemplo aos pais; a Imperatriz, impondo as regras do
harém, é modelo, que deve ser seguido pelas mães.
Assim, o Imperador e a Imperatriz são chamados o Pai e a Mãe do 6
Povo.
Mulheres na China imperial, Página

Uma jóia, não lapidada, não serve para ornamento, como um


homem inculto não pode saber doutrina.
Apesar de uma mesa estar coberta das melhores iguarias, nós não
conheceremos os sabores destas, se as não provarmos.
Apesar da doutrina ser perfeita, o seu valor será desconhecido, se
não a estudarmos e praticarmos.
A IMPORTÂNCIA DO ESTUDO

Disse a senhora Chao, que os homens da sua geração julgavam


que à mulher bastava saber servir o marido com porte digno e em
traje próprio, e proceder segundo as regras da propriedade.
Enquanto os filhos aprendiam a ler e a interpretar os clássicos, as
filhas permaneciam em ignorância absoluta, do que resultava que,
quando crescidas, nem mesmo m deveres impostos pelas leis da
propriedade podiam cumprir, por falta de compreensão dos
mesmos.
Ora, se o Livro do Rito manda que os rapazes aprendam a ler
porque não devemos ensinar a ler às raparigas?
Certo filósofo, da antiguidade, disse:
"As mulheres devem aprender a ler, porque Só assim poderão
compreender a Voz do Céu, aprender a controlar o seu gênio e a
Corrigir as suas tendências, o que é do grande importância.
Não há necessidade de que aprofundem o elegante estilo clássico
ou de que aprendam a compor odes, porque a interpretação dos
clássicos, bem como o conhecimento da doutrina de Confúcio,
obrigam, a estudo aturado, que deve pertencer aos homens. 7
O celebrado clássico Lu, escreveu: - "Muitos pais, convencidos de
Mulheres na China imperial, Página

que da leitura de certos livros pode resultar uma deformação


moral, não mandam ensinar as filhas a ler. Esquecem-se, porém,
de que os livros prejudiciais não são os únicos que existem, e de
que não é difícil impedir a leitura desses livros.
SACRIFÍCIO AOS ANCESTRAIS

A prática da oferta de sacrifícios pelos mortos deve pertencer ao


marido e à mulher. Tanto nos compartimentos interiores, como
nos exteriores, deve haver mestres de cerimônias, estando os
vasos, com o vinho do estilo, preparados.
Sete dias antes do dia em que devem ser oferecidos os sacrifícios, a
mulher abandona os trabalhos de casa e, três dias antes, entra em
retiro espiritual O marido, nos compartimentos exteriores,
procederá do mesmo modo. Findo o retiro, se se tratar de
membros da família Imperial, os esposos dirigir-se-ão ao Templo
Ancestral Imperial.
O Príncipe cobrir-se-á com urna mitra de seda, pura, e
permanecerá firme nos degraus, que conduzem a porta oriental. A
Princesa, usará traje de gala e ornamentos no cabelo, e
permanecerá firme atrás do Príncipe.
O Príncipe, então, toma em suas mãos a taça de libação, com
vinho puro, e vaza-o perante o morto ou seu símbolo. O mestre de
cerimônias procede do mesmo modo. Em seguida, o Príncipe
conduz até ao lugar próprio o animal, que será sacrificado,
arrastando-o por uma corda, que o segura pela cartilagem do 8
nariz.
Mulheres na China imperial, Página

Os nobres e senhores presentes seguem-no, e alguns conduzem os


vegetais. A mestra de cerimônias caminha em direção ao lugar
onde o sacrifício se realizará, seguida da Princesa, que conduz um
jarro com água, para oferta da água pura.
Então, o Príncipe mata o animal, e a Princesa progride a oferta de
água e dos vegetais; e, nessa ocasião, os esposos entram juntos em
adoração.
SERVIDÃO AOS SOGROS

A mulher deve servir seus sogros, com a mesma solicitude e


reverencia com que serve seus pais.
É do bom equilíbrio que o mais novo sirva o mais velho e o
inferior sirva o superior.
Mesmo os bastões e os sapatos dos pais e dos sogros devem ser
venerados e nem as mulheres nem as crianças da família devem
aproximar-se deles. As próprias terrinas e tigelas, bem como as
taças usadas pelos pais e sogros, não podem ser utilizadas pelas
mulheres e crianças da família, a não ser para aproveitamento dos
restos, por parte das crianças.
A mulher casada trabalhará sempre para seus sogros com a
preocupação de ser diligente e rápida na prática de seus deveres.
Nem por um momento sequer deve deixar de ter para com eles
todo o cuidado, a fim de lhes preservar a vida.
é seu dever, como filha, preparando a roupa para os sogros, ao
pressentir que se aproxima o Inverno. A comida deve estar
preparada, antes que os sogros sintam vontade de comer,
antecipando-se assim aos seus desejos, com o maior carinho.
É assim que as filhas devem tomar conta elos país e dos sogros.
9
Mulheres na China imperial, Página
ACONSELHANDO

Os assuntos de Estado não dizem respeito à mulher, pois


pertencem apenas ao homem, a cada qual deve ter suas ocupações
definidas. Isto, porém, não impede que a mulher, se for inteligente
e ponderada, aconselhe seu marido sobre qualquer assunto, que a
este diga respeito, ou de que este tenha de cuidar, por dever de
ofício
Não devemos esquecer que não é a galinha que anuncia o romper
da aurora, mas sim o galo.
E assim reza a ode:
"Deve a mulher ajudar seus vizinhos, Quando haja morte ou
desastre com eles. Ajoelhada, dará seu auxílio, que outro não há
melhor do que este".
Vê-se, assim, que a oração faz parte dos deveres da mulher, não só
para hem dos seus, como para bem dos vizinhos e do próximo em
geral.

10
Mulheres na China imperial, Página
NA COZINHA

Sobre os deveres da mulher, de preparar e servir os alimentos, não


esquecendo a sua posição secundária e até de inferioridade na,
vida, assim reza a ode:
"Para servir, as filhas nascem:
Terão por cama o duro chão; Cobrir-se-ão com roupas velhas,
Com velhas telhas brincarão.
N em bem, nem mal jamais farão, Pensando apenas no dever
Do sacrifício, aos falecidos,
Do alimento, ao que viver.
Em não causar desgosto aos pais, Ocuparão seu pensamento.
Devem viver a trabalhar,
A preparar o alimento.
O emprego da mulher é na cozinha. É seu dever cozinhar e
temperar o alimento devidamente, cuidar do arroz e do sal e não
abandonar o fogão, enquanto a comida estiver ao lume.
Se se tratar de uma senhora de elevada categoria, então não deverá
abandonar a cozinha, entregando os trabalhos às criadas. Assim, 11
evitar-se-á o desperdício e, no tratamento dos hóspedes, não
Mulheres na China imperial, Página

deixarão de ser cumpridas as leis da propriedade.


Não são dignos de referencia aqueles que só pensam em si e não
tratam seus hóspedes com a devida correção e gentileza.
A ocupação da mulher deve estar sempre ligada ao que diga
respeito à preparação do vinho, às provisões e roupas e,
especialmente, a cozinha.
DA OCUPAÇÃO DAS MULHERES

O trabalho, a que as mulheres devem dedicar-se, não obriga a


grandes conhecimentos: tratar os bichos da seda, fiar, tecer,
preparar o vinho e o alimento e atender os hóspedes.
Em tempos antigos, o imperador e os príncipes tinham em seus
jardins uma alameda, de amoreiras e, junto a ela, Um
compartimento destinado à criação do bicho da seda. Este
compartimento tinha cerca de três metros de altura e era cercado
por uma sebe de espinhos
No terceiro mês do ano, o Imperador, coberto com um barrete
cônico de pele de veado e em traje comum, em ar de adivinho,
indicava, de entre as suas três rainhas e vinte e sete concubinas,
aquelas que a sorte protegia, e incumbia-as de levar os bichos-da-
seda para os seus aposentos, Então, as senhoras tomavam em suas
mãos os apreciados ovos e lavavam-nos em água fresca. Os bichos
eram alimentados com folhas colhidas das amoreiras da alameda,
colheita que se fazia depois de seco o orvalho da madrugada.
Quando o trabalho das concubinas terminava, estas juntavam os
casulos, que eram apresentados ao Imperador, e depois
ofereciam-nos à Imperatriz, que os recebia, vestindo o seu mais 12
rico traje bordado, dando-lhes em troca um carneiro, para se
Mulheres na China imperial, Página

banquetearem.
Em dia propício, a Imperatriz dobrava três meadas de nós de seda
e dividia os casulos pelas três rainhas e vinte e sete concubinas, a
fim de que estas completassem a dobragem.
O vermelhão e o verde, o preto e o amarelo eram as cores
consideradas de maior elegância para bordados e aplicações nos
trajes próprios para os sacrifícios. Estes trajes, feitos de seda
preparada pelas senhoras do harém, eram usados pelo Imperador,
por ocasião da oferta de sacrifícios aos seus antepassados.
As mulheres, presentemente, de modo geral, são preguiçosas e
gostam do descanso, levantando-se tarde do leito e freqüentando
os teatros.
Devem todas atentar no exemplo da Imperatriz e das rainhas, no
cuidado com que alimentavam os bichos-da-seda, não se furtando
ao trabalho, fiando tecidos finos e grosseiros.
Porque será que, presentemente, tanto as mulheres das classes
elevadas, como as do povo, vivem na indolência, procurando o
descanso?
Nesses tempos antigos, logo que surgia o terceiro mês do ano, um
decreto imperial proibia terminantemente que fossem maltratadas
as amare iras e os lugares da criação dos bichos-da-seda. A caça
era defesa nas matas imperiais, e as rainhas e concubinas não a
comiam.
Era a Imperatriz quem, primeiramente, virada para o nascente, se
debruçava e colhia as primeiras folhas de amoreira. E, então,
incumbia as rainhas e as concubinas de procederem à colheita,
recomendando-lhes que fossem simplesmente vestidas, não
levando consigo criadas, que pudessem auxiliá-las, a fim de que só 13
elas pudessem seguir seus bons exemplos.
Mulheres na China imperial, Página

As terras abandonadas, ao sul da capital, eram lavradas pelo


Imperador, auxiliado pelo povo, a fim de que o painço não faltasse
para os sacrifícios anuais.
A Imperatriz alimentava e criava os bichos-da-seda, preparando
os trajes próprios para os sacrifícios da Coroa.
Assim, manifestavam o Imperador, os príncipes, a Imperatriz e as
princesas a sua simplicidade e reverencia.
Só quando seja perfeita a reverencia, se podem adorar os deuses.
A mulher deve levar vida de trabalho constante porque, se deixar
de fiar, o povo morrerá de frio.
O homem deve casar aos trinta anos e a mulher aos vinte.
A mulher deve saber dobrar e trabalhar em tecidos de cânhamo,
cultivando a arte de combinar as cores elegantemente nos
bordados dos trajes próprios das cerimônias dos sacrifícios.
Não sabendo trabalhar, as mulheres das classes elevadas não
poderão obedecer a seus sogros, assim como as mulheres das
classes pobres não poderão servir seus maridos, nem cuidar de
seus filhos.
E assim reza a ode:
"Devem tecer e bordar
Os finos dedos da noiva.
Não tendo negócios públicos, Só poderá a mulher
Criar o bicho-da-seda,
Tecer panos e bordar.
14
Quando chega a Primavera, Chega também o calor.
Mulheres na China imperial, Página

Inicia o verdelhão
Seu cantar anunciador.
As raparigas transportam,
Em seus braços, fundos cestos, Por carreiros apertados,
Em busca das tenras folhas
Das amoreiras dispersas".
PRÁTICA DO LUTO

Por morte do pai ou da mãe, os filhos e outros parentes varões


deverão dar expansão à dor, segundo o ritual, num
compartimento pobre e acanhado, fora da porta principal da
residência.
Os filhos usarão luto carregado e dormirão sobre palha ou ala
empalhada, pelo pavimento, tendo por travesseiro torrões de
terra.
Enquanto durar o período do luto, não poderão os filhos deixar de
usar largas faixas de tecido de cânhamo grosseiro, branco, nem
juntar-se ou acompanhar com aqueles, que não estejam de luto.
As filhas e parentes do sexo feminino viverão do mesmo modo,
porém, em compartimento que esteja na própria residência, onde
não poderá haver qualquer perto de mobília, que não seja
absolutamente necessária.
Quem está de luto não deve rir, brincar, assistir a festas ou ouvir
música. A maior demonstração externa de dor consiste em bater
com a cabeça no chão, e permanecer de bruços no solo.
Esta prática, porém, segundo Ziyu, deve seguir-se até ao ponto em 15
que a dor atinja a sua maior intensidade.
Mulheres na China imperial, Página

A expressão fisionômica, carrancuda e de ira, é recomendável a


quem esteja de luto carregado.
O cabelo deve apresentar-se despenteado, e todos os ornamentos
devem ser postos de parte.
Conforme o grau de parentesco, assim o luto pode ser de três
anos, um ano, seis ou três meses.
A exceção do luto por morte dos pais, que obriga ao traje de
tecido de sarapilheira, o luto denuncia-se por traje simples,
branco, azul ou cinzento, despido de qualquer ornamento.
O parentesco entre cunhados é considerado tão afastado, que não
obriga a luto.
O luto, por morte duma tia, irmã do pai, é aliviado, porém, os
sobrinhos do chefe da família, a que ela pertença pelo casamento,
usarão luto carregado.
Por morte de um tio de sangue, irmão do pai, os sobrinhos usarão
luto por um ano.
Confúcio aprova a prática da viúva chorar, apenas durante o dia, a
morte do marido, assim como aprova que a mãe chore de dia e de
noite a perda de um filho.
Disse o grande filósofo-moralista que, quem assim procede,
compreende e cumpre rigorosamente as leis da propriedade.

16
Mulheres na China imperial, Página
BOAS MANEIRAS

Não deve a mulher usar de maneiras artificiosas para com o


marido, nem deve ser extravagante no vestuário ou nos
ornamentos.
Não deve a mulher juntar se a outras para, maldizer, nem deverá
espreitar ou escutar nas portas.
A mulher deve tratar o marido, como se este fosse um hóspede.
Nas residências da nobreza ou de gente abastada, os
compartimentos interiores, destinados às mulheres, estão
separados dos outros, reservados aos homens. As portas dos
compartimentos interiores devem ser todas guardadas por
eunucos, e nem os homens poderão por elas entrar, nem as
mulheres sair.
No Palácio Imperial, a etiqueta, à hora de recolher, deve ser a
seguinte: A Imperatriz aguarda que se apaguem as luzes dos
aposentos do Imperador e, então, em trajes menores, toma lugar a
seu lado. Ao surgir a alvorada, os músicos executarão a melodia
"Romper do dia", ao fundo da escada, que dá acesso aos
aposentos. Então, a Imperatriz tange as cordas do instrumento
adornado com pedras preciosas, que tem no seu quarto, como 17
sinal indicativo de que vai sair. O porteiro do palácio faz soar a
Mulheres na China imperial, Página

hora anunciadora de que está aberta a porta, e os músicos


executam a melodia "Nascer do Sol". Nessa ocasião, a Imperatriz
retira-se para os seus aposentos privados e o Imperador dirige-se
à sala da audiência.
Quando, numa família, a refeição é servida a todos, à mesma
mesa, cada um tomará o lugar, que a sua idade compita. A mulher
nunca tem lugar próprio e sentar-se-á sempre em relação ao lugar,
que o marido ocupar.
Se o lar for turbulento, a ordem, que nele deve reinar, estará
arruinada, assim como desaparecerá o bom governo da família se
as mulheres e as crianças se derem à prática de risos desenfreados.
Mandam as regras da propriedade que a voz da mulher seja suave
e baixa, sem que possa ser elevada, nem mesmo em presença de
qualquer emoção.
A mulher deverá ver e ouvir apenas o necessário, e o seu aspecto
deve ser sempre asseado e agradável. A mulher virtuosa deve
permanecer em sossego nos compartimentos interiores,
procurando aumentar suas virtudes. Os passeios constantes e as
visitas aos templos e mosteiros não são sinal indicativo de virtude.
O asseio e o arranjo fazem parte de virtude da mulher. Mêncio
disse:
- "Por maior beleza que uma mulher possua, se não for asseada,
será como a linda flor que todos afastam de si pelo seu cheiro
incômodo".
A mulher não deverá falar em voz, alta, nem mesmo que, a
distância, tenha de responder a qualquer pergunta; não deve
deixar que seu olhar vagueie de modo impróprio, denunciando 18
curiosidade; não deverá andar com meneios de corpo, que
Mulheres na China imperial, Página

revelem impudência; quando esteja de pé, deve estar firme, sem


procurar encosto e, quando esteja sentada, não deverá dar
movimento às pernas, nem afastar os joelhos.
No leito, deve a mulher deitar-se sempre de ventre para cima,
apoiando a nuca no travesseiro e, por mais que sofra com a dor,
nunca deverá despir-se para descansar.
O andar da mulher deve ser digno, aprumado e elegante.
Deve, a mulher, andar de cabeça erguida, olhos mal abertos, com
as mãos colocadas em atitude de respeito. A sua respiração devo
ser suave e regu1ar, não aparentando energia excessiva.
As mulheres não devem falar sobre negócios públicos, porque
estes estão afetos apenas aos homens.
Quando a mulher tenha de sair à rua, deverá sempre velar seu
rosto com um leque ou ventarola e, se for de noite, deverá levar
consigo uma luz.
Quando marido e mulher passeiam juntos, a mulher deverá
sempre tomar a esquerda do marido. Nunca a mulher poderá
viajar de carruagem com qualquer homem, que não seja seu
marido ou seu pai, assim como não poderá comer a mesa com
quaisquer outros homens, à exceção daqueles, ou de seus irmãos.
Até à velhice, nunca deverá a mulher sair dos compartimentos
interiores, a não ser em caso de absoluta necessidade. Dentro dos
limites dos compartimentos interiores, devem permanecer as
criadas, que sirvam as mulheres.
As famílias dos nobres e senhores não devem tomar parte em
procissões em honra dos deuses, pelos lagos e montanhas, nem
oferecer-lhes incenso, em público. A mulher, até nas suas orações 19
e práticas religiosas, deve ser recatada.
Mulheres na China imperial, Página

Na província de Kiang tung, a mulher nunca sai de casa para


assistir a qualquer divertimento. Pelo casamento manterá
relações, apenas por correspondência e troca de presentes, com os
membros da família de seu marido, sem que alguma vez os veja.
A mulher, que receba ou faça visitas, descurará a educação dos
filhos e passará a falar a estranhos nos negócios de seu marido.
Esta é a razão porque as visitas são proibidas pelas regras da boa
propriedade, há milhares de anos.
Confúcio aprovou sempre esta prática, como necessária à
separação dos sexos.

20
Mulheres na China imperial, Página
COMO RECEPCIONAR

Na presença dos pais ou dos sogros, a mulher não deve espirrar,


tossir, espreguiçar-se, ressonar e recostar-se. Não poderá fitá-las,
devendo apresentar sempre um ar prazeroso e agradável, quando
os sirva, para os contentar .
É dever das filhas e noras servir os pais e sogros, de modo a torná-
los felizes. Se a filha usar de maneiras imperativas e abruptas,
empregar palavras ásperas, mostrar semblante carregado - ainda
que diariamente sirva seus pais ou sogros e lhes apresente as três
espécies de carnes, como alimento-, não poderá ser considerada
filial, quanto ao seu procedimento.
Em tempos antigos, a nora, no dia seguinte ao da sua entrada em
casa de seu marido, ainda de noite, lavava-se e aguardava que o
sol nascesse. A mestra de cerimônias, então, conduzia a noiva á
presença dos sogros e levava consigo um cesto com tâmaras,
castanhas e peixe seco. Então, a mestra ele cerimônias dirigia o
serviço, ele acordo com o ritual: Em feito o oferecimento, aos
sogros, de peixe seco com molho ácido e vinho doce. Servida esta
pequena refeição, passavam os sogros à sala de visitas, e a nora
servia-lhes carne de porco, em sinal de obediência. 21
No dia imediato, competia aos sogros entreter a nora.
Mulheres na China imperial, Página

O procedimento reverencial da mulher para com o marido


consiste na pureza. Da propriedade dessas palavras e em não olhar
sequer para o que não deva ser visto.
COMPARTIMENTOS INTERIORES

Não deve a mulher esquecer as regras da propriedade, quando


fale, porque estas devem presidir a todos os atos comuns da vida.
É da competência da mulher presidir ao governo doméstico nos
compartimentos interiores, não podendo manifestar a sua opinião
em público, nem mesmo num conselho de família.
Os negócios públicos pertencem aos homens, bem como tudo
aquilo que não tenha caráter essencialmente doméstico e passe
além dos compartimentos interiores.
Não compete à mulher aprovar ou reprovar, o que quer que seja,
por palavras ou por gestos, desde que ao homem compita tal
aprovação ou reprovação.
Nem mesmo rogada a tal, deve a mulher contrariar as regras da
propriedade.
Fora dos compartimentos interiores, o silencio da mulher é a sua
maior virtude.

22
Mulheres na China imperial, Página
CUNHADOS, CUNHADAS E CRIADOS

Ainda a boa regra da moral se refere com minúcia aos deveres da


mulher para com os irmãos e irmãs do mando.
De entre as regras fixadas, citaremos algumas que nos parecem de
interesse:
Se o marido vive em boa harmonia com a mulher, é certamente
porque seus pais aprovam essa união; e, se essa aprovação existe,
certamente a mulher trata bem seus cunhados e cunhadas, cujo
apelido é o mesmo, que todos devem honrar.
Este afeto não pode manifestar-se apenas por palavras e terá de
revelar-se por ações, que provem uma intenção real.
A mulher do irmão mais velho está, por motivo do seu casamento,
em lugar de maior respeito que qualquer das suas cunhadas, o que
é natural pelos direitos que recebe do marido.
Deve, no entanto, ser para as suas cunhadas como uma irmã mais
velha, carinhosa, bondosa, e gentil, oferecendo, sempre que tal
seja necessário, o seu auxílio, quer por palavras (conselhos) quer
por obras (exemplos).
Só com este procedimento poderá, aquela que já mostrou ser boa 23
filha e boa esposa, mostrar também que é boa irmã.
Mulheres na China imperial, Página

Sendo assim, a nova filha será como que mais uma luz brilhante a
dar claridade e alegria ao lar e honra à família.
Toda, aquela, que assim não proceder, será portadora da desgraça,
e não só causará todos os possíveis danos, como ainda será motivo
da ruína da família que a recebeu em seu seio.
As cunhadas são geralmente amigas da discórdia. Se os irmãos
não podem viver juntos em paz e harmonia, devido às respectivas
mulheres, melhor é que se espalhem pelos quatro oceanos.
Esta separação pode, em muitos casos, despertar-lhes sentimentos
adormecidos e torná-los desejosos de voltarem a encontrar-se.
Raras são as mulheres que tem mão em si, e a causa de todas ali
questões é sempre o egoísmo, a inveja e a vaidade (defeitos
gêmeos).
Se as mulheres pudessem desculpar os defeitos das outras, como
perdoam os próprios, nunca haveria nota discordante na
harmonia do lar.
A mulher, como todo o animal fraco que não pode vencer pela
força, procura dominar pela astúcia, se o marido não se prepara
para isso com inteligência e oportunidade o antídoto do veneno
que pouco a pouco, lhe é ministrado, em pouco tempo está
envenenado pela mulher que, separando-o da família, o coloca em
situação de poder ser vencido com relativa facilidade.
Ai da mulher que dá ouvidos às criadas e que se esquece de que a
função destas é servir e não conversar.
As criadas são quase sempre o rastilho da discórdia, que
repentinamente surge numa família, sem que se saiba de onde e 24
como apareceu.
Mulheres na China imperial, Página

As criadas, sendo mulheres como as patroas, não perdoam a sua


condição de inferioridade e, sofrendo com o bem-estar das
senhoras, regozijam com o sofrimento destas.
Se bem que a mulher do irmão mais velho tenha direitos que o
casamento lhe deu, não deve menosprezar as mulheres dos irmãos
mais novos, sobretudo quando estas se imponham pelo seu saber,
pela sua inteligência e pela sua educação.
A condição dá direitos, mas estes não podem ser absolutos, sem
outros dotes que imponham a mulher.

25
Mulheres na China imperial, Página
FILHOS, FILHAS, NORAS E GENROS

Tratamos das virtudes da mulher em relação ao marido, e vimos


exemplos de dedicação extrema.
Vamos agora ocupar-nos dos deveres da nora para com os sogros,
deveres que são absolutamente filiais, porque, na China, quando
uma mulher casa, deixa de ser filha de seus pais para passar a ser
filha de seus sogros.
A nora deve ser a sombra e o eco da sogra, para que possa merecer
o elogio e a admiração de todos.
A nora deve dobrar o seu orgulho e abdicar da sua personalidade,
obedecendo cegamente à sogra, com o fim de lhe agradar, não
fazendo com tal procedimento mais que cumprir um dever, que
lhe é imposto pela boa moral. Que a nora não esqueça a
obediência que lhe é imposta, mesmo que a sogra lhe faça provar
o amargo fel.
Em qualquer caso, nunca poderá a nora odiar a sogra, mesmo que
esta use para com ela de crueldade e opressão.
No Ritual ou Decoro, encontra-se um capítulo assim intitulado:
"Regra da Vida Íntima". 26
- Destina-se este capítulo a instruir os filhos nos seus deveres para
Mulheres na China imperial, Página

com os pais, sendo o príncipe o amor filial que, em nenhum caso,


poderá deixar de existir.
Reza assim:
Devem os filhos, aos pais, reverencia e obediência imediata. Seja
qual for o alimento ou vestuário, que os pais dêem aos filhos, estes
devem contentar-se com ele, não podendo rejeitá-la, mesmo que
não seja do seu agrado.
Ainda que o filho não goste da mulher, que lhe foi escolhida,
desde que seus pais se dêem por satisfeitos e a considerem boa
servidora, deve tratá-la com carinho, respeito e amor, até a sua
morte. Mas se o filho amar sua mulher e esta não agradar a seus
pais, é seu dever repudiá-la, porque não poderá convir para
mulher, aquela que não convém como filha.
Nada pertence aos filhos. Tudo é dos pais.
Nestas condições, não podem os filhos receber quaisquer dádivas
sem que delas façam entrega imediata aos seus verdadeiros donos:
os pais. Se estes, porém, não as quiserem aceitar, devem os filhos
agradecer-lhas, como se elas tivessem sido dádivas suas. Estas, no
entanto, nunca são dádivas definitivas porque os pais podem, a
qualquer momento, exigir a devolução do que, de direito, lhes
pertence.
Os filhos, portanto, nada tem e nada são, porque nada seriam se
não fossem os pais.

27
Mulheres na China imperial, Página
OS CINCO DEVERES FEMININOS

O Ritual ou Decoro ensina que são cinco os deveres da mulher


para com o marido:
Ao romper do dia, deverá pentear-se e adornar o cabelo com
largas travessas, como se estivesse preparando-se para uma
audiência na Corte Imperial, mostrando, assim, para com seu
marido, a reverência que um súbdito deve ao seu Imperador.
Depois de lavar as mãos, preparará e oferecerá a seu marido o
primeiro alimento, com o respeito que um filho deve a seu pai. Se
o marido a tratar com perversidade, ela tornará a atitude
respeitosa que um irmão mais novo, em tais circunstâncias, toma
para com o primogênito. Se o marido errar, é seu dever auxiliá-lo
a corrigir a falta, com amor assente na maior amizade. Só nas mais
retiradas horas deverá manifestar o seu afeto de mulher para com
seu marido.
A mulher deve, durante toda a sua vida, olhar para seu marido
como quem olha para o Céu: Uma união amorosa lembra a
harmonia de alaúdes e harpas e, prevalecendo a harmonia no lar,
a família prospera. Se marido e mulher não viverem em perfeita
harmonia e a ruína do seu entendimento for completa, o casal 28
assemelhar-se-á lanças, que se opõem, não havendo termo para
Mulheres na China imperial, Página

seus desgostos e inquietações.


Deve a mulher ser respeitadora, obediente e submissa,
desempenhando-se dos seus deveres o melhor possível,
partilhando sempre das alegrias e tristezas de seu marido.
Mêncio escreveu assim:
"No dia do casamento, a mãe da noiva acompanhá-la-á à porta de
casa e adverti-la-á dizendo-lhe: "Vais para um novo lar; se
reverente, cumpridora do teu dever e obediente a teu marido".
Pode o marido contrair o matrimônio em segundas núpcias, sem
que, porém, haja cerimônias nupciais a celebrar.
A mulher preenche em absoluto o seu destino, satisfazendo os
desejos de seu marido. Porém, se perder a sua graça, esse destino
será completamente arruinado.
A mulher deve esforçar-se sempre por ganhar o afeto de seu
marido.
A verdadeira doutrina, que rege a vida entre marido e mulher,
exige que esta viva em perpétua reclusão. Se a mulher sair
freqüentemente, pode originar o escândalo; este pode, for sua vez,
provocar a maledicência e desta resultar a ruína e o ridículo do
marido. Daqui pode nascer um desentendimento entre os
cônjuges, que primeiro se manifeste por simples expressões e
atitudes desagradáveis, depois por palavras ofensivas e finalmente
por gestos agressivos.
O marido e a mulher devem viver sob o princípio do respeito
mutuo; mas, se chegarem a agredir-se, como pode esse respeito
mútuo prevalecer? Claro é que deste procedimento resulta a 29
separação afetiva e, desta, a desarmonia do lar.
Mulheres na China imperial, Página
A VERDADEIRA HARMONIA

Encontra-se nas Odes o seguinte poema:


"Junto à janela interior da Câmara ancestral,
ela prepara a oferenda das plantas aquáticas".
Assim se vê que toda a mulher deve concorrer para a harmonia da
vida familiar, de acordo com as regras do "Decoro", praticando os
deveres domésticos nos compartimentos interiores.
Ainda que a mulher tenha porte elegante, atitudes fascinantes,
modos delicados, dotes eminentes, seja eloqüente na fala e perfeita
em beleza, se não for virtuosa, poderão até subverter uma cidade
ou derrubar um trono, se de qualquer modo tiver o poder em suas
mãos. Nestas circunstâncias, a mulher assemelhar-se-á a uma flor
fragrante, que ainda esconde o estigma, ou a um ladrilho de barro
doirado, que possa parecer uma jóia cintilante. Se esta mulher
tiver o domínio de um Império, porá em perigo a sua segurança.
Se esse domínio se exercer numa família, esta será levada à ruína.
O "Cânon das mutações" diz:
Uma família será feliz, quando as mulheres, que dela façam parte,
sejam virtuosas. O lugar próprio da mulher é nos compartimentos 30
interiores da habitação; o do homem é no mundo exterior. Se os
Mulheres na China imperial, Página

sexos ocuparem os seus devidos lugares, a grande lei do Céu e da


Terra está cumprida. Se o pai for devidamente considerado como
pai; o irmão mais velho como primogênito; o marido como
esposo e a mulher como esposa, então a família será regulada
devidamente e, quando tal aconteça, o Universo repousa.
OS DEVERES FEMININOS

As leis do Decoro estabelecem esta natural distinção entre os


sexos e, quando marido e mulher as compreendam e mantenham,
será perene o afeto, semelhante ao que existe entre pai e filho.
Só gerando um afeto assim, poderá haver observância rigorosa do
Ritual ou Decoro, na vida diária e na adoração; e, dessa
observância, resultará a paz.
A recusar-se a compreensão da distinção entre os sexos, não
haverá direito, e os homens procederão como os animais
irracionais.
No seu apreciado livro "Preceitos da Mulher", diz a Senhora Chao
que, em tempos antigos, três dias depois do nascimento de uma
filha, esta era deitada sob o leito e, junto a ela, era colocada uma
telha de barro, enquanto se procedia aos sacrifícios de família.
Assim estava marcado o destino da mulher:
Deitá-la sob o leito, era condená-la a uma vida inteira de sujeição;
a telha, feita de barro, determinava-lhe uma vida de intenso
trabalho em serviço de seu marido; e os sacrifícios simbolizavam o
seu dever de perpetuar a linha ancestral do esposo, que lhe 31
coubera.
Mulheres na China imperial, Página

Estes eram os fins principais da existência da mulher.


No Ritual encontram-se os seguintes preceitos no respeitante à
mulher:
Se modesta e respeitadora; prefere os outros a ti própria; se tiveres
praticado o bem, não o proclames; sofre com paciência o insulto e
a crítica; receia sempre que possas praticar o mal; deita-te tarde e
levanta-te cedo, não temendo a primeira aurora, que se vislumbre
antes do nascer do Sol; se industriosa e nunca recuses um labor,
porque seja pesado ou difícil, nem desprezes outro, porque te
pareça fácil; cultiva a perfeição em tudo o que faças e dispõe o que
tenhas que ordenar metodicamente. Se serena e modesta; procura
dominar os teus instintos e serve teu marido preparando
devidamente o vinho e o alimento, bem como os sacrifícios
ancestrais, na estação própria. Se cumprires os teus deveres com
constância, não terás que recear que te desconheçam e que te não
elogiem. Se assim procederes, será impossível que o teu nome caia
em desgraça.
A união entre marido e mulher lembra as relações entre os
princípios superior e inferior, que permeiam todas as coisas e
influenciam as inteligências da Terra e do Céu. A virtude do
princípio superior é de firmeza inflexível; a do principio inferior é
de domável fraqueza.
Assim, a força do homem é a sua honra, e a fraqueza da mulher a
sua excelência.
O provérbio diz: O homem é de natureza forte como o lobo
(devemos-lhe atenção constante, para que não enfraqueça); a
mulher é de natureza fraca como o rato (devemos-lhe atenção
constante, para que não fortaleça).
32
Para que a mulher viva no cumprimento exato do seu dever, nada
Mulheres na China imperial, Página

lhe será mais proveitoso do que cultivar a reverencia. Se escapar a


maus tratos, de proveito lhe será cultivar a docilidade.
A obediência reverente é o principal dever da mulher.
Ao marido compete dirigir. À mulher compete o acatamento da
sua vontade.
É esta a relação conveniente.
A Senhora Chang, nas suas preciosas "Regras de conduta das
mulheres", diz:
O marido, por um grande número de boas ações, acumula mérito,
que atenua seus erros.
A perfeição da mulher alcança-se pela prática das "quatro
virtudes".
São as virtudes da mulher:
A pureza; a renúncia a um segundo casamento, se seu prometido
ou marido vier a falecer; o devido governo da casa; e a modéstia e
a humildade na conduta na vida, de acordo com as regras da
propriedade.

33
Mulheres na China imperial, Página
AS TRÊS OBEDIÊ
OBEDI ÊNCIAS

Confúcio falou assim:


A mulher está sujeita ao homem, não devendo dirigir qualquer
negócio ou ocupação, mas sim seguir apenas a Regras das Três
obediências:
Em solteira, deve a mulher absoluta obediência ao pai; quando
casada, absoluta obediência ao marido e, se enviuvar, absoluta
obediência ao filho mais velho.
Não poderá assim a mulher jamais atuar de sua livre vontade. São
sete os motivos pelos quais um homem pode divorciar-se de sua
mulher:
Se esta não cumprir os seus deveres para com os pais do marido;
se não tiver filho varão; se praticar atos imorais; se for ciumenta;
se for leprosa; se for maledicente; se for ladra.
Em tempos antigos, de acordo com o "Livro do Rito", a mulher,
três meses antes do casamento, recebia os ensinamentos
necessários ao cumprimento dos seus deveres de esposa, tanto no
templo ancestral, como no clã imperial, aprendendo a preparar os
animais, os vegetais e principalmente as plantas aquáticas, tão 34
usadas nas ocasiões em que se oferecem sacrifícios.
Mulheres na China imperial, Página

No casamento, a precedência é sempre dada ao noivo, porque


este, como homem, é forte, e a noiva, como mulher, é fraca.
Assim como o Céu tem precedência sobre a Terra e o Rei sobre
seus Ministros, assim o marido terá sempre, em todas as ocasiões,
o primeiro lugar.
EXTRATOS DO LIVRO DAS CANÇÕES [SHIJING]

1. Escrito em 718 A. C. É a versão chinesa do "mundo bem


perdido". Possivelmente, como um certo Yen Ts'an do décimo
terceiro século insiste, "feita com a intenção de mostrar o erro de
ligações licenciosas".
A abóbora ainda está com as folhas amargas,
É profundo o vau no cruzamento.
Espero meu senhor.
O vau está cheio até às bordas;
O faisão grita pela companheira.
Meu senhor demora.
O barqueiro ainda chama com acenos,
E outros chegam ao fim da jornada.
Espero meu amigo.

2. Escrito em 826 A. C. É incoerente com o mais belo ideal de


castidade - que a mulher chinesa quebre a viuvez perpétua.
35
Oh, deixá-lo vogar, aquele barco de madeira de cipreste,
Mulheres na China imperial, Página

Lá no meio do Ho.
Ele era meu companheiro,
E até a morte continuarei desolada.
Ó Mãe! Ó Deus!
Por que é que não quereis compreender?
Oh, deixá-lo vogar, aquele barco de madeira de cipreste,
Lá no meio do Ho.
Ele era meu rei.
Juro que não farei essa maldade. Ó Mãe! Ó Deus!
Por que é que não quereis compreender?

3. Escrito no décimo segundo século antes de Cristo.


Provavelmente de 1121.
A luz gloriosa da manhã cai sobre minha cabeça,
Pálidas flores brancas e púrpuras, azuis e vermelhas.
Estou inquieta.
No meio da relva seca algo se agita,
Pensei ouvir seus passos.
Depois um grilo cantou.
Subi a colina até que a nova lua surgiu,
Vi-o chegando pela estrada do sul.
Meu coração abandonou toda preocupação.

4. Escrito em 690 A. C. O "Pequeno Prefácio": "O elogio que um 36


homem faz à sua Pobre Esposa".
Mulheres na China imperial, Página

Saí pelo Portão Oriental,


Vi as jovens nas flores,
Eram bem como nuvens, radiantes e delicadas,
Mas ao olhá-las
Pensava na jovem que é a minha luz,
Reclinada e lânguida, suave como o crepúsculo cinza;
Ela é minha companheira.
Saí pela Torre que fica nas Muralhas,
Vi as jovens nas flores,
Como os juncos em flores curvavam-se e ondulavam,
Mas naquela hora
Pensei na donzela que é meu amor,
Em seus vestidos brancos tão leves e em suas cores desmaiadas;
Ela é tudo para mim

5. Escrito em 718 A. C. no harém do Palácio de Wei.


O vento sopra do norte.
Ele olha e os olhos são frios.
Ele olha e sorri e depois passa adiante,
Meu coração sofre.
O vento sopra sobre a poeira.
Ele jurou que amanhã virá.
As palavras foram doces, mas ele não as cumpriu,
Meu coração está entorpecido.
37
Mulheres na China imperial, Página

O dia inteiro o vento soprou forte,


Há muito o sol mergulhou no horizonte.
Pensei nele tanto tempo e tanto
Que não posso dormir.
As nuvens estão negras como a noite;
O trovão não trouxe a chuva.
Levanto-me e não tenho esperança
Sofro sozinha a minha dor.

6. Escrito em 769 A. C. por uma mulher divorciada.


O vestido amarelo é sinal de distinção,
O verde, da desgraça.
Uso o verde e não o dourado,
E escondo o meu rosto.
Uso o verde do desprezo
Depois de tanto tempo usar o amarelo.
Medito nos ensinamentos dos Sábios,
Com medo de julgá-los errados.
Foi por ela que ele me cobriu de vergonha.
Sento-me e penso solitária.
Fico pensando se os Sábios conhecem
O coração de uma mulher.

7. Escrito em 826 A. C. Queixas de um ajuste não cumprido.


38
Mulheres na China imperial, Página

Os salgueiros que crescem ao lado do Portão Oriental


Tem folhagens bem densas que abrigam.
Você disse - Antes que anoiteça -
E já se ouve chilreio nas beiras dos telhados.
Os salgueiros ao lado do Portão Oriental
A noite inteira banharam-se nas sombras.
Você disse - Antes que anoiteça –
E eis que brilha a estrela da manhã.

8. Escrito em 718 A. C.
Não posso ir a teu encontro. Tenho medo.
Não irei a teu encontro. Eis tudo, já disse.
Embora a noite inteira eu fique desperta e saiba
Que tu também estás deitado e desperto.
Embora, dia a dia, tu sigas a estrada, solitário,
E voltes, ao cair a noite, para um lar sombrio.
Contudo mesmo assim és meu amigo, na verdade,
Depois, no fim,
Há uma estrada, uma estrada que eu nunca percorri.
E por essa estrada não passarás sozinho.
E lá, certa noite, encontrar-me-ás a teu lado.
A noite em que me disserem que morreste.

9. Escrito c. 605 A. C.
39
Mulheres na China imperial, Página

Os juncos dos pântanos estão verdes


E curvam-se ao vento.
Vi uma mulher andando por ali
Já quase ao anoitecer.
Sobre as águas escuras do pântano,
Os botões do lótus bóiam muito brancos.
Vi-a de pé sobre a margem,
Ao cair da noite.
A noite inteira fiquei acordado
E não pude encontrar descanso.
Via-a delgada como os juncos
Curvando-se ao vento.
Fechei os olhos e vi novamente
A brancura de seu colo
Sobressaindo nas águas escuras da noite
Tal como o lótus ao flutuar.

10. Escrito em 718 A. C.


O K'e ainda se lança com ímpeto contra as margens
A galinhola grita.
Meu cabelo estava preso num nó,
E você apareceu.
Você vendia sedas a um rapaz
Que não era de nossa classe;
40
Mulheres na China imperial, Página

Você passou ao pôr do sol na estrada


Vindo lá da distante Ts'in.
As rãs estavam coaxando ao lusco-fusco
A relva estava úmida.
Conversamos e eu ri;
Ouço ainda o que você disse.
Pensei que seria sua esposa;
Você me prometeu.
Assim segui a estrada com você
E atravessamos o vau.
Não sei bem quando pela primeira vez
Seus olhos ficaram indiferentes.
Mas tudo o que se passou foi apenas há três anos
E já me sinto velha.

11. Escrito em 769 A. C.


O meu senhor partiu para servir ao rei.
As pombas voltam ao pôr do sol
Estão ao lado uma das outras sobre o muro do pátio,
E de lá bem distante ouço o pastor chamar
As cabras que estão pela colina, quando o dia termina.
Mas eu, não sei quando ele voltará para casa.
Passo os dias sozinha.
O meu senhor partiu para ir servir ao rei.
41
Mulheres na China imperial, Página

Ouço uma das pombas que se ajeita no ninho.


E no campo um faisão grita ainda.
- Daqui a pouco estará perto da companheira.
Há uma saudade que não me deixa descansar.
Os dias formaram meses e os meses formaram anos,
E não tenho mais lágrimas.
12. Escrito em 675 A. C. "Há alguma coisa sobre a qual se possa
dizer - "Olhe, isso é novo?", pois já existia em tempos passados,
em tempos que nos precederam."
Eu devia ter ido ao encontro de meu senhor quando ele precisasse
Devia galopar até lá o dia inteiro,
Mas isso é assunto que diz respeito ao Estado,
E eu, sendo mulher, devo ficar.
Vi-os abandonando o pátio do palácio,
De carruagem e com as vestes oficiais.
Devia ter ido por colinas e vaus
Pois sei que chegarão tarde demais.
Posso andar pelo jardim e colher
Lírios de madrepérola.
Tinha um plano que teria salvo o Estado.
- Mas minhas idéias são as de uma mulher.
Os Estadistas Mais Velhos sentam-se em coxins,
E disputam metade do dia: 42
Mais de cem planos fizeram e abandonaram.
Mulheres na China imperial, Página

E o meu era o único certo.

13. Dedicada a um jovem cavalheiro.


Não entre, senhor, por favor!
Não quebre os ramos de meu salgueiro!
Não que isso me entristeça muito;
Mas, pobre de mim! O que dirão meus pais?
E embora eu o ame como posso amar,
Não posso suportar o que seria tal coisa.
Não passe para o lado de cá do meu muro, senhor, por favor!
Não estrague minhas amoreiras!
Não que isso me entristeça muito;
Mas, ai de mim! O que dirão meus irmãos?
E embora eu o ame como posso amar,
Nem quero pensar em tal coisa.
Fique do lado de fora, senhor, por favor!
Não quebre os ramos do Sândalo!
Não que isso me entristeça muito;
Mas, ai de mim! O que dirá o mundo?
E embora eu o ame como posso amar,
Nem quero pensar em tal coisa.

14. Para um Homem.


Você me parece um jovem bem ingênuo,
43
Mulheres na China imperial, Página

Oferecendo em troca de seda seus tecidos;


Mas não é a seda o que você deseja:
Eu sou a seda que você tem em mente.
Com você atravessei o vau e enquanto
Caminhamos por mais de uma milha
Eu disse - Não quero delongas
Mas, é preciso que os amigos fixem a data de nosso casamento...
Oh, não se aflija com minhas palavras,
Mas volte com o outono.
E então passei a esperar e a ficar olhando
Para ver você passar pelo portão;
E algumas vezes quando observava em vão.
Minhas lágrimas corriam como grossas gotas de chuva;
Mas quando vi meu querido,
Ri e chorei alto de alegria.
Os videntes, disse você,
Todos declararam que éramos feitos um para o outro;
- "Tragam então uma carruagem," repliquei,
"E serei sua esposa para sempre."
As folhas da amoreira, ainda não arrebatadas
Pelo vento frio do outono, brilham ao sol.
Ó doce pomba, eu devia aconselhar,
Acautela-te contra o fruto que tenta teus olhos!
Ó linda donzela, ainda não esposada,
44
Mulheres na China imperial, Página

Não ouça, alegremente, as promessas do amado!


Um homem pode fazê-las de má fé e o tempo
Se encarregará de obscurecer seu crime;
Uma mulher que perdeu o nome
Está condenada a uma vergonha eterna.
A amoreira sobre o solo que a cerca
Agora espalha as folhas amarelas.
Três anos já se passaram,
Desde que eu partilhei sua pobreza;
E agora novamente, dia amargo!
Atravessei o vau de volta.
Meu coração ainda não mudou, mas você
Pronunciou palavras que agora provaram ter sido falsas;
E abandonou-me para lamentar
Um amor que não mais pode ser meu.
Durante três longos anos fui sua esposa,
E levei, na verdade, uma vida de tristeza;
Cedo me erguia da cama e ia tarde descansar,
Todos os dias se passaram assim para mim.
Honestamente cumpri a minha parte.
E você...você despedaçou meu coração.
A verdade meus irmãos não a saberão,
Do contrário me crivariam de sarcasmos.
Sofro em silencio e só lamento
45
Mulheres na China imperial, Página

Ter sido meu um tal destino infeliz.


Ah, quem dera que de mãos dadas enfrentássemos a velhice!
Em vez disso volto uma página amarga.
Oh, pelas margens do rio, há muito tempo;
Oh, pelas muito queridas praias pantanosas;
As horas da meninice, com meus cabelos
Soltos, como eu as esperava!
As Juras que trocamos pareciam tão sinceras,
Nunca pensei que teria que arrepender-me delas;
Nunca pensei que as promessas que trocamos
Por que falar mais sobre isso*
[* Há uma outra tradução que coloca esta última frase como:
“Algum dia não mais nos uniriam”. Não parece ser, porém,
original].

15. O Marido está fora.


Meu marido está fora, pois foi para o estrangeiro,
E quando voltará, oh! Meu coração não pode dizer.
As galinhas vão para os poleiros e os animais para as manjedouras
Quando se dirigem para casa após pastarem nas montanhas.
Mas, como posso eu, abandonada,
Deixar de pensar em meu homem que partiu?
Meu marido está fora, foi para o estrangeiro,
E passar-se-á muito tempo antes que reveja nossa lareira. 46
As galinhas vão para os poleiros e os animais para as manjedouras
Mulheres na China imperial, Página

Assim que os últimos raios de sal atravessam as folhagens da


floresta.
Só os Céus sabem as coisas que penso assim solitária
Os Céus alimentam e acalmam a sede de meu coração!
16. O Galo está cantando
Disse a mulher - O galo está cantando.
Falou o marido - O dia está começando.
- Levante-se, marido, e vá ficar à espreita
Veja como a estrela da manhã está alta no céu,
O sol daqui a pouco estará brilhando sobre todas as coisas
E há uma porção de patos e de gansos para caçar.
Atire quando estiverem voando e traga-os para casa, para mim,
E farei um prato como você gosta.
No futuro, quando
Você cabecear com sono,
Sem cuidados, sem receios,
Nós teremos envelhecido dignamente com os anos.
E quando estivermos com os amigos que apreciamos,
A cada um darei um pouco de peixe por você pescado,
Deixá-los-ei apreciarem as contas de aldeã, presas às correntes,
E outras antiguidades encantadoras.
Algumas mãos fúteis, mas adoráveis, hão de descobrir
47
Mulheres na China imperial, Página

O amor que elas representam.

Ó querido! Aquele rapaz astucioso


Não quer dar-me uma palavra!
Mas, senhor, apreciarei
Minha refeição, embora você se mostre absurdo!
Ó querido! Aquele rapaz astucioso
Não se sentará em minha mesa!
Mas, senhor, apreciarei
Meu descanso, embora você aqui não esteja!

17. No Portão Oriental.


No portão oriental, o solo é fértil
E a garança cresce nos declives.
No entanto, o terreno que cerca a casa de minha amada é áspero;
Ele me conserva à distância e zomba de minha esperança.
Onde crescem as castanheiras, perto do portão oriental,
Elas erguem-se em filas, é lá que fica tua casa.
Meu coração procura o teu, como o seu companheiro,
Mas, ah! tu nunca vens a meu encontro!

18. O Estudante de Colarinho Azul.


Você, estudante, de colarinho azul,
Há muito dilacera meu coração com uma ansiedade dolorosa.
48
Mulheres na China imperial, Página

Embora eu não corra para você,


Por que você foge de todo o mundo?
Ó você, com roupas debruadas de azul,
Os meus pensamentos para sempre correram para você!
Embora eu não o persiga,
Por que você não vem a meu encontro?
Como você é despreocupado, como se mostra alegre e volúvel
Lá perto da torre que encima a muralha!
Um dia, longe de sua presença
Durante três meses, considerei-file exilada.

19. No Pântano.
No pântano onde mais exuberante cresce
A relva rasteira, curvada com o peso do orvalho,
Ali um belo rapaz aproximou-se,
Sob cuja testa, alta e larga,
Brilhavam os olhos límpidos e vivos.
Foi por acaso que nos encontramos;
Fiquei satisfeita por alcançar o que desejara.
Onde a relva cresce rastejante no pântano, Toda coberta pelo
orvalho,
Ali encontrei o mais belo rapaz,
Sobre cujos olhos límpidos e vivos,
Erguia-se a testa, larga e alta. 49
Mulheres na China imperial, Página

O acaso fez-nos que nos encontrássemos, coisa rara,


E ambos nos sentimos felizes.
A LENDA DE CH'IENNIANG
(Um conto da dinastia Tang)

Ch'ienniang era filha de Chan Yi, um oficial em Hunan. Tinha um


primo chamado Wang Chou, rapaz inteligente e bonito. Tinham
sido criados juntos desde a mais tenra idade e como seu pai
gostasse muito do menino tinha dito que faria de Wang Chou seu
genro. Ambos ouviram essa promessa e, como a menina fosse a
única filha e estivessem sempre juntos, cada dia mais se
afeiçoavam um ao outro. Já agora eram dois jovens e
continuavam, entretanto, a se tratar como parentes íntimos.
Infelizmente o pai da jovem era o único que nada percebia. Um
dia, um jovem oficial veio pedir-lhe a mão da filha e ignorando,
ou esquecendo, sua promessa primitiva, ele consentiu fazendo
com que Ch'ienniang, desesperada entre o amor e a piedade filial,
quase morresse de dor, causando tal desgosto ao rapaz que ele
resolveu sair para outras terras de preferência a ficar ali e ver sua
amada tornar-se a esposa de um outro. Assim, inventou um
pretexto e informou o tio de que precisava ir para a capital. Como
o tio não conseguisse persuadi-lo a ficar, deu-lhe dinheiro e
presentes e preparou um banquete de despedida para ele. Wang
50
Chou, triste por ter de separar-se da amada, pensou na partida
Mulheres na China imperial, Página

durante toda a festa dizendo a si mesmo que era melhor partir do


que viver ali vendo seus, sonhos despedaçados.
Assim Wang Chou saiu num barco da tarde e antes de estar a
algumas milhas de distância já a noite caíra. Disse ao barqueiro
que amarrasse o barco na praia e descansasse a noite. Não
conseguiu dormir e, por volta da meia-noite, ouviu passos ligeiros
que se aproximavam. N’alguns minutos o som pareceu bem perto
do barco. Ergueu-se e perguntou - "Quem pode ser a esta hora da
noite ?" - "Sou eu, Ch'ienniang," foi a resposta. Surpreso e
encantado, levou-a para o barco e ali ela lhe contou que esperara
ser sua esposa, que o pai não tinha procedido bem para com ele e
que ela não suportava a separação. Receava, outrossim, que ele, só
e viajando por terras estranhas, pudesse ser tentado a suicidar-se.
Eis porque recaíra na censura da sociedade e na cólera dos pais e
viera seguí-lo para onde quer que fosse. Assim ambos ficaram
satisfeitos e continuaram a viagem juntos: para Szechuen.
Passaram-se cinco anos de felicidade e ela o presenteou com dois:
filhos. Porém não tinham notícias da família e diariamente ela
pensava nos pais. Era essa a única coisa que lhes empanava a
felicidade. Ele não sabia se os pais ainda viviam e quais as
condições e, certa noite, começou a contar a Wang Chou como se
sentia infeliz e, por ser a filha única, como se considerava culpada
de grande impiedade- filial por ter deixado os velhos pais dessa
maneira. - "Tem um coração cheio de amor filial e estou de
acordo com você," disse-lhe- o marido. "Já se passaram cinco
anos; certamente não nos guardam rancor. Voltemos para casa."
Ch'ienniang exultou ao ouvir isso e assim fizeram todos os
preparativos para voltar para casa com os dois filhos.
Quando o bote chegou à cidade natal, Wang Chou disse a
Ch'ienniang - "Não sei qual o estado de ânimo de seus pais. Será 51
melhor que eu vá para verificar." Seu coração palpitava ao
Mulheres na China imperial, Página

aproximar-se da casa do sogro. Ao vê-lo, Wang Chou ajoelhou-se


pedindo perdão; Ao ouvir isso, Chang Yi surpreendeu-se e disse -
"De quem esta falando? Ch'ienniang jaz inconsciente em sua cama
nesses últimos cinco anos, desde que você nos deixou. Ela jamais
abandonou o leito. - "Não estou mentindo," disse Wang Chou.
"Ela está passando bem e esperando por mim no barco".
Chan Yi não sabia o que pensar, por isso, mandou duas servas ver
Ch'ienniang. Elas a viram sentada, bem vestida e feliz e até disse às
servas para que falassem com seus pais o quanto os amava.
Amedrontadas, as duas servas correram para casa para dar essas
novas e Chang Yi ainda ficou mais intrigado. Nesse ínterim,
aquela que estava na cama ouviu as novidades e parece que sua
enfermidade desapareceu e os olhos brilharam. Levantou-se da
cama e vestiu-se, ajeitando-se diante do espelho. Sorrindo e sem
proferir uma palavra, encaminhou-se diretamente para o barco. A
que estava no barco, preparava-se para tomar o caminho de casa e
assim encontraram-se nas margens do rio. Quando as duas
chegaram perto uma da outra seus corpos confundiram-se num
só, com roupas em duplicatas, e surgiu a antiga Ch'ienniang tão
jovem e encantadora como nunca.
Os pais ficaram satisfeitíssimos, porém pediram aos servos que
guardassem segredo e nada dissessem aos vizinhos a respeito do
que acontecera, a fim de que não houvesse comentários. Eis
porque ninguém, exceto os parentes mais chegados da família
Chang, jamais soube desse estranho acontecimento.
Wang Chou e Ch'ienniang viveram como marido e mulher
durante mais de quarenta anos antes de morrerem. (Supõe-se que
esta história tenha ocorrido em torno de 690 d.C.) 52
Mulheres na China imperial, Página
CINDERELA CHINESA
(Do "Yuyang Tsatsu", século IX)

Comentário de Lin Yutang: Ao que se sabe, esta é a mais antiga


história da Cinderela escrita no mundo. Cinderela é um dos
contos folclóricos mais conhecidos em todos os países e dela tem
sido coligidas, estudadas e comparadas pelos entendidos centenas
de versões. Contudo, de acordo com o professor R. D. Jameson,
autoridade em assuntos do longínquo oriente e que,
bondosamente, correspondeu-se comigo sobre o caso: "A história
(a versão que aqui vai) é anterior à mais antiga versão ocidental de
Des Perriers em seu "Nouvelles Récréations et Jojeux Devis", Lião,
1558, cerca de uns 700 anos." A versão chinesa é tirada de
"Yuyang Tsatsu", um livro de mágicas e contos sobrenaturais e de
fundo histórico, outrossim, escrito por Tuan Ch'eng-shih que
morreu em 863 da era cristã. A história lhe foi contada por uma
velha serva da família que provinha de Yungchow (moderna
Nanning) em Kwangsei, e que descendia dos povos das cavernas
(aborígines) daquele distrito. Tuan era filho de um primeiro
ministro e era letrado e em "Yuyang Tsatsu", deu disso vários
exemplos: pesquisou certos contos populares indo encontrá-los
53
até nos clássicos budistas, pois no século IX, as histórias
Mulheres na China imperial, Página

sobrenaturais budistas eram bem conhecidas e populares na


China. Entretanto esse conto provou ser de tradição oral. Existem
versões siamesas bem conhecidas e Nanning fica bem perto da
Indochina. Respondendo à minha pergunta sobre se essa versão
podia ter vindo da Índia, o professor Jameson disse - "Tanto
quanto lhe posso afirmar, e até onde vão meus conhecimentos, a
mais velha versão impressa é chinesa. Sabemos muito pouco sobre
os processos da imaginação humana e são incontáveis os lugares
folclóricos do mapa asiático que ainda não foram completamente
explorados para justificar, parece-me, muita especulação." O que
nos fere nessa versão chinesa é que ela contém elementos de todas
as duas tradições, eslava e alemã, na primeira das quais um animal
amigo é o motivo principal e onde, na segunda, a perda do
sapatinho num baile é o fato mais importante. A madrasta cruel e
as filhas são comuns a ambas.

Certa vez, antes de Ch'in (222-206 a.C.) e Han havia um chefe das
cavernas da montanha a quem os nativos chamavam chefe Wu.
Ele se casou com duas mulheres uma das quais morreu deixando-
lhe uma menina chamada Yeh Hsien. Essa menina era muito
inteligente e habilidosa no bordado a ouro e o pai amava-a
ternamente, mas, quando ele morreu, viu-se maltratada pela
madrasta que seguidamente a forçava a cortar lenha e mandava-a
a lugares perigosos para apanhar água em poços profundos.
Um dia, Yeh Hsien pescou um peixe com mais de duas polegadas
de comprimento e que tinha as barbatanas vermelhas e os olhos
dourados. Trouxe-o para casa e o pôs numa vasilha com água.
Cada dia o peixe crescia mais e tanto cresceu que, finalmente, a
vasilha não lhe serviu mais e a menina o soltou numa lagoa que
54
havia por trás de sua casa. Yeh Hsien costumava alimentá-lo com
Mulheres na China imperial, Página

as sobras de sua comida. Quando ela chegava à lagoa, o peixe


vinha até a superfície e descansava a cabeça na margem, mas se
alguém se aproximasse não aparecia.
Esse hábito curioso foi notado pela madrasta que esperou o peixe
sem que este lhe aparecesse. Um dia, lançou mão de astúcia e disse
à enteada: - "Não está cansada de trabalhar? Quero dar-lhe uma
roupa nova." Em seguida fez Yeh Hsien tirar a roupa que vestia e
mandou-a a várias centenas de li para trazer água de um poço. A
velha, então, pôs o vestido de Yeh Hsien e estendeu uma faca
afiada na manga da blusa; dirigiu-se para a lagoa e chamou o
peixe. Quando o peixinho pôs a cabeça fora d’água, ela o matou.
Por essa ocasião, o animalzinho já media mais de dez pés de
comprimento e, depois de cozido, mostrou ter sabor mil vezes
melhor do que qualquer outro. E a madrasta enterrou seus ossos
num monturo.
No dia seguinte, Yeh Hsien voltou e ao aproximar-se da lagoa
verificou que o peixe desaparecera. Correu para chorar escondida
no meio do mato e nisso um homem de cabelo desgrenhado e
coberto de andrajos desceu dos céus e a consolou, dizendo: - “Não
chore. Sua mãe matou o peixe e enterrou os ossos num monturo.
Vá para casa, leve os ossos para seu quarto e os esconda. Tudo o
que você quiser peça que lhe será concedido". Yeh Hsien seguiu o
conselho e pouco tempo depois tinha uma porção de ouro, de
jóias e roupas de tecido tão caro que seriam capazes de deleitar o
coração de qualquer donzela.
Na noite de uma festa tradicional chinesa, Yeh Hsien recebeu
ordens de ficar em casa para tomar conta do pomar. Quando a
jovem solitária viu que a mãe já ia longe, meteu-se num vestido de
seda verde e seguiu-a até o local a festa. A irmã, que a reconhecera
virou-se para a mãe dizendo: - "Não acha aquela jovem 55
estranhamente parecida com minha irmã mais velha ?" A mãe
Mulheres na China imperial, Página

também teve a impressão de reconhecê-la. Quando Yeh Hsien


percebeu que a fitavam, correu, mas com tal pressa que perdeu
um dos sapatinhos, o qual foi cair nas mãos dos populares.
Quando a mãe voltou para casa encontrou a filha dormindo com
os braços ao redor de uma árvore; assim pôs de lado qualquer
pensamento que pudesse ter sido acerca da identidade da jovem
ricamente vestida. Ora, perto das cavernas, havia um reino insular
chamado T'o Huan. Por intermédio de forte exército governava
duas vezes doze ilhas e suas águas territoriais cobriam vários
milhares de li. O povo vendeu, portanto, o sapatinho para o Reino
T'o Huan, onde foi ter às mãos do rei. O rei fez as suas mulheres
experimentá-lo, mas o sapatinho era cerca de uma polegada
menor dos das que tinham os menores pés. Depois fez com que o
experimentassem todas as mulheres do reino sem que nenhuma
conseguisse calçá-lo.
O rei, então, suspeitou que o homem que o tinha levado o tivesse
obtido por meios mágicos e mandou aprisioná-lo e torturá-lo.
Mas o pobre infeliz nada pôde dizer sobre a procedência do
sapato. Finalmente, emissários e correios foram enviados pela
estrada para irem de casa em casa a fim de prenderem quem quer
que tivesse o outro sapatinho. O rei estava muito intrigado. A casa
foi encontrada, bem como Yeh Hsien. Fizeram-na calçar os
sapatinhos e eles couberam perfeitamente. Depois ela apareceu
com os sapatinhos e o vestido de seda verde tal como uma deusa.
Mandaram contar o caso ao rei e o rei levou Yeh Hsien para seu
palácio na ilha juntamente com os ossos do peixe.
Assim que Yeh Hsien foi levada, a mãe e a irmã foram mortas a
pedradas. Os populares apiedaram-se delas, sepultando-as num
buraco e erigindo um túmulo a que deu o nome de "Túmulo das 56
Arrependidas". Passaram a reverenciá-las como espíritos
Mulheres na China imperial, Página

casamenteiros e sempre que alguém pedia-lhes uma graça no


sentido de arranjar ou ser feliz em negócios de casamento tinha
certeza de que sua prece era atendida.
O rei voltou à sua ilha e fez de Yeh Hsien sua primeira esposa.
Mas durante o primeiro ano de seu casamento, ele pediu aos ossos
do peixe tantos jades e coisas preciosas que eles se recusaram a
conceder-lhe mais desejos. Por isso o rei pegou os ossos e
enterrou-os bem perto do mar, junto com uma centena de pérolas
e uma porção de ouro. Quando seus soldados se rebelaram contra
ele, foi ter ao lugar em que enterrara os ossos, mas a maré os
levara e nunca mais foram encontrados até hoje.

57
Mulheres na China imperial, Página
O JULGAMENTO DE DUAS MÃES
Do “Fengshu t’ung”, século II

Em Yingchuan dois irmãos moravam na mesma casa e suas


esposas estavam esperando filhos. A mais velha perdeu o filho
logo ao nascer, mas não deixou ninguém saber do fato. Quando a
mais nova deu a luz ao seu filho, a mais velha roubou-o a noite, e
assim questionaram sua posse durante três anos. Quando o caso
foi levado ao conhecimento de Huang Pa, Primeiro Ministro, ele
ordenou que a criança fosse colocada a dez passos de distância das
duas mães. A um sinal seu as duas mulheres correram para o
menino e pareciam dispostas despedaçá-lo de preferência a
abandoná-lo. A criança chorava desesperadamente e a mãe receou
feri-la, abandonando-a então. A mulher mais velha ficou muito
satisfeita ao passo que a mais nova parecia inconsolável. Nesse
momento Huang Pa declarou - "A criança é filha da mais jovem".
Processou a mais velha e ela foi, de fato declarada culpada.

58
Mulheres na China imperial, Página
UM CORPO DE MULHER
"Miscelâneas" ("Tsai Shih Min Shin")
Fragmento do Séc. II d.C.

Comentário de Lin Yutang: O fragmento seguinte é um dos mais


curiosos que sobreviveram através dos tempos. O nome do
documento, "Miscelâneas, Segredo H", parece indicar que ele veio
dos arquivos secretos do palácio de Han, pois a palavra shin, nesse
conjunto, não tem significação, a menos que seja usada como uma
palavra do ciclo chinês para etiquetar uma série, como a letra H
do alfabeto ocidental substituindo o número 8. Trata o
documento da rainha do imperador Huan (que reinou de 147 a
167 d.C.), da Dinastia Han, começando com um relato do exame
físico da rainha, quando ela era uma jovem de dezesseis anos, feito
por uma servidora do palácio. O restante trata das seis cerimônias
formais de noivado (primeiros presentes; indagação do nome da
jovem, sua idade e seus ancestrais; augúrios; segundos presentes
de cerimônia, que formalizam o noivado; fixação da data do
enlace; e finalmente o casamento), e termina com a "coroação" da
moça como imperatriz. O relato da servidora é interessante em
razão de seus detalhes realistas. As frases usadas não se encontram 59
na linguagem literária usual, pois pertenciam a linguagem falada
Mulheres na China imperial, Página

por ela. Dou aqui apenas o relato da mulher.

No Primeiro Ano de Chien ho (A.D. 147), na quarta lua, dia de


Tinghai, a Dama Wu, da Corte das Servidoras, dirigiu-se com a
ordem real do dia de Pingshu (o dia anterior) à casa do Camarista
Chao. Diz a ordem: "Ouvimos que o primeiro poema do Livro das
Canções celebrava um casamento real e que a escolha de uma boa
esposa real sempre foi a preocupação dos soberanos do passado. A
casta fama da desolada e jovem filha do falecido General Cheng
Shang chegou a nossos ouvidos. Vá o Camarista com a Dama
(Wu) à casa do falecido general, para examinar a conduta da
jovem e todos os seus detalhes íntimos e fazer um relato fiel.
Pretendemos escolhe-la para o palácio."
Levando a carta de autorização, eu (Dama Wu) e Chao fomos à
casa do falecido General Shang e encontramos a família a jantar.
Nossa chegada produziu grande sensação na casa. A moça,
chamada Nuying, saiu da sala e recolheu-se a seus aposentos.
Chao e eu seguimos as instruções da ordem e estudamos com
cuidado seu comportamento, ficando satisfeitos. Chao então saiu
e eu fui com Ying (a jovem) a seu quarto particular, onde, depois
de haver mandado sair todas as servas, fechei a porta. Nessa
ocasião, a luz do sol atravessou as folhas da janela e brilhou sobre
o rosto de Ying, que irradiou uma cintilação semelhante à da
nuvem matinal, ou da neve, fazendo com que eu instintivamente
evitasse olhar para ela de modo direto. Ondas de luz vinham de
seus olhos e suas sobrancelhas eram arqueadas. Tinha lábios
vermelhos e dentes brancos, orelhas compridas e nariz pontudo.
As bochechas eram cheias e o queixo bem conformado, tudo na
devida proporção. Tirei-lhe então da cabeça o longo e curvo 60
ornamentos e deixei caírem seus cabelos, negros como azeviche.
Mulheres na China imperial, Página

Segurei-os na palma da mão e eles alcançaram o chão, ainda com


sobra.
Feito isto, pedi-lhe que afrouxasse as roupas de baixo. Ying
enrubesceu totalmente e recusou. Então, eu lhe disse: "É uma
norma do palácio, que tem de ser executada. Deixe, por favor, que
uma pobre velha faça o exame. Solte o nó do cinto e eu terei muito
cuidado." Lágrimas vieram aos olhos de Ying, que os fechou,
desviando o rosto. Desatei-lhe, então, o nó do cinto e virei-a para
a luz. Senti um cheiro delicado. Sua pele era branca e fina, tão
macia que minha mão escorregava ao tocá-la. A barriga era
arredondada e os quadris quadrados. Era como queijo compacto e
jade burilado. Seus seios se empinavam e o umbigo tinha
profundidade bastante para que nele coubesse uma pérola de meia
polegada. O monte do abdômen subia suavemente. Abri-lhe as
coxas e vi que a vulva era de um vermelho brilhante, enquanto os
lábios menores se salientavam de leve. Certifiquei-me de que era
casta virgem. Resumindo, em relação ao corpo de Ying: seu
sangue nutria bem a pele, sua peje cobria bem os músculos, e seus
músculos ocultavam bem os ossos. Suas dimensões eram perfeitas.
De pé, media sete pés e uma polegada; a largura dos ombros era
de um pé e seis polegadas e os quadris tinham três polegadas
menos do que os ombros. Media dois pés e sete polegadas dos
ombros à ponta dos dedos das mãos, e os dedos tinham quatro
polegadas, das pontas à palma, parecendo dez varetas pontudas de
bambu. O comprimento de suas pernas, das coxas aos pés, era de
três pés e duas polegadas, e seus pés mediam oito polegadas. Os
tornozelos e arcos dos pés eram redondos e cheios e as solas
macias, com os dedos pequeninos. As meias justas e apertadas de
seda se prendiam como as das damas do palácio. Durante longo 61
tempo ela permaneceu sem falar. Insisti para que agradecesse a
Mulheres na China imperial, Página

Sua Majestade Imperial e ela, curvando-se, disse: "Vida longa ao


Imperador!" Sua voz era como uma brisa a mover-se num
bambuzal, muito agradável de ouvir. Não tinha hemorróidas, nem
sinais ruins, nem manchas ou feridas, nem defeitos na boca, no
nariz, nos sovacos, nas partes privadas ou nos pés.
Sou uma mulher estúpida e humilde e não sei exprimir com
propriedade o que vi ou senti. Faço este relatório secreto,
devidamente selado, sabendo que minha vida depende do que
aprouver a Vossa Imperial Majestade.

62
Mulheres na China imperial, Página
A MORTE DE UMA RAINHA
Hanshu, por Panku (d.C. 32-92)

Quando a senhora imperatriz Li ficou gravemente enferma, Sua


Majestade foi vê-la. Ela cobriu o rosto com o lençol da cama e
disse:
- Agradeço a Vossa Majestade a honra que me faz. Mas tenho
estado doente há muito tempo e definhei tanto que não estou em
condições de receber o meu senhor. Meu único desejo é que
Vossa Majestade cuide de meus irmãos e dos príncipes de meu
sangue, após a minha morte.
- Estás muito doente e não estou certo de que sejas capaz de
curar-te - respondeu o imperador. - Deixa-me ver-te e dize-me o
que queres que eu faça por teus irmãos. Não é coisa bem simples?
- Não ouso. Não é conveniente que eu veja Vossa Majestade no
estado em que me encontro, com o rosto tão devastado pela
doença.
- Por favor, deixa-me ver-te. Dar-te-ei mil moedas e darei a teus
irmãos elevados cargos - rogou o imperador.
-Vossa Majestade tem poder para isso. Mas, por favor, não insista 63
- replicou a Senhora Li.
Mulheres na China imperial, Página

O imperador continuou a rogar. A imperatriz, então, voltou o


rosto para o outro lado e não falou mais. Sua respiração era
ofegante a imperador, contrariado, saiu.
Depois da partida do imperador, disseram a ela suas irmãs:
- Por que não deixaste que ele te visse, ao menos por causa de teus
irmãos? Parecia que o odiavas!
- Fiz o que fiz exatamente por causa de meus irmãos - respondeu
a Senhora Li. - É preciso compreender os homens. Subi a esta
posição em razão de minha beleza, e ele ainda pensa em mim
porque tem na lembrança o aspecto com que me viu quando eu
era jovem e bela. Se eu o deixasse ver-me agora, ele ficaria tão
contrariado que, realmente, as oportunidades de meus irmãos
receberem seus favores seriam prejudicadas.
Quando a Senhora Li morreu, o imperador fez-lhe pomposo
funeral. Mais tarde, fez de seu irmão mais velho, Li Kuangli,
general e Duque de Haishi, e nomeou Li Yennien Vice-
Comandante dos Guardas.
O imperador não conseguia deixar de pensar nela. Havia um
mágico de Tsi que se gabava de poder evocar as almas dos que
haviam partido. Para isso, preparou-se um quarto com cortinas na
cama, velas arderam durante a noite e vinhos e acepipes foram
postos sobre a mesa. O imperador foi levado a sentar-se em outro
quarto, à distância. Viu uma bela mulher, parecida com a Senhora
Li, entrar, sentar-se no leito e andar pelo aposento. Mas não lhe
foi permitido aproximar-se. Ficou imensamente comovido e
escreveu um poema: “

64
És tu? És tu realmente?
Mulheres na China imperial, Página

Vieste. Mas, quando vieste,


teus movimentos eram tão lentos e majestosos!”

Aos músicos da corte foi dada ordem de musicá-lo.


SOBRE COMO SE DEVE AMAR UMA MULHER
Yumeng ying, de Zhang Zhao (1693)

Amar uma bela mulher com o sentimento de amar as flores


aumenta a agudeza da admiração; amar as flores com o
sentimento de amar as mulheres aumenta a ternura em protegê-
las.
As mulheres são flores que sabem falar e as flores são mulheres
que exalam perfume. Aprecia antes o falar que o perfume.
As moças de qualquer localidade, entre os catorze e os vinte e
cinco anos, têm um sotaque encantador, mas, quando lhes vemos
os rostos, há grande diferença entre as feias e as belas.
Para uma mulher, ter a expressão de uma flor, a voz de um
pássaro, a alma da lua, a postura do salgueiro, ossos de jade e pele
de neve, o encanto de um lago outonal e o coração de poesia -
seria realmente a perfeição.
Evita ver o murchar das flores, o declínio da lua e a morte de
mulheres jovens. Deve-se esperar ver as flores em pleno viço após
plantá-las, a lua cheia após dias a aguar­dá-la, e acabar de escrever
um livro após começa-a; deve-se cuidar de que uma bela mulher 65
seja feliz e alegre. Do contrário, todos os trabalhos são em vão.
Mulheres na China imperial, Página

O tinteiro de um intelectual deve ser primoroso, mas também o


deve ser o de um comerciante. Uma concubina para o prazer deve
ser bela, mas também o deve ser uma concubina para continuar a
linhagem familiar.
É bom olhar uma senhora toucar-se pela manhã, depois que
empoou o rosto.
Segundo um velho dito, as mulheres que sabem ler e escrever são
inclinadas a ter moral frouxa. Minha opinião é a de que isso não é
por culpa da educação, mas porque, quando uma mulher educada
tem moralidade frouxa, o pú­blico fica sabendo disso mais
depressa.
Quando um intelectual encontra outro, há normalmen­te um
sentimento de simpatia mútua, mas, quando uma beldade
encontra outra, falta sempre o sentimento de ternura para com a
beleza. Pudesse eu nascer uma bela mulher na vida vindoura, para
mudar tudo isso!
Proponho que se realize grande reunião num templo para fazer
sacrifícios a todas as beldades famosas e a todos os grandes poetas
do passado, mesclando-se com absoluta liberdade homens e
mulheres. Quando encontrar um monge de primeira classe, de
real cultura, irei fazê-lo.

66
Mulheres na China imperial, Página
A RESPEITO DO AMOR
Chou Chuan, aprox.1600

Muitas vezes se tem dito que "os grandes heróis da história


encontram seu rival nas mulheres". Com isso, quer­se dizer que o
amor de uma mulher é coisa perigosa e que tais episódios, de
certo modo, tiram de nossa idéia o ser "herói". Devemos afastar-
nos das armadilhas e tentações das mulheres. E assim por diante.
Peço licença para discordar. Acho que o que faz os heróis serem
heróis é terem amor em medida maior que os outros e serem
capazes de maior devotamento a alguma coisa, entregando-lhe
alma e coração. Só os que podem fazer grandes sacrifícios podem
amar verdadeiramente. Todo o universo vem do amor. Onde
impera o coração, o homem guia sua vida por ele. Não se confina
a qualquer coisa deter­minada, mas percorre todas as questões
humanas, a come­çar pelo amor da mulher. Amor e devotamento
podem ser muito bem aplicados a uma causa nacional, à amizade,
ao negócio que se tem em mãos. Por isso, o “Livro de canções”
(organizado por Confúcio) não desdenhou o amor entre homem e
mulher como pecado, e o “Livro das Mutações” falou do
casamento como preenchendo "o coração do universo". Podemos 67
fazer os grandes nomes da história desfilarem em nossa mente e
Mulheres na China imperial, Página

verificaremos que nenhum deles deixou de ter um grande amor.


Lembremos Shiang Yu. Que guerreiro e que homem! Quando se
viu cercado pelo inimigo, com o fim iminente, ergueu-se em sua
tenda, escreveu alguns versos e cantou-os com sua amada, e
choraram juntos antes de com a espada se matarem. E seu
adversário, também, que se tornou o primeiro imperador de Han,
possuía insuspeitada ternura. Sem dúvida, foi um grande
guerreiro, que ralhava com seus generais como com crianças.
Depois, tornou-se imperador, mas, antes de morrer, disse à sua
rainha: "Dança para mim, querida, as danças populares de nossa
terra natal, e cantarei para ti nossas canções populares". Assim
morreu um imperador.
Digo, pois, que é preciso ser homem de grande coração para ter
um grande caso de amor. Tenho notado que os que se afirmavam
como bons intelectuais e escritores amavam certas coisas com
exclusão de tudo o mais. E, quando surgia uma crise, tais pessoas
agiam com decisão e firmeza e mos­travam fortaleza de caráter
superior à dos outros. Quando o país os chamava, atendiam. Não
há mistério em torno disso. Tinham um grande coração e,
simplesmente, transferiam aquele grande amor de uma coisa para
alguma outra. Digo, pois, que o amor não se confina a qualquer
coisa determi­nada. Só os que fazem algum grande sacrifício
podem amar verdadeiramente.

Comentário de Lin Yutang: Estou certo de que o coração pode


abalar um trono. É a totalidade do amor que realiza grandes coisas
no universo. Lidamos aqui com uma força vital de que pouco
sabem os frios filósofos encerrados entre suas paredes cinzentas.
Lem­bremos Nelson e Napoleão. O maior imperador de toda a
história da China, cujo reinado todos admitem haver sido o 68
melhor, foi Tang Taitsung (que reinou de 627 a 649 de nossa era),
Mulheres na China imperial, Página

o ver­dadeiro fundador da grande dinastia Tang. Gosto do


episódio de seu amor por sua princezinha de doze anos de idade,
que tinha o apelido de "Bisão". Quando a menina morreu, ele
ficou incon­solável e perdeu o apetite por um mês inteiro.
Explicava aos servos que insistiam para que comesse: "Amo tanto
essa criança! Não posso resignar-me. Não sei por que". Não são
nossas fraquezas que fazem nossa força?
PENSAMENTOS PROFANOS DE UMA MONJA
Anônimo, anterior a 1700

Sou monja e tenho só dezesseis anos;


criança ainda, rasparam-me os cabelos.
Sutras budistas, eis o que meu pai adora;
sacerdotes de Buda é o que minha mãe ama.
Dia e noite, noite e dia
queimo incenso e oro, porque
fui doente e frágil desde pequenina.
Por isso me enviaram ao mosteiro.

Amitabha! Amitabha!
Não paro de rezar
Estou cansada do murmúrio dos tambores e do retinir dos sinos
Estou cansada do zumbido de orações na melopéia dos priores
Do lamentoso remoer de incompreensíveis sortilégios,
do clamor e do clangor de cânticos intermináveis,
69
Mulheres na China imperial, Página

do sussurro gutural de monocórdias salmodias.


Prajnaparamita, Mayura-sutra,
Saddharmapundarika ...
Como odeio tudo isso!

Quando digo Amitabha


meu amado me fita.
Quando canto o saparah
por ele o peito grita.
Quando entôo o tarata
o coração palpita.

Ah! vou dar um passeio! Sim, vou dar um passeio.


(Ela dirige-se à Sala dos Quinhentos Lohans, onde há imagens de
argila dos santos budistas, conhecidos por suas características
expressões faciais.)
Oh, os Lohans aqui estão!
Quanto imbecil que só amor implora!
Barbudos todos são
e cada qual com os olhos me devora!

Olhem esse que os joelhos prende e abraça;


é meu nome somente o que murmura!
Esse que tem a face na mão posta 70
só pensa em mim, a pobre criatura!
Mulheres na China imperial, Página

O outro, de doces olhos cismarentos


sonha, e nos sonhos sempre me procura!

E o Lohan de burel! Que deseja ele aqui,


com essa infernal, diabólica risada
com a imensa e trovejante gargalhada?
E de mim que ele ri! E ri de mim porque,
passada a mocidade e perdida a beleza
quem irá desposar uma velha engelhada?
Fanada a mocidade e crestada a beleza
quem irá desposar a anciã encarquilhada?

O que ali está manietando um dragão


é um cínico;
o outro, que vai a cavalgar um tigre,
escarnece-me;
e o bonito gigante, de ampla fronte
deplora-me,
pois que será de mim quando a beleza tiver fim?

Estas velas do altar,


não as terei no quarto nupcial.
Estes longos turíbulos,
não os terei na sala nupcial.
71
Mulheres na China imperial, Página

E a almofada de palha para a prece


travesseiro de bodas não parece.

Ó, Deus!
De onde vem, a queimar, sufocante, este ardor?
De onde vem este estranho, este infernal ardor?
Rasgarei o meu hábito de monja
e do budismo enterrarei os sutras;
afogarei os peixes de madeira
e fugirei dos monásticos putras.

Não mais tambores,


não mais sinos,
não mais cantos,
não mais gritos,
não mais infindos, torturantes ritos!

Descerei a montanha e acharei, para amar-me,


um bonito rapaz.
Se vier a espancar-me,
ralhar-me, maltratar-me,
não voltarei atrás!
Num Buda não me irei mumificar,
nem mita, prajna, para
72
Mulheres na China imperial, Página

ficarei toda a vida a ruminar!


A UMA BELA
Tao Yuanming (372-427 d.C)

Comentário de Lin Yutang: Este é o único poema de amor escrito


por Tao Yuanming, um dos maiores poetas da literatura chinesa.
Tao era um poeta da natureza, que Po Chuyi e Su Tungpo
admiravam extremadamente. É divertido verificar a existência de
puritanos chineses que disseram ser este poema a única “jaça num
jade branco”. A versão que fiz não é literal e requereu muita
condensação para alcançar o significado e a essência do poema.

Tu, bendita dos céus, única, sem rival,


tão sem cuidar perfeita em graça e formosura,
em gesto e pensamento etérea, virginal,
e em tudo toda feita de candura ...

Sentada, sem sequer me haveres percebido,


tangias, pensativa, as cordas, mal roçando
no chin o níveo braço e a seda do vestido, 73
e os lábios num sorriso iluminando.
Mulheres na China imperial, Página

Cessou a melodia e fitaste as distantes


sombras que o fim da tarde estendia no prado.
Não podias saber o que eu era, pois antes
nunca viras um homem encadeado.
Pudesse eu te mostrar este amor encoberto,
este ciúme de tudo o que possuis, a ardente
inveja ao mais humilde objeto que tens perto.
só porque é teu, e teu unicamente!

Ah! ser o cinto junto a teu corpo, e envolvê-lo;


ser brilho de carmim em tua boca, e beijar-te;
ser grinalda, e aspirar o odor de teu cabelo;
sandália, e andar contigo a toda parte!

Ser o leque que teus murmúrios escutasse,


a sombra a te seguir nas horas mais sozinhas,
a vela a cintilar sobre tua linda face,
a ave que retribui o amor com que a acarinhas! ...
Eu viveria então!

Sim, se eu fosse qualquer dessas coisas ... Mas, não!


74
Mulheres na China imperial, Página

Ser o leque esquecido, a rola abandonada,


a sombra em plena noite, a vela na alvorada
- é ter vivido em vão!
EM MEMÓRIA DE UMA MULHER
Shen Fu, 1763 - aprox. 1808

Comentário de Lin Yutang: Seis capítulos de uma vida flutuante é


um dos mais queridos opúsculos e recorda, na maior parte, a vida
caseira do autor com sua, esposa. Foi escrito com simplicidade e
sem exageros, é um dos mais ternos tributos prestados a uma
mulher. Selecionei aqui o principio e o fim.

1) A Noite nupcial
Foi a 16 de julho de 1775. No verão desse ano uma de minhas
primas ia casar-se e tornei a acompanhar minha mãe a sua casa
natal. Yun era da mesma idade que eu, ape­nas dez meses mais
velha, e como, desde a infância, nos havíamos acostumado a
chamar-nos "irmã mais velha" e "irmão mais moço", continuei a
chamá-la de "lrmã Su".
Naquela ocasião, todos os hóspedes da casa usavam roupas
brilhantes; somente Yun vestia trajes de cor suave e trazia um par
de sapatos novos. Notei que o bordado de seus sapatos era muito
fino, e soube que ela mesma o fizera assim, comecei a dar-me 75
conta de que ela era dotada também para outras coisas, além de
Mulheres na China imperial, Página

ler e escrever.
De talhe delgado, tinha ombros caídos e pescoço um tanto
comprido, magro, mas não a ponto de sobrar pele. Suas
sobrancelhas eram arqueadas e havia em seus olhos um bri­lho de
viva inteligência e suave requinte. O único defeito era serem seus
dois dentes da frente um pouco inclinados para diante, o que não
era sinal de bom augúrio. Todo o seu ser irradiava uma ternura
que me fascinava completamente.
Naquela noite, quando voltei a casa, vindo da residência dos meus
parentes no interior, aonde fora acompanhar minha prima que se
casara, já era quase meia-noite e, sentindo muita fome, pedi
alguma coisa para comer. Uma criada deu-me umas passas de
tâmaras, que achei excessivamente doces. Yun puxou-me em
segredo pela manga e levou-me a seu quarto. Vi que ela escondera
uma terrina de mingau quente de arroz e alguns pratos para
acompanhá-lo. Eu esta­va começando a pegar dos pauzinhos para
comer com o maior gosto quando o primo de Yun,
Yuheng, chamou:
- Irmã Su, venha depressa!
Yun fechou a porta com rapidez e disse: - Estou muito cansada e
vou deitar-me.
Yuheng empurrou a porta, abriu-a e, vendo a situação, disse a
Yun, com malicioso sorriso:
- Está bem! Há pouco, pedi mingau e você disse que não havia
mais. Na verdade você queria guardá-lo para seu futuro marido.
Yun ficou toda confusa e todos se riram dela, até mesmo as 76
criadas. De minha parte, saí correndo para meus apo­sentos, com
Mulheres na China imperial, Página

uma velha criada, cheio de excitação.


Desde o caso do mingau, sempre que depois eu voltava à sua casa,
ela me evitava; e eu sabia que ela estava apenas evitando tornar-se
motivo de ridículo.
A 22 de janeiro de 1780, vi-a em nossa noite nupcial e notei que
ela ainda tinha o mesmo talhe esbelto de antes. Ao ser erguido seu
véu de noiva, fitamo-nos e sorrimos. Depois de beber as taças
gêmeas do costume entre noivo e noiva, sentamo-nos juntos para
o jantar e, às escondidas, por baixo da mesa, segurei-lhe a mão,
que era quente e pequenina. Meu coração palpitava. Disse-lhe que
comesse e soube que ela, havia vários anos, vinha fazendo jejum.
Descobri que a época em que ela começara a jejuar coincidira com
a ocasião em que eu tivera varíola. Rindo, falei-lhe: ­Agora, que
meu rosto está limpo e macio, sem marcas de bexigas, querida
irmã, quer quebrar o seu Jejum? - Yun olhou-me sorrindo e
assentiu com a cabeça.
Isto foi a 22, na minha noite nupcia1. A 24, minha própria irmã ia
casar-se e, como o dia 23 fosse de luto nacional, não se permitindo
música, demos a minha irmã um jantar de despedida na noite de
22 e Yun estava à mesa. Eu fiquei jogando o jogo de adivinhar o
dedo com as damas de honor da noiva, na câmara nupcial e,
depois de perder o tempo todo, caí a dormir, bêbado como um
peixe. Quando acordei, na manhã seguinte, Yun ainda não
acabara de preparar-se para a manhã.
Naquele dia, ficamos ocupados entretendo hóspedes e, ao
anoitecer, tocou-se música. Depois da meia-noite, na manhã de
24, eu, como irmão da noiva, acompanhei minha irmã na partida
e regressei por volta das três horas. O quarto estava, então,
banhado de quietude, envolvido pelo tremeluzir silente das luzes 77
das velas. Entrei e vi a criada de Yun a tirar uma soneca por trás
Mulheres na China imperial, Página

da cama; Yun tirara a veste nupcial, mas ainda não havia ido
deitar-se. Seu belo pescoço branco se inclinava diante das velas
brilhantes; absorvia-se na leitura de um livro. Bati-lhe no ombro e
disse:
- Irmãzinha, por que ainda trabalha tanto? Você deve estar bem
cansada, com o dia cheio que tivemos.
Rapidamente Yun virou a cabeça e levantou-se, di­zendo:
- Eu ia deitar-me, quando abri a estante e vi este livro. Comecei a
ler e não tive vontade de deixá-lo. Há muito tempo eu ouvira falar
de O quarto do oeste, mas hoje o vejo pela primeira vez. É,
verdadeiramente, obra de um gê­nio; apenas, acho que o estilo é
um pouquinho picante demais.
- Só gênios podem escrever em estilo picante - respondi, sorrindo.
A criada perguntou se íamos deitar-nos, deixou-nos e fechou a
porta. Comecei por sentar-me ao lado dela e pilheriamos juntos
como velhos amigos após uma longa separação. Toquei-lhe no
peito, de brincadeira, e disse que sentia estar seu coração também
palpitando. Inclinei-me e sussurrei-lhe ao ouvido: "Por que está o
coração da irmã batendo assim?" Yun fitou-me com um sorriso e
nossas almas foram transportadas num nevoeiro de paixão.
Depois, deitamo-nos. O alvorecer chegou depressa demais.
Como noiva, Yun a princípio era muito quieta. Nunca se
mostrava tristonha ou contrariada e, quando lhe falavam,
simplesmente sorria. Era respeitosa para com os superiores e
bondosa para com os subordinados. Tudo quanto fazia, fazia-o
bem e era difícil achá-la em falta. Quando viu a cinzenta alvorada
a brilhar pela janela, quis levantar-se e vestir-se, como se tivesse
recebido ordem para isso.
78
- Por quê? - indaguei. - Não precisas ter receio de maledicências,
Mulheres na China imperial, Página

como no tempo em que me deste aquele mingau quente. - Riram-


se de mim a valer por causa da­quela terrina de mingau -
respondeu ela -, mas agora não receio o que os outros falem; temo
apenas que nossos pais possam pensar que sua nora é preguiçosa.
Embora eu quisesse que ela ficasse deitada mais tempo, não pude
deixar de admirar sua virtude. Assim, levantei-me também ao
mesmo tempo que ela. E assim, todos os dias, roçavam-se nossos
ombros e nos agarrávamos mutuamente como um objeto e sua
sombra. E o amor entre nos era algo que ultrapassava a linguagem
das palavras.

2) O velório
Sua doença foi piorando de dia para dia. Quis chamar um médico,
mas Yun me deteve, dizendo:
- Sabes que comecei a ficar doente em conseqüência da morte de
minha mãe depois da fuga de Kehchang; depois, a doença se
agravou em vista do que sofri por causa de Han e, finalmente,
tornou-se pior em razão do meu pesar neste caso recente. Além
disso, muitas vezes fui cautelosa demais, temendo cometer
enganos. Tentei fazer o melhor que podia para ser uma boa nora e
falhei. Por isso passei a ter tonteiras e palpitações do coração. A
doença, agora, aprofundou-se em mim e nenhum médico valerá
de nada; bem podes poupar essa despesa. Ao olhar para trás, para
os vinte e três anos de nossa vida de casados, sei que me amaste e
tens sido muito cheio de consideração por mim, apesar de todas
as minhas faltas. Sinto-me feliz por morrer com um marido e um
amigo compreensivo como tu, e não tenho pesares. Sim, por vezes
fui feliz como uma fada, tendo quentes roupas de algodão, e 79
refeições frugais, mas completas, e o lar feliz que foi o nosso.
Mulheres na China imperial, Página

Lembras como costumávamos divertir-nos entre fontes e


rochedos, como no Pavilhão de Tsanglang e no Shiaoshuanglou?
Mas quem somos nós para gozar a boa sorte de uma fada,
destinada apenas aos seres dignos que viveram uma vida virtuosa,
de encarnação em encarnação. Assim, ofendemos a Deus
tentando furtar uma felicidade que estava acima do que nos cabia;
daí as nossas várias aflições terrenas. Tudo isso provém de teu
amor demasiado grande, concedido a quem é malfadada e indigna
dessa ventura.
Após um instante, ela tornou a falar, entre soluços:
- Todos têm de morrer um dia. Meu único pesar e que tenhamos
de nos separar a meio caminho, para sempre, e eu não possa
continuar a ser tua esposa até o fim de teus dias e não possa ver
com os meus próprios olhos o casamento de Fengsen.
Depois de dizer isso, lágrimas lhe rolaram dos olhos grandes
como ervilhas. Tentei consolá-la, dizendo:
- Tens estado doente há oito anos e esta não é a primeira vez em
que te encontras em situação crítica. Por que de repente, dizes
palavras tão lancinantes?
- Tenho sonhado ultimamente - respondeu ela - que meus pais me
mandavam um barco para levar-me à sua casa. Sempre que fecho
os olhos, sinto meu corpo tão leve tão leve, como se estivesse
passeando entre nuvens. Parece que meu espírito já partiu e só
meu corpo permanece.
- Isto é resultado de tua extrema fraqueza. Se quiseres tomar
algum tônico e repousar devidamente estou certo de que ficarás
boa - repliquei.
80
Yun suspirou de novo e disse:
Mulheres na China imperial, Página

Se houvesse o menor raio de esperança, eu não te haveria dito


todas estas coisas. Mas agora a morte se aproxima e chegou a hora
de eu abrir minha alma. Sei que contrariaste teus pais só por
minha causa; assim, quando eu morrer, a atitude de teus pais
mudará completamente e tu te sentirás mais sossegado com
relação a eles. Sei que já estão muito velhos; quando eu morrer,
deves voltar para o lado deles o mais depressa possível. Se não
puderes levar meus netos mortais à minha terra natal para o
enterro podes deixar meu caixão aqui, por enquanto, e tratar de
sua remoção mais tarde. Espero que aches outra mulher que seja
ao mesmo tempo bonita e boa, para ficar em meu lugar, tratando
de nossos pais e cuidando de meus filhos: assim morrerei
contente.
Neste ponto, sucumbi de todo e caí a chorar como se houvessem
sido retalhadas minhas entranhas.
- Mesmo que me deixasses assim, em meio da vida - disse eu -,
nunca mais me casaria. Além disso, é difícil ser “água para quem
já viu os grandes mares, e é difícil ser nuvem para quem já viu as
gargantas do Yangtsé”.
Yun segurou-me a mão. Ia dizer mais alguma coisa, mas só pôde
murmurar, semi-audivelmente, repetidas vezes, as palavras:
"Outra encarnação!" De súbito, começou a sentir falta de fôlego,
seu queixo empinou-se, seus olhos se escancararam e, por mais
que eu a chamasse pelo nome não conseguiu emitir uma só
palavra. Dois riscos de lágrimas começaram a rolar-lhe pelo rosto.
Pouco depois, sua respiração ficou mais fraca, suas lágrimas se
secaram gradualmente e seu espírito partiu para sempre desta
vida. Isto foi no décimo terceiro dia da terceira lua de 1803.
81
Uma lâmpada solitária brilhava então no quarto, e dominou-me
Mulheres na China imperial, Página

uma sensação de extremo desamparo. Em meu coração abriu-se


uma chaga que nunca mais seria curada!
Meu amigo Hu Kengtang ajudou-me com dez taéis e, com isso e o
que pude obter vendendo o que tinha na casa, providenciei-lhe
um funeral condigno.
Ai! Yun era uma mulher com coração e talento de homem.
Depois que nos casamos e ela veio para minha casa, fui forçado a
vagar no exterior para ganhar a vida e ela ficou sem dinheiro
suficiente, mas nunca disse uma palavra de queixa. Quando eu
podia ficar em casa, nossa única ocupação era o debate de livros e
literatura. Morreu pobre e enferma, sem poder ver os próprios
filhos; a quem culpar, senão a mim mesmo?
Acredita-se, segundo o costume, que o espírito dos mortos volta à
casa, certo dia após o falecimento. Costuma-se arrumar o quarto
exatamente como o morto o deixou, pondo na cama suas velhas
roupas e seus velhos sapatos ao pé do leito, para que o espírito, ao
retomar, lhes dê um olhar de despedida. A isso chamamos, em
Soochow, "fechar os olhos do espírito". Também é hábito convidar
monges taoístas para recitarem invocações, chamando o espírito
para visitar o leito de morte, e depois mandando-o embora. A isso
se chama "acolher o espírito". Em Yangchow, era costume
pre­parar vinho e pratos e deixá-los no quarto do morto,
enquan­to toda a família fugia, a fim de "evitar o espírito". Muitas
vezes acontecia que coisas eram roubadas enquanto a casa ficava
assim abandonada. Naquele dia, meu senhorio, que estava
hospedado comigo, saiu da casa, e meus vizinhos insistiram para
que eu também deixasse as oferendas em casa e saísse. Respondi-
lhes de modo frio e indiferente, pois esperava ver de novo o
espírito de Yun. Havia um certo Chang Yumen, do mesmo 82
distrito, que me advertiu, dizendo:
Mulheres na China imperial, Página

- Pode-se muito bem ficar possesso do espírito do mal, quando


nossa mente se aferra ao que não é deste mundo. Eu não
aconselharia que o tentasse, pois acredito na existência das almas.
- E por isso mesmo que vou ficar - respondi. ­Porque acredito que
as almas existem.
- Encontrar o espírito de um morto em seu retorno ao lar exerce
má influência sobre os vivos - tornou Chang. - Ainda que o
espírito de tua mulher voltasse, ela está vivendo num mundo
diferente do nosso. Receio que não consigas ver-lhe a forma. Por
outro lado, porém, serás afetado por sua má influência.
Eu estava tão loucamente apaixonado por ela que isso não me
importava.
- Não dou a menor importância a isso - respondi. - Se estás tão
preocupado comigo, por que não ficas para fazer-me companhia?
- Ficarei do lado de fora da porta. Se vires alguma coisa estranha,
chama-me logo.
Entrei, então, com uma lâmpada na mão, e verifiquei que o quarto
estava justamente como o havia ela deixado; apenas, a minha
amada não estava ali, e, sem que eu o quisesse, lágrimas me
encheram os olhos. Temi então que, com os olhos úmidos, não
conseguisse ver-lhe as formas claramente. Segurei as lágrimas e
sentei-me na cama, a esperar que ela aparecesse, de olhos bem
abertos. Toquei devagarinho suas velhas roupas e aspirei o cheiro
de seu corpo que ainda permanecia nelas; isso me afetou tanto que
desmaiei. Então, pensei comigo mesmo: como podia dormir se
estava esperando que o espírito dela voltasse? Abri os olhos, olhei
em torno e vi as duas velas a arderem mortamente na mesa com
chamas pequeninas como ervilhas. Isso me deu um arrepio e 83
estremeci todo. Aí, esfreguei as mãos e a testa e olhei com
Mulheres na China imperial, Página

cuidado: vi as duas luzes das velas saltarem mais alto cada vez
mais alto, até passarem de um pé de altura, pondo o forro de
madeira empapelado em perigo de pegar fogo. O cintilar súbito
das luzes iluminou o quarto inteiro, permitindo-me ver em volta
claramente; de repente, elas ficaram pequenas e escureceu como
antes. Nessa hora eu me senti em estado de grande excitação e tive
vontade de chamar meu companheiro, quando pensei que seu
delicado espírito feminino bem podia assustar-se com a presença
de outro homem vivo. Baixinho, em tom calmo, chamei-lhe o
nome e dirigi-lhe uma oração, mas todo o quarto ficou sepultado
em silêncio e não pude ver coisa alguma. Então, as luzes das velas
voltaram a brilhar, mas não saltaram tão alto como antes. Saí e
contei tudo a Yumen. Ele achou que eu era muito corajoso. Não
sabia que eu estava, simplesmente, apaixonado.

84
Mulheres na China imperial, Página
EM MEMÓRIA DE UMA CRIANÇA
Shen Chunlieh, aprox. 1624

A 23 de dezembro de 1619, a filha mais velha de Shen Chunlieh,


Ah Chen, morreu de varíola incubada e foi sepultada nos
montículos do norte. Sua mãe, a Sra. Po, recitava por ela,
diariamente, sutras budistas, e insistiu em que ele escrevesse para
ela uma prece ritual, mas ele não teve coragem de pegar da pena
para fazê-lo. No vigésimo primeiro dia de sua morte, ele preparou
um sacrifício de alimentos cozidos e compôs uma peça para
chorar por aquela que foi sepultada no cenário de seus brinquedos
infantis. Diz assim:
Ai! Grande é a minha tristeza! Teu nome é Ah Chen, escrito com
os componentes Ping e Chen, porque nasceste no ano de
Pingchen (1616). Quando nasceste, não fiquei muito satisfeito,
pois era homem de mais de trinta anos e não vieste menino, mas
menina. Antes, porém, que completasses um ano, já eras adorável.
Quando alguém te ace­nava, abrias a boca e rias. Durante esse
período, Chouma (a ama) estava tomando conta de ti; levantava-
se dez vezes por noite e nunca tirava o cinto ao ir para a cama.
Quando estavas com fome, sugavas o leite de tua mãe e, quando 85
estavas bem satisfeita, ias para a cama com Chouma. E Chouma
Mulheres na China imperial, Página

sofreu de muitas incompreensões por tua causa. Saía de um lugar


úmido para um lugar seco e dava-se a grande trabalho para aliviar
um pequeno sofrimento. Se te prestasse muita atenção, tua mãe a
censurava; e, se te prestasse pouca atenção, choravas.
No ano passado, fui infeliz. Para prestar concurso, tive de afastar-
me de ti. Não passei nos exames e Chouma morreu. Quando
voltei, puxaste-me as mangas e pediste brinquedos. Contigo ao
meu lado, consolou-se minha tristeza. Saíram-te mais dentes e
diariamente sabias mais coisas. Chamavas "papá" e "mamã" e tua
pronúncia era perfeita. Muitas vezes batias à porta e perguntavas:
"Quem é?" Quando meu sobrinho vinha, tu o chamavas "Koko"
(irmão mais velho). Ele fingia tomar teus brinquedos; corrias e
protestavas. Quando teu tio materno chegou, puxaste-lhe a blusa.
Chamaste "mamã" e riste com voz argêntea. Quando teu tio
paterno veio, imitaste a dona-de-casa. Levantando o copo,
disseste: "Ching!" Rompemos em gargalhadas. Teu avô foi para o
interior e tu mesma havias ido para Soochow. Ficaste um ano sem
o ver; perguntamos se conhecias o vovô e disseste: "Sim. Cabeça
branca e barba branca". Nunca havias visto teu avô materno e,
quando te perguntamos: "De onde vem esta visita?", disseste: "De
Pequim!" Tua avó materna gostava muito de ti e te olhava como
se lhe pertencesses. Várias vezes levou-te a Soochow consigo.
Pedias brinquedos à meia-noite e querias frutas ao alvorecer. Teus
pais pediram que viesses para casa, mas recusaste, dizendo: "Vovó
ficaria pensando em mim".
Neste ano, em junho, tiveste furúnculos e eu fui a Soochow
especialmente para trazer-te para casa. Toquei os lugares
inflamados e teu rosto mostrou que doía. Mas não choraste,
achando que isso não era direito. Todas as vezes que apanhavas 86
uma fruta ou um doce, olhavas para o rosto dos outros e, se não
Mulheres na China imperial, Página

aprovássemos, não o levarias à boca. Às vezes mexias em coisas e


às vezes as estragavas, mas bastava que te olhassem para que tua
mão recuasse. Tua mamãe era muito severa contigo e muitas
vezes te censurava, pois temia que, quando crescesses, formasses
maus hábitos. Eu não concordava e dizia-lhe, em particular:
"Deixa a me­nina sossegada! Que pode ela saber, tão nova?"
Quando estavas em Soochow e mamãe e eu vínhamos para casa,
perguntamos-te se querias vir ou ficar. Teu coração pendia para
os dois lados e hesitaste em responder. Depois, vieste para casa;
ficamos contentíssimos, fazíamos-te carinhos e armávamos
caretas para que risses. Andavas com um cestinha de tâmaras, de
brinquedo, e sentavas-te num banquinho baixo para tomar
mingau. Repetias o "Grande Ensinamento" e fazias vênia a Buda.
Brincavas de adivinhações e saías a correr pela casa. Batias palmas
e achavas que eras um portento.
Em uma quinzena, porém, chegou o dia de tua morte.
Foi vontade do Céu ou teu destino? Nem mesmo as fadas o
sabem. Antes de tua morte, chamamos um médico. Diziam uns
que era um resfriado, outros que era varíola. Não podia ser
resfriado mas poderia ser varíola e ainda não sabemos de que
morreste. Eras viva no falar, mas então ficaste silenciosa.
Ofegavas, e olhavas para nós. Chorávamos à tua volta e choravas,
também.
Ai! Grande é a minha tristeza! De acordo com as convenções, por
que iria alguém chorar ante a morte de uma filha? Quanto à
minha idade, estou na força da Vida, embora pobre e só. Eras
muito inteligente e eu estava satisfeito contigo apesar de seres
menina. Mas quem sabia que os deuses seriam tão cruéis para
mim? Dez dias antes de ti, tua irmã mais nova, Ah Shun, morreu
87
da mesma enfermidade, em três dias apenas. Tu a conhecias bem
Mulheres na China imperial, Página

e, agora, que não tens companhia aí, deves ligar-te à tua irmã. Tu
já sabes caminhar, mas tua irmã mal pode ficar firme de pé. Deves
pegá-la pela mão, andando juntas, sendo muito boas uma para
com a outra, não brigando nunca. Se encontrares tua ama
(Chouma), poderás fazer-lhe perguntas, dizendo - "Papai tinha
uma mulher chamada Koo e uma mamãe chamada Min". Pede-
lhe que te leve a elas, pois certamente tomarão conta de ti. Podes
ficar lá por enquanto e estarás perto de Koo. A irmãzinha é
pequenina e deves guiá-la; és pequenina e Koo te protegerá. Mais
tarde, acharei um lugar adequado e enterrarei as três no mesmo
túmulo.
Estou pensando em ti agora e é penoso esquecer-te. Se puderes
ouvir minha oração, vem ver-me em meus sonhos. Se o destino
decretar que deves ainda viver uma vida terrena, retorna então ao
ventre de tua mãe. Estou oferecendo sacrifícios e orações budistas,
tenho sopa aqui à tua espera e queimo notas de dinheiro para que
os uses. Quando vires o Juiz do Mundo Inferior, Junta as mãos e
suplica-lhe: “Sou jovem, sou inocente, nasci numa família pobre e
sempre me contentei com escassas refeições. Nunca pus fora um
só grão de arroz e nunca fui caprichosa ou descuidada com meus
sapatos e roupas. Seja o que for que ordenes, sou apenas uma
criancinha. Se algum espírito mau vier ameaçar-me, protege-me!"
Dize isto, justamente assim, e, não chores nem faças muito
barulho. Lembra-te de que estas num estranho mundo inferior e
aí não é como em tua casa, com tua gente. Agora estou escrevendo
isto, mas ainda não sei como o irei ler. Quero apenas gritar: "Ah
Chen, teu pai está aqui!" Mas só posso chorar por ti e chamar teu
nome.

88
Mulheres na China imperial, Página
UMA CARTA DE AMOR

Comentário de Lin Yutang: Escrita por volta do ano 798 de nossa


era, é esta uma das cartas de amor mais estimadas na literatura
chinesa, tanto pelas circunstâncias em que foi escrita como pela
beleza e delicadeza da linguagem. Yuan Chen (779-931 d.C.)
encontrou a Srta. Tsui quando viajava para a capital. Descobriu
que a Srta. Tsui vivia com sua mãe viúva em aposentos anexos ao
templo em que ele se hospedou. Tiveram delirante caso amoroso.
Yuan Chen não era amante fiel, nem homem digno. Depois do
caso, partiu para a capital, casou-se com uma jovem rica e
desculpou-se dizendo que seus amigos se haviam congratulado
com ele por “ter-se reformado”. Foi esta a corta que a Srta. Tsui,
filha de um primeiro-ministro, lhe mandou.

Causou-me imenso prazer receber tua carta e comoveu­me tua


amorosa recordação. Fiquei agitada e feliz ao receber a caixa de
enfeites de cabelo e as cinco polegadas de car­mim; Aprecio esses
presentes, prova de consideração, mas de que me valem eles em
tua ausência? Trazem-te para mais perto de mim, mas apenas pela
falta que sinto de ti. Alegra-me saber que estás bem e que podes 89
continuar teus estudos na capital, e só me entristeço por mim
Mulheres na China imperial, Página

mesma, encerrada nesta cidadezinha. Mas é inútil ter queixas do


destino. Estou preparada para aceitar o que ele me reserve. Sinto
imensas saudades tuas, desde que partiste no outono, e tento
parecer feliz e alegre quando tenho companhias, mas quando
estou sozinha não posso conter as lágrimas. Tenho sonhado
conti­go muitas vezes e estávamos tão felizes, juntos, como nos
velhos tempos; então, acordo e abraço a colcha semi-aquecida,
com um sentimento de desolação. Sinto que estás tão afastado de
mim...
Um ano já fugiu desde que partiste. Não há palavras que
exprimam a minha gratidão pelo fato de não haveres esquecido
inteiramente tua antiga namorada, numa cidade alegre como
Chang-an. De minha parte, serei sempre fiel à minha promessa.
Fomos formalmente apresentados por minha mãe, mas, nas
circunstâncias, perdi o domínio de mim mesma e entreguei-me
completamente a ti. Bem sabes que, depois de nossa primeira
noite juntos, jurei que nunca amaria, senão a ti e que seríamos
mutuamente fiéis por toda a vida. Foi essa a nossa esperança, Foi
essa a promessa que trocamos. Se cumprires o prometido, tu o
está bem e serei a mulher mais feliz do mundo. Mas, se trocares o
antigo pelo novo e considerares nosso amor como um caso
fortuito, amar-te-ei ainda, baixando, porém, ao túmulo do pesar
eterno. Tudo depende de ti e nada mais tenho dizer.
Toma cuidado contigo, por favor. Estou-te enviando um anel de
jade, que usei quando criança, com a esperança de que ele sirva
como recordação de nosso amor: O Jade é símbolo de integridade
e o círculo do anel significa continuidade. Mando-te também um
cordão de fios de seda e um cilindro de bambu para chá,
manchado de lágrimas. São coisas simples, mas levam a esperança 90
de que nosso amor seja imaculado como o jade e continuo como
Mulheres na China imperial, Página

anel. As lágrimas no bambu (manchado) e o trançado dos fios


serão lembranças de meu amor e dos sentimentos entrecruzados
que sinto por ti. Meu coração está perto de ti, embora meu corpo
esteja bem distante. Se os pensamentos valessem, eu estaria todas
as horas ao teu lado. Esta carta leva consigo minha saudade
ardente e minha desesperada esperança de que nos encontremos
de novo. Toma cuidado contigo, alimenta-te bem e não te aflijas
por minha causa.

Comentário final de Lin Yutang: Mais tarde, passados anos, Yuan


Che voltou para uma visita. A Srta. Tsui já se havia casado e
recusou-se a vê-lo.

91
Mulheres na China imperial, Página
UMA CANÇÃO DE MORTE
De “O Sonho do quarto vermelho”
Cao Xueqin, aprox. 1717-1763

Comentário de Lin Yutang: O que se segue é a famosa Canção de


Taiyu enterrando flores do grande romance “O Sonho do quarto
vermelho”. A cena é muitas vezes representada por Mei Lanfang.
Movida por um pressentimento de sua própria morte em
consequência de tuberculose, juntamente com um
desentendimento temporário com seu amado, Paoyu. Taiyu
apanha uma enxada e um cesto para juntar e sepultar as flores
caídas, e como era costume, escreve um canto ritual de oração,
com referência a ela mesma.

Voai, sonhos, voai, fanados e vazios


de perfume, pois foi-se a primavera! Vede:
vagam, beijando a pedra, as flores do salgueiro
e as cortinas a aranha enlaça em sua rede.

92
Eis que à porta do quarto a jovem aparece;
Mulheres na China imperial, Página

de seu segredo nunca haverá confidente.


Sai, e as flores pisadas, lentamente
recolhe, a recitar sua votiva prece.

Vem do olmo e dos chorões um cheiro de sementes


onde haviam a pêra e o pêssego florido.
Quando em primaveris vestes novas tornarem
quem saberá para onde ela terá partido?

Com seu ninho, a andorinha, em amorosa faina,


estava o teto e a calha ainda há pouco a adornar.
Num ano voltará - e a filha desta casa
verá que já se foi, sem um sinal deixar.

Geada e cortante vento, em ciclo rodopiante,


vem fazer da estação o tumultuoso giro.
Sorriam ainda há pouco estas flores - e agora
quietamente se esvaem, sem soltar um suspiro.

Ela abafa um soluço e apanha as flores murchas;


detém-se longo tempo, alanceada de dor,
e as lágrimas que verte e a face lhe requeimam
a pungente canção do cuco irão compor.
93
Mulheres na China imperial, Página

Mas na tarde que cai, o cuco está silente


e à casa solitária ela torna. Vacila
a lâmpada, a atirar sombras pela parede.
A cama está gelada e a chuva tamborila.

Não perguntes por que se sente ela tristonha.


Amava a primavera e teve a alma ferida
ao vê-la assim chegar, inopinadamente,
e assim mesmo fugir, sem uma despedida.

Ontem à noite, ouviu um gemido angustioso:


eram das flores, soube, as almas relutantes
na aflição de partir, que todas se apressavam
a chorar num adeus seus últimos instantes.

Pudesse ela subir ao céu, num vôo alado,


e levá-las consigo, entregues a ela só!
Mas preferível é sepultá-las sem mácula
a deixar que algum pé as esmague no pó.

Pegando a pá, enterra o perfume das pétalas,


a imaginar que em breve a sua vez será.
Deixai-a totalmente a chorar nesse túmulo,
pois foge o tempo - e, então, quem a sepultara?
94
Mulheres na China imperial, Página

Adeus, flores sutis, feitas e pura essência.


Para ela, porém, quando a hora soar,
o admirador aqui não há de estar presente
e a admirada também não mais se há de importar!
UMA POETISA CHINESA
De “A Coleção do Jade lavado” (Suyuzi)
Li Yi-an, aprox. 1081 - depois de 1141

Comentário de Lin Yutang: Li Yi-an foi a maior poetisa da China.


Certa vez, seu marido pediu a um dos amigos que escolhesse os
versos melhores, de que mais gostasse, dentre certo número de
poemas que escrevera, mas colocou disfarçadamente entre eles
algumas produções de sua mulher. Para decepção sua, o amigo
selecionou apenas versos escritos por ela. A beleza de suas
palavras ao exprimir, neste poema, o extremo abandono da
separação, mal pode ser sugerida por uma tradução.

Tão soturno, tão escuro,


tão denso, tão dolente,
tão úmido e nevoento,
tudo tão morto!

95
Neste tempo, ora cálido, ora frio,
Mulheres na China imperial, Página

é mais difícil do que nunca esquecer!


Brando é o vinho e não podem poucas taças
dar calor que resista
aos ventos gélidos do ocaso.

Voam lá no alto os gansos. Reconheço-os:


velhos amigos meus,
não torneis a trazer velhas recordações!
Deixai a flor que cai jazer onde caiu.

Para que, para quem


eu me haveria de enfeitar?
Junto à janela fechada, solitária sentinela,
vejo que o céu azul tão negro se tornou!

E o chuvisco, na nogueira, murmura, insistentemente:


tique-tique, tique-tique!
Será um momento assim, sentido assim,
o que definiremos
com a palavra "triste"?

96
Mulheres na China imperial, Página
SOBRE O INFANTICÍDIO E O
SALVAMENTO
SALVAMENTO DE CRIANÇAS

Comentário de Lin Yutang: Su Tungpo (Su Dongpo) construiu


represas, trabalhou em obras de assistência aos famintos, instituiu
serviço médico nas prisões, e pessoalmente recolheu órfãos
vítimas da fome e alimentou-os. Foi também o primeiro a
protestar contra o costume de afogar as meninas ao nascerem.
Creio ser a seguinte uma de suas maiores cartas, insistindo por
um plano para acabar com esse tipo de homicídio. E foi
recompensado como ninguém o poderia ser melhor: ao partir de
Huangchow, os pais agradecidos se enfileiraram nas ruas da
aldeia, com lágrimas nos olhos, tendo nos braços as crianças cujas
vidas ele salvara por seus esforços.

A Chu Kangshou, magistrado principal de Ochow (1083)


Su Shih vos saúda:
Ontem, estava eu em Wuchang, havendo-me detido na casa de
Wang Tienlin. Contou-me ele uma história muito comovente e,
após ouvi-la, não consegui comer. Creio dever levar este caso à 97
vossa atenção, senão à de outros, e, assim, estou-vos enviando esta
Mulheres na China imperial, Página

carta por intermédio do Sr. Wang. Outras pessoas podem estar


demasiado atarefadas com seus próprios assuntos para poder-se
dar ao tempo e ao trabalho de cuidar de algo que está fora de sua
rotina oficial.
Disse-me Tienlin que, no distrito de Yochow e Ochow
(Wuchang), os lavradores pobres, em regra, criam só dois filhos e
uma filha, matando, ao nascerem, as crianças que passam desse
número. Desagrada-lhes especialmente criar filhas, sendo a
conseqüência haver mais homens do que mulheres, e muitos
solteiros na região. A criança é muitas vezes morta, ao nascer, por
afogamento em água fria, mas, a fim de fazer isso, os pais da
criança têm de fechar os olhos e virar o rosto enquanto a prendem
sob a água até que morra após chorar breves instantes. Há na
aldeia de Shenshien um homem chamado Shih Kuei que, certa
vez, matou gêmeos. No verão passado, sua esposa deu luz a
quádruplos. Foi um caso horrível: mãe e crianças morreram. Tal é
o castigo de Deus, e, contudo, mostra-se a gente por demais
ignorante para mudar de costumes.
Quando Tienlin ouve falar que em sua vizinhança há mulheres
grávidas, indigentes, habitualmente vai ter com a família e, dando
aos pais alimentos e roupa, consegue salvar muitas vidas infantis.
Depois que uma criança é assim salva e conta alguns dias de
idade, os pais recusam separar-se dela, ainda quando alguma
família a deseje adotar. Isto mostra que o amor paterno pelos
filhos está sempre presente, sendo apenas enceguecido pelo
costume.
Ouvi dizer que há em vosso distrito um certo Chin Kuangheng
que acaba de ser aprovado em concurso e é juiz em Anchow.
Quando sua mãe o estava esperando, o irmão dela sonhou que 98
uma criancinha lhe puxava as roupas, como se lhe quisesse dizer
Mulheres na China imperial, Página

alguma coisa. Teve o mesmo sonho na noite seguinte e a criança


parecia insistente. Sabendo que sua irmã ia ter uma criança e
talvez não quisesse mais filhos, apressou-se em ir à casa dela, e
chegou justamente à hora em que estava sendo preparada a bacia
com água. Desse modo, Chin foi salvo e cresceu. O povo de vosso
distrito conhece bem esta história.
De acordo com a lei, quem mata maldosamente seu descendente
está sujeito à pena de dois anos de trabalhos forçados, e com base
nesta lei, as autoridades podem agir. Espero que dê as instruções
para as autoridades das diversas cidades para reunirem os anciãos
de cada aldeia, informando-os a respeito dessa lei. Devem ficar
adequadamente impressionados com a idéia do castigo, dizendo-
lhes que a lei vai ser aplicada; e, ao voltar para casa, devem dizê-lo
aos demais habitantes da aldeia. Podeis mandar que boletins
oficiais sejam afixados nas paredes para esse fim, e oferecer
recompen­sas às pessoas que denunciem tais casos vindo o
dinheiro dos pais que cometam tal crime e de seus vizinhos na
mesma unidade “paochia”. Se se tratar de lavrador meeiro, o dono
das terras também será responsabilizado. Quando uma mulher
espera um filho, seus vizinhos e o senhorio devem saber disso.
Portanto, quando se mata uma criança, seus vizinhos estão em
condições de comunicar o fato e, se não o fizerem é lícito puni-
los. Se punirdes uns poucos casos criminosos como advertência
aos demais, pode ser detido esse horrível costume.
Além disso, podeis dar instruções às autoridades locais para
reunirem as famílias ricas e fazer-lhes veemente apelo por
socorros. Se os pais forem realmente pobres a ponto de não poder
sustentar os fi1hos, poderão ser ajudados com dinheiro e 99
presentes. O ser humano não é destituído de sentimentos; não é
Mulheres na China imperial, Página

feito de pau, ou de pedra, e sentirá alegria em salvar o próprio


filho. Se um pai for impedido de matar o filho nos primeiros dias,
depois disso não o fará ainda que lhe peçais que o mate. Imaginais
quantas vidas tereis salvo, daqui por diante, se assim agirdes? O
budismo prega contra a supressão de vidas e considera gravíssimo
crime matar animais que amamentam os filhotes e se reproduzem
por união. Quão mais sério não é matar um pequenino ser
humano! Muitas vezes nos referimos a uma criança enferma e
sofredora como a um "pobre inocente"; o infanticídio é, em
verdade, a matança dos inocentes. Determina a lei que só quem
cometa assassínio por demência senil está isento da pena de
morte. E não deveremos encarar como crime muito mais odioso
matar uma criança inocente? Se puderdes salvar essas vidas
infantis, vosso mérito no céu será dez vezes maior do que por
perdoar os que atentam contra adultos...
Quando eu servia em Michow, houve um ano de fome e muitos
pais foram forçados a abandonar os filhos. Consegui coletar
recursos e obter vários milhares de fardos de arroz para dar
alimentação aos órfãos. Cada família que se encarregasse de uma
criança recebia mais de seis almudes de arroz por mês. Após um
ano, os pais que adotaram esses órfãos amavam-nos como se
fossem seus próprios filhos e os órfãos haviam encontrado lar.
Pude salvar, assim, várias dúzias de crianças. É coisa muito
simples e fácil de fazer. Ousei trazer este assunto à vossa atenção
porque sei estar falando a um verdadeiro amigo e, por esse
intrometimento, rogo vosso perdão.

Comentário final de Lin Yutang: Por sua própria parte, Su


100
Tungpo criou uma Associação de Salvação das Crianças,
Mulheres na China imperial, Página

entregando a presidência a seu vizinho Koo, letrado muito


honesto e caridoso. A associação obteve dinheiro dos ricos,
pedindo-lhes que contribuíssem com [o equivalente hoje a] dez
dólares, ou mais, por ano; com isso compravam-se arroz, panos
para roupas e algodão para cobertores. Koo empregava o dinheiro
e um monge do Templo de Ankuo foi feito tesoureiro,
encarregando-se da escrituração e contabilidade. Os associados
percorriam a região para investigar casos de mulheres grávidas
necessitadas, dando-lhes dinheiro, alimentos e roupas de presente
se prometessem criar os filhos. Su Tungpo disse que seria imenso
prazer poderem, assim, salvar umas cem crianças por ano; ele
mesmo contribuía com dez dólares anualmente. Agia segundo a
melhor tradição do budismo. Sempre me pareceu que, onde quer
que viva o espírito do homem, também revive a religião. Onde
quer que o espírito do homem morra, a religião também decai.

101
Mulheres na China imperial, Página
A ORIGEM DO ENFAIXAMENTO DOS PÉS
"Nota sobre os Sapatos e Meias das Mulheres"
Yu Huai (1617 - depois de 1697)

Comentário de Lin Yutang: Yu Huai é perito em pedras para


fabricação de tintas e em mulheres, sendo mais conhecido por seu
livro sobre as coristas de teatro de Yangchow. Situa a origem do
enfaixamento dos pés nos meados do décimo século, ao passo que
um comentarista, Fei Shihuang, escreveu um pós-escrito para
contestá-lo, acreditando ser essa origem muito anterior. O certo é
que o enfaixamento de pés se tornou popular na última parte do
século XI. Para facilitar o acompanhamento do assunto, convém
notar que as características distintivas dos pés enfaixados com
"sapatos arqueados" são: 1) em lugar de meias simples, longas
faixas de seda, talvez de sete ou oito pés de comprimento, eram
enroladas em torno dos pés, usando-se por cima delas uma curta
cobertura bordada para os tornozelos; 2) tais pés eram
considerados muito pequeninos, sendo "três polegadas" o ideal; 3)
a forma curva e pontuda dos pés chamava-se “o crescente” e os
sapatos tinham o nome de “sapatos arqueados”. Saltos altos
somente, ou bicos pontudos e virados para cima não indicam, 102
necessariamente, enfaixamento dos pés. “Passos de lótus" e
Mulheres na China imperial, Página

“brotos de bambu” (redondos, curtos e pontudos no bico) são


expressões comuns e creio que nem sempre indicam a existência
de enfaixamento dos pés. Esse estilo, provavelmente, originou-se
na corte licenciosa de certos soberanos como o famigerado
"Soberano Idiota Oriental" de Tsi do Sul (aprox. 500 d.C.) e o
bom-poeta-mas-mau-governante Nantang Houtsu (que reinou
entre 937-978 d.C.), tornando-se mais tarde costume geral. Em
vista da exuberância da poesia Tang a respeito da beleza das
mulheres, sua falta de referências específicas a esse curioso
costume poderia levar a pensar que o enfaixamento de pés não
fosse ainda o hábito geral no período Tang (séculos VII a IX). Yu
Huai provavelmente está certo.

Não havia diferença entre os pés das mulheres e os dos homens


nos tempos antigos. O Chouli (obra clássica sobre o sistema
governamental Chou) menciona o ofício do "sapateiro", que tinha
o dever de cuidar dos sapatos de reis e rainhas. Cita tamancos
vermelhos, tamancos pretos, trançados de seda, vermelha e
amarela, curvas negras, sapatos brancos, sapatos de linho para uso
cerimonioso, não cerimonioso e caseiro, destinados a homens e
damas de títulos. Isto mostra que os sapatos de homens e
mulheres eram da mesma forma. Em gerações posteriores, os
pequenos e delgados sapatos arqueados das mulheres foram
muito apreciados por seu diminuto tamanho.
De acordo com pesquisas que fiz, o enfaixamento dos pés
começou com Li Houtsu, de Nantang (que reinou de 937 a 978 da
era cristã). Tinha ele uma camareira real chamada Yaoniang (Srta.
Yao), notável por sua esbelta beleza e suas danças. O soberano
mandou fazer um lótus de ouro, de seis pés de altura, adornado de
103
pedras preciosas, festões e borlas de seda. Esse lótus de ouro,
Mulheres na China imperial, Página

multicolor ficava no centro. Mandou a Srta. Yao atar os pés com


seda e acocorar-se em cima do lótus, para sugerir a forma de uma
lua crescente. Ela dançou no topo do lótus de meias brancas, e fez
piruetas sugerindo as nuvens (com as mangas compridas). Muitas
pessoas, então, começaram imitar seu estilo. Foi esse o primeiro
começo do enfaixamento de pés.
Esse costume não teve início antes da dinastia Tang (que começou
em 617 da era cristã). Por isso, entre os poemas escritos por tantos
poetas, cantando a beleza das mulheres, descrevendo
incessantemente com grande interesse seu aspecto e gestos, a
riqueza de seus adornos no cabelo e cosméticos faciais, seus
mantos e saias, a delicadeza de seus cabelos, olhos, lábios, dentes,
cintura, mãos e pulsos, nem uma só palavra foi dita acerca de seus
"pés pequeninos". No Kuyofu (Canções antigas) diz-se: "Novo
bordado de seda cobria-lhe o alvo tornozelo e o arco de seus pés
era como uma. linda fonte" (período Han). Tsao Tsechien (192-
232) tem uma frase assim: "Ela usava sapatos bordados para
lon­gas caminhadas". Li Po (701-762) diz em um poema: "Um par
de tamancos denteados de ouro; dois pés brancos; como geada".
Han Chihkuang escreve: "Seis polegadas de fina pele arredondada
resplendem à luz". Tu Muchih (803- 852, grande galanteador e
poeta) escreve: "Mede um pé menos quatro décimos de polegada".
O documento "Miscelâneas, Segredo de Han”, do segundo século
da era atual, diz (descrevendo uma jovem escolhida para ser
rainha): "Seus pés mediam oito polegadas e seus tornozelos e
arcada eram belos e cheios". Tais menções de "seis polegadas" e
"oito polegadas" de pés brancos, macios e cheios mostram que os
pés das damas antes do período Tang não eram curvados para se
assemelharem à lua crescente.
O caso do Soberano Idiota Oriental de Tsi (aprox. 500) pode ser 104
lembrado. Fez ele com que sua concubina real favorita a Srta. Pan,
Mulheres na China imperial, Página

pisasse em reproduções de flores de lótus feitas de ouro e


arrumadas no soalho e disse: "Uma flor de lótus de ouro nasce de
cada passo seu". Isto, porém, refere-se às reproduções de flores de
lótus que ela pisou, mas não quer dizer que fossem lótus os seus
próprios pés. Tsui Pu refere em seu livro sobre a origem das
Coisas, o Kuchinchu, que havia sapatos com cabeças de fênix,
com duplas tai (solas?), mas não há indicação de que só se
referisse a sapatos de mulheres.
Na dinastia Sung, poucas mulheres enfaixavam os pés antes do
reinado de Yuanfeng (1078-1085). Mas, nos quase quatrocentos
anos que se seguiram, a partir da dinastia mongol (1277-1367) até
o presente, as modas e exageros antinaturais desenvolveram-se
firmemente e caíram em excessos.
Todas as mulheres antigas usavam meias. No dia em que a Rainha
Yang Kueifei morreu (aprox. 756 d.C.) em Mahuai, uma aldeã
recolheu o pé de um par de suas meias bordadas. Exibiu-o ao
público, cobrando cem moedas de quem o tocasse. Li Po diz em
um de seus poemas: "Seus pés são brancos como a geada; ela não
usa meias de canos pretos". Um dos nomes dados as meias era
chiku (estojo do tornozelo). Quando o Imperador Kaotsung (que
reinou de 1127 - 1162 da era atual) soube da morte de seu
primeiro-ministro, Tsin Kuei, disse: "Agora, não preciso esconder
um pu­nhal em minha chiku". Assim, as meias, ou chiku, eram
usa­das tanto por homens quanto por mulheres. A diferença é que
as meias, nos tempos antigos, eram pregadas solas, o que não se
dá hoje. Nos tempos antigos, podia-se caminhar de meias sem
sapatos. Hoje, não podemos fazer isso... Tsao Tsechien diz:
"Move-se ela com passos leves. Suas meias de seda ficam 105
empoeiradas". Li Houtsu escreve: "Ela desce os degraus
Mulheres na China imperial, Página

perfumados, de meias, trazendo na mão os sapatos de fios de


ouro". Tal, na verdade, é a diferença entre os sapatos e meias
antigos e os dos tempos modernos.
De saltos altos não encontro menção nos livros. Parecem ser
invenção moderna. Algumas damas de Wu faziam saltos de
sândalo, cobertos com fina seda rígida. Umas tinham saltos
escavados, trazendo dentro, escondido um saquinho com
perfume, para que deixassem um rastro aromático ao caminhar.
Isto é uma extravagância monstruosa. Menciono tal coisa porque
os poemas das dinastias Sung e mongol não fazem referência a
isso, de modo que os poetas que queiram escrever a respeito de
beldades antigas sejam cautelosos neste ponto.

106
Mulheres na China imperial, Página
MERCADO DE CONCUBINAS
De “Memórias Sonhadas do Lago Ocidental”
Chang Tai 1597-1689

Em Yangchow, havia centenas de pessoas ganhando a vida com


atividades ligadas aos "cavalos magros" (alcunha do mercado de
concubinas). Nunca deveria alguém deixar que se soubesse que
estava à procura de uma concubina. Uma vez que isso
transpirasse, os agentes profissionais e intermediários, homens e
mulheres, enxameariam como moscas à volta de sua casa ou
estalagem, não havendo meio de mantê-los afastados. Na manhã
seguinte, o homem encontraria muitos deles à sua espera, e o
proxeneta que che­gasse primeiro o carregaria, enquanto os
demais seguiriam atrás, à espera de sua oportunidade.
Ao chegar à casa do "cavalo magro", o cliente seria servido de chá
logo que se sentasse. Imediatamente a agenciadora viria com uma
moça e ordenaria: "Kuniang (senhorita), cumprimente!" A moça
fazia uma vênia. A seguir, era dito: "Kuniang, caminhe!" Ela
caminhava. ((Kuniang, volte­se!" Ela se voltava, ficando de frente
para a luz e seu rosto era mostrado. "Desculpe, podemos ver sua
mão?" A mulher enrolava-lhe a manga e expunha o braço inteiro. 107
Sua pele era mostrada. "Kuniang, olhe para o cavalheiro." Ela
Mulheres na China imperial, Página

olhava, com o canto dos olhos. Seus olhos eram mostrados. "Qual
é a idade da kuniang?" Ela respondia. Sua voz era mostrada.
"Caminhe mais um pouco, por favor." Desta vez, a mulher erguia-
lhe as saias. Seus pés eram mostrados. Há um segredo para julgar
os pés das mulheres. Quando se ouve o roçagar de suas saias ao
começar ela a andar, pode-se imaginar que tem pés grandes, mas,
se usar as saias relativamente altas e mostrar os pés ao dar um
passo para a frente, já se sabe que tem um par de pés pequenos, de
que se orgulha. "Kuniang, pode retirar-se."
Logo que a moça saía, outra vinha e a mesma coisa se repetia.
Costumeiramente havia cinco ou seis moças numa casa. Se o
cavalheiro decidisse ficar com determinada jovem, colocar-lhe-ia
no cabelo um alfinete de ouro ou outro ornamento; isto se
chamava “tsatai”. Se nenhuma lhe parecesse satisfatória, uma
gorjeta de algumas centenas de moedas era dada à agenciadora ou
às criadas da casa e outra casa lhe era mostrada. Quando uma
agenciadora completava o giro das casas com que operava, outras
agenciadoras vinham. Isto continuava por um, dois, talvez quatro
ou cinco dias. Era uma coisa sem fim e os agentes nunca se
cansavam. Mas, depois que alguém via cinqüenta ou sessenta
moças, todas eram mais ou menos parecidas, de cara pintada e
vestido vermelho. É como escrever letras; quando se fez o mesmo
sinal cem ou mil vezes, não é mais possível distingui-lo. O cliente
não sabe o que decidir, ou qual preferir, e acaba por escolher
qualquer uma delas.
Depois de feita a escolha, confirmada pelo tsatai, a dona da casa
aparecia com uma folha de papel vermelho e um pincel de
escrever. No papel estavam escritos os itens: sedas, flores de ouro,
presentes em dinheiro e peças de pano. A dona mergulhava o 108
pincel em tinta e deixava-o pronto para que o freguês preenchesse
Mulheres na China imperial, Página

o total de peças e do presente em dinheiro que estava disposto a


dar para ter a moça. Se isso fosse satisfatório, o negócio estava
concluído e o cliente despedia-se.
Antes que chegasse à sua própria casa, já ali se achavam
tamborileiros, e músicos, carroçados de carneiro e vinhos tintos e
verdes. Num instante, papéis cerimoniais, frutas e pastéis também
chegavam, e os remetentes voltavam acompanhados pelos
músicos. Antes de terem andado um quarto de milha, retornavam
com a banda, cadeirinhas de toldo floridas, lanternas florais,
tachas, archotes de cabo, carregadores de cadeirinhas, damas de
honor, velas, mais frutas, e assados. O cozinheiro chegava com
uma carroçada de verduras e carnes, e doces, seguido de toldos,
toalhas de mesa, almofadas para cadeiras, talheres de mesa,
estrelas de longevidade, cortinados de cama e instrumentos de
corda. Sem aviso prévio nem mesmo sem pedido de aprovação, a
florida cadeira de toldo, e outra cadeirinha destinada a
acompanhar a noiva, saíam para receber a nubente, com uma
escolta de lanternas nupciais e achortes de cabo. Num átimo, a
noiva chegava. Subia e realizava a cerimônia do enlace (curvando-
se perante o noivo e os hóspedes), sendo então levada a ocupar
seu lugar à mesa de jantar, já posta. Música e cantos começavam e
havia muita bulha em toda a casa. Tudo era eficiente e rápido.
Antes do meio-dia, a agente pedia sua comissão, dizia adeus e
corria em busca de outros clientes.

109
Mulheres na China imperial, Página
DO ENCANTAMENTO AS MULHERES
De “A arte de viver” [Shin Ching Ouchi]
Li Liweng, 1611-1679

Há um dito antigo segundo o qual "a força da beleza exótica


fascina". Beleza exótica significa encanto, embora seja comumente
mal compreendida como referindo-se apenas a "bom aspecto".
Deve-se entender que o bom aspecto nunca nos pode emocionar,
a menos que tenha encanto; só então a beleza se torna fascinante e
exótica. Os que pensam que todas as beldades podem fascinar as
pessoas precisam somente parar para pensar na razão por que
todas as bonecas de seda e pinturas de mulheres nunca
conseguem emocionar ninguém, embora provavelmente seus
rostos sejam dez vezes mais belos que os das mulheres vivas. O
encanto numa pessoa é como a chama num fogo, a luz numa
lâmpada, o brilho nas jóias. É algo invisível e, contudo,
aparentemente palpável, algo que pode ser visto sem, entretanto,
ter forma ou corpo definido. Eis por que o encanto é sempre
misterioso, eis por que a mulher possuidora de encanto é
considerada exótica, pois ser exótica é ser excitante e
perturbadora, é ser aquilo que não se pode compreender de todo. 110
Há mulheres que fazem as pessoas apaixonarem-se por elas à
Mulheres na China imperial, Página

primeira vista, que após vistas não mais são esquecidas, que levam
os homens a arriscarem tudo o que têm, glória, riqueza, até
mesmo a vida, a fim de possuí-las. Tal é o estranho poderio da
fascinação da mulher, algo de fugitivo, que desafia qualquer
explicação.
De todas as coisas por que admiro o criador do universo, e de
todos os mistérios do universo, o encanto da personalidade
coloca-se no plano mais alto. Se eu fosse Deus, poderia dar a
minhas criaturas forma corpórea, sabedoria e conhecimento, mas
não lhes poderia dar essa coisa que é invisível e, contudo,
aparentemente palpável, que existe e, todavia, não tem forma
corporal, que é vista por um momento e torna a desaparecer - a
saber, o encanto. Pois o encanto não se limita a salientar a beleza e
a atração nas mulheres; pode fazer o que é velho parecer novo, o
que é feio parecer belo, o que é insípido tornar-se excitante.
Silenciosa e secretamente, fascina um homem sem que ele o note.
Uma moça que tenha apenas uma beleza facial de terceiro grau é
tão fascinante quanto outra que tiver melhor aparência, bastando
para isso que tenha encanto. Tomai duas moças, uma que tenha
apenas um "aspecto" comum de terceira categoria, mas tenha
encanto, e outra que não tenha encanto, mas tenha melhor
"aspecto"; colocai-as lado a lado. Gostarão todos da beldade de
terceira categoria e não da de segunda. Ou ainda, tomai uma
mulher de aspecto moderadamente bom, sem encanto, e outra
que tenha encanto, mas seja completamente deficiente em bom
aspecto; ponde-as juntas e deixai que sejam trocadas algumas
palavras com cada uma delas. Todos se apaixonarão pela que tem
encanto, e não pela que simplesmente tem bom aspecto, o que
vem provar que o encanto pode substituir a total ausência de boa 111
aparência. São conhecidas moças que em quase tudo são de
Mulheres na China imperial, Página

aspecto comum, mas que podem fascinar os homens até mesmo


ao ponto de fazer com que arrisquem a vida por elas. O segredo
está só e exclusivamente nesta palavra: "encanto".
O encanto é algo que vem naturalmente a uma pessoa e se
desenvolve diretamente de sua personalidade. Não é algo que se
possa copiar dos outros, pois encanto imitado é beleza estragada.
Cerrar as sobrancelhas era belo em Shishih, porque era natural
nela, mas seria de fato desagradável que Tungshih adotasse a
mesma atitude, porque nasceu diferente. É possível deitar normas
para julgar o rosto, a pele, as sobrancelhas e os olhos de uma
pessoa de acordo com certos padrões, mas essa coisa chamada
"encanto" é algo que se sente imediatamente, mas não se pode
analisar ou pôr em palavras; é na sua esquivança que está seu
poder de excitar e fascinar...
Para esclarecer o que quero dizer, darei alguns exemplos do que já
vi. Achava-me certa vez em Yangchow, tentando arranjar uma
concubina para um dignitário. Havia filas de mulheres belamente
vestidas e de tipos diferentes. A princípio, ficaram todas de cabeça
baixa, mas, quando lhes foi ordenado que erguessem a cabeça,
uma delas ergueu-a e fitou-me mansamente, e outra estava
terrivelmente acanhada, e não levantou a cabeça enquanto isso
não lhe foi ordenado várias vezes. Uma havia, porém, que a
princípio não olhou para cima, mas o fez após certa persuasão;
então, primeiro lançou um rápido olhar, como se me estivesse
olhando e, contudo, não estivesse, antes de manter a cabeça
erguida; depois, lançou outro olhar, antes de tornar a baixar a
cabeça. Isto é o que chamo encanto.
Lembro-me também de que, em certo dia de primavera,
numerosas pessoas, entre as quais me encontrava, abrigavam-se 112
num pavilhão para evitar uma chuva primaveril. Muitas moças e
Mulheres na China imperial, Página

mulheres, feias e belas, correram para aquele lugar. Havia, porém,


uma mulher vestida de branco, de cerca de trinta anos de idade,
que ficou sob as goteiras, fora do pavilhão, ao ver que não havia
mais espaço no interior. As outras mulheres estavam todas
sacudindo as vestes, mas ela ali ficou, calma e serena sob as
goteiras, sem se incomodar em fazer como as outras, pois bem
sabia que, exposta como se achava, sacudir as roupas só a faria
parecer ridícula. Então, a chuva cessou e todos saíram acorrer,
apenas para voltar correndo ante nova pancada chuvosa. A
mulher já estava, então, tranqüilamente dentro do pavilhão, pois
previra aquilo. Não mostrou, porém, qualquer jeito de auto-
suficiência; por outro lado, ao ver as outras mulheres que haviam
ficado de fora, com as roupas todas molhadas, fez o melhor que
pôde para limpar a água de seus ombros e mangas, revelando
então seu infinito encanto de movimentos, como se Deus
houvesse ordenado que aquela turba de mulheres feias ali fosse
para, com sua agitação, mais vantajosamente salientar a beleza
dela. Como observador, vi que era uma beleza perfeita; no
princípio, ela mostrou seu encanto na tranqüilidade, quando
estava do lado de fora; depois, mostrou seu encanto no
movimento, quando ajudava as outras. Mas tudo isso surgiu
naturalmente, pois ela não o podia ter planejado. Sua serenidade e
encanto do princípio eram tão naturais como sua atividade
subseqüente. Já revelara esse encanto interior , quando estava do
lado de fora do pavilhão, quieta, reservada, naturalmente como
era, encanto justamente tão efetivo e conveniente às
circunstâncias do tempo como seus movimentos e atividade
posteriores...
Alguns leitores podem perguntar: "É verdade que o encanto nunca 113
pode ser ensinado? Não dizemos, então, que se pode mesmo
Mulheres na China imperial, Página

aprender a ser santo ou sábio?" Em resposta, apenas posso dizer


que o encanto pode ser aprendido, mas não pode ser ensinado.
Poderão, então, perguntar: "Por que não pode ser ensinado, se
pode ser aprendido?" Minha resposta é que as pessoas sem
encanto podem aprendê-lo vivendo juntamente com pessoas que
o tenham. Adquiri-lo-ão pelo exemplo diário, pelo contágio,
como os caniços aprendem a crescer retas em meio a um campo
de cânhamo. Virá ele gradativa e naturalmente, por uma espécie
de influência invisível. Deitar tantas ou quantas normas para
adquirir encanto seria fútil e só tornaria mais confusa a confusão.

114
Mulheres na China imperial, Página
UMA CARTA FAMILIAR SOBRE UMA JOVEM ESPOSA
De “Cartas familiares de Tseng”
Tseng Kuofan, 1811-1872

Comentário de Lin Yutang: A correspondência familiar e oficial


de Tseng Kuofan está melhor preservada, provavelmente, que a de
qualquer outro homem do século passado. Seus diários e cartas
totalizam talvez um milhão de palavras. Tseng Kuofan foi o
general que salvou o Império Manchu durante a Rebelião de
Taiping, sendo, em conseqüência, o homem mais considerado de
seu tempo. Por esta razão, a presente carta à sua família é ainda
mais notável. Tive curiosidade por ver em que resultaram tais
instruções à família, e sinto-me feliz por verificar que seus netos e
bisnetos mostram-se hoje ativos no mundo educacional, havendo
muitos deles estudado na Inglaterra. Seu filho Chitseh (1839-
1890) foi embaixador junto à corte britânica.

Quando a noiva (nora) entra em nossa família, deve ser ensinada


a ir à cozinha e aprender a costurar, e também a manejar a roda
de tecer. Não se deve permitir que ela fique ociosa, pelo fato de vir
de um lar rico. 115
Mulheres na China imperial, Página

Já sabem a filha mais velha, a segunda e a terceira fazer seus


próprios sapatos? Eu gostaria de que as três filhas e a nora me
fizessem, cada uma, um par de sapatos por ano (Os sapatos
chineses eram feitos, costumeiramente, com solas de pano,
reforçadas com papelão ou feltro, e muitas vezes se fabricavam em
casa. A ponta dos sapatos das mulheres costumava levar um
bordado. A parte de cima, bordada, era a coisa importante em que
uma dama podia exercitar sua capacidade quanto ao desenho e ao
colorido. Se se desejasse uma sola de couro, os sapatos podiam ser
completados por um sapateiro), como forma de respeito, mas
também de modo que eu pudesse ver seus trabalhos de agulha.
Também devem fazer roupas e meias com pano de fabricação
doméstica. Desse modo, poderei vigiar a diligência ou a
ociosidade das mulheres de nossa casa.
As famílias dos dignitários, hoje em dia, tendem a tornar-se
ociosamente ricas, vivendo em fausto. Dão maus exemplos.
Quando minhas três filhas estiverem crescidas, quero que se
casem em famílias cultas e simples da classe média, que não
precisam ser ricas.
Nunca se deve esquecer o plantio de verduras no quintal da casa.
A criação de peixes no lago do lado de fora de nossa porta da
frente dá a todo o ambiente uma sensação de desenvolvimento e
de vida. Criar porcos é também parte importante da economia
doméstica. Secam-se, após o outono, alguns dos bambus do
terraço traseiro? Por estas quatro coisas, podemos ver se uma
família é ativa e operosa, ou se está consumindo sua fortuna.
Nenhuma dessas quatro coisas - criação de peixes, de porcos, os
bambus e as verduras pode ser negligenciada. Em primeiro lugar,
queremos manter a tradição de parcimônia e industriosidade de
nossos ancestrais e, em segundo lugar, essas quatro coisas dão 116
sensação de vida e desenvolvimento. No momento em que se
Mulheres na China imperial, Página

entra por uma porta, pode-se sentir um frêmito de atarefada


prosperidade. Gastar mesmo, com essas coisas algum dinheiro e
trabalho, valeria inteiramente a pena.

Você também pode gostar