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BUENO, André [org.] Cem Textos de História Asiática.


Original: União da Vitória, 2010.
Reedição: Rio de Janeiro: Projeto Orientalismo/UERJ, 2022.
ISBN 978-85-65996-23-5

Disponível em: http://asiantiga.blogspot.com.br/


Proj. Ori: www.orientalismo.net

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Sumário
Apresentação ...................................................................................... 9
O quadro histórico e literário de Índia e China................................. 11
Índia .............................................................................................. 11
China ............................................................................................ 14
Mitos de Criação............................................................................... 19
1. O Purusha Sukta (Hino do Homem) ......................................... 21
2. A Prajapati ................................................................................ 24
3. A Canção da Criação ................................................................ 26
4. Cosmogonia no Shatapatha – Brahmana .................................. 28
5. Aitareya Upanishad .................................................................. 30
6. A Perenidade da criação na Visão Budista, no Diga Nikaya .... 32
7. O mito chinês de Panku ............................................................ 37
8. Cosmologia daoista em Laozi................................................... 39
9. A cosmologia daoista do Huananzi .......................................... 40
Natureza Humana ............................................................................. 42
10. A Visão budista da Natureza Humana no Suttanipata ............ 43
11. Outra visão budista, sobre a natureza humana, no Samyutta
Nikaya .......................................................................................... 44
12. A natureza humana é boa – a visão de Mêncio ...................... 46
13. A natureza humana é má – a visão de Xunzi .......................... 48
14. A Natureza Humana é indistinta – a visão de Lubuwei.......... 49
15. A natureza humana depende da cultura – Huainanzi.............. 50
16. A natureza humana depende da educação – Dong Zhongshu 51

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A Morte ............................................................................................ 52
17 - Hino para ser entoado em um funeral, do Atharva Veda ...... 53
18. A Morte, a transmigração e a Ação Humana no
Manavadharmashastra .................................................................. 55
19. A Morte no Katha Upanishad ................................................. 58
20. A Morte na Visão Budista no Mojjhima- Nikaya ................... 64
21. A morte na visão de Zhuangzi ................................................ 66
Caminhos para a Sabedoria .............................................................. 68
22. As Características do Sábio Perfeito no Bhaghavad Gita ....... 69
23. Uma mestra em busca da sabedoria: A Conversa entre
Yajñãvalkya e Maitreyi no Brihadaranyaka upanishad ................ 71
24 A busca de Svetaketu, no Chandogya Upanishad ................... 75
25. A sabedoria nos Yogas sutras de Patanjali - Formas de
Meditação e de Samadhi ............................................................... 81
26. O Caminho Budista, descrito no Samyutta Nikaya ................ 83
27. A redenção pelo estudo, no Zhong Yong de Confúcio e Zisi . 84
28. O dao dos daoístas, de Laozi .................................................. 86
29. O dao obscuro de Zhuangzi .................................................... 87
30. O Dao da saúde do Neijing - Tratado sobre a Verdade Natural
nos Tempos Antigos ..................................................................... 90
Vivendo em Sociedade ..................................................................... 93
31. A Criação do Mundo e a origem das leis e das castas no
Manavadharmashastra .................................................................. 95
32. Sobre a Origem e Valor das Quatro Castas no Mahabharata 102
33. A visão das castas para os budistas no Mojjhima-Nikaya .... 105

4
34. Regras para um Chefe de Família, no Manavadharmashastra
.................................................................................................... 107
35. Deveres das Mulheres no Manavadharmashastra ................. 109
36. Regras para um chefe de família budista, no Sutanippata .... 112
37. Ode ao rei que lavra a terra, pedindo um ano de abundância, no
Shijing ........................................................................................ 114
38. Poema de uma mulher divorciada, no Shijing ...................... 115
39. Lamento de um funcionário sobre a miséria, no Shijing ...... 116
40. Sobre o labor agrícola, no Shijing ........................................ 118
41. Outras gentes, no Zhongyong de Confúcio e Zisi ................ 120
42. Os deveres de obrigação universal, no Zhongyong .............. 121
43. A Visão da civilização em Zhuangzi .................................... 122
44. O ciclo da vida humana no Neijing ...................................... 125
45. Queixa e apelo de Zhuang Qiang contra o mau trato que
recebeu do esposo, no Shijing .................................................... 130
46. Contra o Álcool e a Embriaguez, no Shujing ....................... 131
47. Contra o Luxo, no Shujing ................................................... 133
48. Sociedade e Educação, no Liji .............................................. 135
49. Como surgiu Li (a cultura) no Liji........................................ 137
50. O papel do indivíduo na estruturação da sociedade, no Daxue
.................................................................................................... 140
Deuses, Crenças e Encantamentos.................................................. 142
51. A Morte e os Deuses no Rig Veda ....................................... 144
52. A Lenda Indiana Sobre o Dilúvio ......................................... 146
53. Hino à Indra, no Rig Veda .................................................... 148

5
54. Hino à Indra, Varuna e ao Suco sagrado, o Soma, no Rig Veda
.................................................................................................... 149
55. Hino às diversas divindades, no Rig Veda ........................... 150
56. Hino às diversas divindades, no Sama Veda ........................ 152
58. A especulação sobre o Brahman no Isha Upanishad ............ 154
59. ‘Quem é o criador?’ no Kena upanishad .............................. 157
60. Prece recitada durante o preparo de um ungüento preservativo
de males e doenças, do Atharva Veda ........................................ 161
61. Para obter o amor de uma mulher (idem) ............................. 163
62. Hino às rãs, para que venham as chuvas (idem) ................... 164
63. Para achar-se um objeto perdido (idem) ............................... 166
64. Para livrar alguém do vício do jogo (idem) .......................... 167
65. Fuxi e Nugua ........................................................................ 169
66. Huangdi, o deus do Meio...................................................... 172
67. O País dos Imortais, do Shanhaijing ..................................... 176
68. As Ilhas dos Imortais, do Shanhaijing .................................. 178
69. Demônios e Feras Bestiais, do Shanhaijing.......................... 184
70. O Mundo antigo, por Zhuangzi ............................................ 187
71. O cofre guarnecido de metal, a história de uma previsão no
Shujing........................................................................................ 191
72. Uma previsão do Tratado das mutações: Hexagrama 18, a
Recuperação do Deteriorado, do Yijing ..................................... 194
73. Invocação ao ancestral Tang da dinastia Shang, no Shijing . 196
74. Uma antiga cura para depressão, no Liezi ............................ 197
A Arte de Bem Governar ................................................................ 199

6
75. Os Deveres de um Rei, no Dharmasutra............................... 201
76. Rei e Punição, no Manavadharmashastra ............................. 204
77. O poder do rei, no Arthashastra ............................................ 206
78. A política ecumênica de Ashoka .......................................... 208
79. Discurso do Marquês de Qin, no Shujing ............................. 210
80. As regras do bom governo, no Zhongyong .......................... 212
81. As cinco obrigações do bom líder, no Liji............................ 215
82. Cinco deveres e quatro erros, no Lunyu de Confúcio .......... 216
83. O governo do povo, em Mêncio ........................................... 217
84. As proibições, de Guanzi ...................................................... 219
85. O governo daoísta de Laozi, no Daodejing .......................... 221
86. O propósito de um Soberano, em Mozi ................................ 223
87. O Governo, para Shang Yang ............................................... 224
88. Regras para o bom governo, de Hanfeizi ............................. 225
Visões da Guerra ............................................................................ 227
89. Benção das armas de um príncipe em sua ida para a guerra, do
Atharva veda............................................................................... 228
90. A guerra no Manavadharmashastra ...................................... 231
91. Um Soldado pensando no Lar, do shijing............................. 233
92. Sobre as proposições da vitória e a derrota, em Sunzi ......... 234
93. Contra a Guerra, em Mozi .................................................... 238
94. A guerra é um massacre, em Mêncio ................................... 239
95. A guerra, em Shang Yang..................................................... 240
A Ciência de Registrar o Passado ................................................... 245

7
96. A Agitação do Oceano Pelos Deuses, no Vishnu purana ..... 247
97. Uma passagem do Chunqiu (Primaveras e Outonos),
comentada pelo Zuozhuan de Zuoqiuming ................................ 251
98. O Canon de Yao, do Shujing ................................................ 254
99. Contra os áulicos sistemáticos, do Zhanguoce ..................... 256
100. A Vida de Po Yi, por Sima Qian, no Shiji .......................... 258
Anexo ............................................................................................. 260
A visão de passado em Shang Yang ........................................... 261
Grande Tratado sobre a Harmonia da Atmosfera das Quatro
Estações com o Espírito Humano, no Neijing ............................ 262

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Apresentação

Cem textos de história asiática não é, a princípio, uma


continuação do meu livro anterior, Cem textos de história
chinesa. A ideia aqui foi, primeiramente, apresentar um
contraste entre as duas principais civilizações do Extremo
Oriente, Índia e China. Muitos são os mitos acerca das relações
entre essas duas culturas; de que a Índia emprestara sua cultura
à China, de que a China não tem autonomia de pensar, ou de
que ambas são muito semelhantes, etc. Todos estes erros foram
construídos por concepções históricas superadas, mas que
ainda persistem no imaginário popular ou dos estudantes
desavisados. Uma análise superficial e mal feita poderia, com
alguma boa vontade, indicar similaridades entre as duas, mas
uma leitura mais apurada de seus textos demonstra
preocupações e perspectivas amplamente diferentes. Esta foi
uma das razões desta antologia.

A segunda razão seria a de selecionar textos que mostrassem,


então, as visões de mundo destas sociedades, e evitei repetir
textos já utilizados na outra antologia. Em compensação,
aproveitei fragmentos já presentes nas traduções correntes, e
nisso a originalidade desta seleção consiste na escolha dos
temas e eixos principais. Alguns deles, como os da seção de
religião, são quase inteiramente dominados pelos textos
indianos; história, porém, é uma seção quase inteiramente
chinesa. Isso por si só já demonstra, substancialmente, algumas
diferenças de perspectivas, que abordaremos um pouco melhor

9
adiante.

Por fim, a escolha dos textos situa-se na antiguidade, até o


século -1 aec. A partir disso, os contatos entre indianos e
chineses acentuam-se, e daí podemos realmente falar de trocas
culturais entre ambas as civilizações. Antes disso, contudo,
estas civilizações cresceram e se desenvolveram de forma
relativamente autônoma, possuindo suas próprias
problemáticas e interesses.

Com esta antologia, pretendo novamente suprir as falhas


existentes na academia e compor um corpo de textos que
possam ser utilizados com fins didáticos ou de pesquisa. Minha
pretensão está longe de ser definitiva, e na verdade, minhas
intenções são a de ensejar a busca e o estudo destes textos com
maior profundidade. Espero, portanto, que o leitor aproveite a
experiência.

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O quadro histórico e literário
de Índia e China

Devemos iniciar esta antologia com algumas considerações


fundamentais sobre a história de ambas as sociedades,
apontando principalmente suas singularidades, de modo que se
possa construir um conhecimento mais esclarecido sobre elas.
Alguns pontos, porém, são ilustrativos, como veremos a seguir.

Índia
A Índia não conheceu nada parecido com o conceito de história
ou de ciência histórica, tal como o propomos, em sua
antiguidade. A preocupação fundamental desta civilização
atinha-se a uma libertação espiritual que concebia este plano,
material, com uma espécie de purgatório das almas, e cujo
ciclo de eventos era tão somente algo repetitivo e por isso
mesmo, desinteressante. A visão indiana era da negação da
materialidade; consequentemente, seu foco principal dirigiu-se
para uma filosofia de cunho metafísico, uma atenção especial à
religião, o que se desdobrava de forma nítida nas considerações
acerca da sociedade e da cultura. Assim, a Índia antiga não
pensou em qualquer forma de antropologia ou sociologia,
senão aquela pautada na interpretação da vida humana como
um processo de transmigração de almas; documentos como o
Arthashastra, um tratado dedicado a política e a administração
são exceções, e mesmo assim carregam o peso da religiosidade
consigo.

11
A história indiana, portanto, é uma reconstrução moderna,
muitas vezes mais baseada na arqueologia do que nos textos.
Estes nos mostram modos de vida ideais, concepções
teológicas profundas, mas às vezes nos escapam como fontes
sobre o cotidiano. Uma divisão moderna situa as origens da
civilização indiana como um movimento autóctone, com raízes
pré-históricas. Depois, segue-se o período das primeiras
cidades indianas, Mohenjo daro e Harappa, que termina de
modo relativamente abrupto em torno dos séculos -18 -15 aec.
Há uma aparente descontinuidade, mas emerge desta época a
sofisticada, guerreira e desenvolvida civilização védica,
calcada em seu politeísmo diversificado e na sua consolidada
estrutura de castas (ou varnas), doravante uma marca da
civilização indiana. É desta época a estruturação dos vedas, das
cerimônias do soma – o suco alucinógeno sagrado – mas
também, o início de uma especulação metafísica que só teria
sua conclusão em torno dos séculos -7 -8 aec. Enquanto isso, o
mundo indiano dividiu-se em vários pequenos reinos, cujo
poder variava constantemente. A unidade possível entre eles se
baseava nos ritos religiosos, nos princípios sociais e conceitos
comuns, enfim, numa cultura que os definia em relação aos
outros – os estrangeiros.

Este mundo vasto, empreendedor e multifacetado dirigia-se,


porém, ao centro de uma discussão infindável sobre a realidade
da vida espiritual. O período dos séculos -8 -7 aec vê surgir a
literatura upanishádica, conclusão de um longo debate
filosófico acompanhado pelas aranyakas, brahmanas e puranas,
todo um corpus textual inteiramente voltado para a solução das

12
questões religiosas que amarravam esta sociedade. Deste
processo, emergem situações conflitantes; a busca da
unificação política acompanha-se do surgimento de heresias
sócio-religiosas, como jainismo e o budismo. A presença grega
no mundo indiano sacode suas fronteiras e sua visão de mundo,
e nela, o budismo torna-se a primeira religião proselititsta do
mundo, tentando converter os estrangeiros.

Nos séculos -4 -3, a Índia finalmente se vê unificada por uma


dinastia, os Maurya, que unem a idéia de indianidade com
política. É desta época que surgem textos como o Artashastra,
preocupado com a administração das coisas públicas – mas
também textos como o de uma política ecumênica universal,
como os éditos de Ashoka, soberano pacifista cuja terrível
carreira pretérita como conquistador o levou a um acurado
exame de consciência sobre as realidades da vida.
Este mundo indiano se veria perturbado, somente, pela vinda
dos kushans entre os séculos -2 -1. Contudo, esta invasão
estava longe de abalar os alicerces solidamente instituídos da
sociedade indiana.

A estrutura destes documentos indianos, portanto, é simples: a


primeira geração deles se consigna nos vedas, os primeiros
textos do mundo védico; seguem-se as brahmanas e as
aranyakas, textos de especulação filosófica que começam a
analisar a religiosidade védica; os upanishads concluem esta
linha de pensamento, construindo uma nova mentalidade
acerca da filosofia, da sociedade e da cultura que seria
conhecida como bramanismo – com toda a carga religiosa dela
derivada.

13
Textos auxiliares como o Manavadharmashastra, ou as leis de
Manu, os Dharma sutras e o Artashastra surgem ao longo desta
trajetória, tentando explicar questões variadas, como a
administração da lei, papéis sociais, visões de mundo calcadas
na religião, etc. Quanto aos puranas, estes se estabelecem como
formas de histórias religiosas, como o Mahabharata, o
Ramayana e os puranas dos deuses, todos eles épicos que
explicam as teogonias indianas. Juntam-se a estes os textos
budistas, com seu ponto de vista particular sobre a existência.
Por estas razões veremos a ênfase dos textos indianos em
questões centrais da existência de sua sociedade, tais como as
castas, a criação do universo, os deuses, a transmigração das
almas, etc, deixando de lado um aprofundamento dos aspectos
da historiografia ou da política.

China
Tendo em vista o quadro da Índia, não será difícil perceber o
quanto a história chinesa é diferente. Embora tivessem (e ainda
tenham) uma mitologia rica e variada, essa nos é pouco
conhecida – a paixão verdadeira dos filósofos e pensadores
chineses foi a história, baseada no desenrolar dos eventos, e
investigada a partir de documentos, relíquias e relatos. Suas
escolas filosóficas ativeram-se ao “real material”, buscando a
imanência, a realização neste mundo, deixando para o além o
que seria o próprio além. Tão pouco afeitos a esta metafísica,
os chineses sofisticaram o seu pensamento em direção a uma
ciência elaborada, racionalmente explicada, que nos permite
formar um quadro satisfatório da história intelectual chinesa.

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Confúcio, o primeiro grande documentarista desta civilização,
legou-nos um vasto conjunto de informações sobre o cotidiano,
hábitos, costumes, e do que seria a busca da sabedoria – o Dao
(via, método, caminho).

Entender a história chinesa, pois, é um desafio sério, mas não


pela carência de informações - e sim por sua abundância, e suas
versões formatadas, que vêm sendo reelaboradas até os dias de
hoje. A cronologia da China é uma hemeroteca de velhas
notícias, que dirigem a interpretação dos acontecimentos,
aplicando-lhes lentes antigas, mas eficazes. Como disse o sábio
Hanyu, da dinastia Tang:

No princípio, não me atrevia a ler nenhum livro que não


fosse das antigas dinastias Xia, Shang, Zhou ou da dinastia
Han, nem retomar nada que não fosse o ensino de algum
grande santo do passado. Cada vez que me detinha,
parecia que havia perdido algo, e cada vez que continuava
a ler, tinha a sensação de ter me descuidado em alguma
coisa. Sempre andava sério como se estivesse meditando,
e perplexo como se estivesse perdido. E, quando de pincel
na mão, me dispunha a pôr em escrito o que brotava do
meu coração, queria suprimir todos os lugares comuns,
mas....como era difícil fazê-lo nessas condições! (Hanyu
768-824).

Este espírito afetou de modo profundo o senso crítico chinês,


mas igualmente o afiou, tornando-o ao mesmo tempo
inquiridor, audacioso, conservador e sintético. A negação do
novo é um fenômeno recente nesta história, pois a cultura

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chinesa desenvolveu desde cedo uma paixão inalterável por
conservar o patrimônio de seu passado e, da mesma maneira,
encantar-se pelas rupturas saudáveis do pensamento, pela
descoberta do inusitado.

A trajetória que acompanharemos aqui, pois, é temporalmente


semelhante a da Índia, mas totalmente diferente em sua
conformação. A China antiga é um espaço em aberto no seu
próprio território, identificada somente por semelhanças
culturais. Aparentemente, um movimento de unificação de
cidades-estado levou a formação de um reino, conhecido como
dinastia Xia, do qual pouco sabemos, embora esteja
comprovado arqueologicamente. Esta civilização data de algo
em torno dos séculos – 18 a -15, mas é sucedida pela dinastia
Shang, bem mais documentada. Entre os Shang surge,
aparentemente, a escrita (se essa não for também uma
conquista dos Xia, mas até agora não surgiram provas disso),
mas uma farta cultural material, depositada em seus túmulos,
permite-nos ter uma cronologia razoavelmente clara dos
acontecimentos, que nos permitem saber de sua existência
entre os séculos – 15 -12. Somente nesta época eles serão
submetidos à dinastia Zhou, a mais longa da história chinesa,
que institui uma espécie de feudalismo na administração do
território, agora muito mais amplo e sinizado.
A história dos Zhou, longa, é também permeada por fases
sucessivas de poder e decadência; ela divide-se em dois
períodos distintos, os dos Zhou anterior (1027 – 771) e Zhou
posteriores (771 - 221), motivados por uma forçada
transferência da capital real. A fase dos Zhou posteriores

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divide-se, ainda, no tempo das primaveras e outonos (771 -
481) e no tempo dos estados combatentes (481 – 221), quando
finalmente a dinastia é derrubada para dar lugar à nova
reunificação chinesa promovida pela dinastia Qin (221 – 206).
O governo Qin, embora eficiente na guerra e na administração,
não era sólido nem coeso, sendo derrubado brevemente pela
dinastia Han, que reinaria até o século 3 ec. Qin construir os
grandes monumentos da China antiga, como a grande muralha
e a tumba dos guerreiros de terracota, mas também queimou
livros, prejudicando o estudo do passado e da filosofia chinesa.
Coube aos Han recuperarem parte destas informações,
permitindo-nos compreender esta história chinesa antiga.
Os documentos de que dispomos – e que aqui apresentaremos –
se constituem basicamente em três corpos distintos: o primeiro
trata-se dos clássicos antigos, que seriam o tratado das
mutações (yi), dos livros (shu), dos poemas (shi), dos rituais
(li) e da música (yue), este último perdido, do qual só sobrou
uma parte no Liji. Confúcio os resgata no século -6, e adiciona
a eles as crônicas das Primaveras e Outonos (Chunqiu), que
receberia três comentários explicativos posteriormente
(Zuozhuan, Guliang e Gongyang). Estes livros seriam a
documentação básica sobre o passado, que explicaria a vida nas
dinastias antiga e o que seria a cultura Zhou. Depois da revisão
confucionista, temos a vasta e inovadora literatura da época das
cem escolas (contida na transição entre as primaveras e
outonos e que se desenrola no meio dos estados combatentes),
quando o debate filosófico faz surgir toda uma nova quantidade
de escritos, defendendo as mais diversas visões sobre a
sociedade e o pensamento na época. São deste contexto os

17
textos da escola confucionista, o Lunyu, Zhongyong, Daxue e
Xiaojing, dos autores Mêncio e Xunzi, dos daoístas Laozi,
Zhuangzi, Liezi, dos legistas Shangyang e Hanfeizi, de Mozi, e
a coletânea histórica do Zhanguoce. O terceiro corpo é dos
textos da época Han, tempo de sínteses e da criação de novas
teorias. Temos o Huainanzi de Liuan e o Chunqiu fanlu de
Dong Zhongshu, ambos tratados sobre filosofia; o inovador
Shiji, de Sima Qian, reinventando a história chinesa; ou ainda,
o Neijing, tratado sobre medicina chinesa que serve para uma
interpretação multifacetada do pensamento chinês deste
momento.

Perceberemos que a presença marcante nesta textualidade é


uma análise pragmatista da realidade. Disso decorre a
fundamental importância nos textos das questões políticas,
educacionais e sociológicas; como dissemos, a China da
antiguidade tem seu pensamento mítico, mas a intelectualidade
desta civilização atinha-se ao que entendia ser a sua ciência,
baseada numa busca da razão, que o afasta de modo
indiscutível da conformação da civilização indiana

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Mitos de Criação

A Índia Antiga é uma civilização em que abundam os mitos de


criação, talvez devido a sua extrema flexibilidade religiosa e à
uma filosofia inteiramente dedicada aos temas metafísicos e
teológicos. Para uma mentalidade monoteísta, é difícil
compreender como uma mesma cultura – e por conseguinte, o
que entendemos ser um “mesmo sistema religioso”, o
hinduísmo-, consegue aceitar e conviver com esta
multiplicidade de visões; mas nisso reside, exatamente, a
riqueza da liberdade de pensar e de propor interpretações
diferentes sobre os mesmos temas, questão fundamental que
levou o pensamento ocidental a vários acidentes de percurso.
Nesta primeira seção, portanto, veremos três mitos de criação
presentes no documento mais antigo da civilização indiana, o
Rig Veda. O hino de purusha parece se tratar da primeira fonte
a buscar explicar e legitimar a separação das castas indianas; o
hino a prajapati e a canção da criação se tratam, contudo, de
especulações de origem teológica e filosófica sobre as origens.
Lembremos que o Rig veda é um texto de origem ariana,
ancestral, em que o futuro pensamento “hinduísta” ainda está
em seu embrião. A conseqüência da evolução do pensamento
indiano antigo aparece nos dois textos seguintes – uma visão
cosmogônica do surgimento do universo, do Shatapatha –
brahmana, e uma introdução ao problema no Aitareya
Upanishad. Ambos os textos fazem parte de um contexto
cultural, situado entre os séculos -8 e -6 aec, em que os
indianos repensam suas origens, sua cultura arianista e vêem

19
surgir propostas alternativas como a do budismo e do jainismo.
Uma discussão sobre o universo imperecível é proporcionada
pelo texto budista do Digha-nikaya, proporcionando um
contraponto às visões tradicionais da índia hindu-védica.
Quanto à China, sempre tão carente de mitos de criação,
fornece-nos dois exemplos especulativos, baseados na teoria
yin-yang, do surgimento do universo. O primeiro aprece no
texto de Laozi, o Daodejing, e o segundo, no texto posterior, da
época Han, o Huainanzi. O terceiro exemplo, o mito de Panku,
só surgiria tardiamente, e é incluído aqui a título de
demonstração – as informações de que dispomos apontam que
este mito não foi divulgado, senão, depois do período Han
como algo próprio da cultura chinesa.

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1. O Purusha Sukta (Hino do Homem)
Mil cabeças tem Purusha, mil olhos, mil pés.
Por toda parte impregnando a terra ele enche um espaço com
dez dedos de largura.
Esse Purusha é tudo que até agora já foi e tudo que será,
o senhor da imortalidade que se torna maior ainda pelo
alimento.
Tão poderosa é sua grandeza! Sim, maior do que isto é
Purusha.
Todas as criaturas são uma quarta parte dele, três quartas partes
são a vida eterna no céu.
Com três quartos Purusha subiu; um quarto dele novamente
estava aqui.
Daí saiu para todos os lados por sobre o que come e o que não
come.
Dele nasceu Viraj (a); e novamente de Viraj nasceu Purusha.
Assim que nasceu, espalhou-se para oriente e ocidente sobre a
terra.
Quando os deuses prepararam o Sacrifício com Purusha como
sua oferenda,
Seu óleo foi a primavera; a dádiva santa foi o outono; o verão
foi a madeira.
Eles embalsamaram como vitima sobre a grama o Purusha
nascido no tempo mais antigo.
Com ele as deidades e todos os Sadhyas e Rishis (b) fizeram
sacrifício.
Desse grande Sacrifício geral a gordura que gotejava foi
colhida.

21
Ele formou as criaturas do ar, os animais selvagens e
domesticados.
Daquele grande Sacrifício geral Rics (c) e hinos-Sama (d)
nasceram;
Daí foram produzidos encantamentos e sortilégios; os Yajus (e)
surgiram disso.
Dele nasceram os cavalos e todo o gado com duas fileiras de
dentes;
Dele se reuniu o gado vacum, dele nasceram cabras e ovelhas.
Quando dividiram Purusha, quantos pedaços fizeram?
A que chamam sua boca, seus braços? A que chamam suas
coxas e pés?
O Brâmane (f) foi sua boca, de ambos os seus braços foi feito o
Rajanya (xátria). Suas coxas tornaram-se o vaixá, de seus pés o
sudra foi produzido.
A Lua foi engendrada de sua mente, e de seu olho o Sol
nasceu;
Indra e Agni nasceram de sua boca, e Vayu de seu alento.
De seu umbigo veio a atmosfera; o céu foi modelado de sua
cabeça;
A terra de seus pés, e de suas orelhas as regiões. Assim eles
formaram os mundos.
Sete bastões de luta tinha ele, três vezes sete camadas de
combustível foram preparadas,
Quando os deuses, oferecendo o sacrifício, manietaram sua
vítima, Purusha.
Os deuses, sacrificando, sacrificaram a vítima; estes foram os
primeiros sacramentos.
Os poderosos chegaram às alturas do céu, lá onde os Sadhjas,

22
deuses antigos, estão morando.

a) Contrapartida feminina do principio masculino, Purusha.


b) santos e profetas de tempos antigos.
c) Estrofes do Rig-veda.
d) Estrofe do sama-veda.
e) Fórmulas rituais do Yajur-veda.
f) As quatro classes sociais.

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2. A Prajapati
No início surgiu Hiranyagarbha, (a) nascido senhor único de
todos
os seres criados.
Ele fixou e sustenta esta terra e céu. Que deus adoraremos
com nossa oblação?
Proporcionador de alento vital, de força e vigor, aquele cujos
mandamentos todos os deuses aceitam:
O senhor da morte, cuja sombra é a vida imortal. Que deus
adoraremos com nossa oblação?
Aquele que por sua grandeza tomou-se senhor único de todo
o mundo móvel que respira e dorme:
Aquele que é senhor dos homens e senhor do gado. Que deus
adoraremos com nossa oblação?
Suas, por seu poder, são estas montanhas cobertas de neve, e
[os homens chamam o mar e Rasa (b) sua posse:
Seus braços são estes, suas são estas regiões celestiais. Que
deus
adoraremos com nossa oblação?
Por ele, os céus são fortes e a terra segura, por ele o reino da
luz e a arcada do céu são sustentados;
Por ele as regiões na atmosfera foram medidas. Que deus
adoraremos com nossa oblação?
Para ele, apoiados por sua ajuda, dois exércitos em batalha
olham com tremor no espírito,
Quando sobre eles o sol brilha. Que deus adoraremos com
nossa oblação?
Na época em que as águas poderosas vieram,

24
contendo o germe universal, produzindo Agni,
Daí passou a existir o espírito dos deuses.
Que deus adoraremos com nossa oblação?
Em seu poder, ele examinou as enchentes que continham
força produtiva e geravam a adoração.
Ele é o deus dos deuses e ninguém mais do que ele. Que deus
adoraremos com nossa oblação?
Que nunca possa ele nos ferir, ele que é o criador da terra, nem
ele cujas leis são certas, o criador dos céus,
Ele que trouxe as grandes e luminosas águas.
Que deus adoraremos com nossa oblação?
Prajapati! Só tu compreendes todas essas coisas criadas, e
ninguém mais senão tu.
Atende o desejo de nossos corações quando te invocamos -
que possamos ter muita riqueza em nosso poder.
a) Germe dourada, nome dado ao deus Brama.
b) Nome de um rio mítico.

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3. A Canção da Criação
Então não existia o não-existente, nem o existente - não havia
reino do ar, nem céu além dele.
o que encobria, e onde? E o que dava abrigo? Existia água
ali, urra profundidade insondável de água?
Não existia então a morte, nem coisa alguma imortal - não
havia sinal, o divisor do dia e da noite.
Aquela coisa única, sem alento, respirou por sua própria
natureza –
a não ser ela, não existia coisa alguma.
Existia treva; de começo oculto na treva, esse Tudo era caos
indiscriminado.
E tudo quanto existia então era vazio e sem forma –
pelo grande poder do calor nasceu aquela unidade.
Daí em diante surgiu o desejo no início, Desejo, a semente e
germes primevos do espírito.
Sábios que buscavam com o pensamento e seus corações
descobriram o parentesco do existente no não-existente.
Transversalmente sua linha de separação se estendeu - o que
estava acima, então, e abaixo?
Existiam reprodutores, forças poderosas,
ação livre aqui e energia acima, além.
Quem realmente sabe e quem pode declarar, de onde nasceu
e de onde veio essa criação?
Os deuses vieram depois da produção deste mundo. Quem
sabe,
portanto, de onde ele veio pela primeira vez?
Ele, a primeira origem desta criação, tenha formado a mesma

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toda ou não a tenha formado,
Cujo olho controla este mundo no céu mais alto, ele realmente
sabe, ou talvez não saiba.

27
4. Cosmogonia no Shatapatha – Brahmana
Na verdade, de inicio este universo era água, nada mais que um
mar de água. As águas desejaram: "Como podemos
reproduzir?” Elas se esforçaram e praticaram devoções
fervorosas, e quando se estavam aquecendo foi produzido um
ovo dourado. O ano, na verdade, não estava então em
existência - esse ovo dourado flutuou durante o espaço de um
ano. No período de um ano um homem, este Prajapati, a foi
produzido dali, e por isso uma mulher, uma vaca ou uma égua
gera dentro do espaço de um ano, pois Prajapati nasceu em um
ano. Ele rompeu o ovo dourado. Não existia então, na verdade,
qualquer lugar de descanso; apenas esse ovo dourado,
trazendo-o, flutuava durante todo o espaço e um ano.
No final de um ano, ele tentou falar. Disse "bhuhr", palavra que
se tomou esta terra; - "bhuvar", que se tomou o ar; - “svar", que
se tomou o céu além. Por isso uma criança tenta falar ao fim de
um ano, pois ao fim de um ano Prajapati tentou falar. Quando
falava ela primeira vez, Prajapati dizia palavras de uma sílaba e
de duas sílabas; por isso uma criança, quando fala pela
primeira vez, diz palavras de uma e duas sílabas. Essas três
palavras consistem em cinco sílabas e ele as tomou as cinco
estações. Ao final do primeiro ano, Prajapati subiu para estar
sobre essas palavras assim produzidas; por isso uma criança
tenta estar de pé ao fim de um ano, pois ao um de um ano
Prajapati ficou de pé.Ele nasceu com uma vida de mil anos;
assim como alguém poderia ver a distância a costa em frente,
assim ele olhou a costa a frente de sua própria vida.

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Desejando ter progênie, continuou a cantar louvores e a
trabalhar. Estabeleceu o poder de reprodução em seu próprio
eu. Pelo alento de sua boca criou os deuses - os deuses foram
criados ao entrar no céu; e esta é a divindade dos deuses, a que
tenham sido criados ao entrar no céu. Tendo-os criado houve,
por assim dizer, dia para ele e esta é também a divindade dos
deuses, a que, depois de criá-los, houve, por assim dizer, dia
para ele.

E pelo alento ou respiração para baixo, ele criou os Asuras!-


que foram criados entrando nesta terra. Tendo-os criado houve,
por assim dizer, treva para ele. Agora que a luz do dia, por
assim dizer, existia para ele, ao criar os deuses, isso ele fez o
dia; e a treva, por assim dizer, que havia para ele, ao criar os
Asuras, disso ele fez a noite - eles são esses dois, o dia e a
noite.

a) "Senhor das criaturas", o deus supremo a vir.


b) Uma classe de demônios, oponentes dos deuses.

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5. Aitareya Upanishad

ANTES DA CRIAÇÃO, tudo O que existia era o Eu, somente


o Eu. Nada mais havia. Então o Eu pensou: "Criarei os
mundos."
Ele criou os mundos: Ambhas, o mundo mais elevado, que está
acima do céu e é sustentado por ele; Marichi, o céu; Mara, o
mundo mortal, a terra; e Apa, o mundo abaixo da terra.
Ele pensou: "Eis os mundos. Enviarei agora os seus guardiões."
Enviou então os guardiões.
Ele pensou: "Eis os mundos e seus guardiões. Enviarei
alimento para os guardiões." Então enviou alimento para eles.
Ele pensou: “Como poderão existir guardiões sem que eu tome
parte neles?”.
"Se, sem mim, a palavra é pronunciada, o alento é absorvido,
os olhos vêem, o ouvido ouve, a pele sente, a mente pensa, os
órgãos sexuais procriam, então o que sou eu?"
Ele pensou: "Penetrarei nos guardiões." E então, abrindo o
centro dos seus crânios, entrou. A porta por onde ele entrou é
chamada de porta da bem-aventurança.
Sendo o Eu desconhecido, todos os três estados da alma são
apenas sonho: vigília, sonho e sono sem sonhos. Em cada um
deles habita o Eu: o olho é o local em que habita quando
estamos acordados, a mente é o local em que habita enquanto
sonhamos, o lótus do coração é o local em que habita quando
dormimos o sono sem sonhos.
Após penetrar nos guardiões, ele se identificou com eles.
Tornou-se muitos seres individuais. Assim, consequentemente,
se um indivíduo acorda do seu tríplice sonho de vigília, sonho e

30
sono sem sonhos, vê apenas o Eu. Ele vê o Eu morando no
lótus do seu coração como Brahman, onipresente, e declara:
"Conheço Brahman!”
Quem é esse Eu que desejamos venerar? De que natureza é
esse Eu? É ele o eu através do qual vemos a forma, ouvimos o
som, cheiramos o odor, falamos as palavras e provamos o doce
ou o amargo?
É ele o coração e a mente através do qual percebemos,
comandamos, discriminamos, conhecemos, pensamos,
recordamos, queremos, sentimos, desejamos, respiramos,
amamos e executamos outros atos semelhantes?
Não, esses são apenas adjuntos do Eu, que é consciência pura,
que é Brahman. E esse Eu, que é consciência pura, é Brahman.
Ele é Deus, todos os deuses; os cinco elementos - terra, ar,
fogo, água, éter; todos os seres, grandes ou pequenos, nascidos
de ovos, nascidos do útero, nascidos do calor, nascidos do solo;
cavalos, vacas, homens, elefantes, pássaros; tudo o que respira,
os seres que caminham e os seres que não caminham. A
realidade que está por trás de todos eles é Brahman, que é
consciência pura.
Todos esses, enquanto vivem, e depois que cessam de viver,
existem nele.
O sábio Vamadeva, tendo percebido Brahman como
consciência pura, partiu desta vida, subiu aos céus, realizou
todos os seus desejos, e alcançou a imortalidade.

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6. A Perenidade da criação na Visão Budista, no
Diga Nikaya
Há, ó monges, eremitas e brâmanes que são em parte
eternalistas, em parte não-eternalistas. Eles assentam em
princípio por quatro razões que o eu e o mundo são em parte
eternos, em parte não-eternos. Quais são os motivos? Ó
monges, se produz um estado em que, a um momento dado
após um longo lapso de tempo, este mundo está em involução.
Este mundo estando em involução, os seres na sua maioria
tornam-se Radiantes. Tornam-se compostos de espírito, gozam
do êxtase, lúcido quanto ao eu, circulando no céu,
permanecendo na glória; eles duram durante uma longa, longa
existência. Ora, monges, produz-se um estado em que, a um
dado momento, após um longo lapso de tempo, este mundo
está em evolução. Este mundo estando em evolução, vem a
aparecer a morada vazia de um Brahma. Então um ser, seja que
a duração de sua vida esteja esgotada seja que seu mérito esteja
esgotado tendo morrido no grupo dos Radiantes, surge na
morada vazia de um Brahma. Ele se toma composto de espírito,
goza do êxtase, lúcido quanto ao eu, circulando no céu,
permanecendo na glória, ele dura durante uma longa, longa
existência. Se eu estando perturbado, de aí permanecer na
solidão, após uma longa existência, a falta de contentamento e
a agitação nascem nele, e ele pensa: "Praza ao Céu que outros
seres venham também a este estado". Então determinados seres
também eles, seja porque a duração de sua vida está esgotada,
seja porque seu mérito está esgotado, tendo morrido no grupo
dos Radiantes surjam na morada de Brahma, na companhia

32
deste ser. Estes são igualmente compostos de espíritos... etc. e
duram durante uma longa existência. Em consequência, ó
monges, vem ao ser que surgiu ali primeiro esta idéia: "Sou eu
que um Brahma, um grande Brahmã, Vencedor, invencível,
Aquele que tudo vê, que governa, Senhor, Fazedor, Criador,
Chefe, Dispensador, Mestre, Pai de todos os seres que vieram a
ser e virão. Estes seres são criados por mim. Qual é a causa
disto? Primeiro me veio esta idéia: "Praza ao Céu que outros
seres venham a este estado". E tal era minha resolução que
estes seres vieram a este estado. E também aos seres que
suspiram mais tarde veio esta idéia: "este Brahmã venerado é
um grande Brahmã... Pai de todos os seres que vieram a ser e
virão. Nós fomos criados por este Brahmã. Qual foi a causa
disto? É que vemos que ele surgiu aqui primeiro e que nós
surgimos depois dele". Mas pode suceder, ó monges, que um
ser tendo morrido neste grupo, venha a este estado e abandone
o lar, viver sem lar. Tendo feito assim, pode suceder que pelo
resultado de seu ardor, por um resultado de seu esforço, por um
resultado de sua aplicação, por um resultado de sua
sinceridade, como resultado de seu trabalho mental correto, ele
atinja a uma contemplação mental tal que, seu espírito estando
em contemplação, ele se possa lembrar desta habitação
anterior: ele não se lembra de nenhuma outra anterior a essa.
Ele diz: O Brahmã venerado que é um grande Brahmã,
Vencedor, invencível etc... Pai de todos os seres que vieram e
virão a ser, é por este Brahmã venerado que fomos criados. Ele
é permanente, estável, eterno, não sujeito à mudança, igual ao
eterno pois durará como ele. Mas aqueles dentre nós que foram
criados por estes Brahmã, tendo chegado a este estado, são

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impermanentes, instáveis, de curta vida, sujeitos à morte. É a
primeira consideração pela qual alguns eremitas e brâmanes
assentam em princípio que o eu e o mundo são em parte eterno,
em parte não-eternos. Em segundo lugar, ó monges, há devas
que são chamados "Corrompidos pelo prazer”. Durante um
tempo prodigiosamente longo eles vivem inteiramente para as
coisas do riso, do prazer do deleite; por isso sua memória é
confusa, e como sua memória é confusa estes devas morrem
neste grupo. Mas pode suceder, ó monges, que tendo morrido
neste grupo, um ser vem a este estado e abandona o lar para
viver sem lar. Tendo feito assim. .. (etc. como acima). .. ele não
se lembra de nenhuma habitação anterior a essa. Ele pensa: "Os
dignos devas, que não estão corrompidos pelo prazer, não
viveram durante um tempo prodigiosamente longo inteiramente
para as coisas do riso, do prazer, do deleite; assim sua memória
não é confusa, e sua memória, não sendo confusa, estes devas
não morrem neste grupo. Eles são permanentes, estáveis,
ternos, não sujeitos à mudança; eles são semelhantes ao eterno,
pois durarão como ele. Mas aqueles dentre nós que viveram
inteiramente para as coisas do riso, do prazer, do deleite
durante um tempo prodigiosamente longo, têm a memória
confusa: nossa memória sendo confusa, nós morreremos neste
grupo e chegaremos a este estado. Nós somos impermanentes,
instáveis, de curta vida, sujeitos, à morte”. É a segunda
consideração pela qual alguns eremitas e brâmanes assentam
em princípio que o eu e o mundo são em parte eternos, em
parte não-eternos. Em terceiro lugar, ó monges, há devas que
se chamam "Corrompidos em espírito". Durante um tempo
prodigiosamente longo, eles são considerados e julgados entre

34
eles de uma maneira invejosa. Como consequência disto seus
espíritos são maculados uns em relação: aos outros, e em
consequência seu corpo é cansado, seu espírito é cansado. Eles
morrem neste grupo. Mas pode suceder, ó monges que tendo
morrido neste grupo, um ser vem neste estado, e abandona o lar
para viver sem lar... (como acima); ele não se lembra de
nenhuma habitação anterior a essa. Ele diz: "Os dignos devas
que não são corrompidos em espírito não são considerados e
julgados entre si de modo invejoso durante um tempo
prodigiosamente longo. Assim seus espíritos não são
maculados uns em relação aos outros, seu corpo e seu espírito
não estão cansados. Estes devas não morrem neste grupo. Eles
são permanentes... (etc.), eles durarão. Nós que somos
Corrompidos em espírito, que somos considerados e julgados
entre nós de modo invejoso durante um tempo prodigiosamente
longo, nós cujo corpo e espírito estão cansados, nós que, tendo
morrido neste grupo, chegamos a este estado; nós somos
impermanentes, instáveis, de vida curta, sujeitos à morte." É a
terceira consideração pela qual alguns eremitas e brâmanes
assentam em princípio que o eu e o mundo são em parte
eternos, em parte não-eternos. Em quarto lugar, ó monges, um
eremita ou brâmane raciocina e estuda. De acordo com um
sistema por ele inventado, elaborado sobre o raciocínio,
baseado sobre o estudo, ele fala da seguinte maneira: "Tudo o
que se pode chamar olho, orelha, nariz, língua, corpo, esse eu é
impermanente, instável não eterno, sujeito à mudança. Mas o
que chama espírito, pensamento ou consciência este eu é
permanente, estável, não sujeito à mudança; semelhante ao
eterno, pois como ele durará." É a quarta consideração pela

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qual alguns eremitas e brâmanes que são em parte eternalistas,
em parte não-eternalistas, assentam em princípio que o eu e o
mundo são em parte eternos, em parte não-eternos. Disto, ó
monges, o Descobridor da Verdade tem a presciência: Estas
opiniões especulativas, sustentadas desta maneira, afirmadas
deste modo, terminarão por levar a este ou àquele destino, a
este ou àquele estado futuro. Disso o Descobridor da Verdade
tem a presciência, e tem a presciência de outras coisas ainda.
Mas mesmo tendo esta presciência ele nela não insiste. Como
ele não insiste, o nirvana se encontra nele, conhecido de si
mesmo; conhecendo tais como são verdadeiramente a origem e
o desaparecimento das sensações, sua doçura; seu perigo, e o
modo de deles se evadir, o Descobridor da Verdade, ó monges,
é libertado sem que subsista nele um resíduo qualquer [levando
a outra existência].

36
7. O mito chinês de Panku

Segundo a tradição, antes da separação do céu e da terra, o


universo assemelhava-se a um ovo gigantesco. Pan-Ku crescia
em seu interior. Após dezoito mil anos, subitamente despertou
e abrindo os olhos não se apercebeu de coisa alguma em torno
de si. Atordoado tomou de um machado e girando-o com
grande ímpeto, conseguiu quebrar a casca do ovo num enorme
estrondo. Então a parte superior elevou-se aos poucos
formando o céu. A parte inferior lentamente desceu, formando
a terra. Quanto a Pan-Ku, este assumiu sua forma: possuía
cabeça de dragão e corpo de cobra. Sua respiração era
constituída pelo vento, a chuva e o trovão. Quando abria os
olhos se fazia luz. Quando os fechava, só o escuro.
Pan-Ku, para impedir que se unissem novamente as partes ora
separadas, exteriorizou todo o seu poder, fixando-se entre o céu
e a terra como eixo. O céu subia diariamente dez pés. O chão,
já estabelecido, avolumava-se dezoito mil pés por dia. Quanto
ao corpo de Pan-Ku, este se desenvolvia no mesmo ritmo.
E assim se passaram outros dezoito mil anos. Pan-Ku
continuava a desenvolver-se, tão forte e sólido, que sustentava
o céu. Contudo, chegado o momento em que estando firmes o
céu e a terra, entendeu não ser mais necessária a sua
permanência na posição de eixo e assim deitou-se para morrer.
E se metamorfoseou. Magicamente sua respiração se
transformou no vento e nas nuvens e sua voz no trovão. De seu
olho esquerdo nasce o sol. De seu olho direito surge a lua.
Mãos e pés criam os quatro pontos cardeais e as grandes
montanhas. De seu sangue, o milagre dos rios e dos nervos os

37
caminhos naturais. De sua carne a terra fértil. De seus cabelos e
barba criam-se as estrelas. De sua pele e pêlos brotam árvores e
outros vegetais. De seus dentes e ossos eclodem as rochas e
pedras preciosas, as pérolas e o jade. E de seu suor, a fonte do
orvalho e da chuva. Os homens, numa atitude de profunda
reverência e respeito, fizeram erguer um grande túmulo de 300
milhas de comprimento para todo o sempre cultuar o seu
espírito.

38
8. Cosmologia daoista em Laozi

O Dao gera o um
o um gera o dois
o dois gera o três
o três gera as dez mil coisas
Todos os seres têm o Yin e o Yang
Fundido suas energias para a harmonia
Ninguém quer estar só ou desgostoso
Mas é assim que os reis se descrevem
Pode-se perder ganhando
E ganhar perdendo-se
O que os outros ensinam, eu também ensino
Os fortes não podem dominar sua morte
Este é o pai de todos os ensinamentos.

39
9. A cosmologia daoista do Huananzi

As essências entrelaçadas do Céu e da Terra produziram o Yin


e Yang
As essências exaladas por Yin e Yang produziram as quatro
estações
As essências desagregadas de Yin e Yang criaram todas as
coisas
O qi fervente do yang acumulado produz o fogo
O sol é a essência do qi fervente
O qi gelado do yin acumulado produz a água
A lua é a essência do qi aquoso
O qi advindo das essências de sol e da lua produziram as
estrelas e planetas
Ao céu pertencem o sol, a lua planetas e estrelas
A terra pertencem a água, as inundações, o povo e o solo
[...]
O dao do céu é circular
O dao da terra é quadrado
O quadrado governa o obscuro
O circular governa o brilhante
O brilhante emite qi e por esta razão
O fogo é o brilho externo do sol
O obscuro absorve qi, e por esta razão
A água é a luminosidade interna da lua
O sol preside o yang, por isso
Na primavera e no verão os animais lutam
No solstício do verão os cervos perdem seus chifres
A lua preside o yin, por isso

40
Quando a lua mingua, os peixes enlouquecem
Quando a lua morre, caranguejos ressecam
O fogo vai pra cima
A água vai pra baixo
Assim é também
O vôo dos pássaros, pra cima
O nado dos peixes, pra baixo
As coisas que pertencem a uma mesma classe movem-se
simultaneamente
A raiz e o tal respondem um pelo outro
Portanto
Quando o espelho candente (=lente) vê o sol
Incendeia a erva e produz o fogo
Quando o espelho quadrado (=espelho) vê a lua
Umedece e produz água (=orvalho)

41
Natureza Humana

A discussão sobre a natureza humana é antiquíssima na Índia e


na China; no entanto, enquanto na Índia ela era lida pela
questão da transmigração das almas, na China ela era
compreendida como relacionada ao surgimento biológico do
ser, fazendo parte de suas propensões naturais. Por conta disso,
a questão atravessa todos os textos indianos – e talvez nenhum,
se entendermos que esta natureza humana é lida pelo prisma do
karma, e todos os seres são, então, iguais perante o absoluto, e
diferentes em evolução. Uma compreensão melhor sobre esta
questão pode ser vista na seção sobre Sociedade, em que são
apresentados os textos que tratam sobre a transmigração da
alma e sua relação com as castas. Veremos, pois, dois textos
budistas que tratam brevemente sobre a questão, buscando
classificar os tipos humanos encarnados em seu “nível de
espiritualidade”. Na China, contudo, este problema foi
discutido amplamente pelos pensadores chineses, de modo que
fosse aplicado, de maneira prática, na formulação de uma ética
e de uma ciência sobre o ser humano. O início desse debate se
deu com os textos de Mêncio e Xunzi, no período dos sécs. -4 -
3 aec., e continuou ao longo da história chinesa. Como nos
centramos no período da antiguidade, podemos acompanhar
um pouco desta discussão nos textos de Lubuwei (da época
Qin), do Huainanzi e de Dong Zhongshu, da dinastia Han, que
veremos a seguir.

42
10. A Visão budista da Natureza Humana no
Suttanipata
Vãsettha, responde ele, eu te irei expor segundo a verdade e
gradualmente. A divisão em espécies dos seres vivos; pois as
espécies os dividem. Considera ervas e árvores! Eles não
raciocinam; entretanto eles são marcados cada um segundo sua
espécie; pois em verdade as espécies se diferenciam. Considera
em seguida os besouros, as borboletas, as formigas, cada um
segundo sua espécie, eles também são marcados... Da mesma
maneira os quadrúpedes, grandes e pequenos, os répteis, as
serpentes, os animais de longo dorso, os peixes, os hóspedes do
lago, os habitantes das águas, os pássaros, as criaturas aladas
que povoam o espaço; todos são marcados segundo sua
espécie, pois as espécies se diferenciam. Cada um segundo sua
espécie leva sua marca. No homem não há multiplicidade, nem
na cabeleira, nem na cabeça, as orelhas ou os olhos, nem na
boca, no nariz, os lábios e as sobrancelhas, nem na garganta,
quadris, o ventre ou o dorso, nem nas nádegas, os órgãos
sexuais, ou o peito, nem nas mãos, os pés, os dedos ou as
unhas, nem nas pernas e as coxas, nem a tez nem a voz, não há
uma marca que diga sua espécie, como em todos os outros.
Nada que seja único nem se encontre no corpo humano: a
diferença dos homens é puramente nominal.

43
11. Outra visão budista, sobre a natureza humana,
no Samyutta Nikaya
Constata-se que existem no mundo quatro tipos de indivíduos.
Quais são? Há os sombrios, que caminham para as trevas, os
sombrios que caminham para a claridade; os claros que
caminham para as trevas, os claros que caminham para a
claridade. Qual é aquele que é sombrio, que caminha para as
trevas? É, por exemplo, o homem nascido numa família
humilde; ele é pobre, mal nutrido, vivendo numa condição
miserável, aflito, disforme. Sua conduta do corpo, de palavra e
de pensamento é má, de modo que quando da decomposição de
seu corpo após a morte ele surge no Abismo, o Mau Destino, a
Queda. É como se o ser caminhasse de cegueira em cegueira,
das trevas a outras trevas, de uma mancha de sangue a outra.
Qual é aquele que é sombrio, e que caminha para a claridade?
É, por exemplo, aquele que é nascido nas condições más que
acabo de dizer, mas cuja conduta de corpo, de palavra e de
pensamento é boa, de modo que quando da decomposição de
seu corpo após a morte ele surge num Bom Destino, num
mundo celeste. É como se o ser se elevasse do solo num
palanquim, do palanquim ao dorso de um cavalo, do dorso do
cavalo ao dorso de um elefante ou do elefante sobre um
terraço. Qual é aquele que é claro mas que caminha para as
trevas? É, por exemplo, aquele que nasceu numa família de
elevada estirpe, muito rica, e com tudo que pode assegurar o
prazer. Mas sua conduta de corpo, de palavra e de pensamento
e mau, de sorte que quando da decomposição de seu corpo após
a morte, ele surge no Abismo, o Mau Destino, a Queda. É

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como se o ser descesse de um terraço sobre um elefante, do
dorso do elefante ao dorso do cavalo, daí em um palanquim e
do palanquim a terra. Qual é aquele que é claro e que caminha
para a claridade? É por exemplo, aquele que nasceu nas
circunstâncias felizes que eu acabo de dizer e cuja conduta de
corpo, de palavra e de pensamento é boa, de modo que quando
da decomposição de seu corpo após a morte, ele surge num
Bom Destino, e num mundo celeste. É como se o ser passasse
de um palanquim a um outro, de um cavalo a outro cavalo, de
um elefante a um outro elefante, de um terraço a outro terraço.
É por esta imagem que eu descrevo este tipo de indivíduo.

45
12. A natureza humana é boa – a visão de Mêncio

Mêncio disse: “todos tem um coração sensível aos sofrimentos


de outros. Os grandes reis do passado tiveram esta sorte do
coração sensível e políticas cheias de compaixão foram
adotadas. Trazer a ordem ao reino é tão fácil quanto mover um
objeto em sua palma quando você tem um coração sensível e
põe, em prática, políticas de compaixão. Me deixe dar um
exemplo do que eu digo, ou seja, que todos tem um coração
sensível aos sofrimentos de outros: qualquer um que viu, de
repente, um bebê próximo de cair em um poço se sentiria
alarmado e iria salva-lo. Não seria porque quis melhorar suas
relações com os pais da criança, nem porque quis uma
reputação boa entre seus amigos e vizinhos, nem porque não
gostou de ouvir a criança gritar. Disto segue que qualquer um à
quem falta sentimentos de comiseração, de carinho, de cortesia
ou um sentido de certo e de errado não pode ser entendido
como humano.

Gaozi disse: “a natureza humana é como a água correndo:


quando um curso é aberto ao leste, ela flui para o leste; quando
uma corrente é aberta ao oeste, flui para o oeste. A natureza
humana é mais inclinada ao bom tanto para o leste quanto para
o oeste. Mêncio respondeu:” a água não tem preferência pelo
leste ou pelo oeste, mas não tem uma preferência pelo cimo ou
para baixo?” A bondade é na natureza humana como fluir da
água para baixo. Não há nenhuma pessoa que não seja boa e
nenhuma água que não flua para baixo. Espirrada, ela pode
molhar sua cabeça; se forçada, pode ser trazida acima de um
monte. Mas esta não é a natureza da água; são circunstâncias
46
específicas. Embora os povos possam ser feitos para serem
maus, suas naturezas não são mudadas.

47
13. A natureza humana é má – a visão de Xunzi

A natureza do homem é má. Bom é o produto humano. A


natureza humana é tal que os povos nascem com amor ao lucro,
e se seguirem essa inclinações, eles lutarão e arrebatar-se-ão
uns aos outros, e as inclinações ao dever e a produção
morrerão. Eles nascem com medos e ódios. Se os seguirem,
transformar-se-ão em violentos e tendenciosos indo de contra a
boa fé, que morrerá. Se forem indulgentes, e desordem da
licenciosidade sexual resultará na perda dos princípios rituais e
da moral. Em outras palavras, se o povo agir de acordo com a
natureza humana e seus desejos, eles inevitavelmente lutarão,
arrebatar-se-ão, violarão as normas e agirão com um violento
abandono. Consequentemente, somente depois de
transformados por professores e por princípios rituais e morais,
conforme a cultura, poderão permanecer em boa ordem. Visto
por este lado, é óbvio que a natureza humana é má e bom é o
produto humano.

48
14. A Natureza Humana é indistinta – a visão de
Lubuwei
Se bem que a transparência seja a verdadeira natureza da água,
a sociedade perturba essa natureza, impedindo-a de se manter
transparente. Apesar da longevidade ser a verdadeira natureza
do homem, os bens materiais perturbam esta natureza, e por
isso muita gente morre antes do tempo. Os bens materiais
deveriam ser usados para aprimorar nossa natureza, e não
deveríamos usar nossas naturezas para obter bens materiais.

O fato é que hoje, a maioria dos homens, confusos, usa sua


natureza para melhorar seus bens materiais, o que mostra que
eles não compreendem a diferença entre o que é importante e o
que é insignificante. Quando não se compreende esta diferença,
se deprecia o que é importante e se valoriza o insignificante.
Deste modo, toda ação conduz ao fracasso. Devido a isso, os
governantes viram perversos, os ministros se tornam rebeldes e
seus filhos perdem os limites. Um estado ou família em que se
suceda algumas dessas coisas está condenado a extinção, a
menos que tenha muita sorte.

49
15. A natureza humana depende da cultura –
Huainanzi
Suponhamos que uma pessoa nasça em um lugar remoto e
pouco civilizado, na choça de uma família pobre, fica órfão dos
pais desde criança e não tem irmãos, nunca teve contato algum
com os ritos e nada semelhante, jamais ouviu fala dos
exemplos dos antigos sábios, e vive cerrado em uma pequena
habitação sem dela sair, então não podemos supor que ele seja
estúpido por sua própria natureza como muitos supõem, mas
sem dúvida é muito pouco o que ele sabe.

50
16. A natureza humana depende da educação –
Dong Zhongshu
O que se passa agora é que o povo é bom por natureza, mas ela
ainda não está desperta, como ocorre com uma pessoa que está
com os olhos fechados e, sem abri-los, ele nada pode ver. Tudo
ficará bem se lhe dermos educação. Enquanto permanecer sem
despertar, somente podemos dizer que ele tem uma natureza
boa, mas ele não é bom. É exatamente como os olhos que
permanecem fechados, e que ainda não foram abertos.

51
A Morte

Ato contínuo, se a discussão sobre a natureza humana era


evidentemente forte na China, a questão da morte tornou-se,
porém, o foco central das reflexões metafísicas indianas. Eis a
razão pela qual esta seção é praticamente dominada pelos
textos indianos. Iniciamos por um hino do Atharva Veda, que
forma a coleção mais antiga de textos védicos, e do qual
podemos extrair alguma coisa do primitivo politeísmo indiano;
no seguir, uma explanação sobre a morte e ação humana em
um dos primeiros textos de caráter legislativo da Índia, o
Manavadharmashastra (ou Leis de Manu, o primeiro homem da
terra após o dilúvio indiano); depois, a conclusão desta
especulação é apresentada em um longo, porém fundamental,
texto upanishádico – o Katha upanishad traz, especificamente,
uma dissertação, sob forma de diálogo “imaginado” (numa
percepção religiosa, ele não o seria) acerca da morte, e da
transmigração da alma. Depois, uma contraposição budista ao
tema, e por fim, a insinuante perspectiva chinesa representada
por Zhuangzi; se há morte ou não, qual seria a diferença?
Numa proposta inédita, que consigna o desejo chinês de viver a
vida imediata, Zhuangzi propõe não só a continuidade da
matéria como também, a nossa impossibilidade total de
governar este ciclo. (um trecho sobre a visão da morte chinesa
pode ser encontrado na seção “Sociedade”, no item 49).

52
17 . Hino para ser entoado em um funeral, do
Atharva Veda
Terra, sê leve, sem espinhos, repousante. Vasta, oferece-lhe o
teu abrigo.
Deponham-te, não em lugar estreito, mas em terreno largo.
Tuas oblações, enquanto viveste, agora sejam mel para ti.
Chamo o teu pensamento com o meu pensamento. Vai alegre
para a tua morada e reúne-te aos nossos antepassados, a lama.
Que os ventos te sejam favoráveis e benéficos!
Da tua alma, do teu alento, dos teus membros, nada fique por
aqui.
Não sejas oprimido nem pela terra divina e poderosa, nem pela
árvore. Vai para o teu lugar, entre os antepassados, sê feliz
entre os súditos de lama.
O que se perdeu dos teus membros, ao longe, tua respiração,
tua expiração, levadas pelo vento, que os nossos antepassados
te restituam aos poucos.
[Durante a cremação]
Os vivos expulsaram-no de casa. Levem-no para longe da
aldeia.
Enquanto enterram os ossos, depois da cremação
Ainda vês, depois não verás mais, o sol que está no céu. Ó
Terra, como a mãe trata do filho, recobre-o com teu manto.
Agora ainda, não mais depois, mesmo em tua velhice, ó Terra,
cobre-o com a tua vestimenta, como esposa com seu marido.
[Ao apagar da fogueira crematória]
Que te seja benéfica a neblina, benfeitora a geada. Fria e fresca

53
de frieza, fresca e feita de frescura, rã nas águas, sê benéfica.
Extingue esta chama!

54
18. A Morte, a transmigração e a Ação Humana no
Manavadharmashastra
A ação, que advém da mente, da fala e do corpo, produz
resultados bons ou maus; pela ação são causadas as diversas
condições humanas, as mais elevadas, as médias e as mais
baixas.
A mente é o instigador aqui em baixo, mesmo aquela ação
ligada ao corpo, e que é de três tipos, tem três localizações e se
classifica sob dez títulos. Cobiçar a propriedade alheia, pensar
no coração sobre o que é indesejável e aderir a doutrinas falsas
são os três tipos de ação mental pecaminosa. Injuriar o
próximo, dizer mentira, detrair dos méritos de todos os homens
e falar frivolamente serão os quatro tipos de ação verbal má.
Tomar o que não foi dado, ferir as criaturas sem a sanção da lei
e manter relações criminosas com a mulher do próximo são
declarados como os três tipos de ação corporal ruim. Um
homem consegue o resultado de ato mental bom ou mau
em sua mente, o de um ato verbal em sua fala e o de um ato
corporal em seu corpo. Em consequência de muitos atos
pecaminosos cometidos com seu corpo, no nascimento seguinte
um homem se toma algo inanimado; em consequência de
pecados cometidos pela fala, uma ave ou um animal, e em
consequência de pecados mentais ele nasce novamente em uma
casta inferior. [...]

Mesmo que morresse com ele, um familiar não consegue


acompanhar seu parente falecido e todos, com exceção de sua
esposa, estão proibidos de acompanhá-lo na trilha de Yama. (a)
Apenas a virtude o acompanhará, onde for; portanto, cumpre
55
teu dever sem hesitar neste mundo desgraçado. As questões de
amanhã devem ser tratadas hoje, e as da tarde na manhã, pois a
morte não esperara, tenha uma pessoa tratado delas ou não.
Enquanto sua mente estiver concentrada em seu terreno, ou
ocupação, ou casa, ou enquanto seus pensamentos estiverem
absorvidos por algum objeto amado, a morte repentinamente a
leva como sua presa, como uma loba arrebata um cordeiro. O
tempo não é amigo de pessoa alguma, nem seu inimigo -
quando o efeito de seus atos em existência anterior, pela que
sua existência atual é causada, tiver expirado, ele leva o
homem a força.Ninguém morre antes de chegado seu tempo,
ainda que ferido por mil setas; ninguém vive depois de
esgotado seu tempo, ainda que tenha sido apenas tocado pela
ponta de uma folha de grama Kusha. Nem drogas, nem
fórmulas mágicas, nem oferendas queimadas, nem orações,
poderão salvar quem esta nos laços da morte ou na velhice.
Um mal iminente não pode ser evitado, mesmo com mil
precauções; que motivo tens, então, para te queixares? Assim
como um bezerro encontra sua mãe entre mil vacas, um ato
cometido anteriormente encontrara certamente quem o
perpetrou. Das coisas existentes, o início é desconhecido, o
meio de sua carreira conhecido, e o fim desconhecido também;
que motivo tens, então, para te queixares? Assim como o corpo
dos mortais atravessa as vicissitudes da infância, juventude e
idade adiantada, também será transformado em outro corpo
dali em diante; um homem sensato não se engana a esse
respeito. Assim como um homem veste roupas novas neste
mundo, deixando de lado aquelas antes usadas, também o eu do
homem põe novos corpos, que se acham de acordo com seus

56
atos numa vida anterior. Arma alguma ferirá o eu do homem,
nenhum fogo o queimará, nenhuma água o molhará e nenhum
vento o secara. Ele não será ferido, queimado, molhado ou
secado; é imperecível, perpétuo, imutável, imóvel, sem início.
Diz-se também ser imaterial, passando todo o pensamento, e
imutável. Sabendo que o eu do homem é assim, não deves
lamentar a destruição de seu corpo.

a) O deus da morte.

57
19. A Morte no Katha Upanishad

EM DETERMINADA OCASIÃO, Vajasrabasa, esperando


obter um favor divino, executou um ritual que exigia que ele se
desfizesse de todos os seus bens. Ele teve o cuidado, porém, de
sacrificar somente o seu gado e, dele, somente os animais
inúteis - os velhos, os estéreis, os cegos e os aleijados. Ao
observar essa avareza, Nachiketa, seu filho mais novo, cujo
coração havia recebido a verdade ensinada nas escrituras, disse
para si mesmo: "Certamente, um devoto que ousa levar
presentes tão inúteis está destinado à total escuridão!"
Refletindo assim, dirigiu-se ao pai e falou:

"Pai, eu também vos pertenço: para quem me dareis?" Seu pai


não respondeu; porém, quando Nachiketa repetiu a pergunta
uma e outra vez, ele replicou impacientemente: "Eu vos darei à
Morte!" Nachiketa disse então para si mesmo: "Sou de fato o
melhor dentre os filhos e discípulos de meu pai, ou estou, pelo
menos, na categoria intermediária, não na pior; porém, de que
valor serei para o Rei da Morte?"

Estando, porém, determinado a seguir a palavra do pai, disse:


"Pai, não vos arrependais da vossa promessa! Considerai como
tem acontecido com aqueles que partiram antes, e como será
com aqueles que vivem agora. Como o milho, um homem
amadurece e cai ao solo; como o milho, ele brota novamente na
estação propícia."

Após falar assim, o rapaz viajou para a casa da Morte. Porém o


deus não estava em casa, e Nachiketa esperou durante três

58
noites. Quando finalmente o Rei da Morte voltou, seus servos
lhe disseram:

"Um Brahmin, parecido com uma chama de fogo, chegou à


vossa casa como hóspede, e vós não estáveis aqui. Desse
modo, uma oblação deverá ser feita a ele. Ó Rei, devereis
receber vosso hóspede com todos os rituais costumeiros, pois
se o chefe de uma casa não mostrar a devida hospitalidade a
um Brahmin, perderá o que mais preza - os méritos das suas
boas ações, sua integridade, seus filhos e seu gado."

O Rei da Morte, então, aproximou-se de Nachiketa e deu-lhe as


boas-vindas com palavras polidas: "Ó Brahmin", disse ele, "Eu
vos saúdo. Vós sois de fato um hóspede digno de todo respeito.
Permiti, eu vos imploro, que nenhum mal caia sobre mim!
Passastes três noites em minha casa e não recebestes minha
hospitalidade; pedi, portanto, três dádivas - uma para cada
noite."

"Ó Morte", replicou Nachiketa, "que assim seja. E como


primeira dessas dádivas peço que meu pai não fique ansioso a
meu respeito, que sua ira se acalme, e que, quando me
mandardes de volta, ele me reconheça e me dê as boas-vindas."
"Pela minha vontade", declarou a Morte, "vosso pai vos
reconhecerá e vos amará como antes; e, ao ver-vos vivo
novamente, ficará com a mente tranquila, e dormirá em paz."
Nachiketa então disse: "No céu não há medo de modo algum.
Vós, ó Morte, não estais lá, nem naquele lugar onde o
pensamento de ficar velho faz com que a pessoa estremeça. Lá,
livres da fome e da sede, e longe do alcance da dor, todos

59
rejubilam e são felizes. Vós conheceis, ó Rei, o sacrifício do
fogo que leva ao céu. Ensinai-me esse sacrifício, pois estou
cheio de fé. Esse é o meu segundo desejo."

Consentindo, então, a Morte ensinou ao rapaz o sacrifício do


fogo, e todos os rituais e cerimônias que o acompanhavam.
Nachiketa repetiu tudo o que havia aprendido, e a Morte,
satisfeita com ele, disse: "Vou conceder-vos uma dádiva
adicional. A partir de hoje esse sacrifício será denominado
Sacrifício Nachiketa, em vossa homenagem. Escolhei agora
vossa terceira dádiva."

Nachiketa, então, pensou consigo mesmo, e disse: - "Quando


um homem morre, há esta dúvida: Alguns dizem que ele existe;
outros dizem que ele não existe. Se vós me ensinásseis, eu
conheceria a verdade. Esse é o meu terceiro desejo."
"Não", replicou a Morte, "mesmo os deuses certa vez ficaram
intrigados com esse mistério. A verdade com relação a isso é
realmente sutil, não é fácil de ser compreendida. Escolhe
alguma outra dádiva, Ó Nachiketa."

Porém, Nachiketa não quis aceitar a recusa. "Vós dizeis, Ó


Morte, que mesmo os deuses certa vez estiveram intrigados
com esse mistério, e que ele não é fácil de ser compreendido.
Certamente, não há melhor mestre para explicá-lo do que vós -
e não existe outra dádiva igual a essa."

O deus replicou, mais uma vez tentando Nachiketa: "Pedi


filhos e netos que viverão cem anos. Pedi gado, elefantes,
cavalo, ouro. Escolhe para vós um poderoso reino. Ou, se não
puderdes imaginar algo melhor, pedi isto: não apenas doces
60
prazeres, mas também o poder, além de qualquer pensamento,
para experimentar sua doçura. Sim, verdadeiramente, farei de
vós o supremo desfrutador de todas as coisas boas. Donzelas
celestiais, de beleza excepcional, que não foram destinadas a
mortais - mesmo essas, com suas carruagens e seus
instrumentos musicais, eu vos darei, para vos servirem. Não me
peçais, porém, Ó Nachiketa, o mistério da morte!"
Nachiketa, contudo, manteve-se firme e disse: "Essas coisas
durarão somente até o dia seguinte, Ó Destruidor da Vida, e os
prazeres que elas conferem desgastam os sentidos. Ficai,
portanto, com os cavalos e as carruagens, com a dança e a
música, para vós mesmo! Como poderá desejar a riqueza, Ó
Morte, aquele que uma vez já viu a vossa face? Não, apenas a
dádiva que escolhi - somente isso eu peço. Tendo descoberto a
companhia do imperecível e do imortal, como quando vos
conheci, como poderei eu, sujeito à decadência e à morte, e
conhecendo bem a vaidade da carne - como poderei desejar
vida longa?

"Contai-me, Ó Rei, o supremo segredo com relação ao qual os


homens mantêm dúvidas. Não solicitarei qualquer outra
dádiva."

Com o que, o Rei da Morte, bem satisfeito em seu coração,


começou a ensinar a Nachiketa o segredo da imortalidade.

O Rei da Morte; O bem é uma coisa; o prazer é outra. Esses


dois, diferindo em seus propósitos, incitam à ação. Abençoados
são aqueles que escolhem o bem; aqueles que escolhem o
prazer não atingem o objetivo. Tanto o bem como o prazer se

61
apresentam ao homem. Os sábios, após examinarem ambos,
distinguem um do outro. Os sábios preferem o bem ao prazer;
os tolos, levados por desejos carnais, preferem o prazer ao
bem. Vós, Ó Nachiketa, após haverdes observado os desejos
carnais, agradáveis aos sentidos, renunciastes a todos eles. Vós
vos desviastes do caminho lamacento no qual muitos homens
se atolam. Distantes um do outro, e levando a diferentes
desígnios, encontram-se a ignorância e o conhecimento. Eu vos
considero, Ó Nachiketa, como alguém que anseia pelo
conhecimento, pois uma infinidade de objetos agradáveis
foram incapazes de tentar-vos. Vivendo no abismo da
ignorância, embora julgando-se sábios, tolos iludidos dão
voltas e voltas, cegos levados por cegos.

Ao jovem irrefletido, enganado pela vaidade das posses


terrenas, não é mostrado o caminho que leva à morada eterna.
Somente este mundo é real: não existe depois - pensando
assim, ele cai uma e outra vez, nascimento após nascimento,
dentro das minhas mandíbulas. A muitos não é concedido ouvir
sobre o Eu. Muitos, embora ouçam a respeito dele, não o
compreendem. Maravilhoso é aquele que fala a respeito do Eu.

Inteligente é aquele que aprende a respeito do Eu. Abençoado é


aquele que, tendo aprendido com um bom mestre, é capaz de
compreendê-lo. A verdade do Eu não pode ser completamente
compreendida quando ensinada por um homem ignorante, pois
as opiniões a respeito dele, não fundamentadas no
conhecimento, variam de um para outro. Mais sutil do que o
mais sutil é esse Eu, e além de toda lógica. Ensinado por um
mestre que saiba que o Eu e Brahman são um só, um homem

62
deixa para trás a vã teoria e atinge a verdade. O despertar que
conhecestes não vem do intelecto, e sim, totalmente, dos lábios
dos sábios. Bem-amado Nachiketa, abençoado, abençoado sois
vós, porque procurais o Eterno. Quisera eu ter mais discípulos
como vós!

Bem sei que os tesouros terrestres duram pouco. Pois não fiz eu
mesmo, desejando ser o Deus da Morte, o sacrifício com o
fogo? O sacrifício, porém, foi uma coisa efêmera, realizada
com objetos fugazes, e pequena é minha recompensa,
considerando que meu reino só durará por um momento.

A finalidade do desejo mundano, os objetos fulgurantes que


todos os homens almejam, os prazeres celestiais que esperam
obter através de rituais religiosos - tudo isso esteve ao vosso
alcance. Porém, a tudo isso renunciastes, com firme resolução.
O antigo, fulgurante ser, o Espírito que habita interiormente,
sutil, profundamente oculto no lótus do coração, é difícil de ser
conhecido. Porém, o homem sábio, que segue o caminho da
meditação, conhece-o, e se torna liberto tanto do prazer como
da dor.

O homem que aprendeu que o Eu está separado do corpo, dos


sentidos e da mente, e que o conheceu por completo, a alma da
verdade, o princípio sutil - tal homem verdadeiramente o
alcança, e se torna extremamente satisfeito, pois encontrou a
fonte e o local onde habita toda a felicidade. Verdadeiramente
acredito, Ó Nachiketa, que as portas da felicidade estão abertas
para vós.

63
20. A Morte na Visão Budista no Mojjhima-
Nikaya
Ó chefes de família, se alguém que marcha segundo o dhamma,
que segue uma marcha igual, desejasse [um destes estados]:
Possa eu, quando da decomposição de meu corpo após a morte,
surgir na companhia de ricos nobres, de ricos brâmanes, de
ricos chefes de família, com os devas dos quatro grandes
Regentes, com os devas dos Trinta-e-três, com os devas de
Yama, com os devas Satisfeitos, com os devas que se deleitam
em criar, com os devas que têm todo o poder sobre as criações
dos outros, com os devas do séquito de Brahmã, com os devas
do Esplendor, com os devas do Esplendor limitado, com os
devas do Esplendor infinito, com os devas Luminosos, com os
devas Belos, com os devas da Beleza limitada, com os devas da
Beleza infinita, com os devas Irradiantes, com os devas
Vehapphalã, com os devas Avihã, com os devas Novos, com os
devas Graciosos, com os devas da Boa Vista, com os devas
Antigos, com os devas que atingiram a infinidade do Éter, com
os devas que atingiram a infinidade da Consciência, com os
devas que atingiram o aniquilamento de si mesmos, com os
devas que atingiram a "não percepção nem a não-percepção" -
poderia suceder que surgisse e dessa maneira. Por quê? Porque
é um ser que caminha segundo o dhamma, que segue uma
marcha igual. Ó chefes de família, se alguém que caminha
segundo o dhamma, que segue uma marcha igual, desejasse:
"Possa eu, graças à destruição dos fluxos, tendo neste mundo e
desde agora realizado pelo meu próprio saber superior a
liberdade de coração e a liberdade de intelecto que são sem

64
fluxos, aí permanecer" - poderia acontecer que ele ai
permanecesse. Por quê? Porque é um ser que caminha segundo
o dhamma, que segue uma marcha igual.

65
21. A morte na visão de Zhuangzi

Todas as coisas brotam de germes e se tornam germes


novamente. Todas as espécies vêm de germes. Certos germes,
caindo na água, tornam-se lentilhas-d'água (...) tornam-se
líquenes (...) tornam-se um eritrônio (...) produzem o cavalo,
que produz o Homem. Quando o Homem envelhece, torna-se
germes outra vez. [...]

Quando Laozi morreu, Chin Yi foi ao funeral. Soltou três gritos


de dor e saiu.

Um discípulo dirigiu-se a ele perguntando - "Você não era


amigo de nosso Mestre?"

- "Era", replicou Chin Yi.

- "Assim sendo, acha que foi suficiente sua expressão de pesar


pela sua morte?", tornou o discípulo.

- "Acho", respondeu Chin Yi. "Estive pensando que ele era


homem (mortal), porém agora sei que não era. Quando cheguei
para os pêsames, encontrei pessoas de idade que choravam
como chorariam pelos filhos, jovens que se lastimavam como
se tivessem perdido as mães. Quando essas pessoas se
encontraram deviam ter dito palavras sobre o acontecimento e
derramado lágrimas sem intenção alguma. (Chorar assim pela
morte de alguém) é fugir dos princípios naturais (de vida e
morte) e aumentar o apego humano, esquecendo-se da fonte da
qual recebemos esta vida. Os antigos chamavam a isto "fugir à
retribuição do Céu". O mestre veio porque tinha chegado a

66
hora de nascer, partiu porque chegou o tempo de partir. Os que
aceitam o curso natural e a sequência das coisas e vivem em
obediência a eles estão acima da alegria e dos pesares. Os
antigos falavam disto como a emancipação da escravatura. Os
dedos podem não ser capazes de fornecer todo o combustível,
porém o fogo é transmitido e nós não sabemos quando
terminará."

67
Caminhos para a Sabedoria

São muitos os caminhos da sabedoria, tanto na Índia como na


China. Na primeira, a busca pela supressão do karma e pelo
alcance da libertação – moksha, nirvana, shamadhi, ou como se
preferir chamar – é a constante em todos os métodos. Este
sábio perfeito é o primeiro dos textos, que aparece no clássico
do Bhaghavad Gita (A canção do Senhor), texto que faz parte
do épico Mahabharata, mas cuja importância religiosa e
filosófica a tornaram uma obra em separado. Esta definição é
completada por dois textos upanishádicos fascinantes: no
primeiro, a discípula é uma mulher, mostrando que na Índia
védica buscadoras do caminho também; no segundo, a famosa
passagem em que Sevtaketu descobre a analogia da alma e da
semente. Por fim, a apresentação do método yóguico de
meditação de Patanjali, e do caminho budista. Diferente destes,
porém, a China consagrou a palavra Dao como a via, método,
caminho pelo qual se atinge uma realização imanente, neste
mundo, deslocando-se da visão transcendente, tal como vimos
na Índia. Para a escola de Confúcio, este Dao é a redenção pela
educação; na visão de Laozi, do desapego; para Zhuangzi, o
Dao é obscuro e atingido por experiências psicológicas e
lingüísticas avançadas; e para concluir, uma visão curiosa da
escola médico-cosmológica, da época Han, que propunha uma
caminho para a longevidade por meio de uma filosofia médica,
ainda hoje existente.

68
22. As Características do Sábio Perfeito no
Bhaghavad Gita
Disse Arjuna: ‘Qual é a descrição do homem que possui essa
sabedoria firmemente fundada, cujo ser é firme em espírito, Ó
Krishna? Como fala o homem de inteligência estabelecida,
como se senta, como anda?’

O Senhor Bendito disse: ‘Quando um homem põe de lado


todos os desejos de sua mente, Ó Arjuna, e quando seu espírito
está contente em si próprio, então se chama estável em
inteligência. Aquele cuja mente não se perturba em meio às
tristezas e está livre do desejo ansioso entre prazeres, aquele de
quem a paixão, medo e raiva se afastaram, a este se chama um
sábio de inteligência estabelecida. Aquele que não tem afeição
em qualquer lado, que não se rejubila ou detesta ao ter o bem
ou o mal, tem uma inteligência firmemente estabelecida na
sabedoria. Aquele que retira os sentidos dos objetos do sentido
em todos os lados, assim como uma tartaruga recolhe seus
membros ao casco, tem uma inteligência firmemente
estabelecida na sabedoria. Os objetos do sentido se afastam da
alma corporificada que se abstém de alimentar-se deles, mas o
gosto por eles continua. Até mesmo o gosto se afasta quando o
Supremo é visto. Embora um homem possa esforçar-se pela
perfeição e mostrar-se dono de discernimento, Ó Filho de
Kunti, seus sentidos impetuosos arrastarão sua mente à força.
Tendo posto todos os sentidos sob controle, ele deve
permanecer firme no intento Yoga em Mim, pois aquele cujos
sentidos se acham sob controle teia uma inteligência
firmemente estabelecida. Quando, em sua mente, um homem
69
presta atenção aos objetos do sentido, produz-se sua ligação
aos mesmos. Dessa ligação surge o desejo, e do desejo vem a
raiva. Da raiva nasce a confusão, e desta a perda de memória;
dessa perda de memória vem a destruição da inteligência e
desta ele perece. Um homem de mente disciplinada, no entanto,
que se move entre os objetos de sentido com os sentidos sob
controle e livre de ligação e aversão, atinge a pureza de
espírito. E nessa pureza de espírito produz-se para ele um fim
de toda tristeza; a inteligência de um homem de espírito puro
assim logo se estabelece na paz do eu. Não existe inteligência
para os incontrolados, nem tampouco para os incontrolados
existe o poder de concentração, enquanto para aquele que não
tem concentração não há paz, e como pode haver felicidade
para quem não tem paz? Quando a mente persegue .os sentidos
nômades, leva consigo a compreensão, assim como o vento
impele um navio sobre as águas. Aquele cujos sentidos estejam
retirados de seus objetos, portanto, Ó Poderoso, tem sua
inteligência firmemente estabelecida’.

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23. Uma mestra em busca da sabedoria: A
Conversa entre Yajñãvalkya e Maitreyi no
Brihadaranyaka upanishad

- Maitreyi - disse Yajñavalkya. - Eis que realmente estou quase


saindo deste estado para adiante. Olha! Vou fazer um acordo
final para ti e aquele Katyayani.
- Se hoje, senhor, toda esta terra cheia de riqueza fosse minha,
seria eu imortal por isso? - disse então Maitreyi.
- Não - respondeu Yajñavalkya. - Como a vida do rico, assim
seria a tua. Quanto à imortalidade, no entanto, não ha
esperança através da riqueza.
- Que devo fazer com aquilo pelo que eu não poderei ser
imortal? O que sabes, senhor, na verdade dize-me! - disse então
Maitreyi.
- Ah! Eis que, querida como és para nos, querido é o que dizes!
Vem, senta-te. Eu explicarei para ti. Mas enquanto eu explicar,
busca pensar em minhas palavras - disse Yajñavalkya.
Depois disso, ele afirmou:
- Na verdade, não é pelo amor do marido que ele é querido,
mas pelo amor da Alma o marido é querido.
- Na verdade, não é pelo amor da esposa que ela é querida, mas
pelo amor da Alma a esposa é querida.
- Na verdade, não é pelo amor dos filhos que eles são queridos,
mas pelo amor das Almas os filhos são queridos.
- Na verdade, não é pelo amor a riqueza que ela é querida, mas
pelo amor da Alma a riqueza é querida.
- Na verdade, não é pelo amor da bramância (qualidade de
Brahman) que ela é querida, mas pelo amor da Alma a

71
bramância é querida.
- Na verdade, não é pelo amor dos mundos que eles são
queridos, mas pelo amor da Alma os deuses são queridos.
- Na verdade, não é pelo amor dos seres que eles são queridos,
mas pelo amor da Alma os seres são queridos.
- Na verdade, não é pelo amor de tudo que tudo é querido, mas
pelo amor da Alma tudo é querido.
- Na verdade, é a Alma o que se deve ver, ouvir, o que deve ser
pensado, o que deve ser ponderado, ó Maitreyi. Na verdade,
com o ver, ouvir, pensar e entender da Alma, este mundo total
é conhecido.
- A bramância desertou aquele que não conhece a bramância
em nada mais do que a Alma.
. - Os mundos desertaram aquele que conhece os mundos em
nada mais do que a Alma.
- Os deuses desertaram aquele que conhece os deuses em nada
mais do que a Alma.
- Os seres desertaram aquele que conhece os seres em nada
mais do que a Alma.
- Tudo desertou aquele que conhece tudo em nada mais do que
a Alma.
- É como se, quando um tambor esta sendo tocado, não
pudésemos apreender os sons externos, mas apreendendo o
tambor ou o tamborileiro, o som é apreendido.
- É como se, quando uma concha está sendo soprada, não
pudéssemos apreender os sons externos, mas apreendendo o
tambor ou o tamborileiro, o som é apreendido.
- É como se, quando um alaúde esta sendo tocado, não
pudéssemos apreender os sons externos, mas apreendendo o

72
alaúde ou seu executante, o som é apreendido.
- É como se, de um fogo aceso com o combustível úmido,
nuvens de fumaça se destacassem separadamente, de modo
que, na verdade, desse grande Ser tenha sido criado aquilo que
é Rig-Veda, Yajur-Veda, Sama-Veda, Hinos dos Atharvanos e
Angiras, Lenda, Conhecimento Antigo, Ciências, Doutrinas
Místicas, Versos, Aforismos, Explicações e Comentários. Dele,
na verdade, tudo isso foi criado.
- É como se de todas as águas o ponto de reunião é o mar,
também de todos os toques o ponto de reunião é a pele,
também de todos os gostos o ponto de reunião é a língua,
também de todos os cheiros o ponto de reunião é a narina,
também de todas as formas o ponto de reunião é o olho,
também de todos os sons o ponto de reunião é o ouvido,
também de todas as intenções o ponto de reunião é a mente,
também de todos os conhecimentos o ponto de reunião é o
coração, também de todos os atos o ponto de reunião são as
mãos, também de todos os prazeres o ponto de reunião é o
órgão gerador, também de todas as evacuações o ponto de
reunião é o anus, também de todas as jornadas o ponto de
reunião são os pés, também de todos as Vedas o ponto de
reunião é a fala.
- É como se um bocado de sal posto na água dissolvendo-se
nela, não existisse mais sal algum para tirar, mas onde quer que
essa água seja levada, mostra-se salgada, e também assim, na
verdade, este grande Ser, infinito, ilimitado, é apenas uma
massa de conhecimento.
- Surgindo desses elementos, neles nós desaparecemos. Depois
da morte não há consciência. Assim eu falo.

73
E assim falou Yajñavalkya.
Em seguida falou Maitreyi:
- Nisso, realmente, tu me confundiste, senhor, ao dizer que
depois da morte não ha consciência!
Disse então Yajñavalkya:
- Na verdade, eu não confundo. Suficiente é isso, na verdade,
para o entendimento.
- Pois onde existe uma dualidade, por assim dizer, um vê o
outro, um cheira o outro, um ouve o outro, um fala com outro,
um pensa no outro, um compreende o outro. Na verdade, onde
tudo se tornou o eu nosso, onde e quem cheiraríamos? Onde e
quem vedamos? onde e quem ouviríamos? Onde e a quem
falaríamos? Onde e de quem pensaríamos? Onde e a quem
compreenderíamos? Onde iríamos compreender aquele por
quem compreendemos este Tudo? Onde se compreenderia o
compreendedor?

74
24 A busca de Svetaketu, no Chandogya
Upanishad
Quando Svetaketu tinha doze anos de idade, seu pai Uddalaka
lhe disse: "Svetaketu, agora deves ir para a escola e estudar.
Ninguém da nossa família, meu filho, é ignorante a respeito de
Brahman."
Consequentemente, Svetaketu procurou um mestre e estudou
por doze anos. Depois de decorar todos os Vedas, voltou para
casa cheio de orgulho com seu aprendizado. Seu pai,
percebendo a vaidade do jovem, disse a ele: "Svetaketu, pediste
aquele conhecimento pelo qual ouvimos o que não é audível,
pelo qual percebemos o imperceptível, pelo qual conhecemos o
incognoscível?"

"O que é esse conhecimento, senhor?", perguntou Svetaketu.


"Meu filho, do mesmo modo como ao se conhecer um monte
de barro, todas as coisas feitas de barro são conhecidas,
havendo a diferença apenas no nome e surgindo da fala, sendo
verdade que todas são de barro; do mesmo modo como ao se
conhecer uma pepita de ouro, todas as coisas feitas de ouro são
conhecidas, estando a diferença apenas no nome e surgindo da
fala, sendo verdade que todas são ouro - exatamente assim é
aquele conhecimento que, conhecendo-o, conhecemos tudo."
"Com toda a certeza, meus veneráveis mestres ignoram esse
conhecimento; pois, se o possuíssem, tê-Io-iam ensinado a
mim. Ensinai-me então, senhor, esse conhecimento."
"Assim seja", disse Uddalaka, e continuou então:
"No início havia a Existência, apenas Um, sem segundo.
Alguns dizem que no início havia apenas a não-existência, e
75
que dela nasceu o Universo. Porém, como poderia ser tal coisa?
Como poderia a existência nascer da não-existência? Não, meu
filho, no início havia apenas a existência - somente Um, sem
que houvesse outro. Ele, o Uno, pensou: Serei muitos,
expandir-me-ei. Assim, projetou o Universo a partir de si
mesmo, e entrou dentro de cada ser e de tudo. Tudo o que
existe possui o seu ser somente nele. Ele é a verdade. Ele é a
essência sutil de tudo. Ele é o Eu. E isso, Svetaketu, ISSO ÉS
TU."

"Por favor, senhor, dizei-me mais a respeito desse Eu."

“Assim seja, meu filho”:

“Assim como as abelhas fazem o mel reunindo sucos de


inúmeras plantas e árvores floríferas, e como esses sucos,
reduzidos a um único mel, não sabem de que flores vieram
individualmente, da mesma forma, meu filho, todas as
criaturas, quando estão incorporadas àquela Existência única,
seja no sono sem sonhos ou na morte, nada sabem a respeito do
seu estado passado ou presente, devido à ignorância que as
envolve - não sabem que estão fundidas com ela e que delas
vieram”.

“Seja o que for que essas criaturas sejam, um leão, ou um tigre,


ou um javali, ou um verme, ou um borrachudo, ou um
mosquito, elas assim permanecem depois que voltam do sono
sem sonhos”.

76
"Todas elas têm seu Eu apenas nele. Ele é a verdade. Ele é a
essência sutil de tudo. Ele é o Eu. E isso, Svetaketu, ISSO ÉS
TU."

"Por favor, senhor, dizei-me mais a respeito desse Eu."

“Assim seja, meu filho”:

"Os rios do Leste correm na direção do Leste, os rios do Oeste


correm na direção do Oeste, e todos vão para o mar. Eles
passam de mar para mar, as nuvens os elevam para o céu como
vapor e os mandam para baixo como chuva. E como esses rios,
quando se unem com o mar, não sabem se são este ou aquele
rio, da mesma forma todas as criaturas que mencionei, quando
voltam de Brahman, não sabem de onde vieram”.
"Todos esses seres têm seu eu somente nele. Ele é a verdade.
Ele é a essência sutil de tudo. Ele é o Eu. E isso, Svetaketu,
ISSO ÉS TU."

"Por favor, senhor, dizei-me mais a respeito desse Eu."

"Assim seja, meu filho”:

“Se alguém uma vez golpeasse a raiz desta grande árvore, ela
sangraria, mas viveria. Se golpeasse seu caule, ela sangraria,
mas viveria. Se golpeasse seu topo, ela sangraria, mas viveria.
Impregnada pelo eu vivente, esta árvore permanece firme, e se
alimenta; porém, se o Eu partisse de um dos seus galhos, esse
galho murcharia; se o abandonasse por um segundo, ele
murcharia. Se o abandonasse pela fração de um segundo, ele

77
murcharia. Se ele saísse de toda a árvore, toda a árvore
murcharia”.

“Do mesmo modo, meu filho, conhece isto: o corpo morre


quando o Eu o deixa - porém o Eu não morre”.
"Tudo o que existe tem o seu Eu apenas nele. Ele é a verdade.
Ele é a essência sutil de tudo. Ele é o Eu. E isso, Svetaketu,
ISSO ÉS TU."

"Por favor, senhor, dize-me mais a respeito desse Eu."

"Assim seja. Traze uma fruta daquela árvore Nyagrodha."

"Aqui está, senhor." "Parte-a."

"Está partida, senhor."

"O que vês?"

"Algumas sementes, extremamente pequenas, senhor."

"Parte uma delas."

"Está partida, senhor."

"O que vês?"

"Nada, senhor."

"A essência sutil tu não a vês, e nela está o todo da árvore


Nyagrodha. Acredita, meu filho, que naquilo que é a essência
sutil - todas as coisas têm sua existência. Aquilo é a verdade.
Aquilo é o Eu. E aquilo, Svetaketu, AQUILO ÉS TU!"

78
"Por favor, senhor, dizei-me mais a respeito desse Eu."

"Assim seja. Coloca este sal na água, e volta aqui amanhã pela
manhã." Svetaketu fez como lhe foi solicitado. Na manhã
seguinte, seu pai pediu-lhe para trazer o sal que havia colocado
na água. Porém, ele não pôde fazê-lo porque o sal se havia
dissolvido. Uddalaka então disse:

"Prova a água e dize-me que gosto ela tem."

"Está salgada, senhor."

"Do mesmo modo", continuou Uddalaka, "embora não vejas


Brahman neste corpo, na verdade ele está aqui. Naquilo que é a
essência sutil - todas as coisas têm sua existência. Aquilo é a
verdade. Aquilo é o Eu. E aquilo, Svetaketu, AQUILO ÉS
TU."

"Por favor, senhor, dizei-me mais a respeito desse Eu", pediu


novamente o jovem.

“Assim seja, meu filho”:

"Do mesmo modo como um homem com os olhos vendados


pode ser levado para longe e abandonado num lugar estranho,
e, tendo sido tratado assim, pode voltar-se para todos os lados e
gritar para que alguém, remova a sua venda e lhe mostre o
caminho de casa; e alguém, atendendo ao seu chamado, poderá
soltar a sua venda e dar-lhe conforto; e, depois de caminhar de
povoado em povoado, perguntando seu caminho à medida que
avança, ele finalmente chega à sua casa - assim um homem que

79
encontra um mestre iluminado obtém o verdadeiro
conhecimento”.

"Aquele que é a essência sutil - nele todos os seres têm sua


existência. Ele é a verdade. Ele é o Eu. E Aquele, O Svetaketu,
AQUELE ÉS TU."

"Por favor, senhor, dizei-me mais a respeito desse Eu."

“Assim seja, meu filho”:

“Quando um homem está fatalmente doente, seus parentes se


reúnem em volta dele e perguntam: ‘Tu me conheces? Tu me
conheces?’ Enquanto sua fala não estiver incorporada à sua
mente, sua mente ao seu alento, seu alento ao seu calor vital,
seu calor vital ao Ser Supremo, ele os conhecerá. Porém,
quando sua fala estiver incorporada à sua mente, sua mente ao
seu alento, seu alento ao seu calor vital, seu calor vital ao Ser
Supremo, então ele não os conhecerá”. "Aquele que é a
essência sutil - nele todos os seres têm sua existência. Ele é a
verdade. Ele é o Eu. E Aquele, O Svetaketu, AQUELE ÉS
TU."

80
25. A sabedoria nos Yogas sutras de Patanjali -
Formas de Meditação e de Samadhi
A enfermidade, a preguiça mental, a dúvida, a falta de
entusiasmo, a letargia, a tendência para os prazeres dos
sentidos, a falsa percepção, a impossibilidade de atingir um
perfeito estado de concentração e a facilidade de perdê-lo, uma
vez atingido, são as distrações que obstruem.
O sofrimento, a angústia mental, o tremor do corpo, a
respiração irregular, acompanham a não-retenção de um
perfeito estado de concentração. Para corrigir este estado (é
preciso) que o sujeito se exercite. Na amizade, na piedade, no
contentamento e na indiferença os quais, sendo concebidos
com relação a sujeitos felizes e infelizes, bons e maus,
respectivamente, pacificam a Chitta.

Em soltar e reter a respiração.


Nessas formas de concentração que provocam extraordinárias
percepções nos sentidos e que são a causa de perseverança da
mente.
Também na meditação da Luz Refulgente, que está acima de
toda tristeza.
Também na meditação sobre o coração que renunciou a todo
apego aos objetos dos sentidos.
Também na meditação sobre o conhecimento que vem a nós no
sono.
Também na meditação sobre qualquer coisa que nos pareça
boa.
A mente do Yogui que assim meditar passa, sem impedimento,
do atômico para o infinito.
81
O Yogui que, dessa maneira, tiver tornado impotentes os
Vrittis, que os tiver (controlado), alcança, tanto no receptáculo,
instrumento, no receber, como no recebido (o Ser, a mente, os
objetos externos), completa concentração e igualdade, como o
cristal (diante de objetos de diferentes cores).
O som, o sentido e o conhecimento resultantes, unidos,
constituem o chamado Samadhi “com-interrogação".
O Samadhi denominado “sem-interrogação" vem quando a
memória é purificada ou esvaziada de qualidades e exprime
apenas o sentido do objeto meditado.
Por esse processo também se explicam (as concentrações) com
discriminação e sem discriminação, cujos objetos são mais
sutis.
Os objetos mais sutis têm um termo com Pradhana.
Essas concentrações têm semente.
Uma vez purificada a concentração sem discriminação, a Chitta
está firmemente fixada.
O conhecimento disto chama-se “cheio de verdade".
O conhecimento ganho através do testemunho e da inferência
refere-se a objetos comuns. O que decorre do Samadhi e que
acabamos de mencionar, é de qualidade muito mais alta e pode
penetrar onde o testemunho e a inferência não podem.
A impressão que resulta do Samadhi obstrui todas as demais
impressões.
O Samadhi “sem-semente" se obtém restringindo até mesmo
(essa impressão que obstrui todas as demais impressões).

82
26. O Caminho Budista, descrito no Samyutta
Nikaya
Supõe agora, Tissa, dois homens, um ignorante do Caminho,
outro versado no Caminho. Aquele que é ignorante pergunta
seu caminho àquele que é versado no caminho. O outro
responde: "Sim, vós estais no caminho, senhor. Quando vós o
tiverdes seguido por algum tempo, vereis que ele se divide em
duas veredas. Deixai aquela da esquerda, tomai aquela da
direita. Continuai a caminhar um pouco e vereis uma espessa
floresta. Um pouco mais longe vereis um grande pântano. Um
pouco mais longe vereis um precipício escarpado. Um pouco
mais longe vereis uma deliciosa planície de solo plano." É uma
parábola, Tissa, para me fazer compreender, e eis dela a
significação. O homem ignorante do caminho, é a multidão. O
homem versado no caminho é o Descobridor da Verdade, o
Perfeito, o totalmente Desperto. A divisão em duas veredas, é o
estado de hesitação. O caminho da esquerda, é a Óctupla via
errônea: a da opinião errônea, dos conceitos errôneos, das
palavras errôneas, dos atos errôneos, da conduta errônea, dos
esforços errôneos, da vigilância errônea, da contemplação
errônea. A vereda da direita é o símbolo do Óctuplo caminho
ariano, o da opinião correta, etc... A floresta espessa, Tissa,
designa a ignorância. O grande pântano designa os prazeres
sensuais. O precipício escarpado é sinônimo da turbulência, da
cólera. A deliciosa planície de solo plano designa o nirvana. Sê
reconfortado, Tissa. Eu te exortarei, te ajudarei, te instruirei.

83
27. A redenção pelo estudo, no Zhong Yong de
Confúcio e Zisi
Aquilo que o céu outorgou se chama Natureza. A harmonia
com essa natureza chama-se Caminho. A ordenação desse
caminho chama-se Educação.

Nem por um instante se pode abandonar o caminho. Se pudesse


ser abandonado, não seria o caminho. A esse respeito, o
homem não superior, para ser prudente, não espera até ver as
coisas nem para ser apreensivo espera até ouvir as coisas.
Nada há mais visível do que o secreto. Nada mais manifesto do
que o minúsculo. Portanto, o homem superior cuida de si
mesmo quando está sozinho.

Quando não há agitações de prazer, de cólera, de pesar ou de


alegria, pode-se dizer que a mente se encontra em estado de
Equilíbrio. Quando esses sentimentos se agitam e atuam em
seu devido grau, produz-se o que se pode chamar estado de
Harmonia. Esse Equilíbrio é a grande base da qual procedem
todos os atos humanos no mundo e essa Harmonia é o caminho
universal que todos eles devem seguir.

Se existem em sua perfeição esses estados de equilíbrio e da


harmonia, prevalecerá uma ordem feliz no Céu e na Terra e
todas as coisas serão estimuladas e florescerão.

“Que o homem superior sintetize o sistema do Meio, deve-se


ao fato de ser um homem superior e assim manter sempre o
Meio. Que o homem inferior atue contra o sistema do Meio,

84
deve-se ao fato de ser ele um homem inferior e não ter
cautela”.

Disse o Mestre: “Perfeita é a virtude que está de acordo com o


Meio. Entre o povo, raros foram aqueles que puderam praticá-
la!"

85
28. O dao dos daoístas, de Laozi

Procura atingir a suprema Humildade


Sustenta firme a base da Quietude.
Miríades de coisas se formam e se erguem para a atividade
mas eu as assisti tombarem de costas em repouso.
Assim como a vegetação que cresce luxuriante
mas retorna às raízes do chão onde nasceu.
Regressar às próprias origens, eis o que é o Repouso.
É o que se chama retornar ao seu próprio Destino.
Quem regressa à sua finalidade encontra a Eterna Lei
Conhecer a Lei Eterna é o Esclarecimento.
Desconhecer a Lei Eterna é expor-se ao fracasso
Aquele que conhece a Lei Eterna é tolerante:
sendo tolerante é imparcial;
sendo imparcial é nobre;
sendo nobre está de acordo com a Natureza;
estando de acordo com a Natureza está de acordo com dao;
estando de acordo com dao é eterno
e sua vida inteira está preservada de danos.

86
29. O dao obscuro de Zhuangzi

Como dao pode ser tão obscuro de modo que precisa haver a
distinção do verdadeiro e do falso? E como a palavra pode ser
tão obscura de modo que precisa haver uma distinção entre o
direito e o errado? Onde você pode ir e achar que dao não
existe? Onde você pode ir e achar que as palavras não podem
ser provadas? Dao não pode ser apreendido perfeitamente por
nossa compreensão inadequada, e as palavras não se
patenteiam perfeitamente devido às expressões floreadas. Daí
as afirmativas e negativas das escolas de Confúcio e de Mozi,
cada qual negando o que a outra afirma e afirmando o que a
outra nega. Cada qual negando o que a outra afirma e
afirmando o que a outra nega, só nos pode redundar em
confusão.

Não há nada que não seja "isto"; não há nada que não seja
"aquilo". O que não pode ser visto por "aquilo", (a outra
pessoa) pode ser compreendido por mim. Daí eu digo, "isto"
emana "daquilo"; "aquilo" também deriva "disto". Esta é a
teoria da interdependência "disto" e "daquilo" (relatividade dos
padrões). Não obstante, a vida decorre da morte, e vice-versa.
A possibilidade decorre da impossibilidade, e vice-versa. A
afirmação baseia-se na negação, e vice-versa. Sendo esse o
caso, o verdadeiro sábio rejeita todas as distinções e refugia-se
no Céu (Natureza). Pois alguém pode baseá-las sobre "isto",
embora "isto" seja também "aquilo" e "aquilo" seja também
"isto". "Isto", outrossim, tem seus "direitos" e "errados", e
"aquilo" também tem seus "direitos" e "errados". Então existe
realmente, ou não, a distinção entre "isto" e "aquilo"? Quando
87
"isto" (subjetivo) e "aquilo" (objetivo) são ambos sem seus
correlatos, esse é o verdadeiro "Eixo de dao". E quando esse
Eixo passa através o centro para o qual o Infinito converge, as
afirmações e as negações confundem-se igualmente no infinito
Único. Daí se diz que não há nada como usar a Luz. Tomar um
dedo como prova de que um dedo não é um dedo não é tão
bom como tomar qualquer coisa que não seja um dedo para
provar que um dedo não e um dedo. Tomar um cavalo como
prova de que um cavalo não é um cavalo não é tão bom como
tomar algo que não seja um cavalo para demonstrar que um
cavalo não e um cavalo. O mesmo se dá com o universo que
não é nem dedo nem cavalo. O possível é possível: o
impossível é impossível. Dao trabalha e o resultado obtido é o
seguinte; as coisas recebem nomes e afirma-se serem o que
são. Por que são assim? Porque se afirma serem como são! Por
que não são de outro modo? Afirma-se não serem assim! As
coisas são assim por si mesmas e têm possibilidades por si
próprias. Não existe nada que não seja de certo modo e não
existe nada que não possa ser de certo modo. Por conseguinte
tome, por exemplo, um galho novo e uma coluna, ou uma
pessoa feia e uma grande beleza e tudo o que for estranho e
monstruoso. Tudo isso é igualado por dao. A divisão é o
mesmo que criação; a criação é o mesmo que destruição. Não
há uma criação ou uma destruição, porque essas condições são
novamente igualadas numa Única. Somente os verdadeiros
sábios compreendem esse principio de igualar todas as coisas
numa Única. Descartam-se das distinções e se refugiam nas
coisas comuns e ordinárias. As coisas comuns e ordinárias
servem a certas funções e, portanto, conservam a integridade

88
da natureza. Partindo dessa integridade, uma pessoa
compreende, e da compreensão chega a dao. Aí pára. Parar sem
saber como parar - eis dao.

89
30. O Dao da saúde do Neijing - Tratado sobre a
Verdade Natural nos Tempos Antigos
O Imperador Amarelo foi dotado de talentos divinos, nos
tempos antigos em que nasceu: na primeira infância já sabia
falar, muito jovem ainda era rápido de entendimento e
sagacidade, em adulto foi sincero e compreensivo e quando
atingiu a perfeição ascendeu ao Céu. Uma vez, o Imperador
Amarelo dirigiu-se a Tien Shi, o mestre divinamente inspirado,
nos seguintes termos:

- Ouvi dizer que nos tempos antigos as pessoas viviam mais de


um século e mesmo assim permaneciam ativas e não se
tornavam decrépitas nas suas atividades. Hoje em dia, porém,
as pessoas só vivem metade desses anos e mesmo assim
tomam-se decrépitas e débeis. É por que o Mundo muda de
geração para geração? Ou será por que a espécie humana
negligencia as leis da Natureza?

E Chi Po respondeu:

- Antigamente, essas pessoas que compreendiam o Dao [o


caminho do autodesenvolvimento] moldavam-se de acordo
com o Yin e o Yang [os dois princípios da Natureza] e viviam
em harmonia com as artes da adivinhação. Havia temperança
no comer e no beber. As suas horas de levantar e recolher eram
regulares e não desordenadas e ao acaso. Graças a isso, os
antigos conservavam os seus corpos unidos às suas almas, a
fim de cumprirem por completo o período de vida que lhes
estava destinado, contando cem anos antes do passamento.

90
Hoje em dia, as pessoas não são assim; utilizam o vinho como
bebida e adotam a temeridade e a negligência como
comportamento habitual. Entram na câmara do amor em estado
de embriaguez; as paixões exaurem-lhes as forças vitais; o
ardor dos desejos malbarata-lhes a verdadeira essência; não são
hábeis na regulação da sua vitalidade. Devotam toda a atenção
ao divertimento dos seus espíritos, desviando-se assim das
alegrias da longa vida. Levantam-se e deitam-se sem
regularidade. Por tais razões só chegam à metade de cem anos
e degeneram.

Na Antiguidade mais remota, os ensinamentos dos sábios eram


seguidos pelos que se encontravam abaixo deles. Os sábios
diziam que a fraqueza, as influências insalubres e os ventos
nocivos deviam ser evitados em ocasiões específicas. Sentiam-
se tranquilamente satisfeitos no nada e a verdadeira força vital
acompanhava-os sempre; preservavam dentro de si o vigor
vital primitivo. Assim, como podia a doença acometê-los?
Reprimiam a vontade e reduziam os desejos; os seus corações
estavam em paz e sem qualquer medo, os seus corpos
labutavam e, contudo, não sentiam fadiga. O seu espírito
respeitava a harmonia e a obediência, estava tudo de acordo
com os seus desejos e conseguiam o que quer que desejassem.
Achavam excelente qualquer espécie de comida e qualquer
espécie de vestuário os satisfazia. Sentiam-se felizes em todas
as circunstâncias. Para eles, não importava que um homem
ocupasse na vida uma posição elevada ou inferior. A homens
assim se pode chamar puros de coração. Não há desejo capaz
de tentar os olhos destas pessoas puras, e a sua mente não pode

91
ser desencaminhada pelos excessos nem pelo mal.
Numa sociedade assim, quer os homens sejam sensatos, quer
idiotas; quer virtuosos, quer maus, não têm medo de nada,
estão em harmonia com o dao, o Caminho Certo. Por isso, os
antigos viviam mais de um século e permaneciam ativos e sem
se tomarem decrépitos, porque a sua virtude era perfeita e nada
jamais a punha em perigo.

92
Vivendo em Sociedade

São múltiplas as facetas que dominam o tema Sociedade. Nesta


recolha de textos, o papel das castas é dominante nos assuntos
relacionados à sociedade. Elas são o ponto de inflexão central
entre religião, cultura e cotidiano; de sua afirmação, seja no
texto de Manu ou no Mahabharata, ou de sua negação, na visão
budista, nasce o confronto destas duas visões filosóficas tão
caras a esta civilização. Seguem-se dois textos mostrando o que
vêm a ser o papel de um chefe de família na índia, tanto na
visão hindu quanto na visão budista. Junto a eles, os deveres de
uma mulher, proposto no Manavadharmashastra, dá nos uma
idéia da evolução do papel feminino nesta sociedade nos
tempos antigos. Já a China tem seu cotidiano e a sociedade
narrados na visão dos ritos, dos costumes, elaboradamente
preservados por Confúcio e sua escola. Distantes de uma
possível visão religiosa – ou se esta está presente, o faz de um
modo velado, quase inacessível, senão na ocasião dos
sacrifícios reais e aos ancestrais, ou nas cerimônias de luto - , a
vida chinesa nos é contada por poemas e prosas destinadas
especificamente a este fim. Inicialmente, vemos uma ode
destinada ao rei lavrador, um ato simbólico que o soberano
realizava no início do período da primavera, sulcando a terra
para dar início aos trabalhos de plantio; depois, um poema de
uma mulher divorciada, apresentando as tensões de uma
sociedade que se pretendia cada vez mais misógina; os
lamentos da miséria reinante por um funcionário local; e os
cantares que mostram como se dava o trabalho nos campos ao

93
longo do ano. Numa mudança de foco, Confúcio nos apresenta
uma visão rápida sobe outros povos sinizados, a compreensão
da diferença; depois, os deveres de obrigação universal – ou
melhor, social. Zhuangzi nos mostra uma visão da sociedade
como um condicionamento problemático, uma perda da
simplicidade original; já o Neijing nos proporciona uma visão
médica da civilização antiga, por meio de uma filosofia da
saúde, narrando o ciclo da vida humana. Para finalizar, mais
alguns textos sobre o cotidiano chinês antigo: as queixas contra
um esposo violento, uma declaração real contra a embriaguez,
outra contra o luxo, um texto do Liji mostrando como se sabe
se um povo é evoluído ou não; como surgiu a civilização (o
conceito de Li, ou cultura) e um texto do Daxue (Grande
Estudo), sobre o papel do indivíduo e do cultivo interior como
fundamento da convivência social e humana.

94
31. A Criação do Mundo e a origem das leis e das
castas no Manavadharmashastra
Este universo existia na forma de Treva, impercebido,
destituído de marcas distintas, inatingível pelo raciocínio,
incognoscível, inteiramente imerso, por assim dizer, em sono
profundo. Foi quando o Auto-existente divino, ele próprio
indiscernível, mas tomando tudo isso, os grandes Elementos e
o resto, discernível, surgiu com poder criador irresistível,
desfazendo a treva.

Aquele que só pode ser percebido pelo órgão interno, que é


sutil, indiscernível e eterno, que contém todos os seres criados
e é inconcebível, brilhou por sua própria vontade.
Desejando produziu seres de muitas espécies com seu próprio
corpo, ele primeiramente criou as águas com um pensamento, e
pôs sua semente nas mesmas.

Essa semente se tomou um ovo dourado, em brilho igual ao


sol; naquele ovo ele próprio nasceu como um brâmane, o
progenitor de todo o mundo.

Dessa primeira causa, que é indiscernível, eterna e tanto real


quanto irreal, produziu-se aquele homem que é famoso neste
mundo sob o nome de Brahman.

O divino residiu naquele ovo durante todo um ano, e depois ele


próprio, por seu pensamento apenas, dividiu-o em duas
metades;

95
E dessas duas metades ele formou céu e terra, entre elas a
esfera média, os oito pontos do horizonte e a morada eterna das
águas.

Mas no início ele atribuiu seus diversos nomes, atos e


condições a todos os seres criados, de acordo com as palavras
dos Vedas.

O curso de ação que o Senhor de início indicou a cada tipo de


seres, só esse fora adotado em cada criação posterior.
O que ele indicara a cada qual na primeira criação, nocividade
ou inofensividade, gentileza ou ferocidade, virtude ou pecado,
verdade ou falsidade, mais tarde se prendeu espontaneamente a
cada um.

Como a alteração das estações, cada qual por sua própria conta
toma suas marcas distintivas, do mesmo modo os seres
corporais em novos nascimentos retomavam seu curso de ação
indicado.

As diversas condições neste círculo de nascimentos e mortes


sempre terrível e em constante transformação, a que os seres
criados estão sujeitos, acham-se declaradas, para começar, com
a de Brahman, e para terminar com a das criaturas imovíveis.
Quando aquele cujo poder é incompreensível produzira assim o
universo, desapareceu em si próprio, suprimindo repetidamente
um período por meio de outro.

Quando esse ser divino acorda, o mundo acorda; quando dorme


tranquilamente, o universo mergulha no sono. Mas quando ele
repousa em sono calmo, os seres corporais cuja natureza é a

96
ação desistem de seus atos e a inerte se toma inerte.
Quando se acham absorvidos todos de uma vez naquela grande
alma, aquele que é a alma de todos os seres dorme docemente,
livre de todas as preocupações e ocupações.

Quando essa alma entra na treva, permanece por muito tempo


unida aos órgãos da sensação, mas não executa suas funções,
deixando então o arcabouço corpóreo.

Assim ele, o imperecível, despertando e dormindo


alternadamente, revive e destrói sem cessar toda essa criação
móvel e imóvel.

Mas ouçam agora a breve descrição da duração de uma noite e


um dia de Brahman e das diversas idades do mundo, de acordo
com sua ordem.

Eles declaram que a idade de Krita consiste em quatro mil anos


dos deuses; o crepúsculo antes dela consiste em outras tantas
centenas, e o crepúsculo seguinte no mesmo número.
Nas outras três idades, com seus crepúsculos antecedendo e
seguindo, os milhares e centenas são diminuídos de um em
cada.

Esses doze mil anos que foram assim mencionados como o


total de quatro idades humanas são chamados uma idade dos
deuses.

Mas saibam que a soma de mil idades dos deuses forma um dia
de Brahman, e que sua noite tem a mesma duração.
Somente aqueles, que sabem que o dia santo de Brahman na

97
verdade termina depois de completarem-se mil idades dos
deuses e que sua noite dura outro tanto, são os homens
conhecedores da duração dos dias e noites.
Ao final daquele dia e noite, aquele que dormia desperta e,
depois disso, cria a mente, que é tanto real quanto irreal.
A mente, impelida pelo desejo de Brahman de criar, executa o
trabalho da criação modificando-se, com o que o éter é
produzido; eles declaram que o som é a qualidade deste último.
Mas do éter, modificando a si próprio, surge o vento puro e
poderoso, veículo de todos os perfumes; a esse é atribuída a
qualidade do tato.

Em seguida ao vento, que se modifica sozinho, sai a luz


brilhante, que ilumina e desfaz a treva; a ela se atribui a
qualidade da cor;

E da luz, modificando-se, produz a água, que tem a qualidade


do paladar, e da água a terra que tem a qualidade do olfato; tal
é a criação no início.

A idade mencionada antes, a dos deuses, ou doze mil de seus


anos, multiplicada por setenta e um, constitui o que aqui se
chama o Período de um Manu.

Os Períodos de um Manu, criações e destruições do mundo, são


inúmeros; divertindo-se, por assim dizer, Brama repete isso
infinitamente.

Na idade de Krita, Dharma tem quatro pés e é inteiro, e assim


também é a Verdade; nem tampouco advém qualquer benefício
aos homens por andarem eretos.

98
Nas três outras idades, devido a ganhos injustos, Dharma é
sucessivamente privado de um pé, e pela existência de roubo,
falsidade e fraude o mérito ganho pelos homens é diminuído
numa quarta parte em cada um.

Os homens acham-se livres de doença, atingem todos os seus


objetivos e vivem quatrocentos anos na idade de Krita, mas na
idade de Treta e em cada qual das subsequentes sua vida é
encurtada de uma quarta parte.

A vida dos mortais, mencionada nos Vedas, os resultados


desejados dos ritos sacrificais e o poder sobrenatural dos
espíritos incorporados são frutos proporcionados entre os
homens, de acordo com o caráter da idade. Um conjunto de
deveres é prescrito aos homens na idade de Krita, deveres
diferentes na idade de Treta e na de Dvapara, e outra vez novo
conjunto na idade de Kali, em proporção na qual tais idades
diminuem em duração. Na idade de Krita a virtude principal é
afirmada como sendo a execução de austeridades, na de Treta o
conhecimento divino, na de Dvapara a realização de sacrifícios,
na de Kali somente a liberalidade. Mas para proteger este
universo Ele, o mais resplendente de todos, atribui deveres e
ocupações separados aqueles que saíram de sua boca, braços,
coxas e pés.

Aos brâmanes, ele atribuiu o ensino e estudo dos Vedas,


sacrificando em seu próprio benefício e no de outros, dando e
aceitando esmolas.

99
Aos xatrias, ele ordenou proteger o povo, dar presentes,
oferecer sacrifícios, estudar os Vedas e abster-se de se prender
a prazeres sensuais;

Aos vaixás, mandou tratar do gado, dar presentes, oferecer


sacrifícios, estudar os Vedas, comerciar, emprestar dinheiro e
cultivar a terra.

Apenas uma ocupação o senhor prescreveu aos sudras, a de


servir humildemente aquelas outras três castas.

Nesta obra a lei sagrada foi inteiramente declarada, bem como


as boas e más qualidades dos atos humanos e a regra imemorial
de conduta, a ser seguida por todas as quatro castas.
A regra de conduta é lei transcendente, quer ensinada nos
textos revelados ou na tradição sagrada; daí, um homem
nascido duas vezes que possuir consideração para consigo
próprio dever sempre ter o cuidado de segui-la.
A criação do universo, a regra dos sacramentos, os
regulamentos do estudantes e o comportamento quanto aos
Gurus, a regra mais excelente de banhar-se quando de volta da
casa do mestre.

A lei do matrimônio e a descrição dos diversos ritos


matrimoniais, os regulamentos para os grandes sacrifícios e a
regra eterna dos sacrifícios funerais.

A descrição dos modos de ganhar a subsistência e os deveres


de um snataka, as regras a respeito de alimento legal é
proibido, a purificação de homens e coisas.

100
As leis a respeito de mulheres, a lei de eremitas, a maneira de
conquistar a emancipação final e de renunciar ao mundo, todo
o dever de um rei e a maneira de decidir questões judiciais.

As regras para o exame das testemunhas, as leis a respeito de


marido e mulher, a lei de herança e divisão, a lei acerca do jogo
e a retirada de homens nocivos como espinhos.

A lei sobre o comportamento de vaixas e sudras, a origem das


castas mistas, a lei para todas as castas em tempos de
dificuldade e a lei de penitências.

O curso triplo de transmigrações, o resultado de boas e mas


ações, a maneira de atingir a ventura suprema e o exame das
boas e mas qualidades das ações.

As leis primevas de países, castas, famílias, e as regras a


respeito dos hereges e companhias de comerciantes e coisas
afins - tudo isso Manu declarou nesses Institutos.

101
32. Sobre a Origem e Valor das Quatro Castas
no Mahabharata
Brama criou assim anteriormente os Prajapatis bramânicos,
penetrados por sua própria energia e em esplendor igualando o
sol e o fogo. O senhor formou então a verdade, correção, fervor
austero e os Vedas eternos, a prática virtuosa e a pureza para se
atingir o céu. Formou também os deuses, demônios e homens,
brâmanes, xátrias, vaixás e sudras, bem como todas as outras
classes de seres. A cor dos brâmanes era branca, a dos xátrias
vermelha, a dos vaixás amarela e a dos sudras negra. Se a casta
das quatro classes for distinguida por sua cor, então se mostra
observável uma confusão de todas as castas. O desejo, a raiva,
o medo, a cupidez, a aflição, a apreensão, a fome, a fadiga,
atingem-nos todos; pelo que se discrimina a casta, então? O
suor, urina, excremento, fleuma, bílis e sangue são comuns a
todos; todos têm corpos que degeneram; pelo que se discrimina
a casta, então? Há inúmeras espécies de coisas que se movem e
são estacionárias; como se pode determinar a classe desses
diversos objetos?

Não há diferença de castas; tendo sido criado inteiramente


bramânico de inicio por Brama, em seguida este mundo se
separou em castas devido às obras. Aqueles brâmanes que
gostavam o prazer sensual, ferozes, irascíveis, inclinados à
violência, que tinham abandonado seu dever e apresentavam
membros vermelhos, caíram na condição de xátrias. Aqueles
brâmanes que extraíam sua subsistência do gado, eram
amarelos, subsistiam pela agricultura e negligenciavam seus
deveres entraram no estado de vaixás. Aqueles brâmanes que
102
gostavam da maldade e falsidade, eram cobiçosos e viviam de
todos os tipos de trabalho, eram negros e tinham abandonado a
pureza, mergulharam na condição de sudras. Estando separados
uns dos outros por essas obras, os brâmanes se dividiram em
castas diferentes. O dever e os ritos de sacrifício nem sempre
foram proibidos a qualquer um deles. São estas as quatro
classes para quem o Sarasvati bramânico foi destinado de
início por Brama, mas que, pela sua cupidez, caíram na
ignorância. Os brâmanes vivem de acordo com as prescrições
dos Vedas, e enquanto se atêm a eles e às observâncias e
cerimônias, seu fervor austero não desaparece. E a ciência
sagrada foi criada como a coisa suprema - aqueles que a
ignoram não são homens nascidos duas vezes. Destes, há
diversas outras classes em lugares diferentes, que perderam
todo o conhecimento sagrado e profano e praticam quaisquer
observâncias que lhes agradem. E diferentes espécies de
criaturas com os ritos purificadores de brâmanes, e discernindo
os seus próprios deveres, são criados por Rishis diferentes,
através de seu próprio fervor austero. Esta criação, nascida do
deus primaz, tendo sua raiz em brahman, indegenerável,
imperecível, chama-se a criação nascida da mente, estando
devotada às prescrições do dever.

Que é aquilo, em virtude do que um homem é um brâmane, um


xátria, um vaixá ou um sudra? Dize-me, ó eloqüentíssimo
Rishi. Aquele que é puro, consagrado às cerimônias natais e
outras, que estudou completamente os Vedas, vive na prática
das seis cerimônias, executa perfeitamente os ritos da
purificação, come os restos das oblações, prende-se a seu

103
mestre religioso, é constante nas observâncias religiosas e
devotado à verdade, chama-se um brâmane. Aquele em quem
se vêem a verdade, liberalidade, inofensividade, modéstia,
compaixão e fervor austero, é declarado um brâmane. Aquele
que pratica o dever advindo do cargo de rei, dedica-se ao
estudo dos Vedas e tem prazer em dar e receber, a este se
chama um xátria. Aquele que prontamente se ocupa com gado,
é dedicado à agricultura e à aquisição e se mostra perfeito no
estudo dos Vedas, denomina-se um vaixa. Aquele que
habitualmente se inclina a todos os tipos de alimento, executa
todos os tipos de trabalho, não é limpo, abandonou os Vedas e
não pratica as observâncias puras, é tradicionalmente chamado
um sudra. E isto que afirmei é a marca de um sudra, e não se
encontra em um brâmane; um sudra assim continuará a ser um
sudra, enquanto o brâmane que agir assim não será um
brâmane.

104
33. A visão das castas para os budistas no
Mojjhima-Nikaya
Eis, senhor, as quatro castas: a dos nobres, a dos pobres, a dos
comerciantes, e a dos trabalhadores. Entre elas, duas têm a
supremacia: a dos nobres e a dos sacerdotes: isto pelo modo
com que se dirigem a seus membros, com que os saúda
levantando-se e juntando as mãos em homenagem, e com que
são tratados. Há cinco qualidades que devem ser procuradas: a
fé, a saúde, a sinceridade, a energia, a sabedoria. As quatro
castas podem ser dotadas das cinco qualidades que se deve
procurar e recebem a bênção e a felicidade por muito tempo. E
eu não digo que em seu caso que haja uma distinção em seu
esforço. É como se se tivesse um par de elefantes
domesticados, cavalos ou bois bem domesticados, exercitados;
e um outro par não domesticado e não exercitado. O primeiro
par seria contado como domesticado, atingiria o valor dos
animais domesticados; o segundo, não. Da mesma maneira não
é possível que o que se adquire pela fé, a saúde, a sinceridade,
a ausência de velhacaria possa se obter onde há falta de fé, a
má saúde, o engano, a velhacaria, a inércia, a sabedoria
limitada. No caso das quatro castas se [seus membros] são
dotados de cinco qualidades que se deve procurar, se eles
fazem os esforços devidos, eu digo que neste caso não há
diferença entre libertação e libertação. É como se quatro
homens, um trazendo lenha bem seca, outro uma acha seca da
árvore sãla, o terceiro uma acha seca de mangueira, o quarto
uma acha seca de figueira, fizessem cada um fogo que
produzisse calor. Haveria uma diferença entre os fogos

105
produzidos por estas diferentes madeiras quanto à sua chama,
sua cor, ou seu clarão? O mesmo sucede com o calor aceso
pela energia e produzido pelo esforço. Eu não digo que haja
diferença entre libertação e libertação.

106
34. Regras para um Chefe de Família, no
Manavadharmashastra
Tendo morado com um mestre durante a quarta parte da vida
de um homem, um brâmane deve viver a segunda parte de sua
existência em sua casa, depois de ter-se esposado.
Um brâmane deve buscar um meio de subsistência que não
cause dor aos outros, ou a menor possível, e viver disso, a não
ser em tempos difíceis.

Para o fito de ganhar sua subsistência, seja-lhe permitido


acumular propriedade seguindo essas ocupações irrepreensíveis
prescritas para sua casta, sem fatigar demais seu corpo.
Que nunca siga os caminhos do mundo, para subsistir; que viva
a vida pura, correta e honesta de um brâmane.
Quem desejar a felicidade deverá esforçar-se por ter uma
disposição perfeitamente satisfeita e controlar-se, pois a
felicidade tem o contentamento por raiz, sendo a indisposição a
raiz da infelicidade.

Seja ele rico ou mesmo na dificuldade, que não procure a


riqueza em atividades pelas quais os homens se dividem, nem
por ocupações proibidas, nem tampouco aceite presentes de
qualquer pessoa, seja lá quem for.

Que nunca se prenda, por desejo de desfrute, a qualquer prazer


sensual, e que elimine cuidadosamente uma ligação excessiva
ao mesmo, refletindo em seu coração sobre sua falta de valor.
Que evite todos os meios de adquirir riqueza que impeçam o
estudo dos Vedas; que se mantenha de qualquer maneira, mas

107
estude, porque essa devoção ao estudo dos Vedas garante a
realização de seus objetivos.

Que ande aqui na terra, trazendo suas roupas, fala e


pensamentos em conformidade com sua idade, ocupação,
riqueza, sabedoria sagrada e sua raça.

108
35. Deveres das Mulheres no
Manavadharmashastra
Por uma menina, uma moça ou mesmo uma mulher idosa, nada
deve ser feito independentemente, nem mesmo em sua própria
casa.

Na infância, a menina deve estar submetida a seu pai, na


mocidade a seu marido; quando seu senhor morre, a seus
filhos; uma mulher jamais deve ser independente.
Ela não deve buscar separar-se de seu pai, marido ou filhos;
deixando-os, ela tornaria tanto sua própria família quanto a de
seu esposo dignas de desprezo.

Ela deve ser sempre alegre, inteligente na direção das questões


domésticas, cuidadosa com seus utensílios e econômica nas
despesas.

Aquele a quem seu pai possa dá-la, ou seu irmão com


permissão do pai, será obedecido por ela enquanto viver, e
quando morrer, ela não devera insultar sua memória.
Com o fito de trazer boa sorte às noivas, a recitação de textos
bendizentes e o sacrifício ao Senhor das criaturas são usados
nos casamentos, mas o matrimônio pelo pai ou guardião é a
causa do domínio do marido sobre sua esposa.

O marido que a esposou com textos sagrados sempre dá


felicidade à esposa, tanto na estação quanto fora dela, neste
mundo e no seguinte.

109
Embora destituído de virtudes, ou buscando o prazer noutro
lugar, ou despido de boas qualidades, ainda assim um marido
deve ser constantemente adorado como um deus por uma
esposa fiel.

Nenhum sacrifício, voto ou jejum deve ser executado por


mulheres separadas de seus maridos; se uma esposa obedece a
seu marido, será por esse motivo apenas exaltada no céu.
Uma esposa fiel, que deseja morar com seu marido após a
morte, jamais deverá fazer qualquer coisa que desagrade aquele
que tomou sua mão, esteja morto ou vivo.

Se quiser, ela poderá emagrecer o corpo vivendo de flores,


raízes e frutas, mas jamais deverá mencionar o nome de outro
homem depois de ter morrido seu marido. Até a morte deve ser
paciente quanto as dificuldades, controlada e casta, e esforçar-
se por cumprir aquele mais excelente dos deveres, prescrito as
esposas que têm apenas um marido.

Violando seu dever com relação ao marido, uma esposa se


desgraça neste mundo; depois da morte ela entrara no ventre de
um chacal e será atormentada por doenças, a punição por seu
pecado.

Aquela que, controlando seus pensamentos, palavras e atos,


jamais rebaixar seu senhor, reside apos a morte com seu
marido no céu, e é chamada uma esposa virtuosa.
Um homem nascido duas vezes, versado na lei sagrada,
queimará uma esposa de casta igual que se conduza assim e
morra antes dele, com os fogos sagrados usados para Agnihotra
e com os artigos sacrificais.
110
Tendo assim no funeral dado os fogos sagrados a sua esposa
morta antes dele, ele poderá casar-se de novo, e manter vivos
os fogos.

111
36. Regras para um chefe de família budista, no
Sutanippata
Direi agora a regra para os chefes de família e que ação
convém a estes ouvintes, pois em suas ocupações nenhum deles
saberia completamente se ajustar ao que é exigido dos monges.
Que ele não mate as criaturas; que ele não incite a matar: que
ele não aprove as que tiraram a vida; que ele deixe de lado toda
a violência para com tudo o que vive, e para com tudo que
resiste ou que treme neste mundo. Que o ouvinte começando a
despertar se abstenha totalmente de tomar o que não é dado,
não incite ninguém a roubar, não aprove o roubo: que se
abstenha de todas as formas de roubo. Que se abstenha de toda
a luxúria, como o sábio se afasta da fossa cheia de brasas: se
ele não pode viver na continência, que ele não peque com a
mulher do próximo. Indo à sala de reunião, à assembleia que
ele não fale falsamente a outrem; que ele não incite outrem a
mentir; nem aprove. Que se abstenha de tudo o que não é
verdade. Que não tome bebidas embriagantes, o chefe de
família que escolhe este dhamma! Que não incite outrem a
beber nem aprove a bebida, sabendo que ela só pode terminar
na loucura. Pois em verdade, os tolos que bebem, cometem
más ações, e encorajam outros em suas loucuras; que ele evite
este ciclo de atos maus, desatinados e mentirosos, delícias dos
imbecis. Que ele não mate nem tome o que não foi dado: que
ele não minta nem se embriague; que ele fuja das práticas
nocivas; que ele não coma à noite de refeições inoportunas.
Que ele não traga grinaldas nem use perfumes; se deite numa
esteira estendida ao sol. É isso que se chama a óctupla

112
observância, chamada pelo Desperto, para pôr termo ao mal.
Segundo o dhamma ele servirá seus pais, mas o dhamma,
exercerá seu ofício; chefe de família que leva esta vida sincera
perguntará novamente aos devas chamados os Luminosos.

113
37. Ode ao rei que lavra a terra, pedindo um ano
de abundância, no Shijing
Eles limpam o solo tirando a relva e os arbustos; e ei-lo que
fica todo sulcado pelos arados. Em milhares, aos pares, tiram
as raízes, alguns nas terras baixas e úmidas, outras ao longo do
rio. São o dono e o filho mais velho; os filhos mais novos e
todos os seus rebentos; os auxiliares mais fortes e os criados
contratados. Como comem e saboreiam as viandas que
trouxeram! (Os maridos) pensam amorosamente nas mulheres;
(as mulheres) ficam bem perto dos maridos. (Então) com as
afiadas relhas dos arados se põem a trabalhar nos acres que
ficam ao sul. Semeiam várias espécies de grãos, cada semente
contendo dentro de si um gérmen de vida. Em linhas perfeitas
surgem as hastes e, bem nutridas, crescem bastante. O grão
verde parece que vai abundar e os homens com enxadas
passam por entre eles em multidões.

Depois vêm verdadeiras multidões de segadores. E o grão é em


pilhado nos campos, miríades e centenas de milhares e milhões
(de montes de trigo) ; para os espíritos e os espíritos doces,
para oferecer a nossos ancestrais, homens e mulheres, e para
suprir todas as cerimônias. Fragrante em seu aroma, adornando
a glória do estado. Tal como pimenta com o seu cheiro, para
dar conforto aos velhos. Não é somente aqui que há essa
(abundância); não é somente agora que há um tempo como
este: pois desde antigamente assim tem sido.

114
38. Poema de uma mulher divorciada, no Shijing

O vestido amarelo é sinal de distinção,


O verde, da desgraça.
Uso o verde e não o dourado,
E escondo o meu rosto.
Uso o verde do desprezo
Depois de tanto tempo usar o amarelo.
Medito nos ensinamentos dos Sábios,
Com medo de julgá-los errados.
Foi por ela que ele me cobriu de vergonha.
Sento-me e penso solitária.
Fico pensando se os Sábios conhecem
O coração de uma mulher.

115
39. Lamento de um funcionário sobre a
miséria, no Shijing
Deus inverteu seu procedimento habitual e os humildes estão
cheios de angústia. As palavras que pronunciais não são justas;
os planos que traçais não são de grande alcance. Como não há
sábios, pensais que careceis de guia. Não sois realmente
sinceros. Por isso vossos planos vãos não seguem muito longe
e por isso severamente vos censuro.

O Céu envia calamidades agora. Não sejais tão complacentes.


O Céu produz agora essas perturbações. Não sejais tão
indiferentes. Se vossas palavras fossem harmoniosas o povo se
uniria. Se vossas palavras fossem suaves e bondosas o povo se
tranquilizaria.
Embora meus deveres sejam distintos dos vossos, sou vosso
companheiro de trabalho. Venho para aconselhar-vos e vós me
ouvis com depreciativa indiferença. Minhas palavras referem-
se aos urgentes assuntos atuais. Não acrediteis que constituam
matéria para riso. Os antigos tinham esta máxima: “Consulta os
que apanham a erva e a lenha”.

O Céu exerce opressão, agora. Não vos burleis desse modo das
coisas. Como ancião falo com sinceridade completa, mas vós,
mais jovens do que eu, estais cheios de orgulho. Não é que
minhas palavras sejam as da idade avançada, mas vós vos
burlais do que é triste. Mas as inquietações se multiplicarão
como chamas até que já não tenham remédio.

116
O Céu mostra agora seu rancor. Não sejais jactanciosos
aduladores, afastando-vos completamente de toda conduta
decorosa, até que os homens bons se convertam em
personificações da morte. O povo agora suspira e geme e não
nos atrevemos a examinar as causas do seu mal-estar. A ruína e
a desordem esgotam todos os meios de vida e não nos
mostramos bondosos para com as nossas multidões. O Céu
ilumina o povo como a flauta de bambu responde ao silvo
terrestre. Como as duas metades de um todo. Como ao
tomardes uma coisa e a levardes na mão, levais sem mais
rodeios. A ilustração do povo é muito fácil. Agora possui, por
si mesmo, muitas perversidades. Não exibi diante dele vossa
própria perversidade.

Os homens bons são uma vala. As multidões são muralha. Os


grandes Estados são biombos. As grandes famílias,
contrafortes. O cuidado da virtude assegura a tranquilidade. O
círculo dos parentes do rei é uma muralha fortificada. Não
devemos deixar que seja destruída a muralha fortificada. Não
devemos deixar que o rei esteja solitário e consumido pelo
terror.

Venerai a cólera do Céu e não vos atreveis a divertir-vos por


vosso prazer. O Grande Céu é inteligente e vos acompanha por
toda a parte. O Grande Céu é clarividente e vos acompanha até
nos vossos extravios e nas vossas indulgências.

117
40. Sobre o labor agrícola, no Shijing

Alegres são estes campos extensos, uma décima parte de sua


produção é anualmente tomada como tributo. Com as velhas
provisões alimento os agricultores. Desde os tempos de outrora
temos tido anos bons e agora vou-me para as terras do sul onde
uns extirpam as ervas daninhas e outros juntam a terra em
torno das raízes. O milho parece exuberante e numa ampla
clareira reúno e estimulo os homens que mais prometem.
Com meus vasos cheios de brilhante milho e meus puros
carneiros vitimários, sacrificamos no altar dos espíritos da terra
e nos altares dos espíritos das quatro regiões. O estado dos
meus campos em tão boas condições, é o que enche de alegria
os lavradores. Tocando os alaúdes e fazendo ressoar os
tambores invocaremos o Pai da Agricultura e lhe imploraremos
uma chuva suave, para aumentar o produto de nossas colheitas
e tornar felizes meus homens e suas mulheres.

O longínquo descendente chega quando suas esposas e filhos


levam o alimento aos que trabalham nas terras do sul. O
inspetor dos campos também chega e está alegre. Toma o
alimento à esquerda e à direita e prova-o para ver se é ou não é
bom. O cereal está bem cultivado nos campos. Será bom e
abundante. O longínquo descendente mostra-se satisfeito e
estimula os lavradores a que se mostrem diligentes.
As colheitas do longínquo descendente parecem altas como
tetos de colmo e altas como a coberta de uma carruagem.
Empilham-se formando ilhas e montículos. Serão necessários
milhares de celeiros, centenas de carros. O milho, o arroz e o
painço provocarão a alegria dos agricultores e estes dirão:
118
“Quiçá seja recompensado com uma grande felicidade,
milhares de anos, vida sem fim!”

119
41. Outras gentes, no Zhongyong de Confúcio e
Zisi
Disse o Mestre: ‘Todos os homens dizem: “Somos sábios”,
mas se são empurrados e aprisionados numa rede, armadilha ou
laço, não sabem como livrar-se. Todos os homens dizem:
“Somos sábios” mas se lhes acontece escolherem o caminho do
Meio não são capazes de aí permanecer nem por um mês. Zi lu
perguntou sobre a energia.

Disse o Mestre: “Mencionas a energia do Sul, a energia do


Norte ou aquela que tu mesmo poderias cultivar?”.

“Mostrar indulgência e doçura ao ensinar aos demais e não se


vingar de uma conduta injustificada: esta é a energia das
regiões meridionais, e o homem bom procura estudá-la. Estar
sob o peso das armas e encontrar a morte sem lamentos: esta é
a energia das regiões do Norte, e o homem forte a estuda. Mas
o homem superior cultiva uma harmonia amistosa sem ser
débil. Como é firme, na sua energia! Permanece erguido, ao
centro, sem se inclinar para um nem outro lado! Como é firme,
na sua energia! Quando no governo do seu país prevalecem os
bons príncipes, não deixa de ser aquilo que era em seu refúgio.
Quando prevalecem os maus príncipes no país, mantêm sem
desfalecimentos seu caminho até a morte. Como é firme, em
sua energia!”

120
42. Os deveres de obrigação universal, no
Zhongyong
Os deveres de obrigação universal são cinco e são três as
virtudes com as quais são eles praticados. Os deveres são os
que existem entre o soberano e o ministro, entre pai e filho,
entre esposo e esposa, entre irmão maior e irmão menor e os
que correspondem ao trato entre amigos. Esses cinco são
deveres de obrigação universal. O conhecimento, a
magnanimidade e a energia são as três virtudes universalmente
obrigatórias. E o meio pelo qual põem os deveres em prática é
a simplicidade. Alguns nascem com o conhecimento desses
deveres. Alguns o conhecem através do estudo. Alguns
adquirem esse conhecimento depois de um penoso sentimento
de sua ignorância. Mas, uma vez possuído o conhecimento, o
resultado é o mesmo. Alguns o praticam com naturalidade.
Outros atraídos pelos seus benefícios. Outros, através de
esforços enérgicos. Mas, uma vez praticados, o resultado é o
mesmo.

Disse o Mestre: “Ser amante do saber é estar próximo do


conhecimento. Agir com energia é estar próximo da
magnanimidade. Possuir o sentimento da vergonha é estar
próximo da energia. Aquele que conhece essas três coisas sabe
como cultivar o caráter. Sabendo como cultivar o caráter, sabe
como governar os homens. Sabendo como governar os homens,
sabe como governar o reino com todos os seus Estados e
famílias.”

121
43. A Visão da civilização em Zhuangzi

Os cavalos têm cascos para carregá-los por sobre as geadas e as


neves e pelos para protegê-los do vento e do frio. Comem relva
e bebem água e retesando as caudas, galopam. Tal é a natureza
verdadeira dos cavalos. Salões cerimoniosos e grandes
mansões não são para eles.

Um dia Bo Lo (famoso treinador de cavalos) apareceu dizendo


- "Sei cuidar muito bem de cavalos". Assim escovou-lhes o
pêlo e os tosquiou, aparou-lhes os cascos e os marcou. Pôs-lhes
cabrestos pelos pescoços e grilhões em suas pernas e numerou-
os, segundo os estábulos. O resultado foi que, em cada grupo
de dez, dois ou três morreram. Depois, fê-los passar fome e
sede, fê-los trotar e galopar e ensinou-os a correr em formação
com a infelicidade de ostentar bridões com borlas na testa e
recear o chicote com nós por trás, até que mais de metade
morreu.

O oleiro diz "Sei trabalhar bem com o barro. Se o quero


redondo, uso compasso; se quero retangular uso o esquadro". O
carpinteiro diz - "Sei trabalhar bem a madeira. Se a quero em
curva, uso o arco; se em linha reta, uso a régua". Mas como é
que podemos pensar que a natureza do barro e da madeira
desejam a aplicação do compasso e do esquadro, do arco e da
régua? Não obstante, durante muitos anos Polo foi exaltado por
sua perícia em treinar cavalos, e oleiros e carpinteiros por sua
habilidade com o barro e a madeira. Os que dirigem (governo)
os negócios do império cometem o mesmo erro.
Penso que aquele que sabe como governar o império não deve

122
fazê-lo. Porque o povo tem certos instintos naturais - tecem as
roupas e se vestem, lavram os campos e se alimentam. Esse é o
instinto comum do qual todos têm sua parte. Tal instinto pode
ser chamado "no Céu nascido". Assim, nos dias da natureza
perfeita, os homens eram calmos nos movimentos e serenos no
olhar. Naquele tempo não havia caminhos nas montanhas, nem
botes ou pontes sobre as águas. Todas as coisas produziam-se
naturalmente. Os pássaros e as feras se multiplicavam; as
árvores e os arbustos medravam. Dessa sorte, acontecia que as
aves e as feras podiam ser levadas pela mão e podia-se subir e
espiar para dentro do ninho da pêga. Pois nos dias da natureza
perfeita, o homem vivia junto com as aves e as feras e não
havia distinção de espécie entre eles. Quem pode saber as
distinções entre os gentis homens e os homens do povo? Sendo
todos igualmente sem desejos, permaneciam num estado de
integridade natural. Nesse estado de integridade natural, o povo
não perdia sua natureza (original).

E depois, quando apareceram os Sábios, rastejando por


caridade e mancando com o dever, a dúvida e a confusão
entraram no espírito dos homens. Eles disseram que era preciso
alegrá-los por meio da música e criaram as distinções por meio
de cerimônias, e o império dividiu-se contra si mesmo. Sem
cortar a madeira bruta, quem faria os navios de sacrifício? Se o
jade branco não fosse cortado, quem poderia fazer as insígnias
reais da corte? Não sendo destruídos Dao e a virtude, que
utilidade teriam a caridade e o dever? Se não se perdessem os
instintos naturais dos homens, que necessidade haveria de
música e cerimônias? Se as cores não se confundissem, quem

123
precisaria de decorações? Se as cinco notas não se
confundissem, quem adotaria os seis diapasões? A destruição
da integridade natural das coisas para a produção de artigos de
várias espécies - eis a falta do artífice. A destruição de dao e da
virtude a fim de introduzir a caridade e o dever - eis o erro dos
Sábios. Os cavalos vivem em terra seca, comem relva e bebem
água. Quando lhes agrada, esfregam os pescoços uns nos
outros. Quando se encolerizam, viram-se e dão com os cascos
uns nos outros. Até aí são apenas levados por seus instintos
naturais. Porém, com bridão e freio, com uma placa de metal
de feitio de lua sobre suas testas, aprendem a lançar olhares
maldosos, a virar as cabeças para morder, a esbarrar no outro
animal da parelha, a tomar o freio nos dentes ou fugir com a
cabeça ao bridão. Desse modo, ficam com mentalidade e gestos
iguais aos dos ladrões. Eis a falta de Bo Lo.

Nos dias de Hexu os homens nada faziam de particular em seus


lares e saiam a passeios sem destino. Tendo alimentos,
regozijavam-se; dando pancadinhas na barriga andavam de um
lado para outro. As capacidades naturais desses homens os
levavam até aí. Os Sábios vieram depois e os fizeram curvar-se
e abaixar-se com cerimônias e música, a fim de regular as
formas externas de trato social e ostentaram a caridade e o
dever diante deles com o fito de conservar-lhes os espíritos
submissos. Depois o povo começou a trabalhar e desenvolveu
gosto pela ciência, e começou a lutar entre si na ambição do
lucro, para a qual não há fim. Eis o erro dos Sábios.

124
44. O ciclo da vida humana no Neijing

O imperador perguntou:

— Quando as pessoas envelhecem, não podem procriar filhos.


É por terem exaurido a sua força na depravação ou por sorte
natural?

Chi Po respondeu:

— Quando uma menina tem sete anos as emanações dos seus


rins tornam-se abundantes, começa a mudar os dentes e o
cabelo fica mais comprido. Quando perfaz o décimo - quarto
ano começa a menstruar, pode engravidar e o movimento do
pulso da grande artéria é forte. A menstruação ocorre em
períodos regulares, e assim a jovem pode dar à luz uma
criança.

“Quando a mulher atinge a idade de vinte e um anos, as


emanações dos seus rins são regulares, o último dente saiu e
está completamente desenvolvida. Quando a mulher atinge a
idade de vinte e oito anos, os seus músculos e ossos são fortes,
o seu cabelo atingiu o comprimento máximo e o seu corpo está
vigoroso e fecundo”.

“Quando a mulher atinge a idade de trinta e cinco anos, o pulso


que indica a região da ‘Luz Solar’ deteriora-se, o rosto começa
a enrugar-se e o cabelo a cair. Quando atinge a idade de
quarenta e dois anos, o pulso das três regiões do Yang
deteriora-se na parte superior do corpo, o rosto tem rugas e o
cabelo começa a embranquecer”.

125
“Quando atinge a idade de quarenta e nove anos, já não pode
engravidar e a circulação do pulso da grande artéria diminuiu.
A menstruação acaba, as portas da menstruação deixam de
estar abertas; o corpo deteriora-se e a mulher deixa de poder
gerar filhos”.

“Quando um rapaz tem oito anos, as emanações dos seus


testículos (rins) estão completamente desenvolvidas; o cabelo
cresce mais e começa a mudar os dentes. Quando tem dezesseis
anos, as emanações dos seus testículos tornam-se abundantes e
começa a segregar sêmen. Tem uma abundância de sêmen que
procura expelir, e, se nessa altura o elemento masculino e o
elemento feminino se unem em harmonia, pode ser concebida
uma criança”.

“Na idade de vinte e quatro anos, as emanações dos testículos


são regulares, músculos e ossos estão firmes e fortes, nasceu o
último dente e o homem atingiu a altura máxima. Aos trinta e
dois anos, músculos e ossos estão no apogeu, a carne é
saudável e o homem é robusto e fecundo”.

“Na idade de quarenta anos, as emanações dos testículos


diminuem, o cabelo começa a cair e os dentes a apodrecer. Aos
quarenta e oito anos, o vigor masculino está reduzido ou
esgotado, aparecem rugas no rosto e o cabelo das têmporas
embranquece. Aos cinqüenta e seis anos, a força do fígado
deteriora-se, os músculos deixam de funcionar devidamente, a
secreção de sêmen esgota-se, a vitalidade diminui, os testículos
deterioram-se e a força física do homem chega ao fim. Aos
sessenta e quatro anos, perde os dentes e o cabelo”.

126
“Os rins do homem regulam a água que recebe e armazena a
secreção das cinco vísceras e dos seis intestinos. Quando as
vísceras estão abundantemente cheias, encontram-se aptas a
segregar; mas quando, neste estágio, as cinco vísceras estão
secas, os músculos e os ossos declinam, as secreções
reprodutoras exaurem-se e, por isso, o cabelo do homem
encanece nas fontes, o corpo torna-se-lhe pesado, a postura
deixa de ser ereta e ele se torna incapaz de procriar.”

O imperador perguntou:

— Mas há homens que, apesar de velhos em anos, geram


filhos. Como é isso possível?

Ch’i Po respondeu:

— Trata-se de homens cujo limite natural de idade é mais


elevado. O vigor do seu pulso permanece ativo e há um
excedente de secreção dos seus testículos. No entanto, se
tiverem filhos, os varões não excederão os sessenta e quatro
anos, e as filhas não ultrapassarão os quarenta e nove, pois
nessa altura a essência do Céu e da Terra estará esgotada. O
imperador perguntou:

— Os que seguem o Dao, o Caminho Certo e atingem assim a


idade de cerca de cem anos, podem gerar filhos?
Ch’i Po respondeu:

— Os que seguem o Dao, o Caminho Certo, podem escapar à


velhice e conservar o corpo em perfeitas condições. Embora

127
velhos em anos, continuam capazes de gerar filhos.
Huang Ti disse:

— Ouvi dizer que em tempos antigos houve os chamados


Homens Espirituais, que dominaram o Universo e controlaram
o Yin e o Yang. Respiravam a essência da vida, eram
independentes por preservarem o espírito e os seus músculos e
a sua carne permaneciam imutáveis. Podiam, portanto, gozar
uma longa vida, pois não há fim para o Céu e a Terra. Tudo
isso resultava da sua vida de harmonia com o Dao, o Caminho
Certo.

“Nos tempos medievos existiram os Sapientes, que


preservavam a virtude e defendiam (infalivelmente) o Dao, o
Caminho Certo. Viviam de acordo com o Yin e o Yang e em
harmonia com as quatro estações. Afastavam -se deste mundo e
renunciavam à vida mundana, poupavam as energias e
preservavam o espírito intacto. Viajavam por todo o Universo e
eram capazes de ver e ouvir para além dos oito espaços
distantes. Graças a tudo isso, aumentavam e fortaleciam a sua
vida e, por fim, atingiam o estágio do Homem Espiritual”.

“Sucederam-lhes os Sábios, que alcançaram a harmonia com o


Céu e a Terra e respeitaram estritamente as leis dos oito ventos.
Eram capazes de conciliar os seus desejos com os assuntos
mundanos, e o seu coração não conhecia o ódio nem a cólera.
Não desejavam separar as suas atividades das atividades do
Mundo e conseguiam ser indiferentes ao hábito. Não forçavam
excessivamente o corpo no trabalho físico nem a mente em
meditações extenuantes. Não se preocupavam com coisa

128
alguma, consideravam fundamentais a felicidade e a paz
interiores e a satisfação a mais elevada das realizações. Nada
podia molestar-lhes o corpo nem malbaratar-lhes as faculdades
mentais. Assim, conseguiam chegar à idade de cem anos ou
mais”.

“Sucederam-lhes os Homens de Excelente Virtude, que


obedeceram às regras do Universo e imitaram o Sol e a Lua,
além de descobrirem a disposição das estrelas. Podiam prever o
funcionamento do Yin e do Yang e obedecer-lhe, e aprenderam
a distinguir as quatro estações. Respeitaram os tempos antigos
e tentaram manter-se em harmonia com o Dao. Fazendo-o,
aumentaram a duração da sua vida, até uma idade avançada.”

129
45. Queixa e apelo de Zhuang Qiang contra o mau
trato que recebeu do esposo, no Shijing
Ó Sol, ó Lua, que iluminais esta baixa terra! Aqui está o que
não me trata de acordo com a antiga lei.

Como pode ter a consciência tranquila? Será que não me quer


ver?

Ó Sol, ó Lua que dais sombra a esta baixa terra! Aqui está o
homem que não me quer dar sua amizade. Como pode ter
tranquila a consciência? Será que não me quer corresponder?

Ó Sol, ó Lua, que vindes do Oriente! Ó pai, ó mãe! Para nada


serviu o me haverdes criado. Como pode ter tranquila a
consciência? Será que não me quer corresponder, contra toda
razão?

130
46. Contra o Álcool e a Embriaguez, no Shujing

O rei falou do seguinte modo: “Fazei conhecer claramente


minhas grandes ordens no país do Meio. Quando vosso
venerável pai, o rei Wen, lançou as bases de nosso reino na
região ocidental, fez declarações e admoestações aos príncipes
das diversas regiões e a todos os altos funcionários, com seus
ajudantes e os diretores dos negócios, dizendo dia e noite:
“Devem ser empregados alcoóis nos sacrifícios”. Quando o
Céu outorgou seu decreto favorecedor e assentou as bases da
eminência do nosso povo, utilizavam-se as bebidas espirituosas
unicamente nos grandes sacrifícios. Quando o Céu envia seus
terrores e nosso povo se desorganiza consideravelmente com
eles e perde sua virtude, pode-se atribuir invariavelmente ao
seu abuso, de bebidas. Mais ainda, a ruína dos Estados
pequenos e grandes, por esses terrores é invariavelmente
motivada por sua culpa no uso de bebidas”.

“O rei Wen admoestou e instruiu os jovens nobres que


desempenhavam funções administrativas ou qualquer emprego
para que não utilizassem ordinariamente as bebidas
espirituosas e em todos os Estados exigiu que esses
funcionários não bebessem a não ser por ocasião dos
sacrifícios, e que então predominasse a virtude de modo a que
não pudesse haver embriaguez”. Disse: “Ensine, meu povo, aos
jovens, que unicamente devem amar os produtos da terra, pois
assim serão bons seus corações. Ouçam os jovens atentamente
as constantes recomendações de seus pais e contemplem todas
as ações virtuosas, sejam estas grandes ou pequenas, a mesma
luz, com atenção vigilante. Tu, povo da terra do Meio, se podes
131
empregar teus membros, cultivando amplamente tuas lavouras
e mostrando-te ativo no serviço de teus pais e irmãos mais
velhos; e se com teus carros e bois transitas diligentemente até
uma distância que te permita atender filialmente a teus pais,
então teus pais serão felizes e poderás preparar clara e
fortemente tuas bebidas espirituosas e utilizá-las. Ouvi
constantemente minhas instruções, todos vós, meus altos
funcionários e chefes de seção, todos vós, meus nobres
principais; quando houverdes cumprido amplamente o vosso
dever na atenção de vossos maiores e no serviço de vosso
governante, podereis comer e beber livremente até saciar-vos.
E para falar de coisas mais importantes: quando puderdes
manter constantemente um exame vigilante de vós mesmos e
vossa conduta esteja de acordo com a virtude correta, então
podereis apresentar as oferendas do sacrifício e ao mesmo
tempo entregar-vos às festividades. Nesse caso sereis
verdadeiramente ministros que prestais o devido serviço ao
vosso rei o Céu aprovará igualmente vossa grande virtude, de
modo que nunca sereis esquecidos na Casa Real”.

132
47. Contra o Luxo, no Shujing

Disse o duque de Zhou: “Oh! o homem superior baseia-se


nisto: não se entregar ao ócio luxurioso. Antes de mais nada,
compreende que o penoso trabalho de semear e colher leva à
fartura, assim como compreende que o povo humilde depende
do trabalho para sua subsistência. Observou entre os humildes
que quando os pais trabalharam diligentemente na semeadura e
na colheita, seus filhos não compreendem com frequência esse
penoso trabalho e se entregam ao ócio e à vagabundagem aldeã
e se tornam completamente desorganizados. Ou, quando assim
não agem, desprezam seus pais, dizendo: “Estes velhos
ouviram e nada sabem”.

O duque de Zhou disse: “Oh! Ouvi que noutro tempo Kung


Zung, um dos reis de Yin, era sério, humilde, reverente e
timoratamente prudente. Conformava-se reverentemente aos
decretos do Céu e abrigava uma reverente apreensão no
governo do povo, sem se atrever a abandonar-se ao ócio
luxurioso. Assim desfrutou o trono durante setenta e cinco
anos. Se passarmos à época de Zhou Zung, este trabalhou a
princípio fora da Corte, entre as mais humildes criaturas.
Quando subiu ao trono preferia não falar mas quando falava
suas palavras eram cheias de harmoniosa sabedoria. Não se
atreveu a entregar-se a um ócio inútil, presidiu admirável e
tranquilamente as regiões de Yin, até que em todas elas
pequenas e grandes, não houve um só murmúrio adverso.
Assim desfrutou o trono durante cinquenta e nove anos. No
caso de Zuxia, este se negou a ser rei injustamente e foi, a
princípio, um dos mais humildes súditos. Quando subiu ao
133
trono, sabia de que podia depender o povo de seu apoio e foi
capaz de exercer uma bondade protetora para com as massas e
não se atreveu a tratar depreciativamente os viúvos e viúvas.
Assim desfrutou o trono durante trinta e três anos. Os reis que
vieram depois gozaram a ociosidade desde o nascimento.
Desfrutando a ociosidade desde o nascimento não conhecia o
penoso trabalho de semear e colher e não haviam ouvido falar
do árduo labor da gente humilde. Não aspiravam outra coisa
senão um prazer excessivo e por isso nenhum deles viveu
muito tempo. Reinaram durante dez anos, durante sete ou oito,
cinco ou seis, ou talvez unicamente durante três ou quatro
anos".

134
48. Sociedade e Educação, no Liji

Confúcio disse: Assim que entro num país, posso dizer


facilmente o seu tipo de cultura. Quando o povo é gentil e bom
e simples de coração, isto se demonstra pelo ensino da poesia.
Quando o povo é esclarecido e cioso de seu passado, isto se
demonstra pelo ensino da história. Quando o povo é generoso e
disposto ao bem, isto se demonstra pelo ensino da música.
Quando o povo é quieto e pensativo, com agudo poder de
observação, isto se demonstra pelo ensino da filosofia das
mutações (Yijing, ou Livro das Mutações). Quando o povo é
humilde e respeitoso, sóbrio de costumes, isto se demonstra
pelo ensino da li (princípio da ordem social). Quando o povo é
culto na maneira de falar, ágil nas figuras e na linguagem, isto
se demonstra pelo ensino da prosa (Chunqiu, ou Livro das
Primaveras e dos Outonos). O perigo do ensino da poesia é que
o povo continua ignorante ou demasiado simplório; o perigo do
ensino da história é que o povo chegue a imbuir-se de falsas
lendas e narrativas; o perigo do ensino da música é que o povo
se se tornou extravagante; o perigo do ensino da filosofia é que
o povo fique desnaturado; o perigo do ensino da li é que os
rituais se tornem muito afetados; e o perigo do ensino do
“Livro das Primaveras e Outonos” é que o povo se deixe
contaminar pela confusão moral dominante.

Se um homem é gentil e bom e simples, mas não ignorante,


decerto será profundo no estudo da poesia; se um homem é
esclarecido e cioso do seu passado, mas não imbuído de falsas
lendas e narrativas, decerto será profundo no estudo da história;
se um homem é generoso e disposto ao bem, mas não
135
extravagante em seus hábitos pessoais, decerto será profundo
no estudo da música; se um homem é quieto e pensativo, com
agudo poder de observação, mas não desnaturado, decerto será
profundo no estudo da filosofia; se um homem é humilde e
respeitoso e sóbrio em seus hábitos, mas não afetado nos
rituais, decerto será profundo no estudo da li; e se um homem é
culto na maneira de falar, ágil nas figuras e na linguagem, mas
não contaminado pela confusão moral dominante, decerto será
profundo no estudo do Livro das primaveras e Outonos”.

136
49. Como surgiu Li (a cultura) no Liji

No começo, li (civilização) surgiu com a comida e bebida. O


povo assava milho e carne de porco, cortados à mão, em lascas
de pedra aquecidas. Cavavam buracos no chão, à maneira de
vasilhames, e bebiam diretamente nas conchas das mãos.
Modelavam em barro seus tambores e as baquetas, materiais
esses que parece terem-se provado à altura de seus cultos aos
espíritos. Quando morria alguém, os parentes subiam ao
telhado e gritavam bem alto, ao espírito: "Ahoooooo! Fulano,
quereis fazer o obséquio de voltar ao vosso corpo?" (Se o
espírito não voltava, e a pessoa estava realmente morta) então
assavam arroz cru e carne assada para oferendas, levantavam a
cabeça para o céu "a fim de ver longe" (wang) o espírito e
enterravam o cadáver. O elemento material descia então (à
terra) e o elemento espiritual subia (ao firmamento). Os mortos
eram enterrados com a cabeça na direção norte, e os vivos
tinham suas casas com o frontispício voltado para o sul. Tais
eram os costumes primitivos.

Antigamente os governantes não possuíam casas; moravam em


grutas escavadas ou em abrigos de madeira empilhada, no
inverno, e em ninhos feitos com ramos secos (na copa de
árvores) durante o verão. Não conheciam os usos do fogo;
comiam frutos e a carne de aves e animais, bebendo-lhes o
sangue. Não tinham sedas nem outros tecidos, vestiam-se com
penas e peles de animais. Mais tarde vieram os Sábios, que lhes
ensinaram a utilizar o fogo e a fundir metais em moldes de
bambu e a modelar o barro em vasilhas. Então construíram
galpões e casas com portas e janelas, e passaram a chamuscar e
137
fumegar e cozer e assar a carne em espetos, e fabricaram o
vinho e o vinagre. Começaram também a usar tecidos de fibras
e sedas, preparando as vestes para uso dos vivos e oferendas
aos mortos e cultos aos espíritos e a Deus. Tais práticas foram
também herdadas dos primórdios. Por isso, guardava-se o
vinho escuro no aposento interior, o vinho branco junto à porta
do sul, o vinho tinto no vestíbulo e o vinho mosto do lado de
fora. As oferendas de carnes eram então preparadas, e o tripé
redondo e o vaso quadrangular postos em ordem, e os
instrumentos de música - o qin, o sebo a flauta, o jing (pedra
musical suspensa por um fio e batida como gongo), os guizos e
tambores, tudo nos seus lugares, e a oração do sacrifício aos
mortos e a de resposta dos mortos eram cuidadosamente
elaboradas e lidas a fim de que os espíritos do céu e os dos
ancestrais pudessem baixar ao lugar do culto. Todas essas
práticas tinham o propósito de manter a devida distinção entre
governantes e governados, preservar o amor entre pais e filhos,
incutir a gentileza entre os irmãos, regular as relações entre
superiores e subalternos, e estabelecer de parte a parte as
condições de convívio entre marido e mulher, para que sobre
todos pairasse a bênção do Céu. Preparavam-se então as
lamentações do sacrifício. O vinho negro ou escuro era
empregado nas libações, e o sangue e o pêlo dos animais era
usado nas oferendas, e a carne crua colocava-se num vaso
quadrangular. Também se oferecia carne assada; abria-se uma
esteira no chão e cobriam-se os vasos com uma peça de tecido
rústico, e as indumentárias que se vestiam para a cerimônia
eram de seda. Os diversos vinhos, li e chien, carnes assadas e
de fumeiro, também se usavam nas oferendas. O soberano e a

138
rainha procediam ao oferecimento alternadamente, a fim de
que os bons espíritos pudessem baixar e eles se integrassem no
mundo oculto. Após os sacrifícios, propiciava-se então uma
festa aos hóspedes, dividindo os cães e porcos e as reses e
ovelhas da oferenda e distribuindo-os em vasilhames diversos.
A oração aos mortos proclamava a gratidão e lealdade dos
viventes, e a resposta dos mortos sugeria a sua contínua afeição
aos vivos. Tal era o grandioso e abençoado sentido da li.

139
50. O papel do indivíduo na estruturação da
sociedade, no Daxue
As coisas têm suas raízes e seus ramos. Os assuntos têm fim e
começo. Conhecer o que é primeiro e o que é último, levará ao
que é ensinado na Grande Estudo.

Os antigos, que desejavam dar exemplo da virtude ilustre em


seu reino, começaram por bem ordenar seus próprios Estados.
Desejando ordenar bem seus Estados ordenaram primeiro suas
famílias. Desejando ordenar suas famílias, cultivaram antes
suas pessoas. Desejando cultivar suas pessoas, primeiro
corrigiram seus corações. Desejando corrigir seus corações,
primeiro trataram de ser sinceros em seus pensamentos.
Desejando ser sinceros em seus pensamentos, primeiro
ampliaram ao máximo o seu conhecimento. Essa extensão do
conhecimento baseia-se na investigação das coisas.
Uma vez investigadas as coisas, seu conhecimento tornou-se
completo. Sendo completo seu conhecimento, seus
pensamentos foram sinceros. Sinceros que foram seus
pensamentos, seus corações corrigiram-se. Corrigidos os
corações, suas pessoas foram cultivadas. Cultivadas que foram
suas pessoas, ordenaram-se-lhes as famílias. Ordenadas suas
famílias, foram justamente ordenados seus Estados. Justamente
governados seus Estados, todo o reino viveu tranquilo e foi
feliz.

Desde o Filho do Céu até a massa do povo, todos devem


considerar o cultivo da pessoa como a raiz de todas as outras
coisas.

140
Quando a raiz é descuidada, não pode o que dela nasce ser bem
ordenado. Nunca se deu o caso daquilo que tem grande
importância ter sido cuidado levianamente, e, ao mesmo
tempo, tenha sido objeto de grandes cuidados aquilo que tem
pouca importância

141
Deuses, Crenças e Encantamentos

Imersos em sua teologia, os indianos antigos legaram uma


vasta documentação sobre seus cultos religiosos, a partir dos
quais desenvolveram suas filosofias interpretativas. Já os mitos
chineses nos são mal conhecidos; eles vêm, em geral, de fontes
bastante posteriores, e o que temos em mãos é considerado, de
certa forma, o que restou de antigas tradições. Neste caso, a
textualidade precisa, em muito, do suporte arqueológico, que
tem trazido a luz uma reconstituição pontuada destes mitos.
Esta parte, pois, é constituída, principalmente, por textos
indianos. O primeiro texto, do Rig veda, nos conta como os
deuses alcançaram a imortalidade; depois, do Shataphata
brahmana, temos o mito do dilúvio indiano, no qual teria
sobrevivido Manu, o suposto autor do Manavadharmashastra.
Seguem-se uma série de hinos dedicados as divindades védicas
indianas, tanto do Rig veda quanto do Sama veda, mostrando
os modos de invocação e nos dando algumas informações
sobre a cerimônia do soma, o suco sagrado alucinógeno que
expandia a consciência dos brâmanes arianos. Dois upanishads
mostram a evolução das especulações metafísicas sobre o
criador – brahman – apontando para a formação do henoteísmo
clássico indiano, e no seguir, uma série de encantamentos
mostram-nos uma outra faceta dos textos védicos: o Atharva
veda, o mais tardio dos quatro vedas, é um livro de magias,
encantamentos mundanos e invocações populares, adotado pela
elite bramânica. Quanto à China, dois relatos mitológicos
recontados em coletâneas posteriores nos servem de ilustração;

142
um sobre Fuxi e Nugua, os dois patronos fundadores da cultura
chinesa, e outro sobre Huangdi, o primeiro grande imperador
mítico (o soberano amarelo), cujo nome foi empregado pelo
unificador da dinastia Qin no séc. -3. Três textos da
enciclopédia Shanhaijing – Tratado sobre as montanhas e os
mares, o primeiro texto de mitologia chinesa, da época Han (e
negado veementemente pelos historiadores da época como
fonte fidedigna) nos apresentam alguns mitos da literatura
fantástica chinesa; para completar, Zhuangzi explica em seu
relato o que seria a vida ideal dos tempos antigos, e como a
perda deste mundo utópico gerou a busca do Dao; a história de
uma predição é contada no Shujing, em o “cofre guarnecido de
metal”; um texto oracular do Yijing, o tratado as mutações, nos
é apresentado, com os comentários de Confúcio; no Shijing, o
tratado dos poemas, é feita uma invocação ao ancestral da
dinastia Shang, Tang; e no Liezi, narra-se uma antiga cura para
depressão.

143
51. A Morte e os Deuses no Rig Veda

O ano, sem qualquer dúvida, é o mesmo que a morte, pois o Pai


Tempo é aquele que, por meio do dia e da noite, destrói a vida
dos seres mortais, e então os mesmos morrem; portanto, o ano
é o mesmo que a morte, e quem souber que este ano é a morte
não tem sua vida destruída nesse ano, pelo dia e pela noite,
antes da velhice, atingindo toda a duração normal de vida. Sem
dúvida ele é o Terminador, pois é quem, pelo dia e pela noite,
atinge o fim da vida dos mortais, e então os mesmos morrem;
portanto, ele é o Terminador, e quem conhecer este ano, a
morte, o Terminador, não terá sua vida terminada nesse ano,
pelo dia e pela noite, antes da velhice, atingindo toda a duração
normal de vida. Os deuses tinham medo deste Prajapati, o ano,
a morte, o Terminador, receando que ele, pelo dia e pela noite,
atingisse o final de suas vidas. Eles executaram estes ritos
sacrificais - o Agnihotra os sacrifícios da Lua Nova e Lua
Cheia, as oferendas das estações, o sacrifício de animais e o
sacrifício-Soma; fazendo essas oferendas eles não conseguiram
a imortalidade. Construíram também um altar de fogo, -
dispondo inúmeras pedras de encerramento, inúmeros tijolos de
yaiushmati, inúmeros tijolos de lokampritta, como alguns os
dispõem até hoje, dizendo: "Os deuses fizeram assim". Eles
não conseguiram a imortalidade. Continuaram a louvar e
trabalhar, esforçando-se por conquistar a imortalidade.
Prajapati disse-lhes então: "Vós não dispondes todas as minhas
formas, mas fazeis-me ou grande demais, ou deixais-me
defeituoso; por isso vós não vos tomais imortais”. Eles
disseram: "Dize-nos tu mesmo, então, de que modo podemos

144
dispor todas as tuas formas!" Ele respondeu: "Disponde
trezentas e sessenta pedras de encerramento, trezentos e
sessenta tijolos de yaiushmati e trinta e seis, outrossim; e de
tijolos de lokamplita disponde dez mil e oitocentos; e vós
estareis dispondo todas as minhas formas e vos tomareis
imortais". E os deuses dispuseram conforme dito, e daí em
diante se tornaram imortais.

A morte disse aos deuses: "Certamente com isso todos os


homens se tornarão imortais, e que parte então será a minha?"
Eles responderam: "Doravante ninguém será imortal com o
corpo; somente quando tiveres tomado esse corpo como tua
parte, aquele que se deverá tornar imortal, seja pelo
conhecimento ou pela obra sagrada, se tomará imortal depois
de separar-se do corpo". Ora, quando eles disseram "seja pelo
conhecimento ou pela obra sagrada", é o altar de fogo que
constitui o conhecimento e esse altar é a obra sagrada. E
aqueles que sabem isso, ou aqueles que fazem essa obra
sagrada, voltam a vida novamente quando morreram e,
voltando a vida, chegam a vida imortal. Mas os que não sabem
isso, ou não executam essa obra sagrada, voltam a vida
novamente quando morrem, e tornam-se o alimento da Morte
repetidamente.

145
52. A Lenda Indiana Sobre o Dilúvio

Pela manhã trouxeram a Manu água para se lavar, assim como


hoje trazem água para lavar as mãos. Quando se lavava, um
peixe veio ter as suas mãos. O peixe lhe disse: "Ajuda-me, eu
te salvarei!" Do que me salvarás?' "Uma enchente varrera todas
estas criaturas - isso te salvarei!" "Como te devo ajudar?”
O peixe lhe disse: "Enquanto somos pequenos, há grande
destruição para nós e um peixe devora o outro. Tu me manterás
primeiro em uma jarra. Quando eu crescer, tu cavarás um poço
e me manterás nele. Quando eu crescer mais, tu me levaras ao
mar, pois estarei então além da destruição".

O peixe logo se tornou grande, com o que disse: "Em tal e qual
ano a enchente virá. Tu ouvirás então o meu conselho,
preparando um navio; e quando a enchente chegar tu entrarás
no navio e eu te salvarei dela".

Depois de criado desse modo, ele o levou para o mar. E no


mesmo ano que o peixe dissera ele ouviu seu conselho,
preparando um navio; e quando a enchente chegou, ele entrou
no navio. O peixe então nadou para ele e a seu chifre ele atou a
corda do navio, passando assim rapidamente para outra
montanha no norte.

Ele disse então: "Eu te salvei. Amarra o navio à uma arvore,


mas não deixa a água te levar, enquanto estiveres na montanha.
A medida que a água baixar, tu poderás descer gradualmente!"
Assim fazendo, ele desceu gradualmente e por isso aquela
encosta da montanha ao norte se chama "a descida de Manu!"

146
A enchente então varreu todas estas criaturas e somente Manu
ficou aqui.

147
53. Hino à Indra, no Rig Veda

Indra, que aceitas nossos louvores, conduzam-te até aqui os


teus corcéis, a fim de beberes o suco do soma. Celebrem tua
presença os sacerdotes radiantes como o sol.
Conduzam Indra os seus corcéis a puxarem um carro leve e
rápido, quando estas sementes desfeitas em manteiga
clarificada estiverem sobre o altar.
Nas cerimônias matinais, invocamos Indra. Invocamo-lo,
durante o sacrifício. Convidamos Indra a beber o suco do soma.
Vem, Indra, presenciar nossos sacrifícios com teus cavalos de
longas crinas. Nós te invocamos, depois de bebermos a libação.
Aceita nossos louvores, vem aos nossos sacrifícios, para os
quais preparamos a libação. Bebe como um cervo sedento.
Derramamos o suco do soma sobre a erva sagrada. Bebe-o,
Indra, para seres mais vigoroso.
Que te seja agradável e aceito no coração o nosso canto. Bebe a
libação que derramamos.
A fim de beber o suco do soma, Indra, o destruidor dos
inimigos, acha-se presente em todas as cerimônias, em que se
faz libação do suco do soma.
Satakrata, realiza nossos desejos, dá-nos gado e cavalos, Nós te
louvamos com nossa profunda meditação.

148
54. Hino à Indra, Varuna e ao Suco sagrado, o
Soma, no Rig Veda
Busco a proteção dos senhores soberanos, lndra e Varuna. Que
os dois nos sejam favoráveis.
Protetores dos mortais, vós ambos estais dispostos a conceder o
amparo solicitado por um oficiante como eu.
Concedei-nos, lndra e Varuna, a riqueza que desejamos.
Queremos ter-vos sempre ao nosso lado.
Estão prontas as libações para os nossos atos piedosos e
louvores dos nossos sacerdotes puros. Assim, estejamos em
companhia daqueles que nos concedem alimentos.
Indra é mais generoso do que os outros deuses cujas
generosidades se contam aos milhares. Varuna deve ser
louvado entre todos aqueles dignos de elogios.
Graças à proteção de ambos, possuímos e guardamos riquezas,
vivendo na abundância.
Eu invoco os dois, Indra e Varuna. Façam-nos ambos
vencedores dos nossos inimigos.
Indra e Varuna, trazei-nos logo felicidade. Nossos espíritos são
dedicados.
Subam até vós os fervorosos louvores que vos dirigimos, Indra
e Varuna. Aceitando os nossos louvores, vós os fazeis
preciosos.

149
55. Hino às diversas divindades, no Rig Veda

Despertem os Asvins, juntos para o sacrifício da manhã.


Venham os dois aqui beber o suco do soma.
Nós invocamos os dois Asvins, ambos divinos. Guiando bem o
seu carro celeste, eles alcançam o céu.
Asvins, animai a chama do sacrifício com o vosso chicote,
umedecido na escuma da boca dos vossos cavalos.
Não está longe de vós a morada de quem vos oferece o
sacrifício. Vinde em vosso carro.
Eu rogo a Savitri que me proteja com as suas mãos douradas.
Ele determinará o lugar daqueles que o adoram.
Glorificai Savitri, que não é amigo da água. Implorai sua
proteção. Desejamos celebrar o seu culto.
Invocamos Savitri, que ilumina a humanidade e concede a
opulência.
Sentai-vos, amigos. É justo louvarmos Savitri. Ele dá-nos
riquezas.
Agni, traz-nos aqui as queridas esposas dos deuses e Tvastri,
para beberem o suco do soma.
Jovem Agni, traz aqui para proteger-nos as esposas dos deuses
- Hotras, Bharati, Vavatri e Dischana.
As deusas de asas perfeitas, protetoras da raça humana,
concedam-nos sua proteção e inteira felicidade.
Convido-vos a virem aqui, Indra, Varuna, Agni para a nossa
felicidade e para beberdes o suco do soma.
O vasto céu e a terra umedeçam com seu orvalho este sacrifício
e nos dêem alimentos.
Onde reina Gandarva, os sábios colhem pelas suas preces o

150
leite do céu e da terra.
Terra limpa de espinhos, estende-te ao longe, sê a nossa
morada, concede-nos grande felicidade.
Protejam-nos os deuses na terra de onde se levantou Visnú,
animado pelas nossas sete orações.
Visnú atravessou o mundo. Três vezes firmou o pé e o mundo
inteiro uniu-se no pó.
Protetor invencível, Visnú vigia dos deveres sagrados, deu três
passos e terminou seu caminho.
Vede as ações de Visnú, pelas quais o devoto cumpriu votos
piedosos. Ele é o digno amigo de Indra.
O sábio contempla sempre esta suprema parada de Visnú,
assim como o olhar percorre o céu.
O sábio, sempre vigilante e solícito, acende o fogo do
sacrifício, e em seus cânticos glorifica a suprema estação de
Visnú.

151
56. Hino às diversas divindades, no Sama Veda

Namadeva - Nós nos refugiamos ao lado do rei Soma, Varuna,


Agni, Aditia, Visnú, Suria, Brahma e Vriaspati.
Os conquistadores da terra elevam-se do mundo inferior às
altas regiões do céu, tal como subiram ao paraíso os
descendentes de Angiras.
Nós te acendemos, Agni, a fim de nos concederes grandes
riquezas. Tu que fazes chover as bênçãos, aprova nossos
manjares excelentes, próprios para os sacrifícios, produto do
Céu e da Terra.
Gritsamada - Tudo quanto dizemos é ex- pressão sincera do
nosso pensamento. Agni sabe onde se servem as ofertas dos
sacrifícios. Assim como o céu envolve o horizonte, assim Agni
inspira os nossos cânticos.
Paiú - Agni, destrói em toda parte o funesto esplendor dos
nossos inimigos. Destrói o poderio e a força dos gigantes
Iatudanas.
Prascanva - Agni, prepara aqui um excelente sacrifício para os
Vasús, os Rudras, os Aditias, e para os outros deuses,
descendentes de Manu, para as divindades que trazem a chuva.
57. Os nomes de Indra, no Sama Veda
Canva - O estalido do chicote que eles empunham ouve-se até
aqui assim como também o ruído dos seus carros, pintados de
muitas cores.
Trisoca - Indra, que estás. bebendo o sumo da planta da lua, os
teus amigos aqui presentes olham-te com a afeição de um dono
de rebanho a olhar para o seu gado.
Vatsa - Todos os sacrificantes tratam de aclamar Indra e lhe

152
rendem homenagem, assim como os rios homenageiam o mar.
Cusidina - Pedimos aos deuses que façam cair a chuva, que nos
protejam, a fim de estarmos bem amparados.
Medatiti - Ó senhor do alimento, faz por mim, chantre no
banquete da planta da lua, o que fizeste por Cacsivan, o filho
de Usija.
Sucacsa - Traz-me a ciência, matador de Vrita. Ouve-me,
poderoso Indra, possuidor de muitas excelentes qualidades.
Concede-nos, divino Savita, abundantes riquezas e muitos
descendentes. Afasta de nós o causador do fatal sono da morte.
Pragata - Onde quer que esteja residindo aquele que envia a
chuva, sempre jovem, que envolve tudo, invencível, é lá que o
oficiante executa o seu trabalho.
Vatsa - É lá, na região das nuvens, onde se juntam as grandes
águas, que o sábio Indra foi gerado pela inteligência. *
Irimiri - Elevai a voz para louvar Indra, o rei dos homens,
digno de todo louvor, distribuidor de dons, superior aos heróis.

*[Segundo a cosmogonia vedantina, as três divindades


supremas - Brama, Visnú, Siva, - suscitam o nascimento de um
ser divino, participante da natureza daquelas três divindades.
Denominam-nos os hindus Senhor Isvara, não somente criador
como também regente da vida das formas e dos seres existentes
em um universo planetário. Essa divindade corresponderia ao
Logos de Plotino, ao Demiurgo de Platão e ao Deus criador de
várias religiões.]

153
58. A especulação sobre o Brahman no Isha
Upanishad
No coração de todas as coisas, de tudo o que existe no
Universo, habita Deus. Somente ele é realidade. Portanto,
renunciando às vãs aparências, rejubilai-vos nele. Não cobiceis
a riqueza de ninguém.

Bem pode ficar satisfeito de viver cem anos aquele que age
sem apego - que realiza seu trabalho com zelo, porém sem
desejo, não ansiando por seus frutos - ele, e somente ele.
Existem mundos sem sóis, cobertos pela escuridão. Para esses
mundos vão depois da morte os ignorantes, assassinos do Eu.
O Eu é um só. Sendo imóvel, ele se move mais rápido do que o
pensamento. Os sentidos não o alcançam, pois ele sempre vai
primeiro. Permanecendo imóvel, ultrapassa tudo o que corre.

Sem o Eu, não há vida. Para o ignorante, o Eu parece mover-se


- embora ele não se mova.

Ele está muito distante do ignorante - embora esteja próximo.

Ele está dentro de tudo, e está fora de tudo. Aquele que vê


todos os seres no Eu, e o Eu em todos os seres, não odeia
ninguém.

Para a alma iluminada, o Eu é tudo.

Para aquele que vê harmonia em todos os lugares, como pode


haver ilusão ou pesar?

154
O Eu está em todos os lugares. Ele é brilhante, imaterial, sem
mácula de imperfeição, sem osso, sem carne, puro, intocado
pelo mal. Aquele que vê, Aquele que pensa, Aquele que está
acima de tudo, o Auto-Existente - ele é aquele que estabeleceu
a ordem perfeita entre objetos e seres desde o tempo que não
tem princípio.

À escuridão estão destinados os que se dedicam apenas à vida


no mundo, e a uma escuridão ainda maior os que se entregam
apenas à meditação. Viver somente no mundo leva a um
resultado, meditar apenas leva a outro. Assim falaram os
sábios. Aqueles que se dedicam tanto à vida no mundo como à
meditação superam a morte através da vida no mundo e
atingem a imortalidade através da meditação.

À escuridão estão destinados os que cultuam somente o corpo,


e a uma escuridão ainda maior os que veneram apenas o
espírito. Cultuar somente o corpo leva a um resultado, venerar
apenas o espírito leva a outro. Assim falaram os sábios.
Os que veneram tanto o corpo como o espírito, pelo corpo
vencem a morte, e pelo espírito atingem a imortalidade!
A face da verdade está oculta por vosso orbe dourado, ó Sol.
Removei-o, para que Eu, que sou dedicado à verdade, possa
contemplar a sua glória!

Ó vós que alimentais, o único que vê, o que tudo controla - Ó


Sol que ilumina, fonte de vida para todas as criaturas - retende
a vossa luz, reuni os vossos raios. Possa Eu contemplar através
da vossa graça a vossa forma mais abençoada. O Ser que aí
habita - mesmo esse Ser sou Eu.

155
Permiti que minha vida agora se una à vida que tudo permeia.
As cinzas são o fim do meu corpo. OM... Ó mente, lembrai-vos
de Brahman. Ó mente, lembrai-vos das vossas ações passadas.
Lembrai-vos de Brahman. Lembrai-vos das vossas ações
passadas. Ó deus Agni, levai-nos à felicidade. Vós conheceis
nossas ações. Preservai-nos da ilusória atração do pecado. A
vós oferecemos nossas saudações, uma e outra vez.

156
59. ‘Quem é o criador?’ no Kena upanishad

Quem comanda a mente para que ela pense? Quem ordena que
o corpo viva? Quem faz a língua falar? Quem é o Ser radiante
que conduz o olho à forma e à cor, e o ouvido ao som?
O Eu é o ouvido do ouvido, a mente da mente, a fala da fala.
Ele também é o alento do alento, o olho do olho. Ao
abandonarem a falsa identificação do Eu com os sentidos e
com a mente, e ao saberem que o Eu é Brahman, os sábios, ao
deixarem este mundo, tornam-se imortais.
O olho não o vê, nem a língua o exprime, nem a mente o
alcança. Não o conhecemos e nem podemos ensiná-lo. Ele é
diferente do conhecido, e diferente do desconhecido. Foi o que
ouvimos dos sábios.
Aquilo que não pode ser expresso em palavras mas pelo qual a
língua fala - sabei que é Brahman. Brahman não é o ser que é
adorado pelos homens.
Aquilo que não é compreendido pela mente, mas pelo qual a
mente compreende - sabei que é Brahman. Brahman não é o ser
que é adorado pelos homens.
Aquilo que não é visto pelo olho, mas pelo qual o olho vê -
sabei que é Brahman. Brahman não é o ser que é adorado pelos
homens.
Aquilo que não é ouvido pelo ouvido, mas pelo qual o ouvido
ouve – sabei que é Brahman. Brahman não é o ser que é
adorado pelos homens.
Aquilo que não é trazido pelo sopro vital, mas pelo qual o
sopro vital é trazido, sabei que é Brahman. Brahman não é o
ser que é adorado pelos homens.

157
Se pensais que conheceis bem a verdade de Brahman, sabei
que conheceis pouco. O que pensais ser Brahman no vosso Eu,
ou o que pensais ser Brahman nos deuses - não é Brahman.
Deveis, portanto, aprender o que é realmente a verdade de
Brahman.
Não posso dizer que conheço Brahman totalmente. Nem posso
dizer que não o conheço. Aquele dentre nós que melhor o
conhece é quem entende o espírito das palavras: "Eu nem sei
que não o conheço".
Aquele que verdadeiramente conhece Brahman é quem sabe
que ele está além do conhecimento; aquele que pensa que sabe,
não sabe. O ignorante pensa que Brahman é conhecido, porém
os sábios sabem que ele está além do conhecimento.
Aquele que percebe a existência de Brahman por trás de todas
as atividades do seu ser - seja sensação, percepção ou
pensamento - somente ele obtém a imortalidade. Através do
conhecimento de Brahman, vem o poder. Através do
conhecimento de Brahman, revela-se a vitória sobre a morte.
Abençoado o homem que enquanto ainda vive percebe
Brahman. O homem que não o percebe sofre sua maior perda.
Quando deixam esta vida, os sábios, que perceberam Brahman
como o Eu em todos os seres, tomam-se imortais.
Em determinada ocasião, os deuses obtiveram uma vitória
sobre os demônios e, apesar de o terem feito apenas através do
poder de Brahman, ficaram extremamente vaidosos. Eles
disseram a si próprios: "Fomos nós que derrotamos os nossos
inimigos, e a glória é nossa."
Brahman percebeu a vaidade deles e apareceu diante deles.
Porém eles não o reconheceram.

158
Os outros deuses então disseram ao deus do fogo: "Fogo,
descobri para nós quem é esse misterioso espírito."
"Sim", disse o deus do fogo, e aproximou-se do espírito. O
espírito lhe disse:
"Quem sois vós?"
"Sou o deus do fogo. Aliás, sou muito conhecido."
"E que poder exerceis?"
"Posso queimar qualquer coisa que exista sobre a Terra."
"Queimai isto", disse o espírito, colocando palha à sua frente.
O deus do fogo caiu em cima da palha com toda a sua força,
mas não pôde consumi-Ia. Então voltou rapidamente para junto
dos outros deuses e disse:
"Não posso descobrir quem é esse misterioso espírito."
Os outros deuses disseram então ao deus do vento: "Vento,
descobri para nós quem é ele."
"Sim", disse o deus do vento, e aproximou-se do espírito. O
espírito lhe disse:
"Quem sois vós?"
"Sou o deus do vento. Aliás, sou muito conhecido. Vôo
velozmente através dos céus."
"E que poder exerceis?"
"Posso soprar para longe qualquer coisa que se encontre sobre
a Terra."
"Soprai isto para longe", disse o espírito, colocando palha
diante dele.
O deus do vento caiu em cima da palha com toda a sua força,
porém foi incapaz de movê-la. Então, voltou rapidamente para
junto dos outros deuses e disse:
"Não posso descobrir quem é esse misterioso espírito."

159
Os outros deuses disseram então a Indra, o maior deles todos:
"Ó respeitável, descobri para nós, nós vos suplicamos, quem é
ele."
"Sim”, disse Indra, e aproximou-se do espírito. Porém o
espírito desapareceu, e em seu lugar surgiu Uma, a Deusa-Mãe,
bem-adornada e de uma beleza extraordinária. Contemplando-
a, Indra perguntou:
"Quem era o espírito que apareceu para nós?"
"Aquele", respondeu Uma, "era Brahman. Foi através dele, e
não de vós mesmos, que obtivestes a vitória e a glória."
Desse modo, Indra, o deus do fogo e o deus do vento,
reconheceram Brahman.
O deus do fogo, o deus do vento e lndra - eles superaram os
outros deuses, pois chegaram mais perto de Brahman, e foram
os primeiros a reconhecê-lo.
Porém, dentre todos os deuses, lndra é supremo, pois ele foi
dos três o que chegou mais perto de Brahman, e foi o primeiro
deles a reconhecê-lo.
Essa é a verdade de Brahman com relação à Natureza: seja no
clarão do relâmpago, ou no piscar dos olhos, o poder que
aparece é o poder de Brahman.
Essa é a verdade de Brahman com relação ao homem: nos
movimentos da mente, o poder que aparece é o poder de
Brahman. Por esse motivo, um homem deveria meditar sobre
Brahman de dia e de noite.
Brahman é o adorável ser em todos os seres. Meditai sobre ele
assim. Aquele que medita desse modo sobre ele é respeitado
por todos os outros seres.

160
60. Prece recitada durante o preparo de um
ungüento preservativo de males e doenças, do
Atharva Veda

Vem como protetor de vida! És o olho da montanha, foste


concedido por todos os deuses como escudo defensor da vida.

És salvaguarda para os homens, para as vacas, cavalos, corcéis.

És a salvaguarda que estrangula os feiticeiros. Ungüento,


conheces também a origem da imortalidade. És alimento vital,
remédio para a icterícia.

Ungüento, quando penetras no corpo, de um membro a outro


membro, de uma articulação a outra articulação, expulsas a
tísica, como se fosses um rei sentado entre adversários.
A maldição não atinge a pessoa que faz uso de ti, ungüento,
nem a magia, nem o sofrimento, nem a doença.

Mau conselho, mau sonho, ação má, mau coração, mau olhado,
protege-nos de tudo isso, ungüento.

Sabedor disso, direi a verdade, não a mentira, ungüento! Quero


ganhar um cavalo, uma vaca, e a tua própria vida, homem!

O ungüento possui três escravas: a febre, a inchação e a


serpente. e. teu pai, ungüento, a mais alta montanha, a
montanha dos três cumes, o Trikakud.

O ungüento nasceu na montanha das neves. Que ele estrangule


todos os feiticeiros e feiticeiras.

161
Sejas oriundo do Trikakud ou te chames ungüento do rio
Iamuna, estes dois nomes são propícios e por eles protege-nos,
ungüento!

162
61. Para obter o amor de uma mulher (idem)

Deseja meu corpo, meus pés, meus olhos! Deseja minhas


coxas! Teus olhos, teus cabelos, amorosa, sofram de paixão por
mim!
Faço que te agarres ao meu braço, apegando-te ao meu
coração. Estejas submissa à minha vontade e sob o meu
domínio.
Vacas, mães da manteiga sagrada, cuidadosas dos vossos
bezerros, fazei que esta mulher me ame!
Como o cipó enrola-se na árvore, assim não te afastes de mim,
sê minha amante!
Como a águia ao levantar vôo toca no chão com as asas, assim
eu toco em teu coração. Sê minha amante e não te afastes de
mim!
Como o sol envolve a Terra na mesma luz, assim eu envolvo o
teu coração. Sê minha amante e não te afastes de mim!

163
62. Hino às rãs, para que venham as chuvas (idem)

Elas estiveram escondidas o ano inteiro, como os brâmanes na


observância do voto. Agora, ao convite de Parjania, elas
alteiam a voz.

Quando foi molhada pelas águas do céu aquela que estava


ressequida como tripa seca de boi, propagou-se a cantoria das
rãs, como se fosse o mugido de vacas e bezerros.
No começo da época das chuvas, todas, satisfeita a sede,
gritam: Akhkhala! - e correm umas para as outras assim como
os filhos correm para os pais.

Embriagadas sob o aguaceiro, congratulam-se umas com as


outras. Pulando sob a chuva, a rã mosqueada canta com a loura.
Se uma repete as palavras da outra, como o aluno repete as do
professor, harmoniza-se o todo como o do vosso belo canto
coral, às margens de um lago.

Uma está mugindo como vaca, a outra balindo como cabra,


esta é mosqueada, aquela é loura. Têm o mesmo nome, mas são
diferentes na forma e modulam a voz de diferentes maneiras.
Brâmanes, que estais falando em tomo do lamaçal, como em
festa noturna do Soma, ó rãs, o que festejais agora é o primeiro
dia do ano das chuvas.

Brâmanes do soma, elas altearam a voz, no encantamento de


cada ano. Oficiantes suados no aquecimento da panela, as rãs
estão aparecendo, nenhuma fica no seu esconderijo.
Como se fossem homens, elas executam a divina cerimônia
para o ano dividido em doze partes. Elas respeitam as estações.

164
Quando vem a época das chuvas, não se aquecem os vasos do
sacrifício.

Aquela que mugiu como vaca, a que baliu como cabra, a


mosqueada, a loura, trouxeram-nos donativos. Na hora de
esmagarmos as raízes, dêem-nos as rãs centenas de vacas,
prolonguem a nossa vida!

165
63. Para achar-se um objeto perdido (idem)

Longe dos caminhos, longe do céu, longe da terra, nasceu


Puschan, Entre essas duas abençoadas regiões, ele vai e vem,
ele que sabe de tudo.

Puschan conhece todas as regiões celestes e conduz-nos pelo


caminho mais certo; benfeitor, ardente, patrono dos heróis,
onisciente, Proteja-nos, ó deus!

Ó Puschan, sob o teu patrocínio, estejamos isentos de danos.


Aqui estamos, nós que te louvamos.

Que Puschan nos estenda a mão do lado do Oriente. Que ele


nos traga aquilo que perdemos, Possamos achar o objeto
perdido, sob o seu patrocínio!

166
64. Para livrar alguém do vício do jogo (idem)

Estonteiam-me as nozes trêmulas da grande árvore vibhidaka,


as quais, trazidas pelos altos ventos, rolam com força na mesa.
Esposa fiel, não discutia nem se aborrecia comigo, era
atenciosa para com os meus amigos e também comigo. Eu
abandonei-a pelo dado fatal.

Odeia-o a sogra, rejeita-o a mulher. Implorando, não encontra


ninguém que tenha pena dele. O jogador é inútil como o cavalo
velho oferecido à venda.

Outros acariciam a mulher do jogador, cujos dados


desperdiçam os seus haveres. Dizem-lhe o pai, a mãe, os
irmãos: "Não o conhecemos, levem-no para a prisão".
"Se eu resolvo não jogar, meus amigos vão embora,
abandonando-me. Mas logo que os dados transmitem o seu
chamado, vou ao seu encontro como se fora um amante".
Trêmulo, o jogador entra na sala, perguntando a si mesmo:
"Vou ganhar?" Os dados anulam a sua esperança, dando ao
adversário os lances decisivos.

Em verdade, os dados têm pontas, ferem, derrubam, queimam,


consomem. Presentes de príncipe, untados de mel para o
jogador, frenéticos, eles recaem sobre o seu vencedor.
Os seus cento e cinqüenta companheiros, como o deus Savitri,
jogam com a verdade. Não receiam a raiva do poderoso. O
próprio rei respeita-os.

Rolam para baixo, saltam para cima. Não possuem mãos e no


entanto dominam aqueles que as têm.

167
Brasas divinas lançadas à mesa, por mais frios que estejam, os
dados incendeiam o teu coração.

Desprezada, a mulher do jogador atormenta-se e a mãe sofre


pelo filho, que ela não sabe onde está. Endividado, trêmulo,
buscando boa sorte, à noite, ele vai para a casa de outra pessoa.
Ele sente remorsos, o jogador, quando vê a esposa de um
conhecido em casa bem arrumada. Se, pela manhã, ele atrelou
os cavalos pretos, à tarde o pobre diabo vai cair no pátio.
Ao general do vosso grande exército, àquele que foi o primeiro
rei do vosso clã, eu mostro os dedos abertos, eu juro que não
escondi dinheiro atrás de mim.

Não jogues dados, cultiva o teu campo, alegra-te e aprecia o


que possuis. Trata dos teus bois, jogador, cuida da tua mulher!
Assim fala o nobre Savitri.

Faz um acordo conosco, se quiseres. Tem piedade, não atires


sobre nós, a tua cruel, audaciosa imprecação! Acalme-se a tua
raiva, a tua agressividade. Seja outra a vítima dos dados
negros.

168
65. Fuxi e Nugua

No noroeste da China, a muitas milhas de distância existia um


país chamado Hua-Xu-Xi onde reinava a felicidade. Não havia
ali governo constituído e nem sequer a liderança de um chefe.
Seu povo não possuía ambições ou desejos, tampouco
inclinações. Viviam em estado natural e sua vida era longa.
Percebiam através da neblina. O trovão não os ensurdecia, não
afundavam na água e não se queimavam no fogo. Além disso
deslocavam-se livremente pelo espaço. Habitavam a terra em
condição divina.

Vivia nesta terra uma bela moça enamorada da floresta e da


natureza. Certo dia, passeando em torno da lagoa encantada de
nome Trovão, cujo senhor era o deus do trovão, o qual se
apresentava com cabeça humana e corpo de dragão, deu-se um
fato muito estranho. Ao longo do passeio pela floresta
intensamente verde e plena de vibrações, localizou uma pegada
gigantesca. Extasiada tocou com o pé aquela profunda marca e,
ao pisá-la, num tempo mágico viu-se mãe de uma criança com
a cabeça humana e o corpo de serpente, que recebeu o nome de
Fu-Xi.

Fu-Xi veio a ser o filho do deus do trovão com uma mulher do


país da felicidade terrestre. Na qualidade de semideus possuía
livre trânsito entre o céu e a terra, beneficiando largamente os
homens.

Criou os oito trigramas, traços organizados significando: céu,


terra, água, fogo, montanha, trovão, vento e lagoa. Este sistema

169
foi usado para expressar o sentido de diversos elementos, vindo
a constituir a base da escrita.

Ensinou os povos a entrelaçar cordas para fazer redes, e assim


aprenderam a pescar. Obteve a ajuda de Gou-Mang, deus da
primavera, o qual mostrou como se apanhavam pássaros.
Fu-xi, mesmo não sendo o deus do fogo, conseguiu dominar o
relâmpago e o trovão, produzindo o fogo e obtendo assim
alimentos cozidos para o consumo.

Nü-Gua era uma deusa com cabeça de mulher e corpo de


serpente. Possuía o poder de transformar-se de setenta
maneiras diferentes por dia. Solitária passeava pelos caminhos
virgens do mundo, envolvida pela beleza e encanto da
paisagem. Contudo abrigava em seu coração uma grande
melancolia. Era o clamor de seu instinto materno, trazendo-lhe
uma sensação de infinita tristeza e frustração. Em determinado
momento, num ímpeto incontido, cavou barro do chão e com
ele moldou uma figura humana. Surpreendeu-se com aquela
pequena figura ganhando vida e movimento próprio, pulando,
cantando e indo-se embora, levada por sua própria inquietação.
Nü-Gua não coube em si de felicidade e com suas mãos
continuou criando as figuras dentro do mesmo espírito de
enlevamento até se cansar. Quando então tomou de um feixe de
vime, entumesceu-o com barro e vibrou-o com energia. Os
pingos caídos no chão milagrosamente se transformavam em
seres humanos e em pouco tempo o mundo estava repleto.
Os seres nobres foram os criados pela mão de Nü-Gua. Quanto
aos pobres, estes foram os lançados com o feixe de vime.
Porém a natureza mortal desses homens obrigava a deusa a

170
repetir constantemente o processo, tornando-o extremamente
cansativo. Decidiu-se então pelo acasalamento dos seres para,
através desta forma, se perpetuarem. Havendo estabelecido esta
união, é chamada pelos chineses a Deusa do Matrimônio. Nü-
Gua é a primeira mediadora entre homens e mulheres.

171
66. Huangdi, o deus do Meio

O centro do mundo era controlado pelo deus do meio. A área


dessa região era de 12 mil milhas quadradas. Inicialmente o
deus do meio era Huang-Di. Existia no entanto outro deus
perverso, chamado Chi-You que havia escapado dos céus e
concentrado todo seu esforço em criar a raça Miao. Deste feito
maléfico resultou uma guerra na região de Zhou-Lu, na China
Central. Huang-Di conseguiu superar o conflito, após o que
deixou o posto de deus do meio para o deus do norte, Zhuan-
Xu.

A primeira atitude de Zhuan-Xu foi interromper o percurso


livre entre o céu e a terra. Os homens ficaram assim
definitivamente separados dos deuses. Os primeiros não
podiam subir mas os segundos ainda possuíam o poder para
descer. Zhuan-Xu passou então a dois deuses chamados Zhong
e Li, a incumbência de realizar este processo de obstrução das
relações entre o céu e a terra. A Zhong cabia a tarefa de
controlar o céu e sua entrada. A Li cabia o controle da terra. A
perda da liberdade de acesso dos homens foi contudo
compensada pela volta da ordem ao universo.
O filho de Li chamava-se Ye. Sua forma era estranha. A cabeça
humana, não tinha braços e as duas pernas estavam na cabeça.
Habitava numa montanha localizada no extremo oeste. O nome
desta montanha era "Sol e Lua". Ye guardava o portão do céu,
por onde entravam somente o sol, a lua e as estrelas. Vigiava as
entradas e saídas e regulava os horários.

172
Os deuses não conviviam mais com os homens, tam- pouco o
dia com a noite. E assim retornou a ordem ao universo.
Zhuan-Xu ainda estabeleceu a superioridade do homem em
relação à mulher. Separou as funções dos sexos e proibiu os
casamentos entre irmãos. Além disso, foi o primeiro deus a
instituir o rito matrimonial.

Huang-Di morava no centro do céu. Seu auxiliar era o deus da


terra. Este segurava nas mãos um fio com o qual controlava
toda a vida e suas manifestações e media a justiça dos assuntos
terrestres. Huang-Di possuía quatro faces. Podia contemplar
simultaneamente as quatro direções. Controlava as relações
entre os deuses. Huang-Di era o deus dos deuses.
O deus da terra, seu auxiliar, era igualmente o deus das
manifestações elementares que habitavam o inferno. Por isso
Huang-Di também controlava o inferno através do ministério
do deus da terra.

Nas montanhas Kun-Lun havia um palácio luxuoso. Era o


palácio de Huang-Di na terra. A quatrocentas milhas deste,
havia um jardim denominado “Jardim Flutuante", situado tão
alto que dele era possível passar-se ao céu. Huang-Di possuía
ainda outro palácio no município de Xin-An na província de
Hé-Nan, chamado "Montanha de Qing-Yao". Em cada um
desses lugares havia um deus, permanentemente alerta. O deus
que vigiava o palácio situado na montanha Kun-Lun, chamava-
se Lu-Wu. Humano de rosto, corpo de tigre com nove caudas.
Pelo jardim flutuante zelava o deus Zhao-Yíng. Sua cabeça era
humana, o corpo eqüino, a pele mosqueada e provido de duas
asas.

173
O último deus cuidava da "'Montanha Qing-Yao" e seu nome
era Wu-Luo. Seu rosto era humano, o corpo de leopardo e
portava dois brincos nas orelhas que tiniam como jade. Nessas
paragens existiam plantas, insetos e outros animais de um
exotismo singular. Entre eles havia um mais enigmático ainda,
chamado Shi-Rou, o que pode ser traduzido por "carne visível".
Era um ser pastoso que ao viver, apresentava a forma de um
pedaço de carne. Nada distinguia-se nele a não ser dois olhos
pequeninos. O sabor de sua carne era ambrosíaco. Cortando
qualquer parte dele, imediatamente se regenerava,
permanecendo sempre do mesmo tamanho. Alimentavam-se
dessa carne os viajantes e os anacoretas que viviam nas
montanhas.

Certa ocasião, Huang-Di apresentou-se em Han-Sha, ao leste


da montanha Kun-Lun. Na praia encontrou um animal
chamado Bai-Ze que falava a língua dos homens e sabia tudo
que havia entre o céu e a terra. Possuía grandes conhecimentos
de teratologia, sendo um narrador de maravilhas e prodígios
sem fim. Conhecia os lagos e as florestas. Huang-Di, sendo o
controlador do universo, julgou de suma importância a
atividade deste animal e através de auxiliares fez registrar e
ilustrar tudo sobre o que discorria. Resultou dessas narrativas
um livro contendo onze mil e quinhentas curiosidades.

Naquele tempo o magnífico Huang-Di reunia em si, as


harmonias e as monstruosidades. Viajava num carro luxuoso,
decorado com pedras preciosas, puxado por dois elefantes,
tendo à sua retaguarda seis dragões. Chi-You, com o poder de
controlar os animais, corria na frente para limpar o caminho.

174
Seguiam-se os deuses do vento e da chuva para limpar o pó.
Ainda um robusto pássaro, chamado Bi-Fang, voava embaixo
do carro. O deus do vento tinha cabeça de pássaro onde se
salientavam dois cornos, corpo caprídeo, cauda ofídica e pele
de leopardo. O deus da chuva era ainda mais estranho. De tão
minúsculo, confundia-se com um bicho da seda.
Havia muitos deuses fantásticos no séquito do carro de Huang-
Di. Em cima voava uma fênix e embaixo de tudo havia uma
cobra voadora. A magnificência desse cortejo aguçou a cobiça
de Qu- You, que se revoltou com o intuito de ocupar o lugar de
Huang-Di. O que resultou desta disputa será conhecido ao
termo da história.

Huang-Di bondosamente modelou no mundo, carros, barcos,


espelhos, caldeirões com três pés e um recipiente para ferver
água. Também fez cruzamentos para obter mulas. Acrescentou
a estes feitos o jogo e em especial os jogos de bola, e não se
esqueceu - e aqui está a mais importante invenção - de projetar
a bússola.

Os auxiliares de Huang-Di, potências demiúrgicas,


continuaram a criação cumprindo ordens divinas. Entre eles,
resultaram os mais importantes: Chang-Tie, criador das letras,
Lei-Gong e Qi-Bo, que registraram as doenças e os
correspondentes medicamentos e Lei-Zu, esposa de Huang-Di,
que criou o bicho da seda e fabricou seda para o tear.

175
67. O País dos Imortais, do Shanhaijing

No decurso das suas viagens marítimas, Da Yu teve a


oportunidade de visitar uns países onde viviam os imortais.
Segundo uma lenda, para além do Mar do Norte, havia uma
ilha chamada Wu Ji (sem descendentes), os seus habitantes
eram imortais e sem descendentes. Eles moravam em grutas,
nas montanhas da ilha e comiam exclusivamente um tipo de
peixe, desconhecido presentemente, que se chamava "peixe
voante". Como os habitantes deste país eram assexuados,
logicamente, não se casavam nem constituíam famílias. Após
terem vivido um certo número de anos, os habitantes
"morriam" temporariamente e, embora fosse prática comum, os
seus cadáveres eram enterrados mas os seus corações
continuavam a bater e os seus corpos não apodreciam. Depois
de um período de gestação, de cerca de cento e vinte anos, os
"mortos" ressuscitavam e continuavam vivendo e assim iam
vivendo e "morrendo" alternativamente; a população mantinha-
se constante e o país era extremamente próspero.
Para além do Mar do Sul, havia uma outra ilha semelhante à
primeira, chamada de A Xing, por todos os seus habitantes
terem o mesmo sobrenome de A. A cor da sua pele era preta, e,
fisicamente, eram bem constituídos, cheios de vigor e de
juventude, e com o dom de poderem viver eternamente, por se
alimentarem exclusivamente de frutos das árvores imortais e se
refrescarem nas águas da Fonte Vermelha. Graças às árvores
imortais e à Fonte Vermelha, os animais que viviam neste país
eram, igualmente, imortais, existiam morcegos com mais de
mil anos, sapos com dez mil e muitos outros.

176
Para além do Mar do Oeste, existiam, ainda, dois países dos
imortais: o primeiro chamado de Huangdi e o segundo
chamado dos Brancos. O Estado de Huangdi, estava situado,
adjacente, à Montanha de Qingshan, sendo a fisionomia dos
seus habitantes muito estranha, pois tinham cabeças humanas e
corpos de jibóias. Segundo uma lenda, numa guerra que tinha
outrora entre Huangdi e Chiyou, o povo deste país tinha
ajudado os de Huangdi a vencerem o demônio de Chiyou
ganhando assim méritos militares. Após a vitória, os habitantes
de Huangdi construíram um outeiro ao qual chamaram de
Outeiro de Huangdi, significando deste modo que ambos os
povos deste país e de Huangdi, tinham saído igualmente
vitoriosos sobre os de Chiyou. Os seus habitantes podiam, pelo
menos, viver até 500 anos, sendo muitos os homens que
contavam mais de dois mil anos de idade. Os habitantes do
Estado dos Brancos tinham os seus cabelos e peles tão brancos
como a neve e possuíam também uma prolongada longevidade.
Segundo uma lenda, neste país viviam um gênero de animais
sobrenaturais que se chamavam Cheng Huang e tinham o corpo
coberto de pêlos dourados, uma longa e grossa cauda,
fisionomia de raposa, dois chifres sobre o dorso e eram capazes
de correr tão depressa como o vento, sendo, portanto, também
apelidados de Fei Huang (Amarelos Velozes). Se alguém
montasse um deles por só uma vez que fosse, já poderia viver,
pelo menos, por mais dois mil anos. A origem do provérbio
chinês que diz: "Que alcance a tua boa sorte com a velocidade
de um Fei Huang" provém do conto acima mencionado.

177
68. As Ilhas dos Imortais, do Shanhaijing

Antigamente, os mares eram tão impetuosos, que as suas


altíssimas ondas podiam alcançar o Céu e tão vastos, que
milhares e milhares de rios desembocavam neles dia e noite -
até mesmo as águas do Rio Celeste (Via Láctea) corriam para
eles. No entanto, os mares nunca transbordaram. Porque é que
os mares eram então assim? Uma lenda conta que a dezenas de
milhares de li, a leste do Mar Bohai, havia um grande vale
submerso chamado Gui Xu - que significa o "lugar de retorno
das águas" -, na realidade tratava- se de um vale sem fim. Na
vasta superfície marítima do "lugar de retorno das águas" havia
cinco ilhas flutuantes de alcantiladas e majestosas montanhas:
Daiyu, Yuanjiao, Fanghu, Yingzhou e Penglai. Para chegar aos
píncaros de qualquer uma destas montanhas era preciso seguir
serpentuosos caminhos - o menor dos quais tinha mais de trinta
mil li -, que desembocavam em amplos planaltos - cada um
com cerca de nove mil li de periferia. As cinco ilhas estavam
alinhadas no mar, distanciadas umas das outras de setenta mil
li, na lonjura, frações dos seus altos picos aparecendo entre
nuvens auspiciosas e, nos tempos mais claros, podia-se mesmo
ver os perfis dos seus magníficos pavilhões e palácios.
As ilhas eram conhecidas pelas cinco Ilhas dos Imortais, por
nas suas cinco montanhas se situarem as residências dos
imortais, constituídas por palácios e pavilhões de ouro e jade.
Nas encostas das suas montanhas cresciam numerosas flores e
raras árvores de fruto e todos os animais e aves que aqui
habitavam, eram tão brancos como a neve. Uma árvore, em
particular, produzia pérolas e uns frutos muito brilhantes, em

178
forma de cristais, a ingestão de um só dos quais transformava
qualquer ser humano num imortal. Todos os habitantes destas
ilhas eram imortais e descendentes do Imperador Celestial
possuindo os dons, quer de ascenderem às nuvens, ou de
vagarem de ilha para ilha, conforme quisessem.
Embora a altitude de cada uma das montanhas fosse colossal,
estas cinco ilhas eram flutuantes e deslocavam-se
perpetuamente para o Oeste, como se fossem gigantescos
navios, o que causava grande preocupação aos seus imortais
habitantes, pois se continuassem na sua inexorável progressão,
seriam arrastadas até ao pólo Oeste, o qual, segundo uma
lenda, era um lugar extremamente frio e sombrio onde nunca
tinha aparecido nem o Sol nem a Lua, sendo a sua única fonte
de luz, uma tênue claridade proveniente de uma vela segura na
boca dum animal chamado de "dragão da vela" Numa palavra,
o pólo Oeste era um lugar avassalador!

Um dia, os imortais das cinco ilhas decidiram subir ao Céu


para relatarem conjuntamente as suas preocupações ao
Imperador Celestial. Depois de os ouvir, o Soberano enviou um
dos seus ministros, o deus dos mares chamado Yu Jiang,
resolver o problema. Yu Jiang mandou então que 15
gigantescas tartarugas carregassem, às costas, essas cinco ilhas
para a eternidade, no entanto, para lhes aliviar o cansaço, o
deus dividiu-as em três turnos alternando-os cada 60 000 anos.
Claro que a missão de carregarem às suas costas as ilhas era
um trabalho extremamente duro, mas as 15 tartarugas não
tinham outra alternativa senão obedecerem às ordens de Yu
Jiang e, assim, passaram a suportar as montanhas esticando as

179
suas cabeças à tona das ondas e não se atrevendo a deslocarem-
se minimamente. A partir de então as cinco ilhas,
originalmente flutuantes, permaneceram estáticas desafiando as
furiosas ondas, as impetuosas correntes e os frequentes tufões e
os seus imortais habitantes vivendo dias tranquilos sem mais
nenhumas preocupações.

Contudo, tal como os seres humanos, os imortais também


vieram a encontrar alguns percalços imprevistos. A uma
distância de 46 000 li da costa do Mar do Leste havia uma
montanha chamada Bogushan ao pé da qual, havia um país de
gigantes chamado, o Estado dos Dragões. Todos os seus
habitantes eram tão altos que quase alcançavam o Céu e
alimentavam-se principalmente de grandes peixes e tartarugas-
gigantes marítimas.

Ora certo dia, alguns dos gigantes, tendo ido à pesca nas costas
do Mar do Leste, subitamente aperceberam-se que algumas
tartarugas gigantescas apareciam e desapareciam por entre as
altas ondas marítimas esticando as suas cabeças fixamente.
Bastavam-lhes dar alguns passos para atravessarem as águas
duma longa distância lançando então as linhas com as iscas
para as águas onde trabalhavam as tartarugas. As tartarugas,
que não tinham comido nada durante várias dezenas de
milhares de anos, ao verem alimento esticavam imediatamente
os seus pescoços e tragavam as iscas. Então, aos gigantes do
Estado dos Dragões bastou-lhes puxarem as linhas para as
apanharem e depois de comerem as carnes secaram ainda os
seus ossos fazendo-os em lascas e utilizaram as suas carapuças
como tetos de tendas abrigando-se assim melhor contra o vento

180
e a chuva. Logo após a morte das seis tartarugas duas das cinco
ilhas, as Dayu e Yuanjiao, perdendo o seu suporte,
recomeçaram a flutuar imediatamente em direção ao pólo
Oeste. Os imortais destas duas ilhas apercebendo-se do que
estava acontecendo, emigraram apressadamente para as outras
que ainda se mantinham imóveis não tardando que, pouco
tempo depois, ambas as ilhas Da-yu e Yuanjiao fossem
arrastadas pelas impetuosas correntes e pelos incontáveis
tufões para o pólo Oeste vindo-se a afundar nas profundezas
marítimas.

O que aconteceu provocou tamanha cólera ao Imperador


Celestial que, para castigar os gigantes do Estado dos Dragões
e valendo-se dos seus poderes sobrenaturais, ele reduziu não só
a ex- tensão deste pais como a estatura dos seus habitantes.
Mesmo assim, diz-se que eles continuaram com uma altura de
cerca de dez metros, a qual, se bem que fosse ainda
considerável pelo menos impedia-os de pescarem à linha
quaisquer outras tartarugas-gigantes.

A partir de então, no Mar Bohai restaram só três ilhas de


imortais: Fanghu, Yingzhou e Penglai. No período dos Reinos
Combatentes (475-221 aec.) os monarcas dos reinos de Qi e
Yan vieram a saber da existência destas três ilhas dos imortais
e de nestas se encontrar o elixir de imortalidade. Querendo
gozar eternamente das glórias e riquezas que tinham
acumulado, estes dois reis ordenaram aos seus súditos que
fabricassem várias centenas de grandes embarcações e que
partissem em demanda destas ilhas com o fim de obter o elixir
de imortalidade. Contudo, pouco tempo após a partida da

181
expedição, uma grande tempestade de gigantescas e furiosas
ondas fez com que todos os barcos se afundassem, só poucos
homens conseguiram escapar da tragédia. Segundo os relatos
dos sobreviventes, após vários dias de navegação todos tinham
efetivamente conseguido vislumbrar as três ilhas dos imortais
pairando entre densas nuvens brancas e flutuando alinhadas nos
confins do mar mas, quando os barcos se aproximaram delas,
as três ilhas tinham misteriosa e subitamente desaparecido. E
tinha sido quando os barcos persistiram em continuar na
direção das ilhas desaparecidas, que uma tempestade furiosa se
abateu bruscamente impedindo o avanço das embarcações e
fazendo-as capotar no seio das altas ondas. Ninguém podia
confirmar se esses relatos eram verdadeiros ou não, mas a
verdade é que nenhum dos reis que tentaram obter o elixir de
imortalidade veio a alcançar o seu objetivo e, naturalmente,
acabaram por morrer uns após os outros.

Segundo a lenda, o imperador Qin Shi Huang - o primeiro


imperador da Dinastia Qin - em plena satisfação pela sua
unificação da China (221 a.C) também sonhava em ser um
imortal. Sob os auspícios dos seus ministros e demais
subordinados, ele viajou, pessoalmente, para a montanha Huiji
organizando neste local uma enorme oficina, onde algumas
dezenas de milhares de trabalhadores vieram a fabricar cerca
de mil embarcações, após a sua conclusão, o monarca obrigou
um número considerável dos seus homens a navegar em
direção às ilhas dos imortais em busca do elixir da
imortalidade. No entanto, este seu colossal empreendimento
também não logrou obter bons resultados e, inclusivamente,

182
nenhum dos seus enviados regressou à terra natal. Por ironia do
destino o imperador Qin Shi Huang veio a morrer no caminho
do regresso da montanha Huiji à sua capital.

Durante a Dinastia Han, no reinado de Wu Di (156-87 aec), um


ocultista chamado Li Shaojun contou um dia ao imperador que,
encontrando-se uma vez viajando numa rota marítima, tinha
travado conhecimento com um imortal chamado An Qi Shen
que estava comendo uma jujuba, tão grande como uma
melancia, sendo o suco desta fruta realmente o elixir mágico
das montanhas do além-mar. Impressionado pelas palavras do
ocultista, o Imperador Wu Di ordenou que um exército de
homens fabricasse embarcações, enviando depois um grande
número dos seus subordinados nestas à procura do elixir da
imortalidade. Contudo passaram-se meses e anos e até à sua
morte o imperador esperou sem receber quaisquer notícias da
expedição marítima.

183
69. Demônios e Feras Bestiais, do Shanhaijing

Durante uma prolongada viagem, Da Yu visitou nove


continentes e atravessou quatro mares, no entanto, nem todos
os lugares por onde passou eram acolhedores: na realidade,
algumas destas regiões eram habitadas por demônios hostis e
feras bestiais.

Na extremidade do Mar do Sul, havia uma região toda em


chamas, habitada por demônios de cara humana e corpos
peludos, monstruosos, que das suas bocas gigantescas
lançavam constantemente labaredas e fumo, atacando, assim,
os animais, as aves e mesmo os humanos.

Na costa do Mar do Sul havia, ainda, um país de homens-


crocodilos tendo os seus habitantes uma cabeça humana, a
bocarra dos crocodilos, o corpo coberto de densos pêlos pretos
e, mais estranho ainda, dois gigantescos pés virados para trás.
Se encontrassem alguém, primeiro lançavam uma terrível
gargalhada para depois saltarem sobre o desgraçado engolindo-
o por completo. Estes demônios vagabundeavam pelas florestas
levando com eles flautas de bambu que tocavam produzindo
uma melodia dolente.

Entre os países imaginários havia uns mais inacessíveis que


outros, tais como: o dos homens zarolhos - cujos habitantes só
tinham um olho localizado verticalmente no centro do rosto, o
dos homens dos peitos furados, o dos homens com três cabeças
- cujos habitantes podiam olhar em três direções ao mesmo
tempo e pronunciar simultaneamente três vozes diferentes.

184
No que se refere às feras bestiais, os países imaginários
possuíam numerosos e diversos gêneros, das quais só citaremos
aqui algumas.

Havia umas chamadas Qiong Qi, semelhantes aos tigres, mas


com duas asas gigantescas. Eram tão gananciosas quanto cruéis
e quando conseguiam capturar um ser humano começavam a
roê-lo pela cabeça e acabavam nos pés, engolindo mesmo todos
os seus ossos e cabelos.

Havia um gênero de raposas com nove caudas aparentemente


esbeltas e encantadoras, de focinho pontiagudo, pêlos dourados
e espessas caudas, mas que, na realidade eram extremamente
manhosas, podendo-se metamorfosear em terríveis criaturas,
transformando-se, por vezes, em figuras de lindas jovens que
atraíam os homens devorando-os depois.

Nas florestas das montanhas do Norte da China havia um


gênero de borboletas vermelhas, do tamanho de elefantes, que
sobre- viviam sugando o sangue de outros animais.
Uma outra fera bestial era um gênero de abelha venenosa de
cor preta que, quando esvoaçava, emitia um zumbido que se
transmitia a vários quilômetros de distância, sendo a sua picada
muito dolorosa e o veneno dela, mortal.

Em certas regiões meridionais vivia à beira dos lagos um


animal extremamente venenoso chamado Yu, que tinha apenas
três polegadas de comprimento mas uma carapaça tão dura
como uma tartaruga. Era um ser extraordinariamente sinistro e
cruel que habitualmente se escondia nos lugares sombrios
esperando a passagem de uma presa fácil. Se alguém passasse
185
pelas vicinalidades donde estava emboscado, o animal abria a
sua boca lançando um jato venenoso quer sobre a pessoa, ou no
seu reflexo, na água, causando-lhe assim uma morte violenta.
No entanto, graças à existência dum país adjacente a esta
região, cujos habitantes eram bons caçadores, apreciavam
comer a carne dos Yu conjuntamente com legumes, estes
animais estavam em vias de extinção e os humanos estavam
menos ameaçados.

Segundo umas lendas antigas, depois de dominar as águas, os


povos de todo o mundo passaram a respeitar Da Yu como o
salvador da humanidade, elegendo-o como o seu soberano.
Para se precaver da latente ameaça dos demônios hostis e das
feras bestiais aos seres humanos, Da Yu ordenou que todos os
lugares onde se produziam objetos de ferro e bronze tinham
que entregar uma determinada quantia das suas matérias-
primas para com estas se fundirem nove trípodes gigantescos
nos quais, baseando-se nas experiências e recordações de todas
as suas viagens, ele fez cinzelar todas as figuras de demônios e
feras bestiais assim corno as suas regiões de origem de modo a
ajudar a humanidade a precaver-se melhor contra estes.

186
70. O Mundo antigo, por Zhuangzi

Aquele que sabe o que é do Céu e o que sabe o que é do


Homem alcançou verdadeiramente o cimo (da sabedoria).
Aquele que sabe o que é do Céu, molda sua vida segundo Céu.
Aquele que sabe o que é do Homem, pode ainda usar sua
ciência para desenvolver o conhecimento do desconhecido,
vivendo até o fim de seus dias e não perecendo jovem. Eis a
perfeição do saber.

Nisso, entretanto, há uma falha. O saber correto depende dos


objetos, mas os objetos da ciência são relativos e incertos
(mutáveis). Como se pode saber que o natural não é realmente
do homem e o que é do homem não é realmente natural? Nós
devemos, além disso, ter os homens verdadeiros antes de
termos a ciência verdadeira.

Mas o que é o homem verdadeiro? O verdadeiro homem de


antigamente não se aproveitava do fraco, não atingia seus fins
pela força bruta, e não reunia ao redor de si os conselheiros.
Assim, falhando, não tinha motivo para arrependimentos;
sendo bem sucedido, nenhuma causa para satisfação própria. E
podia subir a alturas sem tremer, entrar na água sem molhar-se
e passar pelo fogo sem queimar-se. Eis a espécie de
conhecimento que chega às profundezas de Dao. Os
verdadeiros homens de antigamente dormiam sem sonhos e
acordavam sem preocupações. Comiam indiferentes ao paladar
e aspiravam fundamente o ar. Porque os verdadeiros homens
aspiram o ar até os calcanhares; os vulgares até, apenas, a
garganta. Da boca dos perversos as palavras são expelidas

187
como vômitos. Quando as afeições do homem são profundas,
seus dons divinos são superficiais.

Os verdadeiros homens antigos não sabiam o que era amar a


vida ou temer a morte. Não se alegravam pelos nascimentos
nem se esforçavam para evitar a dissolução vinham sem
preocupações e partiam sem preocupações. Era tudo. Não se
esqueciam de onde tinham surgido, mas não procuravam
indagar quando voltariam para lá. Alegremente aceitavam a
vida esperando pacientes pela redenção (o fim). Eis o que se
chama não desencaminhar o coração de Dao, e não suprir o
natural por meios humanos. A um homem desses chamar-se-ia
com razão um homem verdadeiro.

Homens assim são de espírito livre e calmos no agir e têm


testas altas. Algumas vezes são desconsolados como o outono,
e outras animados como a primavera; suas alegrias e tristezas
estão em razão direta com as quatro estações, em harmonia
com toda a criação e ninguém pode conhecer-lhes o limite. E
assim é que quando o Sábio assalaria a guerra, ele pode destruir
um reino e sem perder contudo a afeição do povo; espalha
bênçãos sobre todas as coisas, porém isso não é devido a seu
(consciente) amor dos semelhantes. Portanto aquele que sente
prazer em compreender o mundo material não é um Sábio. O
que tem afeições pessoais não é humano. O que calcula o
tempo de suas ações não é inteligente. O que desconhece a
diferença entre o beneficio e o mal não é um homem superior.
O que anda atrás da fama sob risco de perder o próprio eu não é
um erudito. O que perde a vida e não é sincero para si mesmo,
nunca pode ser mestre dos homens. Assim Hu Puxie, Wu

188
Kuang, Po Yi, Shu Chi, Chi ci, Xu Yu, Chi To e Shentu Ti
foram os servos dos governantes e cumpriram o mandato de
outros e não o seu próprio.

Os verdadeiros homens de antigamente pareciam ser de


estatura gigantesca e, contudo, não podiam ser abatidos.
Portavam-se como se em si próprios faltasse alguma coisa, mas
sem olhar para os outros. Naturalmente independentes de
espírito, não eram severos. Vivendo em liberdade sem peias
todavia não tentavam exibi-la. Pareciam sorrir quando
quisessem e mover-se apenas segundo necessidade. Sua
serenidade fluía da bondade interior. Nas relações sociais
conservavam o caráter íntimo. De espírito tolerante, pareciam
grandiosos; gigantescos pareciam acima de controle.
Constantemente dentro de suas casas, pareciam portas
fechadas; de espírito abstrato, pareciam ter esquecido o dom da
palavra. Viam nas leis penais uma forma externa; nas
cerimônias sociais, certos meios; na ciência, instrumentos de
utilidade; em moralidade, uma guia. Eis a razão pela qual, para
eles, as leis penais significavam uma administração
misericordiosa; as cerimônias sociais, um meio de caminhar
com o mundo; a ciência, uma ajuda para fazer o que não
podiam evitar; e a moralidade, um guia que os podia fazer
andar ao lado de outros para chegar a uma colina. E todos os
homens pensavam realmente que eles sofriam para viverem
corretamente.

Pois o que lhes prendia a atenção era o Único e o que não os


preocupava era o Único também. O que consideravam como
Único era Único e o que não consideravam como Único era

189
Único outrossim. No que era Único, eles eram de Deus; no que
não era Único, eram do homem. E assim, entre o humano e o
divino não se produzia nenhum conflito. Eis o que era ser um
homem verdadeiro.

190
71. O cofre guarnecido de metal, a história de uma
previsão no Shujing
Dois anos após a conquista de Shang o rei caiu doente e ficou
muito desconsolado. Os dois outros grãos - duques disseram:
"Consultemos reverentemente o casco de tartaruga a respeito
do rei"; o duque de Zhou, porém, disse: "Não deveis afligir
desse modo os nossos antigos reis". Chamou a si, então, o
encargo e ergueu três altares de terra na mesma clareira; e,
construindo outro altar ao sul destes, voltado para o norte, aí
tomou posição. Havendo colocado um símbolo de jade,
redondo, em cada um dos três altares e empunhando o símbolo
maior da sua própria hierarquia, dirigiu-se aos reis Tai, Chi e
Wen

O grande historiador escreveu em tábuas a sua prece, que assim


rezava: [fulano], o vosso grande descendente, está sofrendo de
moléstia grave e violenta; - se vós, três reis, tendes no Céu o
encargo de velar por ele - grande filho do Céu, permiti que eu,
Tan, seja o substituto da sua pessoa. Fui amorosamente
obediente a meus pais; possuo muitas capacidades e arte que
me tornam apto a servir a seres espirituais. O vosso grande
descendente, por outro lado, não possui tantas capacidades e
artes quanto eu e não é capaz de servir aos seres espirituais. E,
além disso, foi nomeado na casa de Deus para estender o seu
auxilio por todo o reino, visando estabelecer aqui na terra os
vossos descendentes. O povo dos quatro quadrantes permanece
em reverente temor dele. Oh! Não permiti que esse mandato
precioso, conferido pelo Céu, caia por terra - para que toda a
longa linhagem dos nossos antigos reis também possua alguém
191
em quem possa confiar sempre, quanto aos nossos sacrifícios.
Agora, buscarei a vossa determinação a respeito do assunto, no
grande casco de tartaruga. Se atenderdes o meu pedido, tomarei
desses símbolos e dessa maça, retornarei e aguardarei as vossas
ordens. Se vós não o atenderdes, eu os deixarei de lado".
Então, consultou o duque os augúrios, através dos três cascos
de tartaruga. E foram todos favoráveis. Abriu, com uma chave,
o lugar onde estavam guardadas as respostas oraculares e as
contemplou. Elas foram igualmente favoráveis. Disse ele:
"Segundo a forma do prognóstico o rei não sofrerá mal algum.
Eu, pobre criança, consegui junto aos três reis a renovação do
seu mandato, aos quais um longo futuro foi consultado. Devo,
agora, aguardar as consequências. Eles poderão agir em favor
do nosso Primeiro Homem.

Quando o duque regressou, colocou as tábuas da oração num


cofre guarnecido de metal e, no dia seguinte, o rei melhorou.
Mais tarde, com a morte do Rei Wu, o irmão mais velho do
duque de Kuan e os seus irmãos mais moços propalaram pelo
reino um relatório sem fundamento para que o duque não
fizesse nenhum benefício ao jovem filho do rei. Diante disso o
duque declarou aos outros grãos duques: "Se eu não aplicar a
lei a esses homens, não poderei apresentar o meu relatório aos
antigos reis".

Ele residiu assim no oriente, dois anos, durante os quais os


criminosos foram presos e levados perante a justiça. Depois,
compôs um poema para apresentar ao rei e o denominou: "A
coruja". O rei, por seu turno, não ousou censurar o duque.

192
No outono, quando o grão era abundante e maduro, porém,
antes de ser colhido, o Céu enviou uma grande tempestade de
trovão e relâmpagos, acompanhada de ventos, quebrando-se
todo o grão e sendo desarraigadas grandes árvores. O povo
ficou muito atemorizado; o rei e os altos funcionários, todos
com seus capacetes de autoridade, puseram-se a abrir o cofre
guarnecido de metal e a examinar os escritos nele contidos,
encontrando as palavras pronunciadas pelo duque, quando ele
chamou a si o encargo de ser o substituto do Rei Wu. Os dois
grãos duques e o rei interromperam o historiógrafo e todos os
outros funcionários familiarizados com a questão. Eles
replicaram: "Foi realmente assim: mas, ah! o duque nos
ordenou que não ousássemos falar a esse respeito". O rei tomou
o documento nas mãos e chorou, dizendo: "Nós hoje não
precisamos ir reverentemente proceder à adivinhação. Outrora
o duque foi assim zeloso da casa real; mas, sendo uma criança,
não o soube. Hoje o Céu mobilizou os seus terrores para exibir-
lhes a virtude. Que eu, pobre criança vá agora ao seu encontro
com as minhas opiniões e sentimentos renovados, eis o que
exigem as normas de propriedade do nosso reino".
Quando o rei se dirigia às fronteiras ao encontro do duque, o
Céu enviou chuvas; e, em virtude de ventos contrários, todo o
grão se ergueu. Os dois grãos duques deram ordens ao povo
para que levantasse as árvores que haviam caído e as
substituísse. O ano, então, tornou-se muito frutuoso.

193
72. Uma previsão do Tratado das mutações:
Hexagrama 18, a Recuperação do Deteriorado, do
Yijing

Sun (o Vento, embaixo) sopra ao pé da Montanha (Ken). Isto


implica em destruição; plantas desenraizadas, pomares
arruinados. Mas o tempo indicado pela primavera (Sun)
seguindo-se ao inverno (Ken) indica a mudança. Indica
também trabalho duro. Em negócios, comunidades, relações,
etc., estabelecidos, Sun indica arranjos fundamentalmente
maus ou incompatíveis.

O Julgamento

A Recuperação do Deteriorado possui um supremo sucesso. É


vantajoso cruzar as grandes águas. Antes de começar, três dias;
Depois de começar, três dias.

A Imagem

O Vento soprando ao pé da Montanha simboliza a


Deterioração. Assim, o homem nobre movimenta o povo E
fortifica seu espírito.

194
As Linhas

Seis no fundo: a ruma acarretada pelo pai é reparada pelo filho.


Se tiver sucesso, o pai não ficará desonrado. Perigo, ao fim,
fortuna.

Nove no segundo lugar: ao reparar o que foi deteriorado pela


mãe, não se deve ser muito persistente.

Nove no terceiro lugar: reparar o que foi deteriorado pelo pai.


Algum remorso, mas não haverá desonra considerável.

Seis no quarto lugar: tolerar o que foi deteriorado pelo pai. Ao


continuar, é-se humilhado.

Seis no quinto lugar: reparar o que foi deteriorado pelo pai,


Encontra-se elogio.

Nove no alto: ele não serve a sacerdotes e reis,- ele se fixa


objetivos superiores.

195
73. Invocação ao ancestral Tang da dinastia Shang,
no Shijing
Admirável! Perfeito! Aqui estão nossos tambores.
Harmoniosos ressoam os tambores. Para deleitar nosso
venerável antepassado.

O descendente de Tang com esta música o invoca. Pois ele


pode aliviar-nos pela realização de nossos desejos. Profundo é
o som de nossos tambores. Agudas soam as flautas. Todas
entre si se harmonizam e se combinam. Em acordo com as
notas da gama sonora. Oh! O descendente de Tang é majestoso.
Verdadeiramente admirável é a sua música.

Os grandes sinos e os tambores enchem os ouvidos. As danças


desenvolvem-se grandiosamente. Temos admiráveis visitantes
que se mostram deleitados. Desde a Antiguidade, antes de
nossa época, os primeiros homens nos deram exemplo. Como
ser mansos e humildes de manhã à noite. E ser reverente no
desempenho do serviço.

Ele pode contemplar nossos sacrifícios do Inverno e do


Outono. Oferecidos assim pelo descendente de Tang!

196
74. Uma antiga cura para depressão, no Liezi

Yang Chu tinha um amigo, de nome Chi Liang. Um dia Chi


Liang caiu doente, e ao cabo de sete dias ficou muito sério. Os
filhos choravam à beira da cama e chamaram um doutor.
— Tenho filhos tão indignos, — disse Chi Liang a Yang Chu.
— Não queres cantar uma canção para os fazer compreender?

Então Yang Chu cantou:

O céu não sabe


Por que é assim,
Como podemos, os homens,
Adivinhá-lo então?
O infortúnio vem
Nos caminhos do céu,
Passe bem ou mal,
É o homem quem paga.
Nem tu nem eu
Sabemos o que é gota,
Pode então a feiticeira
Ou o doutor
Saber o que isso é?

Os filhos de Chi Liang ainda não conseguiram entender, e


chamaram três doutores. O nome de um era Chiao, o segundo
chamava-se Yu e o terceiro Lu. E o médico Chiao disse a Chi
Liang:

— Não vives convenientemente. A tua doença vem da fome, da


comida demasiada e dos excessos sexuais. O teu espírito está

197
atormentado. Isso não é devido ao céu nem aos maus espíritos.
Embora o caso seja sério, pode haver cura.

Disse Chi Liang:

— É um doutor vulgar. — e mandou-o embora.


Disse o doutor Yu:

— Sofres de uma constituição fraca e não foste


convenientemente criado na infância. Não é questão de dias,
mas de anos. Não há cura. E disse Chi Liang:

— É um bom doutor. Dai-lhe de comer. O doutor Lu disse:

— A tua doença não vem do céu, nem dos homens, nem dos
maus espíritos. Houve alguém que a dirigiu quando ainda
estavas no ventre de tua mãe, e houve alguém que a conhecia.
Para que servem os remédios?

Disse Chi Liang:

— É um doutor divino, — e despediu-o com valiosos


presentes. E Chi Liang logo ficou bom sozinho.

198
A Arte de Bem Governar

A arte de bem governar era um tema presente entre os


pensadores asiáticos, abrangendo problemáticas diversas, tais
como as relações sociais, a religião, a economia, a lei, hábitos,
costumes, etc. Não que isso fosse uma novidade, tanto lá
quanto no ocidente: mas a variedade de propostas é instigadora.
Na Índia, três textos nos apresentam o que seriam os deveres de
um rei na visão hindu; um dos Dharma sutras (os textos das leis
“morais”, ou “ espirituais”, também conhecido pelos budistas
como dhamma, na língua páli), um do onipresente
Manavadharmashastra e ainda, um texto do Artashastra, um
dos primeiros tratados dedicados inteiramente a questão da
política e da sociedade em moldes parecidos com o da escola
legista chinesa ou, século depois, com Maquiavel.
Completando a visão indiana, temos dois éditos do ecumênico
soberano Ashoka, da dinastia Maurya, que depois de ter
(supostamente) se convertido ao budismo, instituiu uma
política de tolerância e diversidade religiosa dentro de sue
império. Observe-se que são duas proclamações incitando à
paz e a boa convivência, tendo sido redigidos em idiomas
diversos, inclusive grego e aramaico.

A China nos apresenta um quadro filosoficamente mais


variado, e novamente distinto de crenças religiosas.
Inicialmente, veremos a ideia de política antiga na proclamação
do marques de Qin, presente no Shujing; seguem-se trechos da
visão confucionista de bom governo, preocupação constante

199
desta escola: a visão de bom governo no Zhongyong, no Liji, e
no Lunyu. Mêncio, apesar de confucionista, nos informa algo
sério e profundo na antiguidade: um bom soberano ouve seu
povo, e quem não faz deve ser derrubado. Um trecho da obra
de Guanzi, autor pouco conhecido, e supostamente do séc. -4,
apresenta-nos as 6 proibições básicas que deveriam ser
aplicadas a sociedade; depois, a concepção de bom governo
pela inação, proposta por Laozi, sintetiza a visão daoísta da
questão – governar seria ausentar-se, intervindo somente em
casos de necessidade. Mozi resume em poucas linhas o que
seria o dever de um rei em sua utópica sociedade pré-
comunista; por fim, Shangyang e Hanfeizi representam a dura
linha de raciocínio do totalitarismo legista, que obteve sucesso,
no entanto, em reunificar a China no séc. -3, apesar da
derrocada fragorosa da dinastia Qin, que eles ajudaram a
eleger.

200
75. Os Deveres de um Rei, no Dharmasutra

O rei é senhor de todos, com exceção dos brâmanes. Ele será


santo em atos e palavra. Inteiramente instruído na ciência
sagrada tripla e na lógica. Puro, de sentidos controlados,
cercado de companheiros donos de excelentes qualidades e
pelo meio de sustentar o seu governo.

Ele será imparcial com seus súditos;

E fará o que for bom para os mesmos.

Todos, com exceção dos brâmanes, o adorarão, a ele que se


senta num lugar mais alto, enquanto eles próprios sentam-se
em lugares mais baixos.

Também os brâmanes o homenagearão. Ele protegerá as castas


e ordens, de acordo com a justiça;

E aqueles que deixarem a trilha do dever, ele os reconduzirá a


mesma.

Pois está declarado nos Vedas que ele obtém uma parcela do
mérito espiritual ganho por seus súditos.

E ele escolherá como seu sacerdote doméstico um brâmane


versado nos Vedas, de nobre família, eloqüente, bem
apessoado, de idade adequada e de disposição virtuosa, que
viva corretamente e seja austero.

Com sua ajuda, cumprirá seus deveres religiosos.


Pois está declarado nos Vedas: "Xátrias que sejam ajudados

201
por brâmanes prosperam e não caem em dificuldades”.
Ele levará em conta, também, o que astrólogos e augures lhe
disserem.

Pois alguns declaram que a aquisição de riqueza e segurança


depende disso também.

Ele executará no fogo do salão os ritos que garantem a


prosperidade e estão ligados as expiações, festivais, uma
marcha próspera, vida longa e auspiciosidade, bem como
aqueles destinados a causar inimizade, dominar os inimigos,
destruí-los por encantamentos e levá-los ao infortúnio.

Os sacerdotes oficiantes executarão os demais sacrifícios, de


acordo com os preceitos dos Vedas.

Sua administração da justiça será regulamentada pelos Vedas,


os institutos da Lei Sagrada, os Angas, e o Purana.
As leis de países, castas e famílias, que não se oponham aos
registros sagrados, também têm autoridade.

Os agricultores, comerciantes, pecuaristas, financiadores e


artesãos têm autoridade para determinar regras para suas
respectivas classes.

Tendo-se informado do estado das coisas graças aos que, em


cada classe, têm autoridade para falar, ele emitira a decisão
legal.

O raciocínio é um meio de chegar a verdade.


Chegando a uma conclusão por intermédio dele, ele decidira
adequadamente.

202
Se as indicações estiverem em conflito, ele saberá da verdade
com os brâmanes, que sejam bem versados no conhecimento
sagrado triplo, dando sua decisão de acordo.
Isso porque, se agir assim, as bênçãos o atingirão neste mundo
e no seguinte.

203
76. Rei e Punição, no Manavadharmashastra

Só a punição governa todos os seres criados, só a punição os


protege; é a punição o que os protege enquanto dormem; os
sábios declaram que a punição é a lei.

Se a punição for devidamente aplicada depois de exame


devido, toma feliz o povo; mas aplicada sem exame, destrói
tudo.

Se o rei não aplicasse incansavelmente a punição aos que


merecem ser punidos, os mais fortes assariam os mais fracos,
como peixes em um braseiro;

O corvo comeria o bolo sacrifical e o cachorro lamberia as


carnes sacrificais, e a propriedade não ficaria com pessoa
alguma, e os inferiores usurpariam o lugar dos superiores.

Todo o mundo é mantido em ordem pela punição, pois é difícil


achar um homem sem culpa; pelo medo a punição, todo o
mundo proporciona os desfrutes que deve.

Os deuses, os Danavas, os Gandharvas, os Rakshasas, as


deidades de pássaro e serpente, só proporcionam os prazeres
devidos aos mesmos se forem atormentados pelo medo da
punição.

Todas as castas se corromperiam pela mistura, todas as


barreiras se romperiam e todos os homens se irariam uns contra
os outros, em consequência de erros com relação à punição.

204
Mas onde a Punição com cor negra e olhos vermelhos impera,
destruindo os pecadores, os súditos não se perturbam, desde
que quem a aplique tenha o necessário discernimento.

205
77. O poder do rei, no Arthashastra

Os líderes têm três motivos para empregar um sábio: uma boa


reputação, um grande enriquecimento e uma vida no paraíso.
Ha três motivos para um líder não empregar o tolo: a ma
reputação, o empobrecimento e seu caminho para o inferno.
Portanto, um líder deveria sempre empregar o virtuoso e evitar
quem não tem virtude.

Assim, a justiça, o prazer e a prosperidade podem nascer. O


líder deveria rejeitar os empregados hipócritas, enganadores,
destrutivos, indecisos, sem entusiasmo, incompetentes e
covardes. Uma pessoa que e cruel, desregrada, avarenta,
indecisa, sem tato, desonesta e extravagante não deveria ser
indicada para urna posição de autoridade. O líder deveria
rejeitar quem não tem paciência ou dedicação, os intrigueiros e
os mesquinhos, e quem fosse incompetente e amedrontado. [...]

Quando o líder é justo, seu povo e honesto; quando um líder e


cruel, seu povo e desonesto. Quando o líder e indiferente, o
povo e indiferente. O povo segue seu líder; o povo se comporta
como seu líder. o rei é responsável pelo mal feito por seu povo;
o sacerdote e responsável pelo mal causado pelo líder. o
marido e responsável pelos atos de sua esposa; e o professor é
responsável pelos males causados por seu estudante. O povo e
destruído por um líder que parece um leão, por um ministro
que parece um tigre e por um oficial que parece um abutre. [...]

Quem pune severamente será temido pelas pessoas. Já quem


pune de maneira branda será menosprezado. Aquele que pune

206
adequadamente será respeitado. Uma justiça criminal bem
estruturada faz com que as pessoas se atenham às intenções e
aos desejos legítimos. Uma punição mal aplicada, fruto de um
mero capricho, da raiva ou da ignorância, revolta até mesmo os
exilados que vivem na floresta e ofende mais ainda os que
sustentam suas famílias! Quando não há uma justiça criminal
capaz de regular a sociedade, ela acaba se rendendo à lei dos
peixes: sem os limites ditados pela justiça criminal, o forte
devora o fraco. Pessoas de classes e idades diferentes são
protegidas pelo sistema de justiça criminal criado por seu líder;
dedicadas às suas obrigações e ocupações, vivem as próprias
vidas. Como um caminho para o estabelecimento da ordem, a
justiça criminal traz a segurança às pessoas: pois se os jovens
encararem o juiz como o rei da morte, eles não cometerão
crimes. Os líderes que exercem a justiça criminal eliminam o
crime do seio do povo, trazendo segurança. A justiça criminal
mantém a integridade deste mundo e do próximo, desde que o
líder a aplique de acordo com o crime, seja contra seu filho ou
contra um inimigo.

207
78. A política ecumênica de Ashoka

Édito 1. Não devemos honrar apenas a religião própria e


condenar a dos outros e devemos honrar as religiões alheias por
este ou aquele motivo. Fazendo assim, ajudamos nossa própria
religião a crescer e prestamos serviço também as alheias. Ao
fazer de outro modo, estamos cavando a sepultura de nossa
própria religião e, ao mesmo tempo, fazendo mal as alheias.
Quem quer que honre sua própria religião e condene as alheias
certamente o faz por devoção a própria, pensando em glorificá-
la, mas, ao contrário, ao fazer isso prejudica a mesma
gravemente. Por isso, a concórdia é boa, e que se permita a
todos ouvir e prestar-se a ouvir as doutrinas professadas pelo
próximo.

Édito 2. No passado, por muitas centenas de anos, muitos seres


vivos foram mortos ou prejudicados, e aumentou os casos de
comportamento impróprio com parentes, com os brâmanes e
com os ascetas. Mas agora, devido ao Amado-dos-deuses,
Piyasadi, o rei que pratica o dhamma, o som do tambor foi
substituído pelo som do dhamma. A visão de carros divinos,
elefantes auspiciosos, corpos luminosos e outras visões divinas
não aconteciam há muito tempo. Mas agora, graças ao Amado-
dos-deuses, Piyasadi, se promove a restrição severa ao
massacre dos seres vivos, e se estimula o comportamento
apropriado com parentes, brâmanes e ascetas, se respeita pais,
mães e anciãos, e as visões divinas voltaram.
Estas e muitas outras práticas do dhamma foram encorajadas
pelo Amado-dos-deuses, Piyasadi, e ele continuará
promovendo a pratica do dhamma. Ele a praticará até o final
208
dos tempos, a promoverá entre seus filhos, netos e bisnetos, e
estes continuarão promovendo o dhamma, e se instruindo nele.
Verdadeiramente, este é o trabalho mais elevado, ensinar o
dhamma. Mas a prática do dhamma não pode ser feita por
quem é destituído de virtude, então, sua difusão e ensino [por
sábios homens] são recomendáveis. Este Édito foi escrito de
modo que isso possa ajudar meus sucessores a se dedicar e
promover estas coisas, e não lhes deixar perdê-las. O Amado-
dos-deuses, Piyasadi, escreveu isso doze anos depois de sua
coroação.

209
79. Discurso do Marquês de Qin, no Shujing

Disse o duque: “Ah! Meus funcionários, ouvi-me em silêncio.


Declaro-vos solenemente a mais importante de todas as
máximas. Foi o que disseram os antigos: “Assim sucede a
todos: amam, de preferência, o ócio. Não há dificuldade em
censurar os outros, mas é difícil aceitar a censura e dar-lhe livre
curso. O que me entristece o coração é que hajam transcorrido
os dias e os meses e não seja provável que voltem, de modo
que devo seguir um caminho diferente”.

“Ali estavam meus velhos conselheiros. Eu disse: “Não farão o


que eu desejo”, e os odiei. Ali estavam meus novos
conselheiros e eu quis outorgar-lhes minha confiança. Tal é
certamente o que eu fiz. Mas daí por diante me aconselhei com
os homens de cabelos brancos e me livrarei do erro. Aquele
bom funcionário velho! Sua força está esgotada, mas preferiria
não tê-lo como conselheiro. Aquele arrojado e bravo
funcionário! Seu modo de caçar e de guiar a carruagem são
impecáveis, mas preferiria não tê-lo por conselheiro. Quanto
aos homens de palavras sutis, hábeis e astutos, capazes de fazer
mudar de propósito o homem bom, que hei de fazer com eles?”

“Pensei profundamente e cheguei a uma conclusão. Tenha eu


um só ministro resolvido, simples e sincero, sem outra
habilidade mas com uma inteligência honrada e possuído de
generosidade, que considere os talentos alheios como se ele
mesmo os possuísse, e que quando encontra homens perfeitos e
sábios os ame de coração mais do que a boca pode dizer,
mostrando-se realmente capaz de apoiá-los. Semelhante

210
ministro seria capaz de proteger meus descendentes e meu
povo e seria verdadeiramente um outorgador de benefícios”.

“Mas se o ministro quando encontra homens hábeis os inveja e


odeia; se quando encontra homens perfeitos e sábios opõem-se
a eles e não consente que progridam, mostrando-se incapaz de
ajudá-los, semelhante homem não será capaz de proteger meus
descendentes e meu povo e não será um homem perigoso?”.
“O declínio e queda de um Estado podem ser devidos a um só
homem. A glória e a tranquilidade de um Estado podem
também ser devidos à bondade de um só homem”.

211
80. As regras do bom governo, no Zhongyong

Todos os que detêm o governo do reino com seus Estados e


famílias têm de seguir nove regras fixas: o cultivo do caráter, a
honra devida aos homens virtuosos e de talento, o afeto a seus
parentes, o respeito aos grandes ministros, o trato bondoso e
equânime a todo o corpo de funcionários, o trato com a massa
do povo como se fossem crianças, o estimulo à concorrência de
todas as classes de artífices, o trato indulgente com os homens
à distância e o bondoso apreço aos príncipes dos Estados.

Mediante o cultivo do seu próprio caráter, pelo governante,


realizam-se os deveres de obrigação universal. Honrando os
homens virtuosos e de talento, livra-se dos erros de julgamento.
Mostrando afeto para com os parentes, não há murmuração
nem ressentimento entre seus tios e seus irmãos. Respeitando
aos grandes ministros, livra-se de erros na prática do governo.
Tratando com bondade e consideração a todo o corpo de
funcionários, estes são levados a responder com o maior
agradecimento a suas cortesias. Tratando a massa do povo
como se fossem crianças, estas são levadas a exortar-se entre si
para praticar o bem. Estimulando a consciência de todas as
classes de artífices, ampliam-se seus recursos para as despesas.

Tratando indulgentemente os homens a distância, de toda parte


estes acodem para ele. E apreciando bondosamente os
princípios dos Estados, chega à veneração de todo o reino.
A correção pessoal e a purificação, com a ordenação cuidadosa
de suas vestes e o não fazer movimento contrário às regras da
correção: tal é, para um governante, o modo de cultivar sua

212
pessoa. Afastar os caluniadores livrar-se das seduções da
beleza, não dar importância aos ricos e honrar a virtude. Tal é,
para ele, o meio de estimular os homens dignos e de talento.

Dar-lhes postos de honra e grandes emolumentos, compartilhar


com eles seus gostos e aversões, tal é para ele, o meio de
estimular seus parentes para que o amem. Dar-lhes numerosos
funcionários para aliviá-los de suas ordens e incumbências, tal
é, para ele, o meio de estimular os grandes ministros.

Conceder-lhes confiança generosa, aumentar seus


emolumentos tal é o meio de estimular o povo. Exames diários
e provas mensais, e conseguir que suas reações estejam de
acordo com seus trabalhos, tal é o meio de estimular as classes
de artífices.

Acompanhá-los quando saem e ir-lhes ao encontro quando


chegam, recomendar o bom dentre eles e mostrar compaixão
pelo incompetente, tal é o modo de tratar indulgentemente os
homens distantes.

Restaurar as famílias cuja linha dinástica se rompera e


revivificar os Estados que se tenham extinguido, pôr em ordem
os Estados em que haja confusão e apoiar os que estejam em
perigo, assinalar datas fixas para as audiências na Corte e para
a recepção de seus enviados, despedi-los depois de tratá-los
liberalmente e celebrar sua chegada com pequenos tributos tal
é o modo de apreciar os príncipes dos Estados.

Todo aquele que mantêm o governo do reino com seus


Estados-famílias deve ter em vista as anteriores nove regras

213
fixas. E o meio pelo qual são elas postas em prática, é a
simplicidade.

214
81. As cinco obrigações do bom líder, no Liji

“Dos cinco chefes, o mais poderoso era o duque de Hui. Na


assembleia dos príncipes reunidos, amarrou uma vitima e sobre
ela colocou um escrito, mas não a matou para manchar seus
lábios com o sangue. O primeiro mandamento de seu pacto foi:
“Dar morte ao que não é filial. Não mudar o filho escolhido
para herdeiro. Não elevar a concubina à categoria de esposa. O
segundo era: “Honrar o digno, apoiar o homem de talento,
distinguir o virtuoso”. O terceiro era: “Respeitar o velho, ser
bondoso com o jovem. Não esquecer os estrangeiros e os
viajantes”. O quarto era: “Que os empregos públicos não sejam
hereditários, que não sejam acumuladores os funcionários. Na
seleção de funcionários, seja cada emprego desempenhado
pelos homens adequados. O governante não deve tomar a seu
cargo a morte de um Alto Funcionário”. O quinto era: “Não
seguir uma política desonesta na construção de represas. Não
impor restrições à venda de cereais. Que não haja promoções
sem primeiro anunciá-las ao soberano”. Então se disse: “Todos
os que nos unirmos neste pacto manteremos doravante relações
amistosas”. Todos os príncipes de nossos dias violam essas
cinco proibições; portanto digo que os príncipes de nossos dias
pecam contra os cinco chefes.

“O crime daquele que tolera e ajuda a maldade do seu príncipe


é pequeno, mas grande é o crime de quem se antecipa e exalta
essa maldade. Os funcionários de nossos dias saem ao encontro
da maldade de seus soberanos e por isso digo que pecam contra
os príncipes”.

215
82. Cinco deveres e quatro erros, no Lunyu
de Confúcio
Zizhang perguntou a Confúcio: "Como alguém se qualifica
para governar?" O Mestre disse: "Quem cultiva os cinco
tesouros e evita os quatro pecados está pronto para governar"
Zizhang disse: "Quais são os cinco tesouros?" O Mestre disse:
"Um cavalheiro é generoso sem ter de gastar; ele faz as pessoas
trabalharem sem as fazer padecer; ele tem ambição mas não
rapacidade; ele tem autoridade mas não arrogância; ele é
rigoroso mas não violento". Zizhang disse: "Como é possível
ser generoso sem ter de gastar?" O Mestre disse: "Se deixares o
povo procurar o que lhe é benéfico, não estarás sendo generoso
sem ter de gastar? Se fizeres o povo trabalhar apenas em
tarefas razoáveis, quem padecerá? Se tua ambição é a
humanidade e se realizas a humanidade, que lugar pode haver
para a rapacidade? Um cavalheiro trata com igualdade os
muitos e os poucos, os humildes e os grandes. Ele dá a mesma
atenção a todos: não tem ele autoridade sem arrogância? Um
cavalheiro se veste corretamente, seu olhar é reto, o povo olha-
o com admiração: não é ele rigoroso sem ser violento?"
Zizhang disse: "Quais são os quatro pecados?" O Mestre disse:
"O terror, que se apóia na ignorância e no assassinato. A
tirania, que exige resultados sem aconselhar adequadamente. A
extorsão, que é conduzida por meio de ordens contraditórias. A
burocracia, que recusa ao povo aquilo a que ele tem direito".

216
83. O governo do povo, em Mêncio

Disse Mêncio: "Quando prevalece no reino o governo justo, os


príncipes de pouco valor e virtude mostram-se submissos aos
de grandes predicados e de subido valor. Quando predomina o
mau governo, os pequenos são sujeitos aos grandes, os fracos
servem os fortes".

"Estes dois casos são lei do Céu. Os que se harmonizam com o


Céu são poupados; os que se rebelam contra o Céu têm de
perecer". [...]

Disse Mêncio: "Jie e Zhou* perderam o reino, em


conseqüência de haverem perdido o povo; perder o povo
significa perder o amor dos súditos. Há um modo de conquistar
o reino: conquiste-se o povo, e o reino está ganho. Há um meio
de conquistar o povo: cative-se o coração popular, e o povo
está adquirido. Há maneira de cativar o coração do povo: é
simplesmente oferecer-lhe o que ele deseja e não lhe impor o
que detesta".

"O povo volta-se para um soberano clemente, como a


correnteza desce o rio, e os animais ferozes correm para as
selvas".

"Assim como a lontra favorece as águas profundas, atraindo os


peixes para elas, e o falcão favorece as matas, chamando para
elas os passarinhos, assim Jie e Zhou auxiliam Tang e Wu**,
encaminhando o povo para estes".

217
"Se entre os atuais soberanos do reino houver um que preze a
clemência, todos os outros príncipes o ajudarão, encaminhando
o povo para ele. E embora esse rei não deseje exercer a
autoridade real, não a poderá evitar".

*[últimos tiranos mandatários de Xia e Shang,


respectivamente].

**[fundadores das dinastias Shang e Zhou]

218
84. As proibições, de Guanzi

Seis são as coisas que o soberano deve procurar, e quatro as


que deve proibir. As que deve procurar são: economizar gastos,
promover ministros sábios e capazes, estabelecer leis e
medidas, impor castigos, seguir os tempos do Céu e acomodar-
se as conveniências da Terra.

Quatro são as coisas que o soberano deve proibir: na primavera


não deve permitir matar, cortar, rebaixar terrenos, suprimir
vegetação, podar árvores, aplanar montes, incendiar campos,
castigar os ministros, exigir contribuições de grãos. No verão,
não obstruir o curso dos rios, não fazer barrancos, não remover
terras, não matar aves. No outono, não perdoar delitos, não
perdoar nem suavizar penas. No inverno, não conceder feudos
nem galardões, nem atacar ou casar dano aos campos.

Sem as proibições da primavera, a vida não poderá se


desenvolver; sem as proibições do verão, não crescerão os
cereais; sem as proibições de outono, não se poderão evitar
vícios e delinquências sem as proibições de inverno, os
vapores terrestres não se fixarão na terra.

Se se falta contra estas quatro proibições, o yin e o yang não


poderão combinar-se harmoniosamente. Os ventos e as chuvas
virão ao seu tempo, as águas inundarão terras e povoados, os
vendavais levarão casas e arrancarão árvores, os incêndios
arrasarão os montes, nevará no inverno e a terra tremerá. No
verão cairá a copa das árvores e no outono ela voltará a nascer.
Os animais não invernarão: os que o fariam estarão acordados e

219
soltos. Os montes se cobrirão de mal, e se povoarão de animais
e répteis. A cria de gado não prosperará, a gente morrerá
prematuramente, o Estado se empobrecerá e haverá revolta.

220
85. O governo daoísta de Laozi, no Daodejing

Do melhor dos governantes


O povo mal sabe que existe.
O Próximo ama e elogia.
O Próximo o teme.
E o Próximo o recrimina
Quando aqueles não regulamentam a fé do povo,
alguns acabam perdendo a fé neles,
e passam então a recorrer aos oráculos!
Porém, o melhor disto é após os deveres cumpridos e as tarefas
terminadas,
o povo inteiro observar: "Fomos nós que realizamos tudo
sozinhos".
[...]
Quando o governo é indolente e estúpido,
seu povo é despojado.
Quando o governo é eficiente e alerta,
seu povo mostra-se descontente.
O erro está no caminho da fortuna.
Pois a riqueza é a máscara da desgraça.
Quem seria capaz de prever suas derradeiras conseqüências?
Tal como é nunca existiria o normal,
visto que o normal se converteria imediatamente no falso,
e o bom se converteria no sinistro.
Tão longe a humanidade se transviou!
Por isso o Sábio é probo (de firmes princípios), porém sem
exagerada pureza,
cultiva a integridade porém, sem espezinhar os outros,

221
é correto sem ser voluntarioso,
e brilhante sem chegar a ofuscar.
[...]
Ao dirigir os negócios humanos, não há regra melhor que ser
comedido
Ser comedido é prevenir.
Prevenir é estar preparado e forte.
Estar forte e preparado é antecipar a vitória.
Antecipar a vitória é ter infinita capacidade.
Ter infinita capacidade é estar preparado para dirigir um país,
e só a arte (Mãe) de governar um país tem vida perene.
Isto é estar firmemente plantado, ter longa duração,
rumo aberto para a imortalidade e a visão duradoura.
[...]
Governa um grande país como se fosses um peixinho.
Aquele que dirige o mundo de acordo com Dao
acabará achando que os espíritos perdem seu poderio.
Não é que os espíritos percam seu poder,
mas sim que eles cessem de prejudicar o povo.
E não é somente porque eles cessem de prejudicar o povo,
mas que o Sábio, ele próprio, também não prejudique o povo.
Quando um e outro deixam de se prejudicar mutuamente
o poder da Virtude paira entre ambos.

222
86. O propósito de um Soberano, em Mozi

Mozi disse: “O propósito do Soberano consiste em outorgar


benefícios ao mundo e libertá-lo das calamidades.”
Mas quais são os benefícios e calamidades do mundo?
Mozi disse: “Os ataques recíprocos entre os estados, a mútua
usurpação entre as dinastias, as injúrias recíprocas entre os
homens, a intolerância e a deslealdade entre governo e
governados, o desamor e a ausência de piedade filial entre pai e
filho, a desarmonia entre o irmão mais velho e o mais novo!
Eis as maiores calamidades do mundo.”

223
87. O Governo, para Shang Yang

Um governo estável é alcançado num estado com base em três


fatores. O primeiro é a lei, o segundo a boa fé e o terceiro os
padrões corretos. A lei é exercida em comum pelo príncipe e
respectivos ministros. A boa fé é estabelecida em comum pelo
príncipe e respectivos ministros. O padrão correto é fixado
apenas pelo príncipe. Se um governante de homens deixar de o
cumprir, existe perigo; se o príncipe e os ministros
negligenciam a lei e agem segundo os seus interesses pessoais,
a desordem será o resultado inevitável. Por conseguinte, se a lei
é estabelecida, os direitos e deveres esclarecidos e o interesse
pessoal não prejudicam a lei, então existe um governo estável.
Se a criação do padrão correto é decidida apenas pelo príncipe,
existe prestigio. Se as pessoas têm fé nas recompensas, então as
suas atividades alcançarão resultados; e se depositam fé nas
penalidades, então a malvadez não terá sequer inicio. Somente
um governante inteligente preza os padrões corretos e valoriza
a boa fé, não prejudicando, assim, a lei em nome de interesses
pessoais. Se proferir muitas palavras liberais, cortando, porém,
as recompensas, os seus súditos não serão úteis; e se emitir
ordens severas, umas atrás de outras, mas não aplicar as
penalidades, as pessoas desprezarão a pena de morte. Em geral,
as recompensas constituem uma medida civil e as penalidades
uma medida militar. As medidas civis e militares representam a
síntese da lei. Por conseguinte, um governante inteligente
deposita confiança na lei.

224
88. Regras para o bom governo, de Hanfeizi

(...) Nenhum país é permanentemente forte. Nem todo país é


permanentemente fraco. Se ele se conforma com leis fortes,
então o país é forte; se ele se conforma com leis fracas, o país é
fraco...se existir alguma regra capaz de expulsar os ladrões do
privado e sustentar a lei pública, os povos se acharão seguros e
o Estado em ordem; e alguma regra capaz de expurgar a ação
privada no ato da lei pública, encontrará um exército forte e um
inimigo fraco. Assim, procure homens de fora que sigam a
disciplina das leis e os regulamentos, e os coloque num lugar
acima do corpo de oficiais. Então, o soberano não poderá ser
iludido por qualquer um com fraudes e falsidades... [...]

Os meios pelos quais uma regra inteligente controla seus


ministros são somente os dois punhos. Os dois punhos são a
punição e a recompensa. Que significam o castigo e a
recompensa? Quando se infligi a morte ou a tortura em cima
dos culpados, é chamado castigo; já os incentivos para homens
do mérito são chamados de recompensa. Os ministros são
receosos do censura e da punição, mas são afeiçoados ao
incentivo e a recompensa. Consequentemente, se o senhor dos
homens usar os punhos do castigo e da recompensa, todos os
ministros temerão sua severidade e por seu turno, sua
liberdade. (...) Agora, supondo que o senhor dos homens
colocasse sua autoridade da punição e do lucro não em suas
mãos, mas deixando os ministros administrarem os casos de
recompensa e de punição, a seguir todos no país temeriam os
ministros, e também a regra, voltando-se para os mesmos e

225
afastando-se da última. Esta é a calamidade da perda da regra
dos punhos do castigo e da recompensa.

226
Visões da Guerra
O desdobramento da política, em alguns casos, é a guerra. Não
é óbvio, porém, que os antigos fossem absolutamente amantes
da guerra, apesar da existência dos xátrias na Índia (a casta
guerreira) e de mestres da estratégia como Sunzi na China. A
guerra existia, fosse como necessidade, ou como consequência
de interesses políticos. O hino do Atharva veda, da época
védica, traz ainda o fulgor guerreiro das tribos arianas; as leis
de Manu, contudo, já anteviam que a guerra, mais do que um
exercício glorioso, é também uma questão estratégica
importante. No caso chinês, fica claro que a guerra é vista
como uma calamidade para o povo, como parece no poema do
Shijing; mesmo Sunzi, o primeiro autor a escrever um tratado
especifico sobre o tema, entende que a guerra é um evento
desastroso e nada romântico, defendo uma vitória pela
inteligência, mais do que pela violência; Mozi e Mêncio,
embora de escolas diferentes, desprezavam o conflito (apesar
dos moístas fossem bom estrategistas também), mas Shang
Yang, da escola legista, advogava que a guerra deveria ser uma
das principais atividades do governo, mantendo o povo
ocupado e sempre requisitado aos interesses do Estado. Os
regimes totalitários modernos incorporaram idéias semelhantes,
mostrando suas potencialidades e falhas desastrosas.

227
89. Benção das armas de um príncipe em sua ida
para a guerra, do Atharva veda
Quando está revestido da couraça e avança no meio da batalha,
ele parece uma nuvem de tempestade.
O arco! Manejando-o, iremos apossar-nos das vacas, dos
despojos do combate, e ganhar a batalha. O arco desagrada ao
inimigo. Vamos conquistar com o arco todas as regiões do
espaço.
Ela está junto à orelha, como se fosse falar, beijando o amante
querido, a corda! Distendida no arco, vibra como se fosse uma
jovem mulher, salvadora na confusão da luta.
E as duas que a sustentam, como a mãe ao seu filho, que se
aproximam dela, como vai a amante ao encontro do amado, são
as pontas do arco. Repelem os inimigos, expulsam os
adversários.
É mãe de muitas filhas e filhos, fazendo-os tinirem quando ela
desce à arena, a aljava. Amarrada às costas, logo agitada, ganha
as batalhas.
Em pé no carro está hábil cocheiro, estimulando os cavalos até
onde ele quiser. Admirai a beleza das rédeas. As bridas vêm de
trás e dirigem o animal segundo o pensamento do cocheiro.
Quando avançam com os carros, os cavalos fazem ruído, os
cavalos de ferraduras fortes. Pisando o inimigo, eles destroem
o adversário.
A oblação é a carreta onde se colocam as armas e a couraça.
Quem nos dera estar sempre de coração alegre, sentados no
carro.
Sentados em círculo para sorverem a doce bebida, estão os

228
Manes, doadores de vida, apoio no perigo, valorosos,
profundos, brilho das armas, impulso das flechas, incansáveis,
corajosos, dominadores dos clãs.
Ó brâmanes, Pais que honram o soma, sede benevolentes
conosco, vós e também o Céu e a Terra, que ninguém domina.
Puschan, defenda-nos do mau passo. Salvai-nos, vós que sois
exaltado pela ordem Universal. Nenhuma palavra pérfida nos
domina.
A flecha tem a pena da águia, seu dente é o da fera e, presa na
corda do arco, ela voa quando se solta. Onde os soldados se
juntam ou se separam, venham as flechas socorrer-nos.
Ó flecha direita, poupa-nos! Seja de pedra o nosso corpo!
Interceda por nós, Soma. Conceda-nos um abrigo, Aditi!
Ó chicote, açoita o lombo dos animais! Ó chicote, estimula os
cavalos ao combate!
A luva enrola-se no braço como se fosse uma ser- pente.
Proteja o braço do valente.
Embebida em arsênico, cabeça de antílope com boca de aço,
semente de Parjania, a Flecha! A nossa homenagem dirige-se a
essa deusa.
Voa longe, Dardo afiado pela oração! Vai, penetra nas fileiras
dos inimigos, sem poupar nenhum deles!
Quando as flechas voam juntas, como rapazes em cavalos
impetuosos, Briaspati e Aditi ofereçam-nos um refúgio em toda
parte, sempre um refúgio!
Protejo suas partes vitais com a couraça. Digne-se Soma Rei
vestir-te de imortalidade, Varuna, abrir-te um campo livre, e os
deuses saudarem sua vitória!

229
Quem pretende matar-nos, longe ou próximo de nós, destruam-
nos os deuses! A oração é a minha couraça interior!

230
90. A guerra no Manavadharmashastra

Quando um rei sabe que em algum momento próximo a


superioridade será sua, e que na presente ocasião seus danos
serão pequenos, então ele deve apelar para medidas
pacificadoras

Mas quando ele está realizado em todos os sentidos, que há


paz, contentamento, e que o povôo exalta como um grande
líder, então o deixe ir à guerra.

Quando seu exército alegre, disposto e forte, e o de seu inimigo


está fraco e desanimado, o deixe marchar contra o seu inimigo.
Mas se o rei for fraco, tiver poucas carruagens, poucas
montarias para o transporte e poucos soldados, deixe-o
acalmar-se, cuidadosamente, e tente conciliá-lo gradualmente
com seus inimigos.

Quando o rei sabe que o seu inimigo é muito mais forte que
ele, então deixe que o inimigo divida suas forças para assim
alcançar os seus propósitos.

Mas se um rei for muito fraco e facilmente dominável por seus


inimigos, então deixe que ele fuja para o abrigo de um outro rei
mais forte rapidamente.

Que ele sirva ao rei que o abriga, que trata de seus assuntos e
de seu inimigo, com todo esforço, como se este fosse seu guru.
Que ele percebe até quando, e como, é desfavorável a proteção
que ele pede aos outros, ou o mal que ele causa quando vai a
guerra.

231
Por isso um príncipe se baseia no seguinte princípio: que nem
seus amigos, inimigos, e nem os neutros são mais fortes do que
ele.

Ele deve considerar o destino de todas as suas ações, suas


consequências, o lado bom e ruim de tudo o que faz.
Ele sabe que o bem e o mal serão resultados de seus atos, tanto
no futuro quanto do passado. Se ele entender isso, não será
conquistado.

Se ele souber se organizar de modo que nenhum amigo,


inimigo ou neutro seja mais poderoso que ele, isso será a
sabedoria política.

232
91. Um Soldado pensando no Lar, do shijing

Vou até o alto daquela colina coberta de árvores,


E olharei em direção à casa paterna,
Até que com os olhos do espírito possa divisá-la,
E com os ouvidos do espírito possa ouvir meu pai dizer:
- Pobre de meu filho que está em serviço fora de nossa terra!
Ele não descansa de manhã até o anoitecer.
Possa ele ser cuidadoso e voltar para meus braços!
Enquanto está longe, como eu sofro!
Subo até o alto daquela colina estéril,
E olho pensando em minha mãe,
Até que com os olhos do espírito diviso suas feições
E com os ouvidos do espírito ouço o que ela diz:
- Ai! O meu pobre filho está em serviço longe de mim!
Ele nunca fecha os olhos num bom sono.
Que ele tenha cuidado consigo e que volte a meus braços!
Que seu corpo não fique no meio das selvas!
As mais altas cadeias de montanhas eu, com esforço, subo
E olhei pensando em meu irmão.
Até que com os olhos do espírito divisei sua silhueta,
E com os ouvidos do espírito ouço o que ele diz:
- Ai de mim! meu irmão mais novo está servindo fora do país.
O dia inteiro deve vaguear com seus camaradas.
Que ele tenha cuidado consigo e que volte para perto de mim
E que não morra longe de nosso lar!

233
92. Sobre as proposições da vitória e a derrota, em
Sunzi
Como regra geral, é melhor conservar um inimigo intacto do
que destruí-lo. Captura seus soldados para conquistá-los, e
domina seus chefes.

Um General dizia: "Pratica as artes marciais; calcula a força de


teus adversários; faz com que percam o ânimo e a orientação,
de maneira que ainda estando intacto, o exército inimigo fique
imprestável: Isto é ganhar sem violência. Se destruíres o
exército inimigo e matares seus generais, assaltas suas defesas
disparando, reúnes uma multidão e usurpas um território, tudo
isto é ganhar pela força."

Por isto, os que ganham todas as batalhas não são realmente


profissionais; os que conseguem que se rendam impotentes os
exércitos alheios sem lutar, são os melhores mestres do Arte da
Guerra.

Os guerreiros superiores atacam enquanto os inimigos estão


projetando seus planos. Logo desfazem suas alianças.
Por isso, um grande imperador dizia: "O que luta pela vitória
frente a espadas nuas não é um bom general." A pior tática é
atacar uma cidade. Assediar, encurralar uma cidade só se leva a
cabo como último recurso.

Emprega não menos de três meses em preparar teus artefatos e


outros três para coordenar os recursos para teu assedio. Nunca
se deve atacar por cólera e com pressa. É aconselhável tomar-
se tempo na organização e coordenação do plano.

234
Portanto, um verdadeiro mestre das artes marciais vence outras
forças inimigas sem batalha, conquista outras cidades sem
assediá-las e destrói outros exércitos sem empregar muito
tempo.

Um mestre experiente nas artes marciais desfaz os planos dos


inimigos, estropia suas relações e alianças, corta os
mantimentos ou bloqueia seu caminho, vencendo mediante
estas táticas sem necessidade de lutar.

É imprescindível lutar contra todas as facções inimigas para


obter uma vitória completa, de maneira que seu exército não
fique aquartelado e o beneficio seja total. Esta é a lei do
assédio estratégico.

A vitória completa se produz quando o exército não luta, a


cidade não é assediada, a destruição não se prolonga durante
muito tempo, e em cada caso o inimigo é vencido pelo
emprego da estratégia.

Assim, pois, a regra da utilização da força é a seguinte: se as


tuas forças são dez vezes superiores às do adversário, cerca-o;
se são cinco vezes superiores, ataca-o; se são duas vezes
superiores, divide-o.

Se tuas forças são iguais em número, luta se te é possível. Se


tuas forças são inferiores, te mantém continuamente em guarda,
pois a menor falha te acarretaria as piores consequências. Trata
de manter-te ao abrigo e evita o quanto possível um
enfrentamento aberto com ele; a prudência e a firmeza de um

235
pequeno número de pessoas podem chegar a cansar e a
dominar até grandes exércitos.

Este conselho se aplica nos casos em que todos os fatores são


equivalentes. Se tuas forças estão em ordem enquanto que as
do inimigo estão imersas no caos, se tu e as tuas forças estão
com ânimo e eles desmoralizados, então, mesmo que sejam
mais numerosos, podes entrar em batalha. Se teus soldados, as
tuas forças, a tua estratégia e o teu valor são menores que os de
teu adversário, então deves retirar-te e buscar outra alternativa.
Em consequência, se o bando menor é obstinado, cai
prisioneiro do bando maior.

Isto quer dizer que se um pequeno exército não faz uma


avaliação adequada de seu poder e se atreve a enfrentar uma
grande potência, por mais que a sua defesa seja firme,
inevitavelmente se converterá em conquistado. "Se não podes
ser forte, porém tampouco sabes ser débil, serás derrotado." Os
generais são servidores do Povo. Quando seu serviço é
completo, o Povo é forte. Quando seu serviço é defeituoso, o
Povo é débil.

Assim, pois, existem três maneiras pelas quais um Príncipe


leva o exército ao desastre. Quando um Príncipe, ignorando as
ações, ordena avançar a seus exércitos ou retirar-se quando não
devem fazê-lo; a isto se chama imobilizar o exército. Quando
um Príncipe ignora os assuntos militares, porém compartilha
em pé de igualdade o mando do exército, os soldados acabam
confusos. Quando o Príncipe ignora como levar a cabo as
manobras militares, porém compartilha por igual sua direção,

236
os soldados estão vacilantes. Uma vez que os exércitos estão
confusos e vacilantes, iniciam os problemas procedentes dos
adversários. A isto se chama perder a vitória por transtornar o
aspecto militar.

Se tentas utilizar os métodos de um governo civil para dirigir


uma operação militar, a operação será confusa.
Triunfam aqueles que:

Sabem quando lutar e quando não.

Sabem discernir quando utilizar muitas ou poucas tropas.


Possuem tropas cujas categorias superiores e inferiores têm o
mesmo objetivo.

Enfrentam com preparativos os inimigos desprevenidos.


Tem generais competentes e não limitados por seus governos
civis.

Estas cinco são as maneiras de conhecer o futuro vencedor.


Falar que o Príncipe seja o que dá as ordens em tudo é como o
General solicitar permissão ao Príncipe para poder apagar um
fogo: quando for autorizado, já não restam senão cinzas.
Se conheces os demais e te conheces a ti mesmo, nem em cem
batalhas correrás perigo; se não conheces os demais, porém te
conheces a ti mesmo, perderás uma batalha e ganharás outra; se
não conheces aos demais nem te conheces a ti mesmo, correrás
perigo em cada batalha.

237
93. Contra a Guerra, em Mozi

Falemos agora dum só país em pé de guerra. Se for no inverno,


agravar-se-á o frio. Se for verão, o calor será excessivo. Se for
na primavera, a peleja inibirá os camponeses de semear e
plantar; se for no outono, tornará impossível a colheita e a
segadura. Em qualquer dessas estações, desde que os homens
sejam arrancados aos campos, inúmeras pessoas morrerão de
fome e de frio. E, quando os exércitos partem, com setas de
bambu, flâmulas de penas, barracas, armaduras, escudos e
cabos de punhais... Inúmeras dessas coisas serão quebradas,
destruídas e jamais voltarão. As lanças, as adagas, as espadas,
os punhais, os carros, as carroças... Serão destruídos em grande
número e nunca voltarão. Numerosos cavalos e bois, que
partiram bem nutridos, se voltarem, voltarão descarnados. E
inúmeras pessoas morrerão à míngua, por lhes serem tirados os
mantimentos e não receberem – devido às grandes distâncias –
novas provisões. Inúmeros seres adoecerão e perecerão, em
virtude do constante perigo e da irregularidade com que
comem e bebem, dos extremos da fome ou dos excessos. Então
o exército será dizimado em grande parte, ou aniquilado na sua
totalidade; noutros casos, o número das vítimas pode ser
incalculável. Isto significa que os espíritos perderão os seus
adoradores, e o número destes também seria incontável.
Por que, então, o governo priva o povo de oportunidades e
benefícios em tamanha extensão? A resposta será: “O motivo
é: Ambiciono a fama do triunfador e as possessões que se
obtém pelas conquistas”.

238
94. A guerra é um massacre, em Mêncio

O rei Huei de Liang disse: "Apesar da minha fraca virtude,


ponho todo o empenho em governar bem o meu reino. Se o ano
for infausto em Ho, removo todas as pessoas que posso para
leste do Ho e transporto cereais àquela região. Se o ano for
mau a leste do rio, procedo, noutra parte, de acordo com o
mesmo plano. Examinando os métodos governamentais, nos
reinos vizinhos, não vejo soberano que se esforce como eu.
Contudo, a população dos reis vizinhos não diminui; nem
aumenta o meu povo. Como é isto?"

Mêncio replicou: "Vós prezais a guerra, Majestade. Permiti que


vos trace um quadro da guerra. Os soldados avançam, ao som
do tambor; e, quando o gume das suas armas se embota, eles
despem as couraças, arrastam as armas atrás de si e fogem.
Alguns correm cem passos e param; outros dão cinquenta
passos e param. Que pensaríeis vós, se os que só andaram
cinquenta passos se rissem dos que deram cem passos?"
O rei observou: "Eles não podem fazer isso. Os outros não
alcançaram cem passos, mas também fugiram".

"- Desde que sabeis isso, Majestade", tornou Mêncio, "não


tendes razão para esperar que o vosso povo se torne mais
numeroso do que as populações dos reinos vizinhos".

239
95. A guerra, em Shang Yang

Geralmente, no método aplicado nas campanhas militares, o


principio fundamental consiste em tomar as medidas
governamentais supremamente prevalecentes. Se tal for
alcançado, então as pessoas envolvidas não terão disputas; e,
não tendo disputas, não terão pensamentos sobre interesses
próprios, mas sim sobre os interesses do governante. Por
conseguinte, um verdadeiro rei, através das medidas adotadas,
tornará as pessoas receosas nos combates entre várias cidades,
mas valentes nas guerras contra os inimigos externos. Se as
pessoas forem treinadas para atacar os perigos com vigor, estas
não darão tanto valor à morte. Se, porventura, o inimigo for
perseguido assim que o combate se iniciar e não cessar a sua
retirada, abstende-vos de alcançar mais longe. [...]

Se um estado, ao ser pobre, se dedica à guerra, o veneno


nascerá no lado do inimigo e não terá os seis parasitas, mas
será certamente forte. Se um estado, quando é rico, não se
dedica à guerra, o veneno será transferido para o seu próprio
interior, terá os seis tipos de parasitas e será certamente fraco.
Se o estado confere posição e estatuto de acordo com o mérito,
pode afirmar-se que concebe planos com absoluta sabedoria e
combate com plena coragem. Tal país certamente será
inigualável. Se um estado confere posição e estatuto de acordo
com o mérito, então as medidas governamentais serão simples
e as palavras serão poucas. Isto pode ser considerado abolir as
leis através da lei e abolir as palavras através das palavras.
Todavia, se um estado concede posição e estatuto de acordo
com os seis parasitas, então as medidas governamentais serão
240
complexas e as palavras emergirão. Isto pode ser considerado
criar leis através da lei e dar origem à loquacidade através das
palavras. Então, o príncipe dedicar-se-á a eloquência, os
funcionários estarão distraídos a dirigir os funcionários
malvados e estes terão proveitos próprios, enquanto os que
possuem mérito retirar-se-ão cada vez mais, dia a dia. A isto
pode chamar-se fracasso. Quando há que cumprir dez regras,
estabelece-se a confusão; quando há apenas uma para cumprir,
existe ordem. Quando a lei é estabelecida, aqueles que gostam
de praticar os seis parasitas deteriorar-se-ão. Se as pessoas se
dedicam inteiramente a agricultura, o estado é rico; se os seis
parasitas não são praticados, então os soldados e as pessoas,
sem exceção, rivalizarão entre si por incentivo e ficarão
satisfeitos por serem utilizados pelo governante; as pessoas,
dentro dos limites das fronteiras, rivalizarão entre si,
considerando este fato honroso e não vergonhoso. Em seguida,
surgirá a circunstância em que as pessoas rivalizarão entre si
porque são incentivadas por via de recompensas e reprimidas
por via de punições. Contudo, o pior caso dá-se quando as
pessoas desprezam algo, são ansiosas e tem vergonha desta
situação; então, adornam as aparências exteriores e dedicam-se
à eloqüência; tem vergonha de assumir uma posição e exaltam
a cultura. Deste modo, negligenciam a agricultura e a guerra e
contemplando, assim, os interesses externos, criar-se-á um
clima de perigo para o país. Possuir pessoas a morrer de fome e
de frio, possuir mais vontade para lutar em nome do lucro e da
gratificação são práticas correntes num estado em deterioração.
Os seis parasitas são: festejos e música, odes e história, cultura
moral e virtude, piedade filial, obrigação fraternal, sinceridade

241
e fé, castidade e integridade, benevolência e justiça, criticismo
do exército e vergonha de lutar. Se existirem estes doze fatores,
o governante é incapaz de convencer as pessoas a cultivar as
terras e a combater, pelo que o estado será tão pobre, levando-o
a ser desmembrado. Se estes doze fatores se manifestam em
conjunto, então poderá afirmar-se que a administração do
príncipe não é mais forte do que os seus ministros e que a
administração dos seus funcionários não é mais forte do que o
seu povo. Esta é considerada uma condição em que os seis
parasitas são mais fortes do que o governo. Quando estes doze
fatores adquirem um elo de ligação, então se dá o
desmembramento. Por conseguinte, para tomar um país
próspero, não se deviam praticar estas doze coisas; então, o
estado terá muito mais força e ninguém, no império, será capaz
de invadi-lo. Quando os seus soldados partem, atingirão o seu
objetivo e, ao atingi-lo, serão capazes de o manter. Quando um
estado mantém os seus soldados na reserva e não procede a
ataques, tomar-se-á certamente rico. Os funcionários da corte
não rejeitam qualquer mérito, apesar do pequeno número que
representam, nem depreciam qualquer mérito, apesar do grande
número que representam. A posição e estatuto são obtidos em
função do mérito conquistado e, embora possam existir
conversas sofisticas, será impossível obter precedência
indevida. Isto é definido como o governo baseado em
estatísticas. Ao atacar com força, são ganhos dez pontos por
cada ponto empreendido, mas no ataque com palavras, perdem-
se cem por cada palavra proferida. Se um estado preza a força,
diz-se que ataca com o que é difícil; se um estado preza as
palavras, diz-se que ataca com o que é fácil. Se as penalidades

242
são pesadas e as recompensas são poucas, então o governante
ama o seu povo e este morrerá por si; se as recompensas são
pesadas e as penalidades leves, então o governante não ama o
seu povo nem este morrerá por si. [...]

No domínio dos assuntos externos relacionados com as


pessoas, não há nada mais difícil do que as campanhas
militares, daí uma lei fácil não as poderem induzir a integrá-las.
O que se chama de uma lei fácil? É quando as recompensas são
poucas e a autoridade é fraca e quando as doutrinas depravadas
não são obstruídas. O que se chama de doutrinas depravadas?
Existem quando o palavrório e o conhecimento são
valorizados, quando os políticos itinerantes recebem cargos e
quando a erudição e reputação particular se encontram em
evidência. Quando estes três fatores não são detidos, as pessoas
não combaterão e as questões esmorecerão. Uma vez que,
quando as recompensas são poucas, não se encontra qualquer
vantagem na obediência; quando a autoridade é fraca, não há
qualquer mal na transgressão. Desta forma, as doutrinas
depravadas são iniciadas de forma a induzir em erro as pessoas;
e fazê-las lutar enquanto a lei é fácil é como colocar um gato a
engodar um rato. Não será isto possível? Por conseguinte,
aquele que deseja que o seu povo lute providencia para que a
lei seja severa; conseqüentemente, as recompensas serão
numerosas, a autoridade será rigorosa, as doutrinas depravadas
serão proibidas, aqueles que se dedicam ao palavrório e ao
conhecimento não serão honrados, os políticos itinerantes não
serão empregados no poder, a erudição e a reputação privada
não se evidenciarão. Se as recompensas são numerosas e a

243
autoridade rigorosa, então as pessoas, ao ver que na guerra as
recompensas são muitas, esquecerão o risco da morte e, ao ver
a sua degradação quando não existe guerra, considerarão a vida
difícil. Quando as recompensas os fazem esquecer do risco da
morte e a autoridade rigorosa os leva a considerar a vida difícil
e, além disso, as doutrinas depravadas são proibidas, deste
modo enfrentar o inimigo seria como disparar, com uma besta
com capacidade de cem piculs, sobre uma folha esvoaçante.
Como seria possível não sucumbir?

244
A Ciência de Registrar o Passado

Enquanto a Índia não possuía nenhuma concepção histórica


desenvolvida, em função da sua crença firme na questão da
realidade transcendente (e que este mundo material seria uma
incessante repetição de padrões), a China desenvolveu uma
fixação pela história como ciência, ensejando a evolução de
métodos e teorias até os dias de hoje. Por isso, esta seção se
apresenta de modo díspar: pela Índia, um extrato do Vishnu
purana nos dá uma idéia do que era a história para os indianos
nas épocas antigas – simplesmente contos, apólogos, que nós
chamaríamos mesmo de lendas, mas que para os indianos tinha
valia se contivesse alguma forma de ensinamento espiritual –
ou seja, a história se afirmava por acontecimentos inéditos e
divinos merecedores de serem lembrados por seus conteúdos
religiosos. Do outro lado, a China apresenta-nos uma tradução
histórica devidamente assentada na avaliação moral, na
pesquisa das fontes e na reflexão ativa e explicativa. O
primeiro destes historiadores teria sido o próprio Confúcio,
seguido depois por outros autores até a aparição de Sima Qian,
o grande ideólogo dos métodos históricos chineses. Nesta
relação, vemos primeiramente um trecho do Chunqiu
(primaveras e outonos), crônica seca organizada por Confúcio,
que necessitou posteriormente de comentários explicativos,
como o do Zuozhuan. Sua função era organizar as datas dos
principais eventos, buscando depois ilustrá-los com análises
morais. O Shujing (tratado dos livros) é a coletânea de
discursos e acontecimentos importantes do passado chinês,

245
reorganizados pelo mesmo Confúcio; o Zhanguoce, uma
coleção de histórias posteriores, foi coligida nos tempos dos
estados combatentes (471-221 aec), não tendo um autor
definido; por fim, Sima Qian, da dinastia Han, apresenta-nos
uma biografia, cuja análise do personagem principal guarda o
sentido do texto; uma análise filosófica e moral da realidade,
com fins educativos.

246
96. A Agitação do Oceano Pelos Deuses, no
Vishnu purana
Sendo assim instruídas pelo deus dos deuses, as divindades
entraram em aliança com os demônios; e conjuntamente
compreenderam a aquisição da bebida da imortalidade.
Reuniram diversos tipos de ervas medicinais e jogaram-nas no
mar de leite, cujas águas eram radiantes como as nuvens finais
e brilhantes do outono. Depois, tomaram o monte Mandara por
bastão, a serpente Vasuki por corda e começaram a agitar o
oceano para conseguir a Ambrosia. Os deuses reunidos foram
colocados por Krishna na cauda da serpente; os daityas e
danavas (a), em sua cabeça e pescoço. Tostados pelas chamas
emitidas de seu capuz inflado, os demônios foram tosquiados
de sua glória; enquanto as nuvens, levadas para sua cauda pelo
hálito de sua boca, refrescavam os deuses com lufadas
reconfortantes. Em meio ao mar lácteo, o próprio Hari (b), na
forma de uma tartaruga, serviu como pivô para a montanha
enquanto a mesma era girada. O portador da maça e disco (b)
estava presente, em outras formas, entre os deuses e demônios
e ajudou a arrastar o monarca da raça de serpentes; e em outro
corpo vasto, sentou-se no cume da montanha. Com uma porção
de sua energia, invisível a deuses e demônios, sustentou o rei
as serpentes e com outra infundiu vigor aos deuses.
Do oceano, agitado assim pelos deuses e Danavas, surgiu
primeiro a vaca Surabhi, a fonte de leite e coalhos, adorada
pelas divindades e contemplada por elas e seus companheiros
com mentes perturbadas e olhos brilhando de prazer. Então,
enquanto os Santos no céu imaginavam o que isto podia ser,

247
surgiu a deusa Varuni,(c) com olhos agitados pela embriaguez.
Em seguida do redemoinho das profundezas surgiu a árvore
Parijata,(d) o deleite das ninfas no céu; perfumando o mundo
com suas flores. Foi produzida então a tropa dos apsararas,(e)
de surpreendente beleza, dotada de encanto e bom gosto.
Surgiu em seguida a lua de raios frios, sendo tomada por
Mahadeva;(f) e depois foi engendrado o veneno pelo mar, do
qual as najas (g) tomaram posse. Dhanvantari, vestido de
branco e trazendo na mão a taça de ambrósia, veio em seguida
e em sua contemplação os filhos de Diti e de Danu,(h) bem
como os ascetas, se encheram de satisfação e prazer.
Depois, sentada numa flor de lótus e segurando um nenúfar em
sua mão, surgiu das ondas a deusa Shri,(i) radiante de beleza.
Extasiados, os grandes sábios a homenagearam com hinos na
canção em seu louvor, Vishvavasu (j) e outros coristas
cantaram e Ghrtaci e outras ninfas celestes dançaram em seu
redor. Ganga e outras correntes santas se apresentaram para
suas abluções, e os elefantes dos céus, tomando suas águas
puras em vasos de ouro, derramaram-nos sobre a deusa, a
rainha do mundo universal. O mar de leite pessoalmente
presenteou-a com uma coroa de flores perenes e o artista dos
deuses a decorou com ornamentos celestes. Assim banhada,
vestida e adornada a deusa, à vista dos celestiais, atirou-se
sobre o peito de Hari, e ali reclinada voltou os olhos para as
deidades, que se inspiraram extasiadas com seu olhar.
Não aconteceu assim com os daityas,(k) que com Vipracitti à
sua frente, encheram-se de indignação quando Vixnu se afastou
deles, e foram abandonados pela deusa da prosperidade.
Os daityas poderosos e indignados tomaram então à força a

248
taça de Ambrósia que estava nas mãos de Dhanvantari. Mas
Vixnu, assumindo forma feminina, fascinou-os e iludiu-os e
retomando a taça, entregou-a aos deuses. Shakra (l) e as demais
deidades embarcaram a

Ambrósia. Os demônios irritados, empunhando suas armas,


caíram sobre eles, mas os deuses, em quem a força da
Ambrósia infundira vigor novo, derrotaram e puseram seu
anfitrião a fugir, e eles escaparam pelas regiões do espaço,
mergulhando nos reinos subterrâneos. Com isso os deuses se
rejubilaram, prestaram homenagem ao portador da maça e do
disco, (b) e retomaram seu reino no céu. O sol brilhou com
esplendor renovado e retomou a tarefa que lhe fora atribuída; e
os luminares celestes novamente giraram em suas respectivas
órbitas. O fogo mais uma vez ardeu, belo em seu esplendor; e
as mentes de todos os seres foram animadas pela devoção. Os
três mundos foram novamente tornados felizes pela
prosperidade e Indra, o chefe dos deuses, restaurado em seu
poder. Sentado em seu trono e mais uma vez no céu, exercendo
soberania sobre os deuses, Shakra (l) elogiou a deusa que traz
um lótus em sua mão. Louvada, a agradecida Shri, morando em
todas as criaturas e ouvida por todos os seres, respondeu ao
deus dos cem ritos (l)

"Estou feliz, monarca dos deuses, por tua adoração. Pede de


mim o que quiseres. Eu vim para satisfazer teus desejos".
"Deusa", replicou Indra, "se tu acederes às minhas orações; se
sou digno de tua generosidade, que seja este o meu primeiro
pedido - que os três mundos jamais sejam novamente privados
de tua presença. Minha segunda súplica, filha do oceano, é que

249
não esqueças aquele que celebre teus louvores nas palavras que
te dirigi". "Eu não abandonarei os três mundos outra vez”,
respondeu a deusa. "Este teu primeiro pedido é satisfeito, pois
estou feliz por teus louvores. Além disso, jamais virarei o rosto
para o mortal que, de manhã e de tarde, repetir o hino com que
te dirigiste a mim".

a) Duas classes de demônios.


b) Vixnu.
c) A deusa do vinho.
d) Árvore paradisíaca.
e) Ninfas do céu.
f) Xiva.
g) Deidades das serpentes.
h) Demônios.
i) Divindade feminina da glória e Prosperidade.
J) Chefe dos Gandharvas, classe de semideuses.
k) Demônios.
l) Indra, chefe dos deuses.

250
97. Uma passagem do Chunqiu (Primaveras e
Outonos), comentada pelo Zuozhuan de
Zuoqiuming

"Na primeira lua da primavera do nono ano do seu reinado, o


duque de Zhuang derrotou o exército do estado de Qi em
Chang Cho".

Comentário do Zuozhuan: Tendo o estado de Qi declarado


guerra ao nosso estado, e estando o nosso duque preparado
para iniciar a campanha, apareceu um homem chamado Guei a
pedir uma audiência. Disseram-lhe os seus conselheiros:

- Os oficiais já decidiram sobre as estratégias a adotar. Que


papel pensas desempenhar nesses planos? - Eles não passam de
um grupo de incompetentes, que não têm a menor ideia do que
sejam planos secretos. Guei acabou por ser levado a presença
do duque, e imediatamente interrogou: "Que forças dispõe
vossa alteza para fazer a guerra?

- Nunca monopolizei alimentação e roupas, sempre as partilhei


com todos - respondeu o duque.

- Isso não passou de um pequeno favor, compartilhado apenas


por alguns. O povo não o acompanhará, fiado apenas nesse
motivo.

- Bem - continuou o duque - nos sacrifícios aos deuses, confiei


mais na sinceridade do coração do que no fausto das
aparências.

251
- Também isso constitui uma razão insuficiente. Os deuses não
abençoarão as vossas armas baseados apenas nessa desculpa.

- Nas investigações judiciais, ainda que fosse difícil dar com a


verdade, tomei decisões sempre de acordo com provas que me
foram apresentadas.

- Também isso está longe de lhe dar a certeza de confiar no


povo, e pode comprometer o resultado da guerra por causa
disso. Peço-lhe, assim, para o acompanhar na sua campanha.
A isto o duque acedeu, levando Guei na sua própria carruagem.

A batalha travou-se em Chuang-Cho. E à vista do inimigo, o


nosso duque deu sem demora as suas instruções para se iniciar
o ataque, mas Guei advertiu:

-Ainda não.

E só quando os tambores do inimigo rufaram três vezes é que


Guei aconselhou a não atacar.

E o duque prontamente deu ordens para os perseguir, mas Guei


tornou a dizer:

-Ainda não.

Apeou-se da carruagem, e estudou cuidadosamente os trilhos


dos carros adversários. E só depois de examinar tudo com os
seus olhos, gritou:

- Agora.

E o duque deu ordem então para perseguir os inimigos.

252
Quando a batalha foi totalmente ganha, o duque pediu a Guei
uma explicação da sua tática.

- Uma batalha - respondeu este - depende inteiramente, e acima


de tudo, do ardor dos combatentes. Ao primeiro sinal do
tambor, o ardor do inimigo estava violentamente excitado.
Com o segundo, começou a atenuar-se. E com o terceiro,
entrou em exaustão. Então, quando o ardor do inimigo chegou
a essa fase, estavam os nossos no auge do seu ardor.
Assim os vencemos. Mas, contra uma formidável força
inimiga, deve estar-se preparado para tudo. Receava uma
emboscada. Mas verifiquei pelos trilhos das carruagens, que a
retirada foi feita em visível desordem. Reparei igualmente nos
seus pendões, e concluí que se agitavam também em confusão.
Portanto, aconselhei que só nessa altura se perseguisse o
inimigo.

253
98. O Cânone de Yao, do Shujing

Investigando a Antiguidade, verificamos que Ti Yao se


chamava Fang- xün. Era reverente, esclarecido, instruído e
atento, com naturalidade e sem esforço. Era sinceramente
cortês e capaz de toda e qualquer complacência. A gloriosa
influência dessas qualidades foi sentida nos quatro quadrantes
do território e alcançou o céu no alto e a terra aqui em baixo.
Distinguiu os capazes e virtuosos; depois, amou a todos
aqueles pertencentes às nove classes da sua parentela, que
assim se tomou harmoniosa. Regulamentou e refinou também o
povo dos seus domínios, que se tornou todo ele brilhantemente
esclarecido. Por fim unificou e harmonizou os inúmeros
estados; assim se transformaram as populações de cabelos
pretos. E o resultado foi a concórdia universal.
Ordenou aos Xi e He, em reverente acordo com a sua
observação dos largos céus, que calculassem e desenhassem os
movimentos e aparências do sol, da lua, das estrelas e dos
espaços zodiacais; e, desse modo, respeitosamente decretassem
quais as estações a serem observadas pelo povo.
Ordenou separadamente ao segundo irmão Xi que residisse em
Yü-i, no lugar denominado Vale Brilhante e ai respeitosamente
hospedasse o sol nascente e regulasse e ordenasse os trabalhos
da primavera. "O dia", disse ele, "é de duração média e a
estrela está em Mao; - assim podereis determinar exatamente o
meio da primavera. O povo está disperso pelos campos e os
pássaros e animais se cruzam e copulam".

Depois ordenou ao terceiro irmão Xi que residisse em Naon-


chiao, no lugar denominado Capital Brilhante, para que
254
regulasse e ordenasse as transformações do verão e
respeitosamente observasse os limites exatos da sombra. "O
dia", disse ele, "está na sua duração máxima e a estrela acha-se
em Huo; - assim podereis determinar exatamente o meio do
verão. O povo está mais disperso e os pássaros e animais, com
as penas e o pêlo ralos, mudam de roupagem".

Ordenou separadamente ao segundo irmão He que residisse no


ocidente, no lugar denominado Vale Obscuro e aí
respeitosamente acompanhasse o sol poente e regulasse e
ordenasse os trabalhos do outono, em conclusão. "A noite",
disse ele, "está na sua duração média e a estrela acha-se em
Hou; - assim podereis determinar exatamente o meio do
outono. O povo sente-se bem e os pássaros e animais estão com
a sua roupagem em bom estado".

Depois ordenou ao terceiro irmão He que residisse na região


norte, no lugar denominado Capital Sombria e aí regulasse e
observasse as mudanças do inverno. "O dia", disse ele, "está na
sua duração mínima e a estrela acha-se em Mao; - assim
podereis determinar exatamente o meio do inverno. O povo
fica em casa e a roupagem dos pássaros e animais é farta e
recoberta de penas ou pêlos".

Disse o Ti (imperador): "Ah! vós, Xi e He, um ano inteiro


consiste de trezentos e sessenta e seis dias. Mediante o mês
intercalar, fixam as quatro estações e completai o período do
ano. E após, estando os vários funcionários assim
regulamentados, todos os trabalhos serão plenamente
executados".

255
99. Contra os áulicos sistemáticos, do Zhanguoce

O Rei Wei, de Qi, vivia inteiramente cercado de cortesãos que


lhe afagavam a vaidade e seguiam seus caprichos. Certo dia,
Zou Chi disse ao rei:

— Majestade, não sou exatamente de má aparência. (Era


homem de “oito pés” de altura). Mas, no norte da cidade, há
um Sr. Shu, famoso por seu belo aspecto. Um dia, fiquei em
frente ao espelho e perguntei a minha mulher: “Quem achas
mais bonito, eu, ou o Sr. Shu?” “Tu, naturalmente”, respondeu
minha mulher. Não ousei basear-me em sua palavra e fiz a
mesma pergunta à minha concubina. “Como pode o Sr. Shu
comparar-se contigo?”, foi sua resposta. Na manhã seguinte,
chegou um visitante e, após uns instantes, fiz-lhe a mesma
pergunta; ele respondeu: “O Sr. Shu não pode comparar-se
contigo”. No dia imediato, o próprio Sr. Shu foi visitar-me.
Examinei-o cuidadosamente e achei que ele era muito mais
bonito do que eu. Olhei-me bem ao espelho e fiquei
inteiramente convencido de que eu não me podia comparar a
ele. Assim, deitei-me em minha cama e pensei: minha mulher
me louva, porque é parcial em relação a mim; minha concubina
me louva, porque tem medo de mim; meu amigo me louva,
porque tem algo a pedir-me. Ora, Qi é um reino de mil li
quadrados, com cento e vinte cidades. todas as damas e todos
os servidores do palácio são parciais em relação a Vossa
Majestade. Todos os cortesãos têm medo de seu poder. E todo
o povo tem alguma coisa a pedir-lhe. Assim, parece-me difícil
que Vossa Majestade consiga ouvir a verdade.

256
— Dizes bem — respondeu o rei. Então, baixou um decreto:

‘Todos os ministros, funcionários e pessoas comuns que


puderem mostrar meus enganos receberão a mais alta classe de
recompensas. Os que escreverem cartas para aconselhar-me
receberão a recompensa de segunda classe. E os que puderem
criticar-me e a meu governo na praça do mercado, de modo que
isso me chegue aos ouvidos, receberão a recompensa de
terceira classe”.

Baixado o decreto, viu-se o rei inundado por uma torrente de


conselhos e a corte ficou repleta de gente. Isso continuou por
vários meses. Um ano depois, não havia erro do governo que
não tivesse sido considerado e apontado por alguém. Os países
vizinhos, Yen, Chao, Han e Wei, souberam do que o rei fizera
e acabaram reconhecendo o Estado de Qi como seu dirigente.
Isso é o que se chama ganhar a guerra sem sair de casa.

257
100. A Vida de Po Yi, por Sima Qian, no Shiji

Certas pessoas dizem (citando o Livro da História): “o Céu é


imparcial. Está com os homens que andam na retidão”. Nós
diríamos que Poyi e Shuchi eram homens retos, não é verdade?
Eram homens de grande força de caráter e de rígidos
princípios; contudo, morreram de fome! Além disso, dos
setenta discípulos de Confúcio, o que recebeu dele o mais alto
louvor como verdadeiro amante do estudo foi Yen Huei. No
entanto, Huei sempre foi pobre, comendo grosseiras refeições
sem queixar-se, e morreu jovem! É assim que Deus
recompensa os bons? Por outro lado, vemos o famoso bandido
Chih, que matava inocentes, comia fígado humano e assolava o
país com milhares de sua quadrilha, assassinando e roubando; e
morreu de morte natural, em idade avançada! Que fez para
merecê-lo? Esses são exemplos do passado, bem conhecidos.
Nos dias atuais, vemos pessoas que infringem a lei e cometem
atos contrários à justiça ficarem ricas, levando vida
confortável, e suas famílias continuam a gozar de fausto e
prosperidade. Outros, por outro lado, observam os mais severos
princípios, voltam as costas aos atalhos para o êxito, sendo,
ainda, cuidadosos com suas palavras e só falando movidos por
amor ao bem público, quando há uma grande injustiça.
Incontável, todavia, é o número de tais pessoas que sofre
desastres pessoais. É este o caminho do céu, de que o povo
fala? Ou será o contrário? Tenho grandes dúvidas a tal respeito.
Confúcio diz: “Os que não acreditam nas mesmas coisas não
podem ter trato entre si”; com isto, quer dizer que tudo quanto
se pode fazer é apenas seguir as próprias convicções. Eis por

258
que Confúcio disse de si mesmo: “Eu gostaria até de puxar
uma carroça se soubesse que, assim fazendo, ficaria rico por
meu próprio esforço. Como não posso ter certeza, farei o que
gosto de fazer”. E diz mais: “Quando chega o inverno, verifica-
se que os pinheiros e os ciprestes suportam melhor o frio”.
Quem tem coração puro mantém-se firme num mundo de
corrupção geral. Sabe o que mais preza e desdenha o resto.
“Um cavalheiro detesta morrer sem deixar nome para a
posteridade” (diz Confúcio). E Chiazi diz: “O cobiçoso morre
de juntar dinheiro, o cavaleiro heróico morre pela fama, o
homem de êxito morre de lutar pelo poder e a gente comum
evita a morte”. “Os que têm a mesma luz atraem-se
mutuamente e os animais da mesma espécie um ao outro se
buscam”; “As nuvens seguem o dragão e os ventos seguem o
tigre”; “Ergue-se o sábio e todas as coisas se tornam claras”
(Citação do Livro das Alterações). Poyi e Shuchi tornaram-se
imortais graças ao louvor de Confúcio, e Yen Huei ficou
conhecido da posteridade por ter seguido o Mestre, embora
todos tivessem seus méritos próprios. Há, porém, muitos
filósofos que vivem em isolamento e são admiráveis por seu
caráter e sua conduta, mas de quem nunca se ouve falar. Não é
triste isso? Pessoas comuns que sejam de rigorosa conduta e
desejem tornar-se conhecidas dos pósteros não têm outro
remédio senão associar-se a letrados de grande reputação.

259
Anexo

Para completar esta coletânea de textos históricos, creio serem


válidos dois textos ilustrativos para as concepções de história
chinesa. O primeiro, de Shang Yang, embriona a ideia do
passado como referência para mudança, e não permanência.
Este conceito seria fundamental para os legistas na época de
Qin, de Lisi e Hanfeizi, que defendiam a inovação como um
meio de superação do passado, e a abolição dos antigos
costumes e leis, em favor das teorias jurídicas legistas. O
segundo texto seria uma visão histórica baseada na escola
filosófico-médica do Neijing do que seria o passado ideal
chinês. Embora não se trate de um texto histórico, ele cumpre
algumas funções do mesmo, tais como: apresentar uma noção
de calendário ordenador do cosmo, propor uma conexão – e
uma teoria para perda – do dao, conceito tão caro as escolas
filosóficas e por fim, defender que a ordenação social
dependeria da prática da saúde, pautadas na teoria yin-yang.
Decerto, uma concepção fascinante de história.

260
A visão de passado em Shang Yang

Antigamente, na era do Grande e Ilustre Governante, as


pessoas encontravam o seu modo de vida no corte de árvores e
abate de animais; a população era dispersa e as arvores e os
animais numerosos. Nos tempos de Huang-ti, nem os animais
novos nem os ovos eram apanhados; os funcionários não
tinham abastecimentos e, quando as pessoas morriam, não
eram autorizadas a utilizar caixões exteriores. Estas medidas
não eram as mesmas, mas o fato de ambas atingirem
supremacia era porque os tempos em que viviam eram
diferentes. Nos tempos de Shen-nung, os homens lavravam a
terra para obter comida e as mulheres teciam para fazer roupas.
Sem a aplicação de punições ou medidas governamentais, a
ordem prevalecia; sem a formação de soldados armados,
reinava-se com supremacia. Após a morte de Shen-nung, os
fracos foram conquistados pela força e os poucos oprimidos
pelos numerosos. Por conseguinte, Huang-ti criou as noções de
príncipe e ministro, de superior e inferior, de conduta entre pai
e filho, entre os irmãos mais velhos e mais novos, a união entre
marido e mulher e entre companheiro e parceiro. Na pátria,
aplicou a espada e a serra e, no estrangeiro, utilizou os
soldados armados; tudo isto graças à assuntos internos e
externos.

261
Grande Tratado sobre a Harmonia da Atmosfera
das Quatro Estações com o Espírito Humano, no
Neijing

Os três meses da Primavera chamam-se o período do princípio


e do desenvolvimento da vida. As exalações do Céu e da Terra
estão preparadas para gerar; assim, tudo se desenvolve e
floresce.

Após uma noite de sono, as pessoas devem levantar-se de


manhã cedo, caminhar vivamente pelo pátio, soltar o cabelo e
tornar mais lentos os movimentos do corpo. Procedendo assim
podem realizar o seu desejo de viver saudavelmente.
Durante este período, o corpo deve ser encorajado a viver e não
a ser morto; devemos ceder-lhe livremente e não lhe tirar nada;
devemos recompensá-lo e não castigá-lo.

Tudo isto está em harmonia com a exalação da Primavera e


tudo isto é o método de proteção da nossa vida.
Os que desrespeitam as leis da Primavera serão punidos com
mal do fígado. A esses o Verão seguinte reservará arrepios e
mudanças más. Assim, terão pouco com que apoiar o seu
desenvolvimento no Verão.

Os três meses de Verão chamam-se o período do crescimento


luxuriante. As exalações do Céu e da Terra misturam-se e são
benéficas. Está tudo em flor e começa a dar fruto.

Após uma noite de sono, as pessoas devem levantar-se de


manhã cedo. Não se devem cansar durante o dia nem consentir
que o seu espírito se irrite.

262
Devem permitir que as melhores partes do seu corpo e do seu
espírito se desenvolvam; devem permitir que o seu hálito se
comunique com o mundo exterior e devem proceder como se
amassem tudo quanto existe exteriormente.

Tudo isto está em harmonia com a atmosfera do Verão e tudo


isto é o método de proteção do nosso desenvolvimento.
Os que desrespeitam as leis do Verão serão punidos com mal
do coração. A esses o Outono trará febres intermitentes. Assim,
terão pouco apoio para as colheitas outonais e sofrerão de
doença grave no solstício do Inverno.

Os três meses de Outono chamam-se o período de


tranquilidade da nossa conduta. A atmosfera do Céu é intensa e
a atmosfera da Terra é desanuviada.

As pessoas devem deitar-se cedo e levantar-se cedo, com o


cantar do galo. Devem ter o espírito em paz, a fim de
minimizarem a punição do Outono. Alma e espírito devem
unir-se para que a exalação do Outono seja tranquila, e para
conservarem os pulmões puros as pessoas não devem dar
expansão aos seus desejos.

Tudo isto está em harmonia com a atmosfera e tudo isto é o


método de proteção da nossa colheita.

Os que desrespeitarem as leis do Outono serão punidos com


um mal pulmonar. A esses o Inverno trará indigestão e diarreia
e, assim, terão pouco apoio para o armazenamento do Inverno.
Os três meses de Inverno chamam-se o período de fechar e

263
armazenar. A água gela e a terra estala e abre fendas. Não
devemos perturbar o nosso Yang (2).

As pessoas devem deitar-se cedo e levantar-se tarde, esperar


que o Sol nasça. Devem reprimir e ocultar os seus desejos,
como se não tivessem nenhum objetivo interior, como se
estivessem em tudo satisfeitas. As pessoas devem tentar fugir
ao frio e procurar calor, não devem transpirar pela pele e
devem privar-se da exalação do frio.

Tudo isto está em harmonia com a atmosfera do Inverno e é o


método de proteção do nosso armazenamento. Os que
desrespeitarem as leis do Inverno sofrerão de um mal dos rins
(e Testículos); a eles a Primavera trará impotência e produzirão
pouco.

O hálito do Céu é puro e leve. O Céu mantém sempre a sua


virtude primitiva e, por isso, nunca se desmorona. Se o Céu se
abrisse por completo, o Sol e a Lua nunca seriam luminosos, o
mal chegaria durante este período de vazio, a atmosfera de
Yang fechar-se-ia e a Terra perderia a sua luminosidade,
nuvens e nevoeiro não poderiam sofrer mudanças, e,
consequentemente, o orvalho branco não cairia e a circulação
dos elementos naturais não se comunicaria à vida de tudo na
Criação. A esta situação chamar-se-ia “não - doadora”, e, como
consequência da sua “não - doação”, toda a vegetação
pereceria. Além disso, o ar nocivo não desapareceria, vento e
chuva não seriam harmoniosos, não cairia orvalho branco e a
vegetação jamais voltaria a florescer. Haveria sempre ventos
violentos e chuvaradas súbitas, e o Céu, a Terra e as quatro

264
estações seriam incapazes de se proteger entre si, perderiam o
Dao e não tardariam a ser destruídas.

Os sábios respeitavam as leis da natureza, e, por isso, o seu


corpo estava isento de doenças estranhas; não perdiam nada do
que tinham recebido da Natureza e o seu espírito de vida nunca
se esgotava.

Aqueles que não procedem de conformidade com o hálito da


Primavera não trarão vida à região do Yang inferior A
atmosfera do seu fígado modificar-lhes-á a constituição.
Aqueles que não procedem de conformidade com a atmosfera
do Verão não desenvolverão o seu Yang superior. A atmosfera
do seu coração tornar-se-á vazia.

Aqueles que não procedem de conformidade com a atmosfera


do Outono não colherão o seu Yin superior. A atmosfera dos
seus pulmões ficará bloqueada, isolada do seu espaço de
combustão inferior.

Aqueles que não procedem de conformidade com a atmosfera


do Inverno não abastecerão o seu Yin inferior A atmosfera dos
seus testículos (rins) ficará isolada e diminuída.

Destarte, as interações das quatro estações e as interações do


Yin e do Yang, os dois princípios da Natureza, são os alicerces
de tudo quanto existe na Criação. Daí que os sábios tenham
concebido e desenvolvido o seu Yang na Primavera e no Verão
e concebido e desenvolvido o seu Yin no Outono e no Inverno,
a fim de respeitarem a regra das regras; e assim, juntamente

265
com tudo o mais da Criação, os sábios mantiveram-se no limiar
da vida e do desenvolvimento.

Os que se rebelam contra as regras básicas do Universo cortam


as próprias raízes e destroem a sua verdadeira personalidade. O
Yin e o Yang — os dois princípios da Natureza — e as quatro
estações são o princípio e o fim de tudo e são igualmente a
causa da vida e da morte. Os que desobedecem às leis do
Universo dão origem a calamidades e provações, enquanto os
que respeitam as leis do Universo permanecem isentos de
doenças perigosas, pois a eles foi concedido o Dao, o Caminho
Certo.

O Dao era praticado pelos sábios e admirado pelos ignorantes.


A obediência às leis do Yin e do Yang significa vida; a
desobediência significa morte. Os obedientes dominarão,
enquanto os desobedientes viverão em desordem e confusão.
Tudo quanto é contrário à harmonia com a Natureza é
desobediência e equivale à rebelião contra a Natureza.
Por isso, os sábios não tratavam aqueles que já estavam
doentes e instruíam aqueles que ainda não estavam doentes.
Não queriam guiar aqueles que já eram rebeldes; guiavam
aqueles que ainda não eram rebeldes. E este o significado de
toda a discussão precedente. Administrar remédios a doenças
que já se desenvolveram e reprimir revoltas que já eclodiram é
comparável ao comportamento daquelas pessoas que começam
a abrir um poço depois de terem sede, ou daquelas que
começam a fundir armas depois de já se terem lançado na
batalha. Não chegarão estas ações demasiado tarde?

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O presente volume é uma reedição da coletânea Cem
textos de história asiática, que busca apresentar um
contraste literário entre as duas principais civilizações
do Extremo Oriente, Índia e China. Muitos são os
mitos acerca das relações entre essas duas culturas; de
que a Índia emprestara sua cultura à China, de que a
China não tem autonomia de pensar, ou de que ambas
são muito semelhantes, entre outros. Todos estes erros
foram construídos por concepções históricas
superadas, mas que ainda persistem no imaginário
popular ou dos estudantes desavisados. Esta obra visa
construir um quadro diferente dessas perspectivas,
contribuindo para superá-las.

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