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LEGISLAÇÃO URBANA E REGISTRO E

IMOBILIÁRIO
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Sumário
NOSSA HISTÓRIA ............................................................................................. 3

HISTÓRIA NOVA, HISTÓRIA URBANA E HISTÓRIA DA LEGISLAÇÃO


URBANÍSTICA ................................................................................................... 4

O LUGAR DA LEGISLAÇÃO NA HISTORIOGRAFIA DO URBANISMO NO


BRASIL .............................................................................................................. 9

O LUGAR DA LEGISLAÇÃO NO URBANISMO BRASILEIRO ........................ 13

O LUGAR DOS PRESSUPOSTOS MODERNISTAS NA LEGISLAÇÃO


URBANÍSTICA ................................................................................................. 16

ESTUDO DE CASO ......................................................................................... 22

Para Além da Lei: Legislação Urbanística e Cidadania (São Paulo 1886-1936)


......................................................................................................................... 22

Introdução ........................................................................................................ 22
Separar e reinar: nasce o bairro residencial exclusivo ..................................... 24
Inclusão, exclusão e cidadania......................................................................... 27
O papel do Estado: serviços urbanos e os bairros populares .......................... 30
A crise dos anos 20 na cidade das multidões .................................................. 34
A ponta do iceberg: a questão do arruamento irregular ................................... 37
A cidade popular pode ser anistiada e a cidade burguesa se defende ............ 41

Conclusão ........................................................................................................ 43
DO ESTATUTO DA CIDADE AO CÓDIGO DE URBANISMO ......................... 54

Introdução ........................................................................................................ 54
Competência da União para legislar sobre direito urbanístico ......................... 54
A legislação urbanística federal........................................................................ 55
Deficiências da legislação federal .................................................................... 56
A Experiência internacional em direito urbanístico ........................................... 58

Sugestão de agenda ........................................................................................ 59


REGISTRO DE IMÓVEIS ................................................................................. 60

Princípio da continuidade ................................................................................. 60


Princípio da especialidade objetiva .................................................................. 63

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Princípio da especialidade subjetiva ................................................................ 65


Princípio da Inscrição ou do Registro ............................................................... 66
Princípio da Legalidade .................................................................................... 68
Princípio da prioridade ..................................................................................... 70
O NOVO PAPEL DOS BENS IMÓVEIS NUMA PERSPECTIVA CIVIL-
CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE HUMANA .............................................. 73

A função econômica e social do Registro de Imóveis diante do princípio


constitucional da dignidade da pessoa humana ............................................... 79

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................. 90

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NOSSA HISTÓRIA

A nossa história inicia com a realização do sonho de um grupo de


empresários, em atender à crescente demanda de alunos para cursos de
Graduação e Pós-Graduação. Com isso foi criado a nossa instituição, como
entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior.

A instituição tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de


conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a
participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua
formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais,
científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o
saber através do ensino, de publicação ou outras normas de comunicação.

A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma


confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base
profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições
modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica,
excelência no atendimento e valor do serviço oferecido.

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HISTÓRIA NOVA, HISTÓRIA URBANA E HISTÓRIA DA


LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA

A partir dos anos 80, um número crescente de pesquisas vem-se


direcionando para a construção da historiografia das cidades brasileiras,
estabelecendo um marco temporal em relação à escassa produção anterior
nessa área. Um elemento a destacar – determinante para uma avaliação do
estado da arte desse conjunto de trabalhos – é seu caráter multidisciplinar, uma
vez que vêm sendo elaboradas, majoritariamente, por arquitetos, urbanistas,
planejadores, geógrafos e outros profissionais vinculados à questão urbana.
Nesse sentido, a produção em curso pode ser inscrita no processo de ampliação
do território da história que, desde os anos 60, se dissemina na Europa e nos
Estados Unidos, a partir do movimento que tem origem no grupo de historiadores
ligados à revista Annales d’Histoire Économique et Sociale, surgida em 1929, na
França, como reação aos paradigmas do historismo desenvolvido no século XIX.

Dos pela visão do historismo, que tem no historiador alemão Leopold von
Ranke sua maior expressão. À história baseada unicamente nos grandes
acontecimentos e nas fontes documentais oficiais, restrita à política e feita
somente por historiadores profissionalizados, contrapõem a aproximação da
história a outras disciplinas e a ampliação dos objetos da história e do campo de
fontes documentais. Nessa busca de ampliação do território da história e da
interdisciplinaridade está implícito o questionamento à especialização do
historiador, que resultou da institucionalizatem um passado que pode ser
reconstruído, não se reconhecendo, portanto, a existência de uma história com
H maiúsculo. Assim, em contraposição a uma história referenciada em fatos que,
nas palavras de Braudel, não passam de “espumas nas ondas do mar da
história”, propõem a “história total”.2 Os fatos não existem isoladamente, mas
constituem um tecido, têm uma organização na qual desempenham o papel de
causa, fins, acasos etc., e cabe ao historiador “reencontrar essa organização”.3
Em termos metodológicos, a diretriz principal diz respeito à ampliação das fontes:
não apenas escritas, mas também orais, imagéticas, estatísticas, etnográficas
etc. A explicação histórica deve, nessa perspectiva, dar-se pela variedade de

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questionamentos que se revelam mediante o reconhecimento de “vozes variadas


e opostas”, e não pelo ideal de uma voz oficial da história.4

Somente a partir dos anos 60, a interdisciplinaridade proclamada desde


os anos 20 se realiza, diluindo-se os rígidos limites entre o território da história e
algumas áreas das ciências humanas. Nos anos 70, o movimento passa a
denominar-se Nova História, dissemina-se pela Europa e Estados Unidos, e os
historiadores a ele vinculados ampliam seu espaço nas instituições acadêmicas
e conquistam o acesso às editoras e à mídia. Várias questões vêm sendo
levantadas quanto aos rumos tomados pelo movimento dos Annales, as quais
não cabem ser desenvolvidas no âmbito deste texto. A própria expressão Nova
História vem sendo questionada, uma vez que nunca foram abandonados os
princípios elaborados no início do século.5 Há um debate em torno das relações
dos historiadores com o materialismo histórico, as quais oscilam entre o
reconhecimento de Marx como um precursor de muitas de suas ideias e a
negação do método e dos conceitos marxistas. A vinculação dos historiadores à
Academia também é questionada: o movimento, que se inicia marcado pelo
inconformismo, pela negação da ortodoxia acadêmica, acaba, segundo alguns
autores, por entrar no jogo intramuros da Academia, e os procedimentos
considerados revolucionários convertem-se “em simples instrumentos para
legitimação de trabalhos que graças a eles se inscrevem acadêmica e
editorialmente”. 6

Outra questão levantada refere-se ao fato de a chamada Nova História


ser considerada um movimento de disseminação de práticas e ideias relativas à
historiografia, e somente se constituir como uma “escola” no período em que é
liderado por Fernand Braudel, quando novos conceitos são elaborados,
conformando uma concepção de história.7 A principal contribuição da Nova
História ao pensamento e à prática da história seria, portanto, a introdução, por
Braudel, de uma nova dimensão da história, que diz respeito à apreensão das
forças profundas da história que só se deixam apreender e só atuam no tempo
longo. Braudel decompõe a história em três planos escalonados, distinguindo
tempo histórico/tempo geográfico, tempo social e tempo individual. A eles
correspondem, respectivamente, as estruturas, as conjunturas, os

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acontecimentos. O tempo das estruturas é a longa duração, a quase imobilidade,


uma vez que as estruturas permanecem constantes durante um tempo longo ou
só evoluem de maneira imperceptível. O tempo das conjunturas são flutuações
de dimensões diversas, oscilações cíclicas que se manifestam no contexto das
estruturas. Os acontecimentos são engendrados pelas estruturas e conjunturas,
são as rupturas ou o restabelecimento de equilíbrios.8

Mas em meio a todos os questionamentos, há uma concordância quanto


à contribuição do grupo na expansão do campo da história, bem como na
descoberta de novas fontes e novos métodos para explorá-las. Sua importância
está não apenas na dilatação do território da história como também do
historiador, abrangendo temas e grupos sociais negligenciados pelos
historiadores tradicionais.

Como parte de tal processo, a história urbana desenvolve-se a partir da


história social e, no panorama internacional, os anos 60 constituem um momento
relevante, pois inicia-se a busca de demarcação de seus conteúdos.9 Um
pressuposto que se impõe é assumir um ponto de ruptura no processo de
constituição da cidade, enfatizando, dessa maneira, uma abordagem
problematizada da urbe. Essa abordagem contrapõe-se à abordagem dominante
na história da cidade, desde o século XIX, que tem como pressuposto teórico a
noção de crescimento evolutivo ou de desenvolvimento, “que faz com que a(s)
cidade(s) seja(m) considerada(s) um fato histórico, sempre o mesmo, um
fenômeno cujas transformações (materialidade e função) constituem o objeto de
pesquisa dos estudiosos”.Nesse sentido, considera-se a cidade do século XIX
um momento de ruptura no processo de urbanização e privilegia-se o estudo da
cidade associada à ideia de modernidade. Nessa perspectiva, a cidade moderna
é considerada essencialmente diferente, não podendo, portanto, ser abordada
como mera descendente dos núcleos urbanos do passado.

De modo geral, numa grande categoria denominada “história urbana”,


passam a enquadrar-se todos os estudos que tenham a cidade como locus,
ocorrendo uma não-distinção entre o que é peculiar ao desenvolvimento da
cidade e aquilo que diz respeito à cultura de forma geral. As posições em torno

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dessa questão são diversas, com autores que consideram difícil, ainda hoje,
demarcar o que é um trabalho de história urbana, autores que apregoam um
campo específico para a história do urbanismo, e autores que entendem a
história urbana como o estudo da forma urbana como resultante de complexas
forças sociais, psicológicas e econômicas. Em The History of Urban and
Regional Planning – an annotated bibliography, publicado em 1981, Anthony
Sutcliffe faz um balanço dos trabalhos elaborados, em sua grande maioria, na
Europa e Estados Unidos. Em suas conclusões, podem-se observar algumas
semelhanças com a condição atual da história urbana no Brasil, principalmente
em relação ao universo de pesquisas vinculadas às idéias e às práticas
urbanísticas, tanto no que se refere ao perfil dos pesquisadores, como no que
se refere aos limites na utilização de recursos teórico-metodológicos. Cabe
destacar que a maioria absoluta dos trabalhos levantados por Sutcliffe são
elaborados no período pós-60, o que confirma esse momento como um marco
na expansão da área.

O autor mostra que a maioria dos trabalhos são elaborados por


profissionais de diferentes áreas, mas vinculados à prática do planejamento
urbano, e identifica uma imaturidade na historiografia do planejamento, a qual se
manifesta sob vários aspectos: há, por um lado, a necessidade de se estabelecer
um “pedigree histórico” para reforçar a identidade da profissão e, por outro, a
busca das origens para explicar as frustrações devidas às limitações atuais do
planejamento. Para Sutcliffe, a não-formação acadêmica dos autores na área de
história faz que grande parte dos trabalhos não passem de catalogações de leis
ou biografias de planejadores, que não estabelecem relações com seus
períodos, ou, ainda, estudos de planos de cidades que não se explicam pelos
processos urbanos mais gerais. Ao mesmo tempo que detecta tais limites,
Sutcliffe afirma que a historiografia realizada por profissionais atuantes e
oriundos de todas as áreas das ciências sociais é de fundamental importância,
uma vez que a vitalidade da história do urbanismo está, justamente, no duplo
vínculo com prática e teoria.

Semelhantes questões nos dizem respeito. A carência de teorização e


discussão conceitual e metodológica da história já foi apontada na análise de um

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universo limitado da produção brasileira, elaborada por Filgueiras & Fernandes


(1998). Vivemos um momento em que, a uma apropriação documental – uma
verdadeira “saída dos armários” de relatórios, material iconográfico, planos,
relatórios etc. – corresponde uma não-apropriação metodológico-conceitual da
disciplina história, que se expressa, por um lado, na quantidade de pesquisas
voltadas para a criação de bancos de dados e, por outro, no número significativo
de trabalhos que se restringem a descrever cronologicamente planos, leis,
relatórios etc. Deve-se considerar que os trabalhos, no Brasil, além de
sinalizarem a vitalidade de um campo temático multidisciplinar, constituem uma
busca de ampliação de parâmetros teóricos e metodológicos para se transpor os
limites interpretativos colocados pela pronunciada influência do referencial
marxista – desenvolvido, sobretudo, pela sociologia francesa dos anos 70 –, o
qual vinha marcando as pesquisas brasileiras. Assim, paralelamente ao
esquadrinhamento das fontes documentais, que vem permitindo iluminar todo
um universo de constituição da engenharia, arquitetura e urbanismo brasileiros
que permanecia oculto, os trabalhos de história urbana refletem o deslocamento
das interpretações fundamentadas exclusivamente em determinantes
econômicos, em que as questões fundiária, imobiliária e de serviços urbanos
foram privilegiadas na explicação dos processos de estruturação urbana, para a
incorporação de aspectos estético-culturais. Se, nos anos 70, os marcos teórico-
conceituais em suas várias vertentes eram em grande parte explicitados ou
reconhecíveis, nos trabalhos elaborados pós-80, com exceção daqueles
vinculados à linha foucaultiana, tais questões vêm sendo minimizadas.

Nesse panorama, a legislação urbanística – aqui entendida como o


conjunto de regulamentações referentes ao parcelamento, uso e ocupação do
solo e às edificações – não foge à regra, com a agravante de não estar
recebendo a devida atenção dos pesquisadores, embora seja o elemento
constitutivo da disciplina do urbanismo mais desenvolvido, no Brasil, nas últimas
cinco décadas. São poucos os trabalhos que vêm procurando inserir a legislação
como fato histórico no interior de uma história-problema, no sentido apontado
por Veyne (1971). Ainda que a referência à legislação esteja presente na maior
parte dos estudos sobre o urbanismo no Brasil, a legislação é, de certa forma,

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naturalizada e, com raras exceções, ultrapassa o caráter de identificação das


leis por meio da listagem e descrição de seus conteúdos.

Neste trabalho, procuramos levantar alguns pontos para a discussão dos


caminhos, abordagens e métodos em curso na historiografia da legislação
urbanística. O papel assumido pela legislação no urbanismo brasileiro constitui
um campo nebuloso e pouco explorado. Nos setores de urbanismo das
administrações municipais no Brasil, prevalece, há meio século, uma abordagem
legalista, ou seja, a legislação é colocada como uma meta em si, e não como um
instrumento, dentre outros, para atingir determinadas metas de desenvolvimento
urbano. Se no período da Primeira República, quando começam a estruturar-se,
nas administrações públicas, as seções de obras que evoluem para seções de
urbanismo, a elaboração e execução dos planos de melhoramentos e,
posteriormente, dos chamados planos de conjunto, impõem-se como atividade
privilegiada de urbanistas oriundos dos cursos de Engenharia. A partir dos anos
40, ocorre um nítido deslocamento da esfera de atuação desses órgãos.
Constrói-se um novo saber urbanístico – uma nova visão de atuação do Estado
ante as novas formas de apropriação do espaço urbano – e os denominados
órgãos de planejamento passam a atuar, fundamentalmente, como órgãos
normativos. A tal mudança corresponde uma nova estrutura organizacional do
setor, assim como a construção de um novo perfil do urbanista – o profissional
generalista, com predominância de profissionais egressos dos cursos de
arquitetura. É nesse momento que se dá uma fissura entre arquitetura e
urbanismo: planejar passa a constituir-se como atividade desligada de projetar,
e o zoneamento – abrangente ao conjunto da cidade e articulador de um conjunto
de parâmetros urbanísticos em zonas funcionais – consolida-se como o principal
instrumento de planejamento.

O LUGAR DA LEGISLAÇÃO NA HISTORIOGRAFIA DO


URBANISMO NO BRASIL
No período anterior à década de oitenta, dois trabalhos destacam-se pela
abordagem da legislação urbanística: a tese para concurso de cátedra na Escola
Politécnica da Universidade de São Paulo, de Francisco de Paula Andrade, de

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1966, e o livro de Nestor Goulart Reis Filho, de 1968. Embora Andrade coloque
que não visa a “história”, seu trabalho pode ser considerado pioneiro, pois
fornece um quadro abrangente da legislação brasileira, desde o Império até a
primeira metade do século XX, apontando suas relações com a legislação
urbana portuguesa. Reis Filho, ao estudar a evolução urbana do Brasil nos
séculos XVI e XVII, aponta os princípios reguladores e as instituições
responsáveis por sua implementação, no âmbito da política urbanizadora no
Brasil-colônia. Da análise dos trabalhos publicados em livros, anais de encontros
e seminários, dissertações de mestrado e teses de doutorado, no período pós-
80, podem ser identificadas três vertentes dominantes nas pesquisas voltadas
para a historiografia da legislação urbanística no Brasil. Uma primeira vertente
enfoca os aspectos normativos referentes à propriedade fundiária, emanados
pelo poder eclesiástico até a promulgação da Lei de Terras, em 1850, quando a
terra adquire o estatuto de mercadoria. Os trabalhos de Marx (1991), Fridman &
Ramos (1992) e Fridman (1994) mostram como entre o regime jurídico do
sistema de sesmarias do período colonial e a separação entre Igreja e Estado
estrutura-se a propriedade fundiária no Brasil. Da distribuição gratuita de terras,
passa-se à aquisição onerosa, o que define os limites da propriedade em favor
do interesse público. Marx (op. cit.) mostra, de forma minuciosa, como persistem,
por décadas, os privilégios dos grandes detentores de terra e os procedimentos
do antigo sistema de distribuição de terras, e como, de forma tímida, os
municípios se adaptam à nova realidade político-administrativa, a partir da lei de
1850 e sua regulamentação em 1854, mediante a prática dos loteamentos e dos
códigos de posturas, atos e resoluções.

Esses trabalhos permitem detectar a constituição de um sistema legal em


torno da propriedade privada – da exigência da escritura pública de compra e
venda (1855) à criação do imposto predial (1878) e taxação de terrenos não-
construídos em freguesias urbanas centrais (1897) – e como, já em fins do
século XIX, se pode estabelecer uma relação entre tais medidas e o processo
de valorização imobiliária e fundiária. Além disso, apontam que, juntamente com
o aparato legal, ocorre uma estruturação da administração e novas funções se
constituem no quadro administrativo municipal. A segunda vertente caracteriza-

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se por estudos que têm como marco temporal a Primeira República, nos quais
prevalece a interpretação da legislação como instrumento de dominação e
normatização da vida das classes populares e de atividades que se incluem na
esfera das ilegalidades urbanas, referenciadas nos pressupostos higienistas
(Rolnik, 1983; Feldman, 1987; Lira, 1991; Marins, 1998). Nesses trabalhos, a
lógica disciplinadora de um urbanismo saneador – expressão de um projeto
político de intervenção do Estado na questão social nas cidades – é desvendada,
tanto nas formas de habitação (Rolnik, 1983; Lira, 1991; Marins, 1998) como nos
territórios de prostituição (Feldman, 1987). A questão da segregação espacial,
por meio da análise das primeiras normas que extrapolam a construção de
edifícios contidas nos Códigos de Posturas aprovados na última década do
século XIX, em inúmeras cidades, constitui o eixo direcionador de tais análises.

Uma terceira vertente caracteriza-se pela precedência de estudos


voltados para os efeitos, repercussões e impactos no espaço urbano com a
aplicação da legislação, os quais têm como referência a escala assumida pela
expansão das cidades brasileiras mediante estratégias de solução da moradia à
margem da legislação: loteamentos clandestinos, cortiços e favelas. Nessa
vertente, podem ser discriminados estudos centrados na inefetividade da lei
(Grostein, 1987; Rolnik, 1996; Nery Junior, 1998); estudos que enfatizam a
relação entre a legislação e a valorização imobiliária (Souza, 1994; Somekh,
1996), e estudos que, com uma visão panorâmica da legislação, apontam seus
efeitos no processo de planejamento (Rezende,1997) e na configuração da
paisagem urbana (Medina, 1997). No âmbito da questão da inefetividade da
legislação, segundo os procedimentos instituídos de aprovação e fiscalização de
loteamentos e da relação poder público/loteador, Grostein (1987) mostra que se
consolida uma prática de desobediência consentida e permanente anistia a
situações produzidas fora das normas. Rolnik (1997) entende a ineficácia da
legislação em regular a produção da cidade como a verdadeira fonte de seu
sucesso político, financeiro e cultural, num contexto urbano de concentração de
riqueza e poder. A lei age, segundo a autora, como delimitadora das fronteiras
do poder, conferindo significados e gerando noções de civilidade e cidadania,
mesmo quando não é capaz de determinar a forma final da cidade. A relação

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entre legislação e valorização imobiliária é analisada por meio do estudo do


processo de verticalização, entendido como resultante de uma estratégia de
valorização de múltiplas frações do capital (Souza, 1994) e como resultado da
multiplicação do solo urbano possibilitada pelo elevador (Somekh, 1996). Numa
perspectiva não-historiográfica, estudos sobre os efeitos dos instrumentos
normativos vêm sendo realizados em torno de aspectos específicos da
legislação, principalmente no que se refere ao zoneamento e aos instrumentos
pós-Constituição de 1988.

Esse conjunto de trabalhos representa o início de um processo de


construção de uma história da legislação urbanística brasileira e de
compreensão do papel que vem desempenhando no desenvolvimento de
algumas cidades brasileiras. De modo geral, destacam seu caráter elitista,
resultante do diálogo exclusivo entre os órgãos responsáveis por sua elaboração
e os setores mais poderosos da sociedade, e seu uso como instrumento de
segregação espacial. Há, por vezes, uma supervalorização do papel da
legislação na conformação do espaço urbano, o que acarreta que, por meio da
legislação, se cristalizem modelos interpretativos genéricos. As linhas
dominantes permitem não só detectar recortes temporais privilegiados pelas
pesquisas bem como o nível de aprofundamento da reflexão. O período da
Primeira República, no que se refere à perspectiva higienista de controle do
espaço urbano, é o mais profundamente estudado e desvendado. Uma
explicação plausível para tal predominância é o fato de a questão higienista ter
sido amplamente estudada por diferentes disciplinas e o papel da legislação,
claramente situado no campo de um projeto político e social. Nesse sentido, os
trabalhos ultrapassam a identificação das leis e penetram nos modelos
habitacionais resultantes do ideário higienista, no qual a norma é apenas um dos
instrumentos de concretização (Rolnik, 1983; Lira, 1991), nas instituições criadas
para a gestão dos territórios e nos procedimentos de aplicação das normas, seja
na esfera da habitação operária, com a Inspectoria de Hygiene de Pernambuco
(Lira, 1991), seja na esfera dos territórios de prostituição, com a Delegacia de
Costumes, em São Paulo (Feldman, 1987).

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A legislação desse período, embora envolva questões espaciais, não


contém um claro conteúdo urbanístico, e estabelece-se como legislação
sanitária. Para os períodos posteriores, quando se constitui uma legislação
urbanística stricto sensu, a lógica de construção – dos conceitos às instituições
e processos de elaboração e aprovação – ainda se mantém como um campo
pouco explorado. Uma vertente emergente de pesquisa vem atuando na
perspectiva de desvendar os processos de construção de instrumentos
urbanísticos, e não apenas seus efeitos, mediante a análise das referências
urbanísticas neles contidas e dos setores e instituições envolvidos em sua
formulação e aplicação, na esfera do Executivo e do Legislativo. (Souza, 1994;
Grostein, 1987; Feldman, 1996, 1997, 1998; Campos, 1996, 1998). No entanto,
a produção é fragmentada, com recortes temporais e espaciais restritos, além
de se deter em aspectos específicos da legislação. De fato, há uma
concentração de trabalhos sobre São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, o que,
como nos demais estudos de história urbana, não permite delinear um panorama
abrangente da questão, nem discriminar particularidades regionais.

O LUGAR DA LEGISLAÇÃO NO URBANISMO BRASILEIRO


Uma das questões fundamentais que permanecem pouco elaboradas na
historiografia da legislação urbanística no Brasil se refere ao lugar ocupado pelas
normas, a partir do momento em que ideias e práticas urbanísticas são
institucionalizadas na administração pública. Uma hipótese que levantamos é a
de que, a partir dos anos 40, se consolida uma visão legalista do urbanismo
brasileiro. Ao processo de declínio da importância do plano como instrumento de
intervenção no espaço urbano corresponde a ascensão da legislação como
instrumento por excelência do planejamento. Como mostramos em pesquisa
realizada sobre a cidade de São Paulo, no final da década de 1940, inicia-se um
processo em que o zoneamento passa a ocupar o lugar do plano e, em pesquisa
em desenvolvimento, podemos avaliar essa mudança em escala nacional, e não
apenas nos grandes centros urbanos. Tal processo não é fortuito, e dá-se como
parte da introdução, no Brasil, de novos princípios de administração pública,
desde os anos 30, numa perspectiva da administração desvinculada da política
e do planejamento como técnicas de administração, baseados na teoria

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administrativa americana da Scientific Management School. Num estudo sobre


a reforma do serviço civil no Brasil, no período de 1945 a 1964, Graham (1968)
mostra que a introdução dessa abordagem na administração pública no período
anterior a 1930 articula-se a uma tradição legalista brasileira, originária dos
vínculos com os princípios administrativos da França e Portugal, herdados, por
sua vez, da tradição romana.

A visão legalista consiste no enfoque da lei como uma meta em si, e não
como um instrumento, entre outros, para se atingir metas, o que leva à
preferência por leis antecipatórias em lugar da experimentação, e à crença de
que nada pode ser assumido sem prévia legislação ou regulação. A ênfase na
lei é, segundo Graham, vista como um ideal, ao invés de algo a ser aplicado a
circunstâncias presentes com o máximo de precisão. Para o autor, uma
expressão da experiência legal no Brasil é a ênfase e valorização da codificação
das leis.

Os trabalhos de Reis Filho (1968) e Delson (1979) apontam o rigor no


estabelecimento de padrões para a construção de cidades, no Brasil, pelos
portugueses, desde o século XVIII, mas em que medida a visão legalista se
introduz desde as primeiras regulamentações do solo urbano e os matizes que
assume ao longo dos séculos XIX e XX representam um campo a ser
investigado. O simples arrolamento das leis promulgadas não revela o processo,
uma vez que a legislação urbanística é parte de um aparato que constitui o
sistema legal (ou Estado legal), variável de país a país, e que repercute nas
abordagens de urbanismo e planejamento urbano. O sistema legal não é apenas
um conjunto de normas, mas parte constituinte do Estado. Portanto o “Estado
legal” é a parte do Estado personificada num sistema legal, que penetra e
estrutura a sociedade, fornecendo um elemento básico de previsibilidade e
estabilidade às relações sociais, e pressupõe não apenas a promulgação de leis,
mas formas de aplicação, caráter público, independência do judiciário etc.16
Talvez se pudesse admitir, numa perspectiva braudeliana, que o sistema legal
constitui um elemento de longa duração.

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A legislação urbanística é, portanto, parte de um determinado sistema


legal e de um determinado modelo de gestão que se apoiam em determinada
teoria administrativa. Para se entender o papel que a legislação urbanística
assume em cada momento do processo de desenvolvimento urbano no Brasil, é
necessário desvendar a lógica do sistema legal vigente, assim como as teorias
administrativas que informam as estratégias de gestão. É necessário, também,
resgatar as instituições que, em cada momento, participaram da formulação e/ou
assumiram as funções de aplicação e fiscalização das normas urbanísticas. Por
fim, é necessário desvendar os procedimentos adotados, considerando que
teorias administrativas engendram modelos institucionais que originam práticas
que, por sua vez, se articulam a práticas herdadas de outros momentos. Do
ponto de vista das instituições, da organização e dos procedimentos adotados
na implementação das leis, alguns trabalhos oferecem uma contribuição
relevante, uma vez que utilizam como fontes de pesquisa processos de
aprovação das próprias leis, de loteamentos e de edificações (Grostein, 1987;
Feldman, 1989, 1996; Simões, 1990; Lira, 1991). Tais fontes de pesquisa
permitem, por meio de uma leitura menos genérica, entender a legislação como
um processo não-linear, mas como o resultado de embates técnicos e políticos
e, ao mesmo tempo, desvendar que relação se estabelece entre cidadão e
Estado.

O estudo sistemático das instituições que compõem o sistema legal e os


respectivos procedimentos são um caminho, também, para se desvendar o
avesso da visão legalista brasileira – a inefetividade das leis –, em cada
momento. Se admitirmos que a lei, “em seu conteúdo e em sua aplicação, é
basicamente (como é o Estado do qual ela faz parte) uma condensação dinâmica
de relações de poder, não apenas uma técnica racionalizada para ordenar as
relações sociais”,17 instituições e procedimentos engendram, em cada
momento, diferentes conceitos de controle. Assim, a legislação urbanística,
como parte do sistema legal de uma sociedade capitalista enquanto tal, estrutura
e garante relações espaciais que são intrinsicamente desiguais, mas os limites
entre o legal e o ilegal variam no tempo. São socialmente construídos.

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O LUGAR DOS PRESSUPOSTOS MODERNISTAS NA


LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA
Um dos aspectos privilegiados nos trabalhos de história urbana
produzidos a partir dos anos 80 vem sendo a influência das referências
internacionais nas ideias e práticas urbanísticas desenvolvidas no Brasil. De
modo geral, esses trabalhos vêm mostrando que, na concepção dos planos
elaborados até 1930, dos quais uma parcela significativa – entre planos de
melhoramentos, de embelezamento e de conjunto – chegou a ser executada,
prevaleceu a influência europeia. Os anos 30 aparecem como um momento de
transição, em que as influências europeias começam a mesclar-se a princípios
do urbanismo americano, por meio das parkways, zoneamento, e das versões
americanas das cidades-jardins de Howard, como o princípio das unidades de
vizinhança de Radburn. Nas experiências de cidade novas, a partir dos anos 30,
começam a ser introduzidos princípios modernistas, que se realizam de forma
acabada em Brasília. Se nos planos as referências internacionais são facilmente
demarcadas, seja pelos traçados propostos, seja por explicitações de seus
autores em relatórios, textos, memoriais, o mesmo não ocorre em relação à
legislação. A legislação é cumulativa. Novas formas de controle com as mais
diversas referências são constantemente incorporadas, como peças legais
parciais, artigos, num processo contínuo de reformulações, exclusões e
acréscimos, que não alteram, necessariamente, nem o sistema legal, nem as
instituições e seus procedimentos.

Os estudos mostram que os padrões reguladores portugueses se


estabeleceram nas cidades e vilas do Brasil Colônia, e a legislação sanitária do
urbanismo higienista de finais do século XIX utiliza as referências inglesas e
francesas. As normas de controle de alinhamento e nivelamento das vias, assim
como a localização de atividades consideradas nocivas ao meio urbano, as
condições de higiene e salubridade das edificações e do espaço público,
utilizando princípios de controle e disciplina formulados nas cidades europeias,
são consolidadas nos chamados Códigos de Posturas Municipais, tornados
obrigatórios no final do século XIX. A partir do término dos anos 20, nos
chamados Códigos de Obras, permanecem os princípios higienistas europeus,

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1
7

e são identificados princípios da legislação americana, como é o caso, em São


Paulo, dos padrões de arranha-céus. A partir dos anos 30, a referência
americana se impõe, principalmente na adoção do zoneamento, o qual é
incorporado à totalidade da cidade nos Códigos de Obras do Recife, em 1936, e
do Rio de Janeiro, em 1937, e em leis parciais em São Paulo, a partir de 1931.18
A partir dos anos 30, passam a ser incorporados, também, princípios elaborados
no âmbito do movimento moderno

Podem-se identificar três correntes do pensamento urbanístico, entre as


que são referência para o urbanismo no Brasil, que formulam concepções de
legislação: o urbanismo higienista, que estabelece uma legislação sanitária; o
urbanismo americano dos anos 20, que reelabora o zoneamento alemão; e o
movimento modernista, que se contrapõe à legislação de princípios higienistas
vigente na Europa dos anos 20. Segundo Ebenezer Howard, embora princípios
reguladores estejam implícitos na proposta espacial de cidades-jardins, não
chegam a propor uma concepção de lei. As leis sanitárias e o zoneamento
americano vêm recebendo a atenção da maioria dos pesquisadores voltados
para a historiografia da legislação urbanística no Brasil (Rolnik, 1983; Lira, 1991;
Souza, 1994; Feldman, 1996; Somekh, 1997; Nery Junior, 1998; Marins, 1998),
e as formas como tais referências foram e são absorvidas pela legislação
urbanística brasileira estão sendo desvendadas. Em relação às propostas
modernistas, o único documento que vem sendo utilizado como referência é a
Carta de Atenas, fundamentalmente no que se refere ao zoneamento funcional

A análise dos textos produzidos pelos arquitetos vinculados ao movimento


modernista no âmbito dos CIAMs (Congressos Internacionais de Arquitetura
Moderna) revela que a legislação é colocada como um aspecto fundamental, e
suas propostas nesse campo vão muito além do zoneamento funcional e da
Carta de Atenas. Os arquitetos desenvolveram uma verdadeira concepção de
legislação urbanística que tem como eixo principal o questionamento, em
múltiplos aspectos, do sistema regulador do urbanismo higienista. A referência
à legislação vigente nos anos 20, notadamente na França e na Alemanha, como
entrave ao “desenvolvimento da arquitetura”, segundo os pressupostos do
movimento moderno – soluções para o espaço mínimo para viver, com uma boa

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1
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iluminação, com plantas livres e flexíveis, com disponibilidade de espaço exterior


livre com a construção verticalizada, e viabilizar a produção em série, a
“standardização”, a racionalização e a economia, que implicam a utilização de
novos materiais e novos métodos de construção – é recorrente nos textos.

Os arquitetos vinculados ao movimento modernista apontam, antes de


mais nada, a necessidade de se distinguir dois níveis da legislação: o nível
urbanístico, que deve tratar dos limites do indivíduo frente à comunidade e dos
indivíduos entre si, e o nível da construção e da habitabilidade, que deve
assegurar certo grau de qualidade aos edifícios. É no III CIAM, realizado em
1930, em Bruxelas, que se explicita com maior clareza a relação pretendida entre
arquitetura e urbanismo. Corbusier propõe que se formulem, juntamente com o
sistema urbano adequado à época maquinista, novas leis que devem conter o
remembramento de terrenos – “verdadeira revolução na noção sagrada de
propriedade”, a fim de garantir a melhoria do alcance coletivo, as construções
em altura reunidas sobre pequena superfície edificada, enormes espaços livres,
supressão de pátios e corredores, construções sobre pilotis, e tetos-jardins.
Gropius propõe que, ao invés do limite de altura dos edifícios, se utilize o limite
da densidade populacional, ou seja, propõe que se regule a relação entre
superfície de moradia/volume edificável/superfície edificável, argumentando que
as condições higiênicas e econômicas se tornam mais vantajosas.

É importante destacar que a crítica ao controle de altura envolve aspectos


econômico-distributivos (otimização possível por meio de construções
laminares), aspectos técnicos (viabilidade de utilização de estruturas em aço ou
concreto armado) e, ainda, aspectos formais. Em relação a estes últimos,
preconiza a simultaneidade de diferentes tipologias habitacionais em um único
complexo edificado, integrado, por sua vez, a serviços ligados à moradia. Nesse
sentido, propõe a identificação entre a tipologia da moradia e a tipologia do
edifício, o que permitiria a concretização de volumetrias diferenciadas ou
repetidas num mesmo conjunto. Em segundo lugar, destaca a necessidade de a
regulamentação assegurar a responsabilidade técnica e social dos produtores
das moradias, como também abarcar a responsabilidade da economia do
produto. Nesse sentido, as leis devem considerar as inovações nos métodos

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construtivos, nos conhecimentos higiênicos, nas novas formas de vida propostas


pelos arquitetos, sem ignorar as circunstâncias econômicas.

Em terceiro, aponta para a necessidade de flexibilidade da legislação e


preconiza a maior participação das entidades de engenheiros e arquitetos no
processo de elaboração e aplicação das leis. Assim, excetuando-se as leis que
limitam o direito de propriedade, as normas edificatórias não deveriam passar de
normas gerais e deveriam permitir a maior liberdade possível na definição do
programa da habitação, para o cumprimento das necessidades sociais e
higiênicas e para a escolha de materiais e sistemas construtivos. Em quarto,
limita o papel do Estado ao controle da qualidade do produto. Com o mercado
livre e com o sistema de produção capitalista, o promotor, o construtor e o
usuário podem tornar-se pessoas totalmente independentes. Então, cabe ao
Estado proteger os particulares com normas edificatórias contra a ação de
especialistas não-qualificados que ofereçam moradias de baixa qualidade. Caso
o Estado não assuma tal postura, os arquitetos colocam a alternativa da
autoajuda, estabelecendo-se a relação direta entre o habitante como usuário e
o construtor como produtor. O nível de qualidade da moradia passa a ser assunto
exclusivo de ambos, e a regulamentação estatal, dessa maneira, passaria a ser
supérflua, com o passar do tempo.

Finalmente, preconiza que os arquitetos contem não apenas com a ajuda


de diversos setores da ciência e da indústria, como também com a colaboração
dos usuários, ao invés de se guiarem apenas pelas leis. Assim, os arquitetos
poderão entrar em cena como competidores da construção especulativa de
moradias e, ao mesmo tempo, poderão liberar a construção de moradias dos
entraves de uma regulamentação antissocial. Considera que o padrão de
moradia ideal imposto por uma visão estritamente legalista se mostrou
economicamente inviável nas circunstâncias do pós-guerra e,
consequentemente, as ações voltadas para a categoria de moradias mais
baratas passam a efetivar-se sem que a legislação se responsabilize por elas.
Para o estabelecimento de normas ideais, considera imprescindível que o
Estado garanta também seu cumprimento econômico em todas as situações,
como ocorre com outros tipos de normas.

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0

Na Carta de Atenas, as considerações sobre a legislação como


instrumento para fixar as condições da habitação moderna são uma constante.
Nesse documento, que reúne grande parte do repertório da arquitetura
modernista, além de incorporar soluções urbanísticas que já vinham sendo
utilizadas em cidades europeias e americanas, Corbusier (1941) preconiza a
“urgência de regulamentar, por um meio legal, a disposição de todo solo útil para
equilibrar as necessidades vitais do indivíduo em harmonia com as necessidades
coletivas”. Essa postura de Corbusier – inovadora em relação à legislação – já
estava presente em sua intervenção no III CIAM, em 1930, quando afirma que o
objetivo do Congresso, realizado em torno do tema “Métodos Construtivos
Racionales. Casas Bajas, Medias y Altas”, é chegar a uma modificação da
legislação municipal em diversas cidades do mundo. As propostas modernistas,
segundo o arquiteto, não admitem uma mudança parcial da legislação, mas
exigem que se estabeleça um conjunto de novas regras, que devem partir do
reagrupamento do solo – “único caminho que conduz ao urbanismo” –, uma vez
que a propriedade subdividida, o caráter inalienável da propriedade, condena
“toda tentativa de melhorias coletivas”.

Na verdade, as propostas modernistas para a legislação podem ser


interpretadas como a proposta de um novo sistema legal, e algumas questões
permanecem no debate atual sobre a legislação urbanística no Brasil, embora
não se explicite tal vínculo. Suas propostas envolvem aspectos formais para a
tradução das soluções de edifícios e para a organização do espaço urbano, além
de questões técnicas, mas também aspectos econômicos e sociais que se
realizam no processo de elaboração e decisão sobre a aplicação das leis, e que
pressupõem a redefinição das relações entre o Estado e os demais atores
envolvidos na construção das cidades. Além disso, num evidente propósito de
deslocar médicos e engenheiros deste campo de atuação, o papel atribuído aos
arquitetos e suas associações é destacado.20 O estudo, ainda em processo, de
como esse elenco de questões relativas à regulamentação foi assimilado, no
Brasil, pelos responsáveis pela elaboração das leis, por arquitetos e engenheiros
responsáveis por projetos de cidades novas e de habitações econômicas, vem
demonstrando que se dá de forma bastante limitada. No âmbito dos debates em

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torno da legislação, a partir dos anos 30, as concepções modernistas têm


repercussão significativa. Em congressos e periódicos de entidades de
arquitetos e engenheiros, a reivindicação por mudanças nos códigos de obras
com o intuito de atenderem a um novo tempo é recorrente.

A simplificação das leis, a maleabilidade para se atender aos materiais e


técnicas modernas de construção, a incorporação de setores da sociedade para
a redação das leis conjuntamente com técnicos são questões enfocadas por
engenheiros, arquitetos e urbanistas. Nos anos 30, esboça-se na legislação de
uso e ocupação do solo uma ruptura com a concepção centrada na edificação e
fortemente marcada pela visão higienista que se inicia com os Códigos de
Posturas do final do século XIX. Essa ruptura se dá, fundamentalmente, com a
introdução de elementos reguladores de abrangência urbanística e de uma visão
de urbanismo que se justifica explicitamente em termos econômicos. Parte
dessa mudança se verifica com a introdução do zoneamento abrangente no
conjunto da cidade, seguindo o modelo adotado no início do século em Nova
York, e não do zoneamento proposto por Le Corbusier. Este só se efetivará em
1960, com a aprovação das “Normas para Construção em Brasília”.

Nas demais cidades brasileiras – novas ou existentes, os códigos de


obras assimilarão dos modernistas, num primeiro momento, os princípios de
ocupação do lote que relacionam altura de edifícios e solo livre, e,
posteriormente, padrões de ocupação para grandes conjuntos residenciais, com
a definição de espaços coletivos, ruas exclusivas para pedestres etc. Ambas as
estratégias evoluem para um processo de gradativa mudança dos tecidos
urbanos existentes e podem ser interpretadas como formas de reagrupamento
do solo. Essa é, sem dúvida, a mais significativa influência do ideário modernista
que se realiza mediante mecanismos reguladores do uso e ocupação do solo. A
análise das referências modernistas na legislação urbanística, assim como de
outras referências que formularam concepções de legislação, exigem a
identificação das estratégias utilizadas para as transferências. O foco da
pesquisa sobre legislação unicamente no enunciado das leis vem-se mostrando
insuficiente. Tomando Brasília como exemplo, pode-se observar que a legislação
aprovada logo após a inauguração da capital absorveu os princípios formais das

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2

propostas modernistas, e foi, sem dúvida, formulada por arquitetos, uma vez que
a categoria vem, há décadas, assumindo a função de legisladores, no Brasil. No
entanto, a peça legal de 1960 foi, assim como grande parte da legislação
urbanística no Brasil, aprovada por decreto, ou seja, ocorrem mudanças que
atendem aos requisitos formais, os arquitetos conquistam um espaço como
formuladores de leis, mas tudo isso se incorpora ao sistema legal preexistente
no Brasil.

O estudo da legislação sob a ótica modernista torna evidente a


necessidade de se discutir a questão metodológica para interpretar as
permanências e mudanças na legislação urbanística. Um caminho possível
talvez esteja na identificação dos tempos propostos por Braudel: discriminar o
que permanece constante durante um tempo longo, evoluindo de maneira
imperceptível; o que flutua, oscila de forma cíclica, e o que não passa de
acontecimentos, representando rupturas ou restabelecimento de equilíbrios.
Talvez seja esse um dos caminhos para se entender o passado e formular
propostas para o presente.

ESTUDO DE CASO

Para Além da Lei: Legislação Urbanística e Cidadania (São Paulo


1886-1936)
Introdução
Uma teia invisível e silenciosa se estende sobre o território da cidade: a
legislação urbana, coleção de leis, decretos e normas que regulam o uso e
ocupação da terra urbana. Mais do que definir formas de apropriação do espaço
permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular o desenvolvimento de
cidade, a legislação urbana atua como linha demarcatória, estabelecendo
fronteiras de poder. Na verdade, a legalidade urbana organiza e classifica
territórios urbanos, conferindo significados e legitimidade para o modo de vida e
micropolítica dos grupos mais envolvidos na formulação dos instrumentos legais.
Por outro lado, a legislação discrimina agenciamentos espaciais e sociais
distintos do padrão sancionado pela lei. Assim, a legislação atua como um forte

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2
3

paradigma político-cultural, mesmo quando fracassa na determinação, na


configuração final da cidade. Este é, sem dúvida, um dos aspectos mais
interessantes da lei. Aparentemente, esta funciona como uma espécie de molde
da cidade ideal ou desejável. Mas no caso de São Paulo, e da maioria das
cidades Latino-Americanas, a legislação urbana regula apenas uma pequena
parte do espaço construído, uma vez que a cidade não é resultado da aplicação
inerte do modelo contido na lei. A cidade real é consequência da relação que a
legalidade urbana estabelece com o funcionamento concreto dos mercados
imobiliários que atuam na cidade. Entretanto, ao definir formas permitidas e
proibidas de produção do espaço, a legislação define territórios dentro e fora da
lei. Essa delimitação tem consequências políticas importantes, na medida em
que pertencer a um território fora da lei pode significar uma posição de cidadania
limitada. Não existir, do ponto de vista burocrático ou oficial para a administrada
cidade, é estar fora do âmbito de suas responsabilidades para com os cidadãos.

Na história da cidade de São Paulo, e de sua legislação urbanística, esta


tensão – legalidade/ilegalidade – esteve sempre presente, fortemente
identificada com espaços de alta renda, fortemente regulados, que se
contrapõem aos espaços populares não regulados ou em desacordo com a lei.
Repetidas infinitas vezes ao longe da história, esta tensão sintetiza o movimento
de um mercado imobiliário cuja rentabilidade e ritmo de valorização são definidos
por uma dupla lógica: por um lado, são mais lucrativos os agenciamentos
espaciais capazes de gerar as maiores densidades e intensidades de ocupação.
E por outro, se valorizam os espaços altamente diferenciados e exclusivos. A
intensidade de uso é garantida através do estabelecimento de um território fora
da jurisdição de lei, aonde a terra pode se subdividir ao infinito; a condição é não
"contaminar" as vizinhanças. Daí decorre um duplo movimento estabelecido pela
lei: por um lado garantir a "proteção" de determinados espaços contra a invasão
de usos e intensidades de ocupação degradantes, de outro definir uma fronteira,
para além da qual estes mesmos usos seriam tolerados. Este movimento se
expressa pela primeira vez, no Código de Posturas de 1862 , quando se demarca
pela primeira vez uma zona urbana (correspondente à área central da cidade)
onde se proibia a construção de cortiços. O desenho desta zona foi sendo

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sucessivamente reatualizado, sem, entretanto, romper com a concepção básica


de se manter uma zona urbana cada vez mais minuciosamente regulada e uma
vasta zona suburbana (e rural) que poderia ser ocupada com usos urbanos
vedados para a primeira tais como matadouros, cemitérios, indústrias
malcheirosas e... cortiços.

Aliado à demarcação legal destas macro fronteiras, no interior do espaço


regulado ou zona urbana – a legislação encarregou-se desde cedo de demarcar
espaços ainda mais restritos e protegidos: os loteamentos exclusivamente
residenciais da elite paulistana.

Separar e reinar: nasce o bairro residencial exclusivo


Em 1879, dois Alemães, Glette e Nothman compram a antiga Chácara do
Capão Redondo (e desde que se tomou propriedade do Visconde de Mauá –
Chácara Mauá) e, despendendo cem contos de réis, abriram ali ruas largas e
alamedas arborizadas. Tendo vendido grandes lotes apenas para famílias
abastadas da capital, apuraram cerca de oitocentos contos de réis depois de
vendidos os lotes3 . Assim nascia o bairro dos Campos Elísios, Champs Elysées
paulistano, que marcaria o nascimento do modelo de bairro aristocrático,
exclusivamente residencial e de alta renda. Em 1890, era a vez do recém aberto
bairro de Hygienópolis concentrar os palacetes mais elegantes da cidade. Em
seguida é a Av. Paulista, construída por Joaquim Eugênia de Lima e inaugurada
em 8 de dezembro de 1891. Esta, afastada do núcleo urbanizado, contava com
rede de água e esgoto, iluminação e piso macadamizado com pedregulhos
brancos. A construção da Av. Paulista, situada no alto do espigão que separa a
bacia do Rio Pinheiros da Bacia do Tietê, permitia a vista para toda a cidade.
Logo se transformaria não só em lugar das residências mais ricas da cidade,
mas também como símbolo cívico, realizando-se ali grandes solenidades,
paradas militares e desfiles carnavalescos elegantes. Em 1894, Joaquim
Eugênio de Lima consegue aprovar uma lei exclusivamente para a Av. Paulista,
obrigando as futuras construções a obedecer a um recuo de dez metros em
relação ao alinhamento, bem como dois metros de casa lado. Em 1898 a lei
municipal 355 "especifica o modo de edificar nas avenidas Hygienópolis e
Itatiaia", exigindo recuos mínimos obrigatórios de seis metros para jardins e

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arvoredos e um espaço não menos do que dois metros de cada lado. A estas
leis, definindo a especificidade do modo de construir nos bairros de elite,
corresponde uma característica absolutamente marcante na construção da
legalidade urbana na cidade de São Paulo: a lei como garantia de perenidade do
espaço das elites.

Se analisarmos o conteúdo destas normas específicas, ali está contido o


chamado modelo higiênico, com todas suas letras físicas e morais: a casa
unifamiliar isolada em grande terreno separada da rua e dos vizinhos. A chave
da eficácia em demarcar um território social preciso está evidentemente no
preço: lotes grandes, grandes recuos, nenhuma coabitação, esta é a fórmula
para quem pode pagar. A lei, ao definir que ali só pode ocorrer certo padrão,
opera o milagre de desenhar uma muralha invisível e, ao mesmo tempo, criar
uma mercadoria exclusiva no mercado de terras e imóveis e, assim, permitir um
alto retorno do investimento, mesmo considerando o baixíssimo aproveitamento
do lote. Além do mais, aí se esboça o fundamento de uma geografia social da
cidade, da qual até hoje não conseguimos escapar. O setor Sudoeste,
desenhado a partir do percurso Campos Elísios/Hygienópolis/ Paulista, e que
depois se completaria com os loteamentos da Cia. City no Jardim América,
configura uma centralidade da elite da cidade, o espaço que historicamente
concentra valores imobiliários altos, o comércio mais elegante, as casas ricas, o
consumo cultural da moda e a maior quantidade de investimentos públicos. Na
primeira República a imagem desta topografia social é feita de colinas secas,
arejadas e iluminadas de palacetes que olham para as baixadas úmidas e
pantanosas onde se aglomera a pobreza.

Ao mesmo tempo em que a lei vai alinhando os territórios da riqueza, vai


também delimitando aqueles onde deverá se instalar a pobreza. O movimento,
desde seu nascimento é centrifugo, ou seja, delimitar as bordas da zona urbana,
ou mesmo a zona rural como local onde está deveria se alojar. Diga-se de
passagem, que a lógica de destinar as lonjuras para os pobres atravessou,
incólume, nosso século. Isto começa com a proibição de instalação de cortiços
na zona central definida pelas posturas de 1886 e reiterada pelo Código Sanitário
de 1894, que proíbe terminantemente a construção de cortiços e permite que as

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vilas operárias higiênicas sejam construídas fora da aglomeração urbana. A Lei


498, de 1900, isenta de impostos municipais os proprietários que construírem
vilas operárias de acordo com o padrão municipal e fora do perímetro urbano,
delimitado por aquela lei. Em 1908, em uma cidade de 370.000 habitantes, o
prefeito Raymundo Duprat amplia os favores para quem construir "casas
destinadas a serem alugadas ou vendidas em prestações a quem não seja
proprietário de casa e não tenha recursos para alugar uma higiênica e separada”
4, o que inclui, inclusive, a concessão de terrenos municipais "em lugares
apropriados", leia-se fora da área urbana. O que é construído por esta sucessão
de leis é o outro lado da geografia social proposta: outra linha imaginária que
define os muros da cidade: para dentro o comércio, as fábricas não incômodas
e a moradia de elite; para fora a habitação popular e tudo que cheira mal, polui
e contamina. Esta delimitação já está presente desde a lei de 1886, que define
o perímetro urbano – aonde se deve obedecer ao alinhamento – e a zona rural,
onde as construções podem se dar de forma distinta. O mesmo se aplica em
relação ao armamento ou loteamento, abertura de ruas por particulares para a
venda dos lotes, que desde 1913 devem apresentar planta antes de serem
abertos. Quando na zona urbana, devem atender às prescrições da lei, na zona
rural não necessitam obedecê-las; porém tampouco podem contar com os
serviços públicos de calçamento e pavimentação (pagos até este momento
integralmente pela Prefeitura).5

Do ponto de vista da organização espacial interna, a configuração das


vilas e cortiços, formas de ocupação intensa dos miolos de quadras com espaços
individualizados diminutos, contrariava, por completo, os regulamentos
municipais de construção, que desde 1886 já se ocupavam de definir as
dimensões mínimas dos "cortiços, casas de operários e cubículos". No código
municipal de 1886 era exigida uma largura de frente mínima de 15 metros, e a
separação de cada fileira de casas por 5 metros, no mínimo. A área mínima de
cada cômodo deveria ser de 7,5 m², deveria haver 1 latrina para cada duas
habitações e uma área livre à frente de cada habitação de 30 m² . Entretanto,
boa parte dos subúrbios populares foi edificada "fora da lei". Em 1894, o primeiro
Código Sanitário Estadual adota um posicionamento ainda mais rígido em

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relação às habitações coletivas: estas devem ser proibidas e as existentes


devem desaparecer, assim como as casas subdivididas e as vilas operárias –
que só podem agrupar-se em conjuntos de até 6 moradias, devem ficar fora da
aglomeração urbana7 . No entanto, o relatório de uma Comissão de Exame e
Inspeção das Habitações Operárias e Cortiços no Distrito de Santa Efigênia,
publicado no mesmo ano, constata, apenas em uma área de 14 quadras a
existência de 65 cortiços.

No mesmo relatório se formula, pela primeira vez, como resposta à


gravidade da situação, a proposta de incentivar empresários a construir casas
operárias "higiênicas" em terrenos situados num raio de 15 km da cidade: "a
situação mais conveniente para as vilas operárias deve ser, sem dúvida, aquela
que reúna a facilidade de comunicação à barateza dos terrenos". Os incentivos
são de dois tipos: o estabelecimento legal de um padrão distinto – leia-se de uma
maior intensidade de ocupação horizontal do lote ("um conforto operário") – e a
implantação, por parte do Governo, de trens de subúrbio ligando os locais aos
centros de emprego, além de isenção de todos os impostos municipais e
estaduais que incidem sobre a construção. Desta maneira se demarcava uma
área "regulada" da cidade, aonde a habitação popular não poderia acontecer, ao
mesmo tempo em que se configurava, fora do perímetro urbano, uma zona de
obscuridade, sobre a qual o olhar do poder municipal não vigorava.

Inclusão, exclusão e cidadania


As afirmações anteriores procuraram apontar como uma legalidade
urbanística que foi sendo construída na cidade de São Paulo, ao mesmo tempo
em que se constituía uma zona de ilegalidade, que correspondia, a grosso modo,
aos assentamentos populares. A extra legalidade estava em construir em
terrenos cujo desenho não havia sido aprovado pelos engenheiros municipais,
ou em partilhar os lotes ou casas com habitações coletivas, gerando um espaço
de alta densidade demográfica. Assim, bairros inteiros existiam sem, no entanto,
serem reconhecidos como parte da cidade oficial; a alta densidade do território
popular enojava e preocupava as elites, que se defendiam construindo bairros
exclusivos e propondo favores fiscais e liberalidades construtivas para os
empreendedores que desejassem construir casas populares em zonas

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precisamente delimitadas para tal, fora do perímetro central. Apontamos também


para o papel da legislação urbanística no estabelecimento de um mercado
imobiliário dual, capaz de prover alternativas de localização para as diferentes
faixas de poder aquisitivo presentes na cidade, ao mesmo tempo em que se
garantia a rentabilidade do investimento imobiliário independente da faixa de
renda a que se destinava. Além das implicações econômicas, a situação de
ilegalidade urbana tem implicações culturais. Ao longo do século XX, o
paradigma da legalidade foi se construindo em torno das cidades-jardim
exclusivas da elite paulistana, habitadas pelas famílias endinheiradas. Ao
mesmo tempo em que a condição de extra legalidade foi se definindo como a
alta densidade e subdivisão de casas e terrenos, configuração urbanística
considerada promíscua, indisciplinada e desregrada, ou seja, como espaço sem
lei, marginal. O lugar e a condição passam a constituir assim uma só zona de
opacidade no tecido social. Esta correspondeu, em um primeiro momento, ao
território negro na cidade e depois, pouco a pouco, foi incorporando os bairros
populares de imigrantes até se identificar plenamente, na década de 30, como
território estrangeiro numa cidade cujo projeto cultural era francamente
nacionalista.

A estes distintos momentos corresponderam também distintas fases no


relacionamento político entre as elites urbanas, sobejamente representadas
entre os legisladores, e o povo. Durante toda a República Velha e o predomínio
político do PRP – Partido Republicano Paulista – as classes dominantes jamais
haviam tomado conhecimento da existência do povo como expressão política.
Para o governo, exercido pelos fazendeiros do café, o problema era como suprir
sua carência de mão-de-obra. O estrangeiro, que veio substituir o escravo nesta
função, tinha, na verdade, a mesma condição política: não vota nem pode ser
votado, não existe nas decisões sobre o destino da cidade ou do País. Durante
todo o período da República Velha, embora tenha havido eleições diretas para
prefeito e vereadores, as eleições eram uma farsa montada para aparentar o
voto universal, parte da doutrina liberal a que era devoto o partido que havia
derrubado a monarquia e instaurado a República. As regras do jogo eleitoral

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2
9

estavam definidas pela Constituição de 1891, quando predominaram as teses do


republicanismo civil e liberal do Partido Republicano Paulista.

Além das restrições constitucionais, as máquinas eleitorais é que definiam


o rumo dos pleitos. Os fazendeiros de café, aliados às demais oligarquias rurais
nos diversos Estados, não se mantinham no poder pela força militar, mas graças
a uma máquina eleitoral que se estendia por todo o País e cuja base era o
coronel e sua família, amigos, parentes, que, dentro de cada Estado,
centralizavam em suas mãos o poder de legislar, julgar e executar. Para servir
aos coronéis, os trabalhadores ou pequenos proprietários rurais, a fim de conferir
uma aparência legal ao seu predomínio, deveriam "votar com ele". Os
analfabetos aprendiam às vezes a assinar o nome apenas para lançar na uma o
nome do candidato definido pelo chefe. Em vésperas de eleição, estes eleitores
eram levados ao local de eleição, onde ficavam concentrados – eram os
chamados quartéis ou currais. O interior do País, sujeito a este regime,
concentrava 70% da população, garantindo sempre uma ampla maioria nos
resultados eleitorais. Em São Paulo, assim como em outras grandes cidades, os
currais não eram tão explícitos; porém, mesmo com porcentagens de
alfabetizados maiores do que no mundo rural, a cidade, durante a República
Velha, era basicamente analfabeta e estrangeira, portanto, excluída do registro
eleitoral. O processo de naturalização – ou obtenção da cidadania brasileira –
era um processo lento e caro. Supunha o atendimento a infindáveis formalidades
e severas exigências, entre elas a residência contínua de 10 anos no País.
Assim, tampouco por este meio, se ampliava a representação dos moradores da
cidade.

São Paulo-República Velha - população total/homens/


estrangeiros/analfabetos

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3
0

O que caracterizava a relação entre eleitores e governantes não era


propriamente a representação de grupos de interesse, já que, dada a restrição
do número de eleitores em face dos moradores da cidade, o voto aberto e a
seletividade econômica e social, os únicos grupos de interesse, efetivamente
representados, pertenciam à elite paulistana. Pertencer à elite paulistana era
participar de um círculo de grandes proprietários rurais, ricos negociantes,
banqueiros e por profissionais liberais – sobretudo advogados, médicos e
engenheiros – a este grupo vinculado por laços familiares ou profissionais.

O voto popular, quando existia, era mediado por uma relação hierárquica
baseada em laços de obediência, lealdade e proteção. Assim, não existia
propriamente uma relação com as demandas populares; a participação popular
nas eleições era atravessada não por direitos, mas por redes de relacionamentos
pessoais, a partir dos quais se poderia obter favores e oportunidades.
Finalmente, a garantia de sucesso de uma eleição definida a priori, nos
gabinetes, se dava através do processo de reconhecimento dos resultados do
pleito, que deveria ser feito pelo Senado e Câmara. Eram eleitos, diplomados e
reconhecidos os candidatos que as comissões executivas dos partidos
houvessem indicado em seus boletins. No dia das eleições, seções eleitorais
inteiras poderiam não funcionar, os livros e atas ficavam na mão de juízes ligados
ao grupo que dirigia a política municipal, mortos e ausentes, às vezes, votavam.
Com estes procedimentos se garantia a chamada degola de eleitos indesejados.
As eleições eram o preenchimento de uma formalidade com a qual se mantinha
a ilusão de que se cumpria a Constituição, e assim, prescindia de um debate
sobre as questões da cidade, Estado ou País e girava em torno de figuras
políticas, os figurões e seus círculos.

O papel do Estado: serviços urbanos e os bairros populares


O orçamento municipal era inteiramente consumido nas chamadas Obras
de Melhoramentos, em sua grande maioria obras de ampliação, calçamento e
melhorias no sistema viário, e na construção e reforma de praças e parques. Já,
desde o final do Século XIX, o Município havia transferido boa parte de suas
responsabilidades públicas, como eram definidas no período colonial, para a
iniciativa privada: isto foi particularmente verdadeiro para a provisão de serviços

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1

e infraestrutura urbana. No momento em que a cidade crescia rapidamente, o


Estado resolveria o problema de geração de novas infraestruturas requeridas
pelo desenvolvimento urbano — redes de água e esgoto, eletricidade,
transportes urbanos e telefonia — através de concessões monopolistas para
companhias privadas, em grande maioria constituída por capitais ingleses,
canadenses e norte-americanos. Em São Paulo, o caso do abastecimento de
água é significativo. Em 1860, diante de crises permanentes de falta de água nas
vertentes para abastecer os chafarizes públicos, a Câmara põe à venda "pennas
d'água" para, com o lucro, investir em um sistema de utilização do manancial da
Cantareira. Em 1875 foi fundada por capitais ingleses a Companhia Cantareira
de Águas e Esgotos, destinada a abastecer de água a cidade, através de sistema
subterrâneo de encanamentos. Através de canos de ferro, a água era distribuída
a domicílio. Ao mesmo tempo em que a Cantareira vende a água aos
consumidores conectados à rede, a Prefeitura vai, pouco a pouco, desativando
e demolindo todos os chafarizes públicos.

O exemplo da Companhia de Águas é eloquente de certo modo de


provisão dos serviços que se constitui na cidade ao findar o Século XIX e que
atravessa a República Velha, entrando em crise nos anos 20. A partir deste
momento os serviços de infraestrutura não são mais responsabilidade do Estado
e devem obedecer à lógica e nacionalidade das companhias privadas. Esta se
define por um lado em atender demandas com capacidade de pagamento dos
serviços ofertados e, por outro, se beneficiar da valorização gerada pela própria
provisão do ser-viço, o que se obtém através do direito de exploração de terrenos
remanescentes, as desapropriações necessárias para a implantação dos
sistemas e redes e de associação com empreendedores imobiliários em
negócios conjuntos. Desta forma, a relação entre a provisão do serviço e a
demanda se dá quase que exclusivamente para o mercado de alta renda, leia-
se no centro de negócios e bairros residenciais "valorizados" ou na abertura de
novos mercados de mesmo tipo, em terras que ainda não "desbravadas". No
próprio contrato das companhias estava registrado um perímetro demarcado
para sua atuação, definido como urbano, e, portanto, sujeito a regras específicas
de construção. O que estava fora, ou em desacordo com as disposições

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2

estabelecidas em contrato, a Cia. não era obrigada a cobrir. Atas da Câmara


Municipal de 1881 registravam a preocupação da Cia. em fazer a Prefeitura
definir o perímetro urbano e as regras de uso e ocupação do solo, para poder
cumprir cláusulas de seu contrato:

" Leo-se mais uma petição da Companhia Cantareira de Águas e


Esgotos, do 12 do corrente, declarando que, em obediência o art. 1.° de
seu contrato celebrado com o Governo da Província para a construção
de sistema completo de esgotos e despejos dos prédios desta Capital se
mandasse demarcar ao orbita dentro do qual fição os prédios sujeitos as
disposições do dito contracto nos termos do art. 10 da Lei n. 45 de 1875".

Desta forma, ao delimitar o perímetro urbano, a Câmara definia o âmbito


de atuação das companhias provedoras de infraestrutura. As implicações são
imediatas: o que estava dentro era imediatamente valorizado, o que estava fora
estava automaticamente excluído. A lógica da Cia. de Águas também valia para
outras empresas provedoras de serviços: a São Paulo Railway Company (1860),
The São Paulo Gas Company Ltd. (1869), The São Paulo Tramway Light and
Power Co. (1900). Esta última detinha o monopólio do fornecimento de energia,
telefonia e transporte urbano sobre trilhos, o bonde. Esse monopólio simultâneo
dos serviços mais essenciais dotara a empresa de um grande poder de gerar
valorizações urbanas. Associando-se a empreendedores imobiliários, a Light
corrompia autoridades e instituições para ver aprovados seus desígnios. Em
1909, por exemplo, quando deveria ser renovado o contrato da empresa com a
Prefeitura, Antônio Prado deu parecer contrário e, resistindo ao assédio da Cia.,
despachou contra a prorrogação. Essa decisão foi festejada como uma vitória
pela população, descontente com as tarifas altas e péssima qualidade do serviço
da empresa. No entanto, a Comissão de Justiça da Câmara derrubou o parecer
do Prefeito e reconfirmou o monopólio. Contra tal decisão, explodiu um motim
popular , que ocupou o Triângulo e uma parte da Av. São João aos gritos de
"Abaixo a Light! Abaixo o monopólio! Viva Antônio Prado!” Apesar da revolta, as
condições contratuais foram mantidas e a Light continuou ditando as regras de
indexação dos preços de terrenos, gerando eixos de expansão, e definindo, a
partir de critérios de mercado, quem deveria ser beneficiado e quem seria
excluído da provisão de infraestruturas.

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3
3

Mesmo em serviços que eram executados pela municipalidade, como


calçamento e drenagem, o que presidia sua atuação não era a necessidade de
universalidade do atendimento ou a garantia de cobertura a todos os moradores.
Na verdade, a política urbanística da República Velha não via como essencial
cuidar dos pobres ou investir em suas condições de vida:

“French positivism, which deeply infused the governments of this


generation, provided a rationale for neglecting the less fortunate. Society
would progress, according to positivism, if led correctly by a scientific-
minded and determined vanguard. The masses would be pulled along
and up if society as a whole progressed. It was wrong to expense scarce
resources on the poor, who did not know how to invest in progress. There
was also Spencerianism, a radical version of laissez-faire applied to
social relations. Also known as "social Darwinism", this approach
recommended that the intelligent and talented be encouraged to excel
through economic rewards, while the unfit, infirm, dull and unskilled be
allowed to languish and die through natural selection. These two social
policies held sway throughout Latin America and especially in Brazil
during the period 1880-1910.”

Assim, os anseios e demandas populares contavam muito pouco para as


regras do jogo político e sequer entravam como pauta ou agenda de discussões
em conjunturas eleitorais. A célebre expressão de Washington Luís, último
presidente da República Velha, para quem a questão social, que agitava as
cidades, era "caso de polícia", é ilustrativa do tipo de relacionamento que as
elites estabeleciam com o proletariado urbano crescente e com as massas
urbanas alijadas do poder. Para eles, o controle social se dava através da
repressão policial e não demandava uma intervenção direta do governo.
Entretanto, esse modelo liberal e privatista e toda a construção de relações
políticas que lhe correspondia entram em crise nos anos 20, vítima da voracidade
de sua criatura: uma cidade que em 1920 chega aos 600.000 habitantes, densa
e concentrada como um barril de pólvora prestes a explodir.

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A crise dos anos 20 na cidade das multidões


A cidade nos anos 20 vivia um momento especial: durante as décadas de
expansão da cultura cafeeira na província – e depois no Estado – São Paulo foi
o maior ponto de atração de capitais e populações em todo o País. Com isto, na
década de 30 a cidade ultrapassaria a marca do um milhão de habitantes,
tornando-se uma das metrópoles cosmopolitas da América. Por ter sido a capital
da oligarquia do café durante a República Velha, a cidade abrigava a
representação do poder econômico e provia o governo federal com presidentes
e ministros. Seu papel era, portanto, fundamental na definição dos rumos
políticos do País. No contexto da Primeira Grande Guerra, em virtude do colapso
das linhas de comércio internacional, São Paulo assistira a um grande surto de
crescimento industrial, do tipo substituição de importações. As decorrências
imediatas dessa industrialização em larga escala foram, além do aparecimento
de um proletariado urbano, um intenso crescimento demográfico que se fez
sentir no aumento da demanda por terrenos e habitações e uma carestia geral,
que multiplicava os preços dos gêneros alimentícios, vestuário e aluguéis, em
plena disparada inflacionária; ao mesmo tempo em que constituía a possibilidade
de for-mação de novas fortunas, não diretamente dependentes da produção e
exportação do café.

Ao findar a primeira década do século, quando o quadro na cidade era de


escassez, especulação, inflação, sobreveio uma epidemia de gripe espanhola
que matou milhares de paulistanos, aumentando a aflição e o descontentamento
na cidade. Neste contexto, acirram-se todos os tipos de tensão e conflitos que
existiam na cidade: sociais, étnicos, culturais, políticos e econômicos. Neste
momento, emergia com força um movimento sindical no meio operário,
fortemente inspirado pelo anarquismo espanhol e italiano contemporâneos. Uma
vasta rede de associações livres fomentadas pelos anarquistas no interior dos
bairros populares (culturais, esportivas, escolares e sindicais) tiveram um papel
político fundamental na ampliação da base deste movimento sindical, ao
incorporar questões para além do mundo do trabalho, como o valor dos aluguéis,
preço e qualidade dos produtos de primeira necessidade. A rede funcionava

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5

como base territorial da ação direta, levando à prática da autonomia e


autogoverno, princípios da doutrina anarquista.

Por outro lado, é preciso considerar também que além da chamada


"questão social" levantada sobretudo pelo movimento operário, aparece na cena
política um grupo totalmente novo na cena política paulistana: as classes médias.
Constituídas sobretudo por pequenos comerciantes, construtores e senhorios de
cortiços e vilas, funcionários públicos mais graduados e proprietários de micro
indústrias caseiras e familiares, este grupo tampouco tinha voz na política
paulistana e era diretamente atingido pelas flutuações da economia do País. Do
ponto de vista territorial, este grupo se misturava aos operários, na medida em
que estes constituíam seu mercado consumidor: um mercado consumidor ainda
muito pouco segmentado e bastante dependente das redes de relações étnico-
culturais que o constituiu. Assim, de certa forma se produzia uma aliança entre
este grupo e os operários; aliança limitada por interesses bastante distintos. Para
o operário anarquista a propriedade era um crime, para o pequeno comerciante
ou senhorio a única forma de mobilidade social. A presença deste grupo será
fundamental para determinar o grau de radicalidade da ruptura que ocorre nos
anos 30. A conjuntura 1926/1930, que correspondeu à administração do Prefeito
Pires do Rio na cidade de São Paulo, vai marcar a transição entre o modelo
político e territorial da Primeira República e a passagem para um Estado
intervencionista, com fortíssimo acento nacionalista, que dialoga com os pobres
e remediados moradores urbanos.

Do ponto de vista da política urbana, o advento e aumento rápido do


número de automóveis nos anos 20, o surgimento dos primeiros ônibus urbanos
e a pressão por novas oportunidade de moradia acabaram por entornar o caldo
do urbanismo da Primeira República; inaugurando a era das grandes obras
viárias, da ampliação da intervenção do governo na provisão dos serviços e a
emergência da expansão da fronteira interna como estratégia de acomodação
dos assentamentos populares. Enquanto a cidade adensava e se expandia, a
partir de 1920 o número de bondes foi sendo reduzido: em função do
desenvolvimento da indústria, esta consumia a maior parte da energia elétrica
produzida pela Light, que era também concessionária do serviço de bondes, a

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falta de bondes gerava um clima permanente de conflito. Enquanto fervia a


agitação revolucionária na cidade, o Prefeito Pires do Rio, em final de mandato,
promulgava a Lei n. 3.427 de 19/11/1929, conhecida como Código de Obras
Arthur Saboya. O novo Código não apresentava grandes inovações em matéria
de regulação do uso e ocupação do solo, representando muito mais uma
compilação das leis esparsas já promulgadas do que propriamente um novo
instrumento urbanístico. Sua grande novidade era incorporar os zoneamentos
parciais que já haviam sido promulgados – definindo normas específicas para a
ocupação de certas ruas. O Código foi recebido com frieza, quando não com
críticas pelo meio técnico. Na fala dos engenheiros com representação na
Câmara Municipal – como Alexandre de Albuquerque – esse já havia nascido
velho: "Afirmei e continuo a afirmar que a "Lei Arthur Saboya" não passa de uma
Codificação de leis esparsas, sem unidade e sem originalidade". O próprio Arthur
Saboya, embora indignado com as críticas do colega, ressaltava como principal
qualidade do Código:

"a consolidação das leis municipais e estaduaes sobre construções em


geral, construções para fins especiaes, arruamentos, loteamentos de
terrenos e outros assuntos atinentes à viação urbana (...), todas
esparsas em cerca de 40 leis, outros tantos actos, várias resoluções
municipaes e meia dúzia de leis e decretos estaduaes, era uma
necessidade premente, uma aspiração antiga da municipalidade.
Somente os iniciados na administração municipal poderiam, em dado
momento, ajuizar da vigência de uma ou outra disposição regulamentar,
tal a quantidade de leis revogadas, total ou parcialmente, podendo se
calcular as dificuldades que, para o governo municipal e para os
municipaes, dali resultavam."

Na verdade, se do ponto de vista das obras viárias, e até da política de


transportes urbanos, Pires do Rio iniciara uma revolução físico-territorial na
cidade, ao iniciar o Plano de Avenidas e regulamentar o transporte de ônibus, do
ponto de vista da legislação urbanística, está ainda estava por ser feita. O
Código, minucioso, formal e detalhado em seus 595 artigos, entrava em
contradição direta com uma cidade que iniciava um processo de expansão
horizontal desenfreada, sobretudo dos assentamentos populares. Por outro lado,
a existência e visibilidade das classes populares, tema fundamental da pauta

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política da crise da República Velha, exigia também um reposicionamento


urbanístico: até quando a legislação urbana poderia ignorar a irregularidade da
cidade popular, que inclusive, àquelas alturas já havia acumulado investimentos
familiares por décadas e gerado valorização e mobilidade social? 0 Código de
1929 era como a resposta de Washington Luís à questão social: faz de conta
que não existe. A possibilidade de autoconstrução na expansão ilimitada da
fronteira trazia a resposta, do ponto de vista da economia imobiliária, à crise.
Porém, está colocava em xeque toda a lógica de investimentos públicos e
provisão de serviços.

Para poder atender à cidade popular era preciso reconhecê-la. Mas, para
isso, faltava um elemento essencial: "que estatuto jurídico urbanístico teria esta
cidade autoconstruída, para além dos parâmetros oficiais e controlados pelos
códigos, que agora seria viável aconselhável ocupar?" A resposta sem dúvida
nenhuma não estava no Código de 1929. E tardou os anos turbulentos que
separam o golpe de 1930 da Constituinte de 1934 para ser formulada. Nesse
ínterim, sucederam-se dez prefeitos nomeados por interventores federais que
duraram cada qual poucos meses no poder abalados pela rebeldia de São Paulo
diante dos poderes ditatoriais de Getúlio e pela perda crescente de espaço
político da oligarquia paulista. Nestes anos rebeldes se ensaiou o que estaria por
vir plenamente com as definições de rumo em 1930 e 1934.

A ponta do iceberg: a questão do arruamento irregular


A comparação das plantas da cidade e dados populacionais de 1914 e
1930 mostra um processo claro de expansão horizontal e desadensamento
populacional. Se em 1914 a área ocupada é de 3.760 hectares e a densidade de
110 hab/ha, em 1930 a área ocupada será de 17.653 hectares e a densidade de
47 hab/ha. A partir daí a densidade se mantém praticamente constante, em torno
de 50 hab/ha até a década de 1970 e a cidade se espalha vorazmente pelo
território circundante, engolindo morros e várzeas em conturbação com
municípios vizinhos.

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A segunda metade da década de 20 vai configurar o padrão urbanístico


dominante na metrópole paulistana. Um padrão alicerçado na expansão
horizontal, no ônibus e automóvel como meios dominantes de transporte, na
autoconstrução dos assentamentos populares e... na mais absoluta
irregularidade em relação às leis e códigos que regem as regras de uso e
ocupação do solo na cidade. Para atender às pressões sociais para a instalação
de serviços públicos era necessário que os loteamentos e construções fossem
oficiais. As empresas de serviços públicos manifestavam àquela altura
claramente esta preocupação. A Repartição de Águas e Esgotos, por exemplo,
pedia em ofício endereçado ao prefeito, datado de 1931, que este intercedesse
no sentido de:

"cessar o inconveniente observado em relação às vilas e novos bairros


que são armados e loteados sem que tenham serviços de águas e
esgotos e que são vendidos para operários e pessoas desprovidas de
recursos, que ficam mais tarde privadas deste melhoramento, porque as
ruas, sendo particulares, só podem dispor de canalizações por conta dos
interessados. Diante desta situação colocava-se o dilema: ou deixará
que se disseminem os poços ao lado de fossas com prejuízo para a
saúde pública, ou se modificará o critério que vem sendo adotado de só
se estender as redes de águas e esgoto às mas oficialmente
reconhecidas".

Se a revolução de 30 foi feita em nome dos consumidores e produtores


da cidade irregular – as classes médias, os pequenos investidores urbanos e os
operários – esta teria de incorporá-los, de alguma forma, à gestão urbana e
provisão de serviços. O dispositivo proposto em 1932 inova: é possível
reconhecer o que é irregular, porém as condições de reconhecimento não estão
pré-definidas, dependendo de critérios dos técnicos municipais da Diretoria de
Obras. Desta vez foi dado o passo fundamental para estabelecer uma nova
ordem jurídica onde a clandestinidade ganha o estatuto de uma extra legalidade
dependente da intermediação do Estado – no caso, da municipalidade – para
ser reconhecida e, assim, ganhar o estatuto de legal e portanto poder inserir-se
na órbita de obrigações de responsabilidades públicas. Finalmente, depois dos
sucessivos ensaios, se encontra a fórmula de incorporar aquilo que deve ser
incorporado na nova ordem, porém com o filtro da escolha e do arbítrio de quem

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está sentado na cadeira do poder e que do alto desta poderá conceder. Inaugura-
se assim a era da cidadania consentida: a condição de legalidade urbana,
fundamenta para a incorporação de vastas massas urbanas como objeto das
políticas públicas é uma concessão, seletiva, do Estado. Qualquer semelhança
com a formulação dos direitos trabalhistas da era getulista não é mera
coincidência.

A chave de ouro da fase de ensaios será a nova versão que receberá a


Consolidação do Código Arthur Saboya, publicada em 1934. Da comparação
entre as duas redações se depreende que a novidade de 1934 se refere
basicamente ao posicionamento adotado em relação à irregularidade assim
como foi definido pelo Ato de 1932. Vale a pena enumerar alguns dos
dispositivos atingidos pela nova formulação. Em primeiro lugar se substitui o
conceito de "terreno situado em lugar afastado" por "terreno situado em vias ou
vielas sem melhoramentos públicos", denotando claramente a nova
diferenciação: os que receberam e os que não receberam os investimentos de
infraestrutura. Ou seja, potencialmente, em qualquer lugar da cidade se pode
receber melhoramentos públicos, a questão será então quando e como o
assentamento poderá ser considerado legal a assim ser merecedor da benesse.
Por outro lado desaparece o art. 51 da Lei de 1929, que impedia a aprovação de
edificações em zonas ainda não armadas das zonas urbana e suburbana, e a
alínea a do art. 54 que dispensava de alvará apenas as edificações que na zona
rural estivessem afastadas pelo menos 6 m da via pública. Na nova redação, se
for casa operária na zona rural não precisa de alvará: basta ter 2 m de recuo de
cada vizinho e 4 m de recuo da via – pública ou particular – para poder ser aceita
como regular. Isto é reforçado por um novo art. 57, que prevê que para construir
casas operárias, em qualquer zona da cidade, não é necessária a solicitação de
alvará, basta comunicar à Diretoria de Obras e providenciar uma planta que pode
ser assinada pelo proprietário, construtor ou engenheiro – ao contrário do
procedimento "normal" que exige um longo e documentadíssimo processo e a
presença das três figuras acima mencionadas. Cabe evidentemente à Diretoria
de Obras julgar se se trata de casa operária ou não, e, portanto, enquadrá-la
como "normal" ou exceção.

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Em relação às construções irregulares, a Consolidação do Código de


1934 introduz o art. 121, onde se afirma que todas as construções particulares
executadas sem licença – que por sua natureza puderem ser toleradas – serão
medidas e desenhadas pela Diretoria de Obras e Viação. No que se refere aos
armamentos irregulares, introduz o Ato de 1932 como um capítulo da
Consolidação, em substituição ao art. 548 do Código de 1929 que impossibilitava
a aceitação de ruas abertas em desacordo com a legislação. Ao permitir que
ruas abertas sem prévia licença sejam aprovadas, introduz também – o que
inexistia na versão de 1929 – condições para regularização das edificações
situadas em loteamento sem plano aprovado (largura mínima de rua de 8 m,
obras de drenagem, ocupação de apenas 1/3 do lote, recuo de frente de 4 m,
entre outras exigências) Além disto, as casas operárias, para serem
reconhecidas, não precisavam obedecer às condições enumeradas: bastava
estarem recuadas 4 m da via pública ou particular e 2 m de cada lado e da divisa
de fundo. Através da leitura das modificações introduzidas em 1934 é possível
analisar qual é o novo pacto territorial que se estabelece entre as classes
dominantes e os grupos sociais emergentes: a velha ordem não se transforma
para incorporar outras formas de ocupação do espaço, na verdade apenas tolera
– seletivamente – exceções à regra que, ao serem reconhecidas, são
"contempladas" com o direito de serem objeto de investimentos públicos em
infraestrutura e serviços urbanos. As maiorias clandestinas entram assim na
cena da política urbana devedoras de um favor de quem as julgou admissíveis.
A relação política que funda este pacto territorial é a que se convencionou
chamar na literatura sobre a questão social de "ideologia da outorga", ou seja, o
ato fundador da cidadania é uma relação de doação do Estado ao povo.

Finalmente, o termo que fecha e dá sentido à relação é "retribuir". Quem


recebe uma dádiva cria um vínculo que desemboca naturalmente no ato de
retribuir. Assim, a força da coisa dada está em produzir em quem recebe a
consciência de uma obrigação de retribuir como um dever político de natureza
ética. E interessante destacar a diferença entre retribuir e pagar uma dívida:
retribuir uma doação não tem prazo de execução nem conteúdo previamente
definido, trata-se sim do reconhecimento de uma obrigação que extrapola a

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dimensão utilitária. O vínculo que se estabelece pressupõe, portanto, a


ascendência do doador sobre o receptor e sua condição de devedor. Trata-se de
um compromisso que a qualquer momento pode ser cobrado e assim assumir
formas variadas de retribuição20 . Durante todo o período Getulista este implicou
no reconhecimento da figura do governante e uma identificação com ela que
permitiu desarticular qualquer tentativa de organização autônoma por parte dos
trabalhadores/moradores. Com a redemocratização, a relação assim
estabelecida é que abre espaço para a construção do clientelismo e populismo:
a condição de extra legalidade tolerada das maiorias clandestinas vai então
assumir a forma de troca. Aos rn/'horamentos obtidos se retribui com o voto.
Mas, para que isso seja possível foi necessário, além da construção de um pacto
político baseado na dádiva, um novo papel do Estado. O que se estabelece é
uma relação de ascendência e intermediação obrigatória do Estado em relação
às massas recém-incluídas ao pacto.

A cidade popular pode ser anistiada e a cidade burguesa se


defende
Não se pode encerrar este capítulo da história de legislação urbana de
São Paulo sem apontar o outro lado da moeda da política urbanística. Se é
verdade que o mote da política urbana dos anos 30 será a formulação de um
modo de incorporar o território popular na gestão, é neste período que se
consolida também o fundamento de uma política de zoning, que tem como
objetivo fundamental proteger as áreas residenciais de alta renda. Já em março
de 1931 o então Prefeito Anhaia Mello promulga o ato n. 127, que "institue o
zoning para determinados districtos urbanos e constitue uma Comissão para o
estudo desse problema, em toda a cidade". Nos considerandos da lei se
explicitam os objetivos da medida: exercer o poder de polícia municipal para
impedir que o cidadão use sua propriedade de forma incômoda aos vizinhos,
definir previamente a característica dos distritos urbanos para poder prever os
investimentos em infraestrutura, proteger os capitais invertidos em imóveis
urbanos, impedir que a especulação sobre a valorização dos imóveis provoque
a mudança rápida e prematura do caráter dos distritos em detrimento da
propriedade particular e da estética. A seguir, o decreto delimita a zona dos

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2

Jardins como exclusivamente residencial e com recuo obrigatório de 6m, e cria


uma comissão para elaborar o zoning do resto da cidade.

A promulgação deste decreto, assim como a fundação por membros da


aristocracia paulistana e engenheiro-urbanistas, em 1934, da Sociedade dos
Amigos da Cidade, com o objetivo de "fiscalizar e orientar o crescimento da
cidade", esboça a reação territorial das elites diante do espectro do fantasma do
povo. O desejo de controle da cidade por parte das elites se manifesta como
desejo de proteção de seu próprio espaço: a sanha do desenvolvimento urbano
é, ao mesmo tempo, fonte de riqueza e ameaça, porque pode significar que esta
riqueza mude de mãos ou que alguns privilégios acabem. Por isso é preciso
proteger a cidade. No discurso das elites, diante do populismo do Estado, é seu
território que necessita de proteção legal: uma proteção que tenha, ao contrário
da anistia do território popular, um perímetro e uma regra claramente definidos
em lei. A anistia e o zoning seletivo são duas faces cartografadas em mesma
moeda: representam uma estratégia político urbanística em São Paulo que
deitou raízes tão profundas, que praticamente nada mais aconteceu em termos
de legislação até o final dos anos 50. Seu fundamento tem o caráter do
compromisso estabelecido com a revolução de 30: as massas populares chegam
ao poder sem autodeterminação, subordinadas a um Estado protetor e populista;
as elites se deslocam sem perder seu lugar. Enfim, tudo muda para nada mudar.

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Conclusão
Ao findar o século XX, São Paulo, metrópole de 10 milhões de habitantes,
tem sua organização espacial regulada por uma ordem jurídico-urbanística
fortemente enraizada nos princípios formulados no início do século. Um retratista
que necessitasse captar, através de uma imagem instantânea, esta organização
espacial, descobriria, para além das peças de um caleidoscópio de difícil leitura,
a inércia de um desenho de cidade marcado pela contraposição entre um espaço
contido no interior da minuciosa moldura da legislação urbanística e outro, três
vezes maior, eternamente situado numa zona intermediária entre o legal e o
ilegal. Esta contraposição não é absoluta: a ordem jurídica formal ou estatal
nunca está totalmente ausente, mesmo no mais ilícito dos espaços. No mínimo,
se apresenta como referente e é frequentemente mobilizada nas negociações
que se estabelecem entre moradores/ocupantes destes espaços e as
autoridades estatais, que são geralmente as encarregadas pela aplicação das
normas. Da mesma forma, no interior dos espaços construídos de acordo com
as regulamentações urbanísticas, existe uma infinidade de transgressões, fruto
muitas vezes da própria atratividade e valorização que as regiões ultra
regulamentadas têm na cidade.

A contraposição destes espaços pode ter inúmeros significados. Do ponto


de vista de geografia da cidade, configuram paisagens que apresentam distintos
graus de prestígio e, consequentemente, de valor no mercado de localizações.
Assim, a grosso modo, se poderia identificar todo o vetor Sudoeste da cidade,
traçado a partir de seu velho centro, como zona concentradora das paisagens
formais, ricas e valorizadas, e as periferias (Norte, Leste, Sudeste e Sul) como
regiões pobres e desvalorizadas, marcadas pela condição de irregularidade, ou
extra legalidade. Mais uma vez aqui é necessário um matiz: a condição de
irregularidade não se refere a uma configuração espacial, mas a múltiplas. Assim
não se pode falar de irregularidade como se fosse um atributo intrínseco de um
espaço urbano, como sua topografia ou a composição de seu solo. Não somente
porque existem, na própria ordem jurídico urbanística, muitos tipos de
irregularidade, mas também porque as normas jurídicas podem ter, na prática,
diferentes significados para os atores sociais, dependendo das condições

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políticas e culturais prevalentes. Assim, embora tanto as favelas como as casas


populares autoconstruídas na periferia se encontrem no mesmo vasto campo da
irregularidade, construir sem licença é hoje considerado muito menos ilícito do
que morar em favelas. A favela, além de ter seu espaço organizado de forma
particular e não enquadrada nas previsões da lei, é uma forma de apropriação
do território baseada unicamente no critério da utilização, e não em qualquer ato
de compra devidamente registrado, base fundamental da noção de propriedade
tal como foi definida através da Lei de Terras de 1861 e consagrada no Código
de Direito Civil de 1902.

Poderia, por isso, e tal ocorreu inúmeras vezes ao longo da história da


cidade, ser considerada passível de desocupação e até da privação de liberdade
dos ocupantes como punição. No entanto, a efetiva ocupação por quem não tem
outra alternativa de moradia (e sua contraparte – o abandono da propriedade por
parte de seus donos legais) tem sido um argumento recorrente na comunidade
jurídica e fora dela, para que mesmo esta transgressão não seja punida com a
pena prevista para o caso. Permanece, entretanto, um forte sentimento de
repulsa a este desvio do direito vigente, de tal forma que a categoria "favelado"
é imediatamente associada à categoria "marginal", mesmo se todos seus
moradores não forem criminosos. Espaço criminalizado de saída, não é
eliminado, apenas rejeitado22.

Através deste mecanismo as formas de inserção irregular são


simultaneamente estigmatizadas e legitimadas numa escala micro, sem que as
bases – macro – da legitimidade do direito de propriedade sejam colocadas em
questão. O efeito urbanístico deste dispositivo jurídico-político é impressionante:
são milhares de hectares de terrenos e de quilômetros de vias públicas que não
se sabe, a princípio, se são ou não parte integrante da cidade, se devem ou não
ser objeto de investimentos públicos, se podem ou não ser integrados às redes
de serviços, infraestrutura etc. A consequência inevitável da posição extra legal
é uma espécie de imagem de provisoriedade, que ao contrário do que a própria
noção de provisoriedade supõe, é permanente. A posição de provisoriedade
funciona, a nível da política urbana, como justificativa para o não-investimento

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4
5

público, o que acaba reforçando a precariedade urbanística e sobretudo


acentuando as diferenças em relação ao setor da cidade investido.

Ao longo do tempo e diante dos vários agenciamentos espaciais e formas


de inserção na cidade, os cortiços, nos arruamentos ilegais e loteamentos
clandestinos, nas casas e quintais sem alvará e habite-se, nas favelas, formas
de moradia e bairros definidos pela ordem jurídica como irregulares foram
tecendo formas de legitimação, resultado das negociações entre os atores
envolvidos no processo de construção das "regras do jogo" locais23. Esta
espécie de acordo coletivo estabelecido entre as partes foi sendo adotada tanto
pelos ocupantes/moradores como pelos funcionários e políticos encarregados
da aplicação da norma aos assentamentos irregulares. Passaram a funcionar
como "direito" local, inscrito nas relações econômicas, sociais e políticas
efetivamente praticadas pelos atores que fabricam este território. Desta forma se
estabeleceram pactos territoriais, paralelos à própria ordem jurídico-normativa
oficial, sem, no entanto, parar de dialogar com esta. Em nenhum momento, ao
longo de um século de legislação urbanística, estes pactos deixaram de ser
paralelos. Desta forma, se constituíram numa espécie de direito inoficial a
amparar a infração à lei, fruto do conflito entre o legítimo e o legal, e que tem,
até os dias de hoje, como expressão urbanística a condição – ou imagem – de
provisoriedade24.

Imaginou-se, no início do século, quando a terça parte das habitações da


cidade era composta de cortiços, que um dia este iria desaparecer e dar lugar à
vila operária25. Para as normas urbanísticas, o cortiço transitou de uma posição
de proibição expressa a simplesmente na exclusão de certo perímetro da cidade,
onde sua presença desvalorizaria a região. Durante décadas foi, na prática,
tolerado e se transformou em grande alternativa de investimento para um capital
rentista e possibilidade segura – embora não sem sacrifícios – de ascensão
social. Embora superado, a partir dos anos 30, pelo modelo da autoconstrução
da periferia, e mais recentemente pelo enorme crescimento das favelas em São
Paulo, o cortiço jamais desapareceu. Pelo contrário: não há nenhum distrito do
Município de São Paulo onde não exista um cortiço, tanto nas áreas de
implantação mais antiga da cidade, quando antigas casas unifamiliares se

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4
6

subdividem, como nas periferias mais distantes, onde alugar cômodos e


compartilhar quintais é uma das estratégias fundamentais do próprio processo
de autoconstrução26 . Mesmo assim, jamais foi reconhecido sequer como
questão urbana. Com exceção do curtíssimo período em que as autoridades
médicas usaram como estratégia principal de combate às epidemias na cidade
sua "desinfecção", o que poderia implicar inclusive sua demolição, o cortiço
desaparece por completo do campo de intervenção urbanística, embora durante
todo o século não parou de se reproduzir, reinventar, relocalizar. Dos casarões
recém-abandonados no velho centro subdivididos por sublocadores, foram
ocupando os casarões dos Campos Elísios, da Liberdade, do Cambuci, do Brás.
E as sucessivas periferias foram produzidas sob sua forma. Brasileiros, italianos
e portugueses enriqueceram levantando milhares deles nas fronteiras
sucessivas: até a virada do século ocuparam Barra Funda/Brás/Belenzinho/Bom
Retiro/ Bexiga/Lapa, fronteira que em 1916 já ocupava Água Branca/Ipiranga/
Vila Prudente/Mooca/Pary/Tatuapé/Pinheiros. Em um padrão compacto e
pendurado às linhas de bonde foram gerando densidades que chegavam a 11,76
habitantes por domicílio.

E depois , já quando começavam a chegar mineiros e nordestinos e São


Paulo começava a se dispersar em periferias do ônibus, foram assumindo novas
formas. Vila Maria/Vila Guilherme/Vila Matilde/Vila Carrão/Vila Aricanduva/Água
Rasa/Vila Bertioga/Vila Alpina/ Heliópolis/Sacomã/Parque Edu Chaves/Jardim
Brasil/Vila Nova
Mazzei/Mandaqui/VilaGustavo/CasaVerde/Limão//VilaMadalena/VilaOlympia/Mi
randópo lisBosque da Saúde/Vila Guarany: todos bairros arruados nos anos 20
e que foram paulatinamente sendo ocupados pela autoconstrução domingueira
e pelos indissociáveis cômodos de aluguel. A história dos bairros populares é a
história dos quintais coletivos, dos cômodos mínimos alugados para famílias
inteiras, da situação eternamente cambiante, da progressão lenta feita dos
pequenos investimentos familiares. Este padrão, estes ritmos, esta lógica
comercial, espacial e financeira, sempre ausentes das normas urbanísticas,
nada têm a ver com os investimentos massivos e em bloco que criaram a cidade
formal.

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7

Do ponto de vista dos investimentos públicos, é possível afirmar que,


grosso modo, esses privilegiaram o vetor Sudoeste, ali concentrando um
investimento acumulado em obras viárias e intervenções urbanísticas que,
articuladas a grandes investimentos privados, foram capazes de sustentar a
posição valorizada por mais de cem anos e de gerar continuamente
ressignificações e novos polos de atratividade no interior do próprio vetor. Assim,
atravessou-se o grande Vale do Anhangabaú com um portentoso viaduto de ferro
trazido da Alemanha por empresários interessados em investimentos urbanos,
liderados por Joaquim Eugenio de Lima, ao mesmo tempo em que se redefinia
o velho centro como espaço comercial e de serviços por excelência. Este,
responsável também pela ocupação da Paulista, traçou no alto do espigão que
separa o vale do rio Pinheiros do Tietê a direção em torno da qual se estruturaria
toda a zona nobre da cidade, até hoje. Do Paraíso à Consolação, em 1900,
esparramou-se o prestígio da nobre avenida em direção ao Rio Pinheiros,
ultrapassado nos anos 20, com o arruamento da Cidade Jardim.

Quando, no final do Século XIX, o centro ia sendo abandonado pelas


elites, foi reinvestido pela função comercial; na segunda década do século, novos
loteamentos residenciais exclusivos foram abertos, abrindo frentes de expansão
para os bairros burgueses – os Jardins da City introduzem então um novo
paradigma de organização espacial. Quando, nos anos 30, a capacidade de
rendimento do primeiro cinturão Oeste (Centro Novo/Hygienópolis) chegava no
limite, foi reinvestida pelo uso vertical dos apartamentos. E a abertura da Avenida
Nove de Julho, parte do Plano de Avenidas de Prestes Maia, cuja implantação
iniciou-se nos anos 30, começava a sentar as bases para a migração das
atividades terciárias do Centro, na direção Sudoeste. Assim, a Av. Paulista,
símbolo da riqueza gerada na Primeira República com seus palácios de novos e
velhos ricos, vai ser implodida para poder abrigar as torres de bancos, grandes
corporações e antenas de comunicação a partir dos anos 60, sem nunca abalar
seu prestígio. Assim, a valorização sobe as colinas e desce as baixadas em
ondas de ressignificação, invariavelmente acompanhadas pela priorização dos
investimentos públicos da cidade.

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Variavelmente acompanhadas pela priorização dos investimentos


públicos da cidade. Associados às concessionárias de serviços públicos, e
sobretudo a toda poderosa Light & Power que a um só tempo monopolizava na
cidade os serviços de energia, iluminação, gás e transporte coletivo, e através
da contratação de urbanistas de renome internacional, a elite econômica da
cidade produziu um espaço para si, ao mesmo tempo em que gerava um
poderoso ramo de investimento financeiro: a incorporação imobiliária. Ao
contrário das regras do jogo que regeram a formação dos subúrbios populares e
depois das periferias e favelas, a estruturação do espaço das elites foi, durante
todo o século, inscrita de forma cada vez mais minuciosa na legislação
urbanística. Isso faz com que praticamente toda a legislação urbanística
formulada ao longo de um século faça referência e tenha aplicabilidade quase
que exclusivamente a um pedaço extremamente minoritário — que corresponde
hoje a aproximadamente 30% — porém muito poderoso da cidade28 . As leis
que asseguravam o uso residencial unifamiliar em grandes lotes e circundados
por jardins, que garantiam as características dos bairros de Campos Elysios,
Hygienópolis e Paulista, atravessaram o século e tiveram seu princípio
consagrado pela definição das Z-1 na Lei de Zoneamento, promulgada em 1972
e em vigor até os dias de hoje. O conceito de bairro exclusivo, que foi
sucessivamente incorporado à norma urbanística (na revisão do Código de
Obras Arthur Saboya estão assim definidas ruas contidas nos bairros de
Perdizes, Alto da Lapa, Jardim América, Pacaembú, Av. Paulista, Hygienópolis,
Al. Barão de Limeira, Av. Pompeya, Jardim Paulista e Paraíso), cuja ocupação
deve obedecer de alguma forma a recuos e usos especiais mencionados —
entrou para dentro do zoneamento eternizando uma situação de fato: sua
ocupação por certo padrão de moradia e, consequentemente, por certo grupo
social à sua altura.

Ao contrário da cidade irregular, a característica mais marcante da relação


entre o território e a lei, neste caso, é perpetuar o tipo de contrato comercial
estabelecido entre as partes quando do empreendimento. Esta é uma condição
para que os altos investimentos que são feitos nestes locais possam render num
horizonte longínquo, sem o que o empreendimento corre um risco que sua

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incorporação não deseja se submeter. O exemplo mais apoteótico deste modelo


foram os empreendimentos da City, em que um grande investimento privado se
potenciou de uma articulação profissionalmente montada com os cabeças das
concessionárias de serviços e os governos em seus vários níveis, e que, através
da lei, garantiu que este conjunto impressionante de investimentos pudesse ser
usufruído por uma parcela pequena, mas poderosa, dos habitantes da cidade.
Hoje, as zonas residenciais exclusivas de baixa densidade têm sua tradução na
Z-1, zona exclusivamente residencial, de baixa densidade. Nelas, se definem de
saída características que só uma ocupação de alta renda tem capacidade de
pagar — uso residencial exclusivamente unifamiliar, frente mínima de 10 m,
recuo de frente mínimo de 5 m de frente e fundos e 3 m lateral, taxa de ocupação
máxima de 0,5 e coeficiente máximo igual a 129 , onde o pequeno rendimento
decorrente da baixa densidade é largamente compensado pela valorização
decorrente do prestígio. Ao longo do tempo foram se aperfeiçoando os
mecanismos de sua proteção de forma que uma infinidade de zonas e subzonas
foram criadas apenas para protegê-las de vizinhanças de usos e ocupações não
condizentes com ela, que ameaçariam sua paisagem e as principais
características urbanísticas de seu conforto. Assim, foram criadas a Z-17 e Z-18
e os corredores em Zl(Z8CR-1), evitando que as fricções decorrentes do
contacto com outras formas de ocupação do espaço e portanto, com outras
territorialidades, fossem fortes o bastante para contaminá-la e como um vírus
mortal, liquidar com ela. Para isso criou-se uma espécie de cinturão de proteção,
muralha legal que envolve estas zonas.

Na prática, a Z-1 é permanentemente invadida por outros usos –


sobretudo por escritórios de prestação dos mais variados tipos de serviços,
fenômeno que se alastra na exata medida do processo de terceirização da
cidade e de dispersão deste tipo de atividades pelo território. Embora os conflitos
em torno da Z-1 seguem sendo negociados e cartografados em mais e mais leis
e decretos (e hoje, cada vez mais também através do instrumento do
tombamento, enquadrando sobretudo os loteamentos da City como patrimônio
histórico), a promoção imobiliária já encontrou seu sucessor como espaço
exclusivo e protegido: o condomínio fechado. Trata-se de pura e simplesmente

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5
0

materializar as muralhas, presentes na lei e no imaginário urbano,


transformando-as em muros concretos e circuitos eletrônicos de controle e
segurança, que eliminam a presença de qualquer "estranho" no bairro. Isto
significa levar ao limite o modelo segregacionista proposto através do pioneiro
Campos Elysios.

No projeto dos condomínios, o perigo decorrente da existência do "outro"


é evitado com a supressão do contacto com qualquer espaço exterior e com a
construção de um novo território exterior: íntimo, protegido e seguro como o "lar".
Protegidos pelos muros e aparato tecnológico de segurança e controle, os
habitantes podem usufruir de uma espécie de imitação cenográfica de cidade,
com ruas e praças como se fossem uma cidade, "but stripping troubled urbanity
of its sting, of the presence of the poor, of crime, of dirt, of work" . E mais: o
condomínio imprescinde de negociações cotidianas com territórios vizinhos e
autoridades locais para se manter. Pode ter sua própria polícia, suas próprias
brigadas de limpeza, seu serviço de manutenção. Isso é possível principalmente
porque pode pagar para ter tudo isto, não precisando de lobbies ou guerras de
influência na determinação das prioridades orçamentárias. Retirando-se do
espaço público, podem se retirar também da vida democrática da cidade. A
denominação norte-americana de edge cities, identificando os condomínios
situados na periferia da cidade, como Alphaville e Tamboré, tem neste caso um
duplo sentido: é edge por se encontrar nos limites territoriais de um município,
mas é edge por estar no limite de pertinência a este território, prestes a romper
com ele. Desta forma, se completa o movimento iniciado com a construção dos
palacetes em bairros exclusivos, baseado no estabelecimento de uma legislação
"protetora" que limita as possibilidades de uso e ocupação, funcionando como
barreira, associada a uma estratégia de investimentos massivos em projetos de
infraestrutura e desenvolvimento urbano, que equipam e valorizam a zona,
financiados por cofres públicos e capitais privados.

Propositadamente deixei para o final a questão do tratamento jurídico-


urbanístico das ilegalidades urbanas, massivamente representa-as por uma
periferia migrante, que se consolida muito lentamente e se reproduz por um
contínuo expandir de fronteiras sobre terras cada vez mais distantes. A este

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5
1

respeito o "Esquema Anhaia", baseado já na suposta provisoriedade dos


mecanismos que produzem a periferia – uma vez que esta desapareceria se o
plano fosse devidamente aplicado – propunha que aqueles pedaços de não
cidade já existentes deveriam ser mapeados e que um aparato eficiente de
fiscalização deveria ser montado para aplicar a lei. Esta suposição continua
plenamente em vigor na cultura urbanística de nossa cidade. Como até hoje a
periferia não desapareceu, costumasse, nos meios urbanísticos, atribuir o fato à
falta de planejamento associada à falta de fiscalização ou, procurando raízes
mais profundas, à falta de ética que impele governantes a negociar diretamente
com os interesses (sem seguir planos) e construtores, moradores e fiscais a
criarem uma relação de compra e venda de direitos e sanções.

Entretanto, como vimos, a partir dos anos 30 se estabelece um pacto


territorial, onde a ilegalidade é tolerada para poder ser posteriormente
negociada, pelo Estado. Uma das condições para que este pacto possa ocorrer
é o Estado assumir o papel de provedor e o território ilegal, de devedor de um
favor do Estado, já que do ponto de vista estritamente legal ali caberiam punições
e não responsabilidades e direitos. Isto ocorre, quando, no contexto da
redemocratização, melhorias urbanas na periferia ilegal se transformam em
votos e lideranças de bairro em cabos eleitorais. Entre 1940 e 1950 cerca de 100
mil famílias, mais de meio milhão de pessoas, passaram a morar em casas
próprias autoconstruídas nas periferias. A maioria havia embarcado na
perspectiva do autoempreedimento de uma casa situada em bairros sem
qualquer melhoramento público. Porém não tardou muito, para que estes
habitantes passassem a demandar do Estado os melhoramentos inexistentes.
Na verdade, bastou renascer a vida política paulistana, para emergir uma nova
voz, que vinha destes novos territórios.

Os comunistas, no breve período de legalidade do partido, entre 1945 e


1947, foram os primeiros a perceber a periferia como um espaço propício para o
surgimento de um movimento de luta por melhorias urbanas e novas formas de
organização popular. Durante o período de legalidade, em que constituíam a
maior bancada na Câmara de vereadores, organizaram dezenas de Comitês
Democráticos e Progressistas, cuja função era funcionar como órgão de massa

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2

do partido, mas que promoveram um trabalho de organização das vilas em tomo


a problemas comuns, que não faltavam. Inaugura-se aí uma tradição de
reivindicação e estratégias de pressão sobre o Estado – seu principal interlocutor
– que redefiniu a geografia política da cidade. Com a ilegalidade do PCB, os
CDPs foram fechados e os vereadores comunistas cassados. Porém, boa parte
destas lideranças foram incorporadas nas Sociedades Amigos de Bairro, forma
de organização que se transformou na principal representação da periferia na
relação com a Câmara e Prefeitura. Até 1953, os vereadores – principalmente
Jânio Quadros, suplente que havia assumido em 48, com a reabertura da
Câmara após a cassação dos vereadores do PCB – já ressoam a voz da
periferia, denunciando as condições precárias e encaminhando reivindicações.
Porém a institucionalização desta relação só se dará a partir do mandato de
Jânio, primeiro prefeito eleito pela cidade após a democratização. São Paulo, em
seu quarto centenário de existência, era então uma metrópole industrial de 2,5
milhões de habitantes e seu imenso território ilegal passa a ser, pela primeira
vez, priorizado pela Prefeitura. Uma das primeiras medidas administrativas de
Jânio foi conseguir a aprovação na Câmara de um projeto de lei sobre
"oficialização dos logradouros", que declarava oficiais todos os loteamentos
aprovados, todos os registrados de acordo com a anistia de 1936 e todos
contidos na planta da cidade anexa à lei. Desta forma, concedia uma anistia em
massa, tornando todo e qualquer espaço contido naquela planta passível de
investimento público. A medida legal era fundamental para pôr em marcha um
Plano de Emergência, que consistia na colocação de guias, sarjetas,
pavimentação e instalação de luz elétrica nas vias principais da periferia dos
anos 5033.

Colidia assim com a posição do Departamento de Urbanismo, que


defendia que os arruamentos poderiam ser legalizados caso a caso, no
lentíssimo ritmo em que se processavam no interior da máquina da Prefeitura,
para que garantissem condições mínimas34. Desta forma, o Departamento de
Urbanismo se dissocia do movimento feito pelo Prefeito, que por sua vez
estabelece uma negociação direta com as lideranças locais, a elas se dirigindo
em suas ações. Combatidas pelos urbanistas, suas medidas eram amplamente

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apoiadas pelos empresários ligados ao setor de construção civil e loteamentos,


que tiveram grandes possibilidades de ampliação de seus negócios. O sucesso
eleitoral desta ação de Jânio foi imediato – em 1955 este vence a eleição para o
Governo do Estado, enfrentando Adhemar, e elege seu sucessor em São Paulo.
Em seu período de governador, promove uma ampliação dos serviços de água,
aumentando em 5 vezes a adução e ampliando em quase 50% a rede,
atendendo assim a muitos bairros da periferia. Enquanto governador, sua
influência contribui para a promulgação da lei de conservação, que permite a
edificações irregulares serem legalizadas, o que era fundamental para a
instalação dos serviços. Com esta política, Jânio consolida um primeiro anel de
loteamentos, ocupados entre os anos 30 e 50, enraizando ali sua poderosa base
política. Consolida também uma relação entre o político e a produção da
periferia, que tem, na própria condição inicial de ilegalidade do assentamento, a
possibilidade de transformar investimentos públicos em poderosas moedas de
barganha em contabilidades eleitorais.

Este pacto territorial, esboçado, como vimos, desde os anos 30, mas
definido mais claramente no contexto da redemocratização e populismo, nunca
mais foi desmontado. Através dele se permite construir redes de sustentação
política a partir de investimentos públicos nos territórios irregulares. A legalidade
urbanística, sob a justificativa da isonomia e igualdade, exige a aplicação de um
único modelo de agenciamento territorial, que com raras exceções corresponde
aos contratos praticados no interior do território formal. Ali se estabelece uma
regra milimétrica de uso e ocupação, garantindo reservas de mercado e
inscrevendo contratos econômicos em lei. Ali se concentram os potenciais de
edificabilidade e as grandes obras públicas, os grandes equipamentos culturais
e educacionais, os maiores centros de diversão e consumo. Para além do canal
do Tamanduateí começa outra cidade, construída por uma infinidade de micro
investimentos pessoais e coletivos, que foi se consolidando sob a égide da
provisoriedade. Ali partidos políticos e lideranças negociaram ao longo de
décadas uma legitimidade que garantiu sua consolidação, perpetuando ad
eternum. Um modelo de desenvolvimento urbano excludente e perverso. E
contra este modelo, que um movimento pela reforma urbana se articulou no final

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dos anos 80, mas esta é outra história que nestas breves linhas já não cabe
contar.

DO ESTATUTO DA CIDADE AO CÓDIGO DE URBANISMO


Introdução
A edição do Estatuto da Cidade, em 2001, foi um divisor para o direito
urbanístico brasileiro, uma vez que se trata da primeira legislação abrangente
sobre política urbana, que é de responsabilidade municipal. Apesar desse
grande avanço, passada quase uma década de sua vigência, é importante que
se faça uma reflexão sobre o futuro do direito urbanístico em nosso país. Em
comparação com outros países, a legislação brasileira ainda se apresenta muito
assistemática e incompleta, o que tem impedido a institucionalização do
planejamento urbano. Decorrem daí graves problemas, notadamente nas
principais cidades, como o crescimento desordenado do tecido urbano, a
realização de obras setoriais contrárias aos objetivos da política urbana e a
degradação de áreas centrais dotadas de infraestrutura. A adoção de um Código
de Urbanismo, nos moldes da legislação amplamente adotada na Europa há
muitas décadas, pode contribuir para a solução de muitos desses problemas.

Competência da União para legislar sobre direito


urbanístico
Até a Constituição de 1988, a política urbana sempre foi tratada como um
assunto exclusivamente municipal, sobre o qual a União não poderia dispor
senão em linhas gerais. A Constituição incluiu o direito urbanístico entre as
matérias de competência legislativa concorrente entre a União e os Estados (art.
24, I) e atribuiu à União competência para instituir diretrizes para o
desenvolvimento urbano (art. 21, XX). Aos Municípios foi atribuída competência
para “promover adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e
controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano” e para
“suplementar a legislação federal e estadual” (art. 30, II e VIII).

No capítulo específico sobre a política urbana, essa divisão de


responsabilidades foi confirmada, uma vez que se estabeleceu que a política de
desenvolvimento urbano fosse executada pelo Poder Público municipal,

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5
5

conforme diretrizes gerais fixadas em lei (art. 182). Ao consagrar o direito


urbanístico como um ramo próprio do direito, a Constituição desvinculou-o do
direito administrativo, o que veio alterar o regime jurídico de produção de suas
normas. Enquanto as regras de direito administrativo são ordinariamente
produzidas pela mesma unidade federativa que as aplicará, as de direito
urbanístico sujeitam-se ao regime da competência concorrente entre a União e
os Estados.

Conclui-se daí que, embora os Municípios possam legislar sobre direito


urbanístico para suplementar a legislação federal e estadual, sua competência
privativa diz respeito apenas à execução da política urbana, que se dá por meio
do planejamento e do controle do uso do solo urbano.

A legislação urbanística federal


O direito urbanístico, que tem por objeto o ordenamento territorial das
cidades, está distribuído, na esfera federal, em três leis ordinárias e uma medida
provisória:

– Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que dispõe sobre o


parcelamento do solo urbano;

– Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamenta os arts. 182 e


183 da Constituição Federal e estabelece diretrizes gerais de política urbana
(Estatuto da Cidade);

– Medida Provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 2001, que dispõe sobre


a concessão de uso especial de que trata o § 1º do art. 183 da Constituição e
cria o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU); e

– Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, que dispõe sobre o Programa


Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de
assentamentos localizados em áreas urbanas.

Diversas outras leis setoriais incidem indiretamente sobre o


desenvolvimento urbano, podendo-se citar as seguintes:

– Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, que institui o Código Florestal;

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5
6

– Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002, que dispõe sobre a universalização


do serviço público de energia elétrica;

– Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que estabelece diretrizes


nacionais para o saneamento básico;

– Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, que institui a Política Nacional


de Resíduos Sólidos.

Além dessas leis federais, inúmeras normas estaduais e municipais


dispõem sobre desenvolvimento urbano.

Deficiências da legislação federal


Embora muitas das leis citadas sejam relativamente recentes e tenham
contribuído para o aperfeiçoamento da política urbana brasileira, a legislação
nacional ainda apresenta muitas deficiências, especialmente se comparada à
existente nos países europeus, que se encontra sistematizada em Códigos de
Urbanismo. As três principais leis federais não adotam uma terminologia comum
e raramente são interpretadas em conjunto. Decorrem daí lacunas e
sobreposições, cujo equacionamento nem sempre é imediato.

O Estatuto da Cidade introduziu no Direito brasileiro alguns instrumentos


de política urbana existentes na Europa, mas sua disciplina é superficial,
notadamente no que diz respeito ao planejamento urbano. Não há uma descrição
clara e abrangente do conteúdo do plano diretor e dos demais planos
urbanísticos nem da maneira como os instrumentos de política urbana se
articulam com eles. Nos Códigos de Urbanismo, em contraposição, os planos
urbanísticos são tipificados e detalhadamente regulamentados quanto à forma
de apresentação, ao conteúdo e ao procedimento de elaboração.

O caso mais grave é o do plano diretor, cujo conteúdo não foi


satisfatoriamente definido, apesar de a Constituição o ter tornado obrigatório
para as cidades com mais de 20 mil habitantes. Um exemplo dessa lacuna é o
fato de que, na maioria dos casos, os planos diretores elaborados após o
Estatuto da Cidade não contêm um mapeamento das áreas de risco, cuja
ocupação é vedada pela Lei nº 6.766, de 1979. De um modo geral, tende-se a

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tratar os planos diretores, cada vez mais, como peças de retórica política e não
como documentos técnicos de urbanismo, capazes de efetivamente orientar o
crescimento das cidades.

Outra consequência da inexistência de um sistema de planejamento


urbano institucionalizado é a ausência de coordenação territorial entre as
políticas setoriais e o ordenamento territorial das cidades. Um exemplo disso é
a provisão de infraestrutura urbana em assentamentos irregulares. Por
determinação da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) às
concessionárias de distribuição de energia elétrica, praticamente todos os
assentamentos humanos irregulares são dotados, atualmente, de ligações
oficiais. Não há exceções à regra, que abrange, por exemplo, favelas,
loteamentos clandestinos, áreas de proteção ambiental e áreas de risco.
Tampouco há obrigatoriedade de consulta aos Municípios quanto à possibilidade
e à conveniência de regularização dos assentamentos. A colocação de
infraestrutura em assentamentos irregulares acarreta a sua consolidação, o que
subverte o planejamento territorial eventualmente existente e representa o
principal vetor de ocupação das áreas de risco.

Outro tema que merece melhor tratamento legal é o da participação da


população no urbanismo. Embora o Estatuto da Cidade tenha previsto essa
diretriz, não há procedimentos claros. Os Códigos de Urbanismo europeus, em
contraposição, são muito detalhados no que diz respeito ao processo de
elaboração dos planos urbanísticos e da aprovação de obras públicas e privadas.
Exemplos desse tipo de fragilidade institucional em nosso país são a aprovação
de loteamentos e de grandes obras sem consultas ou audiências públicas e a
introdução de alterações no plano diretor por iniciativa das Câmaras Municipais.
A renovação de centros degradados é uma necessidade nas principais cidades,
pois neles já existe uma infraestrutura completa, que pode ser mais bem
utilizada. A legislação brasileira é praticamente omissa, entretanto, com relação
ao tema do reparcelamento, ou seja, a renovação do tecido urbano que envolva
alterações no sistema viário ou nas áreas livres. Intervenções desse tipo são
necessárias para a revitalização de áreas degradadas, como zonas portuárias,
centros históricos e assentamentos regularizados, medida que interessa a

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5
8

praticamente todas as grandes cidades brasileiras. A ausência de um regime


jurídico específico, entretanto, torna esse tipo de projeto, em muitos casos,
inviável.

A Experiência internacional em direito urbanístico


A precariedade do estado atual do direito urbanístico brasileiro só pode
ser devidamente aferida por comparação com os demais países. Ao contrário do
Brasil, praticamente todos os países desenvolvidos do mundo dispõem de uma
legislação coerente de urbanismo. O grau de sistematização destas leis é tão
grande que, em alguns países, como a França e a Itália, se adota a denominação
de “Código de Urbanismo”. O que garante a unidade do direito urbanístico e
inspira seus princípios básicos é ideia da necessidade do planejamento
territorial. O direito urbanístico nasce quando se estabelece a obrigatoriedade de
um plano geral para toda cidade que apresente algum dinamismo populacional.
Seus institutos visam organizar o sistema de planejamento decorrente dessa
obrigação e definir com clareza os direitos dos proprietários urbanos quanto às
possibilidades de utilização e transformação de seus terrenos.

A adoção dessa legislação urbanística abrangente iniciou-se ainda no


começo do século, com a edição do Town and Country Planning Act (1909), na
Inglaterra, e da Lei Cornudet, na França (1919). O maior desenvolvimento desse
ramo do direito ocorreu logo após a 2a guerra, quando todos os países da
Europa aprovaram leis detalhadas relativas ao planejamento e ao
desenvolvimento urbano. Entre as principais legislações internacionais de direito
urbanístico, que serviram de inspiração para outros países destacam-se as
seguintes:

– Inglaterra: Town and Country Planning Act, de 1947, reformulado em


1990;

– Espanha: Lei de Regimen del Suelo y Ordenación Urbana, de 1956,


reformulada em 1975 e 1992;

– Itália: Legge Urbanistica, de 1942, reformulada em 1967 e 1977;

58
5
9

– França: Code de l’Urbanisme et de l’Habitation, de 1954, reformulado


em 1973;

– Alemanha: Bundesbaugesetz (Lei Federal de Ordenação Urbanística),


de 1960.

A adoção de códigos de urbanismo não é um fenômeno localizado no


continente europeu ou nos países desenvolvidos. Nos Estados Unidos e no
Canadá, os códigos foram adotados pelos estados e províncias. No Chile, a
matéria é regulada pela Ley General de Urbanismo y Construcciones, de 1976.
Na Colômbia, pela Ley de Reforma Urbana, de 1989. No México, pela Ley
General de Assentamientos Humanos, de 1976. O mesmo sucede em países
pertencentes a outros continentes e culturas, o que se explica pela adesão aos
princípios do urbanismo que se disseminaram pelo mundo durante século XX.

Embora cada uma destas leis nacionais apresente particularidades


decorrentes do sistema institucional de cada país, há uma notável semelhança
entre elas. Todas estabelecem um sistema hierarquizado de ordenação
territorial, pelo qual os planos de menor escala detalham os de maior escala.
Cada um desses planos é minuciosamente descrito quanto ao seu conteúdo,
forma de aprovação e atualização, grau de detalhamento e eficácia jurídica.
Mesmo em países federados, como a Alemanha e o Canadá, a legislação
relativa ao urbanismo é estabelecida nas esferas federal ou provincial. Aos
governos locais compete elaborar os planos urbanísticos e aplicá-los, sendo
reservada ainda às instâncias supramunicipais a competência para aprovar os
planos e para fiscalizar sua conformidade com a legislação e os planos de nível
superior.

Sugestão de agenda
A harmonização das leis federais pode ser feita por meio de sua
consolidação, conforme previsto na Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro
de 1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação
das leis. A consolidação consiste na integração de todas as leis pertinentes a
determinada matéria num único diploma legal, revogando-se formalmente as leis

59
6
0

incorporadas à consolidação, sem modificação do alcance nem interrupção da


força normativa dos dispositivos consolidados (art. 13, § 1º).

A consolidação não seria o instrumento adequado, entretanto, para o


aperfeiçoamento da legislação existente no sentido defendido no presente texto.
Por essa razão, entendemos ser conveniente a elaboração de um projeto de
Código de Urbanismo no âmbito do Congresso Nacional, com ampla consulta à
sociedade e aos Estados e Municípios.

A tramitação desse projeto certamente exigiria amplos debates, em


ambas as casas do Congresso Nacional. Sua simples divulgação, no entanto, já
traria para um novo patamar a discussão a respeito do direito urbanístico e da
política urbana no País, contribuindo para que se aprofundassem os estudos e
se intensificasse o debate a respeito do assunto na sociedade e nos meios
especializados. Em boa medida, foi o que ocorreu com o Projeto de Lei nº 775,
de 1983, do Poder Executivo, chamado de “Lei do Desenvolvimento Urbano”,
que deu origem às discussões que resultaram, em 2001, no Estatuto da Cidade.
A adoção de um Código de Urbanismo fortaleceria o planejamento urbano,
condição indispensável para a melhoria da qualidade de vida nas cidades. Para
oferecer uma contribuição inicial ao tema, apresentamos em anexo uma
tradução do índice da Ley sobre el Régimen del Suelo y Ordenación Urbana, da
Espanha.

REGISTRO DE IMÓVEIS
Princípio da continuidade
Serve para evitar que um imóvel seja alienado por quem não seja o seu
dono (Alyne Yumi Konno - Registro de Imóveis, Memória Jurídica Editora, p. 35).
Assim, quem transfere um direito tem de constar do registro como titular desse
direito (Narciso Orlandi Neto, Retificação do Registro de Imóveis, Juarez de
Oliveira, pág. 55/56). Exemplo: para que a escritura pública por meio da qual "A"
vende um imóvel a "B" seja registrada no registro de imóveis, é preciso que "A"
conste na matrícula como titular de domínio do imóvel vendido. Afrânio de
Carvalho explica o princípio da continuidade da seguinte forma: "em relação a
cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de

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6
1

titularidade à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante


dele aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões,
que derivam umas das outras, asseguram a preexistência do imóvel no
patrimônio do transferente" (Registro de Imóveis, Editora Forense, 4ª Ed., p.
254).

É importante observar que a continuidade relaciona-se com a pessoa que


está transferindo o imóvel e a que o está recebendo. E o art. 195 da LRP é
expresso nesse sentido: Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em
nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título
anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do
registro. Deste modo, se a escritura de inventário e partilha extrajudicial não
respeitar a ordem de vocação dos herdeiros que estão recebendo os imóveis, há
quebra do princípio da legalidade e não da continuidade. Contudo, se o formal
de partilha for judicial, o registrador e o juiz corregedor permanente não podem
discutir o acerto da ordem de vocação hereditária porque a esfera administrativa
não pode rever a jurisdicional (CSM - Ap. Cível 0011977-27.2011.8.26.0576).

O compromisso de compra e venda de imóvel sempre é fonte de dúvidas


na qualificação registral. Uma vez registrado, tem força de obstar o registro de
escritura pública outorgada pelo promitente vendedor a terceiro? O CSM
entende que o art. 1.418, do Código Civil prevê hipótese de ineficácia e não de
nulidade da compra e venda a pessoa diversa do promitente vendedor. Por isso,
nos autos da Apelação Cível nº 0025566-92.2011.8.26.0477, permitiu o registro.
A aplicação do princípio da continuidade não se restringe aos casos em que há
transferência de domínio. O registro de outros negócios jurídicos também exige
a sua observância. Nos autos do Processo CG 35.487/2014, foi negada a
averbação do contrato de sublocação porque o titular de domínio que anuíra com
a sublocação não mais ostentava essa qualidade na matrícula. Isso aconteceu
porque o sublocátario, embora tenha regularmente firmado o contrato de
sublocação, demorou para levá-lo ao registro de imóveis. E, quando o
apresentou para averbação, foi surpreendido com a notícia de que o imóvel havia
sido vendido para outra pessoa.

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6
2

Assim, reputou-se violada a continuidade porque, ao tempo da


apresentação do contrato no registro de imóveis, o anuente da sublocação não
mais constava da matrícula como titular de domínio. Vale lembrar que a
qualificação registral segue a regra tempus regit actum, o que significa que o
título se sujeita às condições vigentes ao tempo de sua apresentação a registro,
pouco importando a data de sua celebração (Ap. Cíveisl nº, 115- 6/7, nº 777-6/7,
nº 530-6/0, e nº 0004535-52.2011.8.26.0562). Outro tema recorrente nos
recursos administrativos e apelações diz respeito à qualificação registral dos
títulos judiciais. A jurisprudência do CSM e da CG é tranquila no sentido de que
os títulos judiciais também se sujeitam à qualificação registral, haja vista que o
exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial,
mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus
dados com o registro e a sua formalização instrumental" (Ap. Cível nº 31881-
0/1.).

Deste modo, não se averbará o mandado de penhora se o executado não


constar na matrícula como titular do direito penhorado (Processo CG
2013/151927). É preciso destacar que, se a recusa do registrador for examinada
e afastada pelo juízo que expediu o título, o registro deve ser efetuado ainda que,
na visão registral, haja violação ao princípio de continuidade (Proc. CG
14286/2013 e 98435/2011).

De acordo com a atual jurisprudência do C. Conselho Superior da


Magistratura (Apelações nºs 9000001-34.2013.8.26.0531 e nº 9000002-
19.2013.8.26.0531), a arrematação de imóvel em hasta pública constitui modo
derivado de aquisição de propriedade imóvel. O entendimento anterior, segundo
o qual a natureza dessa aquisição é originária (0007969-54.2010.8.26.0604),
restou superado. Corolário disso é que, se o imóvel arrematado não estiver em
nome do executado, o registrador poderá recusar o registro com base na
continuidade registral. Princípio da Continuidade na Lei nº 6.015/73:

Art. 195 - Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do


outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior,
qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro.

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6
3

Art. 237 - Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que
dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a
continuidade do registro.

Princípio da especialidade objetiva


Para Afrânio de Carvalho, o princípio da especialidade do imóvel significa
a sua descrição como corpo certo, a sua representação escrita como
individualidade autônoma, com o seu modo de ser físico, que o torna
inconfundível e, portanto, heterogêneo em relação a qualquer outro (Reg de
Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei 6015/73, 2a ed., Rio
de Janeiro, 1977, p. 219). Por isso, o imóvel deve estar perfeitamente descrito
no título objeto de registro de modo a permitir sua exata localização e
individualização, não se confundindo com nenhum outro.

Narciso Orlandi Neto, ao citar Jorge de Seabra Magalhães, lembra que


"as regras reunidas no princípio da especialidade impedem que sejam
registrados títulos cujo objeto não seja exatamente aquele que consta do registro
anterior. É preciso que a caracterização do objeto do negócio repita os elementos
de descrição constantes do registro" (Narciso Orlandi Neto, Retificação do
Registro de Imóveis, Juarez de Oliveira, pág. 68).

Por esta razão, não se permite o registro de escritura pública que


descreva o imóvel de forma diferente da que consta no registro de imóveis ( CSM
Ap. Cível no 10.897/2010). O art. 176, § 1º, II, 3, da LEI Nº 6.015/73, arrola os
elementos de identificação dos imóveis rural e urbano:

a - rural, o código do imóvel, os dados constantes do CCIR, a


denominação e suas características, confrontações, localização e área;

b - urbano, suas características e confrontações, localização, área,


logradouro, número e sua designação cadastral, se houver.

Como lembra Alyne Yumi Konno (Registro de Imóveis - Teoria e Prática,


Memória Jurídica, p. 20/21), tem-se admitido a mitigação da especialidade a fim
de não obstar o tráfego de transações envolvendo imóveis, permitindo-se a
manutenção de descrições imprecisas, constantes de antigas transcrições,

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6
4

quando da abertura da matrícula, desde que haja elementos mínimos para se


determinar a situação do imóvel, e que ele seja transmitido ou onerado por
inteiro, ou seja, desde que a nova matriz a ser aberta o abranja por inteiro.
Contudo, se o imóvel for objeto de desmembramento, fusão ou instituição de
condomínio, sua descrição deverá submeterse aos requisitos da LRP.

Nos autos do processo CG nº 1241/96, o então Juiz Auxiliar da


Corregedoria Francisco Eduardo Loureiro, hoje Desembargador, aprofundou o
exame da mitigação da especialidade

Não se nega, portanto, a possibilidade de ser descerrada matrícula com


exata coincidência com o registro anterior, em que pese a ausência de
medidas perimetrais e da área de superfície. O que não se admite é a
criação de nova unidade imobiliária contendo descrição perfeita, por
fusão de matrículas, quando um dos imóveis unificandos não dispõe de
todas as medidas tabulares. Em termos diversos, imóvel com figura
imprecisa não pode gerar, por fusão ou desmembramento, nova unidade
com figura e descrição precisas. ... Logo, quando do descerramento de
matrícula que abranja a totalidade do imóvel, vale a descrição contida no
registro anterior, ainda que imperfeita, desde que suficiente para a
identificação do prédio. Quando, porém, criam-se novos imóveis
decorrentes de desmembramentos ou de fusões, as unidades
segregadas ou unificadas devem subordinar-se aos requisitos do artigo
176 da Lei n. 6.015/73. Não há razão, em tais casos, para tolerar a
imprecisão, porque o novo prédio não mais tem identidade descritiva
com o registro de origem.

Esse entendimento tem sido prestigiado e até ampliado pelo CSM e pela
Corregedoria Geral da Justiça, podendo-se citar a Apelação Cível nº 9000002-
16.2011.8.26.02961 , em que o CSM admitiu o registro mesmo no caso em que
a descrição deficiente constava da matrícula e não de transcrição. O que importa
é que a descrição do título, ainda que precária, coincida com a do registro e seja
suficiente para identificar o imóvel.

Quando uma parte do imóvel é objeto de desapropriação, a parte restante,


chamada de remanescente, fica com a sua descrição prejudicada, isto é, deixa
de ser um corpo certo e perde a sua individualidade autônoma que o torna
inconfundível em relação a qualquer outro. A abertura de matrícula para essa

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6
5

área remanescente depende da prévia retificação do registro, n forma do art. art.


213, § 7o , da Lei nº 6.015/73: Pelo mesmo procedimento previsto neste artigo
poderão ser apurados os remanescentes de áreas parcialmente alienadas, caso
em que serão considerados como confrontantes tão-somente os confinantes das
áreas remanescentes. É importante frisar que, ainda que o laudo apresentado
na ação de desapropriação descreva a área remanescente, se a descrição for
discrepante das medidas contidas na matrícula, o registrador pode exigir que a
abertura da matrícula seja precedida de retificação do registro - judicial ou
administrativa - para que se apure a área remanescente (CSM Ap. Cível no
0005861-92.2012.8.26.0180).

Princípio da especialidade subjetiva


O princípio da especialidade, diretamente ligado ao princípio da
continuidade, pode ser dividido em duas espécies: a especialidade objetiva e a
especialidade subjetiva. Sobre a primeira, já se falou. Tratemos da segunda. A
especialidade subjetiva impõe que na matrícula conste, como requisito
necessário, o nome, domicílio e nacionalidade do proprietário. Cuidando-se de
pessoa física, seu estado civil, profissão, o número de inscrição no Cadastro de
Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da cédula de
identidade, ou, à falta desse, sua filiação. Tratando-se de pessoa jurídica, a sede
social e o número de inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério
da Fazenda (art. 176, II, 4, alíneas ‘a’ e ‘b’, da Lei nº 6.015/73.

Via de consequência, para que seja preservada a continuidade, no título


a ser eventualmente registrado perante a matrícula deve constar essa mesma
qualificação completa das partes. Assim, por exemplo, em uma escritura de
compra e venda a qualificação do vendedor, proprietário, deve ser idêntica à
qualificação que consta da matrícula. Eventual divergência implica a
necessidade de retificação. Pense-se, ainda a título de ilustração, na pretensão
de registro de um formal de partilha. O decurso do tempo faz com que o estado
civil do proprietário possa ter sido alterado. Será o caso, nessa hipótese, de
prévia atualização do estado civil – com a apresentação de averbação de
divórcio do falecido, por exemplo – a fim de que se preserve não somente a
especialidade subjetiva, mas, também, a continuidade.

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6
6

Aliás, é por isso que se diz que ambos os princípios estão intimamente
ligados. É por meio da preservação da especialidade subjetiva que se assegura
que a continuidade não será quebrada, transmitindo-se a propriedade apenas
através daquele que possuir, de fato, tal direito. Vale dizer, garante-se que a
pessoa que transmite um direito dele figure como titular no registro imobiliário,
seja a transmissão decorrente de ato voluntário ou não.

Princípio da Inscrição ou do Registro


O princípio da inscrição ou do registro decorre da regra segundo a qual a
transmissão de um direito real por ato entre vivos somente se dá a partir da
inscrição do título translativo no Registro de Imóveis competente. Tal princípio
está expresso no caput e no §1º do art. 1.245 do Código

Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do


título translativo no Registro de Imóveis.

§1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a


ser havido como dono do imóvel.

Em verdade, não apenas a transmissão da propriedade, mas a


constituição, modificação, extinção dela ou de direitos reais sobre imóveis
apenas se concretizam com o registro (LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros
Públicos: teoria e prática. 5ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 300).

Para ser válido, o registro deve ser efetuado no cartório de registro de


imóveis competente, isto é, da circunscrição do imóvel. Nos casos em que o
imóvel se situar em mais de uma circunscrição, deve ser registrado em todas.
Assim, não é suficiente apenas a lavratura da escritura. Para a aquisição da
propriedade, o comprador deve registrá-la no cartório competente. Não há prazo
legal para que o registro seja efetuado. A prudência, entretanto, recomenda que
seja feito o mais rápido possível para que o adquirente não venha a se tornar
proprietário de um imóvel onerado por, digamos, uma penhora que na época da
lavratura da escritura de venda e compra ainda não existia (LOUREIRO, Luiz
Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. 5ª edição. Rio de Janeiro:
Forense, 2014, p. 301). Nas transmissões entre vivos, portanto, o registro tem
efeito constitutivo. Nesse sentido:

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6
7

“O princípio da inscrição está positivado no caput e no §1º do artigo em


exame. Traduz o caráter constitutivo do registro imobiliário, ou seja, a
transmissão e a constituição de direitos reais sobre imóveis por ato entre
vivos e derivado somente se dão com o registro, salvo exceções legais,
como o casamento pelo regime da comunhão universal de bens”
(LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil Comentado. Barueri:
Manole, 2007, p. 1081).

Importante lembrar que, diferentemente, nos casos de sucessão legítima


ou testamentária, ou ainda da usucapião, o registro tem caráter apenas
declaratório. Na sucessão, o herdeiro adquire a propriedade automaticamente
com a morte do autor da herança, pelo instituto da saisine (art. 1.784 do Código
Civil), antes mesmo do registro do formal de partilha. Na usucapião, a sentença
declara a propriedade adquirida pelo possuidor pelo exercício da posse ad
usucapionem, sem oposição, pelo prazo legal.

De toda forma, em quaisquer dos casos, o registro é obrigatório, pois,


mesmo nas hipóteses em que ele tem caráter apenas declaratório, o herdeiro ou
pessoa que adquiriu por usucapião, não poderão alienar o bem sem antes
providenciarem na matrícula a passagem do imóvel para seus respectivos
nomes, sob pena de se infringir o princípio da continuidade. Afinal, só quem é o
proprietário na matrícula pode alienar por ato entre vivos. Mesmo nos casos de
transmissões causa mortis e de aquisições originárias, portanto, o registro é
necessário para a publicidade em relação a terceiros e para a garantia da
disponibilidade pelos titulares.

EMENTA. REGISTRO DE IMÓVEIS - Qualificação de título judicial - Carta


de arrematação - Imóvel arrematado que não pertence mais, em sua totalidade,
ao executado - Parte da área, anteriormente, arrematada e adjudicada, conforme
registros já concretizados - Irrelevância da alegação de que a arrematação
geradora do título ora apresentado foi efetuada antes das demais - Prevalência
dos registros primeiramente realizados - Incidência dos princípios da inscrição,
da prioridade (anterioridade) e da continuidade - Exigência, outrossim, de
apresentação de Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) e de prova de
pagamento do Imposto Territorial Rural (ITR) dos últimos cinco anos - Recusa

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procedente - Recurso não provido (CSMSP - APELAÇÃO CÍVEL: 1.140-6/8, data


do julgamento: 15/09/2009, Relator: Reis Kuntz).

Registro de Imóveis - Dúvida - Escritura de venda e compra lavrada no


ano de 1.986 - Apresentação a registro na vigência da Lei n° 8.212/91 -
Necessidade de apresentação da certidão negativa de débitos junto à Receita
Federal - Inexistência de direito adquirido, em ato complexo não consumado por
inteiro - Aplicação da lei vigente ao tempo do registro - Registro inviável -
Recurso improvido (CSMSP - APELAÇÃO CÍVEL 35.714-0/0, data do
julgamento: 30/12/1996, Relator: Márcio Martins Bonilha).

EMENTA NÃO OFICIAL. Princípio da inscrição. A transmissão do direito


real por ato inter-vivos só se opera mediante o registro do título translativo no
registro de imóveis. A Corregedoria Permanente exerce função correcional da
atividade registral e tem incumbência de fazer cumprir as ordens legais de
indisponibilidade de modo que lhe falece competência para determinar o
levantamento da indisponibilidade decretadas por outros juízos. Apenas quem
determinou a indisponibilidade, na forma da lei, poderá decidir a respeito do seu
levantamento (1ª VRPSP - PROCESSO: 100.09.340826-8, data do julgamento:
13/01/2010, Juiz Gustavo Henrique Bretas Marzagão).

Princípio da Legalidade
Na esfera registraria, o princípio da legalidade assume a função atribuída
ao registrador de exercer o controle de legalidade sobre os títulos que ingressam
para registro na serventia imobiliária. Como destaca Narciso Orlandi Neto,
“estabelece a lei, pois, um filtro de legalidade para os títulos, sujeitando-os, antes
do registro, à qualificação” (ORLANDI NETO, Narciso. Retificação do registro de
imóveis. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999, p. 74).

Segundo Luiz Guilherme Loureiro, “na esfera do direito registral, o


princípio da legalidade pode ser definido como aquele pelo qual se impõe que
os documentos submetidos ao Registro devem reunir os requisitos exigidos
pelas normas legais para que possam aceder à publicidade registral. Destarte,
para que possam ser registrados, os títulos devem ser submetidos a um exame
de qualificação por parte do registrador, que assegure sua validade e perfeição

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(LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. 5ª edição. Rio


de Janeiro: Forense, 2014, p. 307). Embora não esteja previsto expressamente
na Lei n. 6.015/73, decorrem do princípio da legalidade, por exemplo, as
determinações previstas no artigo 189, relacionada à disputa de grau entre
hipotecas; no artigo 190 quanto aos direitos contraditórios; as cautelas quanto
ao instrumento e a forma dos títulos, conforme artigos 193 e 194, assim como
os requisitos do registro, que devem observar outros princípios registrarios como
o da continuidade (artigo 195) e o da especialidade (artigo 196) – op. cit., p. 74,
extraindo-se, nesses últimos casos, também, o princípio da legalidade.

Da mesma forma, os títulos judiciais também devem observar o princípio


da legalidade, o que é feito por meio da qualificação. Todavia, nesse caso, como
destaca Narciso Orlandi Neto “o limite, evidentemente, é a atividade jurisdicional,
porque o registrador não pode qualificar negativamente título judicial por
pretensa ilegalidade de sentença ou de decisão, ou ainda por pretensa
inobservância do processo legal, como, por exemplo, a falta de intimação do
credor hipotecário na arrematação do bem hipotecado, em execução de título de
credor quirografário; a falta de citação do proprietário no usucapião
extraordinário” (ORLANDI NETO, Narciso. Retificação do registro de imóveis.
São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999, p. 76).

Pertinente, novamente, a lição de Luiz Guilherme Loureiro, no sentido de


que “a legalidade em matéria registral aplica-se a todo procedimento registral,
mas tem seu ápice no denominado “exame de qualificação”, no qual o registrador
faz o controle da legalidade do título submetido a registro. No que tange ao
exame do documento, o fundamento do princípio da legalidade se funda na
necessidade de que os assentos registrais concordem com a realidade externa
ao registro, evitando que ingressem documentos carentes de validade ou de
autenticidade. O exame ou análise que o registrador realiza para tornar efetivo o
princípio da legalidade é denominado “qualificação” e a função do registrador
que examina o documento apresentado a registro é chamada de função
qualificadora” (LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática.
5ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 307-308).

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Princípio da prioridade
O princípio da prioridade tem a principal finalidade de evitar conflitos de
títulos contraditórios, que são aqueles incompatíveis entre si ou reciprocamente
excludentes, referentes ao mesmo imóvel. A prioridade se apura no protocolo do
Registro de Imóveis, de acordo com a ordem de seu ingresso. A Lei de Registros
Públicos disciplina a matéria e estabelece regras que devem ser observadas
pelos Oficiais. De acordo com a lição de Afrânio de Carvalho - “O princípio da
prioridade significa que, num concurso de direitos reais sobre um imóvel, estes
não ocupam todos o mesmo posto, mas se graduam ou classificam por uma
relação de precedência fundada na ordem cronológica do seu aparecimento:
prior tempore potior jure. Conforme o tempo em que surgirem, os direitos tomam
posição no registro, prevalecendo os anteriormente estabelecidos sobre os que
vierem depois.” (4ª ed., Editora Forense, 1998, p.181).

Os artigos 182, 183 e 174 da Lei de Registros Públicos dispõem,


respectivamente, que “Todos os títulos tomarão, no Protocolo, o número de
ordem que lhes competir em razão da sequência rigorosa de sua apresentação”,
que “Reproduzirse-á, em cada título, o número de ordem respectivo e a data de
sua prenotação”, e que “O Livro n. 1 – Protocolo – servirá para apontamento de
todos os títulos apresentados diariamente, ressalvado o disposto no parágrafo
único do art. 12 desta Lei.”. Os artigos 11 e 12 dispõem, respectivamente, que
“Os oficiais adotarão o melhor regime interno de modo a assegurar às partes a
ordem de precedência na apresentação de seus títulos, estabelecendo-se,
sempre, o número da ordem geral” e que “Nenhuma exigência fiscal, ou dúvida,
obstará a apresentação de um título e o seu lançamento do Protocolo com o
respectivo número de ordem, nos casos em que da precedência decorra
prioridade de direitos para o apresentante”.

Extrai-se da leitura e interpretação destes dispositivos legais a regra de


que todos os títulos apresentados são obrigatoriamente lançados no Livro de
Protocolo e que a ordem de apresentação mediante atribuição de um número
deve ser rigorosamente respeitada. A finalidade é de dar publicidade à situação
jurídica que possibilita a atribuição dos efeitos que o ordenamento jurídico lhes
concede e que gera direitos que terão repercussões na transmissão ou na

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7
1

oneração dos imóveis. Afrânio de Carvalho, na mesma obra citada, diz que “A
sua caracterização é originariamente registral, pois se funda na ordem
cronológica de apresentação e prenotação dos títulos no protocolo, sendo
irrelevante a ordem cronológica de sua feitura ou instrumentalização, vale dizer,
a seqüência da data dos títulos. A ordem de apresentação , comprovada pela
numeração sucessiva do protocolo, firma, pois, a posição registral do título
relativamente a qualquer outro que já esteja ou venha a apresentar-se no
registro. Se essa posição lhe assegurar prioridade, correlatamente lhe
assegurará a inscrição, contanto que o resultado final do exame da legalidade
lhe seja favorável.” (p.182 e 183).

Assim, de acordo com os exemplos mencionados na mesma obra citada


de Afrânio de Carvalho, se um imóvel é vendido pelo proprietário, primeiro para
“A” e posteriormente para “B”, porém, este se adianta e apresenta o seu título
para registro antes do primeiro, é ele, “B”, que terá prioridade, caso a escritura
apresentada esteja apta para ingressar no registro, ainda que lavrada em data
posterior à escritura de venda à “A”, e se tornará proprietário. Na hipótese de o
vendedor ter, ainda que depois de vendido o imóvel, instituído servidão de
passagem em favor do vizinho ou constituído hipoteca, caso o vizinho ou o
credor hipotecário apresente o título antes da apresentação da escritura de
compra e venda, a transmissão da titularidade do domínio ocorrerá com a
oneração da servidão ou gravado pela hipoteca.

Em suma, a prioridade favorece aquele que apresenta primeiro o título


para registro, e não a preeminência do direito. A prenotação do título é o ato que
garante prioridade desses direitos, razão pela qual não pode em hipótese alguma
o Oficial recusar o lançamento no protocolo no momento da apresentação, salvo
na hipótese excepcional prevista no parágrafo único do artigo 12, pelo qual
“Independem de apontamento no Protocolo os títulos apresentados apenas para
exame e cálculo dos respectivos emolumentos.”. Somente neste caso e desde
que haja expresso requerimento do interessado de que seja feito apenas o
exame e cálculo dos emolumentos, não deve ser feita a prenotação do título, por
inexistir nesta hipótese interesse em relação à precedência do registro.

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7
2

O interessado tem o direito de receber e o Oficial de entregar, no momento


da apresentação de um título para registro, documento comprobatório deste ato,
com os dados pertinentes, notadamente a data e o número da prenotação. Todos
os títulos ingressados no Serviço de Registro de Imóveis, quer para fins de
prenotação quer para fins exclusivos de exame e cálculo dos emolumentos,
devem ser examinados de acordo com a precedência, em observância ao
princípio da igualdade dos usuários perante o serviço público. O Livro de
Recepção de Títulos foi instituído pela Corregedoria Geral da Justiça com a
finalidade de assegurar o efetivo controle dos títulos e do prazo legal.

O artigo 188 da Lei de Registros Públicos estabelece que protocolizado o


título, este deve ser registrado no prazo de trinta dias, salvo nos casos previstos
nos artigos seguintes. A prioridade persiste pelo prazo de trinta dias contados do
lançamento no protocolo, conforme previsto no artigo 205 da Lei de Registros
Públicos - “Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos
trinta dias do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por
omissão do interessado em atender às exigências legais.” Este dispositivo
compreende também os atos de averbação.

Os artigos 189, 190 e 191, que também tratam da prioridade, assim


dispõem:

“Art.189. Apresentado título de segunda hipoteca, com referência


expressa à existência de outra anterior, o oficial, depois de prenotá-lo, aguardará
durante 30 (trinta) dias que os interessados na primeira promovam a inscrição.
Esgotado esse prazo, que correrá da data da prenotação, sem que seja
apresentado o título anterior, o segundo será inscrito e obterá preferência sobre
aquele.”

“Art.190. Não serão registrados, no mesmo dia, títulos pelos quais se


constituam direitos reais contraditórios sobre o mesmo imóvel.”

“Art.191. Prevalecerão, para efeito de prioridade de registro, quando


apresentados no mesmo dia, os títulos prenotados no Protocolo sob número de
ordem mais baixo, protelando-se o registro dos apresentados posteriormente,
pelo prazo correspondente a, pelo menos, um dia útil.”

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3

A prenotação subsiste também, na hipótese de suscitação de dúvida,


prevista no artigo 198 da Lei de Registros Públicos, pois, se julgada
improcedente, a prioridade fará com que os efeitos da prenotação retroajam à
data da protocolização do título. Na hipótese de ser julgada procedente, a
prenotação será cancelada (artigo 203 da Lei de Registros Públicos). Subsiste,
ainda, a prenotação, na hipótese do artigo 260 desta mesma Lei, referente ao
bem de família, nos casos de loteamento e desmembramento (Lei nº 6.766/79),
de procedimento de retificação administrativa bilateral prevista no inciso II do
artigo 213 da Lei de Registros Públicos, e de regularização fundiária e de registro
de títulos dela decorrentes, em razão da publicação de edital e prazo para
impugnação.

O NOVO PAPEL DOS BENS IMÓVEIS NUMA PERSPECTIVA


CIVIL-CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE HUMANA
Diante da fixação do novo valor-princípio máximo do ordenamento jurídico
como sendo o da dignidade da pessoa humana, que hodiernamente define o
norte do direito civil, cumpre indagar qual o papel dos bens,16 em especial dos
imóveis, diante de tal realidade. Teria o direito real de propriedade imobiliária
sucumbido diante da supremacia da pessoa, como novo valor central do
ordenamento? Na medida em que o direito civil migrou seu escopo central do
patrimônio para a pessoa, teria a propriedade imobiliária perdido a importância
que conservou durante muito tempo, a ponto de eventualmente transformar-se
em um direito menor, facilmente superável por outros interesses jurídicos? A
resposta não é simples, todavia, perece que o direito de propriedade adquiriu
relevância ainda maior diante da personalização17 do direito privado, embora
tenha sido relativizado, não mais conservando o caráter absoluto de outrora.

Em primeiro lugar, ao eleger a dignidade da pessoa como princípio


máximo, o ordenamento civil não excluiu os demais direitos ou institutos,
provenientes dos valores sociais juridicizados. Tratou sim, de firmar a norma de
que o direito existe pelo e para os homens, de modo que os institutos jurídicos
devem servir ao desenvolvimento do crescimento, do preenchimento das
necessidades mínimas bem como do desenvolvimento da personalidade

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humana. Todavia, longe de tirar a importância de direitos como o de propriedade,


atribuiu-lhe importância maior, porque lhe incumbiu o ônus de servir ao ser
humano, ao seu desenvolvimento e, portanto, assume tal direito um papel muito
mais relevante do que o papel de outrora, do direito como um fim em si mesmo,
que muitas vezes o tornava despido de significado maior, e facilmente atropelado
por interesses diversos.

Como bem notou Ricardo Luiz Lorensetti, a “idéia do homem como centro
do ordenamento, afirmada de forma absoluta, não é um princípio incontestado.
O homem não pode ser o único e excludente ponto de referência da lei, já que
isso poderia conduzir a um individualismo exacerbado ou a uma
desconsideração prejudicial de outros bens”.18 Em outras palavras, absolutizar
o princípio da dignidade da pessoa humana, desconsiderando os demais
direitos, como o da propriedade, teria a nefasta conseqüência de retorno ao
individualismo e abandono do bem estar coletivo, passando-se, eventualmente,
do individualismo que privilegia o economicamente mais forte, vigente no
liberalismo, para um individualismo que privilegie o economicamente mais fraco.
O ser humano, como ente social, não existe sem os bens.19 A apropriação dos
bens da vida é necessária ao desenvolvimento e ao crescimento do ser humano
e, nesse sentido, desde que o homem é homem tem a idéia de apreensão dos
bens físicos, por mais rústica que fosse.20 A humanidade seguramente não teria
atingido o ponto de evolução que atingiu não fosse a idéia de propriedade.21 O
nível de organização social, o nível de evolução tecnológica, o nível cultural,
dentre outros, têm íntima ligação com o direito de propriedade. Até mesmo a
fixação das relações familiares tem vínculo estreito com o direito de propriedade,
uma vez que a formação da família se dá em torno de um lugar seu, cujo
ancoradouro baseia-se em um direito real imobiliário. Onde o direito de
propriedade é fraco (uma vez que a inexistência de tal conceito não nos parece
possível), por não receber a devida tutela estatal ou por estar fora da formalidade
imposta pelo Estado, fracas são as relações familiares.

O homem precisa de uma enorme gama de bens para sobreviver e evoluir,


e, ainda assim, vive com a sensação da incompletude, do querer mais.
Importante a lição de Justino Adriano F. Da Silva de que tendo passado o homem

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ao status social, houve o encobrimento da condição de homem para transformar-


se em pessoa. “Não mais vive, mas convive. É um estar-com-o-outro que se
caracteriza pela colaboração, pela solidariedade, pela amizade, pelo auxílio
mútuo, mas também pela animosidade, pela indiferença, pela disputa e até pela
guerra. Daí a necessidade de ter de dispor das coisas para a construção de seu
novo habitat”.

Não é possível cogitar a existência humana sem a noção de apropriação


dos bens da vida,23 uma vez que, tais bens existem e estão à disposição na
natureza, e o homem deles se apropriará para realizar seus intentos. Mesmo que
se imagine o homem prisco, nômade, que não tinha vínculo de apropriação com
o solo, com certeza o tinha em relação a certos bens móveis; a caça com a qual
se alimentava certamente seria defendida por “ser sua”; da mesma forma as
peles de animais com que se protegia das intempéries. Note-se que até mesmo
os animais irracionais têm um senso de apropriação dos bens da vida que lhe
sejam necessários; assim, demarcam “seu território” via de regra através de
feromônios, cuidam com seus meios de defesa do “seu” alimento, etc. Desta
forma, a noção de apropriação dos bens do mundo sempre existiu, e a vida social
é impensada sem a sua regulamentação adequada, e, portanto, nada resta ao
direito senão reconhecer tal situação como um direito existente e necessário à
própria existência social humana. A eventual idéia de afastar o reconhecimento
e a tutela ao direito de propriedade sob o frágil pretexto da personalização das
relações jurídicas, significaria tão-somente o retorno às regras da força, tal qual
na apreensão dos bens nos primórdios da humanidade, uma vez que, como se
disse, a apreensão dos bens da vida, tutelada, ou não, pelo direito, é inata ao
ser humano. E, note-se, que os bens disponíveis na natureza não apenas
existem e são disponibilizados pelo homem para realizar seus desideratos, mas
existem em quantidade insuficiente à apreensão por todos os homens.

São Tomás de Aquino já observara que a apreensão sobre os bens


exteriores é inata ao ser humano:

“Para Tomás de Aquino, ‘a posse das coisas exteriores é natural ao


homem.’ [...]

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“Dotado de razão e de vontade livre,” o homem “servese, licitamente, de


todos os demais seres inferiores, para a consecução do seu destino
natural. [...]

Nesse quadro, dizer que o homem pode dispor naturalmente dos bens e
dos seres exteriores representa poder dispor deles segundo a finalidade,
sine poenitentia. Sem nenhum arrependimento ou constrangimento.
Essa é a ordem, essa, a harmonia, essa, a finalidade estabelecida desde
sempre. [...]

“Nessa tarefa de repartição dos bens exteriores, sem ferir o direito


natural, cabe importante tarefa ao Estado: não pode ficar indiferente
diante desse problema e desafio. [...]

“La propiedad privada es necesaria como institución social”.25

A utópica supressão, ou mesmo o desrespeito aos institutos patrimoniais


de direito privado seria contrária ao princípio da dignidade da pessoa humana,
por causar mazelas econômicas e sociais incomensuráveis, ao contrário do que
possa parecer num primeiro momento, embora a alteração de tais institutos a fim
de adequá-los aos novos valores do ordenamento, seja algo juridicamente
natural.26 O desrespeito aos institutos patrimoniais concebidos no ordenamento
jurídico traria insegurança jurídica em nível intolerável, e com ela intranqüilidade
e conflito social,27 além de minar a produção e circulação de riquezas, vital para
o sustento do desenvolvimento econômico de um Estado capitalista, haja vista
que o próprio trabalho humano ancora-se na idéia de propriedade. Tudo isto teria
a inegável conseqüência de afastar o direito da concreção do princípio da
dignidade humana, o qual, seguramente, para ser implementado, necessita de
segurança jurídica, de paz social que permita o convívio pacífico dos homens, e
de desenvolvimento econômico, que permita um patrimônio material mínimo às
pessoas, garantindo-lhes bem-estar material.

Assim, diante da dignidade da pessoa, deve o direito reconhecer a


importância que tem o direito de propriedade para o ser humano, para o seu
desenvolvimento. A pessoa que tem seu direito de propriedade protegido
devidamente pelo Estado, tem a possibilidade de trabalhar, produzir riquezas,
ter relações sadias em sociedade e em família. O abandono ou a proteção
inadequada a tal direito seria antieconômica e anti-social. Tome-se,

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7
7

exemplificativamente, o desenvolvimento cultural do ser humano, o qual não


seria possível, nos moldes que conhecemos, sem a adequada tutela à
propriedade, eis que, como facilmente percebe-se, a casa, a escola, a
universidade, e a biblioteca, estão ancoradas sobre um direito de propriedade. E
nem se alegue que eventual regime comunista romperia tal regra, pois, ali
também o direito de propriedade estará dando idêntico suporte, através de
direitos criados a partir da propriedade estatal, ou outra forma de propriedade,
por assim dizer, coletiva.

É certo, porém, que o novo direito de propriedade,28 diante da


despatrimonialização do direito civil, não é mais o direito absoluto que já foi no
período liberal, em que imperava o individualismo. É sim, hoje, um direito relativo,
onde o proprietário não é mais o senhor absoluto do seu direito, não pode mais
tudo, tendo-selhe imposto uma série de limitações ou de obrigações em prol do
interesse coletivo. A dignidade humana impõe ao proprietário que exerça seu
direito de acordo com os fins que o objeto do seu direito deve ter dentro dos
valores eleitos pela sociedade; o homem é um ser social, e, portanto, o exercício
de seus direitos deve se dar de maneira que gere o bem social, e não de forma
a agredir o interesse coletivo. Nessa esteira, surgem direitos difusos que devem
ser respeitados pelo proprietário de bem imóvel, porque superiores ao seu direito
relativo, como, verbi gratia, a conservação do meio ambiente, o respeito às
regras de desenvolvimento urbanístico, o respeito à função social da
propriedade,29 etc.

Diante da dignidade humana fala-se em conteúdo patrimonial mínimo,30


que contempla o conjunto mínimo de direitos sem os quais não é possível o
desenvolvimento digno do ser humano, e que por isso mesmo devem ser
garantidos pelo Estado, tais como a liberdade, trabalho, moradia, educação,
saúde, etc. Tal conteúdo patrimonial mínimo há de contemplar o direito de
propriedade, ou aos menos algum direito a ele conectado; a propriedade sobre
bens mínimos, ou primários, para garantir a subsistência deve ser garantida à
pessoa pelo Estado; o direito à moradia tem total conexão com a facilitação da
aquisição do direito de propriedade imóvel ou de um direito sobre a propriedade
imóvel de outrem, como na locação, por exemplo. A relativização do direito de

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propriedade diante da sua superação pelos valores que regem a dignidade


humana não pode levar à conclusão de que a propriedade perdeu importância e
que o Estado não mais deve protege-la, ou que deve protege-la com menos
empenho. Diante dessa relativização do direito de propriedade, que passa a se
preocupar com o bem estar social, não pode o Estado descuidar-se da
segurança jurídica oferecida pela adequada tutela de tal direito ao seu titular,
porquanto, se bem desempenhado o exercício do direito, a tranqüilidade
permitida pela segurança jurídica que o Estado deve garantir á necessária ao
desenvolvimento do princípio da dignidade da pessoa humana. Não é possível
o desenvolvimento da vida humana de forma adequada sem a proteção estatal
adequada ao direito de propriedade. É claro que há, ainda em obediência à
dignidade humana, a necessidade de haver uma distribuição correta do direito
de propriedade, de haver a garantia de acesso à propriedade de um mínimo de
bens por todas as pessoas, bem como haver o exercício adequado de tal direito
pelo seu titular, o que não justifica eventual não-proteção ao direito de
propriedade, já que tais abusos encontram solução dentro do próprio sistema
jurídico, mediante a atuação estatal, em prol do bem estar social.31

Entretanto, reitere-se, essa nova visão jurídica do direito de propriedade,


não como um fim em si mesmo, mas como um meio de alcance da plena
dignidade humana, torna tal direito muito mais relevante, porquanto se passa a
tratar não mais da propriedade no sentido do bem objeto do direito, mas sim, da
propriedade como um direito que tutela uma situação inata ao ser humano, e que
lhe é essencial e indissociável, e, por isso mesmo, ao tratar da propriedade, não
se está mais tratando de um direito abstrato, que tem um titular igualmente
abstrato, mas se está tratando do próprio ser humano, e dos meios de obter seu
desenvolvimento integral. Por fim, é de notar-se que o próprio direito de
propriedade é uma das formas de concretização da dignidade da pessoa
humana,32 com previsão no caput do artigo 5º da Constituição Federal, no
sentido de garantia das condições materiais mínimas de vida, bem como do
direito de propriedade em geral, quando não confrontar com situações não-
proprietárias de interesse coletivo.

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A função econômica e social do Registro de Imóveis diante do


princípio constitucional da dignidade da pessoa humana

O princípio da dignidade da pessoa humana conferiu nova formatação ao


direito de propriedade, como vimos. Entretanto, isto não significa alijar o direito
de propriedade do ordenamento jurídico, o qual deve continuar recebendo ampla
tutela estatal, uma vez tratar-se de direito inato ao ser humano, ao qual resta ao
direito apenas reconhecer, sob pena de desordem social e econômica. Desta
forma, se temos no direito de propriedade um direito fundamental do ser humano,
que é um dos meios de consecução da dignidade humana e, portanto, que passa
a ter uma importância maior do que tinha no período liberal, quando configurava
um direito em si; se tal direito recebe por isso, hodiernamente, contornos sociais
relevantes, no sentido de não poder ofender direitos não-proprietários, mister
que se analise, dentro desse novo panorama, qual o papel do Registro de
Imóveis, já que sua matriz está justamente na propriedade imobiliária. Terá o
Registro Imobiliário perdido importância diante da relativização do direito de
propriedade? Ou, ao contrário, justamente em virtude da relativização do direito
de propriedade, que lhe agregou importância porquanto passou este a ser um
meio de desenvolvimento da dignidade humana, teremos um incremento da
importância do Registro de Imóveis, que passa a ser um dos mais importantes
instrumentos estatais para a consecução do fornecimento de segurança jurídica
ao titular do direito de propriedade, que deve ser garantido, e para a consecução
da proteção dos direitos não proprietários, que terão na publicidade registral um
fundamental ponto de apoio, sendo assim importante agente fomentador da
dignidade humana? Parece estar nesta segunda oração a correção do
entendimento.

Efetivamente, tem o Registro de Imóveis, na conjuntura atual, um papel


muito mais importante do que jamais teve a desempenhar, sendo a publicidade
registral não mais somente instrumento de proteção do direito de propriedade, a
conferir segurança e tranqüilidade ao seu titular, mas um importantíssimo fator
de consecução de paz social e de desenvolvimento econômico, cuja publicidade
passa também a cumprir o nobre mister de proteção aos direitos não-

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0

proprietários, estando o Registro de Imóveis a serviço da materialização da


função social da propriedade. O registro de imóveis passa a ser uma importante
mão do Estado na busca da dignidade humana, através da função econômica e
social da propriedade. No mundo atual, especialmente após a Guerra Fria, o
sistema econômico capitalista impera quase que unanimemente, com um maior
ou menor liberalismo mercadológico. Diante dessa realidade, fácil inferir a
importância que a análise econômica das instituições tem tomado, máxime
diante do fenômeno das relações globalizadas, onde o fenômeno econômico não
se localiza mais isolado dentro das fronteiras de um Estado. Nas ciências
jurídicas, não é diferente a importância que tem se dado à análise econômica
dos institutos jurídicos; as relações entre direito e economia tem se estreitado de
maneira importante, a ponto de criar um fenômeno jurídico de análise econômica
do direito.

Nesse sentido, identificou António Menezes Cordeiro a análise econômica


do direito como sendo o último acontecimento metodológico do Século XX,
originado do pensamento materialista norte-americano, e que tem como
premissa a assertiva de que a conduta humana é essencialmente informada por
postulados de ordem econômica, o que traduz um vínculo muito próximo com o
direito de propriedade, em especial.33 A análise econômica do direito tem a
função de averiguar qual a implicação econômica dos institutos jurídicos; como
a definição dos institutos jurídicos afeta os agentes econômicos. Se por um lado,
o fenômeno de análise econômica do direito não deve ser rechaçado de plano,
como pretendem alguns sob a alegação de que a interpretação econômica do
direito tem o efeito de afastar a tutela social alcançada ao longo da evolução
jurídica, a qual não se coaduna com a liberdade da economia de mercado,34 por
outro lado, é preciso ter ciência de que a evolução jurídica fez germinar valores
sociais que nem sempre estão de acordo com os postulados econômicos; por
vezes são até mesmo absolutamente antagônicos, como a intervenção estatal
em prol do interesse coletivo em institutos vitais para a economia, como a
propriedade e o contrato.35 Em verdade, a regra geral é a de que o direito
influencia e é influenciado pela economia.36 De qualquer forma, a análise
econômica do direito assume uma relevância substancial, pois, se é verdade que

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8
1

o homem é um ser social (mais por necessidade do que propriamente por


natureza), é igualmente verdade que o homem é um ser econômico.

Tenha-se em mente, entretanto, que a interpretação econômica do direito


não pode ter o condão de afastar as conquistas jurídico-socias alcançadas ao
longo da evolução humana. O direito deve, sem sombra de dúvidas, estar atento
aos efeitos econômicos de seus institutos, uma vez que disto depende em
grande parte o desenvolvimento da sociedade. Porém, se a interpretação
econômica significar, em algum momento, a exacerbação do individualismo que
por vezes aflora do viés econômico, deve o Direito sobrepor-se em nome dos
valores sociais que representa. O direito de propriedade tem, inegavelmente,
uma importante função econômica. Aliás, é o direito de propriedade a própria
base sobre a qual é erigida a economia de mercado. É em razão do direito de
propriedade que existe o trabalho (ao menos o trabalho não-coercitivo). É o
direito de propriedade que permite a geração e a circulação de riquezas
fundamentais ao desenvolvimento humano. As obras que facilitam a vida
humana, as pesquisas que buscam melhorar a existência humana, inclusive
descobrindo a cura de patologias que até pouco dizimavam milhares em surtos
incontroláveis, o desenvolvimento do homem enquanto ser, protegendo-se do
mau humor da natureza em relação ao clima, por exemplo, alimentando-se,
aculturando-se, tudo isso, depende fundamentalmente da propriedade enquanto
conceito econômico e, o direito não pode fechar os olhos a essa realidade. Nesse
ponto, o conceito econômico de propriedade aproxima-se da dignidade humana,
eis que, sem ela, o desenvolvimento humano não seria o mesmo.

Note-se, entretanto, que a função econômica do direito de propriedade


deve andar de mãos dadas com o valor máximo do princípio constitucional da
dignidade da pessoa humana, não podendo este ser ferido por aquela, mas, ao
contrário, deve aquela ser interpretada e exercida em conformidade com os
ditames da dignidade humana. A ordem econômica, como um todo, é norteada
por vários princípios constitucionais, dentre eles, em especial, o da dignidade da
pessoa humana, que coloca, como vimos, o homem no centro axiológico do
ordenamento jurídico.37 O conceito econômico de propriedade, liberal por
natureza, permite normalmente a acumulação de riquezas, o que em princípio

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2

pode parecer contrário ao interesse social definido pelo Direito, mas, que é com
ele perfeitamente concatenável, pois, como bem observou Darcy Bessone, no
interesse do progresso a concentração de riquezas “é imprescindível, como
forma de poupança que se converte em estoque de capital. Qualquer
empreendimento, principalmente os de maior vulto, somente é factível sob o
pressuposto da existência da quantidade de capital bastante para a sua
implementação. Sem o suficiente estoque de dinheiro não se pode projetar um
empreendimento, menos ainda o cronograma dos desembolsos necessários. A
União Soviética teve de admitir o capitalismo de Estado para que pudesse
realizar suas obras”.

Tem, enfim, a propriedade, uma importante função econômica a cumprir


na medida em que quando se atribui a alguém certo bem, e se lhe atribui o direito
de usar e gozar desse bem, sendo tal interesse tutelado e fomentado pelo direito,
o titular procura conservar o bem. “As vacas teriam desaparecido se não
tivessem sido consideradas objeto de propriedade”.39 Diante da função
econômica a ser exercida pelo direito de propriedade, tem-se que um direito de
propriedade bem definido e seguro, gerará em si a alocação de recursos,
gerando bem estar social. Esta assertiva formulada por Bernardo Mueller, dita
de outro modo, quer significar que o direito de propriedade bem definido e
tutelado atrairá recursos, e naturalmente cumprirá sua função social.40 Caso
este cumprimento natural da função social da propriedade não ocorra, entrará
em ação o direito, com seus institutos coercitivos. Não há crescimento
econômico sem um direito de propriedade bem definido e protegido. Não só o
ordenamento jurídico deverá definir o direito de propriedade, como deverá
também estabelecer um eficiente sistema de tutela desse direito, e, é nesse
mister que surge a função econômica essencial do registro de imóveis, como o
aparato estatal apto a conferir certeza e segurança ao direito real de propriedade,
e aos demais direitos que dele defluem, possibilitando o desenvolvimento
econômico que, num sistema capitalista, significa bem-estar social, de modo que
o desenvolvimento econômico proporcionado pelo sistema registral terá o
condão de fomentar a dignidade humana, através da colocação em circulação
dos bens mínimos a gerar o bem-estar social.

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O crescimento econômico é gerado basicamente por um sistema


econômico organizado, aliado a um sistema eficaz de garantir a propriedade, de
modo a atrair para esta valores em empreendimentos de atividades socialmente
produtivas. O conteúdo e a proteção dispensada ao direito de propriedade afeta
enormemente os agentes econômicos.

Sem propriedade não há mercado e nem desenvolvimento econômico,


mas, mais do que propriedade, o tráfico jurídico requer uma propriedade segura,
confiável, a qual se possa aceitar como garantia em financiamentos (o que incita
enormemente a circulação de riquezas de uma nação), e na qual se possa
investir e produzir.42 A segurança jurídica acaba por coincidir com a segurança
econômica e, nesse senso, a sua garantia é fundamental para que o direito de
propriedade possa ser o baluarte seguro do desenvolvimento econômico, o qual,
por sua vez, reitere-se, está apoiado no direito de propriedade. Aqui é onde entra
o sistema registral imobiliário, como o mais eficaz instituto de garantia e de
segurança jurídica do direito de propriedade;43 quanto mais eficiente o sistema
registral de um país, maior a possibilidade de circulação de riquezas e de
desenvolvimento econômico, e, portanto, maior a possibilidade de se encontrar
o bem-estar social e a dignidade humana, na parte que toca ao patrimônio
material mínimo. O registro de imóveis, conferindo certeza e segurança ao direito
de propriedade, permite a realização do tráfico imobiliário, reduzindo custos,
especialmente no que toca aos custos de informação. A falta de informação das
transações imobiliárias gera insegurança e incerteza intoleráveis à alocação de
capital, e, assim, um sistema jurídico que não tenha um órgão centralizador das
informações a respeito da propriedade, levará os atores econômicos a buscarem
tais informações por outros meios, a um custo muito mais elevado, a ponto de
poder inviabilizar a negociação, e com uma segurança muito discutível. O
sistema registral logra, através dos princípios que o regem, prestar informações
seguras e eficientes, reduzindo significativamente os custos transacionais.44

Essa é, conforme alerta Fernando P. Méndez González, a função


essencial dos registros imobiliários: aumentar a segurança jurídica no âmbito
imobiliário, reduzindo os custos de informação.45 Tal intento será tão mais
alcançado quanto mais desenvolvido e eficiente for o sistema registral

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4

adotado.46 E quando mais profícua e eficiente a atuação registral, maior o


crescimento econômico alcançado, e maior a parcela de dignidade humana
posta à sociedade pelo Registro de imóveis. Onde não há um sistema de registro
de imóveis garantindo a segurança jurídica dos direitos inscritos e facilitando as
informações negociais, a obtenção de tais informações será tarefa árdua e cara,
além de insegura, e que, por isso, precisará sempre ser complementada por
outros meios de garantia, já não mais sobre o direito existente, mas sobre o valor
deste direito, como o seguro, por exemplo.

A incerteza e insegurança sobre o direito de propriedade, ou impedirá os


negócios imobiliários de garantia, ou, não impedindo, submeterá o proprietário à
cobrança de juros exorbitantes por parte do credor, em virtude do risco
assumido.47 Quanto maior a insegurança incidente sobre o direito de
propriedade posto à disposição do credor para garantir algum empréstimo, maior
a taxa de juros a ser cobrada porquanto maior o risco que o credor correrá em
ter o bem emprestado de volta.48 A insegurança sobre o direito de propriedade,
causada pela inexistência de um sistema registral, ou pela existência de um
sistema registral capenga, aumenta o custo social e afasta a concreção da
dignidade humana, uma vez que torna mais difícil, mais caro, o acesso ao crédito
e aos bens.

Outra importante contribuição do sistema registral ao desenvolvimento


econômico, ainda na questão de diminuir os custos transacionais, é a de que na
inscrição dos direitos há um mister registral de depuração legal, através da
qualificação dos títulos, o que torna o direito inscrito crível do ponto de vista
jurídico, e portanto confiável, do ponto de vista negocial. A qualificação registral
confere segurança jurídica a priori, isto é, antes de surgir o conflito de interesses,
acautelando os direitos reais imobiliários, tornando-os certos e aptos ao tráfego
jurídico e econômico. Todavia, nesse mister de depuração legal, é preciso ter em
conta que o excesso de rigorismo pode ser contrário à própria razão da
existência do registro de imóveis. Assim, o afastamento da inscrição de um
direito por aspectos que lhe sejam alheios e menores do ponto de vista jurídico,
poderá ter o condão de gerar insegurança jurídica e econômica, em verdadeira
oposição aos motivos que informam a existência do sistema registral. Os

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5

principais motivos, que por vezes acarretam um excessivo rigor registral, e que
precisam ser manejados com cautela, procurando-se adequá-los ao necessário
à realidade do país, são a legislação, muitas vezes em descompasso com a
realidade social, e a crescente atuação do Oficial de Registro como guardião de
uma série de interesses fiscais, urbanísticos e administrativos.49 É preciso ter
em mente os fundamentos basilares da instituição registral, para bem manejar
(seja o legislador, seja o registrador) os interesses que são postos sob a batuta
do oficial de registro, evitandose o rigorismo inútil e exagerado, que poderá
conduzir o registro de imóveis ao distanciamento da sua função econômica e
social, e, portanto, afastando-o igualmente da concreção do princípio
constitucional da dignidade humana. Tome-se, nesse ponto,
exemplificativamente, o caso brasileiro do registro da penhora. A penhora sobre
bem imóvel, constituída judicialmente, em processo de execução, precisa ser
levada ao Registro Imobiliário para que possa ser oponível a terceiros, com
presunção iure et de iure de conhecimento. Todavia, em muitos casos, tem-se
negado o registro de tal penhora por problemas registrais menores, e que em
absoluto colocariam em perigo a higidez do sistema, como no caso, por exemplo,
da falta de um dos elementos de qualificação das partes, elencados na Lei de
Registros Públicos, mas que em nada afetam a certeza da identificação da parte,
ou ainda a desconformidade de algum elemento da descrição do imóvel, em
cotejo com a descrição tabular, mas que igualmente em nada interfere na
identificação do imóvel. Este proceder, ancorado em uma interpretação literal da
legislação registral, coloca em cheque os próprios valores que animam o registro,
pois, uma vez que a penhora está perfectibilizada no processo (e é lá que ela é
constituída), e uma vez que o registro tem, neste caso, apenas eficácia
declarativa, não registrar, por um excessivo rigor, tal qual nos parece que ocorre
nos exemplos acima apresentados, significa gerar insegurança e incerteza
jurídica, econômica e social, porquanto a penhora continuará existindo, sem
publicidade contudo. Há, aqui, um procedimento desconforme com os preceitos
constitucionais, na medida que a atividade registral se afasta do princípio
máximo da dignidade da pessoa humana, em seu aspecto patrimonial, ao gerar
insegurança e incerteza nas relações patrimoniais. Na análise do registro da
penhora, deve haver uma mitigação compatível com a situação jurídica com a

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qual se está defrontando, devendo ser negado o registro somente em casos de


absoluta impossibilidade de ingresso do título judicial na tabula registral por ferir
de morte algum princípio que move o sistema, como, verbi gratia, numa situação
de impossibilidade de se identificar com segurança o imóvel sobre o qual recai a
constrição judicial. É claro que a superação da estrita interpretação dos
requisitos legais do registro, em prol do atendimento dos princípios que norteiam
a própria existência do sistema registral, com o da segurança jurídica e da função
econômica e social, encontram limites neles próprios, ou seja, não se pode
embrenhar uma interpretação tão liberal a ponto de tornar insegura a inscrição.
Note-se que, no caso exemplificado, a dignidade patrimonial do devedor,
amparada por um sistema de impenhorabilidades, já foi analisada pelo
magistrado que preside o feito, e, o não registro da penhora por excessivo rigor,
contraria a dignidade patrimonial do credor, que pode ver frustrado seu direito.

O sistema registral imobiliário tem, ao lado das já apontadas, uma missão


econômica, à qual se mescla uma conotação social, muito grande,
especialmente nos países em desenvolvimento, onde há uma grande massa de
pessoas cujos imóveis estão à margem da formalidade. Salta, literalmente, aos
olhos a informalidade urbanística que há nas cidades (especialmente nas
grandes) desses países; inúmeras pessoas têm uma propriedade podre, fora do
sistema legal, sem titulação adequada e sem ingresso no sistema registral, o que
significa um abalo bastante significativo na economia de tais países porque tal
propriedade não pode gerar riquezas, não pode “fazer dinheiro”, porquanto não
pode servir de garantia formal. Desta forma, essas pessoas não poderão usar
seu bem para conseguir financiamento para a aquisição de bens de consumo,
ou mesmo de serviços (no caso de reforma do próprio imóvel, por exemplo),
fazendo com que a economia perca uma parcela importante de riquezas que
poderia circular e gerar mais riquezas, melhorando o bem-estar social e, por
conseqüência, indo ao encontro da dignidade humana. O ingresso do direito
dessas pessoas no registro imobiliário é fundamental ao desenvolvimento
econômico de tais países. Ao lado, certamente, de uma política urbanística
adequada, deve haver uma resposta registral adequada, sendo vital, social e

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economicamente, a integração de todos no sistema formal e seguro de


propriedade.

Hernando de Soto, ao tratar desse problema, vislumbrou nessas


propriedades marginais não propriamente um problema, mas uma solução para
os países em desenvolvimento. Identificando o grande problema dos países
pobres como sendo a falta de capital que permita a seus cidadãos a integração
adequada ao sistema capitalista, conclui aludido autor que em verdade o capital
existe, mas não pode ser utilizado. As milhares de habitações ilegais que
germinam nesses países constituem um fantástico capital, estimulado pelo autor
em aproximadamente 9,3 bilhões de dólares, ou seja, dinheiro suficiente para
alavancar a economia dos países pobres, e integrar suas populações ao sistema
econômico capitalista. O problema, segundo De Soto, é que tal capital é um
capital morto, porquanto não pode ser utilizado, uma vez que está
consubstanciado em bens imóveis que estão fora do sistema formal de
propriedade e, portanto, não sendo direito de propriedade seguro e jurídico, não
pode ser utilizado economicamente; no máximo, há o estabelecimento de um
mercado paralelo, um mercado de pulgas, onde tais direitos carecem de valor
real em face de sua precariedade formal. Os pobres têm coisa, porém não
contam com os meios de representar sua propriedade e gerar capital.50 Têm
coisa, porém não podem “tirar uma mais-valia da sua propriedade e contribuir
com a circulação de riquezas”.51

Não basta assim, reconhecer o direito de propriedade e segura-lo


juridicamente através de um sistema registral adequado. É necessário integrar a
este sistema registral o número máximo possível de propriedades; é preciso que
as pessoas não tenham suas propriedades à margem do sistema registral formal,
mas, que sejam a ele integradas, sem o que o desenvolvimento econômico, e,
portanto, social também, restarão severamente prejudicados. Mister se faz que
a legislação urbanística, fundiária, e registral, estejam sintonizadas com a
realidade social do país, e possam integrar ao istema formal de propriedade o
número máximo possível de propriedades; não se trata de atropelar o interesse
social urbanístico ou ambiental, por exemplo, mas de estabelecer legislação que
conceba a convivência harmônica do direito de propriedade com estes

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interesses, sem distanciar-se da realidade social, que é viva, e visível, e que


muitas vezes está longe da situação idealizada pelo legislador, a qual empurra
milhares de pessoas para a informalidade, minando o desenvolvimento
econômico e social, ao invés de tutela-los.52 O interesse urbanístico deve ser
tutelado preferencialmente de modo preventivo, olhando-se de modo diverso
para as situações consolidadas. O registro de imóveis, tem, aqui, um papel
fundamental, de integração dessas pessoas no sistema formal de propriedade,
através de uma legislação adequada, prestando informações necessária à boa
análise nesse processo de integração, bem como na posterior geração de capital
por esses novos proprietários, através da informação concentrada, confiável e
segura, que viabiliza a redução dos custos transacionais e o aumento do valor
do bem.

A informação segura disponibilizada pelo Registro de Imóveis passa,


necessariamente, por uma uniformização registral. Quanto mais uniformizado o
entendimento e o procedimento entre os vários registros de imóveis existentes,
maior a segurança jurídica e maior a confiabilidade do sistema, porquanto maior
a certeza daquilo que é registrável e daquilo que não o é, bem como, maior a
certeza em relação aos requisitos registrais. Quanto maior a certeza em relação
ao que é registrável e quais seus requisitos, mais apto o direito à circulação.
Quanto maior a uniformização, maior a segurança jurídica exarada acerca do
direito inscrito, e, portanto, mais apto a circular, seja do ponto de vista
econômico, seja do jurídico. Conferir um caráter estável à atividade registral, tem
hoje uma importância econômica muito grande na prestação de informação
rápida e confiável, e, portanto, apta a reduzir os custos transacionais.

Ao lado da função econômica, tem o Registro de Imóveis uma função


social muito grande, bastante conectada à função econômica. Assim, quando a
proteção ao direito de propriedade é conferida por um sistema registral
adequado, e o registro exerce sua função econômica porquanto facilita a
circulação desse direito e a geração de riquezas, essa mesma proteção permite
a convivência social pacífica, permitindo que a propriedade exerça sua função
social. O Registro Imobiliário, exerce uma função social significativa ao garantir
eficiente profilaxia jurídica em relação aos direito inscritos, aos quais confere

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certeza e segurança jurídicas a priori, isto é, antes de haver lide, prevenindo a


existência desta, afastando-a, sendo, assim, um dos mais eficientes agentes de
consecução da paz social. Na medida em que, como vimos, a apreensão dos
bens da natureza é inata ao ser humano, a inexistência de um regramento
seguro do direito de propriedade e que estabeleça com segurança a extensão
do direito de propriedade de cada um, através de um sistema registral adequado,
inviabilizaria a vida social, geraria o caos, o império do mais forte sobre o mais
fraco, uma volta ao individualismo puro. Nesse sentido, um sistema registral
imobiliário adequado, permite, em última análise, a própria vida social, que é o
fim último do direito

A tônica constitucional da função social da propriedade pode ser muito


mais facilmente atingida quando se tem à disposição as informações registrais
acerca do direito que eventualmente descumpre sua função social. O Registro
de Imóveis bem utilizado, é, nesse sentido, um importante agente facilitador do
controle do exercício da função social do direito de propriedade. Por um lado, a
informação registral levará ao terceiro adquirente a noção segura de que tipo de
propriedade está a adquirir, e, portanto, qual a destinação que deverá dar a tal
direito, a fim de cumprir a sua função social; por outro lado, o Estado tem nas
informações registrais um meio valioso de angariar elementos a fim de observar
o cumprimento, ou não, da função social da propriedade, aplicando os institutos
jurídicos adequados ao caso. Enfim, o fenômeno registral imobiliário carrega
consigo uma função social e uma função econômica que andam de mãos dadas,
e que decorrem, ambas, naturalmente de um sistema registral bem aplicado, em
consonância com os princípios constitucionais que norteiam a propriedade. E,
um sistema registral bem aplicado é fundamental à consecução do princípio da
dignidade da pessoa humana, cuja face voltada ao aspecto patrimonial, só é
alcançada quando se alcança a implementação da função econômica e social
da propriedade.

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