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FICHA CATALOGRÁFICA

Capa: Guilherme Sarmiento

Diagramação: Celso Moreira Louzada Filho

Importante!

Os textos que compõem esta coletânea são de inteira


responsabilidade de seus respectivos autores
SUMÁRIO
.........................................................................................................................................................3
Apresentação..................................................................................................................................6
Érica Sarmiento

PARTE 1
SÉCULO XIX E SUAS QUESTÕES MIGRATÓRIAS: IMPRENSA, ESTUDOS DE ESCALAS
REGIONAIS E FONTES PARA O ESTUDO DAS MIGRAÇÕES

Burgos agrícolas e a pequena propriedade nos jornais do século XIX.....................................9


George Vidipó
Higienismo e Imigração – Fontes para investigação da história de Leopoldina, na Zona da
Mata mineira, entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX.................22
Rodolfo Alves Pereira

PARTE 2
AS GRANDES MIGRAÇÕES EM DEBATE: ASSISTENCIALISMO, PERSEGUIÇÕES,
IDENTIDADES E POLÍTICAS IMIGRATÓRIAS

Impactos do nazismo em Juiz de Fora/MG: perseguição contra imigrantes alemães no


Estado Novo..................................................................................................................................37
Lucas Henrique Dias
Relatos de Vida de Imigrantes Espanhóis no Rio de Janeiro..................................................48
Miriam Barros Dias da Silva
O lugar/papel do imigrante português no imaginário das letras no Brasil durante a grande
imigração......................................................................................................................................61
Tiago Lopes da Silva
Política imigratória em tempos democráticos: a criação do Instituto Nacional de Imigração
e Colonização (1952 – 1953)........................................................................................................69
Amanda Pereira dos Santos
Imigração e identidade nacional: os portugueses como imigrantes desejáveis......................80
Patricia Santos do Carmo

PARTE 3
CIRCULAÇÃO DE IDEIAS, SABERES E INTELECTUAIS NA IMIGRAÇÃO

O intelectual negro como produto da diáspora.........................................................................94


Alencar Rampelotto da Silva e João Heitor Macedo da Silva
O Brasil e o Chile de Maria Graham: Entre rebeliões e revoluções, paisagens,
representações e cotidiano, os registros e narrativas de uma viajante inglesa na América do
Sul, 1821-1823.............................................................................................................................108
Denise Maria Couto Gomes Porto
Luis Jimenez de Asúa nos dois lados do atlântico – uma contribuição para o saber jurídico
.....................................................................................................................................................119
Eduardo Manuel VAL e Wilson Tadeu de Carvalho ECCARD
Cágada: ficção e realidade na Colônia Judaica de Quatro Irmãos.......................................130
Gláucia Elisa Zinani Rodrigues
Os dissidentes da república: a colônia brasileira que orbitava em torno da Família Imperial
durante os anos de exílio (1889 – 1928)....................................................................................142
Thalita Moreira Barbosa
A subversão cruza o oceano: o debate sobre a organização política entre os anarquistas na
Espanha e na Argentina (1874 – 1896).....................................................................................156
Eduardo Augusto Souza Cunha

PARTE 4
FLUXOS MIGRATÓRIOS RECENTES NO MUNDO CONTEMPORÂNEO: POLÍTICA,
LEGISLAÇÃO E TRABALHO

Retórica e Migrações: o discurso político sobre refugiados nas eleições presidenciais da


França e dos EUA......................................................................................................................168
Denise Mercedes N. N. Lopes Salles e Gustavo do Amaral Loureiro
O direito ao trabalho em tempos de refúgio............................................................................179
Helenice Pereira Sardenberg e Adriana Motta Gonzaga
Mulheres migrantes e crianças e adolescentes não acompanhados na América Latina e
Caribe: algumas cifras e reflexões para o debate...................................................................194
Paula da Cunha Duarte e María del Carmen Villarreal Villamar

PARTE 5
MIGRAÇÕES FORÇADAS E DIREITOS HUMANOS

Entre a segurança e o humanitarismo: a problemática em torno do fluxo de haitianos no


Brasil...........................................................................................................................................208
Ana Luiza Bravo e Paiva e Ana Paula Moreira Rodriguez Leite
Cidadania ampliada: direitos políticos de estrangeiros nos casos argentino, brasileiro e
equatoriano.................................................................................................................................222
Roger Lucas Correa Martins
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APRESENTAÇÃO

Érica Sarmiento*

Os fenômenos migratórios têm ocupado lugar de destaque nos espaços acadêmicos com
diferentes mudanças de enfoque nos modelos de análise, na metodologia e nas fontes utilizadas. Os
fluxos migratórios deixaram de ser fenômenos sociais isolados, passando a ser compreendidos,
também, como um espaço de relações sociais ativo no processo de construção das sociedades
receptoras e emissoras. O imaginário e a representação que a imagem do “outro” provoca no espaço
que o acolhe, incita os pesquisadores a buscar novas indagações a respeito, por exemplo, da
percepção do imigrante através da análise das políticas públicas (como a solução ou a causa dos
problemas sociais) ou a inserção e a coexistência dos estrangeiros no espaço urbano a partir de
estratégias étnicas ou defensivas, como o associativismo. O imigrante participou na construção das
cidades, no povoamento das zonas rurais mais inóspitas, na elaboração do espaço urbano e,
também, tornou-se alvo dos discursos das políticas governamentais e imigrantistas, segundo o
contexto histórico e as necessidades de cada momento. Como as migrações são fenômenos cíclicos,
na contemporaneidade elas continuam a existir, seguindo as mudanças econômicas e o contínuo
fluxo de ideias e de informação na época da globalização.
O livro aqui apresentado, E-Imigração em debate: novas abordagens na
contemporaneidade, é fruto do “I Seminário Internacional Migrações atlânticas no mundo
contemporâneo (séculos XIX-XXI): novas abordagens e avanços teóricos”, que objetivou reunir
comunicações de docentes e alunos de pós-graduação, a partir das seguintes abordagens: os
fenômenos de mobilidade econômica internacional da mão de obra ou do exílio político; mulher e
gênero; os fluxos migratórios no processo de construção das sociedades emissoras e receptoras;
discursos, imaginários e representações do “outro” e-imigrante; processos de inserção nos espaços
urbanos e criação de estratégias étnicas como as redes sociais, o associativismo formal e as
iniciativas assistenciais; a emigração de retorno, os contatos entre origem e destino (massa média,
redes e novas tecnologias) e, por último, a transnacionalidade e a interculturalidade. Desta maneira,
o Seminário foi concebido para gerar reflexões em torno a vários subtemas, tomando como base os
diferentes tipos de deslocamentos, como podem ser os exílios, as migrações econômicas, os
refúgios, etc, assim como a circulação de ideias e os intelectuais que, imigrantes ou não, deixaram
um legado literário sobre as experiências e os saberes oriundos das migrações.

*
Professora Titular do Programa de Pós Graduação em História na Universidade Salgado de Oliveira e Professora
Adjunta de História de América da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordenadora Geral do “I Seminário
Internacional Migrações Atlânticas no Mundo contemporâneo (séculos XIX - XXI).
7

Nas instalações da Universidade Salgado de Oliveira, o Seminário ocorreu, nos dias 31 de


outubro e 01 de novembro de 2017, em parceria com diferentes instituições e universidades
nacionais e internacionais, entre elas: Universidade do Estado do Rio de Janeiro, o Grupo
HistAmérica, do departamento de História da Universidade de Santiago de Compostela, a
Université de Bretagne Occidentale e a Universidade de Sevilha. As atividades reuniram mais de 50
pesquisadores, professores e pós-graduandos de diversas instituições, divididos em seis sessões
coordenadas, organizadas por docentes especializados nos temas migratórios. O evento contou
ainda com mesas redondas e conferências, apresentando as diversas vertentes das migrações
atlânticas do século XIX até a atualidade.
O debate está lançado nas páginas seguintes. Partimos do século XIX, com a análise das
políticas imigrantistas, as políticas de colonização que avançaram em muitos países americanos, e
com o alvorecer da Grande Imigração, no final do Oitocentos; seguimos ao longo do século XX,
com a consolidação do associativismo e a imprensa étnica, o exílio e o refúgio no século das
grandes guerras mundiais; e chegamos ao século XXI, aos fluxos migratórios atuais, aos debates
acalorados e necessários acerca dos direitos humanos, das fronteiras militarizadas, do
transnacionalismo e dos movimentos que devem ser compreendidos muito além das fronteiras
políticas. Novas interpretações se apresentam, nesses estudos, sobre as migrações, suas variáveis e
diferentes formas de deslocamento e circulação. Sem dúvida, esse foi um encontro que
proporcionou diálogo e interlocução entre professores e pesquisadores de universidades brasileiras e
internacionais, mas que, principalmente, trouxe grandes contribuições para as pesquisas voltadas
para os estudos migratórios.
Parte 1

Século XIX e suas questões migratórias: imprensa, estudos


de escalas regionais e fontes para o estudo das migrações
9

BURGOS AGRÍCOLAS E A PEQUENA PROPRIEDADE NOS JORNAIS DO SÉCULO XIX.

George Vidipó*

O presente artigo tem como objetivo observar como dois jornais, Gazeta de Notícias e O
Paiz, da cidade do Rio de Janeiro, nos anos de 1888 e 1889, trataram a pequena propriedade. Esse
segmento econômico foi defendido no Parlamento de forma enfática entre os anos 1880 e 1889
(MACHADO, 2014; SANCHES, 2008; URBINATI, 2008), bem como pela Sociedade Central de
Imigração que foi fundada para defendê-la e implantá-la no Brasil Império (MESQUITA, 2000).
A escolha dos jornais se deu devido o primeiro se proclamar neutro (VIDIPÓ, 2016) e o
segundo ter uma defesa da República como base editorial. A historiadora Andrea Pessanha
observou que o jornal O Paiz se propunha “neutro”, no entanto, a presença de um redator-chefe,
Bocayuva Cunha, líder do Partido Republicano, não permitia levar em consideração sua
neutralidade (PESSANHA, 2006).
Observamos que a discussão sobre a pequena propriedade cresceu nos anos de 1888 e 1889,
pois ela estava associada à atração de imigrantes europeus para o Brasil e no assentamento dos ex-
escravizados. Isso tomou maior importância, pois na “Fala do Trono” de maio de 1889 1, Dom Pedro
II propôs a instalação da pequena propriedade no Império de forma extensiva, através da utilização
de terras devolutas junto aos rios e as estradas de ferro.
Para atingir nosso objetivo, este artigo descreverá duas propostas “privadas” de pequena
propriedade de terras para colonos nacionais e imigrantes europeus relatados pelos jornais
pesquisados: a do Banco Predial e os Burgos Agrícolas. Desta forma poderemos demonstrar como
esses periódicos se posicionaram diante das propostas e da política do Imperador.

O caso do Banco Predial


Após ser anunciada, nos jornais da cidade, a convocação do Banco Predial para uma reunião
extraordinária dos acionistas, o jornal Gazeta de Notícias na edição de 17 de abril de 1888 iniciou a
reprodução das Atas das reuniões. A diretoria do Banco convidou os acionistas para apresentar sua
apreensão sobre o futuro da instituição e dos seus mutuários com a iminência da abolição da
escravidão sem indenização.
O Banco Predial era especializado em “crédito real”. Inicialmente, quando na sua
inauguração, de 1863 até 1873, trabalhava com o financiamento de imóveis residenciais e

*
Mestre em História (Universo) – Seeduc-RJ.
1
D. Pedro II, Fala do Trono por ocasião da abertura da 4º Sessão da 20ª Legislatura, em 3 de maio de 1889. – Vide:
http://monarquista.com.br/historia-fala-do-trono-1889 – Acesso 10/03/2017.
10

comerciais. A partir de 1873 ampliou sua atuação para hipotecas e empréstimos agrícolas, sendo
este último a maior parte do financiamento na década de 1880.2
Em março de 1888, ficava claro para a diretoria do Banco que aconteceria o fim do trabalho
servil. Em São Paulo se observava um movimento de abolição condicionada, aliada a fuga
indiscriminada dos escravos das fazendas (AZEVEDO, 2004). Embora contida nas fazendas das
províncias do Rio de Janeiro e de Minas, os fazendeiros se viam na expectativa de negociarem com
os escravizados para que não ficassem sem mão de obra para a colheita de café daquele ano
(MATTOS, 2013, p. 211-276).
Tais acontecimentos, levavam a diretoria da instituição bancária a prever que os agricultores
teriam dificuldades de pagar suas hipotecas, pois os mesmos tinham que reservar moedas para os
salários dos libertos e cumprir os contratos de financiamento. Para os banqueiros o custo das
prestações das hipotecas e dos salários seria muito pesado para os lavradores. Então, a diretoria do
Banco solicitava autorização para encontrar uma solução para o caixa e de auxiliar os mutuários.
Em agosto de 1888 a diretoria do Banco e os acionistas se reuniram novamente, pois a
realidade era que “… a promulgação da Lei de 13 de maio próximo originou tais dificuldades e
alterou tão profundamente a vida dos mutuários deste banco.” (GAZETA DE NOTÍCIAS, 14 de
agosto de 1888, p.1) As previsões se concretizaram e a diretoria assim definiu o problema: “… os
empréstimos agrícolas [dos mutuários] foram feitos sob penhor da colheita deste ano [1888], em
letras hipotecárias e o dinheiro vencendo-se a maior parte deles em 31 de dezembro próximo
futuro”.(OPT. SIT.)
A diretoria tinha a preocupação de demonstrar que o Banco estava em boa situação financeira,
pois o ativo real era de 9.528:628$000 garantidos por 12.000:000$000 em valores hipotecários e de
propriedades no Oeste Paulista, no Rio de Janeiro e em Minas Gerais. Entretanto a instituição não
tinha moeda disponível para atender as necessidades dos mutuários-lavradores assumirem os
salários dos trabalhadores e rolarem suas dívidas, obrigações das hipotecas. Para suprir essas
obrigações a diretoria projetava um valor de 1.500:000$000, que o governo deveria financiar. Em
editorial a Gazeta de Notícias assim se posicionou:

O estado do Banco é perfeitamente sólido, e que, no entanto, este estabelecimento luta


com dificuldades criadas por circunstâncias alheias a natureza da instituição e ao modo
porque tem guiado os interesses a atual diretoria…
Os embaraços com que luta o Banco são filhos exclusivamente das condições novas
criadas pelo 13 de maio que acarretou a necessidade de pagamento de salários, e por
conseguinte uma mobilização de fundos que até aqui não se dava, e de que os promotores
da lei não cogitavam. (GAZETA DE NOTÍCIAS, 26 de agosto de 1888, p.1.)

2
O Banco Predial e o Banco do Brasil foram as instituições que iniciaram o financiamento da agricultura no Brasil
Império, através de hipotecas. (SANCHES, 2008, p. 33-35).
11

O Banco Predial buscou uma solução para atender as necessidades dos mutuários e da
lavoura. Inicialmente montando uma comissão para apresentar o problema ao governo e a imprensa.
Nas atas de reunião foi comunicado visitas aos jornais O Paiz, Jornal do Commercio, Diário de
Notícias, Revista Financeira e a Gazeta de Notícias.
A Gazeta de Notícias além de reproduzir as Atas de Reuniões do Banco, produziu dois
artigos, na coluna “Cousas Políticas” de Ferreira de Araújo e um editorial. Neles foram
apresentados o problema que a instituição bancária e a lavoura estavam vivendo e a necessidade do
governo ajudá-la.
Já no jornal O Paiz, o redator-chefe Quintino Bocayuva teve uma longa reunião com uma
comissão do Banco Predial que lhe apresentou o problema que os mutuários e a instituição estavam
vivendo (OPT. SIT). Assim o periódico ao longo de três artigos apresentou o tema, ajuda a lavoura,
para os seus leitores. Os artigos tinham o título de “Organização de Crédito”. Como se pode notar a
relação com a situação do Banco Predial aparece de forma transversal. No artigo inaugural relatou:

A agricultura carece de crédito e de bancos que sejam os seus órgãos ativos que lhe
fornecem os meios indispensáveis. (…) A abolição da escravidão, fato auspicioso que
todos celebramos, perderia o seu caráter de revolução benéfica, se não acudisse o Estado
com providências prontas e eficazes as necessidades e nos interesses criados por essa
mesma revolução. (O PAIZ, 06 de junho de 1888, p.1)

O jornal observava o problema com apreensão e para solucioná-lo era necessário a instalação
de “…um bom regime bancário” (OPT. SIT). Até afirmou que as instituições bancárias não eram
parceiras dos lavradores, mas os “… bancos, que têm explorado a lavoura, e aos credores que têm
arruinado”. (O PAIZ, 08 de junho de 1888, p.1)
Nesse período, estava em discussão no Parlamento um programa de auxílio à lavoura, no
valor de 20 mil contos de reis a ser administrado pelo Banco do Brasil. Para O Paiz o valor não era
suficiente e, somente uma instituição para gerenciar os empréstimos, era um erro. O periódico
defendia a criação de instituições distintas para o crédito rural e, para sustentar sua proposição
descreveu a experiência da “República Argentina” que havia desenvolvido um sistema bancário
eficiente. No artigo de 12 de junho de 1888, o jornal demonstrou a superioridade argentina:

Os nossos vizinhos cedo compreenderam que a moeda ou numerário era a verdadeira


alavanca do trabalho e que cumpria fornecê-la ou espalhá-la como elemento fecundante
do trabalho e, portanto, da riqueza pública.
Sob este ponto de vista, é patente a superioridade da República Argentina sobre os
Estados da América do Sul, comparada a população de um outro país e seus recursos
naturais, essa superioridade é humilhante para nós e demonstra a nossa incapacidade
financeira.
A Argentina tem vinte nove bancos, nos quais dez são bancos de emissão e dois
hipotecários. Esses bancos representaram ao seu balanço do ano de 1887 a soma de dois
bilhões e quinhentos milhões de francos.
12

O Brasil possui apenas dezesseis bancos, representando o balanço de todos eles, de seis
milhões de francos. (O PAIZ, 12 de junho de 1888, p.1)

Na leitura dos artigos do periódico, observamos a preocupação em exaltar a “República


Argentina” e criticar o Estado Monárquico. Para o jornal, havia uma evolução que tinha como
partida a libertação dos escravos e passava pela reformulação do sistema bancário nacional e depois
do próprio Estado.
Em agosto de 1888, o jornal Gazeta de Notícias continuou a relatar os problemas da
instituição bancária. A comissão do Banco buscou fazer uma reunião com o Presidente do Gabinete,
João Alfredo, para discutirem os problemas da lavoura e a sua necessidade de ajuda. Reunião que
não aconteceu. Para o periódico e para a diretoria do Banco, a ajuda de 20 mil contos de reis não era
suficiente para a lavoura do país.
No dia 26 de agosto de 1888, a diretoria do Banco Predial e os acionistas se reuniram para
discutirem a proposta superação dos problemas da instituição e dos seus mutuários. A proposta
atenderia a 3 objetivos: 1 – Fornecer empréstimos a seus mutuários para o pagamento dos salários
da colheita do ano e a futura; 2 – Pagar os juros das hipotecas do Banco; 3 – Retalhar para pequena
propriedade as fazendas da instituição.
O Banco Predial tinha 16 propriedades em Minas, Rio de Janeiro e São Paulo com um total de
2762 alqueires e 1787000 de pés de café e 14 fazendas, ainda virgens, em São Paulo.
Essas fazendas seriam divididas em 276 lotes de 10 alqueires e com 100 metros de frontal e
em cada um deles seria construída uma casa. Cada lote já teria pés de café plantados e podia
alcançar até 20 mil pés em 4 alqueires, os demais 6 alqueires era reservado para outras culturas. O
valor de cada lote seria de 3 contos de reis e o locatário teria 30 anos para pagar com parcela anual
de 295$000. Os lotes eram planejados para colonos nacionais e estrangeiros. Na proposta de venda,
os colonos nacionais deveriam ficar ao lado de estrangeiros, com isso o brasileiro usufrutuaria do
conhecimento do imigrante. A produção de café era suficiente para pagar a anuidade e o colono
teria lucro as outras culturas. (GAZETA DE NOTÍCIAS, 19 de setembro 1888, p.1)
A diretoria do Banco assim previa os benefícios:

… o aumento da produção seria uma consequência, com grande proveito para o país, para
o colono e para o banco. Devendo notar ainda que, sendo a pequena propriedade mais
rendosa, a prestação subdividida seria mais pontual, e por razão mais próspera e fácil a
missão dos bancos de crédito real. (GAZETA DE NOTÍCIAS, 19 de setembro 1888, p.1)

Tais propostas não convenceram o governo que não deu nenhum apoio ao Banco. A Gazeta
de Notícias se sensibilizou com a proposta colonizadora e o apoiou (GAZETA DE NOTÍCIAS, 20
13

setembro de 1888, p.1), no entanto O Paiz não se manifestou sobre a proposta e as dificuldades da
instituição bancária.
O jornal O Paiz após os artigos de junho não mais proferiu sobre o auxílio a lavoura ou a
reformulação do sistema bancário. Já a Gazeta de Notícias ficou eufórica com a proposta de
pequena propriedade para nacionais e “estrangeiros”. Embora o periódico não acreditasse que a
solução vingaria.
Em setembro, os acionistas do Banco resolveram eleger uma nova diretoria (GAZETA DE
NOTÍCIAS, 19 de setembro 1888, p.1). Os eleitos foram: para presidente Comendador Paula
Marink3, diretor Florêncio José Freitas e diretor-secretário Barão de Santa Margarida. Tal diretoria
assumia para debelar a crise da instituição e a proposta colonizadora não foi mais conhecida nos
jornais pesquisados.

O caso dos Burgos Agrícolas


Em 5 de junho de 1888, a Gazeta de Notícias iniciou uma série de artigos, com o título “A
Era Nova”, onde apresentava as vantagens dos “Burgos Agrícolas” para o Império. Eles, em sua
maioria, utilizavam duas colunas das edições do jornal e sempre na primeira página.
Em 7 de junho de 1888, o periódico justificou a implantação dos Burgos Agrícolas:

A grande propriedade é insuficiente para a exploração de todas as nossas riquezas


naturais; e mesmo para manter-se, tal qual se acha hoje constituída, carece de dois
elementos imprescindíveis o que lhe devem ser fornecidos urgentemente: braços e
crédito.
Precisa diretamente do braço para o preparo das terras, plantação e colheita e precisa do
braço do pequeno proprietário, que se estabeleça na proximidade para fornecer matéria
prima, que faça valer os custos maquinismos em que empregou capitais.
Dá-se entre nós o fato singular de haver falta de braços para o trabalho que o reclama, e
se ao mesmo tempo falta de emprego que satisfaça as aptidões e tendências de milhares
de indivíduos que vivem em inatividade. (...). (GAZETA DE NOTÍCIAS, 07 de junho de
1888, p.1)

Então, a Gazeta de Notícias observou que havia um grande contingente de mão de obra
ociosa, nacional, liberta, mas necessitada de proteção legal para que pudesse ser inserida nas
lavouras e na “indústria”. O periódico não se interpunha com a grande propriedade, pois entendia
que a imigração poderia ser utilizada de várias formas.

Há imigrantes de duas classes e todos podem ser úteis. Há o imigrante que vem com
intenção de adquirir pequeno pecúlio com que possa estabelecer em sua terra, e o
imigrante que traz consigo a família, em busca de futuro mais próspero nestas regiões
abençoadas da América. Aquele é utilizável como assalariado na grande propriedade, é
um instrumento útil de trabalho, que convêm aproveitar em sua função transitória, este é

3
O Comendador Paula Marink era uma das maiores fortunas do Brasil Império. – Ver:
cpdoc.fgv.br/sites/default/files/.../MAYRINK,%20Francisco%20de%20Paula.pdf - Acesso: 20/07/2017
14

um fator de engrandecimento nacional, porque se fixa, faz família, e seus herdeiros já são
filhos desta terra. (OPT. SIT.)

Era proposto para o segundo tipo de imigrante, que trazia consigo a família, e para os livres
nacionais os Burgos Agrícolas. O projeto, desenvolvido por Manuel Gomes de Oliveira 4, propunha
estabelecer 20 burgos em diversas províncias e cada um deveria ter mil famílias de lavradores
nacionais e estrangeiros. Os burgos deveriam ter lotes de 19 hectares de terras contínuas por
colonos, nas proximidades de linhas de trens, vias fluviais ou marítimas. Desses 19 hectares, 5
deveriam ser plantados com cereais, cana-de-açúcar, café ou cacau, mandioca, fumo, batata, entre
outros. Cada lote deveria, também, ter uma casa de 6x20 metros, com ferramentas e animais de
criação. Seria construída uma fábrica central para beneficiar os produtos produzidos pelos
lavradores, capelas de culto católico e protestante, banco popular, seguro de vida e propriedade,
escolas de ensino primário e profissional, farmácia, assistência médica, serviço de incêndio, etc. O
custo do projeto era de 20 mil contos de réis.
No Parlamento, o projeto de Manuel Gonçalves de Oliveira passou a ser discutido e aprovado
nas comissões e nas sessões plenárias. Em 13 de novembro de 1888, o projeto foi aprovado pelo
Senado. O Ministro da Agricultura, Antônio Prado não aprovava o projeto, não aceitava que uma
empresa privada, Burgo Agrícola, utilizasse o financiamento do governo, de 400$ por imigrante,
nem a obrigatoriedade do trabalho do imigrante por anos, embora Prado não mencionasse que o
mesmo seria proprietário da terra em que trabalhava. No Parlamento expôs sua posição:

Inadmissível como empresa de imigração, é inadmissível também como exploração


agrícola, pela mesma razão que a condena para aquele fim.
Se tratasse de favorecer a introdução de imigrantes, ou mesmo o estabelecimento de
nacionais em grandes núcleos, sem esta cláusula da obrigação de trabalhar 10 anos, eu
discutiria a conveniência de conceder a empresa, como experiência, os favores que pede
para fundação de um burgo agrícola; mas empenhar a responsabilidade do governo em
uma empresa desta ordem, que teria de absorver boa parte da verba destinada a
imigração, não estando de conformidade com o plano de governo, que é abrir as portas do
país a imigração, para que ela tome o destino que quiser, oferecendo aos imigrantes todas
as facilidades, para a sua felicidade, seria grande erro e resolução inteiramente contraria
aos interesses da imigração. (GAZETA DE NOTÍCIAS, 07 de junho de 1888, p.1)

Este processo de tramitação do projeto dos “Burgos Agrícolas” não foi acompanhado pelo
jornal O Paiz. Embora os leitores do periódico não os desconhecessem, pois no de 1886 foi
apresentado seu lançamento e o reconhecimento de sua importância pela Sociedade Central de
Imigração, principal associação imigrantista do Corte. Nesse ano, assim, o jornal justificou a
proposta dos “burgos”:

4
Manoel Gomes de Oliveira era português e se apresentava como banqueiro ou comerciante, no entanto sua
formação ou ocupação não foram mencionadas nos jornais pesquisados. (OLIVEIRA, 1886; QUEIROD, 1898).
15

Abandonado o falso exclusivo primeiro da colonização como meio de substituir, na


indústria agrícola, as forças depauperados da lavoura nacional e o braço servil condenado
a desaparecer dentro de pouco tempo, o projeto Burgo Agrícola tem a mente de haver
assentado a sua estrutura sobre a base do regime do trabalho livre, na propriedade livre e
autonomia. (O PAIZ, 28 de julho de 1886, p. 1)

Para o jornal a iniciativa da proposta tinha semelhanças com as iniciativas dos socialistas
franceses:

Entrelaçados, por esta forma, os interesses comuns da população agrícola dos Burgos;
harmonizadas as vantagens recíprocas da empresa e dos ocupantes do solo, assegurados
mutuamente o domínio e os frutos do trabalho de cada um, o Burgo projetado realiza de
fato nos domínios práticos da economia e da indústria, o Falanstério do Fourier sem o
rigor doutrinário dos comunistas. (O PAIZ, 29 de julho de 1886, p. 1)

Nos anos de 1885 e 1886 o jornal havia defendido em suas edições a pequena propriedade
para os nacionais e estrangeiros, entretanto nos anos de 1888 e 1889 se calou sobre o tema. O
processo de discussão dos Burgos Agrícolas no Parlamento foi ignorado pelo periódico. A
pesquisadora Andrea Pessanha observou que Quintino Bocayuva, redator-chefe, havia feito uma
aliança com os grandes fazendeiros do Império (PESSANHA, 2006). Podendo ser essa a reposta
para o silêncio.
Tal silêncio foi quebrado uma única vez no ano de 1888, quando o jornal reproduziu uma
carta de um “Importante Lavrador”, do Rio de Janeiro, que por algum motivo não foi revelado o
nome. No artigo, com o título “Auxilio à Lavoura”, o autor defendia a imigração, por perceber que
faltava braços para a lavoura. Sustentava que a solução era a colonização através da pequena
propriedade e os Burgos Agrícolas: “Ora, nenhuma companhia poderá organizar-se com melhor
fundamento do que a belíssima organização dos Burgos Agrícolas, projeto elaborado pelo Sr.
Manoel Gomes de Oliveira, com rara felicidade para atender aos interesses complexos do Estado e
dos particulares chamados a povoar”. (O PAIZ, 26 de junho de 1888, p.1)
No ano de 1889, a Gazeta de Notícias continuou sua campanha para que o governo assinasse
com Manuel Gonçalves de Oliveira a efetivação do projeto. Em Abril de 1889, o periódico
enumerou as 16 vantagens dos “Burgos Agrícolas”:

1-O Estado não aventura um real, apenas serviços prestados e frutos colhidos; 2-Só em
1891 que o Estado contribuiria com a primeira prestação; 3-Nesse tempo a empresa já
teria dispendido 18.000:000$000; 4-Os colonos fixariam definitivamente no país; 5-Cada
burgo povoaria com colonos proprietários; 6-Estabelecia no país vinte instituições de
crédito rural; 7-Impedia a exportação de capitais que a imigração trazia; 8-Assegura
contra a morte à família imigrante a propriedade das terras não paga; 9-Os burgos
conciliariam as vantagens da grande propriedade com as pequenas propriedades; 10-
Estabeleceria a policultura do solo; 11-Discriminaria a produção com função industrial e
agrícola; 12-Habilitaria o produto brasileiro com os similares europeus; 13-Cada burgo
reuniria em si todos os órgãos de civilização de uma sociedade constituída (médicos,
16

hospital, farmácia, escolas, igrejas, banco, etc.); 14-O desembolso do Tesouro com a
empresa seria pari-passo; 14-Um acréscimo de 380.000:000$000 por obra dos vinte
burgos agrícolas a riqueza nacional; 15- A empresa dará pão e propriedade a quatro mil
famílias brasileiras. (GAZETA DE NOTÍCIAS, 04 de abril de 1889, p.1)

Quando o Gabinete de João Alfredo caiu, o seu substituto, Visconde de Ouro Preto, assinou o
contrato com Manuel Gonçalves de Oliveira (GAZETA DE NOTÍCIAS, 07 de junho de 1889, p.1).
A Gazeta de Notícias contribuiu, em muito, para que o projeto fosse aceito pelo novo governo.

***

Essa breve exposição demonstra que havia uma discussão ou opção pela pequena propriedade
nos anos de 1888 e 1889. A pequena propriedade era vista como uma opção para o desarranjo da
mão de obra que a Abolição havia provocado. Assim podemos entender o “Fala do Trono” de 1889
de D. Pedro II.

Augustos e Digníssimos Srs. Representantes da Nação,


Animam-me esperanças, que a pátria deposita em seus eleitos, todas as vezes que a eles
reunido, venho abrir os trabalhos legislativos.
(...) Em virtude da emancipação civil, que decretastes na sessão transata, vai
prosseguindo regularmente a substituição do trabalho, sem os abalos profundos que em
toda a parte sucederam a crises desta natureza. A classe agrícola compreendeu que ficara
inútil e sem valia uma propriedade, que nem era mais suscetível de posse, e inaugurou
resolutamente o novo regime, do qual provirá a regeneração e o aumento das indústrias.
(...)
Não têm sido menos solícitos os altos poderes do Estado em auxiliar a agricultura e
outras indústrias, favorecendo a corrente imigratória, já avolumada, e em grande parte
espontânea, pelos exemplos de prosperidade dos estrangeiros que procuram a nossa
pátria. Ascenderam as entradas, o ano passado, ao número de 131.000 imigrantes; as dos
últimos meses anunciam resultado maior.
Para fortalecer a imigração e aumentar o trabalho agrícola, importa que seja convertida
em lei, como julgar vossa sabedoria, a proposta para o fim de regularizar a propriedade
territorial e facilitar a aquisição e cultura das terras devolutas. Nessa ocasião resolvereis
sobre a conveniência de conceder ao Governo o direito de desapropriar, por utilidade
pública, os terrenos marginais das estradas de ferro, que não são aproveitados pelos
proprietários e podem servir para núcleos coloniais.5

Observemos que o D. Pedro II percebe a mudança que estava ocorrendo na economia e se


apropria do caminho possível para a sua transformação com a pequena propriedade e a utilização
das terras devolutas. Tais proposições estavam muito próximas da Sociedade Central de Imigração e
sua proposta de Democracia Rural. Segundo Sérgio Luís Mesquita:

… Democracia Rural pode ser conceituada (…), como a ampliação do acesso à


propriedade fundiária para aqueles que reunissem determinadas condições para cultivá-la.
(…) Ela se constituiria, no caso do Brasil, num instrumento de transformação
socioeconômica, predestinada pelos adeptos da “democracia rural” a romper a existente

5
D. Pedro II, Fala do trono por ocasião da abertura da 4º Sessão da 20ª Legislatura, em 3 de maio de 1889. – Vide:
http://monarquista.com.br/historia-fala-do-trono-1889 – acesso 10/03/2017.
17

polarização social, que enfeixava as energias do país em volta da relação senhor-escravo


e do monopólio virtual da propriedade por uma única classe. (MESQUITA, 2000, p.4)

É importante frisar que a Gazeta de Notícias não repercutiu essa proposta de Dom Pedro II.
Acreditamos que, se assim o fizesse seria uma forma de exaltação ao Imperador e ao seu papel na
política nacional. Nesses dois anos, 1888 e 1889, o periódico colocara em dúvida a capacidade do
Monarca de governar devido a sua doença e acusava o seu médico particular, o Conde Motta Maia,
de administrar em seu lugar.
A defesa da pequena propriedade e a imigração europeia pelo jornal Gazeta de Notícias não
se transformou na defesa da Monarquia ou do Imperador. Nesse sentido, o periódico preferiu não
repercutir ao longo de 1889 a proposta da “Fala do Trono”. O mesmo aconteceu no O Paiz.
Neste sentido a proposta de neutralidade da Gazeta de Notícias nesses eventos entra
contradição, como em vários momentos nessa pesquisa. Com a proposta do Imperador na abertura
dos trabalhos do Parlamento isso fica mais patente, o periódico e Ferreira de Araújo, ignoraram-na
ao longo do ano de 1889. Mesmo nas sessões das cartas-artigos 6 não observamos nenhuma defesa
ou reprovação da proposta da “Fala do Trono”. O que pode nos indicar uma censura ou autocensura
dos editores.

Discussão sobre a pequena propriedade e reforma agrária no século XIX.


Com a chegada de D. João ao Brasil e dada inicio a política imigracionista e a pequena
propriedade passa fazer parte das preocupações dos portugueses e da ocupação do território. A
pequena possessão era conhecida e necessária para a colônia desde o século XVIII e fundamental
para o abastecimento do mercado interno. (ERTAL, 2000)
A distribuição da terra no Brasil Colonial era feita através da doação de terras em sesmarias.
Os sesmeiros estendiam suas possessões era além do limites legal. Junto a eles ficavam os
posseiros, que ocupavam áreas pouco férteis ou as que não representavam interesses momentâneos
para os proprietários legais. (OPT. SIT.)
Rui Ertal observa como era a relação entre os sesmeiros e os posseiros: “os agregados ficavam
submissos aos senhores da terra”. (ERTAL, 2000, p. 62)
Maria Thereza Schorer Petrone adverte, que em 25 de novembro de 1808, D. João assinou um
decreto que permitiu o acesso à propriedade fundiária a estrangeiros. Inicialmente esses imigrantes
eram colocados em núcleos coloniais em pequena propriedade ou possessões. Petrone demonstra:

… A pequena propriedade devia ocupar espaços vazios, promovendo a valorização


fundiária, e criar condições para o aparecimento de uma camada social intermediária

6
São artigos, pagos, enviados por leitores, sobre os mais variados assuntos, geralmente ficavam na página 3.
(VIDIPÓ, 2016)
18

entre latifundiários e escravo, camada essa que pudesse ao mesmo tempo ser mercado
consumidor, oferecer braços no mercado de trabalho e diversificar a economia com a
produção de gêneros para os quais a grande propriedade não se prestava. (PETRONE,
1980, p. 16-17)

Esses núcleos obedeciam aos interesses da Coroa, de povoamento, econômico e de proteção


das fronteiras. Com o advento do Império brasileiro esse entendimento colonizador foi mantido.
Para Maria Petrone, a partir de 1840, os proprietários paulistas provocaram uma cisão nessa
política, pois eles passaram a propor e experimentar a atração de imigrantes para trabalharem nas
suas fazendas de café.
Verena Stolcke e Michael Hall (STOLCKE; HALL, 1984) afirmam que essa experiência
passou por fases – parceria, colonato e assalariada – essa última se afirmou no final do século XIX e
início do XX. Para os pesquisadores, esse processo ocorreu com relativa pouca violência. No
entanto, a política para pequena propriedade variou de intensidade de acordo com as formações dos
Gabinetes de governo do Império (SANCHES, 2008; URBINATI, 2008).
Nesse contexto é que foi proposto a organização fundiária no Brasil Império. A discussão
passou a ser necessária, na década de 1840, devido à iminência do fim do tráfico de escravos e a
necessidade de atrair mão de obra para substitui-los. Em 18 de setembro de 1850 foi aprovada a lei
nº 601, ou como é mais conhecida “Lei da Terra”. Essa previa a legitimação das sesmarias
concedidas e de outras posses, bem como, a demarcação das terras devolutas. A legislação também
tinha objetivo de estimular a entrada de imigrantes. (ALCÂNTARA FILHO; FONTES, 2009)
Para José Alcântara Filho e Rosa Maria Fontes a “Lei da Terra” foi um divisor da água, pois
“toda e qualquer propriedade no Brasil deve ter como marco inicial a regulamentação da
propriedade expedida em 1850 ou comprada pela Coroa Portuguesa caso contrário é terra devoluta,
ou seja, possível de desapropriação”. (ALCÂNTARA FILHO; FONTES, 2009, p. 69)
A pesquisadora Márcia Maria Menendes Motta (MOTTA, 1998) observou que a “Lei da
Terra” foi formulada para atender aos anseios dos grandes proprietários, entretanto permitiu que os
pequenos posseiros tivessem reconhecido seus direitos de propriedade. Isso aconteceu em uma luta
desigual, mas passou a ser uma brecha possível de ser alcançada pelos pequenos sitiantes. (OPT.
SIT., p. 215)
Em pesquisa recente Almir Teubl Sanches (SANCHES, 2008) e Inoã Pierre Urbinati
(URBINATI, 2008) demonstraram que a pequena propriedade era uma proposta presente no meio
político, produtivo e na sociedade como mecanismo para o desenvolvimento econômico e social do
país. O pesquisador Almir Sanches observou que a Constituição de 1891 não permitiu que a
19

pequena propriedade fosse implantada, pois retirou seu planejamento da administração central e
particularizou na vontade dos Estados.
O historiador Inoã Urbinati observou que entre os anos de 1871 e 1889 a pequena propriedade
ou reforma agrária, era uma modalidade necessária para o crescimento econômico do Império. Sua
implantação era uma resposta a falta de mão de obra e atração de imigrantes. O pesquisador adverte
que não era uma negação a grande propriedade, mas sim, uma proposta conciliadora e de certa
forma complementadora. Urbinati argumenta:

… A queda do governo de Dom Pedro II teria tido, nessa perspectiva, um impacto


negativo para o projeto agrário. Joseli Jucá considerou que instauração da República
provocou a dispersão do movimento reformista, admitindo o apoio dos latifundiários a
derrubada do regime, cuja as consequências foi a derrota da “reforma social
monárquica”...
(...)Tendo em vista a forte hegemonia política alcançada pelas oligarquias agrárias –
capitaneadas pelos cafeicultores paulistas – sob a Primeira República, acreditamos que tal
hipótese ajuda-nos, realmente, a explicar as causas da derrota dos projetos agrários
defendidos por monarquistas de diversas correntes políticas. (URBINATI, 2008, p. 158-
159)

Urbinati não apresentou, ou não encontrou, em sua pesquisa a contraposição dos grandes
proprietários à proposta fundiária dos “reformadores sociais” (OPT. SIT.). Entretanto ele reconhece
que aqueles se tornaram vencedores com advento da República em 1889. Já o pesquisador Almir
Sanches demonstrou que essa vitória da grande propriedade ficou latente com a implantação com a
Constituição Republicana de 1891.

Comentário Final
Maria Thereza Petrone, em sua pesquisa argumenta que a pequena propriedade era uma
proposta dos grandes latifundiários para atrair mão de obra e valorização fundiária. A estratégia
para seus objetivos estava na reserva de áreas em que não se tinha chegado a lavoura ou qualquer
benfeitoria. Para Petrone os imigrantes liberavam essas áreas, criando uma infraestrutura e
melhorias, valorizando-as, posteriormente novos lotes eram vendidos pelos locatários a um preço
maior ou começavam a produzir nesses locais.
Ao analisarmos as duas propostas de pequena propriedade, “Burgos Agrícolas” e “Banco
Predial”, tal axioma de Petrone não se confirma. Observamos que tais propostas se aproximam dos
discursos que se estavam travando no Império, que era uma harmonização entre a pequena
propriedade e os grandes lavradores. Havia a necessidade de atração de mão de obra, assentamento
dos libertos e desenvolvimento econômico do Império. (SANCHES, 2008; URBINATI, 2008)Tais
premissas observamos nas edições da Gazeta de Gazeta, mas não com mesma intensidade no O
20

Paiz. O que nos permite afirmar que o segundo periódico comungava com o desejo da oligarquia
agrária, no entanto não localizamos nenhuma defesa da grande propriedade.
Ao estudarmos esses dois jornais percebemos a opção de censurar ou omitir a proposta de
Dom Pedro II de ampliar no Brasil a pequena propriedade. O cerceamento foi tal que os periódicos
não apresentaram nenhuma crítica contraria ou a apoio a proposta do Imperador. Assim nos
demonstrou que a política editorial, dita neutra, era informar um evento ou proposta, mas não
repercuti-la. Desta forma o leitor tente a esquecer, ou não valorizar essas propostas. A imprensa
consegue assim controlar a opinião do seu leitor.

Periódicos

GAZETA DE NOTÍCIAS. 1888-1889

O PAIZ. 1886, 1888-1889.

Bibliografia

ALCÂNTARA FILHO, José Luis; FONTES, Rosa Maria Oliveira. A formação da propriedade e a
concentração de terras no Brasil. São Paulo: Revista de História Economia & Economia Regional Aplicada,
Vol. 4, Nº 7, p. 63-85, jul-dez 2009.

ALONSO, Angela. Flores, votos e balas: o movimento abolicionista brasileiro (1808-1888). São
Paulo: Companhia das Letras, 2015.

AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites século
XIX. São Paulo: Annablume, 2004.

BARBOSA, Marialva. História Cultural da Imprensa: Brasil 1800-1900. Rio de Janeiro: Maud X,
2010.

BRIGGS, Asa; BURKE, Peter. Uma história social da mídia: de Guttemberg a Internet. Rio de
Janeiro: Zahar, 2006.

ERTAL, Rui. A colonização portuguesa no Brasil e a pequena propriedade. São Paulo: Revista Geographia,
Ano II, p. 49-75, 2000,

HALL, Michael. Reformadores de classe média no império brasileiro: a sociedade central de imigração. São
Paulo: Revista de História, nº 105, 1976.

LIPPMANN, Walter. Opinião Pública. Petrópolis: Editora Vozes, 2010.

QUEIROD, David. Burgos Agrícola: memorial. Rio de Janeiro: Typographia Leuzinger, 1898.

SANCHES, Almir Teudl. A questão da terra no início da República. Dissertação de Mestrado. São Paulo:
Universidade de São Paulo, 2008.
21

SANTOS, Adelci Silva dos. À Sombra da Fazenda: a pequena propriedade agrícola no século XIX. Curitiba:
Juriá Editora, 2012.

STOLCKE, Verena; HALL, Michael. A introdução do trabalho livre nas fazendas de café de São Paulo. São
Paulo: Revista Brasileira de História, v. 3, n. 6, p. 80-120, set. 1984.

URBINATI, Inoã Pierre Carvalho. Ideias e projetos de reforma agrária no final do Império (1871-1889): uma
análise de seu sentido político e social. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: Universidade do Estado do
Rio de Janeiro, 2008.

VIDIPÓ, George Luiz de Abreu. A Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro e os momentos decisivos (1888-
1889). Dissertação de Mestrado. Niterói: Universidade Salgado de Oliveira, 2016.
22

HIGIENISMO E IMIGRAÇÃO – FONTES PARA INVESTIGAÇÃO DA HISTÓRIA DE


LEOPOLDINA, NA ZONA DA MATA MINEIRA, ENTRE O FINAL DO SÉCULO XIX E AS
PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX

Rodolfo Alves Pereira*

Introdução
Neste trabalho, trataremos sobre a relação das campanhas de saneamento e o processo de
imigração no Brasil, o qual foi intensificado a partir da metade do século XIX e subvencionado pelo
Estado brasileiro. Nosso foco se deterá especificamente sobre os desafios que a imigração impôs
aos governos e à elite dirigente do país, tendo em vista que a chegada dos estrangeiros evidenciava
a precariedade da infraestrutura nacional, especialmente no que tange aos serviços públicos de
saúde. Desse modo, com o estímulo e a introdução de elementos estrangeiros no território nacional,
alguns problemas foram realçados, como a falta de moradias adequadas, as deficiências no sistema
de saúde, os surtos epidêmicos, a ausência de práticas higiênico-sanitárias, fatores que contribuíram
para vitimar um grande contingente de almas. O elevado número de óbitos entre os estrangeiros
causava péssima impressão do Brasil no exterior. Os portos brasileiros eram mal vistos lá fora,
navios evitavam atracar em certos pontos de nosso litoral e com isso a política de imigração estava
em xeque, pois as doenças e a certeza da morte repeliam os imigrantes.
Mediante isso, os dirigentes brasileiros foram obrigados a adotar medidas profiláticas,
começando pelos portos do Rio de Janeiro e de Santos; depois, no início do século XX, as próprias
cidades foram alvo da política sanitária, como, por exemplo, a capital da República. Já ao final do
século XIX, os núcleos urbanos paulistas, ligados ao setor cafeeiro, passaram por intervenção
sanitária, devido ao trabalho pioneiro de higienização promovido pelo médico Emílio Ribas neste
estado. Posteriormente, as políticas higiênico-sanitárias foram levadas para o interior. Nesses locais,
o grande Capital, representado por investidores e comerciantes internacionais, tinha interesses no
desenvolvimento do agronegócio, na expansão das bases do capitalismo e na manutenção da mão de
obra necessária ao cumprimento desses objetivos, o que só se concretizaria com a adoção de hábitos
de higiene e de saneamento básico.
Faremos uma breve análise do contexto geral da introdução do higienismo no Brasil e
procuraremos demonstrar a relação entre a ciência da higiene e das práticas sanitárias com a política
de incentivo à imigração que estava em voga no país no período anteriormente mencionado. Depois
disso, passaremos ao estudo de caso, tomando a cidade de Leopoldina, município situado na Zona
*
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História do Brasil (PPGHB) da Universidade Salgado de Oliveira;
Professor de História da SEE-MG e SEEDUC-RJ. E-mail: prof.rodolfopereira@gmail.com.
23

da Mata mineira, que à época era um importante centro produtor de café do estado e foi uma das
pioneiras a receber os novos serviços de higiene. Na conclusão, deixaremos claro que imigração e
higienismo, por vezes, caminharam lado a lado, sendo que este favoreceu e assegurou a
concretização daquela.

Um breve histórico da higiene e das primeiras políticas higienistas na Europa e no Brasil


Foi na segunda metade do século XIX, na Europa Ocidental, que surgiu a crença de que a
adoção de hábitos de higiene ajudaria a promover o progresso econômico e social (PRIORE, Mary
Del; AMANTINO, Marcia, 2011, p. 283-312). Nessa época, a higiene deixou de ser apenas uma
virtude, adquirindo status de ciência moderna. Ela tornou-se fundamental para assegurar a saúde
dos corpos, vistos apenas como um instrumento de trabalho pelas elites dirigentes e pelos
empresários ansiosos pela expansão do capitalismo industrial.
Assim, o higienismo foi admitido como disciplina acadêmica e escolar, devendo ser
propagado para as massas, a fim de combater as epidemias que representavam um obstáculo para o
crescimento dos negócios, o desenvolvimento industrial e impediam a formação de soldados
saudáveis para compor os exércitos nacionais.
As ideias higienistas não demoraram a seduzir as elites brasileiras desejosas de colocar o
Brasil nos rumos de nações como França e Inglaterra, as quais passavam por grandes
transformações urbanas e sanitárias no século XIX e foram tomadas como modelos para o mundo
Ocidental. Nesses países, avenidas foram abertas, bulevares substituíram vielas, rios eram
despoluídos e pobres tocados dos centros das cidades, tudo em nome do saneamento e de um
projeto que visava higienizar e fortalecer a pátria.
Se a Europa caminhava rumo à modernização, no Rio de Janeiro, ao final dos oitocentos, o
acelerado crescimento urbano suscitava preocupações e debates entre os dirigentes do império. Nos
aglomerados urbanos, desprovidos de condições básicas de salubridade, grassavam epidemias de
febre amarela, peste e varíola. As doenças espalhavam-se e vitimavam pessoas de todos os níveis
sociais. Isso mobilizou as autoridades públicas que começaram a buscar uma “cidade saudável”.
Apesar das apreensões com o saneamento dos espaços urbanos, o orçamento do império destinado
ao higienismo era limitadíssimo1. Segundo Capistrano de Abreu (citado por SINGER, Paul 1981, p.
96) “da higiene pública incumbiam-se as águas da chuva, os raios de sol e os diligentes urubus”.
Com a proclamação da república, em 1889, a pauta do saneamento continuava a inquietar os
dirigentes nacionais e é no início do século XX que podemos encontrar o clássico exemplo da
1
O orçamento imperial aprovado em 1889 destinava menos de 1% dos recursos para os serviços de higiene, controle
dos portos, asilos e hospitais. Outros ministérios, como da Guerra e da Marinha, receberam 19,6%; estradas de ferro
35%; e imigração estrangeira 7%. A pesquisa sobre o orçamento foi realizada por BLOUNT, 1971, p. 39 e citada
por COSTA, 1986, p. 35.
24

presença do higienismo e do sanitarismo no país. Sob o governo do presidente Rodrigues Alves 2, a


capital federal passou por grandes transformações urbanas, graças ao financiamento estrangeiro. A
ideia era embelezar e modernizar a cidade, cujo aspecto colonial e insalubre repelia investimentos e
imigrantes. Sérgio Silva lembra que, a partir de 1880, a imigração foi intensa. Entre 1887 e 1897,
entraram no Brasil 1.300.000 imigrantes. A maioria deles foi para São Paulo e, entre 1887 e 1900,
os imigrantes responderam por 82% do crescimento demográfico do estado paulista 3. Aliás, os
imigrantes também traziam para o Brasil doenças relativamente raras, como cólera, escarlatina e
tifo, e eram considerados não imunes às doenças tropicais, portanto as políticas de higiene e saúde
urgiam para evitar epidemias, preservar a mão de obra e melhorar a imagem do país no exterior.
Rodrigues Alves nomeou para prefeito da cidade o engenheiro Francisco Pereira Passos, o
qual, inspirado no modelo de Haussmann4, empregou a engenharia sanitária para reconstruir a
cidade segundo as necessidades ditadas pelos médicos e higienistas (BENCHIMOL, Jaime Larry,
1982, p. 95). Foi assim que ocorreu o “bota-abaixo5” na capital da república, com a remoção das
habitações coletivas do centro da cidade, abrindo espaço para a construção de avenidas e novos
prédios mais condizentes com o ideal civilizatório almejado pelas elites.
Na imprensa havia opiniões divergentes, ora louvando a ação do poder público, ora cobrando
das autoridades a construção de casas populares. As mudanças implementadas iam além das obras
de engenharia. Segundo José Murilo de Carvalho, Pereira Passos baixou várias regras que
interferiam na dinâmica e nos hábitos dos cidadãos. O prefeito:

proibiu cães vadios e vacas leiteiras nas ruas; mandou recolher a asilos os mendigos;
proibiu a cultura de hortas e capinzais, a criação de suínos, a venda ambulante de bilhetes
de loteria. Mandou também que não se cuspisse nas ruas e dentro dos veículos, que não se
urinasse fora dos mictórios, que não se soltassem pipas (CARVALHO, José Murilo,
1990. p. 95).

Outra medida importante executada por Rodrigues Alves foi no campo da saúde, com a
nomeação do médico Oswaldo Cruz (1872-1917) para o cargo de chefe do Serviço de Saúde
Pública, cuja missão era sanear o Rio de Janeiro e livrar a cidade da febre amarela, da peste
bubônica e da varíola. Assim que assumiu suas funções, Cruz criou o Serviço de Profilaxia, o qual
incluía a brigada sanitária “composta de agentes conhecidos como mata-mosquitos, que visitavam

2
Em 1902, ao assumir a presidência, Alves deixou claro seu objetivo: “O meu programa de governo vai ser muito
simples. Vou limitar-me quase exclusivamente a duas coisas: o saneamento e o melhoramento do porto do Rio de
Janeiro”
3
Os dados são de Sérgio Silva, 1976, mas foram retirados de COSTA, Nilson do Rosário, 1986, p. 38.
4
O Barão de Haussmann foi o prefeito da capital francesa entre 1853 e 1870. Sob seu governo, Paris passou por
relevantes transformações urbanas baseadas na abertura de amplas avenidas no lugar de ruas apertadas.
5
Sobre as consequências do “bota-abaixo”, indicamos a leitura de SANTUCCI, Jane. Cidade rebelde: as revoltas
populares no Rio de Janeiro no início do século XX. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2008.
25

domicílios exterminando focos de larvas do mosquito hospedeiro e agindo na prevenção de


propagação” (SANTUCCI, Jane. 2008, p. 101-2).
A despeito dos problemas enfrentados, as ações do médico surtiram efeito, provocando queda
abrupta no número de óbitos causados pelas epidemias. A título de exemplo, em 1903, 584 pessoas
morreram na capital devido à febre amarela. No ano seguinte, o número de óbitos caiu para 48.
Uma das medidas mais polêmicas na gestão do dr. Cruz foi a que previa a vacinação obrigatória
contra a varíola. Essa iniciativa causou revolta entre a população e refletiu-se na imprensa, a qual
ficava dividida entre acusadores que denunciavam a truculência dos agentes de saúde e defensores
que viam a vacinação como uma medida de salvação pública.
Apesar de toda a polêmica e do repúdio das classes populares com a figura de Oswaldo Cruz,
a imagem do médico foi bastante celebrada pelas elites. Graças às suas intervenções sanitaristas e
também no campo da bacteriologia, Oswaldo Cruz fora elevado a condição de herói, “representando
o desenvolvimento técnico e científico brasileiro” (MOTA, André. 2003. p. 22). O governo
republicano tirava proveito da idealização em torno da imagem do médico para legitimar o novo
regime.
Mesmo com toda a discordância decorrente das reformas urbanas e sanitárias, o relativo
sucesso obtido na capital com o combate das epidemias causou furor nas elites, e isso conferia
maior destaque para os médicos e sua atuação no movimento que orquestrava o saneamento de todo
o país. O segundo momento do esforço pelo saneamento ocorreu “nas décadas de 1910 e 1920, teve
como marca principal a preocupação com o saneamento rural a partir do combate às endemias que
grassavam no interior (malária, ancilostomíase, esquistossomose).” (ABREU, Jean Luiz Neves;
VILARINO, Maria Terezinha Bretas. 2009. p. 194).
A ideia agora era expandir a campanha para os sertões. Nesse sentido, cumpre destacar a
expedição científica ao interior do Brasil, liderada pelos médicos Belisário Penna e Arthur Neiva.
Em 1912, durante nove meses, eles percorreram vários estados do Nordeste. Quatro anos mais
tarde, Penna e Neiva publicaram um relatório em que denunciavam as más condições de saúde e o
estado de abandono das populações do interior do Brasil. No mesmo ano, o médico Miguel Pereira,
em um discurso pronunciado na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, bradou que “o Brasil é
um imenso hospital”, lançando, inconscientemente, o slogan da campanha pelo saneamento dos
sertões. A constatação de que o brasileiro era um povo doente abalou as teorias deterministas que
atribuíam a culpa pelos males nacionais às condições climáticas do país, à miscigenação do povo e
a sua inferioridade racial. A medicina sanitária provara que a doença, o analfabetismo e as precárias
condições de vida é que impediam o Brasil de prosperar. Assim cabia ao médico sanitarista se
26

dirigir ao interior, diagnosticar os males e tratá-los, a fim de erradicar as moléstias e cumprir sua
“missão regeneradora nacional”.
Após ampla campanha via imprensa, foi criado na década de 1920 o Departamento Nacional
de Saúde Pública (DNSP). Através desse órgão, o governo federal passou a centralizar os serviços
de saúde, ampliando sua atuação no setor. Os estados que solicitavam ajuda para combater surtos de
doenças recebiam apoio da União para organizarem seus serviços de profilaxia rural e programas de
educação, desde que adotassem as diretrizes de saúde do órgão federal.

Os serviços sanitários em Minas Gerais


Em Minas Gerais, o serviço sanitário foi regulamentado desde 1895. Ele era composto por um
Conselho de Saúde Pública e uma Diretoria de Higiene, além de delegacias de higiene e vacinação
nos municípios (ABREU, Jean Luiz Neves. 2010, p. 1). Em 1910, o serviço sanitário mineiro foi
restruturado, sem contudo provocar grandes mudanças na ação do governo estadual na esfera da
saúde pública (ABREU, Jean Luiz Neves. 2010, p. 1). Até 1918, o serviço sanitário mineiro
limitou-se “à fiscalização de gêneros alimentícios, fornecimento de soros e vacinas e do socorro
público em tempos de epidemias” (ABREU, Jean Luiz Neves. 2010, p. 1.).
Faltavam recursos humanos e financeiros para proteger uma grande população num vasto
território. Em 1917, o governo mineiro criou o Serviço de Profilaxia e Saneamento Rural, apoiado
pela Fundação Rockefeller, com o intuito de mapear a dimensão das verminoses que grassavam
entre a população do campo. Além disso, os médicos, patrocinados pela instituição filantrópica,
“realizavam exames de fezes, diagnósticos e distribuição de medicamentos aos infectados”
(ABREU, Jean Luiz Neves, 2010, p. 3.). Foi a partir desse acordo que Minas Gerais recebeu um
substancial investimento no setor sanitário e integrou-se ao movimento reformista de saúde nacional
(ABREU, Jean Luiz Neves. 2010, p. 3). Em 1920, o estado celebrou um acordo com o DNSP,
comprometendo-se a adotar os parâmetros e as leis sanitárias nos municípios mineiros, ao passo que
recebia o apoio federal. O médico sanitarista Samuel Libânio assumiu a Diretoria de Higiene e “se
esforçou para estender os serviços de profilaxia à maior parte dos municípios mineiros” (ABREU,
Jean Luiz Neves; VILARINO, Maria Terezinha Bretas, 2009, p. 193). Em Minas Gerais, tal como
ocorrera em São Paulo, o serviço de saneamento rural criou postos e sub-postos de higiene os quais
foram instalados por todo o território mineiro (ABREU, Jean Luiz Neves, 2010, p. 4).
Eram nos postos, os quais funcionavam em parceria com membros da Comissão constituída
pela Fundação Rockefeller, que ocorriam os atendimentos à população das áreas urbanas e rurais.
Dentre suas atividades estava a fiscalização dos alimentos, o combate às epidemias, a educação
higiênica por meio das escolas, a realização de palestras e de cursos para a formação dos
27

professores. Afinal, era fundamental modificar hábitos e costumes, começando por incutir o
higienismo nas crianças, ainda no ensino fundamental. Desse modo, a “educação sanitária ganhava
contornos normatizadores das condutas, tendo por base argumentos como a saúde pelo progresso e
da regeneração do povo.”6
Importante destacar que o discurso médico-sanitarista em vigor associava a promoção da
saúde ao desenvolvimento econômico, sobretudo das atividades agrícolas essenciais para o estado.
Por isso, sanear o ambiente e debelar as moléstias iriam tornar o trabalhador, seja o nativo ou o
imigrante, mais saudável e, portanto, mais produtivo. Nesse sentido, Abreu (ABREU, Jean Luiz
Neves, 2010, p. 8) notou que a política de saúde em Minas Gerais atendia, principalmente, as
regiões com valor econômico, isto é, com maior potencial de geração de riqueza. Assim as medidas
sanitárias foram primeiro aplicadas em regiões, como o Sul de Minas e a Zona da Mata, onde havia
a linha férrea e a agropecuária, sobretudo a produção de café, essencial para a economia mineira.
Nas localidades não contempladas com postos e centros de saúde, os sanitaristas faziam visitas,
redigiam relatórios anotando os problemas e surtos epidêmicos locais, realizavam atendimentos e
elaboravam planos de saneamento.

A cidade de Leopoldina no contexto da campanha do saneamento


A Zona da Mata mineira, desde a década de 1870, era a principal produtora de café de Minas
Gerais, respondendo por cerca de 60% da arrecadação da província (PINHEIRO, Fábio Wilson
Amaral, 2005, p. 1). A cafeicultura, baseada na mão de obra escrava, trouxe riqueza e prestígio para
a região, além de impulsionar a abertura de estradas e de ferrovias. Foi o caso da cidade de
Leopoldina, cujas fazendas de café asseguravam o fluxo de divisas, lançando as bases de seu
desenvolvimento econômico e social, o que atraia um número cada vez maior de pessoas,
imigrantes, mascates e comerciantes.
Entretanto, apesar de a cidade ser um importante centro econômico da Zona da Mata,
enfrentava sérios problemas que representavam um obstáculo para a manutenção do agronegócio e
do avanço do capitalismo. Tratavam-se das epidemias, surtos de doenças, o cólera e a varíola, que
faziam incontáveis vítimas. Paul Singer, ao analisar os problemas de saúde provocados pela
Revolução Industrial, enumerou três questões importantes:

Em primeiro lugar, elas [classes dominantes] não ficavam imunes às epidemias que
grassavam nos novos centros industriais. Em segundo lugar, as más condições de vida e
de saúde deveriam reduzir significativamente a produtividade do trabalho. E, em terceiro
lugar, a situação desesperadora em que se encontrava a classe operária era terreno fértil
para movimentos de revolta, que punham em perigo a ordem constituída. (SINGER, Paul,
1981. p. 21).
6
Esse argumento é de Keila Auxiliadora Carvalho, 2008, p. 106-114 citada por ABREU, Jean Luiz Neves, 2010, p.
12.
28

Embora Singer se refira à sociedade europeia industrial, acreditamos que seja possível
transpor sua análise e as questões que suscitou para uma sociedade rural e escravocrata, como a
leopoldinense, no século XIX. As doenças não escolhiam entre pobres e ricos, todos eram atingidos
por elas, direta ou indiretamente, independente da classe social. Além disso, as epidemias ceifavam
vidas e reduziam a mão de obra disponível, o que afetava o número de braços na lavoura e a
produtividade no campo. Por isso, houve a preocupação das elites locais em assegurar, através do
poder público, as mínimas condições sanitárias e higiênicas para que as epidemias fossem contidas,
sem prejuízo da reprodução da força de trabalho, seja ela escrava ou livre no período pós-1888.
Sanear a cidade seria, ao mesmo tempo, um meio de assegurar a manutenção da ordem vigente,
minimizando quaisquer distúrbios no modelo político e social dominante.
A respeito da mão de obra, essencial para a manutenção da riqueza e da expansão dos
negócios, Leopoldina e cidades vizinhas nutriam expectativas sobre a chegada dos imigrantes para
substituir o trabalho dos afrodescendentes na lavoura. O jornal O Leopoldinense, de 13 de janeiro
de 1895, publicou o seguinte:

Na semana ultima deviam ter chegado á Juiz de Fora 1200 immigrantes procedentes de
Genova. Ultimamente têm chegado diversas levas de imigrantes para o nosso Estado.
Infelizmente o terror espalhado pela epidemia reinante tem arrefecido de certo modo o
enthusiasmo com que os agricultores faziam os seus pedidos de sorte que nas hospedarias
têm permanecido grande numero de imigrantes, sem collocação em propriedades
agrícolas particulares.

A epidemia reinante era o “cholera”, que na época atacava as populações de São Paulo, Rio
de Janeiro e Minas Gerais. O referido jornal reproduziu um texto do delegado de higiene local que
alertava sobre a origem da doença, alegando que ela surge “das agglomerações, das collectividades
e são provoadas pela hygiene defeituosa e pela falta de asseio”. A “hygiene defeituosa” dos
aglomerados urbanos contribuía para o surgimento das doenças, com isso os imigrantes ficavam
aguardando na hospedaria de Juiz de Fora até o momento de serem distribuídos para as cidades
vizinhas, como Leopoldina, Muriaé e Carangola, importantes centros produtores de café. Outra
possível razão para a paralisação de imigrantes na hospedaria pode ser devido ao receio dos
proprietários de solicitarem imigrantes, pois estes também traziam consigo doenças, como tifo,
escarlatina e até mesmo o vibrião do cólera. O fato é que a política imigratória era importante para
os dirigentes de Leopoldina, tendo em vista que, no periódico O Leopoldinense7, foi noticiado que o
Estado, através do fiscal da imigração, iria adquirir o sítio de Jacarecanga, onde seria construída
uma hospedaria com capacidade para receber mil e duzentos imigrantes. Uma quantia substancial
de almas!
7
A edição em questão é o exemplar nº 65, ano XVI , 08 de setembro de 1895. p. 3. Disponível na Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional.
29

Analisando outros periódicos da época, fica nítido que as questões sanitárias preocupavam as
elites locais de Leopoldina desde o final do século XIX. Numa das edições do Correio de
Leopoldina8 encontramos uma nota intitulada “Medidas Urgentes”. No texto, o redator chefe
afirmava que o chefe do executivo municipal, recentemente eleito, iria multiplicar seus esforços
para melhorar as condições higiênicas da cidade. Para justificar o seu ponto de vista, o autor apelou
para um tom ameaçador, imposto pela morte, apresentado da seguinte forma:

A peste se approxima com todo o seu cortejo fúnebre; já nos bate ás portas
desapiedadamente: como um corvo maldito, fareja faminto e brutal a bem-aventurança da
família, onde agora cada um de nós vê a existência deslisando-se calma e tranquila, cheia
de paz e bem estar relativos (Correio de Leopoldina, 1895, p. 2).

O texto também cobra e recomenda que os recursos disponíveis na Câmara municipal sejam
aplicados de maneira inteligente em obras de esgotamento e na canalização das águas. Por último,
interessante realçar a associação que a matéria faz entre saúde pública e modernidade.

Transformemos a bella Leopoldina em uma cidade moderna, com todas as condições de


vida fácil e garantida. O saneamento se impõe como uma medida de salvação publica.
Cumpra a Camara esse dever imperioso e a sua missão está completa gloriosamente,
perante o municipio (Correio de Leopoldina, 1895, p.3).

No periódico O Leopoldinense9, estampava em sua primeira página que um importante


político local, o deputado Ribeiro Junqueira, membro de uma família de proprietários de terras,
havia apresentado um projeto de lei que autorizava o Estado a conceder empréstimos para os
municípios investirem em saneamento e se protegerem das epidemias reinantes. A nota concluía
com expectativa de que a medida fosse brevemente implementada: “Attendas as difficuldades com
que luctam algumas municipalidades – aliás ricas para operações d’esta naturesa, é uma medida util
e de todo ponto oportuna. Resta que se torne efficaz no mais curto praso possivel” (O
Leopoldinense, 1895, 1).
Numa edição anterior, O Leopoldinense10criticava a interrupção do tráfego na Estrada de
Ferro Leopoldina e menciona o transtorno decorrente do risco que a interrupção causaria no
abastecimento de gêneros para subsistência no município, uma vez que o trem e o comércio ficaram
parados, devido a um surto de virgula morbus (cólera). O periódico aproveitou para questionar o
governo estadual e sua política fiscal, que prejudicava a cidade.

8
O jornal analisado é a primeira edição. Correio de Leopoldina, nº 1, ano 1, 03 de janeiro de 1895. p. 2-3.
Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
9
Nos referimos à edição do jornal Leopoldinense, nº 51, ano XVI, 02 de junho de 1895. p. 1. Disponível na
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional.
10
O Leopoldinense, nº 38, ano XVI, 03 de fevereiro de 1895. p. 1. Disponível na Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional.
30

Alem de todas estas eventualidades, que bem podiam encontrar remédio em providencias
tomadas com criterio pelo governo do Estado, vemos o nosso municipio verdadeiramente
desanimado e acabrunhado com o peso terrivel que esmaga a sua principal classe
productora – a lavoura que está gemendo sob o aguilhão do imposto arrocho de 11 % e
actualmente está privada de obter os generos de que carece para seu desenvolvimento ( O
Leopoldinense, 1895, 1).

Há várias recomendações nos periódicos do final do século XIX as quais indicavam a


importância do saneamento da cidade e como se deveria tratar pessoas doentes, isolando-as do
convívio social. Em síntese, podemos depreender desses textos que investir em saneamento deveria
ser a prioridade do governo municipal, pois assim seria possível evitar as epidemias, ao mesmo
tempo em que se modernizaria a cidade, tornando-a livre de infortúnios e obstáculos, para que
seguisse rumo ao progresso. Além disso, as fontes indicam que a busca por imigrantes era uma
necessidade no município, e cabia aos periódicos acompanharem a situação dos imigrantes e
informar às elites locais sobre o fluxo da imigração. Sanear a cidade, além de um projeto
modernizador, era vital para assegurar a manutenção da mão de obra para a cafeicultura, bem como
conter as epidemias que matavam as pessoas indiscriminadamente, não importando a raça ou a
posição que ela ocupava na hierarquia social. Por fim, cabe destacar que a imigração também
atendia a um projeto que começou a ser desenhado logo após a independência do Brasil. Naquela
ocasião, o patriarca da independência, José Bonifácio de Andrada e Silva, confidenciava a um
diplomata britânico que o Brasil entendia ser importante incentivar a entrada de imigrantes brancos
para substituir gradativamente a escravidão. Já no início do século XX, a continuidade da imigração
europeia ia ao encontro do ideal de branqueamento do povo brasileiro (SCHWARCZ, 2001, p. 26-
7).
A questão da higiene pública na cidade, entretanto, não ficou restrita ao final dos oitocentos.
No limiar do século XX, os problemas relacionados à saúde pública em Leopoldina ainda não
tinham sido totalmente sanados. Os jornais continuavam noticiando casos de doenças
infectocontagiosas, como a varíola, atacando cidades próximas, mas os esforços da imprensa e das
lideranças políticas locais lograram êxito, pois, quando o estado de Minas Gerais aderiu à campanha
nacional do saneamento, Leopoldina foi uma das pioneiras a receber um posto de profilaxia rural. A
unidade local foi inaugurada no dia 18 de agosto de 1918 (LISBOA, Antônio Marcio Junqueira,
[s.d], p. 9), o que ocorreu porque a cidade tinha valor econômico, conforme mencionado nos já
citados trabalhos de Abreu (2009, 2010), destacadamente no setor do agronegócio, e também
devido à influência política em esfera estadual e nacional, por meio do deputado e depois senador
José Monteiro Ribeiro Junqueira (1871-1946).
31

Um dos médicos responsáveis pelo atendimento no posto local foi Irineu Lisbôa (1894-1986),
o qual se formou na primeira turma da Escola de Medicina de Belo Horizonte, nomeado para o
cargo por seu antigo professor e agora chefe da Diretoria de Higiene do estado – Samuel Libânio.
Lisbôa desembarcou em Leopoldina no dia 10 de agosto de 1918 e logo em seguida começou a
trabalhar. Dados levantados pelo movimento inicial do Posto de Profilaxia revelaram que mais de
80% dos pacientes examinados estavam contaminados com alguma verminose. A opilação atingia
55%, um percentual bastante elevado. A conhecida frase proferida pelo médico Miguel Pereira, em
1916, parecia refletir diretamente a realidade que afligia a população leopoldinense – a cidade era
um imenso hospital.
Mediante os diagnósticos, o Posto de Profilaxia agia oferecendo medicamentos e exames,
realizando visitas nas residências para inspeção, tanto nas áreas rurais quanto na urbana, fazendo
palestras na escola e executando campanhas de vacinação.
As campanhas de vacinação, medida fundamental na política de saúde do estado de Minas
Gerais, deveriam alcançar o maior número possível de pessoas. O jornal Gazeta de Leopoldina11,
ligado à família Ribeiro Junqueira, chamava a atenção de seus leitores para o surto de varíola que
ocorria no município de Caratinga, não muito distante da cidade. A publicação alertava para “o alto
grau de contagio do terrível “morbus”, que, quando não mata, deforma”, por isso seguia a nota:
“queremos crer que todos se esforçarão numa campanha de boa vontade para circunscrever o surto
ao local de seu aparecimento”. Finalizando o texto, só havia um meio de se evitar a doença:
vacinação.
Essas campanhas, conforme percebemos, contavam com a colaboração da imprensa local. O
jornal Gazeta de Leopoldina12 noticiou, alguns dias depois de alertar sobre o surto de varíola num
município próximo, que a vacinação antivariólica ocorreria no Posto de Higiene, mas poderia ser
levada, mediante requisição, às fábricas, aos estabelecimentos de ensino e a lugares onde habitavam
várias pessoas. Os distritos também seriam contemplados com a vacina.
O grande público também era alcançado pelo higienismo nas festas populares, como o
carnaval, quando o Posto de Hygiene municipal colocava nas ruas o carro alegórico intitulado
Guerra ao mosquito. A ideia de usar uma festa popular para conscientizar a população sobre os
riscos gerados pela mosca partiu da sensibilidade do médico Irineu Lisbôa e da relação de amizade
que estabeleceu com um grande artista local – Funchal Garcia (1889-1979), o qual certamente

11
Gazeta de Leopoldina, nº 69, ano XXXIX ,12 de julho de 1933. p. 1. Disponível na Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional.
12
Gazeta de Leopoldina, nº 72, ano XXXIX,15 de JULHO de 1933. p. 1. Disponível na Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional.
32

contribuiu para a concretização de tão inventiva ideia. A fotografia 13 abaixo, registrada no carnaval
de 1931, mostra a emblemática cena.
Fotografia nº 1

O carro alegórico trazia o mosquito Stegomyiafasciata ou Culex aegypti(Aedes), transmissor


da febre amarela, o inimigo da saúde do povo; numa atitude mórbida, estava posicionada uma
caveira humana, vítima da mosca; o médico, vestido de branco, em pé, com postura altiva e
redentora, representando a salvação pública.
Por fim, analisaremos uma última fonte iconográfica: uma fotografia 14 registrada em 1933.
Trata-se do registro imagético de um concurso de robustez infantil, promovido pelo Dr. Irineu
Lisbôa, no Centro de Saúde da cidade de Leopoldina.
Fotografia nº2

A imagem mostra dezenas de mães exibindo suas respectivas crianças. Acreditamos que tal
concurso possa ser interpretado como uma demonstração dos resultados favoráveis das políticas
sanitárias, uma vez que elas estavam associadas com a ideia de regenerar a raça brasileira,
tornando-a mais forte e saudável. As crianças nascidas de uma geração que viveu o saneamento
seriam eugenicamente menos suscetíveis às doenças venéreas e a desvios de conduta.
A eugenia era um aspecto presente no pensamento de alguns médicos-sanitaristas, uma vez
que sanear o meio ambiente e disseminar a cultura do higienismo entre os indivíduos poderiam ter
como resultado o fortalecimento e a cura da raça. Alguns sanitaristas acreditavam que as reformas
“eram capazes de melhorar as condições hereditárias da população, bem como combater certas

13
Fotografia disponível no site: < http://leopoldinense.com.br/noticia/965/dr-lisboa-e-funchal-garcia> Acesso em 26
nov. 2016.
14
Fotografia do Concurso de Robustez Infantil, Leopoldina (1933). Disponível on-line em: <
http://leopoldinense.com.br/noticia/6530/concurso-de-robustez-infantil> Acesso em 26 nov. 2016.
33

enfermidades que podiam levar à degeneração, como o alcoolismo” (ABREU, Jean Luiz Neves,
2010, p. 11).

Considerações finais
Vimos em nosso trabalho que a imigração europeia não se restringiu em trazer para o Brasil
apenas corpos para serem inseridos no mercado de trabalho. As ideias também migram, e os
dirigentes brasileiros, especialmente no período republicano, importaram da Europa conceitos,
como a higiene, a bacteriologia e a medicina social. A Europa era o modelo de civilização para o
mundo Ocidental, e o Brasil não fugiu à regra de buscar referências no “Velho Mundo”. Como
resultado, tivemos milhões de imigrantes europeus desembarcando no território nacional e se
deslocando, sobretudo, para as áreas produtoras de café na região centro-sul e também para as
cidades, como São Paulo e Rio de Janeiro, onde também se verificava um processo de
industrialização. No campo e nos aglomerados urbanos, havia uma carência referente às questões
higiênico-sanitárias, o que contribuía para provocar surtos de inúmeras doenças infectocontagiosas.
As doenças representavam um risco para as elites, os pobres morriam aos milhares, e sem mão de
obra, o projeto de inserção do Brasil na economia capitalista mundial ficava comprometido. Além
disso, o papel do governo federal era questionado: deveria intervir na questão da saúde pública ou
deixar tal incumbência para os entes federados e respeitar o pacto federativo da Constituição de
1891? A tendência intervencionista/centralizadora foi a opção.
Analisamos brevemente que o movimento sanitarista no Brasil se dividiu em duas fases
distintas: a primeira resumiu-se à higienização e ao saneamento das capitais, sobretudo Rio de
Janeiro e São Paulo; na segunda fase, o movimento marchou em direção aos sertões brasileiros,
adentrando a região norte e também os demais estados do sul do país. No desenrolar da segunda
fase do movimento, insere-se o estado de Minas Gerais, o qual aderiu à campanha nacional pelo
saneamento. Embora o serviço sanitário mineiro existisse desde o final do século XIX, foi só a
partir de 1920 que ele trouxe mudanças significativas na saúde pública mineira.
No município de Leopoldina, situado na Zona da Mata mineira, um importante centro
agroexportador, que contava com famílias ricas e influentes, sofria, desde o final do século XIX,
com as doenças, principalmente cólera e varíola. As enfermidades prejudicavam as atividades
comerciais, interrompiam o tráfego do trem, dificultavam o escoamento de mercadorias e
arrefeciam a entrada de imigrantes europeus nas fazendas que circundavam o município. Na
primeira década do século XX, quando a política nacional de saúde começou a entrar em vigor, a
cidade foi uma das primeiras, no estado, a ser beneficiada pelas políticas sanitárias, afinal ela estava
inserida numa região com valor econômico e contava com políticos influentes no cenário regional e
34

até nacional, caso de José Monteiro Ribeiro Junqueira, que foi deputado federal e senador por
Minas Gerais entre 1903 e 1937.
As fontes históricas levantadas e analisadas neste trabalho demonstraram que a imigração era
assunto recorrente nas páginas do principal periódico do final do século XIX circulante na cidade.
Os jornais também enfatizavam constantemente o quanto o saneamento era vital para a cidade e
para a manutenção da ordem e do poder econômico das elites locais. Tais fatos justificam-se,
provavelmente, devido à crença de que havia estreita associação entre imigração europeia,
saneamento, saúde e modernidade, esta podendo ser entendida como uma possibilidade de
desenvolvimento do capitalismo e da otimização dos negócios. Cabe realçar que, para os médicos-
sanitaristas, entretanto, sanear o ambiente ia além do controle de epidemias. Para muitos a medicina
social poderia regenerar a raça brasileira, fortalecendo o povo eugenicamente e reforçando sua
identidade nacional.
Enfim, ainda há muito por pesquisar, temos muitas perguntas que precisam de respostas, mas
pelos indícios que levantamos até aqui já colhemos provas suficientes para sustentar a afirmação de
que a imigração europeia e o movimento sanitarista foram significativos em Leopoldina e
provocaram impactos contundentes na organização da saúde pública e na cultura da sociedade local.

Fontes primárias

Correio de Leopoldina (1895); O Leopoldinense (1895,1896); Gazeta de Leopoldina (1933).

Fotografias: Disponíveis no site do jornal Leopoldinense. <http://leopoldinense.com.br/inicio>


Acesso em 27 de setembro de 2017.

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SCHWARCZ, Lilia Moritz. Racismo no Brasil. São Paulo: Publifolha, 2001.


Parte 2

As Grandes Migrações em debate: assistencialismo,


perseguições, identidades e políticas imigratórias
37

IMPACTOS DO NAZISMO EM JUIZ DE FORA/MG: PERSEGUIÇÃO CONTRA IMIGRANTES


ALEMÃES NO ESTADO NOVO

Lucas Henrique Dias*

Durante oito anos, as instituições políticas, culturais, policiais, jurídicas e econômicas foram
controladas de modo autoritário pelo Estado. Em 10 de novembro de 1937 foi publicada, no Diário
Oficial da União, a Nova Constituição, composta de vários elementos repressivos e garantindo
poder absoluto ao presidente Getúlio Vargas. A partir de sua promulgação, foi declarada situação de
emergência em todo território nacional, o que significava que era permitido ao Estado ordenar
prisões, exílio, invasão de domicílios e a legalização da censura de todas as formas de comunicação
(SANTOS, 2007, p.1). Era o início da última fase de seu primeiro governo. Foi um período
marcado pelo autoritarismo, que atingiu várias instituições e instâncias, ultrapassando o próprio
Estado: “forças fascistizantes assumem a ‘retórica do medo’, a mentira o cinismo e a violência
invadem o cotidiano do cidadão comum e, lembrando Arendt, rondam os sindicatos, as associações
e os partidos” (DUTRA, 1992, p.30).
Vargas passou a concentrar maiores poderes, redirecionando a economia e reestruturando o
Estado. O federalismo pré-30 foi definitivamente destruído, e diversos processos se intensificam no
país, tais como a urbanização, a industrialização, a diversificação da agricultura, entre outros. Se a
Era Vargas é considerada pela historiografia como uma ruptura em relação à República Velha,
caracterizada pelo predomínio político das oligarquias cafeicultoras e forte regionalismo, o Estado
Novo foi a centralização e o fortalecimento do executivo, o “clímax de todo um processo político
marcado por uma crise de poder” que se iniciou em 1930, onde os grupos em confronto não tinham
a capacidade de impor-se sobre os demais” (DINIZ, 1981, p.84).
Com a Revolução de 1930, o Brasil passa por profundas mudanças, entre elas, a centralização
política, caracterizada pela atuação do Estado no desenvolvimento do capitalismo nacional, tendo
por base a industrialização. A partir desse período, Getúlio Vargas, líder da revolução, domina o
cenário político nacional. Primeiro como chefe do governo provisório, que durou de 1930 a 1934,
depois como presidente eleito pela constituinte (1934-37) e estadista (1937-45). (Idem, p.82)
Eleito através de voto indireto, em julho de 1934, Getúlio Vargas deveria governar até 1938.
Entretanto, após a crise de 1929 (ROMANCINI, LAGO, 2007, p.98.), existia no Brasil “uma
desconfiança na capacidade da democracia liberal, conjugada ao capitalismo, oferecer alternativas
reais para o desenvolvimento do país” (2007, p.98). Neste cenário, duas ideologias políticas se
*
Advogado, Pós-Graduado em Direito e Processo do Trabalho, Mestrando do PPGH/Universo Niterói, Bolsista
Capes – e-mail: lucashdjf@icloud.com.
38

estruturavam: a primeira era a Ação Integralista Brasileira (AIB), surgida em 1932. Com estrutura
partidária e defendendo os interesses da classe média, era inspirada no fascismo italiano, cujos
integrantes eram conhecidos como “camisas-verdes” ou “galinhas-verdes” devido aos seus
uniformes e à forma como marchavam. A segunda era a Aliança Nacional Libertadora (ANL),
criada em março de 1935, liderada pelo Partido Comunista (PCB), e contrária ao governo.
Após perderem a legalidade, em agosto de 1927, militantes radicais do PCB optam por
insurgirem, dando início, em 23 de novembro de 1935, à Intentona Comunista, tentativa de golpe
contra o governo Vargas. O enfrentamento entre comunistas e integralistas contribuiu para que a
ANL se destacasse. O próprio Getúlio Vargas usou a Aliança Nacional para se fortalecer como
presidente, mas, depois, com a repressão policial, invadiu os diretórios e prendeu os líderes, levando
a ANL à clandestinidade. Segundo Romancini e Lago, o fracasso da Intentona Comunista “[...] abre
caminho para o autoritarismo do governo - a censura à imprensa torna-se normal, criam-se órgãos
de repressão política, o país vive em estado de sítio até junho de 1937, que conduziria à ditadura do
Estado Novo”.
Desde o início de seu governo, Getúlio Vargas se preocupou com a opinião pública, e para
isso, criou um órgão oficial para fiscalização e controle das informações divulgadas, o
Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), (SANTOS, 2007, p.3).
As origens do DIP remetem a 1931, quando foi criado o Departamento Oficial de Publicidade
(DOP). Em 1934, surgia o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural (DPDC). Em 1938, o
DPDC se tornou Departamento Nacional de Propaganda (DNP), finalmente chegando ao DIP, em
dezembro de 1939. O DIP era estruturado em cinco divisões (divulgação, rádio, teatro, cinema e
imprensa) e visava à popularização da imagem de Vargas entre as camadas mais pobres da
população, além do controle do conteúdo dos meios de comunicação massivos.
Em 1940, a fim de ter maior controle sobre as instituições de comunicação, o Governo
Federal instala o Departamento Estadual de Propaganda e Imprensa (DEIP), responsável pela
censura nos estados. A finalidade deste órgão era avaliar o conteúdo dos meios de comunicação,
segundo a versão oficial e orientar os membros do movimento integralista sobre táticas de combate
ao Comunismo. Aproveitando-se da comoção popular causada pelo fato e da instabilidade política
gerada, Vargas instaurou, às 20 horas de terça-feira, 10 de novembro de 1937, o Estado Novo, com
um pronunciamento transmitido nacionalmente no programa radiofônico “Hora do Brasil”.
Essa constituição ditatorial promulgada por Getúlio Vargas como narra Dulce Pandolfi, é
inspirada na Constituição de Weimar (1919) e na Constituição da Áustria (1920), que tinha por
objetivo centralizar o poder e neutralizar a representação política (PANDOLFI, 1989, p.29.), o que
efetivamente se concretizou.
39

No Estado Novo, o país passou por uma crise de identidade, durante a qual houve mudanças
na economia, na política e na cultura. Após o golpe, foi instituída a Lei de Segurança Nacional, que
permitia ao governo prender qualquer pessoa sem mandato judicial e antes que fosse verificada sua
culpa. Muitos inimigos políticos de Getúlio foram aprisionados e torturados, alguns até a morte e
sem direito à defesa. A pena de morte passou a existir e a liberdade de imprensa foi abolida
(SANTOS, 2007, p.3.).
O Estado Novo oficialmente instaurado no Brasil em novembro de 1937 permaneceu como
regime político e ideológico até 1945, com a deposição de Getúlio Vargas da presidência e término
da Segunda Guerra Mundial. A ideologia política do Estado de Vargas seguiu uma tendência
política da época que propiciou a emergência de regimes autoritários em várias partes do mundo,
firmados basicamente sob dois aspectos fundamentais: a crise do sistema liberal e o crescimento do
comunismo. (MACEDO, 2007, p.123.)
Eric Hobsbawn destaca que a ascensão da direita radical após a Primeira Guerra Mundial foi
uma resposta à realidade da revolução social, pois sem esta, não teria havido fascismo algum
(HOBSBAWM, 1995, p.119). Com Adolf Hitler subindo ao poder na Alemanha em 1933, o
fascismo é transformado em uma forte corrente política que dominou a nível mundial, a década de
1930.
O sucesso da sua política expansionista militar conseguiu garantir a sua esfera de influência
naqueles países ou movimentos atraídos e influenciados pelo fascismo da Alemanha e Itália,
buscando inclusive, o apoio dos mesmos (Idem. p. 121). Portanto sabe-se que Getúlio Vargas e
demais autoridades do governo brasileiro não escondiam sua simpatia aos fascismos europeus.

Na America Latina é que a influência fascista européia foi aberta e reconhecida, tanto em
políticos individuais, como por exemplo, Jorge Eliezer Gaitán da Colômbia (1989-1948)
e Juan Domingo Perón da Argentina (1895-1974), quanto em regimes, como o Estado
Novo de Getúlio Vargas, de 1937 a 1945, no Brasil. Na verdade, apesar de infundados
temores americanos de um cerco nazista a partir do Sul, o principal efeito da influência
fascista na America Latina foi interno a seus países (HOBSBAWN, 1995).

Esses movimentos nacionalistas difundidos em alguns países da Europa como Itália e


Alemanha nas décadas de 1920 e 1930, foram incorporados e endossados por intelectuais brasileiros
da época, quando se buscou construir conceitos como brasilidade, nacionalidade e cidadania
(MACEDO, 2007), no intuito de construir uma identidade brasileira, homogeneizando e
consolidando uma cultura própria.
Alcir Lenharo destaca que os intelectuais do governo de Vargas, como Cassiano Ricardo,
procurou discursos na época que visavam enfatizar a necessidade da “interiorização do país”, ou
seja, era no oeste, no interior do Brasil, que os valores de brasilidade iriam adquirir idéias contrárias
40

à nacionalização - unificando e integrando o espaço físico e os cidadãos no intuito de construir o


sentimento de ser brasileiro através da unidade étnico-cultural, econômica e política. Era no interior
do país que iria ser encontrada a miscigenação entre índios, brancos e negros, a qualidade natural da
Nação, ou seja, na mistura de raças estaria o verdadeiro brasileiro. Por isso, aquele estrangeiro que
não havia se integrado à sociedade brasileira, não aderindo à miscigenação e mantendo sua cultura,
passou a representar uma ameaça a construção da brasilidade pretendida pelo Estado Brasileiro
(LENHARO, 1986, p. 53).
Esse tema de miscigenação e assimilação dos imigrantes e seus descendentes á sociedade
nacional estão presentes na discussão sobre política imigratória e a formação (racial/étnica)
brasileira desde meados do século XIX (SEYFERT, 1999, p.67). Essa necessidade de integração,
assimilação e caldeamento dos identificáveis como alienígenas ou estrangeiros – categorias que,
remetem a indivíduos que não nasceram no país (mesmo quando naturalizados) e aos descendentes
de imigrantes portadores de identidades étnicas consideradas incompatíveis com o pertencimento à
nação –, porém tornou-se urgente questão de segurança nacional na década de 1930 (Idem.).
A legislação da Primeira República acerca da imigração estava apenas preocupada com a
questão econômica, do “imigrante-trabalho” e na ocupação do solo (VIANA, 1991, p.383.), ou seja,
procurava apenas o sujeito competente para um determinado fazer. Por isso, descuidou das questões
culturais e lingüísticas que se relacionavam ao tema da nacionalidade: a legislação brasileira do
governo anterior foi considerada “sem nenhuma atenção à sua qualidade do imigrante como
elemento plasmador da nacionalidade brasileira” (Idem, p.384). Nesse contexto notamos que num
primeiro momento que a imigração estava preocupada apenas com a força do trabalho, não com a
assimilação ou branqueamento da população nacional, o que já se muda após o governo e mudança
de valores nacionais de Getúlio. Após a política de Vargas, essa idéia muda para uma valorização
do nacional sobre o estrangeiro, enaltecendo lideres e heróis nacionais, fazendo uma aculturação
daqueles imigrantes que mantinham sua cultura teuta em solo brasileiro.
Em outras palavras, o governo da Primeira República não teria atentado para o fato de que os
imigrantes contribuiriam para a formação da nacionalidade brasileira, por estar apenas preocupado
com a questão econômica e populacional do imigrante, foi se preocupar após os mesmos formarem
quistos étnicos/culturais em diversas regiões do país. Por isso, a política de imigração do império,
anterior ao governo Vargas que estimulava a imigração em massa, não se preocupava com o fato de
certos grupos imigrantes serem portadores de uma cultura tão diferente da brasileira a ponto de se
reunirem em núcleos coloniais homogêneos para preservar sua tradição, sua religião, seus costumes
e sua língua, exemplo claro dos imigrantes alemães. Por isso, na Primeira República, havia apenas a
preocupação de impedir a entrada de “elementos caco gênicos ou disgênicos” (Idem, p. 385), ou
41

seja, para o governo anterior, só interessava a entrada de imigrantes sadios e aptos para o trabalho
no campo e nas cidades.
O governo da Era Vargas deveria reelaborar os valores nacionais. Restaria ao governo Vargas
fazer alterações na legislação imigratória para promover a integração dos imigrantes na sociedade
brasileira. Essa integração seria a única maneira de os imigrantes deixarem de ser considerados uma
ameaça à homogeneidade nacional, ou seja, como indesejáveis ou inimigos potenciais. Era,
portanto, inadmissível a manutenção dos traços estrangeiros e estranhos nos núcleos coloniais
porque poderia haver uma “deturpação” no caráter nacional do Brasil, isto é, do objeto de valor a
ser construído. Além disso, o Estado brasileiro, que acolheu os imigrantes, deveria ser soberano em
relação a eles, ou seja, não era o país que deveria aceitar elementos e valores estrangeiros em seu
próprio solo, mas sim os imigrantes é que deveriam aceitar e acatar os valores brasileiros (BUENO,
Alexandre Marcelo. O estado novo e sua relação com os imigrantes: a língua como defesa dos
valores nacionais. Estudos Semióticos. Disponível em: <http://www.fflch.usp.br/dl/semiotica/es>.
Acesso em 25/04/2017).
A repressão aos teuto-brasileiros conforme Gertz iniciou-se com o Decreto-Lei 383, de abril
de 1938, de Vargas, mas se intensificou com o alinhamento brasileiro aos aliados em 1942, após o
afundamento de navios brasileiros e a declaração de guerra entre o Brasil e a Alemanha (GERTZ,
1991, p.75). Estes se traduziam através da intervenção do Estado em associações e instituições
recreativas, escolas, imprensa estrangeira, e através também da repressão ao uso da língua
estrangeira e proibindo manifestações em grupos. Dessa forma, elementos identificáveis de uma
identidade étnica teuto-brasileira passaram a ser alvo dessa campanha (SEYFERT, 1999, p.89).
O governo ditatorial do Estado Novo foi marcado pelo autoritarismo e pela repressão a grupos
de imigrantes e seus descendentes como exemplo dos Japoneses, Alemães e os Judeus, que fugiam
da guerra, contra qualquer tipo de manifestação e idéias que não se condiziam ao discurso oficial do
Estado Novo que era a valorização do nacional sobre o estrangeiro, e também da forte política de
nacionalização em nome da cultura pátria. Em nome da “segurança nacional”, foi criado um todo
sistema jurídico-social, com a criação de Decretos Lei e órgãos do Estado para manter o controle
sob os indivíduos, estrangeiros, nacionais, e submetê-los á tutela do Estado. A intensificação das
atividades das chamadas Delegacias de Ordem Política e Social (DOPS) consolidou um sistema de
vigilância, controle e repressão necessário à sobrevivência do Estado Novo. Assim, os imaginários
sociais estiveram expostos aos “mitos” criados para inaugurar modelos exemplares de
comportamentos (CARNEIRO, SILVA, GONÇALVES, SARMIENTO, 2014, p.19).
A política de nacionalização, e seus meios de controle e repressão criados por Vargas ao
longo do governo ditatorial, para o manejo dos imigrantes indesejáveis, precisavam de legitimidade,
42

perante questionamentos da população, então se cria essa legitimidade usando mitos políticos,
inflamando a população a respeito dessa segurança nacional. Podemos afirmar então que segundo
Carneiro, durante os anos em que o Brasil vivenciou regimes ditatoriais, uma série de mitos
garantiu a manutenção de determinado grupo ao poder (Idem. p.20).

[...] persistiu o mito da nacionalidade (ou da brasilidade), anulando a dimensão individual


do cidadão e integrando-o no corpo da Nação. E aqueles que não se enquadravam no
modelo idealizado pelo regime eram rotulados de indesejáveis e, como tais, vigiados,
perseguidos, presos e eliminados (Idem. p.21).

Segundo Érica Sarmiento, o Decreto-lei n.383, de 1938, que proibia a prática de atividades
políticas por parte de estrangeiros no Brasil, era o instrumento perfeito para o Estado vigiar e
perseguir os elementos prejudiciais. O imigrante apenas interessava quando vinha compactuar com
a criação de uma identidade nacional, sendo partícipe e colaborador na construção do futuro
trabalhador brasileiro (SARMIENTO, VIANNA, SILVA, GONÇALVES, 2014, p.111).

Decreto Lei n°383 de 1938: Veda estrangeiros da atividade política no Brasil


Art. 1º Os estrangeiros fixados no território nacional e os que nele se acham em caráter
temporário não podem exercer qualquer atividade de natureza política nem imiscuir-se,
direta ou indiretamente, nos negócios públicos do país.

Com essa legislação autoritária, Vargas tinha amplo controle dos estrangeiros fixados no
território nacional, mesmo que em caráter temporário. Visando a segurança política de vigiar e
perseguir os elementos prejudiciais, proibiu qualquer atividade de natureza governante desses
imigrantes, direta ou indiretamente, nos negócios públicos do país, de modo a excluir então esses
imigrantes do cenário político nacional e internacional, já que qualquer propaganda organizacional
internacional também era vedada, vejamos:

Art. 2º É-lhes vedado especialmente:


1- Organizar, criar ou manter sociedades, fundações, companhias, clubes e quaisquer
estabelecimentos de caráter político, ainda que tenham por fim exclusivo a propaganda ou
difusão, entre os seus compatriotas, de idéias, programas ou
normas de ação de partidos políticos do país de origem. A mesma proibição estende-se ao
funcionamento de sucursais e filiais, ou de delegados, prepostos, representantes e agentes
de sociedades, fundações, companhias, clubes e quaisquer estabelecimentos dessa
natureza que tenham no estrangeiro a sua sede principal ou a sua direção.
2- Exercer ação individual junto a compatriotas no sentido de, mediante promessa de
vantagens, ou ameaça de prejuízo ou constrangimento de qualquer natureza, obter
adesões a idéias ou programas de partidos políticos do país de origem.
3- Hastear, ostentar ou usar bandeiras, flâmulas e estandartes, uniformes, distintivos,
insígnias ou quaisquer símbolos de partido político estrangeiro.

Um exemplo claro da utilização desse decreto como meio de repressão e controle de


estrangeiros possivelmente perigosos, foi o fechamento do Centro Galego. Fundado em 1900, um
43

espaço de sociabilidade e da identidade galega no cotidiano carioca, em 1942 por Vargas


(SARMIENTO, VIANNA, SILVA, GONÇALVES, 2014, p.114).
Com o decreto em vigor e a campanha de nacionalização, Vargas conseguiu alterar a imagem
do povo alemão visto ora como “raça forte”, para a de um “alienígena” perigoso ao Brasil, que
estava aliado aos países do Eixo, e que representava perigo à sociedade. Portanto, todas as
manifestações culturais, mesmo daqueles imigrantes ou descendentes que já residiam no Brasil, e
sem nenhum envolvimento com os países do Eixo, fossem descobertas, esses seriam levados a
prisões, interrogatórios e outros meios de repressão e controle.
Segundo Roberto Dilly, esta perseguição representa uma grande mágoa para aqueles que
adotaram o Brasil como lar, pois mesmo com alto número de imigrantes nascidos na Alemanha,
estimados em 89.071 pessoas, apenas 2.822 eram filiadas ao partido nazista no Brasil durante a sua
existência em solo brasileiro. Os alemães foram proibidos de participar do carnaval, eram levados
como prisioneiros de guerra caso algo fosse suspeito, e isolados em presídios ou em verdadeiros
campos de internamento espalhados pelo país inteiro. Para a Alemanha, antes com uma boa relação
com o Brasil, a influência da presente postura era ‘’estadunidense-judaica’’, na clara mudança de
comportamento brasileiro (GERTZ, 1987, pp. 78-79).
O Estado Novo passa a associar traços culturais como uma ameaça em potencial. Segundo
René Gertz ‘’ qualquer traço cultural podia ser aproveitado na tentativa de comprovar nazismo entre
os teutos’’ (GERTZ, 1987, pág. 101). Com isso a integração ao nacionalismo brasileiro foi forçada
aos alemães e seus descendentes, o idioma, antes predominante entre os imigrantes, hoje é falado
somente pelas gerações mais antigas, vários descendentes não chegaram a conhecer a sua história,
por proibição e perseguição, gerando danos irreparáveis a esses cidadãos (Idem, pp. 121).

A construção da idéia do “Perigo Alemão”


Verdadeiro ou falso, o “perigo alemão” foi um discurso construído por intelectuais,
autoridades nacionais e internacionais acerca do temor de uma respectiva investida político-militar
do governo alemão que pretendia transformar o Brasil e a América do Sul numa área de domínio da
Alemanha. Acreditava-se que essas colônias alemãs no sul do Brasil fossem ser a porta de entrada
para esta respectiva invasão alemã.
Colocados numa condição “superior” referente a outras etnias, os alemães assumiram para
intelectualidade brasileira da época, uma posição ambígua (PERAZZO, 1999, p. 278),ou seja, era a
etnia vista pelo governo brasileiro como exemplo a ser seguida, a “raça forte”, de valores
disciplinados, trabalhador, de nacionalismo exacerbado, de cultura fechada que não permitia
influências de outras. Em contraponto a isto, esses fatores acima mencionados e positivados pelo
44

discurso do governo de Vargas, referente aos alemães, tomaram ao mesmo tempo outros contornos,
e se transformaram em um dos principais problemas a ser combatido pela campanha de
nacionalização do Estado Novo, ou seja, representava estes à política interna brasileira um “perigo”
ao projeto nacionalista de Getulio, que buscava construir uma identidade nacional, pois esse
estrangeiro além de supervalorizar a sua cultura em pleno solo brasileiro, preferia o isolamento, e
agia politicamente aos moldes de um regime estrangeiro (Idem, p. 279).
Em âmbito internacional os alemães também foram identificados como ”perigosos”, pois os
planos expansionistas de Hitler e o nacionalismo alemão exarcebado davam margem a esta hipótese
de “perigo”, numa possível invasão alemã, além da empreitada norte-americana contra o nazi-
fascismo.
Segundo René Gertz, a idéia do mito de “perigo alemão” reavivado durante o Estado Novo
estava vinculada ao contexto internacional da época e se constituiu a partir de alguns aspectos: os
próprios desacordos diplomáticos entre Brasil e Alemanha em 1938 (Idem, p.63); a campanha dos
norte-americanos e ingleses para cooptar o Brasil para sua área de influência já que esta última
ocupava uma posição de neutralidade, e também referente à sua estratégica posição geográfica que
despertava interesses daqueles países; além da propaganda dos Estados Unidos da América e da
Inglaterra alegando o “perigo” que representavam os alemães e seus descendentes residentes no sul
do Brasil (Idem, p 67-68).
O Brasil visava estabelecer uma política de desenvolvimento industrial que alterasse os males
da tradicional “vocação agrária”. O governo brasileiro voltou-se para barganhar vantagens em
termos de política externa. Como boa parte das arrecadações nacionais era apurada pela exportação
de produtos primários e alimentares tais como café, o açúcar, o cacau, o fumo, o couro e o algodão,
estabilizar um balanço de pagamento vencendo os desequilíbrios dos choques externos passou a
exigir do governo pragmatismo no encaminhamento das decisões de acordos diplomáticos para
garantir relações favoráveis no comercio internacional. As parcerias comerciais compensadas com a
crescente participação da Alemanha e a influência da política de boa vizinhança e do pan-
americanismo dos Estados Unidos no comercio recíproco foram exemplares nesse sentido.
Conforme René Gertz, a ascensão do nazismo na Alemanha nos anos 1930 em acordo com
sua política expansionista, “apenas reavivou sentimentos e posicionamentos que tinham uma longa
tradição”, ou seja, a idéia de “perigo alemão”. Desde o século XIX já havia embates e temores por
parte de intelectuais brasileiros a respeito dos supostos planos conspiratórios arquitetados pela
Alemanha e os imigrantes e seus descendentes na pretensão de construir um Estado independente
do Brasil. Um dos fatores que davam margem a este “perigo” era em relação ao grande contingente
de imigrantes e descendentes de alemães no país. Portanto, esse cenário que se constituiu em torno
45

da presença do alemão no Brasil, surgiu serias ameaças político-militares a este último. (1999, pág.
24-74)
Importante salientar que a questão do “perigo alemão” ganhou fortes contornos nos tempos da
Primeira e Segunda Guerra Mundial, pois nas duas situações esses discursos pareciam possíveis de
se concretizarem, principalmente durante a Segunda Guerra, quando as propostas imperialistas e
nacionalistas do governo de Hitler pareciam fáceis de serem colocados em pratica (PERAZZO,
1999, pág. 50).
Segundo Marionilde Magalhães, o alemão assumiu para os intelectuais do Brasil uma
condição ambígua, ou seja,

[...] diante do “alemão, fosse ele um imigrante, simples trabalhador ou mesmo um


intelectual; forte, disciplinado, membro de uma raça superior, despertaria a admiração nas
elites ávidas pelo progresso, mas causaria lhes também uma espécie de aversão, (...) alem
disso, esse alemão estava isolado, segundo os olhares de uma cultura pensada como
mestiça, sem seus próprios valores e costumes; era, enfim o eterno estrangeiro [...]
(MAGALHÃES, 1998, p.53).

Com o apoio do governo imperial, a imigração européia foi num primeiro momento
incentivada com o intuito de branqueamento da população e povoamento de algumas regiões do
vasto território brasileiro. No entanto, com a Proclamação da Republica, em 1889, num surto de
nacionalismo no país, intelectuais passaram a preocupar-se com a formação de uma nação étnico-
religiosa brasileira, deixando a valorização aos imigrantes de lado. E agora com Vargas temos ainda
mais um ambiente tenso em relação à política imigratória.
A imigração e as colônias constituídas por descendentes e imigrantes principalmente de
origem alemã, antes vista com bons olhos pelo governo, passa a ser tema central de inúmeras
tensões referentes à sua dificuldade de integrar-se a sociedade brasileira, assim como a assimilação
de outras culturas que não fosse a sua, passando a representar deste modo, uma preocupação ao
governo, pois além de isolar-se em suas colônias e supervalorizar sua própria cultura, não promovia
o branqueamento pretendido pelas autoridades, atrapalhando os planos de formação de uma nação
(MENDES, 2009, pp. 39-40).
Segundo Luiz Felipe Falcão, esse modelo de nacionalidade alemão baseado no vinculo
sanguíneo tomando como base a língua e a cultura como fator de identidade étnica, chocava-se de
frente com a idéia predominante entre os intelectuais brasileiros que entendiam que o pertencimento
à nacionalidade brasileira deveria se pautar sobre os seguintes aspectos: era pertencente a nação
brasileira, todos aqueles indivíduos nascidos em solo nacional ( jus solis), unidos por um Estado,
uma única língua e por tradições culturais em comum. Nesse sentido, a propaganda pangermânica
contribuiu ainda mais para a rivalidade étnica entre brasileiros e alemães. (FALCÃO, 2000,pág. 64)
46

Diante do exposto fica evidente que a idéia de “perigo alemão” no Brasil, não foi uma
criação dos tempos da Segunda Guerra Mundial, mas apenas reavivada nesse período.

A crise que envolveu as regiões de colonização alemã no Brasil no período


imediatamente anterior a II Guerra Mundial explica-se em grande medida a partir do
contexto internacional. Correntes internas que por diversos motivos se posicionavam
contra a Alemanha também combatiam tudo aquilo que lembrasse este país, por exemplo,
os imigrantes e seus descendentes (GERTZ, 1987, pág. 56).

Assim, foi no contexto da campanha de nacionalização do Estado e durante a Segunda Guerra


Mundial que o “perigo alemão” ganhou novos contornos. Parecia, definitivamente, que esses
“alienígenas”, como eram chamados, representavam uma ameaça política- militar no Brasil.
Encontrou nesse discurso também um pano de fundo para empreender um maior acirramento sobre
os alemães e seus descendentes, resultando muitas das vezes em prisões e confinamentos em várias
partes do Brasil. Vale mencionar também que essa campanha contra alemães aplicava-se ao
contexto internacional, quando o governo brasileiro usou da reclusão destes indesejáveis nacionais
como um elemento de negociação com os aliados, principalmente os Estados Unidos da América.
Nesse contexto tentamos portanto elucidar como idéia do “perigo alemão” foi se cristalizando
no imaginário intelectual do país, saindo de uma esfera que envolvia muito mais tensões entre
intelectualidade e autoridades governamentais brasileiras em relação à imprensa, lideranças e
autoridades das comunidades alemãs no Brasil, mas que num momento posterior, mais
precisamente no período das duas guerras mundiais, quando atingiu todas as esferas da sociedade,
tanto a nível nacional quando a nível mundial. Todas as investidas políticas anti-germânicas foram
tomadas, colocando estes indivíduos de origem alemã na condição de “inimigos públicos”, inimigos
estes que deviam ser combatidos.

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___________. Diário oficial da União - Seção 1 – 19/04/1938, pág. 7357 (Publicação Original)
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SEYFERT, Giralda. Os imigrantes e a campanha de nacionalização do Estado Novo. Rio de Janeiro:


Ed. FGV,1999.
48

RELATOS DE VIDA DE IMIGRANTES ESPANHÓIS NO RIO DE JANEIRO

Miriam Barros Dias da Silva*

Introdução
É notório que muitos imigrantes chegaram ao Brasil no período em que grandes
transformações aconteciam no Rio de Janeiro: o fim da escravidão e a queda da produção cafeeira
no Vale do Paraíba. Os primeiros investimentos feitos por eles foram em pequenas lojas como
botequins, secos e molhados, armarinhos, hospedarias, restaurantes, dentre outros. A maioria dos
imigrantes espanhóis no Rio de Janeiro eram da região da Galícia, e no caso da imigração galega,
há uma peculiaridade que é a organização familiar camponesa, na qual em seus minifúndios
desenvolviam uma agricultura de subsistência capaz de custear os gastos das viagens. Por isso,
muitos galegos não dependeram da política das passagens subvencionadas pelo Estado, porque
eram baseadas numa imigração espontânea através de laços de parentesco e de cadeias migratórias1.
Diante do quadro exposto, o objetivo geral deste artigo é conhecer algumas experiências
vivenciadas por imigrantes espanhóis que chegaram ao Rio de Janeiro, durante o período entre 1940
e 1970, e, para isso, foram realizadas algumas entrevistas com imigrantes que freqüentam o Centro
Social de Mayores, da Casa de Espanha do Rio de Janeiro. Por meio da História Oral, pretende-se
relatar a história do cotidiano e a experiência individual de cada imigrante entrevistado no Centro
Social de Mayores. O que se almeja é identificar nas lembranças individuais os fatos mais
repetitivos, buscando uma base comum em cada história e em cada memória: o modo de pensar, de
sentir, as semelhanças entre os motivos que o levaram a imigrar, o período de adaptação, as relações
sociais e a nova vida na cidade do Rio de Janeiro. A fonte oral tem como suporte as lembranças
que ajudam a reconstruir um passado recente, a partir de pontos de vista diferentes ou opostos
sobre o mesmo fato.
A Nova História está preocupada com a grande massa de anônimos, onde o indivíduo comum
e desconhecido pode ser o portador de conhecimentos mais amplos e complexos de uma sociedade.
E esta seria a maior potencialidade deste tipo de fonte; resgatar o indivíduo como sujeito no
processo histórico, pois ele experimentou e vivenciou fatos ocorridos no passado.

*
Mestre em História do Brasil, UNIVERSO. E-mail: barros.miriam@yahoo.com.br
1
Em 1960, surge o termo cadeia migratória, definido por Oswaldo Truzzi como migrações em cadeia que surgem
como um modo natural de desenvolvimento de um fluxo migratório para aqueles que não são pioneiros, os
desbravadores de um novo destino (TRUZZI,2008,p.201).
49

A Guerra Civil espanhola e a imigração.


A Guerra Civil espanhola (1936-1939) ocorreu durante a expansão das doutrinas totalitárias
na Europa. Neste conflito, o general Francisco Franco obteve apoio de grupos que representavam as
mais tradicionais instituições da sociedade espanhola, como a Igreja Católica, os latifundiários e o
Exército. O general Franco ainda contava com uma decisiva ajuda externa dos governos alemão e
italiano, que a qual foi um dos ingredientes da vitória de Franco: “Aviones franquistas llegaron a
bombardear com pan blanco algunas ciudades republicanas para demostrar su superioridad nutritiva
y desmoralizar la resistencia adversária” (CORTÁZAR, 1993, p.582). Portanto, pode-se afirmar
que a Guerra Civil contribuiu para o aumento da fome na população espanhola.
Alícia Ocampo Fernandez é uma imigrante galega que aos oito anos de idade, ao lado de sua
mãe, embarcou em um navio para o Brasil em 25 de fevereiro de 1959. Ela contou que a sua família
morava na província de Pontevedra, na Galícia, e que naquela época a vida na roça não era fácil,
pois não tinha água encanada e o fogão e o banheiro ficavam do lado de fora da casa. Por causa da
Guerra-Civil espanhola, a sua família vivenciou um período muito difícil e, para tentar melhorar às
condições de vida de seus entes queridos, o seu pai decidiu deixar a Espanha. Ao lado de alguns
amigos, ele embarcou em uma viagem, cujo destino era o Brasil. Alícia Ocampo Fernandez contou
que a distância gerou muita preocupação e sofrimento.

Assim que chegou ao Brasil meu pai logo arrumou um emprego. Ele trabalhava muito e
sempre se preocupava com a família, e para tentar amenizar o nosso sofrimento, sempre
que podia enviava para a Espanha uma ajuda financeira, peças de roupas e alimentos
como café e pêssego em caldas.2

Foi um período onde houve o racionamento de alimentos e as cadernetas de distribuição de


rações mínimas. Quando ainda era pequena, a espanhola Concepción Estevez Vazquez vivenciou
este período de racionamento de alimentos durante o período do franquismo e, em suas palavras, ela
diz que:

Eu me lembro, tipo assim, sabe as lembranças que eu tenho era que as coisas eram
racionadas. Só dava 1 kg de açúcar. Isso eu me lembro. Eu era pequena. Era 1 kg de
açúcar e aquilo tinha que render não sei por quanto tempo. E pão, era tudo racionado.
Entendeu? Foi uma época muito triste. Muito triste! Minha mãe tinha que fazer uma
tortilla e dividir para cinco filhos. Era um pão e, em casa quando tinha banana era uma
festa. Dividiam a banana para dois ou três. 3

2
Alicia Ocampo Fernandez em 28/01/2015, concedida à Miriam Barros Dias da Silva e Washington Luiz Pereira no
Centro Social de Mayores ( CSM) da Casa de Espanha do Rio de Janeiro, para o Laboratório de Estudos de
Imigração (LABIMI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro ( UERJ).
3
Concepción Estevez Vasquez, concedida em 21/01/2015, à Érica Sarmiento e a Miriam Barros Dias da Silva no
CSM da Casa de Espanha do Rio de Janeiro, para o LABIMI/UERJ.
50

De acordo com o depoimento da imigrante Manuela Lorenzo Losada , em relação ao período


do franquismo, as pessoas que não tinham terra, que não eram da roça, passavam muita fome na
Espanha. Ela ainda mencionou que o seu pai, Francisco Lorenzo Lache, mesmo tendo mais de 20
anos de idade foi convocado para a Guerra Civil para trabalhar em um hospital. 4
Infere-se que algumas famílias que moravam na roça e tinham uma área para o plantio,
conseguiam viver em condições melhores do que aquelas que nada podiam plantar, como é o caso
da família de Concepción Estevez Vazquez que não podia cultivar alimentos na terra, porque na
época a propriedade foi transferida para um tio quando os seus avós foram morar com ele.
O sofrimento da população espanhola foi tão grande que muitos decidiram partir para outros
países iniciando assim, o segundo ciclo imigratório (1940-1970). A família da imigrante Otilia
Gonzalez Martinez, de Pontevedra, é mais um exemplo de espanhóis que imigraram. Eles
desfrutavam de uma vida estável na Espanha, seu pai era canteiro, trabalhava criando estátuas de
pedras para cemitérios e ainda possuía um serviço extra no campo. Sua família chegou a ter uma
empregada doméstica. Mas durante a guerra civil, as dificuldades surgiram, e seu pai viajou sozinho
para o Brasil. Posteriormente, ela imigrou para o Rio de Janeiro em 03 de março de 1959, onde
trabalhou como copeira “francesa”.

Eu lembro de uma vida difícil na época do franquismo, porque meu papai já estava no
Brasil. E nós somos do interior, do campo. E tínhamos que trabalhar com a nossa mãe no
campo. Então, perdemos muita coisa, por culpa do papai por já está no Brasil. E veio
procurar uma situação melhor, porque lá estava uma situação difícil. Por culpa da política
que eu não sei nem te explicar e nem quero. 5

A forma como as palavras foram ditas e como o assunto foi cortado, deixou uma impressão
que este foi um período triste para a espanhola Otilia Gonzalez Martinez e sua família. Ela até
chega a culpar o pai por algumas perdas, mas depois comenta que a política no país não ajudava
muito. O estudo migratório quando utiliza uma fonte de origem pessoal esbarra na questão da
memória subjetiva, das experiências vividas e do testemunho oral de alguém que foi protagonista do
processo histórico. Mas, devolver a voz a estes protagonistas é, sem dúvida, um requisito para se
compreender melhor algumas faces obscuras tanto na individual quanto na coletiva (NÚNEZ, 2005,
p.483).
A reação de Otilia Gonzalez Martinez nos traz uma problemática que é o mal do passado. Em
algumas pessoas certos acontecimentos podem provocar muitos sentimentos ambivalentes e,
4
Manuela Lorenzo Losada em 04/02/2015, 1ª entrevista concedida à Miriam Barros Dias da Silva no CSM da
Casa de Espanha do Rio de Janeiro para o LABIMI/UERJ.
5
Otilia Gonzalez Martinez, entrevista concedida em 03/06/2015, à Miriam Barros Dias da Silva no CSM da Casa
de Espanha do Rio de Janeiro, para o LABIMI/UERJ.
51

quando o indivíduo se depara com uma situação do seu passado, que lhe causou sofrimento ou
trauma, a vontade de esquecer esta parte de sua história pode gerar o silêncio. Claramente, nota-se
que ela preferiu reprimir as suas lembranças neste momento da entrevista. O silêncio é muito
comum quando se trabalha com a história oral, porque muitos entrevistados se calam por vários
motivos, dentre eles: receio de sofrer alguma punição, de não ter as suas palavras bem interpretadas
ou de sofrer novamente ao recordar acontecimentos para eles traumáticos.
No final de uma guerra, muitas famílias não tiveram a alegria de receber em casa os seus
entes queridos, porque os mesmos perderam as suas vidas em algum momento do conflito. A
família de Concepción Estevez Vasquez, que chegou ao Brasil em 20 de maio de 1946, perdeu um
de seus membros por causa da guerra e o seu pai morreu com muito ódio do general Franco, porque
o seu irmão mais novo faleceu na guerra.

Só lembro que meu pai morreu odiando o Franco. Meu pai nunca voltou à Espanha. Meu
pai morreu com ódio do Franco. Tinha horror” Falasse da Espanha e, tinha ódio do
Franco. Morreu com ódio do franco. Detestava, porque me lembro que ele tinha um
irmão mais novo que morreu na época da guerra. Acho que atiraram no barco e, era na
época que ele estava no navio e atiraram. E o barco afundou e, morreu o irmão mais novo
dele.6

Uma outra história de uma família que perdeu parente por causa do franquismo é a do
imigrante Angelo David Torres Garcia. Ele nos relatou que, durante a Guerra Civil, homens
armados foram duas vezes na casa de seu pai e perguntaram sobre o seu tio José, que era presidente
dos sindicatos dos pedreiros e comunista. Ele narrou que seu tio fugiu para Vigo e que passava
todos os dias escondido em um buraco que foi cavado na terra e que era coberto por um pouco de
grama. O seu tio José só saía do esconderijo à noite para comer e dormir. Até que um dia, um
parente que estava doente precisou sair para ir ao médico e, tempo depois, ao ouvir um barulho, o
seu tio saiu do esconderijo porque queria ter notícias da pessoa que estava enferma. Pensou que
fossem seus familiares, entretanto eram aqueles homens que dias atrás estavam a sua procura. O seu
tio foi assassinado aos 36 anos de idade.7
A história destas famílias espanholas revelou alguns pontos semelhantes, alguns parentes
estiveram diretamente envolvidos na Guerra Civil, ao ponto de serem perseguidos e mortos pelas
tropas do general Franco, como foi o caso do tio de Angelo David Torres Garcia, além dos relatos
que demonstraram o rancor e, em um caso específico, o ódio. Podemos supor que muitas famílias
passaram a odiar o Franco quando recebiam as notícias que alguns familiares morreram por causa
6
Concepción Estevez Vasquez, concedida em 21/01/2015, à Érica Sarmiento e a Miriam Barros Dias da Silva no
CSM da Casa de Espanha do Rio de Janeiro, para o LABIMI/UERJ.
7
Angelo David Torres Garcia, concedida em 01/04/2015, à Miriam Barros Dias da Silva e Washington Luiz
Pereira no CSM da Casa de Espanha do Rio de Janeiro, para o LABIMI/UERJ.
52

da guerra. Para estas famílias espanholas, a Espanha apresentava muitos fatores de expulsão,
enquanto outros países, como o Brasil, dispunham de elementos de atração.

O imigrante entre dois mundos


A história da imigrante Alícia Ocampo Fernandez é semelhante a de outros estrangeiros que
cruzaram o Oceano Atlântico para reencontrar seus familiares, os quais saíram da Espanha com o
propósito de “fazer a América”, ou seja, viajaram para o continente americano a fim de obter mais
capital. Muitos imigrantes que retornaram ao seu país de origem reafirmavam esse propósito.
Pode-se dizer que se uns acumularam um pecúlio para regressar à pátria, outros não
conseguiram alcançar este objetivo. Mas é possível afirmar que tanto os espanhóis que regressaram
como os que permaneceram no Brasil, tiveram que enfrentar um processo de adaptação, pois
estavam em outro país, onde a cultura, a política, o clima, os hábitos e a língua eram muito
diferentes.
Assim que chegaram ao Brasil as imigrantes Rosa Abal Riba e Ana Maria Perez Quintela
ficaram assustadas, em estado de choque, quando viram no porto pela primeira vez algumas pessoas
negras. Rosa Abal no momento em que avistou um homem negro falou “Madre mia. Não sabia que
existia gente negra” 8, já Ana Quintela informou que logo lhe disseram: “No Brasil vai ver muitos”.9
A atitude das duas, não pode ser considerada preconceituosa e nem racista, pois o fato destas
imigrantes terem ficado assustadas é porque naquela época, onde elas moravam na Espanha, não
havia pessoas negras, hoje na região já existem. E elas mesmas contaram que rapidamente passaram
a conviver normalmente com muitas pessoas negras após chegarem ao Brasil.
A continuidade das entrevistas revelou que alguns imigrantes, apesar da proximidade da
língua galega com o português, tiveram uma pequena dificuldade com o idioma brasileiro, como
Maria del Carmen Bua da Costa afirmou que a única dificuldade que teve assim que chegou ao
Brasil foi com o português.10 A mesma dificuldade com a língua portuguesa também foi
mencionada pela imigrante, Purificación Estevez, que após viver 52 anos no Brasil revelou que: “As
pessoas falam ‘você não perdeu o sotaque’. Claro que não. Eu falo brasileiro, mas foi muita
dificuldade de pegar o brasileiro, porque eu não falava o brasileiro, eu falava o espanhol”.11

8
Rosa Abal de Allo, entrevista concedida em 29/04/2015, à Miriam Barros Dias da Silva e Washington Luiz
Pereira no CSM da Casa de Espanha do Rio de Janeiro para o LABIMI/UERJ.
9
Ana Maria Perez Quintela Couceiro, concedida em 04/2/2015, à Miriam Barros Dias da Silva e Washington Luiz
Pereira no CSM, para o LABIMI/UERJ.
10
Maria del Carmen Bua da Costa em 29/04/2015, em 08/07/2015, entrevista concedida à Miriam Barros Dias da
Silva e Washington Luiz Pereira no CSM da Casa de Espanha do Rio de Janeiro para o LABIMI/UERJ
11
Purificación Estevez Perez,concedida em 28/01/2015, concedida à Miriam Barros Dias da Silva no CSM da Casa
de Espanha do Rio de Janeiro, para o LABIMI/UERJ.
53

Já Joaquim Sanchez Pacheco mencionou que a sua maior dificuldade não foi a língua
portuguesa e nem o entrosamento com as pessoas, e sim os hábitos e os costumes que eram um
pouco diferentes. Mas como ele era muito jovem e tinha vontade de aprender facilmente, conseguiu
se acostumar com os hábitos dos brasileiros. Em relação ao idioma brasileiro, Joaquim Sanchez
contou que logo que chegou ao Brasil os seus amigos perguntaram “como é que está o seu
português?” E ele respondeu:

Olha pra mim o português é simples, se entende tudo, não tem problema. Pode perguntar.
Após os colegas fazerem uma brincadeira, eu percebi que tinha que estudar o português,
principalmente, porque eu não conhecia as gírias. Estudei um pouco de português, porque
apesar de morar perto de Portugal, a gente entendia, mas não dava pra praticar e dar aula,
essas coisas, comecei a estudar.12

Ele achou melhor estudar o português, porque se preocupou com as aulas que teria que nas
universidade - PUC-RJ e UERJ- onde seria um professor do curso de engenharia.
Diante do mencionado, é possível concluir que os imigrantes espanhóis conseguiram se
adaptar a língua e, rapidamente, se acostumaram com o português. A análise sobre o idioma, fez
surgir uma curiosidade: como esses imigrantes espanhóis que moravam no Brasil se comunicavam
com os seus filhos dentro de casa?
Seria interessante saber se estes imigrantes se preocupavam em passar para os seus filhos
elementos culturais da Espanha, na qual o idioma está inserido. No caso dos dois filhos de
Purificación Estevez Perez, que chegaram a ser matriculados em um curso de espanhol para
aprenderem a língua, percebe-se que houve esta preocupação: “Meus filhos fizeram curso de
espanhol e não praticaram, porque tinham vergonha de falar espanhol. Hoje eles se arrependem de
não ter praticado”.13 O fato de não praticarem o espanhol fora do curso de idioma, fez com que eles
se esquecessem de muita coisa. A questão da falta de prática da língua espanhola também foi
mencionada por Ana Maria Perez Quintela Couceiro, que relatou sentir um grande arrependimento
de não ter criado o costume de falar o espanhol quando estava com os seus filhos dentro de casa.14
Na casa de Joaquim Sanchez Pacheco ocorreu o inverso, as suas duas filhas, Gabriela e Ligia,
foram estimuladas, simultaneamente, a falar o português e o espanhol desde crianças. Para ele, a
educação de suas filhas recebeu muitos valores da cultura espanhola através dos avós paternos. E
Joaquim Sanchez atribui a presença dos seus pais na vida de suas filhas, como um ponto chave para

12
Joaquim Sanches Pacheco concedida em 10/06/2015, à Miriam Barros Dias da Silva no CSM da Casa de Espanha
do Rio de Janeiro, para o LABIMI/UERJ.
13
Purificación Estevez Perez,concedida em 28/01/2015, concedida à Miriam Barros Dias da Silva no CSM da Casa
de Espanha do Rio de Janeiro, para o LABIMI/UERJ.
14
Ana Maria Perez Quintela Couceiro, concedida em 04/2/2015, à Miriam Barros Dias da Silva e Washington Luiz
Pereira no CSM da Casa de Espanha do Rio de Janeiro, para o LABIMI/UERJ.
54

que as duas se situassem na vida profissional, porque despertou nelas o interesse pelo aprendizado.
Posteriormente, elas quiseram aprender novas línguas: a inglesa e a francesa.15
A língua espanhola é um importante elemento cultural e muitos imigrantes tiveram essa
preocupação de manter a língua viva na sociedade de recepção. Mas, para isso acontecer, era
necessário tanto o empenho e a dedicação tanto dos pais e dos imigrantes quanto dos filhos, que
deveriam se dedicar a aprender e a praticar a língua espanhola. Portanto, ensinar aos seus
descendentes a língua espanhola era uma boa oportunidade de compartilhar com eles a cultura do
seu país de origem,
Outra problemática que envolve a imigração é a questão da alimentação. Alguns imigrantes
recém-chegados relataram que tiveram uma dificuldade em se acostumar com alguns pratos
brasileiros como abobrinha, jiló, aipim, arroz, carne seca e miúdos de boi porque era uma
alimentação bem diferente da espanhola (CÁNOVAS, 2000, p.435).
A espanhola Manuela Lorenzo revelou que, ao chegar ao Brasil, passou quase 15 dias
comendo somente pão e banana, deixando a sua patroa e o seu esposo preocupados com a sua
saúde:

Não estava acostumada com feijão preto. Não estava acostumada com a comida daqui. Eu
não comia. Para agüentar o dia todo pegava uma banana sem ela ver. Aí um dia ela me
disse: Você não está comendo?! Não. Eu não gosto desta comida. O que comia? Eu comia
batata, pão, carne de porco, essas coisas que eu comia. 16

A patroa a autorizou cozinhar algumas batatas e Manuela Lorenzo sentia tanta fome que as
comeu sem colocar sal. A espanhola contou que sentiu uma grande dificuldade para se adaptar a
alimentação brasileira e, por isso, ela permaneceu pouco tempo no serviço, porque o marido
percebeu que ela não estava conseguindo se alimentar.

Nunca mais esqueci. Meu marido comprou uma penca de banana d’água e colocou no
quarto. Eu sentei e comi tanta banana, mas tanta banana, tanta banana. Que quando ele
chegou disse: “Manoela ta passando fome? E voltei a chorar. Chorei. Essa comida daqui
não tô conseguindo.17

Mesmo tendo o receio de não conseguir outro emprego, Manuela deixou o serviço.
Posteriormente, ela foi trabalhar como doméstica em várias casas de família e, aos poucos, foi
degustando a comida brasileira e foi se acostumando o seu paladar. Na casa de uma patroa, ela
experimentou um prato típico do brasileiro: o bife com fritas. E, quando trabalhou na casa de uma
15
Joaquim Sanches Pacheco concedida em 10/06/2015, à Miriam Barros Dias da Silva no CSM da Casa de Espanha
do Rio de Janeiro, para o LABIMI/UERJ.
16
Manuela Lorenzo Losada em 04/02/2015, 1ª entrevista concedida à Miriam Barros Dias da Silva no CSM da
Casa de Espanha do Rio de Janeiro para o LABIMI/UERJ.
17
Manuela Lorenzo Losada em 04/02/2015, 1ª entrevista concedida à Miriam Barros Dias da Silva no CSM da
Casa de Espanha do Rio de Janeiro para o LABIMI/UERJ.
55

família italiana, provou e gostou do macarrão com carne assada ao molho madeira. Hoje, Manuela
Lorenzo Losada diz: “O macarrão é melhor que qualquer coisa, junto com feijão. O feijão preto pra
mim é um banquete”.18 Esta espanhola ainda mencionou que era acostumada a trabalhar na roça
com a terra, a batata, o milho e não a trabalhar em casa de família. Este simples caso mencionado
retrata um dos problemas das fronteiras.
O imigrante se depara com novos hábitos e costumes que muitas vezes são diferentes dos
seus. As pautas socioculturais aprendidas em seu país de origem como os novos hábitos sociais
adquiridos no país de destino e, desenvolvendo uma percepção individual destas novas
experiências, contribuem também para reforçar novas identidades, pessoais e coletivas (NÚNEZ ,
2005,p.487).
A problemática da fronteira é que o imigrante abre mão de algo para manter outros, ou seja,
ele sofre interferência externa e termina mudando o seu jeito de ser e a sua vida. A Manuela
Lorenzo Losada que nunca tinha visto um feijão preto, agora fala “o feijão preto pra mim é um
banquete”. Quando um imigrante vem morar no Brasil, é normal ele se acostumar com o clima, os
hábitos, os costumes e com o português e, depois de algum tempo da chegada dos galegos ao Brasil,
tem-se uma nova língua: “a memória em um curioso portuñol” (NÚNEZ , 2005,p.485).
Para suportar alguns problemas causados pela fronteira como as saudades, as tristezas, as
decepções, o calor, a língua e os costumes diferentes e para manter viva a sua cultura, foram
realizados alguns encontro com as pessoas de nacionalidade espanhola. A imigrante Rosa Abal
contou que no Rio de Janeiro muitos espanhóis se encontravam na Praça Paris, onde eles
aproveitavam para “farrear”.19 Informação também mencionada em outra entrevista, a de Maria del
Carmen Pastoriza Brandariz que explicou: “era comum se reunirem na Praça Paris para se
divertirem e conversarem com outros espanhóis. Mas tudo acontecia sem violência alguma. Não é
como os dias de hoje”.20
Uma pergunta foi feita aos entrevistados: como a cultura espanhola é preservada em sua
família ou o que foi passado da tradição espanhola para os seus filhos? Uma mesma resposta foi
praticamente unânime: a gastronomia espanhola. Na casa de Concepción Estevez Vazquez, o
idioma e a alimentação espanhola foi o que mais esteve presente no cotidiano das suas filhas, e nas

18
Ibdem.Idem
19
Rosa Abal de Allo, entrevista concedida em 29/04/2015, à Miriam Barros Dias da Silva e Washington Luiz
Pereira no CSM da Casa de Espanha do Rio de Janeiro para o LABIMI/UERJ.
20
Maria del Carmen Pastoriza Brandariz, concedida em 29/04/2015, à Miriam Barros Dias da Silva e Washington
Luiz Pereira no CSM da Casa de Espanha do Rio de Janeiro, para o LABIMI/UERJ.
56

refeições é comum servir peixes, lentilhas, tortilla e empanada. 21 Já Purificación Estevez Perez,
relatou que repassou para os seus filhos muitos dos ensinamentos que aprendeu com a sua mãe:

Se você ganhar 20, só gasta 10. E guarda o que puder. Se a pessoa faz o prato de comida e
quer comer mais, repete. Mas, não admite deixar comida no prato. Comem até hoje
comida espanhola. Adoram feijão, feijoada gostam, mas mantive a comida espanhola. Eu
sempre faço: empanada de atum, tortilla, peixe, cozido espanhol ( com batata, repolho,
carne de porco, lingüiça) e paella. No natal, na páscoa e na semana santa, mantenho a
tradição espanhola. Na Espanha anos atrás, não tinha papai Noel, não tinha luz, não tinha
nada. Porque lá o papai era o dia de reis. Era o dia do presente, que a gente deixava o
sapatinho na janela e tinha que dormir para ganhar uma bonequinha de pano. Minha mãe
fazia as bonequinhas de pano, que minha mãe pintava os olhos. Pra gente era um presente
lindo de morrer! Ensinei meus filhos a dar valor pra tudo. 22

É possível considerar a comida como um símbolo de manifestação cultural, porque ela


carrega elementos que são associados a cultura de cada país e que são repassados de pais para
filhos.
Para Dolores Martin Rodrigues Corner, que pesquisou a gastronomia dos imigrantes galegos e
andaluzes em São Paulo entre 1940 e 1960, é durante a infância que o gosto por determinados
alimentos começam a se formar, geralmente, influenciados pela própria mãe que transmite de
maneira empírica e inconsciente desde a escolha dos ingredientes, o modo de preparo e servir até o
seu consumo. “A alimentação permite que se leve para outras regiões, e até mesmo para outros
países, os hábitos enraizados” (CONER , 2011, p.27-28).
Sabendo que a alimentação é um produto de cada cultura, compreendemos porque muitos
imigrantes continuam cozinhando e se alimentando da comida típica de sua terra. Ariovaldo Franco
afirma que a alimentação dos imigrantes é o hábito mais persistente no processo de aculturação.
Esta visão é compartilhada por Coner, que entende que a cozinha étnica é inserida dentro do
indivíduo, como marcas de hábitos coletivos como: tradições , costumes, valores, virtudes e, por
isso, raízes profundas são criadas e mesmo imigrando para outras nações, muitos não conseguem
abandonar os seus antigos hábitos alimentares, que naturalmente são repassados aos seus
descendentes ( CONER, 2011,p.23-24).
No país de destino, o imigrante enfrenta um processo onde alguns elementos culturais de sua
nação permanecem – e algumas vezes se transformam – outras desaparecem. Constantemente, os
grupos étnicos “reatualizam os elementos ancestrais de seu universo cultural simbólico frente ao
novo ambiente” (CÁNOVAS, 2000,p.350).

21
Concepción Estevez Vasquez, concedida em 21/01/2015, à Érica Sarmiento e a Miriam Barros Dias da Silva no
CSM da Casa de Espanha do Rio de Janeiro, para o Laboratório de Estudos de Imigração LABIMI/UERJ.
22
Purificación Estevez Perez, concedida em 28/01/2015, concedida à Miriam Barros Dias da Silva no CSM da Casa
de Espanha do Rio de Janeiro, para o LABIMI/UERJ.
57

Um bom exemplo desta nova atualização dos elementos culturais simbólicos é a alimentação,
que pode ser adaptada. Nem sempre nos países de recepção os imigrantes encontram todos os
ingredientes necessários para seguirem fielmente as receitas dos pratos típicos, por isso alguns
produtos são substituídos por outros que estão acessíveis no mercado.
Através das entrevistas foi possível perceber que os imigrantes fazem uma reeleitura do seu
passado e, mesmo que algumas lembranças se sobressaíam mais do que outras, verifica-se a
intenção de destacar e reforçar os sentimentos de pertencimento de um grupo e de definir e
fortalecer as suas fronteiras sociais.
Outro problema que abarca a questão da fronteira é o saudosismo que os imigrantes revelaram
sentir, seja da terra, dos costumes, das festas, dos familiares e dos amigos. Os imigrantes do
segundo ciclo migratório se comunicavam muito através das cartas; era por meio delas que a
maioria enviava e recebia notícias. Para Xosé Núnez, as cartas proporcionaram informação mais
privada ou mais pública, referente as oportunidades de trabalho em novos países (NÚNEZ, 2005,
p.488). Alguns entrevistados confessaram que pararam de escrever as cartas para os familiares,
como Manuela Lorenzo, porque ficavam tristes e choravam muito. Mas era também pelas cartas que
muitos recebiam propostas de trabalho, como foi o caso do espanhol Joaquim Sanchez Pacheco, que
recebeu um convite para montar um laboratório de engenharia na PUC-RJ.
Muitos imigrantes guardaram por décadas fotos, objetos e roupas que ganharam de seus
familiares deixados na Espanha. O imigrante Joaquim Sanchez Pacheco chegou ao Rio de Janeiro,
em dezembro de 1964, com um casaco que é pra ser utilizado no inverno de 2 a 5 graus negativos.
O Brasil é um país tropical e, certamente, ele nunca usará este casaco em solo brasileiro. Mas ele
mantém durante cinco décadas esta peça de vestuário e, ao perguntar o motivo pelo qual guardou o
casaco, ele respondeu que sempre que olha para o casaco lembra do dia que viajou para o Brasil e
que o casaco é muito bonito.23
Outro caso bastante interessante é o da Izolina Casais Lema Casais que nasceu em 27 de
janeiro de 1945 em Corunña e chegou ao Brasil em 20 de agosto de 1963 24. Esta senhora, que
constituiu uma família no Brasil, foi casada com um proprietário de uma hospedaria na Praça XV e,
com ele teve um casal de filhos. Ela trabalhou como passadeira e manicure para sustentar a família
após o falecimento do seu esposo. Durante muitos anos, ela guarda um presente que o seu pai lhe
deu quando era muito jovem e ainda morava na Espanha e, quando viajou para o Brasil, trouxe

23
Joaquim Sanches Pacheco concedida em 10/06/2015, à Miriam Barros Dias da Silva no CSM da Casa de Espanha
do Rio de Janeiro, para o LABIMI/UERJ.
24
Na gravação da entrevista, a senhora Izolina não recordou com precisão a data que chegou ao Brasil, ela ficou em
dúvida se teria sido no ano de 1965. Mas em seu prontuário do Serviço de Registro de Estrangeiro no Arquivo
Nacional foi anotado que a mesma desembarcou no Brasil em 20/08/1963.
58

consigo no navio o presente: uma máquina de costura que, na década de 1960, era considerada uma
das mais modernas da época.25
A primeira pergunta feita foi: a senhora é costureira? E ela respondeu que sempre trabalhou
com costura, venda de roupas, mas que nunca usou a máquina que o seu pai lhe deu. Nunca
costurou nela. Mas, a máquina a acompanhou em todas as casas que ela já morou no Rio de Janeiro,
porque ela sempre se lembra do seu pai quando olha para a máquina de costura. Hoje, Izolina mora
e trabalha em Olaria, e há 20 anos ela mantém uma barraca de roupas femininas na tradicional feira
de Olaria.26
As cartas, as fotografias e os objetos recebem um valor simbólico que acabam estimulando a
construção de uma memória, porque são através delas que se tem uma continuidade entre o passado
e o presente. Vemos que estes espanhóis guardaram durante anos alguns objetos pessoais, porque
eles representam um momento importante na vida deles e que está atrelado a um ente querido ou a
sua terra natal.
Muitos dos imigrantes que foram entrevistados, deixaram claro que em algum momento
pensaram em voltar a morar na Espanha. Mas, para isto acontecer, dependeria muito mais da
proximidade da sua família, do que da realização de uma vontade pessoal. Concepción Estevez
Perez deixou claro que tem o desejo de voltar para a Espanha, porque as suas duas filhas morram lá
e por consideram o país mais seguro para se viver e com boas oportunidades de trabalho. 27 Já a
espanhola Maria del Carmen Bua da Costa disse que prefere morar no Brasil por dois motivos: ela
não se acostuma com as baixas temperaturas e na Espanha faz muito frio, e os seus filhos são
casados e vivem no Rio de Janeiro. Hoje, toda sua família mora na Ilha do Governador. Portanto,
ela tem mais motivos para ficar do que voltar para Espanha, de onde saiu quando tinha apenas 11
anos de idade.28
Outro imigrante que também externou o desejo de permanecer no Brasil foi Joaquim Sanchez
Pacheco, que revelou que o seu plano de voltar para a Espanha foi cancelado no sexto ano em que
estava no Brasil no momento em que conheceu a paranaense Mary de Nazaré Fernandes, com a
qual se casou e juntos tiveram duas filhas: Gabriela (que morou durante 10 anos na Espanha, onde
adquiriu os títulos de mestrado e doutorado e hoje é professora na UERJ) e Ligia (que tem uma

25
Izolina Casais Lema Casais, entrevista concedida em 10/06/2015, à Miriam Barros Dias da Silva e Washington
Luiz Pereira para o LABIMI/UERJ.
26
Ibdem. Idem
27
Concepción Estevez Vasquez, concedida em 21/01/2015, à Érica Sarmiento e a Miriam Barros Dias da Silva no
CSM da Casa de Espanha do Rio de Janeiro, para o LABIMI/UERJ.
28
Maria del Carmen Bua da Costa em 29/04/2015, entrevista concedida à Miriam Barros Dias da Silva e
Washington Luiz Pereira no CSM da Casa de Espanha do Rio de Janeiro para o LABIMI/UERJ
59

agência de turismo no Rio de Janeiro). Ele se sente bem em viver aonde está, “Estou há 50 anos no
Brasil e hoje me sinto mais brasileiro do que espanhol, porque lá fiquei 25 anos e aqui 50”. 29
Até mesmo no caso daqueles que justificaram o desejo de retornar à Espanha por motivos de
segurança ou uma maior valorização que é dada ao idoso, em um segundo momento, mencionaram
que só iriam se toda família fosse junto.

Considerações finais
Um processo característico das imigrações em cadeia é que primeiro o chefe da família vai
sozinho para a sociedade de destino, e depois envia informações e recursos para trazer os seus
familiares. As próprias redes migratórias se auto-sustentam devido ao efeito estoque, isto é, o
imigrante incentiva, facilita e financia a vinda de seus familiares e amigos às sociedades de destino.
Foi durante o período do franquismo que muitos espanhóis chegaram ao Rio de Janeiro.
Através das entrevistas, alguns galegos contaram as suas experiências de vida e a de seus familiares
durante a Guerra Civil espanhola, e muitos relembraram de fatos que marcantes como o
racionamento de alimento, as dificuldades que enfrentaram na época e até a perda de entes queridos.
Embora o imigrante tenha decidido imigrar, ele sempre ficará dividido entre os dois mundos:
o país de origem e o de recepção. Entendemos que o imigrante abre mão de algum elemento de sua
cultura para manter outros, ou seja, ele sofre interferência externa e termina mudando o seu jeito de
ser e a sua vida. Entretanto, ele sempre busca manter as suas raízes culturais, tanto que muitos se
preocupam em passar elementos da cultura espanhola para os seus filhos como: a língua, a
gastronomia, a música e a dança. Mas verificamos que dos elementos citados, o que mais
predominou nos lares dos imigrantes entrevistados foi a preservação da alimentação típica da
Espanha, como a tortilla, a empanada, o cozido, dentre outros.
Outro aspecto verificado foi que a maioria dos imigrantes do segundo ciclo migratório eram
trabalhadores sem especialização técnica ou nível superior, e que muitos deles ao se preocuparam
com o futuro dos seus filhos, os motivaram a estudar para que conquistassem diplomas no ensino
superior nas universidades públicas do Rio de Janeiro. E por causa da família, muitos imigrantes do
segundo ciclo imigratório afirmaram que só voltariam a morar na Espanha se pudessem levar
consigo os seus filhos e netos. Caso contrário, eles preferem permanecer no Brasil.
Infere-se que muitos imigrantes espanhóis relembram de momentos importantes do seu
passado toda vez que escutam uma música, cantam, dançam, degustam algum alimento típico de
sua terra natal ou visualizam algum objeto que receberam de presente ou que foi deixado por um

29
Joaquim Sanches Pacheco concedida em 10/06/2015, à Miriam Barros Dias da Silva no CSM da Casa de Espanha
do Rio de Janeiro, para o LABIMI/UERJ.
60

ente querido. Podemos supor que as lembranças provocadas por estes objetos geram grandes
convulsões internas, onde há uma interação entre o presente e o passado e, consequentemente, a
recordação de experiências vividas por eles em algum tempo determinado. E é a partir destas
lembranças que tudo ou quase tudo que foi vivido e aprendido podem ser transmitidos pela história
oral. Foi válido conhecer a história destes espanhóis, porque ela é uma história que foi vivida e
sentida por um grupo que veio para o Brasil buscando uma vida melhor para si e sua família. E eles
acabaram deixando a sua contribuição na construção da história brasileira.

Bibliografia

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61

O LUGAR/PAPEL DO IMIGRANTE PORTUGUÊS NO IMAGINÁRIO DAS LETRAS NO


BRASIL DURANTE A GRANDE IMIGRAÇÃO.

Tiago Lopes da Silva*

A presença portuguesa nas letras da primeira república


O fenômeno do antilusitalismo se fez presente por boa parte da primeira república, sendo mais
que um sentimento, um elemento presente em diferentes projetos políticos para o para o brasil. A
partir da Proclamação da República, a autoridade do governo se torna a autoridade nativa,
brasileira, que protege a pátria. Natural, deste modo, que os inimigos públicos da população,
aqueles proclamados pelos jornais, principais meios de comunicação, depois da oralidade, a
“boataria”, sejam, neste momento, outros.
O olhar das elites, formadora das opiniões políticas, volta-se, assim para aquele que sempre se
considerou externo ao meio nacional: os portugueses tidos como conspiradores contra a nova ordem
desde o governo Floriano. As ruas serão palco da repudia ao elemento português, já que foi nestas
mesmas ruas que o estrangeiro monopolizou através do comércio.
Esta hostilidade ao português aparece retratada no livro obra O Rio de Janeiro do meu tempo,
de Luiz Edmundo, onde o autor se preocupa em apontar razões para esse sentimento, que vem
associado a preocupações políticas e rejeição a governantes. Uma delas teria sido o fechamento da
Escola Militar, ordenado pelo novo presidente, por saber, de acordo com o autor, que no dia 13 de
março de 1895, ação vista como uma tentativa do presidente para enfraquecer as estruturas de
formação dos quadros nacionais a fim de ir contra as estruturas do governo. Como reação os alunos
promoveram um grande comício no qual se menosprezava Prudente de Morais. Para combater a
indisciplina foram enviados, segundo Edmundo, dois batalhões de infantaria e um esquadrão de
cavalaria. O fechamento só piorou a situação do governo, na medida em que as manifestações
políticas já tinham alcançado as ruas, novo espaço de representação oficial de uma nova ordem
nacional.
Exemplo desta nova apropriação das ruas, para o autor, eram os cafés, que passaram a ser
palco de grandes discussões durante este período. O quartel – general da juventude florianista, diz
Luiz Edmundo, era o Café de Londres(Luiz Edmundo 1938.p. 410.), espaço de grandes eventos
contra o governo e que levantavam, para este último, a permanente suspeita de que ocorresse um
novo golpe militar que dissolvesse o governo do presidente civil.

*
Mestrando do PPGH-UERJ. Bolsista Capes. E-mail: ts.vasco@gmail.com
62

Para Luiz Edmundo, ainda, a péssima situação do governo chega a seu auge quando Prudente
de Morais sofre uma tentativa de assassinato na qual morre, em sua defesa, o ministro da Guerra, o
marechal Carlos Machado Bittencourt, em 5 de novembro de 1897.
Outro motivo para a manifestação de antipatia da população para com os portugueses se dá
pela revogação da ruptura diplomática que Floriano Peixoto teria feito com Portugal, durante a tão
consagrada Revolta da Armada.
Segundo o autor, Floriano Peixoto, durante o curso de seu governo, temia que de algum modo
fosse tentada a restauração do regime imperial, colocando por terra as novas aspirações políticas
fomentadas no país, principalmente as militares. Como prova de tal medo, Edmundo apresenta um
pedido de Floriano Peixoto de troca do ministro de Portugal no Brasil, durante esta época, por este
demonstrar, publicamente, enorme simpatia e proximidade com portugueses na cidade situados
além de muitas restrições ao novo regime que vinha se desejando consolidar (Luiz Edmundo 1938 p.
419 et. seq.). Por conta disto, o vice-presidente toma o cuidado de solicitar a Portugal a troca deste
ministro, chamado Conde d´Arcos.
Apesar da substituição ter sido efetuada, tendo o Conde de Parati ocupado o cargo de seu
antecessor, a desconfiança continuou por ter decidido, o novo ministro, asilar os revoltosos que
brigavam contra o governo durante a Revolta da Armada e que se encontravam na companhia de
Augusto de Castilhos, que comandava uma esquadra portuguesa que aparece, ostensivamente, no
litoral da cidade carioca.
O asilo foi muito mal visto pelas autoridades brasileiras, que entenderam que poderia se tratar
de uma tentativa de devolver o comando do território nacional aos portugueses. Ao notar que a
esquadra portuguesa se movia, em 1894, para o sul do país, onde se mantinha a força da revolução
federalista contra o governo, ao invés de ir em direção de Portugal, tomou o governo de Floriano
por real a ideia da ajuda portuguesa aos revoltosos na tentativa de derrubar o governo. Rompe
relações com Portugal o Marechal Floriano, o que foi tido como símbolo da independência
nacional.
No ano de 1895 o governo brasileiro recebe um pedido de Portugal para restabelecer as
relações amistosas que este possuía para com o país antes da Revolta da Armada.
Com o objetivo de acabar com as hostilidades do embate, que em muito perturbava a situação
econômica portuguesa, diga-se, Prudente de Morais aceita a trégua. A partir daí tem-se a descrição,
por parte de Luiz Edmundo, dos embates da população carioca contra o homem português comum;
os comerciantes, os vendedores ambulantes, figuras tão conhecidas pela cidade agora tornadas
inimigas públicas nacionais.
63

No primeiro volume de seu livro(Luiz Edmundo 1938), Luiz Edmundo não se coloca como
alguém com ódio aos lusitanos, mas sim antipatia para os quais descreve como como possuidores de
horríveis hábitos de higiene e de mantenedores de uma mentalidade moral, no ambiente social,
deplorável e retrógrada. Ao mesmo tempo não se coloca como um defensor deste povo, não
aprovando, porém, as perseguições aos mesmos.
Sua não defesa dos portugueses se pauta na sua leitura histórica sobre a cidade. Seria a
história da colonização a responsável pelo próprio propagar, na comunidade lusa que habitava a
cidade, da mentalidade colonial que por sua vez era o atraso da cidade. No governo de Prudente de
Morais, entretanto, a aversão aos portugueses toma um rumo inesperado para o autor, que não gera
nada além de vítimas, os portugueses, que já eram, no entender de Luiz Edmundo, vítimas da
própria mentalidade colonial.
O primeiro caso de hostilidade pública para com um português, como conta Luiz Edmundo,
se deu contra o diplomata enviado ao Brasil para conversar com o presidente Prudente de Morais, o
encarregado de, em nome do governo lusitano, selar a paz entre as nações:

“Seu desembarque foi assinalado por tumultos notáveis que chegaram até o seio do
Parlamento Nacional (...) Mas não ficaram aí as manifestações de desagrado. O carro que
conduzia o ilustre português, embora sob a guarda vigilante e numerosa de compatriotas
seus, recebeu assobios, chufas, vaias, enquanto eram distribuídos ofensivos panfletos
contra o diplomata, tudo no intuito de desluzir as manifestações de apreço que, de
antemão, havia-lhe o governo preparado”. (Luiz Edmundo 1958-1962, p. 414.)

A partir deste episódio, e por conta da grande propaganda feita por determinados jornais
extremistas, espalha-se a onda popular de ódio ao português, visto como inimigo comum:

“Havia na cidade dois jornais, verdadeiros pasquins, que exploravam tão lamentáveis
ocorrências, açulando, irritando, enfurecendo o povo contra os portugueses: O Jacobino e
o Nacional (...). Do Jacobino fez Deocleciano Martir, durante muito tempo, uma tribuna
colérica e insidiosa. Ao lado de uns tantos florianistas iracundos, num furor nativista
implacável, sacolejava a massa popular, arremessando á mesma conselhos arbitrários,
levianas ideias, absurdos planos, sinistras labaredas com as quais pretendia incendiar a
consciência nacional”.( Luiz Edmundo, 1958-1962. p. 427.)

Deste trecho se pode destacar três elementos, além daquele que revela a preocupação do autor
de fornecer ao leitor um quadro completo do que teria motivado o comportamento hostil da
população para com os portugueses. Um dos elementos que se destaca é a importância que o autor
dá aos jornais como veículos provocadores de opinião, e um dos principais órgãos de fomentação
política e social.
64

Outro ponto a ser destacado é o de seus conteúdos. O autor chama os jornais de “pasquins', na
tentativa de desmoraliza-los, os comparando a panfletos, textos satíricos com objetivo de espalhar a
infâmia sobre um assunto qualquer.
O objeto posto em xeque por estes jornais, no caso, era o caráter do governo de Prudente de
Morais e a responsabilidade que os portugueses que moravam no país tinham em relação à política
nacional, (nenhuma enquanto indivíduos, para Luiz Edmundo).
Foram os jacobinos, personalidades brasileiras que faziam parte dos mais variados círculos de
pessoas instruídas, como os profissionais liberais, os políticos, os militares e até homens de letras
não nomeados, os responsáveis pela propaganda que, ao utilizar a sátira como veículo principal para
chegar ás massas fez dos portugueses alvos dignos de piedade e personagens principais dos mais
variados tipos de piada.
Em oposição a campanha contra os portugueses, diversos nomes se colocaram, sendo um
deles, João do Rio, que se opôs, com alguma frequência, ao que entendia ser a perseguição aos
portugueses. No seu livro A Alma Encantadora das Ruas indo contra uma certa inteligência
brasileira de então, o autor tece um detalhado e dinâmico quadro urbano do Rio, onde não faltam
portugueses individualizados, através das mais diversas situações socioculturais e perfeitamente
integrados no colorido das ruas desta cidade.

“Quem não conhece o Saldanha, um velho português baixo, gordo e cego, que tocava
viola há mais de vinte anos com um negro também cego da ilha da Madeira, flautista
emérito?”(João do Rio 1997, p.181)
“Nas mesmas condições está o Miguel Brito. Apesar de português, foi inferior no
exército. Quando deu baixa, comprou um gramofone para ganhar, como dizia, a vida na
roça…vendeu o gramofone, agradeceu à musa e só com sua garganta veio triunfar nas
bodegas do Rio. ”(João do Rio 1997p.184)
“Nessa enorme galeria, onde uma eterna luz lívida espalha um vago horror, vejo caixeiros
portugueses com o lápis atrás da orelha cheios de angústia” […](João do Rio 1997,
p.331)

Por se colocar ao lado da colônia portuguesa como seu defensor, João do Rio tornou-se
pessoa bem quista, podendo comer de graça em qualquer restaurante carioca dirigido por
portugueses. Ao mesmo tempo em que foi alvo, por conta disso, de críticos inconciliáveis como
Antônio Torres e outros, que o consideravam um “vendido” à colônia portuguesa (CORRÊA, 2001,
p. 369.).
Apesar da defesa, eram as piadas e palavras contra os portugueses que se espalhavam pela
cidade, sendo repetidas nos cafés, nas salas das famílias, nos teatros de revistas e nas casernas. O
mau gosto da piada, para Luiz Edmundo, era o responsável pelo sucesso do jornal, que exibia as
seguintes notícias:
65

““No texto verrineiro do Jacobino, veiculam-se notícias loucas como esta: A patriótica
febre amarela matou, pelo correr da semana passada, 110 portugueses. Ou: o português
Antônio Manuel da Silva ficou sábado último com a perna esquerda esmigalhada pela
roda de um bonde das Laranjeiras. Pobre roda!”( CORRÊA, 2001 p. 428.).

Apesar do tom satírico do o Jacobino ao se referir aos lusitanos, seu editorial era sério.
Transcreve Luiz Edmundo o texto, conferindo-lhe caráter de documento:

“Há um século, o jacobinismo em França conseguiu firmar a República contra as facções


reacionárias que a dilaceravam internamente e repelir do solo da pátria os exércitos
invasores coligados para o restabelecimento da realeza e do domínio clerical. O
patriotismo dos jacobinos salva a nação, embora empregando meios violentos. Como
combater o mal que nos flagela e que predomina há século? Só pela violência dos meios e
pela aplicação de medidas enérgicas é que a República brasileira poderá desbaratar o
inimigo comum que a avassala, e salvar-se do torpor em que jaz a Pátria desde o seu
descobrimento casual pela lusa gente”. (CORRÊA, 2001 p. 427.)

Os jacobinos se faziam presentes na cidade, segundo o autor, desde os tempos de D. Pedro I


(CORRÊA, 2001, p. 429) sendo que como o discurso do jornal e similares só serviam para ir contra
a ordem e não para fomentar maiores reflexões políticas, este não os entendia como porta-vozes de
ideias a serem consideradas.
O segundo jornal mencionado pelo autor, o Nacional, possuía um caráter menos satírico que o
anterior, continuando, todavia, a ser um pasquim. Luiz Edmundo, sobre este fornece uma lista de
grandes nomes da literatura e do jornalismo da época que nele contribuíam com escritos, como
Lindolfo Xavier, Matias de Carvalho e Raul Pompéia. (CORRÊA, 2001p. 429). Por possuir em seus
quadros personalidade de letras talvez o jornal, para o autor, fosse menos “pasquim” que o
Jacobino, não eximindo Luiz Edmundo, por conta disto, seus participantes da onda de violência que
se instalava na cidade.
Luiz Edmundo, faz questão de citar os dois jornais extremistas que, em sua opinião, eram
responsáveis pela atitude popular de ira para com os portugueses, tendo a consciência de que os
jornais, a partir da proclamação da república, são responsáveis por causar consequências diretas
para a vida social da população da cidade.
Como um bom homem de sua geração, que prezava o individualismo, a capacidade pessoal e
a criatividade acima de todas as coisas, o autor também apreciava a visibilidade que o meio de
comunicação dava ao intelectual que nele escrevia, seja dentro do círculo da vida literária, seja para
além dele, como objeto de carinho popular, mesmo que através de concessões a uma literatura mais
banal.
66

Voltado a lusofobia, Edmundo também destaca que as autoridades policiais também viam os
portugueses como inimigos comuns, procuravam sempre intervir, utilizando conselhos de paz para
acalmar a população.
A intervenção, porém, se restringia ás palavras e aos pedidos de ordem, pois a própria polícia
fitava a multidão, que se unia contra os portugueses, com um sorriso, não agindo de forma a
atrapalhar o linchamento. A cidade vista por Luiz Edmundo como local, de um lado, de patriotas
desmedidos que, aproveitando-se do caso da participação portuguesa na Revolta da Armada
acabavam com a paz da cidade para desestabilizar, principalmente, o governo civil de Prudente de
Morais. De outro lado era reduto inseguro para os portugueses, que se defendiam como podiam.
As casas comerciais portuguesas eram as que mais sofriam e a forma de defesa dos
portugueses mais eficaz, segundo o autor, era o próprio apoio ao discurso daqueles que os tomavam
como inimigos:

“Para evitar depredações, as lojas comerciais pertencentes aos filhos da outra banda, em
grande maioria, punham cartazes onde, em letras gordas, liam-se dizeres como este:
Somos amigos do Brasil! Estamos com os brasileiros! Casa Florianista... meio prudente
de evitar possíveis e sanhudos desaforos do poviléu enfurecido”.(CORRÊA, 2001p. 84)

O Largo de São Francisco, e a Rua do Ouvidor eram os locais preferenciais, segundo Luiz
Edmundo, para os comícios contra os portugueses e contra o governo oficial. Seus participantes
eram, sobretudo, estudantes de medicina, de engenharia e de direito, além de outros que cursavam
outras disciplinas na cidade e:

“Os cavalarianos da polícia, em fila, constitucionais e calmos, garantiam, sorrindo, o


jorro das expressões violentas que brotavam da boca dos ensandecidos oradores”.
(EDMUNDO, L., De um livro de memórias, v. 2, p. 42)

A responsabilidade social para Edmundo dos jornais era enorme, não sendo o exercício de
participar do meio de comunicação apenas uma questão monetária. Pelo contrário, como diz o
próprio Machado Neto (NETO, A. L. M, Estrutura social da república das letras, p. 88.), Luiz
Edmundo cita especificamente quando os tumultos contra os portugueses na cidade, mas reforça
que eles ocorrem durante todo o governo de Prudente de Morais.
A lusofobia se enquadra para Edmundo num quadro de transformação social e política do
Brasil. Em um primeiro momento é proclamada a República, primeiro passo para a entrada da
cidade na modernidade. Em um segundo momento cria-se um herói nacional: Floriano Peixoto, um
homem que é a cara do país. Como último ato desta cena de tomada do patrimônio histórico
nacional aparece o linchamento aos portugueses, por estudantes, patriotas exaltados e o restante da
67

população, que passa a tomar a pessoa portuguesa como origem da semente do atraso nacional, se
tendo um quadro de enfrentamento entre o nacional e o estrangeiro, entrer o poder antigo e o novo.
Apesar de Edmundo achar que o ato de vandalismo que a cidade assistiu com o episódio ao
ódio pelos lusitanos foi deplorável, insensato e oportunista, uma vez que os patriotas se
aproveitavam da situação criada contra os portugueses para abalar o governo de Prudente de
Morais, fica também evidente que uma onda de mudança se manifesta na cidade. É a tentativa de se
criar uma nova mentalidade para a população e se distanciar da mentalidade luso-colonial tão
negativa segundo Edmundo
Exemplificado o rompimento através do ataque ás casas de comércio e aos portugueses em
geral pode, a cidade, dar mais um passo rumo à modernidade: um passo, importantíssimo para Luiz
Edmundo, o estético. Na cidade limpa e bonita, agora que é republicana e brasileira, espaços onde
modernidade da cidade posterior à reforma de Pereira Passos, a geração Literária de Luiz Edmundo,
os espaços de encontro desta geração e quais seriam as próximas medidas a serem tomadas pelos
modernos para continuar no caminho da Modernidade, que para Edmundo é um caminho em
separado da mentalidade colonial lusa.

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69

POLÍTICA IMIGRATÓRIA EM TEMPOS DEMOCRÁTICOS: A CRIAÇÃO DO INSTITUTO


NACIONAL DE IMIGRAÇÃO E COLONIZAÇÃO (1952 – 1953)

Amanda Pereira dos Santos*

O debate sobre questões migratórias ganhou notoriedade no âmbito das políticas públicas
durante o primeiro governo de Getúlio Vargas (1930-1945). No entanto, em seu segundo governo
(1951-1954), Vargas ainda se mostrava preocupado com a efetividade da política imigratória no
Brasil. Com o objetivo de controlar e dirigir o movimento imigratório, o presidente propôs a
fundação do Instituto Nacional de Imigração e Colonização (INIC). Assim, o presente trabalho visa
apresentar uma breve análise dos debates ocorridos na Câmara dos Deputados e no Senado a
respeito da criação deste Instituto entre os anos de 1952 e 1953.
Durante as décadas de 1930 e 1940, foram promovidas diversas medidas de caráter restritivo
em relação à entrada de imigrantes no Brasil. Na Constituição de 1934, a “lei de cotas” estabelecia
um percentual limitado para a entrada de estrangeiros segundo a nacionalidade, assim como foram
reforçados os ideais eugenistas vigentes no período e a preferência da ocupação do território
brasileiro por nacionais em detrimento dos imigrantes. Tais ideais e o sistema de cotas foram
mantidos na Constituição de 1937 e no Decreto-Lei nº 7.967 de 1945, no qual é evidente a
preocupação com a “composição étnica da população” e a preservação das “características mais
convenientes” da ascendência europeia do estrangeiro. Nesse conjunto de leis é possível observar o
compromisso do Estado Novo com o branqueamento e com a eugeneização da população como
políticas oficiais (CLARO, 2015, p. 132).
De acordo com Fábio Koifman (2012, p. 26-27), muitos membros do governo e segmentos
letrados da sociedade brasileira apontavam para a “má formação étnica do povo” como o principal
obstáculo ao desenvolvimento do país. Assim, com a vinda de “bons” imigrantes, ou seja,
indivíduos brancos, católicos, apolíticos e capazes de se incorporarem à população não branca, o
Brasil passaria a contar com uma sociedade muito mais desenvolvida em um curto período de
tempo, estimado em 50 anos.
A entrada de estrangeiros no Brasil, durante o Estado Novo, dizia respeito diretamente a três
ministérios: o das Relações Exteriores, o da Justiça e Negócios Interiores, e o do Trabalho, Indústria
e Comércio. O Conselho de Imigração e Colonização (CIC), criado em 1938 com base no Decreto-
*
Desenvolve o projeto Selecionar, Controlar e Distribuir: O Instituto Nacional de Imigração e Colonização e a
política imigratória brasileira (1952-1955), orientado pelo Prof. Dr. Paulo Cesar Gonçalves. Apoio: processo nº
2017/15227-1, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). “As opiniões, hipóteses e
conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade do(s) autor(es) e não
necessariamente refletem a visão da FAPESP”. Mestranda do Programa de Pós-graduação em História da UNESP –
Campus de Assis. E-mail: amandapds19@gmail.com.
70

Lei nº 406, também era responsável pela orientação dos serviços de colonização, entrada, fixação e
distribuição de estrangeiros pelo território brasileiro. Além disso, o CIC realizou estudos a respeito
das características dos principais movimentos migratórios, da fixação e do assentamento de
imigrantes em regiões consideradas mais propícias, bem como firmou tratados bilaterais com países
cuja população possuía o perfil de imigrantes “assimiláveis” e “desejáveis” no Brasil (QUEIROZ,
2013, p. 140). Nesse sentido, o governo manteve a política de livre imigração para os portugueses,
considerados compatíveis com a composição étnica brasileira e com a preservação da cultura
nacional. A livre entrada de portugueses também possuía como pano de fundo o projeto político
relacionado ao branqueamento da população (MENDES, 2010).
Por outro lado, considerava-se que a entrada de estrangeiros de outras nacionalidades deveria
ser analisada de acordo com critérios restritivos e rigorosos. Diversos grupos de estrangeiros eram
associados a problemas referentes à ameaça de “desfiguração” e “desnaturamento” do povo
brasileiro, a exemplo dos japoneses e dos judeus (KOIFMAN, 2012, p. 29).
Em síntese, nos primeiros cinquenta anos do século XX, sob a forte influência das últimas
décadas do século XIX e das duas guerras mundiais, apareceram principalmente os seguintes temas
nas legislações brasileiras referentes aos movimentos imigratórios: incentivo à imigração de
europeus; cotas para admissão de estrangeiros no país; expulsão de “estrangeiros indesejáveis”; e
atividades de órgãos federais competentes sobre políticas e procedimentos de imigração (CLARO,
2015, p. 136-137).
No pós Segunda Guerra, urbanistas, economistas, técnicos e burocratas vislumbravam um
“novo” Brasil planejado, que deveria ser ocupado, do ponto de vista de seus dirigentes, por uma
população organizada e estável. A tal planejamento político-econômico somou-se certa política
imigratória a partir da criação, em 1954, do Instituto Nacional de Imigração e Colonização (INIC)
com o objetivo de controlar e dirigir o movimento migratório (PERES, 2003, p. 86). O INIC passou
a desempenhar as atividades anteriormente atribuídas a três diferentes órgãos federais: a Divisão de
Terras e Colonização do Ministério da Agricultura, o Departamento Nacional de Imigração do
Ministério do Trabalho, e o Conselho de Imigração e Colonização.
Os funcionários dos órgãos extintos do Ministério da Agricultura e do Ministério do Trabalho,
Indústria e Comércio tiveram a opção de serem aproveitados, quanto possível, no Instituto Nacional
de Imigração e Colonização, e ao pessoal do Conselho ficou assegurada a transferência para o INIC,
na situação jurídica em que se encontrava cada funcionário.
Alguns deputados eram a favor dessa transferência automática de funcionários para o Instituto
Nacional de Imigração e Colonização, defendendo que “esta medida, além do seu aspecto de ordem
econômica, é também de grande alcance no que diz respeito à administração, tendo-se em vista a
71

prática que adquiriram os servidores daqueles departamentos, nos seus vários setores” 1. Assim, a
direção do Instituto poderia encontrar “mais facilidade para organizá-lo do que se tivesse de admitir
novos funcionários inexperientes, sem tirocínio no serviço e alheios às peculiaridades da prática,
que só na execução dos serviços são demonstradas” 2. Em contrapartida, a Comissão Especial da
Câmara dos Deputados defendia que a situação dos funcionários dos serviços extintos não deveria
se sobrepor aos interesses e às necessidades do novo órgão.
Getúlio Vargas, eleito formal e oficialmente pelo Partido Trabalhista Brasileiro e pelo Partido
Social Progressista em 1951, propôs a fundação do Instituto Nacional de Imigração e Colonização
por meio da Mensagem nº 180-1952, a qual foi enviada aos membros do Congresso Nacional. O
presidente afirmava que o governo possuía três problemas entrelaçados: o de oferecer melhores
condições de vida ao trabalhador rural brasileiro; o de encaminhar prudentemente as correntes
migratórias a fim de povoar o país; e o de enriquecer a recuperação das terras e o quadro
demográfico do país, a curto prazo pelas suas consequências na imediata produtividade agrícola e
industrial, bem como na elevação do nível cultural e técnico da população brasileira.
Vargas declarava que, ao lado do encaminhamento, fixação e amparo do trabalhador nacional,
era necessário o desenvolvimento da imigração. Em suas palavras,

Manifestei desde a campanha eleitoral meu desejo de tomar as medidas possíveis nesse
sentido [do desenvolvimento da imigração]. Efetivamente, determinei o afastamento de
todos os entraves à imigração decorrentes de uma interpretação exageradamente suspicaz
e restritiva da legislação vigente, recomendei a negociação de acordos para facilitar as
correntes migratórias e o estudo de uma reforma na legislação 3.

Getúlio Vargas destacava que o governo, em 1951, tinha tomado medidas com o propósito de
encorajar a imigração, tanto para a agricultura como para a indústria, tendo em vista o interesse
nacional de evitar os “elementos perturbadores e indesejáveis” e de reparar a carência de mão de
obra especializada.

A intensificação das correntes imigratórias internas, que revela a existência de braços à


procura de emprego, não reduz o interesse nacional pela imigração. Antes pelo contrário,
pois os imigrantes nacionais são em regra trabalhadores rústicos, sem habilitações
técnicas, enquanto o imigrante já não é mais o braço concorrente para o colonato, e sim o
agricultor e o artífice com um nível de instrução geral e de experiência técnica, que
representam um grande desafogo na carência nacional de trabalhadores qualificados e
técnicos. A imigração é, assim, uma escola para o trabalhador nacional, que se tem
mostrado perfeitamente capaz de assimilar as técnicas modernas, mas não dispõe de
preparação. Isso é tanto mais importante quando se sabe que é alto o custo do ensino
1
Emenda de segunda discussão, 14 de Novembro de 1952. Dossiê da Câmara dos Deputados referente ao PL
2110/1952. Arquivo da Câmara dos Deputados, p. 3.
2
Emenda de segunda discussão, 14 de Novembro de 1952. Dossiê da Câmara dos Deputados referente ao PL
2110/1952. Arquivo da Câmara dos Deputados, p. 3.
3
Mensagem nº 180-1952 de Getúlio Vargas. Dossiê da Câmara dos Deputados referente ao PL 2110/1952. Arquivo
da Câmara dos Deputados, p. 3-4.
72

vocacional e técnico e limitados os recursos do país para desenvolvê-lo rapidamente. A


imigração é assim, também, um fator importante para ampliar as oportunidades de
emprego remunerativo para os trabalhadores nacionais4.

De acordo com Vargas, o Brasil se encontrava, na década de 1950, quase que totalmente
desaparelhado para levar adiante uma política imigratória de grande alcance, justamente no período
em que se processava no mundo um vasto movimento de populações. Assim, com o objetivo de
sanar essa deficiência institucional, o INIC seria responsável pela orientação das correntes
migratórias internas, distribuindo o trabalhador nacional migrante pelas diversas regiões do país, de
acordo com as necessidades locais, mas atendendo prioritariamente aos interesses gerais da
economia nacional.
Resolvida a questão do trabalhador nacional, o Instituto estaria “habilitado a ir buscar, no
exterior, a complementação indispensável do braço estrangeiro, mormente operários especializados
e agricultores de alto nível”5. O entrosamento entre a mão de obra nacional e a estrangeira
representava, segundo Vargas, um problema vital para o país, pois “se, de um lado, devemos
atender aos justos reclamos do trabalhador nacional, dando-lhes meios de procurar sua subsistência
e elevar seu padrão de vida, de outro, não podemos prescindir da colaboração emprestada pela
técnica do trabalhador estrangeiro”6.
A Comissão de Economia do Senado ao analisar o projeto do INIC, em julho de 1953,
defendia que a colonização com o estrangeiro se apresentava como uma necessidade premente. Em
seu parecer, a comissão realizou uma crítica veemente à análise de “detalhes de somenos
importância (se há um cego, um aleijado, um paralítico, um irmão de criminoso, nas famílias que
devemos receber), perdendo de vista o grosso do problema e os grandes lances para a sua solução”
7
, solução esta que seria a entrada de centenas de milhares de agricultores ou de industriais a fim de
cessar a carência de mão de obra.
A imigração do “elemento estrangeiro”, principalmente do europeu, não poderia ser adiada
pelo Instituto, pois a partir do seu trabalho haveria o aproveitamento racional das riquezas agrícolas,
uma vez que as populações rurais brasileiras eram consideradas, na sua maioria, sem capacidade e
sem técnica. Os senadores ressaltavam ainda que o homem rural nativo, além de não ter preparação
e educação, não possuía principalmente a “ambição pessoal necessária para desenvolver por si só as

4
Mensagem nº 180-1952 de Getúlio Vargas. Dossiê da Câmara dos Deputados referente ao PL 2110/1952. Arquivo
da Câmara dos Deputados, p. 4-5.
5
Mensagem nº 180-1952 de Getúlio Vargas. Dossiê da Câmara dos Deputados referente ao PL 2110/1952. Arquivo
da Câmara dos Deputados, p. 6.
6
Mensagem nº 180-1952 de Getúlio Vargas. Dossiê da Câmara dos Deputados referente ao PL 2110/1952. Arquivo
da Câmara dos Deputados, p. 6 – 7.
7
Pareceres do Senado Federal. Ns. 1.155, 1.156, 1.157 e 1.158 de 1953. Dossiê da Câmara dos Deputados referente
ao PL 2110/1952. Arquivo da Câmara dos Deputados, p. 2-3.
73

grandes regiões agrícolas do país” 8. Ao lado do imigrante deveria estar o nacional, crescendo em
eficiência, fator que teria um impacto imediato nas gerações futuras.
A Comissão de Finanças do Senado também se colocava a favor do encaminhamento de
correntes imigratórias para o Brasil por meio do INIC, as quais deveriam contribuir para o
povoamento do país e para o desenvolvimento da produção agrícola e industrial, a partir da
introdução de novos métodos avançados de trabalho.
Os senadores pontuavam que os “trabalhadores alienígenas” poderiam se fixar nas zonas onde
melhor se adaptassem. Nesse sentido, o sistema racional de colonização posto em prática pelo INIC
deveria levar em conta “a raça, o clima de origem, as facilidades de adaptação ao meio brasileiro, na
variedade das diversas zonas climatéricas e geoeconômicas, as formas de produção de preferencia
do imigrante e o seu grau de cultura” 9.
O parecer da Comissão de Finanças demonstra que o projeto de criação do INIC pretendia
marcar uma nova orientação na política imigratória brasileira, pois armava o governo com um órgão
flexível e simplificado, capaz de executar programas destinados a atrair para o Brasil as correntes
imigratórias “mais convenientes”, tendo em vista a extensão territorial, as condições demográficas e
a distribuição da população nacional pelas diversas regiões. Além disso, dois aspectos importantes
são sublinhados pela comissão: o movimento imigratório ocorrido durante e após a Segunda Guerra
Mundial e a política imigratória brasileira vigente no período.
De acordo com os senadores, por falta de um órgão institucional eficiente à frente dos
serviços de colonização e imigração, o Brasil havia perdido a oportunidade de receber uma
“torrente substancial de povoadores de primeira ordem” durante o período de guerra, povoadores
estes de “comprovada conveniência ao país” que outrora se fixaram nas colônias do sul. Tal
equívoco, segundo os dirigentes, ocorreu devido “a certo misoneísmo político ou preconceito
racional dos órgãos de direção da política de imigração” 10.
O parecer da Comissão Especial da Câmara dos Deputados, acerca do projeto de lei de
criação do INIC, destacou a urgência do governo brasileiro em organizar o serviço e a política de
imigração e colonização do país, tanto por deveres e compromissos de ordem internacional, a que se
prendia por convenções e tratados, como por imposição de ordem interna, para a qual o povoamento
caracterizava-se como uma das soluções de base de sua economia.

8
Pareceres do Senado Federal. Ns. 1.155, 1.156, 1.157 e 1.158 de 1953. Dossiê da Câmara dos Deputados referente
ao PL 2110/1952. Arquivo da Câmara dos Deputados, p. 3.
9
Pareceres do Senado Federal. Ns. 1.155, 1.156, 1.157 e 1.158 de 1953. Dossiê da Câmara dos Deputados referente
ao PL 2110/1952. Arquivo da Câmara dos Deputados, p. 9.
10
Pareceres do Senado Federal. Ns. 1.155, 1.156, 1.157 e 1.158 de 1953. Dossiê da Câmara dos Deputados referente
ao PL 2110/1952. Arquivo da Câmara dos Deputados, p. 8.
74

De acordo com os deputados, muitos erros e preconceitos desvirtuaram a significação e o


desenvolvimento dos serviços de imigração e colonização no Brasil. Tais erros e preconceitos foram
gerados pelo nacionalismo ou por um “falso trabalhismo nacional” que contrapunha o trabalhador
brasileiro ao trabalhador estrangeiro, “quando a presença deste último, além de fator imediato do
aumento e da melhoria da produção interna, concorre, em todos os casos, para a elevação do salário
no mercado do trabalho” 11.
A Comissão Especial da Câmara pontuava a importância da demanda pela unificação dos
serviços de imigração e de colonização. Tal aspecto do INIC era visto como “a principal reforma
que o projeto empreende e que há de merecer aplausos unânimes” 12. Getúlio Vargas, na mensagem
apresentada acima, também apontava que diversos órgãos desempenhavam atividades relacionadas
à política imigratória e à colonização do país, porém não possuíam total controle sobre a aplicação
dos planos por eles traçados, fator que retirava parte de sua eficiência. Sendo assim, o INIC deveria
centralizar todas as atividades relacionadas à imigração e ao povoamento do Brasil.
Para Vargas, o governo deveria atingir aos seguintes objetivos por meio da criação do INIC e
da Carteira de Colonização do Banco do Brasil: a orientação do povoamento, a melhoria das
condições de vida do trabalhador rural, o desenvolvimento da agricultura, bem como a melhoria do
abastecimento, o aperfeiçoamento e a expansão da indústria nacional, a qual necessitava de uma
“alta dose de imigrantes estrangeiros”13.
Em seu parecer sobre o projeto de fundação do INIC, a Comissão Especial da Câmara
defendia que a imigração e a colonização do país representavam, em primeiro lugar, os processos de
economia e de política com os quais o Estado seria capaz de orientar o sistema de produção, os
serviços de assistência e as técnicas de trabalho. Dessa forma, a imigração oferecia a possibilidade
de realização de planejamentos racionais, capazes de salvar o país dos riscos e dos preconceitos que
o estorvavam14.
Os deputados destacavam que a história da colonização alemã na região sul, assim como a dos
japoneses em São Paulo, era vista muitas vezes com leviandade e frustração pelos europeus, os
quais retornavam aos seus países de origem devido à decepção com o regime de trabalho
apresentado no Brasil. Nesse sentido, segundo os dirigentes, os imigrantes reivindicavam condições

11
Parecer da Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Dossiê da Câmara dos Deputados referente ao PL
2110/1952. Arquivo da Câmara dos Deputados, p. 9.
12
Parecer da Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Dossiê da Câmara dos Deputados referente ao PL
2110/1952. Arquivo da Câmara dos Deputados, p. 9.
13
Mensagem nº 180-1952 de Getúlio Vargas. Dossiê da Câmara dos Deputados referente ao PL 2110/1952. Arquivo
da Câmara dos Deputados, p. 12.
14
Parecer da Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Dossiê da Câmara dos Deputados referente ao PL
2110/1952. Arquivo da Câmara dos Deputados, p. 3.
75

adequadas de vida a fim de que sua assimilação fosse processada com êxito na sociedade
brasileira15.
Outro aspecto importante deveria receber a atenção especial por parte do Instituto Nacional de
Imigração e Colonização: a educação dos filhos dos imigrantes. De acordo com os deputados, havia
um “desajustamento manifesto” desses filhos em relação à cultura brasileira, pois a mudança de
país, ocorrida muitas vezes às pressas e de modo improvisado, fazia com que eles perdessem “a
escala e medida do comportamento tradicional da sua família alienígena” ao mesmo tempo em que
não adquiriam “com profundidade o conceito dos valores éticos e cívicos da nova pátria”, levando-
os à marginalidade social. Além disso, o enquistamento das populações teuto-brasileiras, no sul do
Brasil, e das nipo-brasileiras, no noroeste paulista, devia-se, segundo a perspectiva dos membros do
governo, ao “próprio modo do brasileiro sentir o estrangeiro”, atribuindo-lhe, graças aos seus juízos
de valores contraditórios e incoerentes, um caráter ambivalente16.
Apesar da opinião favorável de diversos senadores e deputados no que se referia ao
encaminhamento de correntes imigratórias para o Brasil, uma parcela da classe dirigente não
compartilhou do mesmo entusiasmo e otimismo em relação ao planejamento e à execução de uma
política imigratória a partir da fundação do Instituto Nacional de Imigração e Colonização.
Tal oposição pode ser verificada nas palavras do senador Onofre Gomes, representante
político pelo Estado do Ceará17, registradas em março de 1953. Gomes afirma que, por mais de uma
vez, já se referiu na tribuna sobre “a injustiça e a desumanidade com que são tratados os
nordestinos”, os quais são abatidos pela seca e forçados a migrar para outras regiões em busca de
trabalho e de meios de subsistência para si e suas famílias. Por outro lado, o senador pontua que

Somos generosos, além de humanitários – como também compreendo devamos ser – com
os colaboradores que procuramos agenciar fora da Nação. Oferecemos-lhes as instalações
principescas da Ilha das Flores, capazes de hospedar, sem o menor desdouro, os delfins
da época elegante e refinada de Luiz XIV ou de Luiz XV. Para os nossos, entretanto,
protesta-se até pelo fato de andarem seminus pelas ruas desta Capital ou de outras
cidades. O seu esmolambamento, permitam-me a expressão, como que toca os melindres
do recato das populações bem assistidas em virtude de fartos recursos ou de
possibilidades que o trabalho lhes propicia18.

15
Parecer da Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Dossiê da Câmara dos Deputados referente ao PL
2110/1952. Arquivo da Câmara dos Deputados, p. 3.
16
Parecer da Comissão Especial da Câmara dos Deputados. Dossiê da Câmara dos Deputados referente ao PL
2110/1952. Arquivo da Câmara dos Deputados, p. 4.
17
Verbete biográfico disponível em: <http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/lima-onofre-
muniz-gomes-de>. Acesso em 12 out. 2017.
18
Diário do Congresso Nacional. Livro 1, p. 126, mar. de 1953. Livros dos Anais do Senado da República. Arquivo
do Senado. Disponível em: <http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/pdf-
digitalizado/Anais_Republica/1954/1954%20Livro%201.pdf>. Acesso em 12 out. 2017.
76

Com o propósito de reforçar sua percepção negativa em relação à vinda de estrangeiros para o
Brasil, o senador Onofre cita um caso de polícia envolvendo alguns imigrantes, os quais estavam se
revoltando nos locais de hospedagem em São Paulo, ainda que tivessem sido “acolhidos
fraternalmente”. Quando transferidos para a Ilha das Flores, continuaram com a sublevação e
assaltaram uma lancha do Serviço de Polícia Marítima, demonstrando “sua belicosidade”. Para
conter os imigrantes, segundo o senador, foram precisos “um modesto contingente de fuzileiros
navais, um pelotão reforçado de polícias especiais e uma companhia da polícia militar”. Por fim,
foram aceitas as imposições dos imigrantes, que demonstravam o desejo de retornar às suas terras
natais19.
O senador Onofre prossegue realizando uma crítica ao setor de recrutamento de imigrantes,
vigente no Brasil e em outros países do continente americano. Para ele, os europeus, acompanhados
de suas famílias, vinham para a América a fim de conhecer suas paisagens, frequentemente
enaltecidas nos jornais internacionais. Assim, eles se alistavam como imigrantes, viajavam em um
“magnífico navio” e realizavam a “visita de sondagem”. Contudo, eles retornavam à Europa no
mesmo navio ou em outro semelhante, pois “não eram homens de trabalho”. Portanto, segundo
Gomes, havia “algum ‘pato’ pagando todas essas despezas para pessoas talvez não muito sabidas” e
“vigaristas” 20. Para o senador, o mundo estava estranho devido à inversão de valores: o imigrante
era visto como tesouro preciosíssimo no Brasil, como o braço cultivador e como o povoador, ao
mesmo tempo em que não havia o menor interesse pelo emigrante interino e pelo nordestino.

Um dos assuntos em que se fala neste país é em emigração e emigrantes. Disputam-se


poloneses e alemães, japonêses, russos brancos, seja o que fôr. Pessoas deslocadas da
guerra passada, ex-combatentes nazistas, qualquer europeu escangalhado pela guerra,
pelas disputas políticas (...) Xinga-se o gôverno porque os não manda buscar às centenas
de milhares nos campos de deslocados (...) Carpem-se os prejuízos que a falta dêles nos
causa, e nunca serão poucos os confortos da Ilha das Flores, as solicitudes oficiais, para
acolher êsses hóspedes benvindos21.

Apesar de pontuar diversos aspectos negativos, o senador Gomes declarou que não tinha nada
contra os estrangeiros e que não acreditava em raça ou raça ruim, afinal “tudo é criatura, tudo tem
direito à vida”. Por outro lado, ele ironizou a hipótese de que o nordestino precisaria adquirir o
estatuto de estrangeiro no Brasil para conseguir ter o direito à acolhida, a um pedaço de terra para

19
Diário do Congresso Nacional. Livro 1, p. 126, mar. de 1953. Livros dos Anais do Senado da República. Arquivo
do Senado. Disponível em: <http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/pdf-
digitalizado/Anais_Republica/1954/1954%20Livro%201.pdf>. Acesso em 12 out. 2017.
20
Diário do Congresso Nacional. Livro 1, p. 126, mar. de 1953. Livros dos Anais do Senado da República. Arquivo
do Senado. Disponível em: <http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/pdf-
digitalizado/Anais_Republica/1954/1954%20Livro%201.pdf>. Acesso em 12 out. 2017.
21
Diário do Congresso Nacional. Livro 1, p. 126, mar. de 1953. Livros dos Anais do Senado da República. Arquivo
do Senado. Disponível em: <http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/pdf-
digitalizado/Anais_Republica/1954/1954%20Livro%201.pdf>. Acesso em 12 out. 2017.
77

cultivar, à promessa de trabalho e ao asilo para sua mulher e seus filhos. Em seguida, o senador
enalteceu determinadas características dos nordestinos: não possuem nervos arrasados pela guerra;
não trazem ódio no seu “coração inocente”; não alimentam preconceitos nem ideias de
superioridade; não criam seus filhos falando uma língua estranha nem adorando outra pátria; são
sóbrios, laboriosos e férteis; e o governo não precisa pagar por suas passagens. Ao concluir sua
exposição, Onofre Gomes ressaltou que, em primeiro lugar, os nordestinos são também cidadãos
brasileiros.

Para dizer tudo – se lembrem de que nordestino é brasileiro. – Não o parecem, porque
estão derrotados de fome e pobreza; talvez não saibam cantar o hino nacional que isso
ninguém ensinou a êles – mas com hino ou sem hino, são capazes de dar sua derradeira
gôta de sangue pelo retalho mais remoto de fronteira do Rio Grande ou Mato Grosso 22.

Tendo em vista os aspectos observados acerca dos debates ocorridos no Senado e na Câmara
dos Deputados a respeito da fundação do INIC, podemos destacar algumas temáticas recorrentes
tanto no primeiro governo de Getúlio Vargas quanto em seu segundo governo como, por exemplo, a
preferência por imigrantes europeus; a assimilação do imigrante na sociedade brasileira; e a
preocupação em impedir que indivíduos considerados “perturbadores e indesejáveis” adentrassem
no Brasil.
No decreto de 1945, determinou-se que as características mais favoráveis dos imigrantes
europeus deveriam ser preservadas e desenvolvidas na composição étnica da população brasileira.
Em 1953, os senadores também demonstraram interesse pela imigração de europeus, porém com o
foco de atenção voltado para as atividades econômicas que eles deveriam desempenhar no país,
introduzindo, assim, novas técnicas avançadas de trabalho capazes de impulsionar o
desenvolvimento das produções agrícola e industrial. Para Vargas, esses imigrantes poderiam
resolver o problema da escassez de mão de obra técnica e qualificada, além de serem mestres para
os trabalhadores nacionais que, em sua grande maioria, não dispunham de preparação profissional.
A assimilação dos imigrantes foi considerada uma questão nacional durante toda a Era
Vargas. Em um primeiro momento, eles deveriam se incorporar à população não branca para que a
efetivação do branqueamento do povo brasileiro fosse possível. Os portugueses, nesse sentido, eram
vistos como imigrantes assimiláveis e desejáveis. Em um segundo momento, no início da década de
1950, a atenção dos dirigentes voltou-se para o entrosamento entre a mão de obra nacional e a
estrangeira, uma vez que a primeira deveria aprender com os métodos de trabalho da segunda. Além
disso, havia certa preocupação com a educação dos filhos dos imigrantes, os quais tinham o encargo

22
Diário do Congresso Nacional. Livro 1, p. 126, mar. de 1953. Livros dos Anais do Senado da República. Arquivo
do Senado. Disponível em: <http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/pdf-
digitalizado/Anais_Republica/1954/1954%20Livro%201.pdf>. Acesso em 12 out. 2017.
78

de aprender os valores éticos e cívicos do Brasil para não viverem à margem da sociedade, segundo
a perspectiva de alguns deputados.
Getúlio Vargas, durante todo o período em que esteve no poder, destacou o interesse nacional
de evitar os “elementos perturbadores”. Segundo Koifman (2012, p. 38), os imigrantes considerados
como “indesejáveis” eram os portadores de deficiências físicas, os doentes, os envolvidos em
movimentos políticos ou sociais e, certamente, novos imigrantes negros.
Apesar de temas equivalentes terem sido debatidos durante o primeiro e o segundo governo
Vargas no que concerne à política imigratória, a fundação do Instituo Nacional de Imigração e
Colonização, em 1954, provocou transformações administrativas, pois as atividades anteriormente
atribuídas a três diferentes órgãos federais passaram a ser desempenhadas somente pelo INIC.
Dessa forma, era de sua responsabilidade: a) assistir e encaminhar os trabalhadores nacionais
imigrantes de uma, para outra região; b) orientar e promover a seleção, entrada, distribuição e
fixação de imigrantes; c) traçar e executar, direta e indiretamente, o programa nacional de
colonização, tendo em vista a fixação de imigrantes e o maior acesso aos nacionais da pequena
propriedade agrícola23. No entanto, constata-se que o interesse pela mão de obra estrangeira foi
questionado e refutado por uma parcela da classe dirigente, a qual defendia prioritariamente os
trabalhadores nacionais e os nordestinos, a exemplo do senador Onofre Gomes. Para esse grupo, os
imigrantes eram aproveitadores, vigaristas, belicosos, ingratos e avessos ao trabalho, ao passo que
os nordestinos e os emigrantes interinos eram operosos, sóbrios e prolíficos, além de buscarem
oportunidades de trabalho e ofertas de pedaços de terra, uma vez que se viam obrigados a migrar
devido à seca e à escassez de meios de subsistência.

Fontes

Dossiê da Câmara dos Deputados referente ao PL 2110/1952. Arquivo da Câmara dos Deputados.
Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?
codteor=1219612&filename=Dossie+-PL+2110/1952>. Acesso em 12 out. 2017.

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<http://www.senado.leg.br/publicacoes/anais/asp/RP_AnaisRepublica_digitalizados.asp>. Acesso em
12 out. 2017.

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1959/lei-2163-5-janeiro-1954-361499-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em 12 out. 2017.

23
Lei 2.163, de 5 de Janeiro de 1954. Disponível em: <http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei/1950-1959/lei-2163-
5-janeiro-1954-361499-publicacaooriginal-1-pl.html>. Acesso em 12 out. 2017.
79

Bibliografia

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<http://www.uniabeu.edu.br/publica/index.php/reconcavo/article/view/1288/pdf_18>. Acesso em 11
out. 2017.
80

IMIGRAÇÃO E IDENTIDADE NACIONAL: OS PORTUGUESES COMO IMIGRANTES


DESEJÁVEIS

Patricia Santos do Carmo*

Apesar de todo o estímulo dado às diversas correntes migratórias durante a Primeira


República,1 o controle dos fluxos se deu efetivamente a partir da década de 1930, quando a questão
da política imigratória passou a ter um novo viés, e adquiriu importância ímpar, não apenas
atentando para aspectos políticos e econômicos, mas enfatizando a necessidade da formação de uma
sociedade brasileira, buscando a gênese de uma identidade nacional (ANDERSON, 2008;
HOBSBAWM, 2004; GEARY, 2005).
Foi com este intuito que Getúlio Vargas passou a controlar a imigração e a tomá-la como um
projeto do governo que visava articular a necessidade iminente de um Estado forte, composto por
indivíduos que estivessem compromissados com o desenvolvimento social, cultural e econômico,
projeto este que tinha por objetivo primordial a formação de um Estado Nacional.
No que concerne ao caráter político-ideológico, as correntes migratórias eram classificadas
conforme a sua origem étnica, com base nas teorias raciais vindas da Europa. Nessa perspectiva, a
política de imigração durante o Estado Novo foi marcada pelo controle direto do Poder Executivo,
que através de filtros ideológicos e legais selecionava os imigrantes, permitindo ou não a entrada
dos que pudessem se incorporar à sociedade brasileira de forma a torná-la próspera. Esses
imigrantes deveriam estar aptos a serem “fagocitados”, absorvidos pela sociedade, mesclando-se a
ela e adaptando-se de forma plena, compondo e ajudando a formar uma só identidade.
Desta maneira, negros, orientais e judeus passaram a ser vistos com certa cautela pelo
governo brasileiro, podendo-se dizer que eram considerados como indesejáveis (MENEZES, 1996).
Essa relativa aversão à entrada desses imigrantes se explica na medida em que, dentro da nova
ordem, que objetivava a formação de uma nacionalidade composta por uma raça forte – termo
utilizado pelos teóricos nazifascistas. No caso, esses imigrantes mostravam-se inabilitados aos
planos de desenvolvimento do país, sendo, portanto, inadequados para a efetivação deste ideal.

*
Bolsista Capes e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História, Curso de Mestrado Acadêmico, Instituto
de Filosofia e Ciências Humanas – Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
E-mail: patricias.carmo@gmail.com.
1
Ressalte-se que o tema da imigração foi um dos pontos de discussão na Campanha Civilista implementada por Rui
Barbosa nos anos de 1909 e 1910, que rejeitava a imigração subsidiada pelo governo e os projetos governamentais
de colonização, bem como a propaganda para alicia-los, já que para ele, a imigração desejável era aquela em que
fosse possível estabelecer-se de acordo com as conveniências dos próprios imigrantes. (LAIDLER, Cristhiane.
Disputas oligárquicas e participação popular na República Velha. In: CORTE, André Telo da (org.). Nilo Peçanha
e o Rio de Janeiro no cenário da Federação. Rio de Janeiro: Museu do Ingá, 2010. p. 51).
81

O parâmetro adotado para aceitação ou não dos imigrantes deu-se sob o aspecto da
possibilidade e potencialidade de absorção cultural do estrangeiro, considerando a proximidade do
idioma e dos costumes. Além disso, tinha por pressuposto básico o exercício de atividade
profissional que implicasse o desenvolvimento de setores do país onde houvesse carência, como por
exemplo, o técnico. Nessa perspectiva, os europeus de origem latina eram considerados imigrantes
ideais para comporem a nova sociedade brasileira, devido a similaridade cultural e proximidade no
que concerne às raízes ibéricas, mantendo assim laços com a Europa. Os imigrantes dos países
anglo-saxônicos, por outro lado, também eram considerados como um bom fluxo migratório, posto
que trariam para o país o desenvolvimento tecnológico. 2 Buscando sempre enfatizar a questão da
compatibilidade cultural, interesses econômicos e políticos, o governo tratou da questão da
imigração de forma a dar certa coerência à escolha dos estrangeiros que pudessem ser considerados
desejáveis para o país.
Desde então, a questão da qualidade do imigrante que viria compor a massa trabalhadora do
país passou a ser discutida, e os discursos não tratavam apenas da habilidade laborativa daqueles
que para cá viriam, mas, também tratavam das questões raciais. Tomando por base a ciência e as
teorias raciais, a partir da década de 1870, foi se delineando a ideia de que a introdução de
imigrantes europeus brancos significaria a possibilidade de um melhoramento racial, econômico e
cultural para o Brasil, capaz de propiciar a introdução do país na civilização (SCHWARCZ, 2008).
Sobre o processo de imigração brasileiro, de acordo com Lená Medeiros (2012, p. 1):

consideramos que a história da imigração no Brasil teve início com a transferência da


Corte portuguesa, consolidou-se com o término do tráfico de escravos, intensificou-se na
década de 1870 e adquiriu o sentido de movimento massivo ao aproximar-se a virada do
século. Para essa expansão concorreu a necessidade da mão de obra no campo, acoplada a
discursos e propostas de modernização do país, baseados na atração da mão de obra
europeia, considerada capaz de promover o progresso e a civilização.

Importa mencionar que, apesar do incentivo dado à imigração, conforme trabalho de


referência Os indesejáveis: desclassificados da modernidade. Protesto, crime e expulsão na Capital
Federal (1890-1930) de Lená Medeiros (1996), os emigrantes também corriam o risco de sofrerem
processo de expulsão. É possível observar que na Constituição de 1891, foram mencionados casos
de expulsão a qualquer estrangeiro que ameaçasse a segurança nacional, como nos casos de
manifestações através da imprensa e o direito de representação de livre associação, ou mesmo os
que estavam ligados ao movimento anarquista e operário.
Em 1893, foi editado o Decreto n. 1.566, sendo o primeiro regulamento que tinha por objetivo
disciplinar a entrada e a expulsão de estrangeiros no Brasil e sua aplicação teve motivações
2
Conforme pode ser observado no Relatório parcial do Ministro Waldemar Falcão sobre a Conferência Internacional
do Trabalho nº 2 destinada ao Presidente Vargas, 15.06.1938, AN, SDE 35, lata 125.
82

pontuais, entrando em vigor quando o país vivia o estado de sítio por conta da Revolta da Armada,
na qual participaram vários estrangeiros. E mesmo com a situação do país normalizada, a questão
manteve-se como tema importante para as autoridades.
No ano de 1907, foi promulgado o Decreto n. 1.641, também conhecido como “Lei Adolfo
Gordo”, nome que se referia ao deputado que o apresentou, possibilitou a expulsão de estrangeiros
de diversas nacionalidades e pelas mais variadas motivações, considerados como indesejáveis. A
expulsão era utilizada em nome da defesa da ordem, se tornando como principal referencial das
práticas seletivas. A lei de expulsão de estrangeiros de 1907 dispôs acerca da obrigatoriedade de
deportar todos os indivíduos considerados como improdutivos, compreendidos os vagabundos
bêbados, desempregados e os que exerciam atividades ilícitas, ou seja, cáftens e ladrões comuns.
Já no ano de 1921, o Decreto n. 4.247, que disciplinava a entrada de estrangeiros no território
nacional aprofundou os mecanismos de expulsão, principalmente as ações movidas contra
anarquistas e, posteriormente, contra comunistas-marxistas e expandiu para cinco anos o tempo de
permanência do estrangeiro para que fosse possível sofrer a expulsão (em 1907, o prazo era de dois
anos). Através de tais regulamentos, colocou-se fim às práticas liberais relativas às políticas
imigratórias (MENEZES, 2011, p. 37-38).
As políticas de restrição à imigração continuaram em curso, principalmente no período de
Vargas onde a política de imigração, dentro do projeto de constituição do Estado Nacional,
desempenharia papel primordial na composição do povo brasileiro. Por meio da legislação
constitucional e infraconstitucional pode-se observar o tratamento dado ao imigrante.
A ideia do “embranquecimento” da população brasileira, perseguida à época da Grande
Imigração veio a ser consagrada durante o período em que Vargas (1930-1945) esteve no poder,
estando evidente não só no discurso sobre a imigração como também na política de imigração,
tendo por fim impedir a entrada de elementos negros no país, como também de judeus e asiáticos.
Pode-se inferir que a eugenia foi a base ideológica das medidas de restrição da entrada de alguns
tipos étnicos.
Nesse processo, a facilidade de assimilação cultural (SEYFERTH, 1991) surgiu como critério
para a entrada do imigrante, o que apontava para Portugal e rechaçava a vinda de determinadas
etnias, a partir da ideia de que não seriam capazes de ser absorvidas pela cultura brasileira. Baseada
neste argumento, a política adotada, a partir da instauração do regime de cotas, fez descer a taxa de
imigração de japoneses, enquanto era facilitada a entrada de portugueses, espanhóis e italianos, não
apenas por serem eles os de maior expressão no território nacional que se refletia em cotas maiores,
mas também devido à similaridade de sua cultura com a cultura brasileira.
83

Sobre o aspecto legal e o dirigismo presentes na política imigratória brasileira, durante a Era
Vargas, a fim de evitar a presença dos chamados indesejáveis, procurando negar sinal de
preconceito de qualquer natureza, em seu discurso Dulphe Pinheiro Machado, Diretor Geral do
Departamento de Povoamento, por ocasião da Conferência Internacional do Trabalho, se
pronunciava:

Nous ne nourissons pas des préjugés de race ou la religion. L’égalité de traitement


accordé aux nationaux et aux étrangers, la garantie de la liberté religieuse, nos institutions
libres ainsi que notre législation sociale, offrent à l’immmigrant des conditions
exceptionnelles de bien-être et de stablilité.
Nous nous orientons actuellement vers une politique d’immigration dirigée par l’Etat
afin d’éviter l’admission dans le pays d’éléments indésirables ou dont l’assimilation
pourrait présenter des difficultés. L’immigration libre et non dirigée a été la conséquence
des doctrines individualistes du dix-neuvième siècle. Etablir les règles auxquelles doit se
soumettre l’entrée des étrangers dans le pays est une necessité intimement liée aux
intérêts suprêmes du pays. Dans ces conditions, l’Etat est tenu de réglementer l’admission
des travailleurs immigrants conformément aux necessités de son dévéloppement
économique, de proteger les travailleurs nationaux, contre les effets nuisibles provoqués
par la concurrence des bas salaires et de donner à l’étranger les garanties dont il a besoin.
Les pouvoirs publics, d’autre part, considérant l’extrême importance du problème relatif à
l’assimilation des étrangers, assument la tâche de distribuer ces derniers parmi les
différents centres comme les premières cellules de peuplement futur et estiment qu’ils
doivent être l’objet d’enquêtes et d’études spéciales. (...).3 (grifos nossos)

A citação nos mostra claramente os aspectos político-ideológicos da imigração no Brasil,


procurando sempre dar destaque ao seu caráter econômico, com a inserção do estrangeiro com o fim
de auxiliar a construção e o desenvolvimento do país, forjando uma nação forte e soberana. Busca
enfatizar e demonstrar, diante da opinião pública, o Brasil como o país liberal dos trópicos, não
aderindo de forma alguma aos regimes totalitários da Europa. A passagem dispõe, ainda, sobre o
tratamento igualitário dispensado aos nacionais e aos estrangeiros e a preocupação do Estado em
proporcionar a liberdade e igualdade de todos perante a lei e garantias laborais que possibilitem
condições de bem-estar e estabilidade.
3
“Não nos nutrimos de preconceitos de raça ou religião. A igualdade de tratamentos concedida aos nativos e aos
estrangeiros, a garantia da liberdade religiosa, nossas instituições livres assim como nossa legislação social
oferecem ao imigrante condições excepcionais de bem viver e de estabilidade.
Atualmente, orientamo-nos através de uma política de imigração dirigida pelo Estado, a fim de evitar a admissão,
no país, de elementos indesejáveis, ou cuja assimilação pudesse apresentar dificuldades. A imigração livre e não
dirigida foi conseqüência das doutrinas individualistas do século XIX. Estabelecer regras às quais deve se submeter
a entrada de estrangeiros no país é uma necessidade inteiramente ligada aos interesses supremos do país. Nessas
condições, o Estado trata de regulamentar a admissão dos trabalhadores imigrantes conforme as necessidades de seu
desenvolvimento econômico, de proteger os trabalhadores da nação contra os efeitos nocivos provocados pela
concorrência de baixos salários, e de dar ao estrangeiro as garantias de que ele necessita. Os poderes públicos, de
outra parte, considerando-se a extrema importância do problema relativo à assimilação de estrangeiros, assumem a
tarefa de distribuir estes últimos entre os diferentes centros coloniais do país, já que eles consideram, com efeito,
estes centros como as primeiras células populacionais do futuro, e estimam que devem ser objeto de enquetes e
estudos especializados.” (tradução livre). Discurso de Dulphe Pinheiro Machado, Diretor Geral do Departamento de
Povoamento, por ocasião da Conferência Internacional do Trabalho. AN, SDE 35, 17.10 Ministério do Trabalho-
Gabinete Civil da Presidência da República, lata 278 – 1940-41.
84

Outro ponto que destacamos é a questão relativa à assimilação, que se mostra como principal
fator para a admissão de estrangeiros, cabendo ao poder público, diante da extrema importância do
assunto, tomar medidas para a facilitação do processo de assimilação, distribuindo os imigrantes em
centros coloniais, considerados “como as primeiras células populacionais do futuro”. Sobre a
matéria, convém mencionar a questão dos quistos coloniais formados por uma só etnia ou
nacionalidade, que foram alvo de diversas proibições na legislação, pois, poderiam representar uma
ameaça à unidade territorial e à ideia da formação de uma identidade.
Os órgãos responsáveis pela política imigratória não tomaram por base explícita de seus
argumentos, para o favorecimento da imigração branca, as questões relativas às teorias que
afirmavam a sua superioridade biológica. A justificativa por essa opção voltou-se principalmente,
para os aspectos ligados à cultura e à história do país. Dessa forma, nada mais conveniente do que
considerar o português imigrante como elemento natural para a formação do povo. A multiplicidade
étnica era um fator que, ia contra os planos de homogeneização cultural, e os estrangeiros que
pudessem apresentar certa resistência à assimilação, significavam um perigo para a efetivação e
manutenção de defesa do território e da cultura nacionais, fatores determinantes para o
fortalecimento da nação.
Entre todas as correntes migratórias consideradas desejáveis, a portuguesa apresenta-se como
preferência nacional, não só pelos laços históricos, mas também pela similaridade cultural, o que
pode ser observado claramente na legislação do período. Deve ser lembrado que a imigração
portuguesa foi a mais representativa e com maior fluxo desde que eles se tornaram estrangeiros com
a Independência, crescendo ao longo do século XIX, culminando com a chamada Grande Imigração
(1890-1914), período no qual a emigração portuguesa transatlântica teve como principal destino e
quase exclusivo o Brasil.4
Apesar do recrudescimento na legislação relativa à política de imigração com o
estabelecimento de cotas em 1934 e a diminuição da entrada de imigrantes não só portugueses, mas
também de outras nacionalidades.5 E mesmo diante de tal medida, houve uma permanência na
4
Sobre a Grande Imigração: “(...) a visibilidade da chamada Grande Imigração no contexto da imigração de massa,
processo que conheceu movimentos de ascensão e retração relativas, explicados tanto por motivações internas
quanto externas. As retrações ocorridas, entretanto, tenderam sempre a possibilitar novos períodos de ascensão,
com determinadas nacionalidades, caracterizando novos movimentos massivos na virada dos 1900, caso de
italianos e japoneses. É possível perceber, por exemplo, que a partir da década de 1880 os quantitativos de entrada
chegaram, em alguns anos, a triplicar ou quadruplicar, com picos expressivos em 1888 (ano da abolição da
escravatura), 1891 (boom da imigração italiana), 1893 e 1895”. MENEZES, Lená Medeiros de. Imigração no
Brasil: discursos em disputa e práticas seletivas. Disponível em: <
http://www.cepesepublicacoes.pt/portal/pt/obras/emigracao-portuguesa-para-o-brasil/um-passaporte-para-a-terra-
prometida/imigracao-no-brasil-discursos-em-disputa-e-praticas-seletivas>. Acesso em: jul. 2017.
5
Destaque para o Decreto n. 19.482 de 30.12.1930 que suspendeu por um ano a concessão de vistos de entrada no
Brasil a passageiros estrangeiros de terceira classe, categoria em que viajava quase totalidade dos trabalhadores
imigrantes. Idem. Ibidem. p. 247-253. Sobre o tema, Lená Medeiros, destaca que “pelos números referentes às
entradas de estrangeiros em território brasileiro, é possível perceber a drástica redução das entradas em três
85

facilitação da entrada de imigrantes lusos no território brasileiro. Tal restrição imposta à entrada de
imigrantes foi relativizada em relação aos de origem portuguesa, devido ao fato de tal privilégio
basear-se na tese de que a população brasileira tinha raízes lusitanas.
O favorecimento relativo à entrada lusitana pode, ainda, ser explicado através do conceito
cunhado por Durossele e utilizado em trabalhos de referência de Lená Medeiros (2013), dispondo
que os portugueses, enquanto estrangeiros conhecidos, tendiam a ser inseridos no conjunto da
população de língua portuguesa, sem marcas mais incisivas acerca de sua diferença, dirigida para
grupos vistos como mais exógenos. Dessa forma,

No caso específico da imigração portuguesa, não pode ser esquecida a necessidade do


estabelecimento de distinções temporais entre colonização e imigração, a partir da ideia
de que a transformação do colono português em imigrante constituiu-se em ato fundante
do Estado brasileiro. Mesmo transformado em imigrante, porém, o português manteve-se
como estrangeiro “conhecido”, conforme tipologia proposta por Durossele, baseada em
dimensões variadas de estranhamento cultural. Essa situação acabaria por lhe garantir
diferenças de tratamento quando da imposição das cotas de entrada, no pós-1930. (...)
Com relação aos portugueses, desde cedo foram adotadas medidas de relativização na
aplicação das novas medidas. Com relação às cotas especificamente, para além de
relativizações iniciais, elas deixaram de os afetar a partir de 1939, decisão que veio a
fortalecer a definição de uma nacionalidade brasileira que buscava suas raízes no passado.
(MENEZES , 2011, p. 25 e 40)

O estabelecimento de cotas para entrada, na nova era instaurada por Vargas, é o resultado de
uma restrição à imigração, com políticas anti-imigrantistas que expandiram-se pelo ocidente e que
teve origem a partir da imposição de cotas pelos Estados Unidos, no ano de 1921 e reiteradas em
1924, em relação aos imigrantes japoneses (MENEZES, 2011, p. 37-38, 2013, p. 150).
Na legislação pátria, as medidas restritivas encontravam-se disciplinadas nos diplomas
constitucional e infraconstitucional. Além das Constituições dos anos de 1934 e 1937, trataremos da
Lei de Imigração de 1935 e 1938, o Decreto nº 406, de 04/05/1938, que dispõe sobre a entrada de
estrangeiros no território nacional, e o seu regulamento, o Decreto nº 3.010, de 20/08/1938 e
posteriormente o Decreto n° 3.175/1941.
A Constituição do ano de 1934 que instaurou a política de cotas para a entrada de
imigrantes, baseou-se em linhas gerais em garantir o fortalecimento do Estado, com o aumento do
intervencionismo e em prol do desenvolvimento econômico e social. O referido diploma trouxe os
aspectos que qualificavam o estrangeiro como elemento desejável dentro da sociedade brasileira. A
seleção e aceitação do imigrante ficava a cargo do Chefe de Estado, que procurava tratar do assunto
momentos principais: o período da Primeira Grande Guerra, os anos que se seguiram à implantação das cotas de
entrada (1934) e a conjuntura da Segunda Guerra Mundial.” Portugueses, espanhóis e italianos no Rio de Janeiro
segundo os registros censitários (1872-1960). Disponível em: <
http://www.cepesepublicacoes.pt/portal/pt/obras/portugal-e-as-migracoes-da-europa-do-sul-para-a-america-do-
sul/portugueses-espanhois-e-italianos-no-rio-de-janeiro-segundo-os-registros-censitarios-1872-1960>. Acesso em:
jul. 2017. p. 42.
86

de forma personalíssima, assim, era de competência privativa da União legislar sobre a política de
imigração, como dispõe o art. 5°, inciso XIX, alínea g, da Constituição Federal: “Compete
privativamente à União: (...) XIX – legislar sobre: (...) g) naturalização, entrada e expulsão de
estrangeiros, extradição; emigração e imigração, que deverá ser regulada e orientada, podendo ser
proibida totalmente, ou em razão da procedência;”.
Destaque para a parte final da alínea, que expõe de forma flagrante que a aceitação deste ou
daquele indivíduo estava adstrita à sua procedência. Além da competência privativa da União para
legislar sobre a matéria, a política de relações internacionais estava também concentrada na figura
do Presidente da República, conforme art. 56, § 5°.
No Capítulo II do Título III, da Constituição, denominado Dos Direitos e das Garantias
Individuais, em seu art. 113, é possível observar que a Constituição é o instrumento precípuo para
assegurar aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos seus direitos
concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade; segue ainda
afirmando que não haverá privilégios, nem distinções, por motivo de nascimento, sexo, raça,
profissões próprias ou dos pais, classe social, riqueza, crenças religiosas ou idéias políticas, e que
todos são iguais perante a lei (caput e 1).
Mais adiante, todavia, podemos nos deparar com outro ditame legal que mais uma vez deixa
de forma clara a opção e os ideais do Estado quando o assunto é imigração, permitindo à União
expulsar do território nacional os estrangeiros perigosos à ordem pública ou que atentassem contra
os interesses do país (art. 113, 12). Ora, o disposto neste item demonstra o caráter aleatório utilizado
pelo Estado para expulsar o estrangeiro considerado inadequado ou perigoso, utilizando termos
evasivos como “ordem pública” e “interesse do país”; possibilita a tomada de qualquer medida
estatal, legitimando-a e tendo como fundamento o mandamento constitucional, que juridicamente
representa a base da legislação de uma nação.6
Resta mencionar que a política de imigração deste período e dos anos que se seguiram ao
Estado Novo encontra-se intrinsecamente ligada às questões trabalhistas e ao desenvolvimento do
país, onde o imigrante qualificado desempenha papel importante neste processo, além, é claro do
melhoramento da raça brasileira, a ex. o art. 121 da Constituição. Destacamos o § 6º do art. 121,
que impôs como medida restritiva a cota de 2% (dois por cento) para a entrada da corrente

6
Sobre o tema, insta mencionar a Lei Adolfo Gordo de 1907, Decreto 1.641 elaborado com o objetivo de “afastar as
lideranças sindicais propagadoras de teorias exóticas”, proporcionando a expulsão do estrangeiro do território “que
por qualquer motivo comprometer a segurança nacional ou a tranquilidade pública”. Em 23 de maio do mesmo ano
foi aprovado o decreto regulamentador 6.486, que permitiu a aplicação de imediato do decreto expulsatório.
MENDES, José Sacchetta Ramos. Laços de Sangue. Privilégios e intolerância à imigração portuguesa no Brasil
(1822-1945). São Paulo: EDUSP: FAPESP, 2011. p. 201-202.
87

imigratória proporcional ao número total dos respectivos nacionais fixados no Brasil nos últimos
cinquenta anos, observe:

§ 6º A entrada de imigrantes no território nacional sofrerá as restrições necessárias à


garantia da integração étnica e capacidade física e civil do imigrante, não podendo,
porém, a corrente imigratória de cada país exceder, anualmente, o limite de dois por cento
sobre o número total dos respectivos nacionais fixados no Brasil durante os últimos
cinquenta anos.

E segue afirmando que era defesa em lei a formação dos chamados quistos coloniais (já
mencionados): “§ 7º É vedada a concentração de imigrantes em qualquer ponto do território da
União, devendo a lei regular a seleção, localização e assimilação do alienígena”.
A assimilação do estrangeiro é garantida através da educação, que “é direito de todos e deve
ser ministrada pela família e pelos Poderes Públicos, cumprindo a estes proporcioná-la a brasileiros
e a estrangeiros domiciliados no País, de modo que possibilite eficientes fatores da vida moral e
econômica da Nação, e desenvolva num espírito brasileiro a consciência da solidariedade humana”
(art. 149). Portanto, para o estrangeiro ser aceito e tomado no seio da nação deveria ser despertado
nele o “espírito brasileiro”, daí uma das necessidades de se investir numa cultura brasileira.
O mais interessante e que melhor resume os ideais deste período está presente no art. 138 da
Constituição de 1934, em suas alíneas b e g: “Art. 138. Incumbe à União, aos Estados e aos
Municípios, nos termos das leis respectivas: (...) b) estimular a educação eugênica; (...) g) cuidar da
higiene mental e incentivar a luta contra os venenos sociais”. A educação eugênica traduz o ideal de
Vargas de melhoramento e embranquecimento da chamada raça brasileira, bem como “os venenos
sociais” tocam ao combate dos ideais comunistas.
No que concerne à Constituição outorgada de 1937, após a instauração do Estado Novo,
além do acirramento das medidas centralizadoras e a legislação sobre a matéria trabalhista ter se
tornado uma realidade onde cabia ao Estado garantir os direitos dos trabalhadores, o assunto tratado
de forma mais genérica, quando comparado à abordagem presente na Constituição de 1934,
cabendo à legislação especial tratá-la de forma mais específica. De qualquer forma, cumpre
mencionar o art. 151, mantendo o limite da corrente imigratória no percentual de até 2% sobre o
número total de nacionais. Esta política de cotas manteve a relativização em relação aos
portugueses, no entanto, é possível perceber que tal medida reverberou em todas correntes
migratórias, havendo um decréscimo na entrada de imigrantes durante esse período, segundo dados
do IBGE.
Outros diplomas legais também tratam da questão da imigração, com destaque para a Lei de
Imigração de 1935 e 1938, tendo como principais formuladores Oliveira Vianna e Dulphe Pinheiro
Machado, que guardam como temas centrais a seleção étnica dos imigrantes, a opção por
88

agricultores e técnicos industriais, a nacionalização dos chamados “quistos étnicos” na Região Sul
do país, o controle do estrangeiro através da obrigatoriedade de seu registro e a criação de um órgão
central que cuidasse da política imigratória. Merece destaque no que concerne à política de cotas
tratada na Constituição de 1937 regulada pelo Decreto-lei nº 406, de 04/05/1938, e o seu
regulamento, o Decreto nº 3.010, de 20/08/1938.
Nesta legislação, além da clara a preocupação com o processo da formação étnica brasileira,
foram criados alguns órgãos que ficaram com a tarefa de controle do fluxo imigratório: Ministério
das Relações Exteriores, Conselho de Imigração e Colonização (CIC) 7, Departamento Nacional de
Imigração e Povoamento, Serviço de Registro de Estrangeiros, Ministério da Justiça e Negócios
Interiores.
Os formuladores da política imigratória viam a imigração e a colonização como elementos
interligados, já que a finalidade da seleção imigratória visava permitir apenas a inserção de
estrangeiros que fossem capazes de promover o desenvolvimento econômico do país, e que
contribuíssem para a formação da nacionalidade. De acordo com essas características, o estrangeiro
era considerado “desejável” ou “indesejável”, sendo, portanto, útil no sentido de atender às
necessidades econômicas e étnicas do país. Estes objetivos podem ser vislumbrados claramente, no
Decreto-lei nº 406/1938, dispondo em seu art. 1º que
“não será permitida a entrada de estrangeiros, de um ou outro sexo: (...) II – indigentes,
vagabundos, ciganos e congêneres; (...) VIII – de conduta manifestamente nociva à ordem pública,
à segurança nacional ou à estrutura das instituições.”. E seu art. 2º previa que ao Governo Federal
era reservado o direito de limitar ou suspender, por motivos econômicos ou sociais, a entrada de
indivíduos de determinadas raças ou origens, ouvido o Conselho de Imigração e Colonização. E que
não seria aposto o visto: “a) – se a autoridade verificar que o estrangeiro é inadmissível no território
nacional; b) – se a autoridade consular tiver conhecimento de fatos ou razoável motivo para
considerar o estrangeiro indesejável” (art. 6º).8
Diante do texto legal acima, pode-se observar que a lei não especifica quais são os
estrangeiros “indesejáveis”, ficando a critério do órgão consular determinar se este ou aquele pode
entrar no país. Com isso, havia uma abertura na interpretação, que permitia ao órgão competente
arbitrar como bem entendesse, não vinculando e não deixando brechas para críticas alusivas a
assuntos que se refiram à discriminação étnica. Os critérios utilizados pelas autoridades referem-se

7
O CIC, criado em 1938, representou o órgão principal da política imigratória do Estado Novo que estava
subordinado à Presidência da República e os serviços relacionados à entrada de estrangeiros e colonização
dividiam-se entre ministérios e repartições administrativas.
8
Decreto nº 406, que dispõe sobre a entrada de estrangeiros no território nacional, 04.05.1938, AN, SDE 35, DP 509,
lata 3117. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del0406.htm>. Acesso em
30 mar. 2017.
89

a motivos econômicos e sociais, mas na segunda parte do art. 2º há a referência à questão da origem
e da raça do estrangeiro, figurando como um elemento secundário de seleção.
Foi também estabelecida como critério de seleção a função desempenhada pelos
estrangeiros, que tinham de obedecer a dois tipos: agricultor ou técnico industrial rural. Eram
classificados como permanentes (considerados como vindos em caráter permanente os que
tencionassem permanecer no território nacional por prazo superior a seis meses) ou temporários no
território, e foram mantidas as cotas de entrada.
Ressalte-se que o governo estava preocupado não somente com as funções que seriam
desempenhadas pelos imigrantes, como também com o tempo em que estes permaneceriam no país,
determinando um prazo mínimo de quatro anos para que estes pudessem abandonar o trabalho para
o qual foram designados, podendo, então, sair da área rural e ir para a zona urbana. Isso demonstra
claramente o intuito do governo de radicar o imigrante na zona rural, a fim de promover o
desenvolvimento do interior do país (art. 34).
A aceitação de estrangeiros em território nacional estava ligada à questão da capacidade de
assimilação daquele com a cultura brasileira. Ideologicamente, o estrangeiro deve estar de tal forma
imerso na sociedade que passe realmente a fazer parte dela. Calcula-se, portanto, o potencial de
diluição do elemento estrangeiro, estando ele completamente radicado e adaptado, contribuindo de
forma inequívoca na formação da nacionalidade, e em defesa dela. Como dito anteriormente, evita-
se a formação de núcleos homogêneos. Pode-se, portanto, observar como a questão é tratada
legalmente:

Capítulo VII Concentração e Assimilação


Art. 39. Nenhum núcleo colonial, centro agrícola ou colônia será constituído por
estrangeiros de uma só nacionalidade.
Art. 40. O Conselho de Imigração e Colonização poderá proibir a concessão,
transferência ou arrendamento de lotes a estrangeiros da nacionalidade cuja
preponderância ou concentração no núcleo, centro ou colônia, em fundação ou
emancipados, seja contrária à composição étnica ou social do povo brasileiro.
Parágrafo 1o Em cada núcleo ou centro oficial ou particular seja mantido um mínimo de
trinta por cento (30%) de brasileiros e o máximo de vinte e cinco por cento (25%) de cada
nacionalidade estrangeira. Na falta de brasileiros, este mínimo, mediante autorização do
Conselho de Imigração e Colonização, poderá ser suprido por estrangeiros, de preferência
portugueses.9

A nacionalização das instituições de ensino também aparece na presente legislação,


primando sempre pela defesa da cultura nacional, e, por isso, evitando quaisquer influências

9
Decreto nº 406, que dispõe sobre a entrada de estrangeiros no território nacional, 04.05.1938, AN, SDE 35, DP 509,
lata 3117. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/1937-1946/Del0406.htm>. Acesso em
30 mar. 2017.
90

danosas ao ideal de cunho nacionalista, conforme os arts. 41 e 42 do presente decreto-lei. 10 Pode-se


presenciar a mesma preocupação do legislador no que concerne ao idioma a ser utilizado para
lecionar, vedando o uso de línguas estrangeiras em publicações de livros jornais e revistas, e
tornando obrigatório o ensino de História e Geografia do Brasil (conforme os arts. 85 e 86 do
Decreto nº 406).11
O Capítulo XV do Decreto-lei nº 406 determina a criação do Conselho de Imigração e
Colonização a partir de seu art. 73, cuja redação dispõe que os membros que farão parte do citado
órgão serão nomeados pelo Presidente da República, demonstrando claramente que a questão da
imigração encontrava-se centralizada e no seu art. 76 dispõe acerca das funções do CIC, com
destaque para as alíneas: “a) determinar as quotas de admissão de estrangeiros no território nacional
tendo em vista o disposto no capítulo III; (...) d) deliberar sobre os pedidos dos Estados, relativos à
introdução de estrangeiros; e, e) decidir a respeito dos pedidos de empresas, associações,
companhias e particulares que pretendam introduzir estrangeiros.”
Em 30 de agosto de 1938 foi publicado o Decreto nº 3.010, que regulamentou o Decreto-lei nº
406, de 04 de maio do mesmo ano, que dispunha sobre a entrada de estrangeiros no território
nacional. Em seus arts. 9º e 10 disciplinavam a questão relativa às cotas de estrangeiros que
poderiam adentrar o país em caráter permanente.12

10
“Art. 41. Nos núcleos, centros ou colônias, quaisquer escolas oficiais ou particulares, serão sempre regidas por
brasileiros natos. Parágrafo único. Nos núcleos, centros ou colônias é obrigatório o estabelecimento de escolas
primárias em número suficiente, computadas as mesmas no plano de colonização.” “Art. 42. Nenhum núcleo,
centro ou colônia, ou estabelecimento de comércio ou indústria ou associação neles existentes, poderá ter
denominação em idioma estrangeiro.”
11
“Capítulo XVI – Disposições Gerais e Transitórias: Art. 85. Em todas as escolas rurais do país, o ensino de
qualquer matéria será ministrado em português, sem o prejuízo do eventual emprego do método direto no ensino
das línguas vivas. § 1o As escolas a que se refere este artigo serão sempre regidas por brasileiros natos. § 2o Nelas
não se ensinará idioma estrangeiro a menores de quatorze (14) anos. § 3o Os livros destinados ao ensino primário
serão exclusivamente escritos em língua portuguesa. § 4o Nos programas de ensino primário e secundário é
obrigatório e ensino de história e geografia do Brasil. § 5o Nas escolas para estrangeiros adultos serão ensinadas
noções sobre as instituições políticas do país." “Art. 86. Nas zonas rurais do país não será permittida a publicação
de livros, revistas ou jornais em íingua estrangeira, sem permissão do Conselho de Imigração e Colonização.”
12
Art. 9º Fica adotada a discriminação de quotas (...) § 1º Quando se crear um novo Estado, a entrada dos seus
nacionais será permitida livremente, a juízo do C.I.C., no correr do primeiro decênio. Para o cálculo das quotas
posteriores desse Estado somar-se-ão ao número dos que tiverem entrado neste decênio três parcelas
correspondentes, cada uma, a 20% da mesma base, calculando-se finalmente a quota de 2 % sobre o número assim
obtido. § 2º A domínio, mandato, possessão ou colonia não caberá quota própria, vigorando a do Estado sob cuja
soberania estiver. § 3º Quando os cônjuges tiverem nacionalidades diferentes, prevalecerá a daquele cuja quota
ainda não esteja esgotada.
Art. 10. Oitenta por cento (80 %) da quota anual de cada nacionalidade serão preenchidos com agricultores e
respectivas famílias. Parágrafo único. A prova de profissão, para efeito deste artigo, far-se-à perante a autoridade
consular e a critério desta, mediante atestados de corporações, sociedades, associações ou pessoas idôneas do local.
Quando o governo federal ou os governos estaduais se incumbirem, na forma da lei, da fiscalização e do
selecionamento dos agricultores no estrangeiro, a autoridade consular poderá louvar-se, para o mesmo fim, na
indicação dos funcionários encarregados desse serviço; mas a autoridade consular não se alheará ao seu dever de
fiscalizar nem dispensará a satisfação das demais exigências legais e regulamentares.
91

Importante destacar que, no ano de 1941, Getúlio Vargas sancionou o Decreto-Lei nº 3.175,
que passava o controle da entrada de estrangeiros no território nacional do Ministério das Relações
Exteriores, o Itamaraty, para o Ministério da Justiça e Negócios Interiores, cuja direção encontrava-
se na mão de Francisco Campos, um dos principais ideólogos do Estado Novo. No que tange ao
Decreto nº 3.010, de 1938, que regulamentou o Decreto-lei nº 406, continuou vigorando somente
naquilo que não fosse contrário ao disposto no Decreto-Lei nº 3.175/1941.
O Decreto-Lei nº 3.175/1941 tinha por escopo a restrição à imigração e corrobora aspectos de
seleção tidos como parâmetro para entrada de estrangeiros no país. Cabendo ao Ministro da Justiça
e Negócios Interiores a função de coordenar e executar as disposições legais “de modo que melhor
corresponder ao bem público”.13 A concessão de visto seria assim impedida a determinados
indivíduos ou categorias de estrangeiros que deveriam reunir requisitos físicos e morais exigidos
pela legislação em vigor, apresentando, para tanto, aptidão para a realização de trabalhos a que se
destinassem e condições de assimilação ao meio brasileiro.
Através dos dispositivos legais analisados procuramos inferir que a política de imigração
tinha por objetivo não a simples permissão ou rejeição deste ou daquele estrangeiro, mas sim um
projeto de formação de identidade nacional e de um povo, implementado por Getúlio Vargas, a fim
de possibilitar o desenvolvimento de um Estado centralizado e forte. A Era Vargas foi responsável
por uma mudança legislativa e representacional, tomando a lusitanidade como base da nação
brasileira.

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nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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CORTE, André Telo da (org.). Nilo Peçanha e o Rio de Janeiro no cenário da Federação. Rio de
Janeiro: Museu do Ingá, 2010.

13
Decreto-Lei n° 3.175/1941, que dispõe sobre a entrada de estrangeiros no território nacional, 04.05.1938, AN, SDE
35, DP 509, lata 3117.
92

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Parte 3

Circulação de ideias, saberes e intelectuais na imigração


94

O INTELECTUAL NEGRO COMO PRODUTO DA DIÁSPORA

Alencar Rampelotto da Silva* e João Heitor Macedo da Silva**

O debate intelectual da diáspora africana em língua inglesa


Em um ciclo literário sobre África e Oriente Médio, em que o tema da vez era o intelectual
anglo-jamaicano Stuart Hall, um dos integrantes da mesa coordenadora interpolou uma questão aos
participantes que debatiam a respeito do livro Da Diáspora: identidades e Mediações culturais
(2011) e seus intelectuais afiliados – “se a produção intelectual dos teóricos pós-coloniais seria
mesmo uma nova epistemologia (estas vindas a partir das experiências do Caribe, África e Índia,
para citar apenas algumas regiões), já que o local de fala geralmente desses pensadores esta
concentrado na Europa ou nos Estados Unidos. Nesse caso, não seria contraditório ou mesmo válido
o conteúdo produzido?”. É claro que o seu intuito foi mais para provocar e fomentar o debate entre
os avis participantes – como ele mesmo dissera – iria ser o “advogado do diabo”.
Depois disso, esse questionamento não saiu mais da cabeça. Ficava pensando – a maior parte
da produção intelectual está no Atlântico Norte1, o que se produz no Sul tem que seguir as diretrizes
metodológicas e teóricas europeias. O que não é uma mentira, mas também não é algo absoluto. Em
seu artigo Pensando a diáspora, reflexões sobre a terra no exterior, encontrado no livro
supracitado, Hall aborda essa questão do negro caribenho na Europa e os impasses da identidade, o
que nos ajuda a pensar mais sobre esse fenômeno.
O processo da diáspora africana entre os três continentes atlânticos África, América e Europa
é uma das bases formadoras da modernidade. Em uma abordagem histórica, pensar a modernidade
não é somente pensar a diáspora, mas também o colonialismo, o imperialismo e a globalização.
Relações históricas em que não somente o africano, mas o negro em geral foi e ainda é vítima da
herança dos liames imperiais, tendo como um dos principais exemplos, um dos piores eventos da
humanidade a escravidão moderna. Entretanto, as relações não possuem um único desdobramento,
mas sim vários como nos casos das migrações contemporâneas livres ou forçadas (geralmente em
busca de melhores condições socioeconômicas) que acabam mudando as estruturas locais no
sentido de pluralizar e diversificar as culturas e identidades culturais dos países, desrespeitando as
fronteiras dos estados-nações, principalmente das antigas potências imperiais – o que não deixa de
ser uma luta, afinal de contas se está desafiando as “sólidas fronteiras” –, afinal as diásporas

*
PPGH-UFSM – alersfx@gmail.com
**
PPGH-UFSM – joaoheitorsm@gmail.com
1
Figura de linguagem criada pelo crítico literário Paul Gilroy (1956) que em partes esta relacionado à crítica da
hegemonia acadêmica e intelectual euro-estadunidense.
95

contemporâneas podem ser compreendidas como consequências das ações coloniais europeias dos
séculos passados, não é a toa, por exemplo, que há vários bairros compostos por urdus e caribenhos,
antigos súditos do império britânico, em Londres e não em Tóquio.

Uma epistemologia subversiva


A palavra-chave para entendermos a epistemologia dos Estudos Culturais 2, uma das principais
filiações pós-coloniais, talvez seja subversão. Aquele centro irradiador que transmitia “a cultura”
para as demais regiões do globo começa a se perder. Porque do mesmo modo em que, por exemplo,
a cultura estadunidense tem por objetivo homogeneizar as demais com seu apelo econômico e
midiático, ao mesmo tempo há uma descentralização àquele modelo, como diz Hall, “levando a
uma disseminação da diferença cultural em todo o globo (2011, p. 44). Podemos ver isso nas mais
variadas formas e expressões, sejam filosóficas, artísticas ou políticas.

Podemos perceber agora que a arte negra aparasse no Ocidente no momento em que a
modernidade se revela ativamente associada com as formas de terror legitimado por
referência à ideia de “raça”. Devemos nos lembrar de que, por modernas que possam
parecer, as práticas artísticas dos escravos e seus descendentes também são
fundamentadas na modernidade. A invocação da anterioridade como antimodernidade é
mais do que um floreio retórico consistente, vinculando a africologia contemporânea e
seus precursores do século XIX. Esses gestos articulam uma memória da história da pré-
escravidão que pode, por sua vez, operar como mecanismo para destilar e focalizar o
contrapoder daqueles mantidos em servidão e seus descendentes. Essa prática artística,
portanto, está inevitavelmente tanto dentro como fora da proteção duvidosa que a
modernidade oferece. Ela pode ser examinada em relação a formas, temas e ideias
modernas, mas carrega sua crítica própria e distinta da modernidade, uma crítica forjada a
partir das experiências particulares envolvidas em ser escravo por questões de raça em
um sistema legítimo e declaradamente racional de trabalho não livre. Em outras palavras,
essa formação artística e política passou a cultuar sua medida de autonomia em relação ao
moderno – uma vitalidade independente que advém do pulso sincopado de perspectivas
filosóficas e estéticas não europeias e as consequências de seu impacto sobre normas
ocidentais. [...] Esse sistema produziu uma modernidade grosseira, descentrada dos
mundos fechados da Europa metropolitana, que até agora têm merecido a atenção dos
teóricos (GILROY, 2012, p. 130).

O que o crítico literário britânico, Paul Gilroy nos quer dizer é que, apesar do discurso
(iluminista) da modernidade se referir somente ao Ocidente 3, há elementos subversivos trazidos por
outros povos, principalmente pelos africanos e seus descendentes, os grandes fiadores da construção
da América e até mesmo dos Estados Unidos, o bastião europeu no Novo Mundo, visto que, a
escravidão possuiu um papel importante na formação das concepções da sociedade e cultura

2
Para o teórico cultural Stuart Hall (1932-2014), nos Estudos Culturais compreenderiam múltiplos discursos, com
numerosas histórias diferentes. Situam-se nele conjuntos de formações com diferentes conjunturas e momentos
históricos.
3
Temos como referência de Ocidente nessa discussão, a clássica divisão do politólogo liberal Samuel P. Huntington
em o Choque das civilizações e a recomposição da ordem mundial (2010), onde a civilização ocidental
compreenderia a Europa Ocidental, os EUA e as “colônias brancas” do Canadá, Austrália e Nova Zelândia.
96

estadunidense. Os elementos não europeus também são modernos, a África e os afro-americanos


também, mesmo que de maneira subversiva colaboraram para a construção de ideias e assim a
formulação de suas críticas. Essa ideia de Gilroy é muito bem encaminhada por Hall, onde este
afirma que, na formação cultural caribenha e também, porque não, americana no geral, os elementos
brancos sempre foram posto como ascendentes, enquanto que os elementos negros colocados como
uma lógica inversa, entretanto:

As identidades formadas no interior da matriz dos significados coloniais foram


construídas de tal forma a barrar e rejeitar o engajamento com as histórias reais de nossa
sociedade ou de suas “rotas” culturais. Os enormes esforços empreendidos, através dos
anos, não apenas por estudiosos da academia, mas pelos próprios praticantes da cultura,
de juntar reconstruir suas genealogias não ditas, constituem a preparação do terreno
histórico de que precisamos para conferir sentido à matriz interpretativa e às autoimagens
de nossa cultura, para tornar o invisível visível. Em outras palavras, o “trabalho” de
tradução que o significante africano realiza e o trabalho de “fidelidade pérfida” que
devem assumir os artistas caribenhos neste momento pós-nacionalista (HALL, 2011, p.
41).

Sobre a filosofia e as expressões africanas


O Mundo Atlântico não se resume somente às relações americanas e europeias, tendo a África
somente como um mero “fornecedor de gente”. O sociólogo egípcio Anouar Abdel-Malek, em sua
crítica por um resgate ao primitivismo afirma que, os povos da África na construção de seus novos
estados-nações têm que encarar o mundo a partir das condições históricas herdadas, não se pode
negar as influências europeias no continente. A partir disso, tragamos o debate do filósofo ganês
Kwane Anthony Appiah em relação à crítica sobre a etnofilosofia e a produção genuína de uma
filosofia africana enquanto disciplina formal.
Apesar de a formação da maioria dos filósofos africanos serem feita na tradição ocidental,
seja a analítica do mundo anglófono ou a continental, para principalmente os francófonos, os
discursos filosóficos são produto de uma história e isso não seria um problema para Appiah, pois
“‘filosofia’ é o rótulo de maior status no humanismo ocidental. Pretende-se com direito à filosofia é
reivindicar o que há de mais importante, mais difícil e mais fundamental na tradição do Ocidente
[…] (1997, p. 131).

Na concepção de Wiredu, que brota da tradição anglo-[norte]-americana, a filosofia


africana pode tomar emprestados e aprimorar os métodos da filosofia ocidental e aplicá-
los à análise dos problemas conceituais da vida africana. Para tanto, a seu ver, primeiro é
preciso desenvolver uma compreensão reflexiva generosa dos modos de pensamento
tradicionais; e, em grande parte, (...), nossos modos de pensar continuam muito mais
próximos das ideias tradicionais do que muitos se dispõem a admitir (APPIAH, 1997, p.
134).
97

Segundo Appiah, há que se ater somente nos problemas que dizem respeito aos africanos,
como da mesma forma os europeus fazem com os seus, não há a necessidade de se criar uma
metodologia diferente, ou seja, criar mais um problema. Seguindo seu raciocínio através das
concepções de Kwasi Wiredu4, um dos mais antigos filósofos contemporâneos de Gana e adepto da
universalidade da razão, é abordado um tema chave nas discussões pós-coloniais – a questão do
local e do global. O mais importante a nível local de ser africano é que ele entre outros fala como
um ganês, um sul-africano, um tanzaniano “em nome de uma cultura africana”, e em termos
globais, o que a experiência nacional pode oferecer a comunidade intelectual mundial, “não existem
verdades africanas, mas somente verdades” (Idem, p. 150). A filosofia africana é parte do discurso
universal da filosofia realizada por africanos.
Na mesma esteira temos a perspectiva linguística, em uma maior sintonia com o pós-
estruturalismo francófono, mas não menos válida, pois como afirma Stuart Hall, “[...] os progressos
teóricos decorrentes dos encontros com trabalho estruturalista, semiótico e pós-estruturalista: a
importância crucial da linguagem da metáfora linguística para qualquer estudo de cultura;” (HALL,
2011, p. 198), foram muito respeitáveis para o desenvolvimento dos Estudos Culturais britânico.
Nesse debate trazemos o dramaturgo Wole Soyinka (Nobel de literatura de 1986).
Percebe-se nas obras de Soyinka “como sujeito cultural, seu locus de enunciação, a formação
do sujeito cultural africano através do encontro com a cultura ocidental e, finalmente, sua relação
com as diversas tradições culturais” (REIS, 2011, p. 64). Em seu livro, Pós-colonialismo,
identidade e mestiçagem cultural: a literatura de Wole Soyinka (2011), Eliane Reis nos traz uma
concepção, através de sua releitura de Bhabha 5 a respeito sobre questões de nacionalidade e
hibridismo cultural, em que haveria duas bases em relação à identidade – a pedagógica, ligada a
representação nacional e a performativa, esta imbricada como uma estratégia discursiva. Isso
implica que no local de fala do sujeito se passa uma série de negociações, de uma dialética de várias
temporalidades, uma noção transnacional ocupando espaços intermediários, seja no aspecto
nacional e cultural, artístico e político e entre o passado e presente.
O mais interessante, é que essas negociações entre o intelectual e o limes da identidade
poderão se desdobrar em duas posições ocupadas – o intelectual fronteiriço, que se coloca à
margem das culturas e o intelectual sincrético, o que se “sente a vontade” nas duas culturas, na qual
seria o caso de Soyinka, ou mais além como afirma Reis (2011, p. 74): “Wole Soyinka mostra-se às
vezes como o intelectual espetacular, pois como este, recusa qualquer forma de afiliação, situando-
4
Kwasi Wiredu (1931) é um filósofo ganês graduado pela University of Ghana. Sua área de atuação está relacionada
à filosofia africana, entre os debates pré-coloniais, colonialista e pós-colonialista e em uma dura crítica a chamada
etnofilosofia.
5
Homi K. Bhabha (1949) é um crítico literário indiano radicado nos EUA e professor nas áreas de literatura inglesa e
estadunidense e linguagem em Harvard.
98

se dos dois lados das fronteiras e observando ambos os lados, ao mesmo tempo como insider e
outsider”.
A partir desse tema chegamos a um importante e polêmico ponto para os africanos, a língua
nacional e o seu uso nas produções científicas e artísticas que, no caso da Nigéria o inglês, é
utilizado como língua franca das três grandes regiões do país e servindo como língua vernácula. As
justificativas dos usos de línguas europeias nas novas nações são das mais variadas – desde a
questão pragmática, onde tanto Soyinka quanto seu primo Fela Kuti 6, vê vantagens no inglês por
possuir o poder de chegar a grandes centros distantes como, por exemplo, Nova Iorque e Londres e
assim poder difundir um pouco mais da África, seja na luta e denúncia do neocolonialismo e,
também, das produções culturais das Áfricas. O uso do inglês também não deixa de ser uma
apropriação em que este se torna propriedade de quem a utiliza – em uma interpretação através da
personagem Caliban de A Tempestade – a língua de Shakespeare torna-se híbrida e “impura”. O
idioma também pode ser visto como um trofeu de guerra deixado pelos colonialistas na sua evasão
após as lutas de libertação nacional no continente e, como é mais uma língua daqueles que a
conquistaram, a manipulação do idioma é livre, para como Soyinka diz: des-familiariza-la, dotar de
novos significados, fazendo assim uma des-territorialização de sua origem para o novo local, para
assim re-territorializar.
Aqui novamente entra o elemento da subversão contra a “norma culta” da academia
regulatória europeia e americana. Podemos colocar em paralelo com a literatura produzida em
língua inglesa na África com a literatura luso-africana, onde alguns escritores africanos se
inspiraram no movimento antropofagista da literatura modernista brasileira, para fins de
manipulação da língua e do universo linguístico.

Um processo paralelo ocorre com relação à cultura e à literatura europeias, tornadas


híbridas e “impuras” através do que Silviano Santiago refere como desaparecimento da
noção de unidade, “contaminada em favor de uma mistura sutil e complexa entre o
elemento europeu e o autóctone – uma espécie de infiltração progressiva efetuada pelo
pensamento selvagem, ou seja, abertura do único caminho possível que poderia levar à
descolonização”. A descolonização faz-se, assim, não pela recusa da cultura colonial, mas
por sua “assimilação inquieta e insubordinada, antropofágica” e pela escolha de um lugar
enunciativo “terceiro” (REIS, 2011, p. 77 e 78).

O intelectual orgânico além das fronteiras convencionais


Voltando propriamente para alguns dos objetivos dos Estudos Culturais, estes têm como uma
de suas principais ligações entre práticas políticas, como afirma Gilroy, ultrapassar as perspectivas
nacionais e de caráter nacionalista (apesar do forte caráter simbólico do negro em participar da vida

6
Fela Anikulapo Kuti (1938-1997) foi um músico instrumentalista nigeriano que criou o gênero musical afrobeat e
um ativista que lutou contra a dominação colonial e neocolonial na África.
99

nacional no Reino Unido, isso seria insuficiente para a sua luta), além do combate às ideias de
pureza e integridade racial. Além disso, há de se ressaltar a filiação desse campo intelectual à Nova
Esquerda, sendo que Stuart Hall chegou a participar como editor chefe da New Left Review, com a
influência de novas abordagens marxistas não redutoras da história, principalmente com Edward
Thompson e a importância do “intelectual orgânico”, em referência a Antonio Gramsci.

Volto à seriedade tremenda do trabalho intelectual. É um assunto tremendamente sério.


Volto às distinções críticas entre o trabalho intelectual e o trabalho acadêmico:
sobrepõem-se, tocam-se, nutrem-se um ao outro, fornecem os meios para se fazer um ao
outro. Contudo, não são a mesma coisa. Volto à dificuldade de instituir uma prática
cultural e crítica genuína, que tenha como objetivo a produção de um tipo de trabalho
político-intelectual orgânico, que não tente inscrever-se numa metanarrativa englobante
de conhecimentos acabados, dentro de instituições. Volto à teoria e à política, à política
da teoria (HALL, 2011, p. 203).

Esse projeto que Hall propôs para os Estudos Culturais no Reino Unido é complementado
com Gilroy e os Estudos Intervencionistas nos EUA, e particularmente com a ideia de Atlântico
Negro e suas reinvindicações, além do legado das diásporas africanas para com a América.

Em oposição às abordagens nacionalistas ou etnicamente absolutas, quero desenvolver a


sugestão de que os historiadores culturais poderiam assumir o Atlântico como uma
unidade de análise única e complexa em suas discussões do mundo moderno e utilizá-la
para produzir uma perspectiva explicitamente transnacional e intercultural (GILROY,
2012).

Questionamentos sobre o local de fala ainda são feitos pela herança intelectual euro-
estadunidense e sua vinculação com as fronteiras políticas para com os discursos e produções
negras e africanas. Pensa-se que isto é um equívoco, pois as identidades e lutas políticas afros não
estão condicionadas a somente uma região geográfica, seja na América ou na África. O que
caracteriza a produção intelectual em si é o intercâmbio de conhecimentos, refutando os discursos
rasos de homogeneidade para com as diversas batalhas que há nas diversas frentes.

A influência do pensamento afro-diaspórico sobre os intelectuais negros brasileiros


Refletir sobre a influência do pensamento afro-diaspórico sobre os intelectuais negros no
Brasil e por consequência no próprio movimento negro local exige um olhar atento sobre dois
autores em especial – Frantz Fanon e Paul Gilroy. Sem nenhuma pretensão de criar algum
paradigma epistemológico que norteie a produção destes pensadores é necessário perceber em suas
obras um importante referencial que orienta intelectuais ativistas brasileiros que, por sua vez,
também guiam suas produções e sua prática militante aos demais.
Fanon, por sua vez, assume um protagonismo significativo nos estudos pós-colonialistas e
antirracistas. Ele mergulha na questão existencial tentando, a partir do primado do Movimento
100

Negritude, definir o que é “ser negro” ante a complexidade de um mundo que, no pós-guerra,
redefiniria padrões e o próprio existencialismo (MOORE, 2010). O intelectual martinicano se
caracterizava por refletir em seu discurso os ideais afro-cêntricos do Movimento Negritude.
Assumia seu lugar de fala como afrodescendente em um mundo pós-guerra que refletia também as
contradições humanitárias resultantes do conflito mundial. De um lado, a luta pela emancipação
humana, propagada por um discurso humanista advindo das potências vencedoras – entre elas, a
França. A mesma República Francesa irradiadora de um discurso anti-nazista era ao mesmo tempo
a metrópole racista que fundamentava o discurso culturalista universalista, que segregava culturas
conforme um padrão hegemônico, evolucionista e europeu.
Em suas duas grandes obras: Pele Negra, Mascaras Brancas e Os Condenados da Terra,
Fanon analisa a (des)construção do “ser negro” a partir dos processos de colonização empreendidos
desde o século XV. Ele estabelece, nesse período, um importante diálogo com Sartre,
compreendendo assim um humanismo existencialista negro.
Os efeitos da modernidade, mesmo que dispares, levando-se em conta as diferenças
geográficas e os impactos culturais nas distintas sociedades coloniais que sentiram a imposição
colonial são marcantes, o que não nos permite uma avaliação universalista de tal efeito. Tanto a
modernidade, quanto seus efeitos produziram sociedades híbridas silenciadas pelo processo de
colonialismo.
No entanto, pesquisas recentes sobre uma ótica histórico-culturalista, tem trazido para o
debate essas modernidades alternativas e seus principais agentes protagonistas, as comunidades
colonizadas e escravizadas que foram por muito tempo silenciadas, sob a tutela de um colonialismo
eurocêntrico identidades foram negadas, e novos valores impostos com um claro objetivo de obter o
controle social. A imposição cultural negou durante muito tempo o aspecto ativo das comunidades
locais que como parte do processo histórico também produziram os seus modernismos. A
globalização, e de certa forma, a pluralidade possibilitada pelos novos estudos culturais, deram a
possibilidade para que essas comunidades locais, colonizadas, pudessem se pronunciar e revelar
modernidades epistêmicas fora da lógica colonial moderna europeia.
Nas palavras de Boaventura de Souza Santos (2010), as “epistemologias do sul”, ou as
modernidades periféricas, marginalizadas, seja como for, trazem novas lógicas e novos
protagonismos históricos, mesmo contrapondo a lógica definida por Gayatri Spivak de uma
“ignorância sancionada”. Nesta linha ou em oposição, Paul Gilroy em sua obra O Atlântico Negro
pensa as modernidades sob a lente do movimento desencadeado pelo processo de migração forçada
em que os negros foram submetidos no período da escravidão colonial. A diáspora negra,
101

consequência desta migração forçada, é com certeza um dos elementos de maior expressão cultural
dessa nova percepção da modernidade para além da acepção eurocêntrica.
Além de oferecer uma contra percepção da lógica moderna, o autor oferece uma leitura da
diáspora africana a partir de uma lógica espacial descentralizada e das relações estabelecidas nestes
espaços pós-coloniais (Brasil e Caribe) que criam contextos próprios de (re)apresentação do
passado através da mediação do sofrimento da lembrança latente da escravidão. Essas formas de
(re)apresentação do passado sob novas lógicas que buscam fundamento em uma história da África
apresentam-se como um resistência anticolonialista com grande impacto estético. O não centralismo
na Europa de interpretações que explicam a modernidade sob a lógica das comunidades que foram
exploradas e escravizadas encontra ecos na academia e no movimento social negro que redescobre o
Movimento Negritude e o Afrocentrismo. Sob a tutela das políticas de ações afirmativas há uma
transformação em curso, que trás em seu cabedal uma série de estudos acadêmicos que explora
questões epistêmicas e historiográficas desconstruindo as velhas concepções estruturalistas e
historicistas que ainda viam essas populações como apenas objetos de estudo (GILROY, 2001).
De outro lado há uma estética expressa na música, na literatura, na poesia e na expressão
corporal que desconstrói os velhos padrões eurocêntricos e apresentam aqui e ali um blackpower,
uma trança nagô que materializam para além da academia desconstruções estéticas que não são
apenas retóricas, mas também visuais. Tais reações são formas de superação do trauma da
escravidão. Pois quando se trata da rememoração do passado das populações negras, a herança de
uma historiografia tradicional e de uma tradição escolar eurocêntrica ainda é majoritariamente
predominante em tratar a escravidão como a única memória de negros e negras e afrodescendentes
nestes espaços pós-coloniais. A vitimização oriunda do processo de construção de uma memória
histórica da escravidão se projeta como barreira cultural às comunidades dentro de uma perspectiva
de construção de identidades, o que representa um trauma.
Trauma este, que diferente do que define Aleida Assmann (2011), não é inacessível, pelo
contrário, é alimentado sistematicamente por políticas de Estado no campo cultural e educacional
como forma de manutenção de um status quo e uma hierarquização social e manutenção da
desigualdade social. Desta forma, os mecanismos epistêmicos usam e abusam de conceitos e
modelos interpretativos da modernidade para manter esta memória traumática sempre viva na
sociedade (Ibid., 2011). O trauma não é trabalhado, ele é mantido. Dentro da perspectiva
apresentada por Paul Gilroy (2001), uma das formas de superação da manutenção daquele, como
forma de controle social, é o reconhecimento do “eu negro” também defendido por Frantz Fanon
(2008), Aime Césaire, entre outros pensadores negros da diáspora, como uma prática de reação ao
colonialismo sistêmico. Nas palavras deste:
102

A negritude resulta de uma atitude proativa, e combativa de espírito.


Ela é um despertar, despertar de dignidade.
Ela é uma rejeição, rejeição da opressão.
Ela é luta, isto é, luta contra a desigualdade.
Ela é também revolta... (CÉSAIRE, 1987. p. 109).

No que consiste este “eu negro”? Em uma perspectiva existencial há um diálogo entre o
Movimento Negritude de Cesárie, que desde sua origem bebe da fonte de uma reação contra o
colonialismo e vai de encontro ao pensamento de Fanon e dos pan-africanistas, da autonomia dos
povos africanos em todo o mundo. Mesmo com as contradições de um afrocentrismo linear e
centralizador, ele (o Movimento) é uma oposição ao colonialismo modernista e oferece uma
influência determinante sobre o olhar de intelectuais negros no Brasil, deslocando assim o local de
fala, o protagonismo do indivíduo negro e formas de pensar este como forma de liberdade e
emancipação humana.

A desconstrução do epicentro epistemológico no Brasil


A melhor perspectiva que nos oferecem às políticas públicas de ações afirmativas é o
reconhecimento da diversidade. Benéfica a todos, a diversidade enriquece a convivência, abre as
janelas da percepção e nos torna mais humanos (NASCIMENTO, 2009). A perspectiva do
pensamento afro-diaspórico, em consonância com as políticas de ações afirmativas empreendidas
no Brasil desde 2003, vem ao encontro de uma perspectiva cultural de reconhecimento das
diversidades constitutivas de uma identidade nacional. Mesmo forjada, essa identidade concebe, em
sua gênese, três elementos fundantes: o branco europeu, o índio e o negro africano.
Nesse sentido, a Diáspora, ou o estudo dela, se apresenta como uma proposta de
desconstrução de uma história linear, eurocêntrica e epistemologicamente fundamentada em valores
da civilização greco-romana. Identifica-se no Afrocentrismo uma plataforma mobilizadora para o
desenvolvimento de referenciais de pensamento concebidos sob a ótica dos colonizados. Um
primeiro postulado defendido pelos estudos afro-diaspóricos é a pluralidade. Sem pressupor uma
verdade absoluta, esse olhar nos remete a uma perspectiva afrocentrada que se fundamenta nos
valores africanos e percebe o dialogo como possibilidade de construção de novas percepções.

Um primeiro e básico postulado da afrocentricidade é a pluralidade. Ela não se arroga


como fez o eurocentrismo, a condição de forma exclusiva de pensar, imposta de forma
obrigatória sobre todas as experiências e todos os epistemes. Ao enfatizar a primazia do
lugar, a teoria afrocêntrica admite e exalta a possibilidade do diálogo entre conhecimentos
construídos com base em diversas perspectivas, em boa fé e com respeito mútuo, sem
pretensão a hegemonia (NASCIMENTO, 2009, p. 30).
103

Um intelectual negro da diáspora brasileira: Oliveira Silveira


Em um contexto recente no Brasil, o diálogo com intelectuais negros afro-diaspóricos permite
a criação de uma rede de pensadores militantes que bebem da fonte do contexto histórico pós-
colonial e, dentre esses indivíduos, destacamos o literato Oliveira Silveira, um exemplo local de
pensador contemporâneo que pode ser adotado como referência para o estudo do pensamento afro-
diaspórico. A expressão cultural negra refletida na autoria de Gilroy encontra espaço na obra de
Oliveira Silveira, ao incutir nela uma forte contestação da ordem etnocêntrica e nacionalista. O
deslocamento existencial do “eu negro” (presente também em Fanon), projeta um deslocamento do
eixo de interpretação do local de fala de intelectuais, antes atrelados a uma forte tradição filosófica
europeia (norte) para o sul, o hemisfério sul, sendo mais específico, para o Brasil, ao seu extremo
meridional.
Em Oliveira Silveira, poeta afro-gaúcho nascido em Rosário do Sul em 1941, trazer um olhar
para o foco local era também desconstruir os ditames de um tradicionalismo gaúcho, sedimentado
como cânone de uma história local incontestável, que minimizava a presença dos negros na
constituição do estado e supervalorizava os valores liberais da Revolução Francesa, esta era a tônica
de sua poesia militante. Ele, como poucos manifesta uma originalidade, integrando elementos
regionalistas à corrente literária filosófica da Negritude, se permitindo a referenciar até mesmo
Césaire. Tal alinhamento traz elementos peculiares da realidade dos afro-gaúchos comuns e,
também, de todo o país – a resistência, o banzo e as fugas (BERND, 1987). De outro lado, a poesia
de Oliveira Silveira traz um auto-reconhecimento da posição subalterna do negro na sociedade sul-
rio-grandense. Ele reconhece o seu eu negro como elemento de identidade auto-afirmada, trazendo
para dentro de sua obra a religiosidade, a música e a arte como expressões particulares de uma
afirmação frente ao colonialismo e as imposições sociais de uma modernidade epistêmica, como na
obra de Gilroy (2001).
Há uma peculiaridade importante no estado do Rio Grande do Sul em relação aos demais
estados brasileiros: foi plantado no imaginário comum, pelo discurso hegemônico que, em nosso
estado, o padrão étnico-racial resultante tem predominância da colonização europeia (SILVA, 2014,
p. 285). Identifica-se, portanto, na formação do gaúcho, a partir desse imaginário excludente, a
ausência da identidade e da cultura negra e indígena. Nessa perspectiva, o engajamento político de
Oliveira Silveira compreende a luta pela afirmação da voz dos afrodescendentes e pela articulação
da identidade africano-rio-grandense. Silveira se empenhou na luta em prol da libertação do
pensamento do negro – submetido à cultura e aos padrões eurocêntricos – e da preservação de
espaços de memória e resistência. Sua trajetória de luta e sua poesia levantam-se contra o discurso
hegemônico (OLIVEIRA, 2012). O seu ativismo possuiu e possui uma enorme influência sobre as
104

conquistas dos coletivos negros no Brasil e em especial no Rio Grande do Sul, no combate ao
racismo e às desigualdades de origem étnico-racial.
Após sua formatura no curso de Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na
década de 1960, Silveira aprofundou seu conhecimento sobre o movimento literário Negritude, o
que foi determinante na sua luta política. A partir da influência desse movimento, ele começa a
dialogar com práticas e valores de origem africana, muito pautados pelo processo, em curso, de
descolonização da África e pelo movimento pan-africanista, surgido entre afro-estadunidenses, mas
que começava a “contagiar” afrodescendentes ao redor do mundo. Os movimentos culturais negros
surgidos a partir do Pan-africanismo tiveram ressonância na obra literária e no ativismo de Oliveira
Silveira.
“O engajamento político no período de exceção para Oliveira, não passa somente pela luta
armada, como ocorrera com os escritores engajados de sua época” (OLIVEIRA, 2012, p. 3). O
poeta quer despertar, no negro submetido, uma cultura maior e de autoafirmação em contraposição
à sua posição de ex-cativo. Silveira dialoga com intelectuais africanos e afrodescendentes do mundo
inteiro, numa perspectiva de rompimento de um discurso hegemônico e da construção de uma
identidade passiva, segundo os padrões europeus.
Em sua análise, Santos (2010) destaca as ressonâncias dos movimentos culturais negros na
poesia de Oliveira Silveira:

Seguindo a linha pan-africanista do Renascimento Negro Norte-americano, que buscava o


reconhecimento da identidade negra de forma integrada e assimilada à nação, Oliveira
Silveira, ao mesmo tempo em que afirma com todas as letras a sua identidade negra, vai
em busca do resgate do negro dentro da sociedade brasileira, representada na maioria dos
poemas pela sociedade gaúcha, elaborando uma poesia sustentada por uma consciência
racial, que o faz aceitar-se negro com orgulho de sua ascendência africana, e pelo
regionalismo gaúcho, não negando em nenhum momento suas raízes rio-grandenses, fato
que o torna herdeiro de duas culturas e o leva a reivindicar o lugar de igualdade do negro
na sociedade gaúcha, que é extensivo à sociedade brasileira, também construída pelo
negro, não como coadjuvante como prega a historiografia oficial, e sim como
protagonista [...] (Santos, 2010, sp).

A poesia do rio-grandense segue a vertente do Pan-africanismo, que revela uma nova maneira
de ser negro e de se auto-identificar como negro, resgatando o orgulho da identidade negra,
revalorizando suas tradições e sua participação na história.
Durante a década de 1970, Oliveira Silveira mergulhou em uma pesquisa profunda sobre a
história do negro no Brasil. Foi quando se deparou com a história do Quilombo dos Palmares e do
assassinato de seu líder Zumbi, fato considerado como marco histórico em um processo de
resistência, luta e bravura. A partir dessa pesquisa, o intelectual sul-rio-grandense se reconheceu
nesse processo de resistência e considerou que a data do assassinato de Zumbi, 20 de novembro de
105

1695 caracterizava-se como objeto de orgulho para a população negra. Juntamente com outros
ativistas, Oliveira Silveira iniciou mobilização para sugerir a data como Dia Nacional da
Consciência Negra. Em 1971, ele declarou o dia 20 de novembro como a data máxima da
comunidade negra brasileira. Aos poucos, coletivos negros de outros estados também adotaram a
data. Já em 1978, o Movimento Negro Unificado batizou a data como Dia Nacional da Consciência
Negra.
Todo esse percurso faz parte de um processo de rompimento com a historiografia tradicional
que consagrava o dia 13 de maio como efeméride da libertação e não contemplava a verdadeira
realidade do negro após a abolição da escravidão. Para Oliveira Silveira, a data representava um
marco simbólico de empoderamento da população negra e de combate ao racismo. Entre tantas
ações do literato gaúcho, destacamos o seu engajamento na conscientização do povo negro na
necessidade de preservação da cultura afro-gaúcha. Nesse sentido, é fundamental sua enorme
contribuição para a luta pela preservação dos Clubes Sociais Negros.
O deslocamento para o Sul do Sul se materializa com o res-significar do espaço de fala que
cria um novo “eu negro” em Oliveira Silveira, o “eu afro-gaúcho”, que dialoga com a perspectiva
pós-colonial com a diáspora do Atlântico Negro e com o tradicional e histórico local, no caso do
Rio Grande do Sul, sem perder sua referência afrocentrada, calcada em uma ancestralidade negra
muito marcante em sua poesia que proclama o auto-reconhecimento e o ativismo negro no sul do
Brasil.

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108

O BRASIL E O CHILE DE MARIA GRAHAM: ENTRE REBELIÕES E REVOLUÇÕES,


PAISAGENS, REPRESENTAÇÕES E COTIDIANO, OS REGISTROS E NARRATIVAS DE
UMA VIAJANTE INGLESA NA AMÉRICA DO SUL, 1821-1823.

Denise Maria Couto Gomes Porto *

Os Novos Mundos americanos de Maria Graham.


O século XIX trouxe grandes transformações para o Novo Mundo compreendido aqui pelas
Américas Portuguesa e Espanhola. Os ventos liberais haviam soprado as antigas mentalidades
absolutistas do Ancien Régime para um lugar sombrio e nebuloso.
Novas liberdades foram então forjadas pelo esforço empreendido pelas Juntas das Cortes
espanhola e portuguesa, logo nas primeiras décadas do Oitocentos. Com a aprovação da
Constituição de Cádiz em 1812 e no decênio posterior, com a promulgação da Constituição
Portuguesa de 1822, a onda liberal espraiou-se por toda a América, suscitando o crescimento do
espírito nacionalista, semente fecunda na construção das nascentes identidades nacionais.
Os velhos grilhões que mantinham as colônias submissas às suas metrópoles ibéricas, foram
rompidos por força dos anseios das jovens nações, na emergência de seus ideais de independência,
sendo estes processos revolucionários decorrentes de diferentes especificidades e momentos.
Segundo Alexandre Valentim (1998), desde 1808, quando a família Real e as Cortes portuguesas
vieram para o Brasil sob a proteção da marinha Inglesa e que o rei havia decretado a abertura dos
portos para nações amigas, a Inglaterra protagonizara importantes acordos comerciais e
diplomáticos. Tendo, portanto, significativa representação política, sua influência estendeu-se
segundo Gilberto Freyre (2000), às dimensões social e cultural, atribuídas a técnicos, comerciantes,
aventureiros, negociantes, missionários e governantes.
Assim como no Brasil, a Inglaterra, que buscava a hegemonia política, ideológica e de
mercados na América do Sul, tinha fortes interesses comerciais no Chile. Como exemplo, a cidade
portuária de Valparaíso, contava com uma considerável comunidade de ingleses, sendo escolhida
como um dos destinos certos dos comerciantes britânicos (GRAHAM,1964).
Foi nesta paisagem de turbulências revolucionárias que a viajante inglesa Maria Graham
(1785-1842), chegou ao Brasil em 1821. A América do Sul de então, fora redescoberta por
estrangeiros que segundo Raymundo Campos (1996), aportavam com os mais diversos objetivos,
como comerciantes, artistas, viajantes, expedicionários, engenheiros, mineralogistas, botânicos e
aventureiros.

*
Mestranda no PPGH – Universidade Salgado de Oliveira – UNIVERSO. denisegporto@gmail.com
109

Segundo Gilberto Freyre (2000), seus relatos em forma de diários, cartas e registros
iconográficos, transformaram-se em fontes documentais preciosas, ajudam-nos a entender as lógicas
sócio-político-culturais e as mentalidades pertinentes daqueles anos. Desse enorme contingente de
estrangeiros que atravessou o Atlântico rumo aos portos sul-americanos nas primeiras décadas do
século XIX, destacaremos o protagonismo da escritora, pintora, professora e herborista inglesa
Maria Graham. Em nossa análise, o contexto de sua historicidade se dá nos anos de 1821 a 1823.
Testemunhou a rebelião da Junta de Goiana em Pernambuco ao chegar ao Brasil. No ano seguinte
ao seguir viagem para o Chile, pode respirar os ares da independência ao chegar à cidade de
Valparaíso.

Os ventos liberais estão soprando…


A insaciável sede de Napoleão pela conquista de territórios a fim de integrar seu projeto
imperialista sobre a Europa, havia enfim alcançado a Península Ibérica em 1807. Neste contexto,
nas palavras de Berbel (2010, p.29) “os soldados carregavam armas contra as monarquias vizinhas e
argumentos para o estabelecimento de uma ordem dissociada dos direitos tradicionais dinásticos”.
Portugal encontrava-se ocupado desde novembro de 1807. Os exércitos franceses aproximavam-se
de Lisboa. A inédita decisão de transferir a família real e as Cortes portuguesas para a sua colônia
americana, ideia defendida desde os anos do Marquês de Pombal, não tivera precedentes até então
na História Moderna. Com o propósito de fundar na cidade do Rio de Janeiro o novo centro
administrativo, a coroa portuguesa tornou possível a eminente consolidação de um Império no
Brasil.
Neste contexto, Silva (2009, p.19) cita que, “A vinda da corte com o enraizamento do Estado
português no Centro-sul daria início à transformação da colônia em metrópole interiorizada.” e
acrescenta “[…] Como metrópole interiorizada, a corte do Rio de Janeiro lançou os fundamentos do
novo Império português […]”. (SILVA,2009, p.22). Entretanto, as consequências desta decisão,
suscitaram em Lisboa sentimentos de insatisfação, insegurança e de subordinação à sua ex-colônia
americana, fermentando tensões e mágoas que culminariam na Revolução do Porto em 1820.
Segundo Valentim Alexandre:

[…] todos queriam a Corte em Lisboa, porque odiavam a ideia de ser colônia de uma
colônia. Nesses termos, a revolução de 1820 corresponde antes de mais nada a uma
reação de teor nacionalista à situação de subordinação e de dependência criada ao reino
português no seio do Império. […] Ponto central da ideologia vintista, o nacionalismo
[…] a afirmação dos valores patrióticos, muito marcada durante a Guerra Peninsular, que
teria visto a “Nação Portuguesa adquirir um “lugar eminente” entre as demais nações da
Europa, tanto por suas virtudes militares, como sociais e civis”. (ALEXANDRE,1989,
p.26).
110

Segundo Márcia Regina Berbel (2010), as origens da crise em Portugal estavam fincadas na
transferência da Corte portuguesa para o Brasil e a culminância na Revolução de 1820, esteve em
sintonia com os acontecimentos espanhóis desde 1810.Estas ressonâncias demonstradas pelos
contatos entre os liberais portugueses com os revolucionários da Espanha, iniciaram-se em agosto
de 1820 durando até o final do ano. Ainda segundo a autora:

De fato, os revolucionários portugueses iniciaram a convocação das Cortes


Extraordinárias a partir da adoção dos critérios aprovados em Cádiz e utilizando a
Constituição espanhola como texto referência para o início das atividades parlamentares.
[…] Além disso, assumiam também que “a base de representação nacional é a mesma em
ambos os hemisférios” […] A adoção dos critérios eleitorais espanhóis elevou as
tradicionais capitanias do Brasil à condição de unidades provinciais, com autonomia para
decidir a adesão ao movimento constitucionalista e promover a escolha dos deputados. O
fato motivou as primeiras adesões no Brasil entre os meses de janeiro e fevereiro de
1821[…]. (BERBEL,2010, p.40).

No Brasil os ecos da Revolução Liberal do Porto fizeram-se ouvir como uma ameaça a então
frágil unidade do reino, até que em 1821, as Cortes portuguesas exigem a volta de D. João VI a
Portugal e o juramento a Constituição Portuguesa. Segundo Juliana Ferreira Sorgine (2005) em 29
de agosto de 1821, na região norte de Pernambuco, na vila de Goiana, antigos participantes da
Revolução de 1817, instalaram uma Junta Governativa Provisória, objetivando à adesão às Cortes
portuguesas e destituir do governo o representante português em Pernambuco, o Governador Luiz
do Rego Barreto. Assim, recorremos a Berbel (2010, p.30) que observa em sua análise que, “ligados
por uma mesma crise, espanhóis e portugueses buscaram respostas para a afirmação da soberania de
suas nações.” E ainda segundo a autora, “Os esforços deslocaram-se para a formação de espaços
parlamentares e para elaborações que deveriam conciliar os anseios pela soberania e as demandas
por autonomia, também acalentadas na América. […]”. Na vizinha Espanha, as forças militares de
Napoleão submeteram a metrópole ao jugo francês em 1808, destronando o rei Fernando VII,
golpeando mortalmente o coração da monarquia católica, que fora o pilar institucional capaz de unir
a Espanha peninsular às suas colônias americanas, construindo a unidade identitária do Império. A
imensa população de dezessete milhões de pessoas que habitava os vastos territórios imperiais,
reconhecia-se vassala de um mesmo soberano. Contudo, as consequências desastrosas de uma
monarquia acéfala, logo fizeram-se sentir nos Estados Peninsulares e em suas possessões coloniais
americanas, trazendo mudanças imponderáveis. Na Península, as lutas de resistência na metrópole,
segundo Fuentes Aragonés (2010, p.20) “[…] expressadas pela linguagem de
independência/soberania, liberalismo e pronunciamento, serviram como fator de liberação frente ao
invasor francês e frente ao absolutismo.” As colônias ficaram sem sua metrópole. Logo os antigos
ressentimentos da população Criolla reacenderam fortemente, reclamando pelo reconhecimento de
111

sua identidade americana, maior participação na tomada de decisões e por igualdade representativa
aos peninsulares. Irromperam consequentemente, diversas revoltas por suas independências.

[…]. Houve uma grande mudança histórica na Espanha, nos dois anos e meio
transcorridos do dia 2 de maio de 1808, até a abertura das “Cortes Gerais e
extraordinárias” na ilha de Léon (Cádiz) em 24 de setembro de 1810, com o
desmoronamento do estado Bourbônico e com o vazio do poder, pela queda de Fernando
VII. […] como alternativa para o ciclo de crises e revoluções que se espalhavam, só
poderia resolver-se mediante o poder interino das juntas. (FUENTES ARAGONÉS, p.18-
21).

A partir dos conflitos decorridos pela dissolução da Monarquia Católica, os questionamentos


sobre a quem a América Espanhola deveria submeter-se, varreram os territórios dos Vice-Reinados
até alcançarem o Chile. As primeiras lutas pela independência chilena dão-se a partir de 22 de junho
de 1810. Em 18 de setembro do mesmo ano, forma-se a primeira Junta Nacional do Governo, que
dentre outras iniciativas, abriu as exportações da produção nacional e a importação para
manufaturas estrangeiras. Finalmente, no dia 12 de fevereiro de 1812, o Chile proclama sua
Independência, tendo como governador Bernardo O’Higgins. A presença inglesa no Chile desde os
primeiros anos do século XIX, consolidou-se a partir do envolvimento dos comerciantes britânicos
na venda de armas e suprimentos bélicos para as forças militares e navais pela causa da
independência e da participação nos quadros de comando, estruturação e formação da esquadra
naval chilena.
Com a chegada da Família Real ao Brasil em 1808, deu-se a abertura dos portos às nações
amigas e a assinatura dos tratados comerciais de 1810, integrando o Brasil ao mercado
internacional, mas sobretudo, privilegiando os interesses mercantis da Inglaterra, como parte dos
acordos assinados pela proteção da Marinha Britânica ao translado da Coroa e da Corte portuguesa
para os trópicos. Coube a Inglaterra, portanto, sendo a maior potência emergente desde a sua
Revolução Industrial, o avanço expansionista de seu Império nas Américas, difundindo assim, o
liberalismo econômico do comércio livre e mantendo o protagonismo diplomático, comercial,
industrial e cultural nas primeiras décadas do Brasil Monárquico. Freyre (2010, p.46), ressalta que
“A presença da cultura britânica no desenvolvimento do Brasil, no espaço, na paisagem, no
conjunto da civilização do Brasil, é das que não podem, ou não devem? — Ser ignoradas pelo
brasileiro interessado na compressão do Brasil”. Os ingleses desde que “descobriram” as terras
americanas, vislumbraram um novo mundo de oportunidades para a ilimitada possibilidade de
negócios, matéria prima britânica para impulsionar o seu expansionismo industrial. Naqueles
primeiros anos do Oitocentos, muitos foram os ingleses que aportaram nas Américas, com os mais
diversos objetivos.
112

Em 21 de setembro de 1821, o navio-escola da Marinha de S.M.B., a Fragata Doris, chega a


Pernambuco. Entretanto, fica fundeada ao largo, à espera de ordens para aportar. O comandante do
navio, Capitão Thomas Graham, encontrara o porto do Recife bloqueado e a cidade em estado de
sítio, por motivo da insurreição da Junta Governativa de Goiana. A bordo da Doris, a inglesa Maria
Graham avistou pela primeira vez as terras americanas que tanto ansiava conhecer. Como esposa do
Capitão Thomas Graham, viera na tripulação como professora dos jovens Guarda-Marinha,
candidatos a futuros oficiais ingleses, que realizavam uma longa viagem de instrução. O navio que
saíra de Portsmouth na Inglaterra, em 31 de julho de 1821, rumava para o Atlântico Sul, singrando
pela costa do Brasil até alcançar o Pacífico e chegar ao Chile. Nascida em Papcastle, Inglaterra, em
19 de junho de 1785, Maria Graham, desde a infância teve uma educação voltada para os valores
filosóficos iluministas, destacando o gosto pelos estudos e pesquisas das ciências naturais. Segundo
Américo Jacobina Lacombe:

Desde criança revelou Maria Graham inteligência, muita aplicação nos estudos e
acentuado interesse pelas narrativas de viagem. […] de forma diferente da maioria das
mulheres de sua época, pode estudar literatura inglesa e do resto da Europa, arte, desenho,
filosofia e história natural. […] foi uma adepta das ideias do liberalismo político e
econômico, que na sua época eram identificadas como o progresso.
(LACOMBE,1997, p.11apud GRAHAM,1997).

Com seu pai, Maria Graham havia viajado pela primeira vez para a Índia nos princípios de
1808.No ano de 1819 conheceu a Itália, onde morou com seu marido Thomas Graham por um curto
período de tempo. Destas passagens por lugares interessantes, deixou-nos os seus primeiros diários
de viagens, gênero literário que estava em ascensão tanto no gosto do público aristocrático e letrado
da Europa, como dos “pacatos cidadãos comuns, tão ávidos de informações como de aventuras”.
(QUINTANEIRO,1996, p.18).
Segundo o Diário de Pernambuco (2016/08, p.2), Maria Graham quando chegou ao Brasil, aos
36 anos, já era famosa na Inglaterra por ser autora de livros de viagens, além de notável pintora e
ilustradora. Na década de 1830, publicou Little Arthur’s History of England 1,livro infantil que
alcançou grande sucesso. Nos anos seguintes faria registros sobre o povo, os costumes e a natureza
no Brasil, deixando importantes relatos sobre os costumes locais e os testemunhos políticos do
Movimento Constitucionalista de 1821 e da Confederação do Equador em 1824.

As primeiras impressões do Brasil e os registros sobre a Junta de Goiana


No dia 21 de setembro de 1821 a Fragata Doris havia chegado à costa brasileira na altura de
Pernambuco. Fundeou ao largo, pois encontrou o porto do Recife bloqueado. A cidade estava
1
Primeira edição em 1835, em dois volumes, sob as iniciais, M.C. e reeditado diversas vezes. A última atualização
foi em 1937(BRITTO,1989, p.10). Esta obra foi traduzida no Brasil para o português pelo escritor piauiense Bugyja
Britto em 1941/42 e publicado em 1989 no Rio de Janeiro.
113

sitiada pelo cerco promovido pelas tropas constitucionalistas, que vindas do interior, exigiam a
saída do Governador Luís do Rego Barreto. Maria Graham descreve detalhadamente em seu Diário
de Uma Viagem ao Brasil, (1990) sua estada em Pernambuco e o que presenciou do Movimento
Constitucionalista da Junta de Goiana. Nas palavras da viajante:

Sexta-feira,21 de setembro. —Afinal estamos à vista da costa do Brasil. Estamos


ancorados cerca de oito milhas de Olinda, capital de Pernambuco, com quinze braças de
fundo, mas apesar de termos dado mais de um tiro de canhão, pedindo um piloto, não
aparece nenhum. (GRAHAM,1990, p.125).
Pernambuco, 22 de setembro de 1821— […] Além da disposição para a revolução, que
estávamos prevenidos existir há muito em toda a parte do Brasil, havia também a
rivalidade entre portugueses e brasileiros, situação que os últimos acontecimentos haviam
agravado em não pequeno grau. A 29 de agosto cerca de 600 homens da milícia e outras
forças nativas haviam tomado posse da Vila de Goiana, um dos principais lugares da
capitania, e tomado à força a Câmara Municipal, onde haviam proclamado o fim do
governo de Luís do Rego. Passaram então a eleger um governo provisório de Goiana,
para entrar em função até que a capital da província pudesse estar em condições de
estabelecer uma junta constitucional. (GRAHAM, 1990, p.126).

Dois dias após chegar a Pernambuco, Maria Graham, desembarcou para conhecer a cidade
sitiada. Foram recebidos por um oficial a serviço do Governador Luís do Rêgo que os conduziu ao
Palácio do Governo. Conheceu o Governador e sua família. Em seu Diário, (1990) lemos:

O coronel conduziu-nos ao palácio do governo, prédio muito belo, […], mas agora está
ocupado por cavalos, […] e soldados armados, […] canhões à frente com morrões acesos
e um ar de alvoroço e importância entre os soldados. […] O conselho ou Junta Provisória
de governo, compunha-se de dez membros, presididos por Luís do Rêgo. Estavam
redigindo uma proclamação aos habitantes de Recife assegurando-lhes a garantia e
proteção; […] afirmando que havia provisões em abundância na cidade e encorajando-os
em nome do rei e das cortes a defenderem a cidade contra os insurgentes. […] logo
depois apareceu o próprio governador, com bela aparência militar. (GRAHAM,1990,
p.131-132).

Após a visita de cortesia ao Governador, Maria Graham (1990) percorreu a cidade e seus
arredores. Encontrou a milícia nos vários postos de defesa e todo o comércio fechado. Os
comerciantes em sua maioria europeus, pertenciam, assim com os índios, aos quadros da milícia,
convocados para o serviço militar. No periódico Diário de Pernambuco (2016/08/22), encontramos
seu registro de que “apesar do cerco promovido pelas tropas do interior, na capital não havia fome,
pois não faltavam farinha de mandioca, carne seca e peixe salgado.”

[…] cavalgamos para fora da cidade através de algumas belas casas chamadas sítios […].
Ao voltarmos fomos interpelados em todos os postos, mas as palavras “amigos ingresos”
[ingleses]eram nosso passaporte, e voltamos para o Recife. […] esta manhã soubemos
que uma centena de índios estão sendo esperados na cidade para auxiliar a guarnição.
(GRAHAM,1990, p.133-136).
114

Maria Graham teve oportunidade de conhecer os rebeldes patriotas e esteve também com os
membros da Junta que pretendia assumir o governo. No Diário de Pernambuco (2016/08/22) sobre
seu encontro com os rebeldes patriotas, lemos: “Lady Graham […] ouviu um longo discurso sobre
as injustiças praticadas na província por Luís do Rêgo. […] alegavam defender uma causa justa e
não se consideravam rebeldes, pois marchavam sob a bandeira de Portugal.”. O armistício da
rebelião foi segundo Sorgine (2005, p.4), “A pacificação do confronto armado estabelecido entre
os aliados do governo de Luís do Rêgo e os partidários da Junta de Goiana foi acertada […] na
chamada Convenção do Beberibe, em 5 de outubro de 1821”.
Enfim na tarde de 14 de outubro de 1821, é chegada a hora da Doris zarpar rumo aos mares
do Pacífico com destino ao Chile, passando ainda no caminho, pela Bahia e Rio de Janeiro. Maria
Graham deixa-nos nesse momento sua impressão sobre o desfecho da rebelião da Junta de Goiana e
do sentimento dos Pernambucanos registrados em seu Diário:

Deixamos Pernambuco com a firme convicção de que pelo menos esta parte do Brasil
nunca mais se submeterá ao jugo de Portugal. Se a firmeza de comportamento de Luís do
Rêgo falhou em manter a capitania em obediência, será inútil a outros governadores
tentá-lo, especialmente enquanto o estado da metrópole for tal que não possa lutar com as
colônias, nem por elas, e enquanto as considerar simplesmente como regiões tributáveis
de seus territórios, obrigados a sustenta-la em sua fraqueza. (GRAHAM, 1990, p.163).

O Chile de Maria Graham


No dia 28 de abril de 1822 (Graham,1990), a Fragata Doris chega finalmente ao porto de
Valparaíso no Chile. Saíra do Rio de Janeiro em 10 de março do mesmo ano, cumprindo a última
parte de sua viagem de instrução. Entretanto, durante trinta e oito dias de navegação, o navio
enfrentara tempestades e dolorosos infortúnios, culminando na morte do Capitão Thomas Graham.
Maria Graham em seu Diário De uma Viagem ao Brasil (Graham, 1990) atesta a tristeza e dor em
que se encontrava ao perceber sua nova realidade ao término da viagem:

Na noite de 9 de abril, pude despir-me, e ir para a cama pela primeira vez desde que
deixei o Rio de Janeiro. Estava tudo acabado; dormi longamente descansei; quando
acordei foi para tomar consciência de que estava só, e viúva, com um hemisfério entre
mim e meus parentes. (GRAHAM,1990, p.251-252).

No Chile, Maria Graham encontra um país ainda em processo de consolidação de sua


Independência. Logo no prefácio de seu Diário de mi residência en Chile, (Graham, 1964), ela nos
dá uma importante introdução ao panorama revolucionário, cujos relatos verbais foram recolhidos a
partir de longas entrevistas pessoais com o próprio Supremo Director Bernardo O’ Higgins, o líder
revolucionário patriota que lutou pela causa da independência e que esteve à frente do governo
chileno dos anos de 1817 ao 1823. A inglesa obteve sua permissão para transcrever em seu Diário
115

de mi residence en Chile (1964), todo o conteúdo dessas conversas, as quais transformaram-se nos
anos seguintes em valiosas fontes para a historiografia local, sobre os primeiros anos da revolução
do Chile. A relevância desses relatos se dá por terem sido queimados nos seis primeiros anos da
revolução chilena, todos documentos dos arquivos públicos que pudessem conter informações sobre
os patriotas aos espanhóis.

Uma vez oí á don Bernardo O’Higgins relatar com la mayor sencillez la história de esta
accíon,y estou segura de que empleó en inglês las mismas palavras que he citado.
[…].Pocos son los informes que pueden procurarse de los seis primeiros años de la
revolucíon de Chile[…]fueron quemados todos los papeles y documentos públicos que se
halló á mano, para evitar que cayeran em poder de los espanhóis.[…].Desde entonces,
hasta el año de 1817, no se encuentran ni em los archivos de gobierno documentos que
rastrear, hasta medianos de 1818, nada de lo impresso em Chile; de manera que dentro de
pocos años más podria haberse perdido todo recuerdo del primer período de la revolucíon
de este país. (GRAHAM,1964, p.21).

Durante o período da estada chilena, de 28 abril de 1822 a 18 de janeiro de 1823, Maria


Graham (1964) descreveu suas impressões críticas sobre as causas políticas que fizeram emergir as
lutas pela Independência chilena:

Todo sistema de España respecto á las colônias, mientras las tuvo bajo su domínio, fué
comercial y no político. Los virreyes […] no fueron en realidad outra cosa que
presidentes de uma companhia de monopolistas, sus propósitos estaban limitados por sus
sórdidos y mezquinos interesses […] descuidándose em consecuencia la libertad, la
felicidade ó el interés de los habitantes. La pereza y la ignorância fueron las
consecuencias necessárias, y cuando el Pueblo se levanto, como de um sueño proclamo
su independencia, estaban tan amoldados al antiguo régimen de cosas las costumbres é
ideas […] que sus jefes y gobernadores siguieron por la miesma senda. Considerando la
posesión del poder simplesmente como la posesión del capital de uma companhia
mercantil, especularon com él […] y, em muchos casos, se arruinaron ellos mismos.
(GRAHAM,1964, p.42).

Em 18 de janeiro de 1823, após terem se passado quase nove meses da sua chegada a
Valparaíso, chegou a hora de Maria Graham partir do Chile. Lago (2000, p.153) cita que “Sus
últimas tareas cotidianas fueron revisar los manojos de semillas y raíces recogidos para plantarlos
em Inglaterra”. A bordo do bergantín Colonel Allen, em companhia do amigo Almirante Lorde
Cochrane e do primo Glennie, Maria Graham voltaria para o Brasil pela segunda vez, deixando no
distante Chile suas mais melancólicas memórias. Nas anotações escritas no Diário de mi residencia
em Chile, (Graham, 1964, p.23-23), entretanto, percebemos que a autora procurou aproximar-se de
tudo que pudesse lhe fornecer maior conhecimento daquele país, a fim de compreender com
profundidade sua história e seu povo.
116

Considerações Finais – Num só coração, duas Américas…


Ao penetrarmos nos mundos americanos vividos por Maria Graham e narrados a partir de seu
olhar, percebemos que a autora descreveu as singularidades identitárias de ambos, ressaltando em
seus Diários, as turbulências provocadas pela emergência de anseios libertários sobre o jugo político
e econômico imposto por suas metrópoles ibéricas. Nas palavras da autora,

“Jugou-se conveniente separar completamente as narrativas referentes à América


Espanhola e à América Portuguesa, já que nos países que as constituem são diferentes
não só o clima e as produções quanto os habitantes por suas maneiras, sociedade,
instituições e governo.” (GRAHAM, 1990, p.20)

Neste artigo, pretendemos demonstrar que a viajante Maria Graham, analisou cuidadosamente
as sociedades do Brasil e do Chile das primeiras décadas do século XIX, no momento das grandes
transformações políticas e econômicas da América do Sul. Maria Graham buscou interpretar as
características próprias e peculiares das sociedades de cada país, destacou os fatos políticos
relevantes que culminaram em lutas e revoluções na construção de suas liberdades, mantendo,
entretanto, opiniões críticas parciais sobre tudo que via, procurando analisar os fatos por dois pontos
de vista. Como a autora cita:

A autora não tem pretensões à perfeita imparcialidade, pois nem sempre esta significa
virtude. […] espera ter sempre encarado as questões pelos dois lados, ainda que isto lhe
tenha custado bastante esforço na composição. (GRAHAM,1990, p.19).

Nos Diários de uma viagem ao Brasil (1990) e Diário de mi residence em Chile (1964),
constatamos nas análises sobre as sociedades e os acontecimentos políticos que se deram nas
Américas Portuguesa e Espanhola, descritos pela autora, que ela procurou distinguir as suas
singularidades, ressaltando, também algumas aproximações. Destacou o protagonismo da vontade
popular na emergência dos movimentos libertários nas Américas hispânica e portuguesa. A força do
indivíduo americano como sujeito histórico, agente transformador da sua realidade sócio-política,
naquele início de século, foi identificada nas narrativas do Diário de uma viagem ao Brasil, (1990)
quando testemunhou a rebelião da Junta de Goiana em 1821 no Brasil, e também nos escritos
deixados no Diário de mi residence em Chile (1964), sobre as lutas pela Independência, do Chile.
Nas palavras de Maria Graham:

Não há nada mais interessante que a situação atual de toda a América do Sul. Enquanto a
Europa se empenhava na grande luta da Revolução, aquela região alcançava uma posição
que tornava impossível a submissão por mais tempo a um domínio estrangeiro. Foram
fatos e não leis, que abriram os portos do Atlântico Sul e do Pacífico. Foram também
indivíduos, e não nações, que prestaram auxílio aos patriotas do Novo Mundo. Saíram
mais armas de guerra e munições para armar os nativos contra os tiranos estrangeiros,
ocultamente, dos armazéns comerciais que dos arsenais das grandes nações.
(GRAHAM,1990, p.20).
117

Ao concluirmos, percebemos que as duas Américas foram aqui aproximadas pelas vivências
cotidianas e apaixonadas da autora, durante sua permanência no Brasil e no Chile nos anos de 1821
a 1823.Suas críticas e descrições minuciosas dos fatos observados, de cunho intencionalmente
documental, lança luz na compreensão daqueles anos revolucionários. Nas palavras de Maria
Graham:

Irrompeu a luta, parte da qual teve a autora oportunidade de testemunhar e a respeito da


qual pode colidir com alguns dados, que poderão servir no futuro como fontes para a
História. (GRAHAM,1990, p.20).

Documentação:

GRAHAM, Maria. Diário de uma viagem ao Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia,1990.

GRAHAM, Maria. Diário de mi residência em Chile-1822 e mi viaje ao Brasil-1823.Madrid:


Editorial América,1964.

Bibliografia

BERBEL, Marcia Regina. Autonomia e soberania às vésperas das independências ibero-americanas


(1810-1824). In: PAMPLONA, Marco & STUVEN, Ana Maria. Estado e Nação no Brasil e no Chile
do Século XIX (orgs.). Rio de Janeiro: Garamond,2010. p.29-60

CAMPOS, Raymundo Carlos Bandeira. Viagem ao Nascimento de uma nação – Diário de Maria
Graham. São Paulo: Atual.1996.

FREYRE, Gilberto. Ingleses no Brasil. Rio de janeiro: Topbooks, 2000.p.46-50.

FUENTES ARAGONÉS, Juan Francisco. Las Cortes de Cádiz: Nación, soberania y territorio.
Cuadernos de História Contemporánea, 2010, vol.32, p. 17-35.

LAGO, Tomás. La Viajera ilustrada – A vida de Maria Graham. Santiago: Editorial Planeta,2000.

LACOMBE, Américo Jacobina. Correspondência entre Maria Graham e a imperatriz Leopoldina e


Cartas anexas. Belo Horizonte: Itatiaia,1997.

PRADO, Maria Ligia Coelho. “Repensando a história comparada da América Latina”. Revista de
História,153(2,2005), p.11-33.

SORGINE, Juliana Ferreira. A formação da Junta Governativa de Goiana e a crise do Antigo Regime
Português em Pernambuco (1821). Londrina: ANPUH – XXIII Simpósio Nacional de História,2005,
p.1-8. <Http://blogs. /Acesso em 15 de maio de 2017.
118

<Http:/blogs.diariodepernambuco.com.br/históriape/index.php/2016/08/22/maria-graham-a-inglesa-
que-retratou-pernambuco/Acesso em 17 de maio de 2017.Maria Graham, a inglesa que retratou
Pernambuco.
119

LUIS JIMENEZ DE ASÚA NOS DOIS LADOS DO ATLÂNTICO – UMA CONTRIBUIÇÃO


PARA O SABER JURÍDICO

Eduardo Manuel VAL* e Wilson Tadeu de Carvalho ECCARD**

Introdução
O deslocamento forçado de pessoas para a América Latina, incluindo o Brasil, ocorre há
muitos anos e por diversas razões. Ele caracteriza-se por ser: a) um tipo de migração não voluntária
que implica em troca de país, região, território ou continente; e b) dentre suas causas estão as
guerras, as perseguições a grupos minoritários, perseguições políticas, deslocamento em razão de
catástrofes naturais, e diversos outros motivos, pois não se trata de uma lista definitiva, mas
extensiva.
No caso específico deste trabalho trata-se da migração forçada de intelectuais e atores
políticos envolvidos na Guerra Civil Espanhola (1936-1939) que vão constituir o contingente de
exilados políticos do denominado setor “Republicano” que atravessam o Atlântico a procura de
refúgio e segurança.
O que em um primeiro momento pode ser entendido como uma situação negativa, haja vista o
caráter forçado da situação resultante do deslocamento, terminou sendo para muitos países latino-
americanos positivo, pois, ao receber imigrantes no decorrer do século passado, recepcionaram uma
introjeção das experiências de vida dessas pessoas, que contribuíram no desenvolvimento de
determinadas áreas como o meio artístico, jornalístico e também o do conhecimento científico e
profissional.
O presente estudo aborda a figura de um destes migrantes exilados o professor Jimenez de
Asúa com o intuito de mapear sua contribuição para o desenvolvimento das ciências jurídicas e o
pensamento político democrático.
Nossa investigação nos permitiu identificar as redes de intelectuais em instituições em que
Jimenez de Asúa (1889-1970), ex-presidente das Cortes Espanholas no exílio (1945) e da República
Espanhola (1962-1970), se inseriu, como por exemplo a União de Professores Universitários
Espanhóis no Estrangeiro (UPUEE). Registramos ainda sua participação no meio acadêmico
*
Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (2006), professor e coordenador adjunto
do Programa de Pós-Graduação em Mestrado e Doutorado do PPGD UNESA – Universidade Estácio de Sá.
Professor associado da Universidade Federal Fluminense – UFF e líder e pesquisador do Laboratório de Estudos
Interdisciplinares em Direito Constitucional Latino Americano – LEICLA. E-mail: eduardval11@hotmail.com;
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0529549946800850
**
Mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal Fluminense – UFF, na linha de Teoria e História
do Direito Constitucional e Direito Constitucional Internacional e Comparado; Pesquisador do Laboratório de
Estudos Interdisciplinares em Direito Constitucional Latino Americano – LEICLA – E-mail:
careccard@gmail.com, Tel.: 21 98755-4852. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8815697429970108
120

argentino como professor de direito penal e criminologia nas universidades de La Plata, Buenos
Aires e Del Litoral, formando diversas gerações de discípulos.
Ao analisar sua participação em redes intelectuais utilizaremos do conceito elaborado pelo
professor Devés-Valdés (2007, p. 30) “Se entiende por tal a un conjunto de personas ocupadas en
la producción y difusión del conocimiento, que se comunican en razón de su actividad profesional,
a lo largo de los años.”
Nossa hipótese é que nem todo deslocamento forçado é prejudicial, pois existem casos em que
o próprio exílio contribui para oxigenar com novas ideias a sociedade receptora e desenvolver sua
cultura, ciências e instituições, ao mesmo tempo que permite ao migrante continuar a desenvolver
suas competências e habilidades em um processo de consolidação e evolução.
O objetivo geral deste artigo é estudar a figura de Jimenez de Asúa como um exemplo de
migração atlântica entre Espanha e Argentina com forte impacto positivo no desenvolvimento
acadêmico, capacitação profissional e circulação de ideias no âmbito jurídico-político.
Como metodologia utilizaremos a pesquisa bibliográfica, documental e histórica mediante
uma abordagem analítica que compreende áreas interdisciplinares do saber como Direito, História,
Sociologia e Ciências Políticas.
O presente artigo está organizado a partir de três pontos. No primeiro abordaremos as redes de
intelectuais como instrumento para entender a circulação de pensamento jurídico; no segundo será
focada a vida de Jimenez de Asúa, suas ações na Espanha, antes da migração forçada; e no terceiro
nos centraremos na trajetória de Jimenez de Asúa na Argentina e nas redes em que ele participou do
outro lado do Atlântico (América).

1. As redes de intelectuais como instrumento para entender a circulação de pensamento


jurídico
O pensamento humano e as ideias que ele produz não são estáticas porque se o fossem
terminariam se auto esterilizando e não evoluindo. Toda a circulação de ideias entre cientistas,
pensadores, professores de ensino superior, políticos influentes, filósofos, pesquisadores que se
relacionam de maneira frequente ao longo dos anos é considerado uma rede de intelectuais.
Este conceito pode ser empregado nas mais diversas áreas existentes do saber e forma uma
grande teia de compartilhamento de pensamentos afins, ou não, que permitem a evolução dos
assuntos determinados nessas trocas.
Para o desenvolvimento de nosso trabalho será utilizado o conceito de redes intelectuais
desenvolvido por Devés-Valdès (2007, p.205) que aponta: “entiendo por redes intelectuales a los
científicos, pensadores, profesores de educación superior e investigadores que se relacionan de
manera frecuente a lo largo de años por motivos profesionales.”
121

Um fato marcante nas redes intelectuais é o poder que elas têm de influenciar e reverberar na
sociedade que a cerca, tendo em vista a importância dos membros que compõem seu grupo e a
qualidade e alcance do debate e do diálogo produzidos.
É possível traçar algumas características dos membros destas redes. Os participantes destas
trocas de informações geralmente são pessoas envolvidas em organizações e instituições, que
possuem conexões com outras pessoas que permite a troca dos dados colhidos, seja através de
diálogos, palestras, citação de obras, e outras formas de interação que permitem a reprodução e
multiplicação destas redes.
Geralmente os meios de comunicação nestas redes ocorriam, na época tratada, através de
viagens, correspondências, conferências, encontros e periódicos. As redes de intelectuais podem
ainda determinar em que sentido caminharão suas ações, a partir da escolha de uma ideologia ou um
paradigma.
Trata-se de um conceito que tem se aprimorado com o tempo, contudo a prática é antiga e
vem sendo empregada consistentemente na América Latina.
Exatamente por este viés conformador de ideias, por esta atuação de disseminação de
conhecimento, por ser um ambiente construído para exaltar as discussões acerca dos mais variados
assuntos é que as redes intelectuais são como um instrumento para se entender a circulação do
pensamento jurídico, científico, artístico, dentre outras áreas.
As redes de intelectuais serviram para os exilados espanhóis como um meio de sobrevivência
e continuidade de suas atividades profissionais e intelectuais ao mesmo tempo que serviram como
instrumento de luta para recuperar o espaço de poder perdido na Península.
Estas redes fundaram sua legitimidade política no fato de estarem atreladas a um governo
constitucional e democrático que foi derrubado por golpe militar fascista do general Francisco
Franco (1892-1975) completamente contrário aos valores dos estados democráticos de direito no
ocidente.
Com este argumento as redes que denominaremos republicanas geraram a simpatia de
governos de diversos países da região como México, Argentina e o Brasil, provocando ao mesmo
tempo um sentimento de solidariedade e camaradagem das elites intelectuais locais, simpáticas ao
movimento reformador que tinha sido desenvolvido pela II República Espanhola.

2. A vida de Jimenez, suas ações na Espanha


Pessoa chave na universidade e na política espanhola dos anos vinte e trinta (GIL e PÉREZ,
2016, P. 211). Essa é apenas umas das referências atribuídas à Luis Jimenez de Asúa. Nascido na
122

cidade de Madrid em 1889, também é considerado o maior penalista da Espanha e um dos maiores
penalistas do mundo em razão da influência que exerceu em diversos países.
Dedicado aos estudos, completou sua carreira acadêmica em pouco tempo. Iniciou em 1905
na Universidade Central (Madrid) e em 1918 obteve seu título de doutor em direito com a tese A
sentença indeterminada. Começou a lecionar em 1915, de maneira gratuita, na mesma faculdade em
que estudou, mas foi em 1918 que foi nomeado, após concurso, professor de Direito Penal da
Faculdade de Direito da Universidade de Madrid.
Porém, antes de obter o título de doutor, recebeu auxílio Real (bolsa) para estudar Direito
Penal na França, Suíça e Alemanha, entre os anos 1913 e 1914, o que influenciou positivamente no
avanço dos seus estudos, e o permitiu publicar obras a respeito do código penal suíço (El Derecho
Penal del porvenir. La unificación del Derecho Penal en Suiza. Reus. Madrid, 1916, 382 pp) e sueco
(El Anteproyecto de Código Penal sueco de 1916. Estudio crítico. Reus. Madrid, 1917, 100 pp).
Entre os anos de 1914 e 1917 Jimenez de Asúa também trabalhou na tradução para o
castellano do Tratado de Direito Penal de Franz von Liszt, com quem teve a oportunidade de
trabalhar enquanto esteve na Alemanha.
A capacidade intelectual de Jimenez de Asúa é inequívoca e está registrada em diversos
trabalhos e artigos científicos publicados internacionalmente. Ele considerava que a educação
universitária possuía algumas funções fundamentais tais como ensino profissional, cultural,
investigadora e formadora de grupos diretores (URBINA, 1988, p. 330).
Contudo, também nos interessa sua atuação política, pois esta foi determinante para sua vida e
exílio no pós Guerra Civil Espanhola.
Foi a partir dos anos 20 do século passado Jimenez de Asúa inicia sua atuação política.
É necessário destacar que a Espanha viveu, a partir de 1923, sob um regime de ditatura militar
imposto pelo Capitão-General Miguel Primo de Rivera. A ditadura encontrava oposição política na
universidade, motivo pelo qual neste mesmo ano o ditador prendeu um dos professores mais
notáveis, Miguel de Unamuno, amigo de Jimenez de Asúa, em razão de seus artigos no periódico El
Mercantil Valenciano.
Três anos após, em 1926, Primo de Rivera, inconformado pela sua atuação como advogado na
defesa de Unamuno e com as críticas feitas por Jimenez de Asúa, também o suspende do exercício
das aulas e o seu salário, alegando que ele vinha incitando os ânimos contra o Governo no exercício
de seu cargo de professor e o baniu para as ilhas Chafarinas por um curto período (30 de abril a 17
de maio). Retornou às funções em razão do Rei Afonso XIII ter suspendido os efeitos da ordem do
ditador.
123

O governo do ditador Primo de Rivera durou até 1930, ao iniciar-se a implantação da II


República Espanhola, o que de fato ocorreu em 1931 após eleições convocadas pelo Rei Afonso
XIII, que acabou deposto ao fim do processo eleitoral.
Esta data é importante porque marca a entrada efetiva de Luis Jimenez de Asúa na política.
Após a revolução pacífica de abril de 1931 Asúa se torna militante e membro do Partido Socialista
dos Trabalhadores Espanhol (PSOE) e se elege Deputado pela província de Granada.
A entrada para o PSOE se deveu em parte pelo fato de Jimenez de Asúa ter presenciado em
sua viagem à Argentina, no ano anterior, 1930, o golpe militar imposto pelo general Uriburu, que
promoveu sérias intervenções às Universidades. Ato reflexo, muitos amigos seus, professores,
companheiros de sua rede de intelectuais, entraram na política para lutar contra o golpe e tentar
salvar as instituições de ensino argentinas (FIGALLO, 2014).
Uma vez eleito deputado das Cortes Constituintes, presidiu a comissão que redigiu a
Constituição republicana que promoveu mudanças radicais e importantes tais como a separação da
Igreja e do Estado e o ensino laico. Em 1936, antes do início da Guerra Civil Espanhola, foi eleito
vice-presidente das Cortes.
Em julho de 1936 inicia-se a Guerra Civil Espanhola após uma tentativa militar de promover
um golpe contra a República. Em razão da guerra muitos diplomatas desertaram dos seus cargos, o
que fez com que Jimenez de Asúa fosse designado pelo Governo de José Giral para atuar em Praga,
capital da atual República Checa. Atuou ainda em Paris e Genebra até 1939, quando finalmente os
militares vencem a guerra civil e inicia-se a Ditadura Franquista.
Ao fim do conflito, maduro, com 50 anos de idade, catedrático, homem do governo, do
congresso, da diplomacia, da administração pública, não havia condições para um republicano
ativo, razão pela qual se vê forçado a migrar para outro país.
A República Espanhola deixa de existir em território espanhol e somente suas instituições
passam a funcionar no exílio, fato considerável em uma época sem muitos recursos tecnológicos
como os dias atuais. Jimenez de Asúa, que estava em Paris, percebendo a possibilidade de um
grande conflito naquele país (a II Guerra Mundial se aproximava) parte então para Buenos Aires,
país que conhecia desde os anos 20 e onde também já morava seu irmão, Felipe Jimenez de Asúa.
Na América Latina, Jimenez de Asúa continuaria atuante tanto em sua vida política quanto em
usa vida acadêmica, sempre utilizando e consolidando suas redes e se firmando na representação
política ao mesmo tempo que alavancava e ampliava a rede acadêmica, pois “o protagonismo
intelectual dos juristas se potencializa por estar eles também inseridos na administração pública e
consequentemente em lugar de destaque nos círculos do poder público.” (VAL e MENDONÇA,
2015)
124

3. A trajetória de Jimenez de Asúa na Argentina e nas redes em que ele participou do outro
lado do Atlântico (América Latina)
A diáspora republicana de professores universitários, como a chamou Unamuno, provocada
pela guerra civil espanhola (GIL e PÉREZ, 2016, P. 220), fez com que muitos deles buscassem
refúgio em diversos países. A maior parte se exilou no México, mas há registros na Inglaterra,
Estados Unidos, Bolívia, Chile, Peru e Argentina, destino de Luis Jimenez de Asúa.
Jimenez de Asúa conhecera a Argentina, país em que viveria até o fim de sua vida, durante a
década de 20 (FIGALLO, 2014) e fará 4 viagens entre os anos 1923 e 1930.
A primeira viagem ocorre em razão das redes em que Jimenez de Asúa participa desde a
Espanha. O contato inicial para esta viagem foi feito por Jorge Eduardo Coll, professor de Direito
Penal da Faculdade de Direito da Universidade de Buenos Aires (UBA), quando este foi à Espanha
em 1921. (JIMENEZ DE ASÚA, 1928, p.25),
Jimenez de Asúa aceitou o convite e em 1923, quase dois anos após, ele desembarca na
Argentina para visitar a Universidade de Buenos Aires. Ele registrou assim o convite feito à época
feito por Coll:

En octubre de 1921, el profesor Jorge Eduardo Coll, que visitaba Europa, llegó a Madrid
con el benévolo propósito de invitar a uno de los profesores de nuestra Universidad. Erró
vuestro compatriota en la elección, y fui yo el designado para inaugurar el cambio
intelectual entre la Universidad bonaerense y la madrileña. (JIMENEZ DE ASÚA,
1928)

Seu convite foi para realizar um curso de Direito Penal e também para analisar de forma
crítica o Código Penal Argentino que havia sido promulgado no ano anterior. Ele realizou uma série
de conferências na Universidade durante os meses de junho, julho e agosto, com grande
desenvoltura e mostrando profundo conhecimento do código recém lançado.
Sua presença na Argentina serviu estender sua rede de contatos, pois neste mesmo ano, após
suas palestras na UBA, recebeu outro convite, agora do titular da cátedra de Direito Penal da
Faculdade de Direito da Universidade de Córdoba, Julio Rodríguez de la Torre, que o convidou
também para uma série de palestras e solicitou que realizasse um curso mais longo, de maior
duração, que foi atendido por Jimenez de Asúa em 1925, por ocasião de sua segunda visita, que
assim descreveu:

“En Julio de 1925, tras de breve es cala en Montevideo, donde había sido invitado para
exponer cuatro conferencias, llegué a la Argentina, cuando acababan de cumplirse dos
años de mi primer arribo. Esta vez había sido demandado mi concurso por la Universidad
de Córdoba, que deseaba desarrollase un largo programa en sus aulas. En el mes de
Agosto, con el permiso de las autoridades académicas cordobesas, acepté el cometido que
me confió la Universidad porteña, a requerimiento de los estudiantes, y en el mismo salón
125

donde me comuniqué hacía veinticuatro meses con la intelectualidad bonaerense, volví a


exponer un breve ciclo de cuatro disertaciones (...)”. (JIMENEZ DE ASÚA, 1928, p 260)

A terceira viagem de Jimenez de Asúa ao território argentino ocorreu em outubro de 1929, à


mesma Faculdade de Direito de Córdoba, desta vez a convite do titular da cátedra de Direito Penal,
Sebastián Soler (1899-1980). Nesta oportunidade apresentou apenas duas conferências sobre a dor e
a cegueira no direito punitivo e sobre a reforma da legislação pena espanhola.
Quando atendia estes convites, Jimenez de Asúa dedicava-se, além do curso de direito, a
visitar outras cadeiras e outras universidades tais como a Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais
da Universidade de Santa Fé, a Faculdade de Ciências Econômicas, Comerciais e Políticas de
Rosário, em um permanente exercício de cooperação interdisciplinar.
A última viagem antes do exílio ocorreu no ano seguinte, outubro de 1930. O professor
madrilenho proferiu novas conferências na Faculdade cordobesa. Quem o apresentou desta vez
foi catedrático de Introdução ao Estudo do Direito, o professor Arturo Orgaz.
Esta rede de intelectuais formada deste lado do Atlântico, durante a década de 20 do século
XX, será muito importante para Jimenez de Asúa a partir do momento em que inicia seu exílio. Ele
construiu uma amizade ao longo deste período com muitos professores destacados que
posteriormente ajudaram em sua inserção na Argentina, dentre eles Sebastían Soler, Gregorio
Bermann (1894–1972) e Deodoro Roca (1890-1942). Como ele próprio apontou:

“Lo recuerdo siempre, con su mirada penetrante tras de las gafas redondas,sentado frente
a mí en los bancos de mi cátedrade la Córdoba argentina. Aquellos paseos después de la
lección diaria, en que discutíamos con vehemencia tema tras tema de los por mí
planteados y aquellos debates del Seminario que yo implanté en la más antigua de las
Universidades argentinas, grabaron el recuerdo de Sebastián Soler con trazos amigos e
imborrables” (CESANO, 2015, p. 157).

A influência da rede criada por estes intelectuais é identificável tanto nas palavras de Jimenez
de Asúa quanto nas referências que eles utilizam um do outro. Bermann, médico legista, em seu
livro Toxicomanias (1926), utiliza um exemplo de Jimenez de Asúa proferido nas suas palestras de
1925 e Soler soluciona um caso de “defesa mecânica predisposta” da mesma forma que o professo
madrilenho fez também no ciclo de palestras de 1925 (CESANO, 2015).
Bermann e Soler ainda reconhecem em Jimenez de Asúa suas concepções epistemológicas
que muito contribuíram para o desenvolvimento científico na Argentina, até então muito ligada ao
positivismo italiano. E o próprio Jimenez de Asúa, quando toma conhecimento de que ambos
professores foram expulsos de suas Faculdades em razão da Ditadura de Uriburu (1930-1932),
publica uma carta aberta em apoio a estes dois amigos no jornal espanhol La Libertad que diz:
126

“Las facultades de Derecho, Medicina y Farmacia sufren así la dictatorial amputación


de profesores dignísimos. (...) En estos días enque la República española se afanza con
segura raíz, vengo proclamando la urgente necesidad de volver a la ciencia y de poner a
las Universidadesal margen de la política militante. Pero también afirmo que los
profesores, los alumnos y, en general, los intelectuales, cuando su patria atraviesa las
bochornosas horas de una dictadura, tienen el inexorable deber de cerrar sus libros, de
hacer um paréntesis en sus menesteres de pacífico estudio,para conseguir que su Estado
se asiente en normas de Derecho. Es faena de decencia, de higiene pública y no de
política. Para trabajar en calma es necesario que la libertad sea señora de las naciones.Por
eso quiero que cruce el mar esta carta para que sepan ustedes que mi pulso se acelera de
emoción ante su conducta civil” (JIMENEZ DE ASÚA, 1931, p. 1)

Após a quarta viagem de Jimenez de Asúa à Argentina em 1930, “o Mestre”, conforme o


chamou Soler, somente retornaria para este país nove anos depois, com o fim da Guerra Civil
Espanhola.
A Argentina era um país óbvio para a escolha de muitos republicanos exatamente pela
aproximação que possuem em razão de suas raízes coloniais. Embora houvesse a facilidade da
língua e da cultura existente no país, a distância fazia com que não fosse a primeira opção para
muitos espanhóis.
Além da dificuldade da distância, a Argentina havia endurecido sua política de migração,
durante o Governo de Roberto Ortiz (1938-1940), exatamente em razão de um deslocamento
forçado de muitas pessoas que acabaram por incomodar boa parte da população argentina que na
fala de um funcionário da imigração retratava bem o sentimento da época (que nos faz refletir a
atualidade em determinados países) ao dizer: “El indeseable, el expulsado, el refugiado político, el
refugiado racial que huye de Alemania, de Austria, de Italia, de España, no es um inmigrante.
(MARTINEZ, 2007)
Um deputado, após a questão ser levada aos parlamentares afirmou em sua fala que o governo
argentino não desejava aqueles que viessem ao país "sean vencidos que buscan asilo a sus fracasos"
(SCHWARZSTEIN, 1997)
Em meio a este clima reacionário contra a presença de imigrantes, mesmo os republicanos
espanhóis, é que Jimenez de Asúa desembarca em solo Argentino em 8 de agosto de 1939.
Contudo, ele não encontrou maiores problemas em sua recepção muito em razão da rede que ele
havia formado durante a década de 20.
A Instituição Cultural Espanhola de Buenos Aires (ICE) e a Comissão Argentina de Ajuda ao
Intelectuais Espanhóis foram responsáveis pela ajuda na contratação de diversos intelectuais para os
inserir nas Universidades argentinas (SCHWARZSTEIN, 2001, pp. 110-120), dentre eles, Jimenez
de Asúa.
127

Desta forma, o Mestre logo se inseriu na vida acadêmica argentina fazendo conferências na
Universidade de la Plata. Posteriormente foi designado professor especial encarregado do
Seminários de Direito Penal.
Contudo, Jimenez de Asúa também sofreu enfrentamentos deste lado do Atlântico. Um grupo
de estudantes “leais” aos ideais franquistas questionou sua nomeação como professor negando-o
“jerarquia moral al señor Jimenez de Asúa para dictar conferências, em las que se iba
necessariamente a volver sobre cuestiones de índole ppolítica, ajenas a la finalidade universitária”
(BRIEL, 1993, p. 59).
A Espanha de Franco continuou atacando Jimenez de Asúa enquanto estava no exílio,
chagando a acusá-lo de perseguidor de estudantes de direitas, envenenador de ideias, defensor do
marxismo. Foi condenado pelo Tribunal de Responsabilidades Políticas da Espanha a pagar oito
milhões de pesetas (FIGALLO, 2014.
Contudo, nada disso foi capaz de diminuir a contribuição de Jimenez de Asúa para a
manutenção da II República Espanhola no exílio e nem para a intelectualidade portenha. Ele foi
membro honorário da Sociedade de Medicina Legal de Buenos Aires, da Sociedade Argentina de
Criminologia e da Sociedade Científica Argentina. Foi nomeado Professor Extraordinário de Direito
pela Universidade de La Plata e posteriormente designado diretor do Instituto de Criminologia e do
Instituto de Altos Estudos Jurídicos.
Uma outra rede que ele se inseriu foi o Centro Republicano Espanhol, que publicava o
periódico semanal España Republicana, onde teve a oportunidade de participar de um curso para
espanhóis fugitivos da Península junto com outros intelectuais como Angel Osorio y Gallardo
(1873-1946), que foi embaixador e ministro da República no exílio, Rafael Alberti (1902-1999),
escritor e poeta espanhol, Augusto Barcia (1881-1961), advogado, escritor e político espanhol,
dentre outros.
Permaneceu atuante em sua tarefa de lecionar até o ano de 1943, quando decidiu abandonar as
salas de aulas em solidariedade a alguns professores, dentre eles José Peco (1895- ?) em razão de
protestarem contra o golpe militar imposto naquele ano, golpe este conhecido também como
Revolução de 43. Permaneceu sem dar aulas até 1955, quando enfim acaba o Governo de Juan
Domingo Perón (1895-1974).
Neste período longe das salas de aula na Argentina permitiram ao Mestre realizar diversas
viagens pelo continente latino-americano, utilizando de suas redes para contribuir com seu
conhecimento em outros países, como Peru, Cuba, Venezuela.
128

Luis Jimenez de Asúa foi eleito ainda presidente das Cortes Republicanas espanholas no
exílio em 1945, cargo que ocupou até 1962, quando foi eleito Presidente da República da Espanha
no exílio, função que exerceu até 1970, quando faleceu.

Conclusão
Jimenez de Asúa demonstra com sua história e trajetória política e acadêmica um profundo
envolvimento com os dois lados do Atlântico. Tanto em sua vida na Península como na América
Latina, sua presença é marcada com o envolvimento e atuação com a vida em sociedade.
Ao longo de sua caminhada podemos observar a construção de uma variada rede de
conhecimento, formada pelos mais diversos intelectuais da sua época, e que nelas exerce influência
no campo político e acadêmico.
Por estas razões, neste momento já é possível confirmar a hipótese apresentada no início deste
trabalho. O exemplo de Luis Jimenez de Asúa demonstra que nem todo deslocamento forçado é
prejudicial, pois existem casos em que o próprio exílio contribui para oxigenar com novas ideias a
sociedade receptora e desenvolver sua cultura, ciências e instituições, ao mesmo tempo que permite
ao migrante continuar a desenvolver suas competências e habilidades em um processo de
consolidação e evolução.
Jimenez de Asúa atuou exatamente desta forma. O Mestre ultrapassou a barreira
constrangedora de um exílio forçado, em razão de fazer parte do grupo político que perdeu a Guerra
Cilvil espanhola, e reconstruiu sua carreira acadêmica atuando e influenciando a sociedade
argentina, tanto politicamente como cientificamente.

Bibliografia

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%20en%20su%20nueva%20realidad.pdf>. Acesso em: 10/11/2017.

SCHWARZSTEIN, D., 1997. “La llegada de los republicanos españoles a la Argentina”. REDER
(Red de Estudios y Difusión del Exilio Republicano). Publicado en: Estudios Migratorios
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Goiânia: Rede Acadêmica Diálogos en Mercosur, 2015.
130

CÁGADA: FICÇÃO E REALIDADE NA COLÔNIA JUDAICA DE QUATRO IRMÃOS

Gláucia Elisa Zinani Rodrigues *

Introdução
Na região Norte do Rio Grande do Sul, na colônia Quatro Irmãos, situada no município de
Quatro Irmãos emancipado em 1996, antes pertencente ao município de Passo Fundo- Erechim.
Houve a formação de uma colônia com imigrantes judeus, fundada em 1981, pela Jewish
Colonization Association. A trajetória dessa colonização foi tratada pela historiografia,
especialmente o estudo – Imigração judaica no Rio Grande do Sul: Jewish Colonization Association
e a Colonização de Quatro Irmãos, de Isabel Rosa Gritti (1997). Paralelamente, também foi tema
de escritos literários, como na obra ficcional e satírica Cágada (ou a história de uma cidade ao
passo de) de Gladstone Osório Mársico (1974).
Para dar conta do tema, primeiramente o artigo abordará a Literatura e História seus conceitos
e seus limites, bem como seu entrelaçamento. Posteriormente, abordará o conceito de Ficção e
Realidade para em seguida, comparar os contextos abordados pela História e pela Literatura,
tratando questões como: surgimento da Imigração Judaica no estado, a questão da Companhia de
Colonização, quem eram os imigrantes. Por fim perceber qual a crítica do autor em relação
colonização, presente já no título da obra, entendo-a como literatura histórica.

Literatura e História
A relação entre a História e Literatura tem sido um tema recorrente na reflexão de
historiadores, filósofos, e críticos da Literatura. Como todas as ciências, a História e a Literatura
têm suas especificidades.
A produção literária vai refletir e relatar a religião, a política, o conhecimento científico,
sendo a Literatura capaz de retomar esses conteúdos, no próprio cotidiano da sociedade, utilizando
fatos históricos, para configurá-los artisticamente, dando-lhes novas formas abrangendo novos
conteúdos. No momento em que a Literatura recolhe essas informações históricas ela cumpre um
papel ideológico na sociedade e na arte. Conforme Baccega (2000, p.79):

A obra literária, que estamos chamando discurso literário, é, portanto, uma


“encruzilhada”, um ponto de encontro: aí se imbricam os diversos fenômenos de
linguagem, os diferentes procedimentos linguísticos, é o ponto de encontro das
influências histórico-sociais daquela sociedade, manifestadas não só pela utilização da
palavra enquanto matéria-prima básica de que se serve, como também pela conformação
artística dessas influências, que a própria palavra lhe permite.
*
Mestrada em História do Programa de Pós-Graduação em História da UPF. Bolsista FUPF 50%. E-mail:
glaucia.zinani@gmail.com
131

Desse modo podemos afirmar que a História reflete o homem, e a Literatura assume o papel
de recolher essas informações transferindo-as para a uma expressão artística como a escrita,
ressurgindo novas ideias, novos conceitos para o ser humano, que foram impulsionados
historicamente. Sobre essa ligação entre Literatura e História, Vicente (1974, p.3) menciona:

A Literatura é a recriação verbal da realidade através da imaginação do artista. Devemos


ter um modelo, a capacidade criadora de alguém, o objetivo e o consumidor do produto.
[…] A imagem da realidade captada sensivelmente é caldeada pela imaginação ou
fantasia, em sentido decodificador, é feito pelo receptor.

Sabe-se que a obra literária representa a época em que foi escrita, capaz de ser visto nela
indícios de dados históricos. O escritor inserido neste determinado grupo social, ou época, retrata
em suas obras segmentos de sua vivência particular, ou universo que lhe sejam conhecidos. De
acordo com Baccega (2000, p.89):

[..] só na História que o homem existe e a Literatura nada mais é que o discurso da
existência humana, das suas várias possibilidades. A História é o desdobramento no
tempo dessas várias possibilidades. O homem é o personagem, que é homem. E o escritor
é o criador de personagens que se encorparão em homens.

Tendo-se visto a Literatura e a História como refletoras da sociedade cada qual, ocupa uma
área, ficcional ou real, através de uma narrativa verossímil, construída conforme o condicionamento
da sociedade. Aqui há um ponto em comum: ambas são narrativas, com a diferença essencial de que
a História tem um compromisso com as fontes e a verdade, enquanto a Literatura é ficção.
Nesse contexto, a obra Cágada de Gladstone Osório Mársico é uma narrativa literária, que
mescla elementos históricos, elementos do seu cotidiano. Gladstone Osório Mársico nascido em
Erechim-Viadutos 5 de abril de 1927, falecido em 23 de abril de 1976, filho de imigrantes italianos,
desempenhou atividades como escritor, sendo um dos advogados da ICA, vereador, a biblioteca
pública e uma das ruas de Erechim, homenageiam-no com seu nome. Uma das obras de Mársico foi
destaque em âmbito nacional a revista veja 05.04.1972 considerou Gladstone como o melhor talento
satírico da literatura brasileira, por ocasião do lançamento da obra Cogumelos de outono.
Logo, era uma testemunha ocular do desenvolvimento da colônia de Erechim pós-projeto de
colonização judaica, e na sua obra ficcional, mesclou esses saberes históricos, vivências sociais e
culturais, em suas obras chamou atenção para as transformações que Erechim sofria e como o
projeto sociopolítico-econômico se moldava.
Sabe-se que o texto literário fundamenta-se na percepção da realidade do artista, e na emoção
que o artista emprega na sua obra artística. Dessa forma, quando o artista insere esse contexto real
de onde se situa, constrói uma nova visão imaginativa capaz de formular uma obra de arte ficcional.
Conforme Vicente (1974, p.13):
132

A narrativa ficcional é uma articulação de elementos recriados no plano verbal, que expõe
acontecimentos contatos por alguém vividos por pessoas, animais, ou coisas, passados
num determinado lugar e com certa duração, numa atmosfera própria.

A Criação Literária, em seu efeito artístico pode expressar a Realidade ou Ficção. O Real
encontra-se na obra literária, pela articulação da realidade concreta histórica, e a fantasia vai da
imaginação do autor para sua criação. Segundo Grossmann (1982, p.24) sobre o entrelaçamento do
real (Histórico) e do irreal (Literatura) diz que:

São variadas as possibilidades de entrelaçamento na obra literária do real e do irreal, do


concreto e do abstrato, no sentido da produção de uma imagem altamente expressiva do
real, imagem esta que, por si, imita o jogo dialético do imitado. Deste entrelaçamento, a
depender do momento histórico em que a obra seja criada, se diversifica a direção, ora o
concreto se encaminha para o abstrato, ora o abstrato para o concreto.

Ocupa-se a Literatura com fatos históricos, e a partir deles estrutura-os novamente em um


novo texto, e acrescentando-lhes novas formas, favorecendo na elaboração de novos textos, ou seja,
o autor ficcionaliza o real tornando-o literário. A ficcionalidade sendo a qualidade central do texto
literário, ou seja, seu traço mais marcante e decisivo, para desordenar o real. De acordo com
Grossmann (1982, p.60) sobre a Ficcionalização diz que:

A ficcionalização do real atinge todos os elementos do real. E como o texto é um desses


elementos do real, atinge o texto e todos os elementos do texto. Estamos diante de uma
personagem ficcionalizada, de um tempo ficcionalizado, de um espaço ficcionalizado,
como de uma linguagem ficcionalizada. Pois quando a linguagem desliza do seu uso
instrumental, e quando não desliza? Já é uma ficção. Dentro da obra ficcional. O ficcional
significa finalmente, a quebra da ilusão em relação ao real, o descontentamento com as
aparecias, o eterno inverno desse descontentamento, feita gloriosa estação pelo aparecer
da essência.

Dessa forma, fica-se nítida a fusão da Criação Literária, com o contexto histórico e a
Literatura. Mársico e a escritora histórica estão interligadas na mesma linha de pensamento,
percebe-se quando alguns dados conectam entre si, ou deixam lacunas para o leitor ver se realmente
foi imaginação ou se foi realidade.
No que se refere ao texto ficcional, cabe-se comentar sua preocupação de retratar o
imaginário, abstraindo sua vivência histórica reutilizando-a para a ficção. Diante disto, faz sentido
mencionar a importância de entender o contexto histórico, para saber ate que ponto, o escritor
ficcional, ficcionalizou sua obra, e como o contexto histórico aparece na narrativa.

Ficção histórica na obra Cágada


Na obra literária Cágada, de Gladstone Osório Mársico, trata do cotidiano da colonização e da
colônia de Quatro Irmãos, e dos sujeitos envolvidos, ou seja, imigrantes judeus. A imigração
133

judaica na região está relacionada ao contexto global do final do século XIX e início do século XX,
marcados por conflitos e discriminação.
Gritti (1997) Em decorrência disso surgiram instituições de auxílio aos israelitas, dentre elas a
Jewish Colonization Association ICA, fundada pelo banqueiro judeu Barão Maurice de Hirsh em
1891. Segundo o Barão de Hirsh era preciso erradicar as causas da pobreza e isso seria possível
através da produção e do trabalho. O objetivo da ICA conforme Isabel Gritti (1997):

Apesar de fazer parte do Universo das Companhias de colonização que se tornaram


responsáveis pelo povoamento de determinadas áreas da instalação de imigrantes
europeus, a singularidade da Jewish Colonization Association reside no fato de ter sido, a
mesma, criada com o objetivo bem definido: o de promover a emigração dos judeus,
vítimas de discriminações e perseguições no leste europeu e Ásia, e transferi-los para
países cuja legislação lhes assegurasse uma existência livre de discriminações. Desta
forma, a referida Companhia de imigração e colonização tornou-se conhecida pelos seus
fins eminentes humanitários, estabelecidos no seu estatuto de fundação (GRITTI, 1997,
p.15).

A Argentina foi o primeiro país escolhido para concretizar o projeto. No início do século XX
a ICA expandiu e sua área de atuação para o Brasil, inicialmente em Santa Maria, onde em 1904
instalou judeus na colônia denominada Philipson, em homenagem ao então vice-presidente da ICA,
e presidente da Compagnie Auxiliare de Chemins du Fer au Brésil, Franz Philipson. Em 1910 a
ICA comprou a Fazenda Quatro Irmãos, de Wiedespanh e do último proprietário Clementino Santos
Pacheco, situada no município de Erechim. Já em 1912 transferiu sua sede administrativa de
Philipson para Quatro Irmãos.
Depois do insucesso da colônia de Philipson, a colonizadora concluiu que era necessário
selecionar judeus agricultores e não artesãos para morar e Quatro Irmãos. Inicialmente, procurou
fazer um movimento de remigração de judeus da Argentina para o Brasil, mas houve recusa, pelo
fato de que receberam notícias desanimadoras do Brasil. A segunda opção foi pelos russos que para
serem salvos das perseguições contentar-se-iam com o que conseguiriam no Brasil:

Quando os primeiros imigrantes vindos da colônia de Maurício chegam, os lotes estão


subdivididos e, embora tenha havido, em maio de 1912, um movimento de 50 famílias
judaicas em direção ao Brasil, e entre elas as menos aptas, seria somente dois meses mais
tarde que o primeiro grupo de 33 colonizadores chegariam em Quatro Irmãos, 14 deles
com as respectivas famílias, e 19 sem suas famílias. […]. A influência do elevado número
de imigrantes, que chegaram aos primeiros anos da colonização do novo núcleo da ICA
no Rio Grande do Sul, deve-se a uma forte propaganda feita na Rússia pelos agentes das
companhias colonizadoras, em favor da imigração para o Brasil.(GRITTI, 1997, p.41:43).

Ao traspor a temática para a sua obra Cágada houve a adoção de nomes fictícios, mas que
permite fazer de imediato a associação. O autor alterou o nome da ICA para Armarish Colonization
134

Association (ACA), afirmando que essa empresa colonizava territórios no Rio Grande do Sul,
ajudando judeus que procurassem se dedicar à agricultura:

A ACA comprara quase todas as terras que integravam a área que mais tarde passou a
constituir o município de Velópolis e, finalmente Cágada. Era uma companhia de
inspiração judaica com o propósito de colonizar imensos territórios na América do Sul,
especialmente no Brasil, aqui no Rio Grande, e doá-los aos patrícios espalhados pelo
mundo que jurassem dedicar-se á agricultura. O objetivo da instituição era reviver o
espírito bíblico dos filhos de Israel fazendo-se regenerar o bezerro de ouro do comércio e
se devotar á penitência da lavoura (MARSICO, 2006, p.13).

Nas entrelinhas, aparece o sarcasmo do autor, que brinca com os nomes do lugar: de
Velópolis, que pode ser associado a velocidade, indicando a expectativa de um desenvolvimento
rápido e moderno, acaba alterado para Cágada, aqui expressando a lentidão, o “parado no tempo”.
Outro aspecto a notar refere-se aos próprios judeus, associados ao comércio e ao sistema bancário,
teriam que alterar seu sistema de vida, para se ajustar a atividade agrícola, pagando “penitência na
lavoura”.
Analisando o desenvolvimento da colônia e a falência do projeto, Gritti (1997) aponta
justamente esse aspecto como um dos fatores, ou seja, tratavam-se de imigrantes urbanos, que não
se adaptam ao meio rural, nem dominavam os saberes e fazeres do mundo rural.
Gritti (1997) com seus dados históricos menciona os objetivos da ICA, Jewish Colonization
Association, instalar-se no Brasil:

Apesar de fazer parte do Universo das Companhias de colonização que se tornaram


responsáveis pelo povoamento de determinadas áreas da instalação de imigrantes
europeus, a singularidade da Jewish Colonization Association reside no fato de ter sido, a
mesma, criada com o objetivo bem definido: o de promover a emigração dos judeus,
vítimas de discriminações e perseguições no leste europeu e Ásia, e transferi-los para
países cuja legislação lhes assegurasse uma existência livre de discriminações. Desta
forma, a referida Companhia de imigração e colonização tornou-se conhecida pelos seus
fins eminentes humanitários, estabelecidos no seu estatuto de fundação (GRITTI, 1997,
p.15).

Por outro lado, a empresa de colonização possuía dinheiro para empreender a colonização
nesse grande pedaço de terra.

Míster Glupp veio com ordens expressas de não perder tempo. Dinheiro não faltava. [...]
burros portugueses que dobravam o Cabo da Boa Esperança, se perderam no caminho das
Índias e acabou descobrindo aquele imenso território (do qual a ACA podia se considerar
sócia de boa fatia) em nome da cruz! (MÁRSICO, 2006, p.115).

O projeto de colonização da ICA dispunha de capital:

A Jewish Colonization Association, foi registrada em 1891, como uma Companhia


Limitada, com um capital inicial de 2 milhões de libras, divididos em 20.000 ações de
100 libras cada. O Barão de Hirsh subscreveu 19.991 ações, enquanto alguns dos mais
135

ricos judeus da comunidade de Bruxelas, Londres, Berlin e Frankfurt compraram as


outras.[…].
Quanto à compra da Fazenda Quatro Irmãos, localizada no então município de Passo
Fundo, a Jewish recorre ao Sr. Gustavo Vauthier, Diretor da Auxiliare, na época
arrendaria da Viação Férrea do Rio Grande do Sul. A Direção Central da ICA escrevia
para Filipson, em julho de 1909, nos seguintes termos: “É provável que vos enviaremos
os fundos para a compra de Quatro Irmãos por intermédio da Compgnie de Chermin du
Fer de Santa Maria. Sr. Vauthier, diretor desta Companhia, que está no país há longos
anos e que é muito competente em questão de aquisição de terrenos no Rio Grande, foi
convidado para colocar-se à vossa disposição para esta operação e ajudar-vos com seus
conselhos e sua experiência […]”. Á área de 918.630.400m da Fazenda Quatro Irmãos,
adquirida pela ICA do conselheiro Alves Araújo, serão acrescidos mais 21.200.200m,
provenientes da compra da pequena parcela pertencente ao governo do Estado e da área
contígua á fazenda de propriedade de Henrique José Weiederspanh (GRITTI, 1997, p.24,
36).

Ao apontar as causas da emigração, prevalece como fator central a pobreza dos judeus. O
personagem Míster Glupp, era resultado desse processo, pois “em Londres, eles moravam num
arrabalde miserável, no whitechapel, e numa rua em que o sol apenas entrava por caridade, algumas
vezes por ano na época do glorioso verão, glorious Summer”. (MÁRSICO, 2006, p.30), onde
inicialmente passou fome, e posteriormente, por “caridade de patrícios que imigraram junto com
seus pais, arranjou emprego numa sinagoga. Quando pequeno fugiu com seus pais da revolução que
derrubou o czar, e não aquentaram por muito tempo o clima londrino.” (MÁRSICO, 2006, p.30).
Nesse ponto, traz à tona outro aspecto: a migração constante dessas populações, pois quando
criança Míster com seus pais emigraram da Rússia, as margens do Volga, para a Inglaterra, onde
acabaram morrendo quando Míster Glupp ainda era bem moço, deixando-o órfão. A partir de então,
viveu sozinho no bairro miserável. “Até que conheceu Lady Hilda, outra judia de pais expatriados
que saíram correndo da Alemanha antes de começar a pagar o pato pela expansão do bolchevismo
internacional, e com ela se casou”. (MÁRSICO, 2006, p.31).
Aqui, as trajetórias de um emigrante judeu russo e uma emigrante judia alemã, se unem em
Londres, permanecendo como elo comum entre ambos a pobreza. “Lady Hilda era mais pelada do
que ele, mas, reunidas as peles e em que pesasse a falta de pão, havia, pelo menos, um clima de
lareira. E, de tanto se unirem no jejum forçado, veio logo uma filha; e, aí, pelo menos durante o
período de amamentação da filha, havia o que beber”. (MÁRSICO, 2006, p.31).
A possibilidade de emigrar novamente, agora para além-mar, surgiu para a família por meio
da ACA, uma Companhia Filantrópica que ajudava os pobres e trazia judeus para o Brasil:

[…] graças á caridade de alguns patrícios […]. Lá na Rússia, as margens do Volga […].
Até que conheceu Lady Hilda, outra judia de pais expatriados que saíram correndo da
Alemanha antes de começaram a pagar o pato pela expansão do bolchevismo
internacional, e com ela se casou. Lady Hilda era mais pelada do que ele, mas, reunidas
as peles e em que pesasse a falta de pão, havia, pelo menos, um clima de lareira. E, de
136

tanto se unirem no jejum forçado, veio logo uma filha; e, aí, pelo menos durante o
período da amamentação da filha, havia o que beber (MÁRSICO, 2006, p.31)

A pobreza assolou vários espaços da Europa no final do século XIX, e no caso dos judeus,
associada a discriminação. Nesse contexto, surgiram diversas instituições filantrópicas. Segundo
Gritti (1997) O Barão de Hirsh ficou espantado com a pobreza e a negligência dos judeus do
Império Otamano, e optou pelo caminho da filantropia, e não pela prática corrente de dar gorjetas:

Eles não eram vítimas de repressão governamental, mas da ignorância e da estagnação da


economia. Desde essa época, fazia doações consideráveis de dinheiro para os judeus da
Turquia. E, em dezembro de 1873, ofereceu á Aliança Universal Israelita um milhão de
francos para estabelecer um programa de educação e treinamento vocacional. Ele estava
especialmente preocupado com os efeitos nos receptores: isto apenas criaria mais pobres,
o que considerava um grande problema na filantropia, por fazer seres humanos capazes
de trabalhar individualmente em pobres e, desta maneira, criar membros da sociedade
imprestáveis. Ele acreditava ser necessário erradicar as causas da pobreza e não apenas
remediar seus sintomas (GRITTI, 1997, p.23).

Sutilmente, o escritor ressalta que a emigração não era a solução absoluta para a pobreza, e
que nem todos os imigrantes se encaixavam ao modelo desejado. Esse ponto é ressaltado ao referir-
se aos judeus estabelecidos no Bom Fim, em Porto Alegre, e que remigraram para Cágada,
representado pela personagem:

Muja conheceu Rachel em função do contrabando de Arão. Ele andava errante pelo bairro
do Bom Fim, sem eira nem beira, era um judeu que passava fome. Gozando, ria quando
se lembrava do que os outros diziam sobre a sua raça, que não havia judeu pobre. Muja
era pobre o que dava quase mendigo, vivendo da caridade de um ou outro patrício que
geralmente o faziam limpar as lojas e as calçadas, as patentes e os lixos e depois lhe
davam um prato de comida ou magros tostões com versículos sobre a vagabundagem.
(MÁRSICO, 2006, p.69).

Além da pobreza, outro fator que desencadeou a emigração de judeus para a Argentina, o
Brasil, particularmente Quatro Irmãos, foi o contexto da guerra em 1881:

Em 1881, o Barão de Hirsh voltou sua atenção quase que exclusivamente para os judeus da Rússia
e leste da Europa, que considerava a mais desesperadora situação no mundo judeu. A partir deste
ano, a vida dos judeus russos tornou-se mais difícil, pois o antissemitismo existente na Rússia
agravou-se com o assassinato do Czar Alexandre II. Com a morte do czar, cujo governo se
caracteriza pelo respeito ás minorias étnicas, entre elas, os judeus, assume o comando do Império
Russo o Czar Alexandre III. É sob o reinado deste que se iniciam os massacres dos judeus. Tais
massacres, conhecidos como pogroms, estendem-se até o início do século XX. (p.23)

Logo, no período Pré-I Guerra, a ICA concentrou seus esforços na Rússia e Europa Oriental,
com a fundação de estabelecimentos destinados a reconstruir a infraestrutura das comunidades
judias desse local. A emigração judia para o Brasil se intensificou no período posterior a I Guerra
Mundial, justamente quando passaram a sofrer restrições em outros países, como Estados Unidos, a
Argentina e o Canadá.
137

Nesse ponto, o personagem Míster Glupp é envolvido na II Guerra Mundial, sem ter trabalho
digno, sem perspectivas de futuro para sua esposa e sua filha, descobre a ACA num prédio do
Piccadilly Circus em Londres e conhece o projeto de imigração para o Brasil, resolve aceitar:

Depois, veio a guerra e Míster Glupp se ofereceu como voluntário. Continuar de sacristão
na sinagoga não era nem presente, quanto mais futuro. Mesmo porque, com a ameaça de
bombardeios e de invasão, tanto as sinagogas quanto as outras igrejas se mudaram para os
perigos subterrâneos e ali praticamente havia mais sacristães do que fiéis. [...] E assim
Míster Glupp, durante quase toda a Segunda Guerra Mundial, viveu de pá e enxada nas
mãos abrindo covas, enterrando. Enterrou gente sem fim, de todos os credos, de todas as
raças, até patrícios. [...] Ele vivia em meio da morte e ás vezes ficava na dúvida se estava
vivo ou morto. [...]. A morte descia sobre a cidade de Londres todas as noites e não havia
coveiros que chegassem para o balanço das almas e o despacho dos ossos. [...] Finalmente
a guerra foi acabando, menos gente morrendo, cadáveres rareando e Míster Glupp ficou
de novo sem emprego. (p.32). Isto sem falar na fome, na guerra, nas bombas que ela vira
do céu e nos cadáveres que sonhara emergir da terra. [...]. (MÁRSICO, 2006, p.33)

Nesse aspecto, a obra avança para tratar da guerra e da morte, visto que Londres não foi
território do conflito, e o personagem como estrangeiro, não foi engajado no exército. A direção
central da companhia localizou-se inicialmente em Paris, posteriormente em Londres.
Gritti (1997) menciona que no ano de 1912 a ICA transfere sua sede administrativa de
Philipson para Quatro Irmãos. Depois do insucesso de Philipson era necessário selecionar
agricultores e não artesãos para morar em Quatro Irmãos. Queria estabelecer os imigrantes fixos da
Argentina, a maioria deles recusou, pelo fato de que receberam notícias desanimadoras do Brasil,
também colocaram judeus russos que para serem salvos das perseguições contentar-se-iam com o
que conseguiriam no Brasil.
No começo a ICA induzia os judeus com propostas vantajosas para abandonarem seu país
para que estes viessem ao Brasil, dizendo-lhes que havia facilidade de acesso à terra, as terras
abundantes, o trabalho não árduo e enriquecimento fácil. Assim eles vinham com o sonho de “Fazer
a América”. A obra Cágada demonstra o poder de induzir que a ICA exercia sobre os judeus que
estavam abalados pela guerra, e pelos massacres:

Aí começou aquela avalancha de patrícios para “as terras da ACA”. Aliás, a primeira e
única. Vieram o Samuel, o Abrãaozinho e o Bem. Vieram o Froim, o Maurício e o
Damião. E vieram outros mais. Todos numa leva só. [...] Eles haviam chegado de São
Paulo naquele mesmo dia- metrópole onde curtiam algumas especialidades comerciais
nos fundos da Rua José Paulino. Ali como que se formou uma caravana de voluntários na
base do quem dá mais. Mas só veio mesmo quem deu menos. Lá na sinagoga paulista o
rabino, depois que leu três vezes o convite da ACA, achou, que por delicadeza, não
poderiam recusá-lo (p.19).
Então rabino engendrou uma manobra político-filantrópica que deu certo. Primeiro,
escondeu os reais motivos da imigração. Enfeitou “as terras da ACA” com todas as
mentiras do Novo Testamento. As terras eram grátis e havia bugres de sobra para
trabalhar. Havia também casas e financiamento sem juros no banco. Era só plantar e
colher (MÁRSICO, 2006, p.20).
138

Os primeiros judeus chegaram da Rússia em1913, por meio de embarcações pagas pela
Companhia e pelo ramal férreo pertencente a ICA tratava-se de um grupo de 43 famílias da
Bessarábia, perfazendo 307 pessoas. Em 1926, chegam os novos imigrantes não judeus para povoar
as vilas Baronesa Clara, e Barão Hirsch, na Fazenda Quatro Irmãos:

Os imigrantes poloneses e lituanos selecionados pela ICA com o auxílio de Joschp e que
destinam a povoar Barão Hirsch chegam a Quatro Irmãos em dois grupos. O primeiro
deles chegou a junho de 1926, e o segundo, grupo menor, composto de sete famílias, num
total de 53 pessoas, chegou em setembro deste mesmo ano. O número total de famílias
vindas da Polônia e da Lituânia, em 1926, e que são assentados em Barão Hirsch é de
trinta e três. [...] É especialmente na área denominada Polygono “D” que a população não
israelita se concentra, formando quatro comunidades distintas sendo uma sabatiza, uma
italiana, uma alemã católica. (GRITTI, 1997, p.76).

Aqui nota-se que o projeto pensado exclusivamente para judeus não se mostrou tão eficaz, e a
opção pela multietnicidade prevaleceu. Um dos fatores centrais foi a inaptidão dos judeus para os
trabalhos agrícolas, visto que as terras eram propícias à agricultura. Por outro lado, o
desconhecimento das terras pela própria empresa que:

Em 1915, o referido conselheiro constata a impossibilidade do aumento da produção


agrícola sem a recuperação do solo, uma vez que os colonos israelitas foram instalados
em terras de campo que se revelam impróprias para a agricultura, exceto ao cultivo de
mandioca e do amendoim. (GRITTI, 1997, p.55)

Nesse aspecto, nota-se a semelhança com as características de solo considerado fértil, surgem
premonições do autor quanto ao desmatamento irregular em Quatro Irmãos, um dos motivos que
causaram o fracasso da colônia:

Cágada ficava, assim, numa faixa de terra que se dizia pródiga e predestinada, solo fértil
para o trigo e encostas muito saudáveis para o alojamento dos parreirais. Possuía também
uma variedade enorme de madeiras, aquém do Rio Cansado, madeiras de todos os tipos,
desde imbuia, cedro, canela, até pinheiros com mais de cinquenta centímetros de
diâmetro- árvore desconhecida que acabou sendo uma das causas, a principal, de sua
perdição. (MÁRSICO, 2006, p.11).

A ICA estimulou a construção de uma fábrica de azeite, a partir do amendoim, e de atafonas


para a produção de farinha de mandioca. Em Cágada também ressalta como viviam os “bugres”, os
indígenas da tribo do cacique Namai, semelhança com o nome do índio histórico Nonoai, estes
tiveram atuação indispensável em ensinar o imigrante judeu no trabalho rural. “Vivia da primitiva
cultura da mandioca e da cana-de-açúcar. Trabalhava para o gasto e o sustento quando não havia
muito sol e adorava uma boa sombra e água fresca”.(MÁRSICO, 2006, p.12).
Em 1922 a fábrica de óleo foi desativada pela falta de matéria-prima. Vendo que era possível,
uma melhor produção na terra de mato, a ICA não permite a exploração livre da madeira, para que
139

os judeus não abandonassem a roça e se dedicassem somente a exploração das madeiras existentes
nas florestas.
A abundante riqueza florestal foi explorada pelo retorno financeiro que era imediato, gerando
o desmatamento local, quando menciona que Cágada possuía uma grande variedade de pinheiros, e
outras espécies de árvores nativas, derrubadas pelos judeus do Bom Fim. As personagens
desenvolvem a prática do desmatamento, pois ao chegar os judeus derrubam as árvores, deixando as
áreas devastadas para seus sucessores:

Possuía também uma variedade enorme de madeiras, aquém do Rio Cansado, madeiras de
todos os tipos, desde imbuia, cedro, até pinheiros com mais de cinquenta centímetros de
diâmetro. (p.13)
- God, então não façam cerimônia! É só escolherem uma árvore. Temos árvores de todos os tipos,
oh yes, incredible, até cedros de Líbano. (p.130). Os judeus redobraram o trabalho no mato e, não
demorou seis meses, nenhum pinheiro mais havia para ser derrubado. […] Deixamos as terras
limpas para os nossos sucessores (MÁRSICO, 2006, p.175).

Gritti (1997) menciona a riqueza florestal que possuía grande variedade de árvores na
Fazenda que então era de conhecimento dos diretores da ICA desde 1911. A exploração florestal é
intensificada com a Primeira Guerra Mundial em 1914, uma vez que não sofre a concorrência dos
produtores europeus. Essa madeira explorada era transportada pelo ramal férreo da ICA, levando-a
a Argentina. Em 1951, a Companhia foi acusada por Olivatti, representante do Partido Trabalhista,
de desmatar de forma integral os pinheiros, que é contestada pelo delegado florestal do estado, ao
afirmar que a ICA era uma das poucas Companhias a cumprir suas obrigações com o serviço
florestal. Desde 1948 a ICA plantava cinco mudas de pinheiro para cada árvore abatida acima de 40
cm de diâmetro.
Mencionam-se em Cágada, o fracasso da primeira tentativa de colonização, e da segunda
tentativa e do seu fracasso, quanto à primeira tentativa foi com a chegada dos patrícios de São
Paulo, e a segunda com a chegada dos patrícios do Bom Fim, de Porto Alegre:

Era fácil vender uma nova imagem da colonização, mesmo que fosse a velha, melhorada,
mas para outra gente, outra mentalidade. Deixasse os paulistas de lado, eram patrícios
que, apesar dos milênios de tradição, de deixaram influenciarem pelos mais quatrocentos
que encontraram feitos por lá. Tentasse o Bom Fim, em Porto Alegre, bairro do seu futuro
genro Muja- Aquele mesmo que havia obtido uma carta de recomendação, tempos atrás,
lembrasse? (MÁRSICO, 2006, p.115).

Na colônia de Quatro Irmãos houve duas tentativas de colonização, a primeira em 1912, com
imigrantes vindos da Rússia e a segunda tentativa em 1926, quando se criaram novos núcleos
populacionais e foi organizado um sistema de culturas variadas para manter o colono envolvido no
trabalho agrícola, existindo duas vilas Baronesa Clara e Barão Hirsch. O rendimento obtido com a
140

venda da madeira à Viação Férrea do Rio Grande do Sul foi importante na estabilização inicial
deste último grupo.
O ápice da obra, onde há o encontro entre Velópolis e Cágada, a modernidade e o atraso, é na
construção e viabilização de uma linha. “E aí ele começou a construir a sede da Armarish
Colonization Association e duas linhas particulares, uma férrea e outra telefônica, ligando aquele
imenso território ao centro do então município de Nova Floresta.” (MÁRSICO, 2006, p.13).
O ramal férreo, foi construído em 1911 ligava Quatro Irmãos à São Paulo, e foi através deste
meio de transporte, que os colonizadores exploravam o comércio da madeira. Sabe-se que a (ICA)
em 1958 encerou suas atividades na Fazenda, então retirou os trilhos de trem para venda do ferro.
Em Cágada Gladstone também ressalta “Os bugres já haviam completado o trabalho de arrancar os
trilhos de novo para impedir que o trenzinho voltasse.” (MÁRSICO, 2006, p.128).
Encerrando a análise da obra Cágada de Gladstone Osório Mársico, podem ser vistos indícios
similares da Imigração judaica em Quatro Irmãos, também a obra O exército de um homem só do
escritor ashkenazi Moacyr Scliar traz o contexto da imigração judaica no bairro Bom Fim, em Porto
Alegre, similarmente as obras foram escritas na década de 70. Então, analisá-los caberá para um
próximo artigo.

Considerações finais
Portanto, Cágada, do erechinense Gladstone Osório Mársico, uma obra de 1974, é uma
narrativa histórica que busca explicar o desenvolvimento e estagnação de um projeto de colonização
empreendido pela ICA, com imigrantes judeus, no norte do RS. Aqui, se contrapõem a outros
projetos que foram exitosos, e busca apontar alguns fatores que atraíam os imigrantes, fazendo a
relação Brasil – Europa, e os fatores que contribuíram para a falência desse projeto.
A personagem central é a cidade Cágada, por que a história se desenrola em torno de
personagens integrantes no processo de colonização urbana, como os imigrantes judeus, não judeus,
indígenas, caboclos intitulados como bugres, forasteiros que viam Quatro Irmãos como uma
oportunidade de progresso.
Enfim, trata-se de uma ficção, que em muitos aspectos dialoga com a história, e talvez é uma
forma de explicar metaforicamente o fracasso desse projeto de colonização.

Bibliografia

BACCEGA, Aparecida Maria. Palavra e Discurso História e Literatura. São Paulo: Ed Ática, 2000.

GRITTI, Isabel Rosa. Imigração Judaica no Rio grande do sul: a Jewish Colonization Association e a
Colonização de Quatro Irmãos. Porto Alegre: Ed Martins Livreiro, 1997.
141

GROSSMANN, Judith. Ensaio 79 (Temas de teoria da Literatura). São Paulo: Ática, 1982.

MÁRSICO, Gladstone Osório. Cágada (ou a História de um município a passo de). Porto Alegre: Ed
Movimento/ Instituto Estadual do Livro/CORAG, 2006.

VICENTE, Ataíde de Paula. A narrativa de ficção. São Paulo: Mc Graw-Hill do Brasil, 1974.
142

OS DISSIDENTES DA REPÚBLICA: A COLÔNIA BRASILEIRA QUE ORBITAVA EM


TORNO DA FAMÍLIA IMPERIAL DURANTE OS ANOS DE EXÍLIO (1889 – 1928)

Thalita Moreira Barbosa*

O falecimento de Dom Pedro II


Figura símbolo da monarquia brasileira ou pelo menos de suas últimas décadas, D. Pedro II
nunca foi dissociado do passado imperial brasileiro. Mesmo após seu exílio e morte, a jovem
República, que lutava para se afirmar, não foi capaz de desconstruir todo o imaginário que o ex-
imperador suscitava e nem muito menos de persuadir seus seguidores a, enfim, enterrá-lo com sua
morte (FAGUNDES, 2016: 27-52).
Desde de 1889 vivendo na França, o monarca, embora caracterizado como resignado e
silencioso, não deixava de frequentar os meios sociais e, principalmente, científicos e intelectuais
parisienses, o que só fez aumentar o carisma que os europeus já nutriam por ele. Notícia constante
nos principais jornais cotidianos de grande tiragem, Dom Pedro tinha suas aparições em público
vigiadas de perto pelos seus admiradores, angariando respeito e simpatia nos meios que frequentava
(SCHWARCZ, 1998).
Outro fator que coadunava ainda mais toda essa atmosfera em torno do imperador eram as
próprias famílias oitocentistas que também deixaram o Brasil logo após o fim da monarquia e
aquelas que já se encontravam em solos europeus e optaram em permanecer exilados, fosse por
desgosto pelos rumos que o país tomava, fosse por apreço a Família Imperial (LYRA, 1977). Esse
foi o caso, por exemplo, da família Araújo, da do conde de Araguaia, da do conde de Barros, do
próprio barão de Albuquerque, dos barões de Muritiba entre várias outras personalidades do final do
XIX, nobilitadas ou não pelo regime deposto1.
Como era de se esperar, o falecimento do imperador, trazia consigo não só a tristeza e luto do
fato em si, mas também um incômodo problema para a instável e não muito confiante República.
Mesmo no exílio, velho e doente, o imperador não deixava de demonstrar sua disponibilidade em
retornar ao trono se assim o desejasse a sociedade brasileira. O ator político não havia morrido com
o exílio, pelo contrário, embora de poucas palavras sobre o assunto, o monarca ainda parecia ser
detentor de um considerável grau de periculosidade ao regime republicano.
A morte de D. Pedro nesse caso significou uma ressurreição da monarquia, ela voltava ao
centro do debate e de uma forma delicada de se combater, afinal, não seria de bom tom, para um
governo que buscava se afirmar, desrespeitar a morte ou até mesmo o luto do que consideravam ser
*
Universidade Federal de Juiz de Fora. thalitabarbosa@hotmail.com
1
Como pode-se ver no Quadro3: Famílias mais assíduas.
143

um dos mais perigosos de seus adversários, uma vez que, mesmo distante, ele ainda vivia no
imaginário nacional e já havia sido convertido em uma paixão popular (FAGUNDES, 2008).
Seu funeral representou um momento de claras e fortes disputas. Batalhas e negociações
memoriais foram travadas desde então. O luto atrapalhava o desejo de rompimento com o passado
monárquico que a República nutria (FAGUNDES, 2009). A ausência do corpo (que permaneceu em
Lisboa até a década de 1920) era outra questão delicada com a qual os representantes do governo
precisavam lidar, pois trazê-lo teria uma conotação muito forte e corporificaria o imaginário já
pulsante e inconveniente. No entanto, a ausência do corpo também trazia consigo um forte
significado que dava ao luto uma configuração singular, principalmente num país fortemente
católico como era o Brasil.
Questões acerca do lugar de memória que ocuparia o célebre defunto, foram levantadas desde
seu falecimento, tendo várias configurações ao longo dos anos e tomando um caráter mais
definitivo a partir da década de 1920, quando, enfim, é feito o traslado do corpo e concedida anistia
à Família exilada (FAGUNDES, 2009).
Em breves palavras, pode-se resumir esse processo de construção de uma narrativa memorial-
histórica como tendo sido baseada no apagamento de uma face política e atenta do imperador,
disposta a retomar seu lugar no trono brasileiro, em detrimento de uma face heroica e martirizada,
mais adequada ao imaginário do passado imperial desejado e à construção dos grandes heróis e do
“Grande Morto” ali representado.
Mais do que um evento, ele causou também incômodos diplomáticos, afinal, a melhor forma
de retribuir toda a consideração do povo francês àquele ilustre “hóspede” de sua nação, seria com
pompas e honrarias dignas dos mais altos chefes de Estado. Honras militares foram feitas e, o
governo de Sadi Carnot, decidiu prestar ao imperador as mesmas honras oferecidas num caso
similar, que foi o do rei de Hanover, deposto em 1866 pela Alemanha e que falecera em Paris no
ano de 1878 (FAGUNDES, 2016).
A decisão do governo francês era polêmica e dividia opiniões, de um lado os que achavam
dignas as homenagens prestadas, do outro aqueles que consideravam tais atitudes uma afronta a
República brasileira e, no Brasil, a posição dos governantes continuava clara: abstenção total,
nenhuma declaração à mídia brasileira e nenhum representante diplomático nas homenagens ao
imperador.
Como percebe-se enterrar tal defunto não foi tão fácil. Transpondo toda a parte dos ritos
funerários e vivência do luto nos momentos seguintes, pode-se observar que houve uma
significativa continuidade da rememoração do falecimento do monarca através dos réquiens
144

celebrados até meados do século XX, quando enfim, podemos dizer que o imperador de fato foi
sepultado no imaginário da comunidade brasileira estabelecida na França.

As missas de réquiem
Os eventos promovidos pela Família Imperial durante os anos de exílio, serviam como
verdadeiros agregadores de todas essas pessoas que estavam ali na órbita da Família e criava uma
notável rede de sociabilidade da comunidade brasileira radicada em Paris e arredores no entre
séculos.
O reavivamento da memória do velho imperador, realizado anualmente, teve quórum
significativo na maioria dos anos em que a missa foi celebrada. Foi através do mapeamento dessas
celebrações que identificou-se parte da colônia brasileira parisiense. Os dados foram extraídos de
periódicos franceses editados entre 1889 e a década de 1920, uma vez que os réquiens eram
noticiados contendo os nomes dos presentes nas missas.
Na Bibliotèque Nationale de France há 36 periódicos de grande tiragem, que abordam temas
do cotidiano da cidade, entre os anos de 1777 à 1944, entre os quais 23 circularam regularmente
entre os anos de 1889 e 1914. Com base nas descrições da Bibliotèque Nationale de France os
periódicos que mais se encaixavam no período e no perfil de notícia buscados foram o Le Figaro2 e
o Le Gaulois3.
Portanto, foram analisadas as noticias sobre o réquiem de Dom Pedro II que circulavam nos
dois periódicos, sendo que muitas vezes as notícias de um se replicavam no outro. Assim, o
levantamento nos dois periódicos ajudou a ratificar as informações e complementá-las. A primeira
notícia post morten do imperador relacionada ao assunto, data do ano de 1892 e apareceu no Le
Gaulois, a última notícia data do ano de 1928, no mesmo periódico.
Vale apontar que há descontinuidades no período analisado, em alguns anos não foram
encontradas noticias das missas e em outros as noticias apareciam como notas breves, fosse
anunciando a missa que viria a acontecer, fosse relatando a missa já passada, sem conter os
presentes na celebração. Considerando esse importante ponto na análise, tem-se a distribuição dos
anos, de acordo com o tipo de notícia, da seguinte forma:

2
O Le Figaro, fundado em 1826, caracteriza-se por suas reportagens francesas e internacionais e possui a
colaboração de diversas personalidades do mundo literário.
3
O Le Gaulois, criado em 1868, caracteriza-se como um jornal “mundano”, muito influente entre a nobreza e a alta
burguesia.
145

Quadro 1 – Relação tipo de notícias/ano


ANOS NOTICIADOS POR ANOS SEM NOTICIA ANOS SEM
COMPLETO ALGUMA ASSISTANCE
1892 1895 1916
1893 1914 1921
1894 1917 1926
De 1896 à 1913 1918 1927
1915 1919 1928
1922 1920
1923 1925
1924
Fonte: Elaborado pela própria autora
Os dados trabalhados a seguir foram retirados dos anos noticiados por completo. Portanto,
embora o intervalo seja de 37 anos, de 1892 à 1928, tem-se um total de 25 anos que contemplam as
informações buscadas, ou seja, com notícias que fornecem além dos dados sobre as celebrações, os
que estavam presentes nelas.
Pode-se observar que em 1913 há uma ruptura e inconstância nas notícias que segue até 1921.
Esse intervalo de anos situa-se durante a primeira guerra mundial e os anos que a sucederam, pode-
se inferir que além das conturbações típicas de um período de guerra que por si só já seriam
suficientes para quebrar o ritmo normal das celebrações, muitos abastados deixaram Paris, pois a
cidade encontrava-se em uma área muito fragilizada pela guerra e próxima de conflitos de fronteira.
Essa hipótese é confirmada pelo
chamado emitido pela legação brasileira
em setembro de 1914, no Le Figaro,
como mostra a figura 1, que convoca
toda a colônia brasileira “ainda
presente” em Paris a se apresentar o
mais cedo possível à chancelaria e declarar se têm a intenção de permanecer ou não na cidade.
Outro detalhe importante para entender a complexidade do período para a colônia exilada, é que nos
anos que antecedem a guerra, até 1912, o número de presentes nas missas chega s ser superior a
cem pessoas noticiadas pelo periódico. Em contrapartida, já em 1913 esse número cai para 30,
sendo 32 em 19154. Embora saiba-se que os jornais não noticiam a totalidade das pessoas que
acompanhavam as celebrações, os montantes são realmente muito díspares e indicam um abandono
da cidade pelos brasileiros no período de guerra.
Em contrapartida, o ressurgimento das notícias completas em 1921 possibilita pensar que foi
consequência de ter sido nesse ano que aconteceu o traslado dos despojos de Dom Pedro II. Há
4
Como pode-se ver no Quadro 2: Presença total nas missas de réquiem.
146

nesse ano um turbilhão de noticias acerca da Família Imperial e do referido traslado. O periódico
que deu maior eco ao evento foi o Le Figaro, a primeira notícia data do dia 09 de janeiro, vindo do
Rio de Janeiro e refere-se aos preparativos para a recepção dos antigos soberanos, ressaltando que
todos os estados preparavam-se para a manifestação que “prouvera les sentiments de tolérance et
d’équité du gouvernement brésilien” (Le Figaro, 09/01/1921, p.2). As notícias continuam,
aparecendo em mais de dez edições diferentes durante o período de 09 de janeiro à 14 de fevereiro,
em que o Conde d’Eu e seu filho estiveram em solos brasileiros.
A partir de 1921, ainda dentro desse segundo intervalo analisado, as notícias reaparecem com
o mesmo corpo de antes, sendo nos anos de 1922, 1923 e 1924, noticiadas por completo e nos anos
de 1926, 1927 e 1928 ainda são citados os eventos, porém já sem a assistance presente e, por fim,
as notícias sobre as missas não aparecem mais.
Quanto as missas de réquiem, as
noticias seguem sempre um roteiro muito
parecido, noticiam o evento, o local em
que foi celebrada a missa, o dia e o
horário, a seguir vem o que é chamado de
assistance, parte que nomeia alguns dos
presentes, como pode ser visto na figura
2. Essa é a amostra representativa do que
está sendo considerado como “elite
brasileira exilada”.
Quanto ao local de culto das
missas, a Igreja de Saint-Augustin,
escolhida como palco de quase todas as
celebrações, fora construída entre os anos
de 1860 e 1871 e situa-se próxima as
avenidas Haussmann e Malesherbes no
bairro conhecido pela “velha Paris” como Pequena Polônia. O bairro, situado no que veio a ser o 8 o.
arrondissement foi profundamente tocado pelas obras de Georges-Eugène Haussmann 5 que abriu
5
Os trabalhos de Hausmman, nomeado préfet do Sena pelo Imperador, que ocupou seu cargo de 1853 até 1870,
resultaram em 20 mil imóveis demolidos e substituídos por 30 mil novos, 300 quilômetros de ruas abertas com
iluminação pública e um milhão de árvores plantadas (CANCELLIERE, 2013, p. 82). São nos anos sob a direção
de Haussmann que Paris tem seu período de maiores transformações urbanas. Napoleão quer assegurar o lugar de
Paris, como símbolo de poder, entre as capitais europeias. Para tanto, Haussmann expropria boa parte da “velha
Paris” e começa seu plano de saneamento das ruas e cria um embelezamento estratégico da cidade, que tanto evita
futuras barricadas e insurreições, quanto demonstra todo o poder e status da cidade ao cercá-la de símbolos e
monumentos que coadunavam com o desejo do Imperador. Haussmann deixou informações preciosíssimas e bem
147

grandes avenidas em seu interior e modificou todo seu entorno, transformando, por consequência, o
perfil de seus moradores e frequentadores6. Jean-Michel Léniaud em artigo sobre a visibilidade das
igrejas no espaço parisiense do século XIX (2002) aponta que as igrejas construídas sob a
orientação de Haussmann durante a urbanização, eram todas em estilo néo-romano ou néo-gótico,
de formas monumentais, e graças as inúmeras igrejas elevadas durante o período do Segundo
Império é que Paris se ergue como uma capital mundial do cristianismo, atingindo sua ambição
(LENIAUD, 2002, p. 207-216).
Pode-se considerar que no período em que as missas começam a ser realizadas, em 1892, a
igreja é relativamente nova, tendo apenas cerca de 20 anos, no entanto se impõe como um
monumento referencial da arquitetura cristã na capital. Além de situar-se em um dos
arrondissements de maior prestígio na virada do século, o VIII arrondissement7. Entende-se que
todos esses fatores justificariam a escolha da Igreja como local das celebrações.

A colônia brasileira
O presente trabalho, por ser um ensaio inicial de uma pesquisa mais ampla em
desenvolvimento, busca uma análise mais quantitativa do que qualitativa dessa elite que orbitava
em torno da Família Imperial. A seguir algumas informações serão apresentadas acerca dos nomes
colhidos nesse primeiro levantamento e apontamentos iniciais poderão ser realizados com base
nesse quantitativo obtido.
O levantamento completo dos presentes nas missas, nos anos que fornecem tais dados,
distinguidos de acordo com a titulação, é dado conforme o quadro abaixo:

detalhadas sobre todo o trabalho que desenvolveu na cidade de Paris em seu Mémoires du Baron Haussmann, no
livro III no qual descreve os Grands travaux de Paris, subdividindo-o em: Le plan de Paris, Les services
d’ingénieurs, Voie publique, Promenade et plantations, Service des eaux, Architecture et beaux-arts. Editado por
Victor-Havard, Paris, 1893.
6
Referências levantadas no site official da Igreja de Saint-Augustin. Disponível em: www.saintaugustin.net/histoire-
de-l-eglise. Acessado em 07/09/2017.
7
Cyrill Grange (1993) aponta que a Paris mundana da Belle Epoque se concentrava essencialmente em quatro
arrondissements, no VIIe (onde estavam localizados 15% do total dos endereços publicados pelo Bottin Mondain
(anuário que relaciona as famílias da elite francesa), no VIIIe. (24%), no XVIe (22%) e no XVIIe (13%). Embora o
VIIIe fosse o primeiro arrondissement mundano do inicio do século XX, seu sucesso é antigo e remete aos anos de
Luís XIV e Luís XV, por sua proximidade com o Palácio do Louvre e o Palácio da Tuileries. Mas, sem dúvida, é o
século XIX que coroará o VIIIe arrondissement: “l’aristocratie de la fortune, des fonctions, de la naissance, les
personnalités de la vie littéraire et artistique s’installèrent dans le quadrilatère aéré et ensoleillé” (GRANGE,1993,
p. 13).
148

Quadro 2 – Presença total nas missas de réquiem


MARQUES CONDE VISCONDE BARÃO NÃO
ANO TOTAL
MARQUESA CONDESSA VISCONDESSA BARONESA TITULADOS
1892 0 4/2 2/0 2/2 6 20
1893 0 4/0 1/0 1/1 0 9
1894 0 4/2 2/0 3/4 3 19
1896 1/1 3/3 1/2 6/6 41 64
1897 1/0 4/4 1/2 6/7 35 61
1898 0 4/5 3/2 3/4 38 59
1899 0 2/3 1/0 4/3 30 43
1900 1/0 2/3 1/1 3/3 36 50
1901 1/0 5/6 2/1 5/6 34 60
1902 1/0 4/3 2/1 5/6 49 71
1903 0 1/1 0 2/1 45 50
1904 1/0 1/0 0 3/3 14 22
1905 0 2/4 2/1 4/4 45 62
1906 0/1 2/3 1/1 3/5 69 85
1907 2/0 2/4 1/0 2/3 40 54
1908 0/1 0 1/1 3/2 50 58
1909 0/3 2/4 2/0 6/8 49 75
1910 0/2 2/5 0/2 2/4 74 91
1911 0/2 4/9 2/2 3/3 69 94
1912 0/1 3/6 2/5 4/3 89 113
1913 1/2 2/2 0/3 2/2 16 30
1915 0 0/0 0/1 1/0 29 32
1922 0 3/4 1/0 1/2 33 44
1923 0 1/0 0 1/1 15 18
1924 0 2/4 0 1/1 10 18
Fonte: Elaborado pela própria autora
A ausência da coluna dedicada aos duques e duquesas, explica-se pelo fato de apenas os anos
de 1892, 1893 e 1894 terem a presença de um titulado duque. No caso desses anos, subsequentes ao
falecimento, o duque de Nemours, sogro da princesa Isabel, esteve presente no ano de 1892 e o
duque de Alençon, irmão do conde d’Eu, em companhia de sua esposa, esteve presente nos três
anos.
Os nomes por trás da categoria que chamamos de não titulados, são muito variados e referem-
se àqueles que não têm um título de nobreza conforme os citados no quadro, no entanto muitos
possuem títulos de diferentes naturezas, sejam religiosos, militares, do estamento burocrático do
governo ou relacionados a profissão. Tem-se entre eles marechais, reverendos, cavaleiros, generais
e abades, além de príncipes e princesas. Interessante observar que os nomes ligados a cargos do
governo só começam a surgir após 1912, daí tem-se desembargadores, embaixadores, cônsules,
secretários e conselheiros de embaixada. Os “doutores” também são numerosos entre os presentes.
149

Ainda nessa categoria estabelecida, tem-se todos aqueles que são referidos como “senhor”,
“senhora” e “senhorita”8. No entanto, vale ressaltar que no caso das senhoritas, a maioria é filha de
algum nobilitado, que, em companhia de seus pais ou de um deles, é chamada pelo sobrenome da
família (por exemplo, “conde, condessa e senhorita de Araguaia”). Os senhores e senhoras presentes
são, na maior parte dos casos, também referidos pelo sobrenome familiar.
Esses apontamentos fazem-nos acreditar que, embora não nobilitados, as pessoas que
encontram-se nos eventos e que são noticiadas pelos jornais, fazem parte da elite brasileira em solos
parisienses, pois subentende-se que o simples fato de serem noticiadas pelos periódicos já indique
que elas são figuras conhecidas entre a comunidade.
Assim, a proporção entre nobilitados, não nobilitados e número total de presentes nas missas
de réquiem é dada conforme o gráfico a seguir:
Gráfico 1: Relação Presença Absoluta X Nobilitados X Não nobilitados

Fonte: Elaborado pela própria autora


É importante observar que apenas os anos de 1892, 1893 e 1894 possuem mais de 50% dos
presentes nobilitados. Isso é uma quantidade pequena de anos, frente aos 25 analisados. No entanto,
vale atentar para o número total de presentes nesses anos, ele é muito inferior ao intervalo que os
sucederá, de 1896 à 1912, quando a média de pessoas atinge o número de 65 por missa (variando
entre 43 e 113 pessoas, salvo 1904 que só aparecem 22 noticiados). Após a máxima em 1912 de 113
pessoas, no pós guerra, o máximo atingido será de apenas 44, menos da metade. Há aí duas

8
Nesse caso, os jornais usam os termos em francês: madame, monsieur, mademoiselle.
150

considerações possíveis a serem feitas, a primeira é mesmo uma reconfiguração no cenário


internacional que sucede a guerra. Paris não é mais a mesma, sua centralidade não é mais evidente e
a cidade começa um trabalho de reconstrução para se reerguer. Desse fator, pode-se interpretar
como decorrência que muitas das famílias analisadas que deixam a França com o inicio do conflito,
provavelmente, não retornam com o seu fim. Ou, ao menos, não mantêm em paris sua residência
fixa.
Outra hipótese seria a questão geracional que envolve o passar dos anos. De 1892 à 1928 há
um intervalo considerável no qual, provavelmente, muitos daqueles que deixaram o Brasil em 1889
ou que já encontravam-se em solos franceses e não retornaram, já estavam idosos o suficiente ou já
haviam falecido.
Uma análise das famílias mais assíduas é
possível de ser feita através do quadro 3, no qual
foram selecionadas as famílias que estiveram
presentes nas missas durante dez ou mais anos.
Dentre as 18 famílias listadas, os
Albuquerque, os Itajuba, os Muritiba, os Rio
Negro e os São Joaquim, possuem membros
barões na família. O visconde de Orfeuille é o
único que possui tal título. Os Monteiro de
Barros, os Riancey e os Silva Ramos são condes
e condessas. A família Nioac possui os doIs
títulos entre seus representantes, tanto barão,
quanto conde. Inclusive, é notável a presença
significativa da família Nioac, que aparece em
quase todos os anos, exceto em 1913 e 1915,
mais uma vez, o que faz crer que seja devido aos
anos de guerra. A família Marques de Sá tem é
como tratamento “doutor” Marques de Sá,
enquanto o Klingelhoeffer é coronel e o Calogeras (presente apensa em 1896)9 é comandante. A
família Penha é sempre representada pela senhora e senhorita Penha, nunca estando acompanhadas
por um homem da família. A família Sá é representada pelo senhor e senhora Sá, bem como os
Souza, os Teixeira Leite e os Silva Ramos, sendo que estas duas últimas muitas vezes estão também
com a filha (senhorita).
9
Nos outros anos são apenas as senhora e senhorita Calogeras que estão presents.
151

Dentre o total de famílias levantadas no estudo, tem-se 66 que são possuidoras de um título
ligado a nobreza e mais de 260 são não nobilitadas. Na amostra das famílias mais frequentes, dentre
as 18 apresentadas, mais da metade são tituladas.

Considerações Finais
Nenhuma colocação mais pontual quanto a elite brasileira exilada, mais especificamente a
parte dela que orbitava ao redor da Família Imperial, pode ser feita por enquanto, pois os periódicos
que noticiavam o evento, mesmo ao nomear os presentes, não relatavam lista fiéis da totalidade dos
que assistiam as missas. Muitas noticias, inclusive, constam no final dos nomes um apontamento
dizendo “e tantos outros ilustres” ou “etc”10. Portanto, os números obtidos, bem como os nomes, são
uma amostra dessa elite brasileira que encontrava-se em solo parisiense no entre séculos.
No entanto, como hipótese central do levantamento aqui exposto, entende-se que os presentes
nas celebrações dedicadas à Dom Pedro II fariam, em sua maioria, parte do grupo monarquista que
é definido segundo Maria de Lourdes Janotti (1986) como um grupo composto por antigos políticos
de expressão, obscuros políticos de província, funcionários vinculados à burocracia, portadores de
títulos nobiliárquicos e jornalistas militantes. Essa definição ajuda a entender melhor essas famílias
que optam em fazer de Paris sua residência e continuam revivendo o passado monárquico através
dos réquiens. Inclusive Janotti ressalta que o profundo respeito pela tradição, sentimentos
antimilitaristas, a idealização do Império como modelo de virtudes cívicas e o conservadorismo
religioso fariam parte das características em comum que essas pessoas possuíam.
O presente levantamento faz parte de um trabalho de maior fôlego que está sendo realizado no
âmbito do programa de mestrado da Pós Graduação em História da Universidade Federal de Juiz de
Fora. A conclusão do projeto será uma dissertação que visa de forma qualitativa analisar com mais
detalhes e de forma qualitativa, a colônia brasileira estabelecida em Paris, a constituição desse
grupo exilado, suas redes, seus mecanismos internos de funcionamento, bem como seus critérios de
associação. O objetivo é entender a dimensão cultural, social e politica dessas famílias oitocentistas
que optam em deixar o Brasil na virada do século XIX.
Os esforços realizados até o presente momento possibilitam algumas reflexões iniciais sobre
essa comunidade brasileira que estabelece-se em Paris e que aparece constantemente nos periódicos
franceses (não só nas missas de réquiem, como parte da pesquisa maior já apontou).

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A SUBVERSÃO CRUZA O OCEANO: O DEBATE SOBRE A ORGANIZAÇÃO POLÍTICA


ENTRE OS ANARQUISTAS NA ESPANHA E NA ARGENTINA (1874 – 1896)

Eduardo Augusto Souza Cunha1

Introdução
Buscaremos, nas páginas que se seguem, trabalhar a relação existente entre o anarquismo na
Espanha e na Argentina no final do século XIX. Para isso, traçaremos os pontos de contato entre os
debates relativos à organização travados pelos ativistas nas décadas de 1870 e 1880 no país ibérico
e a discussão sobre o mesmo tema que se desenrolou no país sul-americano na década de 1890.
A ênfase será sobre as correntes ilegalistas, no primeiro país, e aos “antiorganizadores”, no
segundo. Entre os dois casos, é possível perceber certa continuidade. Acreditamos que, entre os
“antiorganizadores” argentinos houve uma influência das propostas apresentadas anteriormente na
Espanha. A tese é reforçada ao levarmos em conta a importância que imigrantes espanhóis tiveram
na formação do anarquismo local. Porém, perceberemos que essa continuidade ideológica não se
deu através de uma transposição rígida, mas sim por meio de uma adaptação ao contexto no qual os
militantes estavam inseridos.

Reunir-se nas barbas do burguês: o internacionalismo espanhol nos anos da clandestinidade


(1874-1881)
Na maior parte dos anos da década de 1870, os libertários espanhóis viveram sob a
clandestinidade. Após o sufocamento das revoltas cantonalistas iniciadas em 1873 e a restauração
da monarquia em 1874, todos os grupos operários ligados à Federación Regional Española (FRE),
a seção espanhola da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), foram considerados
ilegais. Com isso, os socialistas libertários mudaram suas táticas para adaptarem-se a essa nova
conjuntura. Se as ações públicas estavam proibidas e qualquer tipo de organização era ilegal, os
anarquistas ligados à FRE passaram a se articular em sociedades secretas. A historiadora Clara
Lida, ao analisar as circulares da FRE e as correspondências trocadas entre seus membros, nos
mostra como se deu a transformação na estrutura organizativa.
A proscrição da AIT em janeiro de 1874 não pegou os internacionalistas desprevenidos.
Desde julho de 1873, após a greve insurrecionária de Alcoy ser suprimida, a Comissão Federal
tinha ciência da necessidade de uma resposta tática à repressão (LIDA, 2003, p. 58). Percebendo a
1
Esse trabalho faz parte da pesquisa de mestrado intitulada “Editar a Revolta: a edição e a circulação de impressos
na formação das organizações operárias de Buenos Aires (1890-1910)”, realizada com apoio da FAPESP (nº
2015/10523-6), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP. As opiniões, hipóteses e
conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade dos autores e não necessariamente
refletem a visão da FAPESP. PPGHE-USP/FAPESP. eduardoascunha@gmail.com.
157

conjuntura política espanhola, Francisco Tomás, membro da Aliança 2, em carta dirigida à Federação
de Sanlúcar em setembro de 1873, aconselhou em nome da Comissão Federal da FRE: “si nos os
fuese permitido reuniros en Asambleas públicas, hacedlas secretas. Al efecto conviene reunirse y
organizarse en grupos de diez indivíduos que puedan reunirse en cualquier parte, hasta en las barbas
del burgués.” (TOMÁS apud LIDA, 1972, p. 233). Em dezembro desse ano, por temer a eclosão de
uma onda repressiva por parte do governo, a Comissão Federal constitui um comitê secreto para
encabeçar a passagem da FRE para a clandestinidade.
Após o governo espanhol declarar a dissolução da AIT, diversos militantes foram presos e
centros operários foram invadidos pelas forças policiais. Frente a esse ataque, a Comissão Federal
enviou uma circular em fevereiro de 1874 ressaltando a importância da manutenção da organização
e a intensificação da propaganda na clandestinidade, além de evitar qualquer enfrentamento com as
autoridades. A circular foi aprovada no Congresso de junho do mesmo ano, ocorrido em Madri de
forma secreta, ratificando a reestruturação da FRE por meio pequenos grupos secretos. Também foi
aprovada a substituição dos congressos regionais pelas conferências comarcais, que abrangiam
espaços menores. Assim, algumas regiões foram divididas em duas comarcas, como Andaluzia
(passando a ser as comarcas de “Andaluzia do Leste” e “Andaluzia do Oeste”). Esse movimento de
descentralização buscava reforçar a autonomia local, ajustando as instâncias deliberativas com a
nova organização em grupos pequenos. A Comissão Federal, ao ser mantida como “centro de
correspondência e estatística”, passou a ter papel essencial na articulação e na coesão da FRE na
clandestinidade (LIDA, 1972; 2003)
Outra adaptação feita foi em relação às táticas adotadas. Dado o contexto, não era possível a
mobilização massiva nem a propaganda pública. Nas conferências comarcais foram discutidas quais
práticas seriam mais adequadas, concluindo que ações de cunho insurrecional, como a destruição de
títulos de propriedade, expropriação de ferramentas e sabotagem de máquinas de trabalho,
representavam o melhor caminho no momento. Diante da apreensão dos seus impressos, a atividade
impressa ácrata alterou seu caráter, ao passar de edições periódicas longevas para jornais de curta
duração e de folhas soltas, sem indicação de redação e local de publicação. Foram esses os meios
adotados pela FRE para manter “la agitación insurreccional de hecho y propaganda” (LIDA, 1972,
p. 238), nos termos adotados por uma circular de 1877.
O êxito da reorganização da FRE notou-se quando as organizações operárias voltaram à
legalidade em 1881. Um ano depois, na realização do II Congresso da recém-criada Federación de
los Trabajadores de la Región Española (FTRE), herdeira da FRE, a organização declarou que

2
A Aliança da Democracia Socialista foi uma organização secreta criada por Mikhail Bakunin (1814-1876)
composta por membros da AIT de diversas seções europeias.
158

contava com 60.000 membros ativos. A despeito das suspeitas que possam ser levantadas sobre a
exatidão da cifra, ela é significativa se comparada com os 30.000 afiliados que a FRE anunciava no
seu último congresso realizado publicamente, entre 1872 e 1873 (LIDA, 2003). Portanto, a opção
tática pelo modelo organizativo adotado na clandestinidade, baseado em grupos secretos e de
poucos membros mobilizados por ações insurrecionais, não apenas manteve viva a FRE como a
expandiu.
Como afirma Clara Lida, “importa tener presente que la clandestinidad anarquista surgió
como una respuesta premeditada, práctica, racional y efectiva a la violencia y represión
legalizadas.” Isto é, prossegue a autora: “Es decir, la clandestinidad fue una táctica consciente de
resistencia contra los crescientes mecanismos de coerción del Estado y de quienes lo sostenían.”
(LIDA, 1993, p. 65, grifos da autora). O êxito da organização clandestina pode ser explicada não
apenas por leitura racional da conjuntura espanhola após a Restauração Bourbônica como também
por sua capacidade de integrar-se às formas políticas antigas e à cultura de resistência camponesa. A
expressão adotada por Francisco Tomás na carta citada anteriormente, quando fala para a FRE
“organizarse en grupos de diez indivíduos” dialoga profundamente com a tradição organizativa das
sociedades secretas, como as irmandades, a carbonária e a maçonaria que seguiam modelos
semelhantes baseados em decúrias. Instituições enraizadas na sociedade espanhola, elas serviam de
inspiração e forneciam a base para a nova estrutura dos internacionalistas espanhóis. Sobre a
relação com as lutas nas regiões agrárias, é preciso salientar o contraste entre mobilização política
dos camponeses e dos trabalhadores urbanos. Estes se encontravam concentrados nas oficinas,
fábricas ou nos setores de serviços, o que potencializava a eficácia da greve como ferramenta para
suas reivindicações; a situação não era semelhante para os primeiros. A dispersão dos camponeses
entre povoados e a abundância de um exército de reserva tornavam a greve um meio ineficaz
(LIDA, 1972, p. 245). Assim, a organização em pequenos grupos e suas ações insurrecionais
adequaram-se à realidade dos camponeses na Espanha finisecular. Para endossar essa tese, a
historiadora Clara Lida (1972; 2003) salienta que o crescimento da FRE durante a clandestinidade
se deu principalmente nas regiões rurais.

O debate organizativo, tático e doutrinário após a legalidade (1881-1890)


Com volta da legalidade, os anarquistas espanhóis se encontravam em uma nova conjuntura.
Para interpretar os fatos e saber como se colocar diante da realidade, iniciou um intenso debate nas
fileiras do anarquismo. Pode-se dizer que as discussões giraram em torno de três eixos. O primeiro é
referente ao modelo organizativo. Com o sucesso da organização informal na década anterior, a
partir da articulação secreta em pequenos grupos, parte das organizações que aderiram à FTRE
159

defendia uma estrutura organizativa com a permanência na clandestinidade e com maior autonomia
aos grupos. Afirmavam que não havia garantias da permanência da legalidade da organização
operária, que o afrouxamento da repressão era ilusório, uma vez que as perseguições a militantes
ainda eram recorrentes. Uma organização mais descentralizada também era positiva pois permitia
uma maior autonomia entre os grupos, diminuindo os riscos de se criar uma burocracia dentro da
FTRE. Em contrapartida, outro setor defendia a adoção de uma organização pública e de massas
baseada em um pacto federativo entre os grupos associados, mas com maior centralização através
da atribuição de poderes deliberativos à Comissão Federal. Baseavam-se sua defesa na
compreensão de que a legalidade abria um campo de atuação, com a possibilidade de se atingir mais
trabalhadores. Mas, para isso, não era possível manter a descentralização existente na década
anterior.
Outro foco de debate se deu em torno das táticas políticas. De um lado, formado sobretudo
por aqueles que defendiam a organização descentralizada e clandestina, propunha-se a atuação em
atos insurrecionais, como a sabotagem de maquinário industrial e mensagens ameaçadoras a
patrões, em ambientes urbanos, e assalto de armazéns, ataques ao gado e destruição de maquinário
agrícola, em ambientes rurais, como o objetivo de incitar levantes, tal como eram as táticas nos
tempos da clandestinidade. De outro lado, composto principalmente por grupos que defendiam a
organização pública, de massas e com maior centralização organizativa, defendia-se a tática de
atuar na criação e no fortalecimento de organizações de resistência de trabalhadores urbanos e rurais
que buscassem atender demandas imediatas na melhoria das suas condições de vida e, longo do
tempo, a construção de novas formas sociais que concorressem ao salariato.
Por último, o terceiro eixo centrou-se no debate doutrinário que opôs o coletivismo ao
comunismo. As duas concepções da organização econômica na sociedade pós-revolucionária
convergiam em relação à coletivização dos meios de produção, porém divergiam quanto à
distribuição dos frutos do trabalho. Para os anarquistas coletivistas, cada trabalhador receberia de
acordo com o seu trabalho, enquanto que para os anarco-comunistas o critério seria as demandas de
cada indivíduo, ou seja, o livre consumo. Até o final do século XIX, o coletivismo daria lugar ao
comunismo como princípio econômico do anarquismo em todos os países. Em alguns deles, como
França e Itália, a passagem ocorreu com tranquilidade. Porém, no caso espanhol, o debate entre
coletivismo e comunismo foi conflitivo. As posições foram tão acirradas ao ponto de grande parte
da historiografia afirmar que esse foi a principal divisão entre os anarquistas espanhóis na década de
1880. Todavia, estudos recentes discordam dessa tese. Para eles, o debate doutrinário entre as
diferentes teses de sociedade futura do coletivismo e do comunismo existiu, mas ficou em um
segundo plano em relação aos debates sobre o modelo de organização e tática política. Segundo
160

Francisco de Paula Fernández Gómez, em seu trabalho sobre a formação do anarco-comunismo na


região de Barcelona:

Durante aquellos años finiseculares un movimiento como el anarquismo tenía muchos


otros debates de igual o mayor importancia. Analizándolos y no quitando tampoco
importancia a las polémicas meramente doctrinales sobre la sociedad futura y su
organización económica, otros asuntos fueron más urgentes e importantes, por ejemplo el
cómo hacer la revolución, que en gran medida se determinaba por el modelo organizativo
a escoger, o el posicionamiento frente a la violencia política como herramienta de lucha,
que se trasladaba en la preferencia de una estrategia insurreccional inmediatista e
ilegalista, frente a un legalismo que posponía la fuerza insurreccional a un periodo futuro
más o menos lejano. (Gómez, 2014, p. 66)

Apesar da complexidade das posições que se originou a partir destes três eixos de debate,
pode-se dizer que, de modo general configurou-se dois pólos: o primeiro, formado por anarquistas
que defendiam o coletivismo, a organização pública e a atuação sindical e o segundo, composto por
anarquistas que defendiam o comunismo, a organização secreta em pequenos grupos e a atuação
insurrecional3. Este contexto de debate intenso se transformou em disputas virulentas, debilitando as
forças do anarquismo. Nesse sentido, é exemplar a reação da FTRE sobre o caso La Mano Negra, a
suposta organização secreta anarquista responsável por atos terroristas na região da Andaluzia 4.
Nessa época, a Comissão Federal, composta por grupos ligados à defesa da organização pública e
da atuação dentro da legalidade, aproveitou-se do acirramento da repressão devido a este caso para
expulsar alguns militantes que eram contrários às suas posições. Desse modo, a Comissão Federal
pretendia tanto fazer frente a seus opositores e como mostrar que a FTRE não tinha nenhuma
relação com La Mano Negra e, portanto, não havia motivos para que ela sofresse perseguições do
governo. Essa postura da Comissão Federal foi um dos elementos que mais contribuíram para o
fraticídio do anarquismo espanhol nos anos de 1880.
Um dos grupos que foi expulso nesse contexto foi a seção local da FTRE de Gràcia, região
próxima a Barcelona, na qual faziam parte Martí Borras e Emili Hugas. Os dois militantes catalães
somaram-se, em 1886, a Jaume Clarà, Francesca Saperas, Victoriano San José, Rafael Roca e a
Fortunato Serantoni na edição do jornal La Justicia Humana, em que Victoriano San José aparecia
como o editor. Este periódico se tornou o primeiro jornal a propagandear o comunismo anarquista
na região de Barcelona e seu grupo editor destacou-se como um dos mais ativos porta-vozes

3
Enfatizamos que essa generalização representa as posições majoritárias dos anarquistas espanhóis na década de
1880, mas não a sua totalidade. Por exemplo, no polo coletivista há uma diferenciação de posicionamento entre o
grupo ligado ao jornal La Tramontana e aos militantes Josep Llunas e Francisco Tomás, que compunham a
Comissão Federal na época do caso La Mano Negra e outros grupos ligados ao jornal La Cronica de los
Trabajadores, de Indalecio Cuadrado, e a revista La Acracia, a qual contava com a participação de Anselmo
Lorenzo, Fernando Tárrida del Marmol, Pere Esteve, Antoni Pellicer Paraire, entre outros. Ver Gómez (2014).
4
Posteriormente foi descoberto que, na verdade, não passou de uma montagem policial para legitimar a repressão aos
anarquistas da Andaluzia.
161

contrários ao coletivismo. Suas posições foram publicizadas no primeiro número do jornal. Sobre as
táticas, o jornal afirma: “somos ilegalistas [...] así aconsejaremos a los trabajadores que vayan a ella
[revolução social] directamente por los medios que les sean posibles sin hacer caso de leyes que no
confeccionaron.” (LA JUSTICIA HUMANA, 18/04/1886, p.1). Em relação à organização, reiteram
sua posição:

no somos partidarios de organizar en sentido positivo a las clases trabajadoras; aspiramos


a una organización negativa. [...] Creemos que ésta debe ser de grupos, sin estatutos; que
tenga por eje las comunes necesidades de clase, y por lazo la solidaridad, de la haremos
participes a todos cuantos luchen por la revolución social.” (LA JUSTICIA HUMANA,
idem)

Esse modelo organizativo também era defendido por impedir a formação de uma burocracia.
Além da postura frente ao caso da La Mano Negra, os editores acusavam a Comissão Federal da
FTRE de desviar-se das suas funções. Para eles, o órgão não acatou as decisões relativas a criação
de organizações clandestinas e a adoção de táticas insurrecionais votadas e acordadas, com anuência
da FTRE, no Congresso Anarquista de Londres de 1881. Essas decisões iam ao encontro das
posições defendidas pelo La Justicia Humana, porém contrariava o setor legalista que na época era
majoritário na Comissão Federal que, por isso, ignorou os acordos de Londres. Para o jornal, a
guinada burocrática do órgão serviu “para demonstrar que la organización no sirve ni ha servido
para el objeto (sic) que fue creada.” (LA JUSTICIA HUMANA, 25/11/1886, p.2).
Portanto, vemos nas posições do La Justicia Humana, composto por Victoriano San José e
Rafael Roca, a proposta de uma organização anarquista clandestina, orientada para atos
insurrecionais e que defendia o comunismo como ideal de sociedade futura. Impulsionadas pelo
acúmulo organizativo da década anterior e por se opor às posições burocráticas e autoritárias da
Comissão Federal da FTRE, os anarco-comunistas viram suas teses táticas, organizativas e
doutrinárias ganharem força no final da década de 1880 no seio do anarquismo espanhol.

Do outro lado do atlântico: a organização nas páginas do El Perseguido (1890-1896)


Na década de 1890, em plena época do grande fluxo imigratório transatlântico, muitos
anarquistas desembarcam na Argentina e desempenharam importante papel no desenvolvimento do
anarquismo. Entre eles, estavam Rafael Roca e Victoriano San José, que impulsionaram o primeiro
jornal ácrata de larga duração na região. Trata-se do El Perseguido, principal porta-voz do
“anarquismo antiorganizador”. Todavia, apesar do nome (dado a posteriori por alguns historiadores
para diferenciar dos anarquistas “organizadores”) entre os “antiorganizadores” há uma defesa de
uma organização no âmbito político, havendo o rechaço da organização na esfera econômica, com a
oposição à criação de sindicatos.
162

Fundando em 1890, El Perseguido foi criado pelo grupo Los Desherdados. Entre os membros
deste grupo estiveram Rafael Roca e Victoriano San José. Após suas intervenções no debate sobre a
organização na Espanha, eles voltam ao tema através do jornal bonaerense. A partir das
formulações do El Perseguido percebemos uma continuidade das teses sobre organização política
defendidas pelos anarco-comunistas de Barcelona.
Nos primeiros anos da década de 1890, reforçaram-se as ideias de um partido anarquista,
difundidas inicialmente por Errico Malatesta. Na Itália, em 1891, organiza-se um congresso na
cidade de Capolago com a presença de 86 delegados de diversas regiões do país. Entre suas
deliberações estava a criação da “Federação Italiana do Partido socialista anárquico revolucionário”,
organizada a partir de comitês regionais de correspondências. Também previa-se a adoção de
fórmulas gerais, para não entrar nas divergências entre coletivistas e comunistas. O El Perseguido
reverberou o evento, publicando a correspondência escrita pelos organizadores do congresso e
publicada pelo jornal La Révolte, de Paris, e no número seguinte teceu suas críticas (EL
PERSEGUIDO, 08/03/1891, p.2)
Os redatores do jornal rechaçaram o congresso tanto por suas deliberações como pelo seu
próprio modelo. Para eles, o acordo entre coletivistas e comunistas é infrutífero, pois ambos se
manteriam presos às suas concepções e a organização nasceria já com uma tensão interna, sempre
com os riscos de implodir. Em relação à proposta das comissões de correspondências, pensam que
invariavelmente eles teriam poder deliberativo e, assim, afirmam a contradição do Congresso: “ellos
se han declarado en contra de un centro, y en cambio creando muchas comisiones regionales de
correspondencia como han creado, no han hecho sino crear muchos centros” (EL PERSEGUIDO,
05/04/1891, p.2). Porém, a questão central da crítica é a própria forma como o Congresso de
Capolago ocorreu. Na concepção do El Perseguido, ao basear-se no mandato imperativo de
delegados eleitos e por definir suas deliberações por meio de votação da maioria dos presentes,
trata-se de uma reprodução do sistema parlamentar por não respeitar a autonomia individual e,
portanto, é contrário aos preceitos anarquistas. Uma organização anarquista só pode ser alcançada,
segundo o jornal, da seguinte maneira: “pues el que quiera ser anarquico no hay sinó un medio de
serlo y es practicando la anarquia, no uniéndose sino por afinidad y que cada afinidad administre lo
suyo, y se concierte con otras afinidades cada vez que lo encuentre oportuno” (EL PERSEGUIDO,
05/04/1891, p.2).
Em outros artigos, o El Perseguido esclareceu suas posições. Em primeiro lugar, sua defesa
da autonomia individual não se confunde com o individualismo. Em um texto que resume sua
ideologia, o jornal afirma: “comprendemos que la vida es imposible sin agrupamiento social.
Aislados no podemos hacer nada, mientras que con la unión íntima podemos transformar el
163

mundo.” (EL PERSEGUIDO, 18/01/1895, p.1). A organização potencializa a ação individual.


Porém, ela surge a partir da vontade dos seus membros. Ao responder às críticas que os acusam de
negarem qualquer tipo de organização, o grupo redator contesta:

Toda la agrupación solo puede ser por voluntad espontánea de los individuos y siendo así
contribuye cada cual según sus facultades, sin otro compromiso que su propia voluntad;
por eso no son necesarios en estas organizaciones reglamentos, presidentes, ni nada que
se parezca a ley o autoridad. (EL PERSEGUIDO, 25/09/1892)

A aversão em estabelecer regulamentos esteve baseada, geralmente, em uma concepção


naturalista da sociedade. Argumentava-se que a associação de indivíduos deve seguir o curso da
Natureza, tal como ocorre no reino vegetal e animal, onde os seres vivos se associam para realizar
certas necessidades e se dissociam para outras. Assim, organizar-se espontaneamente significa que
os indivíduos seguem as leis naturais: “todo en la vida son necesidades a satisfacer, y que los
hombres se organicen espontáneamente por necesidad y se desorganizan por otra necesidad. Solo
queremos la libertad absoluta para todos a fin de que se cumpla la ley de la necesidad” (EL
PERSEGUIDO, 11/11/1891, p.2). As organizações baseadas em estatutos e divisões de tarefas,
desde o Estado até organizações operárias, são vistas como antinaturais e, portanto, autoritárias,
pois ignoram o livre movimento de associação e dissociação. Nesse sentido, em carta publicada por
um militante anônimo de Barcelona, o binômio “organizador”/“antiorganizador” é invertido:

¿Qué quieren los anarquistas organicistas españoles? Organizar fuera de las leyes
naturales a todos los anarquistas del mundo. Esto no es organizar. Esto es confundir el
todo con la parte e interrumpir la marcha magestuosa (sic) de la organización natural,
espontánea y por afinidades, como obra de nuestra madre la Naturaleza. Los partidarios
de la organización española, sediciente anarquista, son por este hecho anti anarquistas y
Desorganizadores. (EL PERSEGUIDO, 18/06/1893, num 61, p.3)

Os argumentos a respeito da organização política dos anarquistas são semelhantes àqueles


adotados contra a criação de sindicatos. Na visão do El Perseguido, eles são um entrave para a ação
espontânea dos operários e podem ser utilizados para fins eleitorais. Indo além, a greve como
ferramenta de luta também é vista com suspeitas. O jornal reconhece sua legitimidade, porém
questiona seus benefícios para toda a classe trabalhadora. Isso porque, a cada vitória de uma
categoria em greve que obtém aumentos salariais, o valor dispendido pelos capitalistas é
compensado com o aumento do valor de venda das mercadorias produzidas. A despeito de tal
conclusão, o El Perseguido ratifica o direito das greves movidas por questões salariais, mas ressalta
que elas não podem se restringir a esta pauta:

no queremos aconsejar a aquellos individuos que pueden realizar una huelga que no la
realicen, pues consideramos que cada uno está en el derecho de defender su bien propio,
esperando la oportunidad de el bien general; pero hemos querido demostrar la realidad de
164

la cosa afín que los obreros no se queden dormidos con los laureles de la huelga, sino que
es preciso que piensen en cosas mas grandes, mas sublimes y mas humanitarias (sic), que
es el bien de todos, y este no podrá obtenerse sino dando al traste con la propiedad
individual para convertirla en propiedad social. (EL PERSEGUIDO, 25/09/1892, pp. 1-2)

A forma de conduzir as greves é outro ponto polêmico levantado pelo jornal. Contrapondo-se
às táticas dos socialistas, que buscavam pressionava o Estado para ele cumprir o papel de arbitrar os
conflitos entre trabalhadores e patrões, o El Perseguido rechaçava práticas legalistas e defendia o
uso da violência. Segundo seus redatores, os grevistas devem agir “sin esperar nada de las
Federaciones ni de los comités. No hay otra via: reclamando los derechos, hay que tener la
conciencia de conquistarlos con todos los medios, sean ellos declarados criminales o no”. (EL
PERSEGUIDO, 13/03/1895, p.2)
Desse modo, é possível afirmar que os antiorganizadores desenvolveram um modelo de
organização. Em suas teses, percebemos a semelhança com as posições adotadas pelos anarco-
comunistas de Barcelona que vimos anteriormente. Isso se deu no âmbito organizativo, na proposta
de organização em pequenos grupos; no âmbito ideológico, com o rechaço a conciliação entre
coletivistas e comunistas e a defesa da última doutrina; e no âmbito tático, com a promoção das
ações ilegais. Todavia, se há certa inspiração, devemos ressaltar que tais teses não são meras
réplicas. Se devemos levar em conta a experiência prévia dos autores em suas formulações, não
podemos ignorar a influência exercida pelo contexto no qual estavam inseridos. Por exemplo, as
táticas propagadas pelos “antiorganizadores” dialogam profundamente com os primeiros anos da
década de 1890, quando houve diversas ações violentas promovidas por anarquistas. Contudo,
apesar da sua propaganda, tais ações não foram praticadas. Como afirma Iaacov Oved: “lo que
caracterizaba a los grupos anarquistas extremistas de los círculos anarco-comunistas no era la
acción terrorista, sino el palabrerío terrorista. La palabra violenta no llegó a materializarse en actos,
ni se desató un ola de terror en la Argentina.” (OVED, 1978, p. 58).

Considerações Finais
Portanto, percebemos uma linha de continuidade ligando os discursos sobre a organização dos
internacionalistas espanhóis da década de 1870, dos anarco-comunistas de Barcelona de final dos
anos 1880 e dos “antiorganizadores” de Buenos Aires de 1890. Tal continuidade, porém, não
significa uma mera reprodução ou uma filiação direta. A formulação de cada um dos discursos
esteve ligada às respostas dadas para os problemas encontrados em seu contexto específico. Porém,
por outro lado, um dos recursos utilizados nesta formulação pelos militantes foi se basear em
situações já vividas. Foi assim que se deu com os “antiorganizadores” de Buenos Aires em relação à
165

experiência dos anarco-comunistas em Barcelona (sobretudo Rafael Roca e Victoriano San José) e
destes com as táticas clandestinas da década anterior.
Assim, destacamos a importância dos estudos biográficos e prosopográficos para a história
política dos trabalhadores, em particular para a historiografia do anarquismo, campo que estudamos.
Essas metodologias nos ajudam a compreender os percursos dos militantes e, assim, torna possível
traçarmos sua trajetória intelectual e suas redes sociais. Dessa forma, conseguimos ter em mente a
circulação existente entre diversos países que deram forma ao anarquismo na passagem do século
XIX para o século XX.
Por fim, para nós, é válido ressaltar a necessidade de se resgatar a experiência de grupos
marginalizados pela historiografia, como os anarquistas “antiorganizadores”, caso que trabalhamos.
Sabemos que suas posições foram aos poucos perdendo influência entre os trabalhadores. Porém,
acreditamos que um estudo da história da classe trabalhadora deve tentar captar quais foram as
respostas que determinado grupo de trabalhadores deram para os problemas que encontraram na
realidade histórica que viveram e emitir juízos para suas opções escolhidas. Como afirma E. P.
Thompson no prefácio de A formação da classe operária Inglesa: “Seus ideais comunitários
poderiam ser fantasiosos. Suas conspirações insurrecionais podiam ser temerárias. Mas eles
viveram nesses tempos de aguda perturbação social, e nós não.” (THOMPSON, 2011, p. 14).

Bibliografia

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D'història Moderna I Contemporània, Universitat Autònoma de Barcelona, Barcelona.

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La Justicia Humana, ano I, núm. 8, 25/11/1886, Barcelona, Espanha

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El Perseguido, ano II, núm. 17, 08/03/1891, Buenos Aires, Argentina

El Perseguido, ano II, núm. 19, 05/04/1891, Buenos Aires, Argentina


166

El Perseguido, ano II, núm. 31, 11/11/1891, Buenos Aires, Argentina

El Perseguido, ano III, núm. 42, 25/09/1892, Buenos Aires, Argentina

El Perseguido, ano IV, núm. 61 18/06/1893, Buenos Aires, Argentina

El Perseguido, suplemento ao número 75, 18/01/1895, Buenos Aires, Argentina

El Perseguido, ano VI, núm. 77, 13/03/1895, Buenos Aires, Argentina


THOMPSON, E. P. A formação da classe operária inglesa – vol.1: a árvore da liberdade. 6. ed. São
Paulo: Paz e Terra, 2011.
Parte 4

Fluxos migratórios recentes no mundo contemporâneo:


política, legislação e trabalho
168

RETÓRICA E MIGRAÇÕES: O DISCURSO POLÍTICO SOBRE REFUGIADOS NAS


ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DA FRANÇA E DOS EUA

Denise Mercedes N. N. Lopes Salles * e Gustavo do Amaral Loureiro**

1. Introdução
A conjuntura internacional tornou o tema das migrações questão central para a agenda dos
direitos humanos no mundo. Segundo o último relatório da ACNUR (Agência da ONU para
Refugiados) em todo o mundo, o deslocamento forçado causado por guerras, violência e
perseguições atingiu em 2016 o número mais alto já registrado na história da humanidade. São
quase 66 milhões de pessoas que se encontram fora de seu contexto de origem de forma forçada;
dentre os quais, 22 milhões são refugiados.
Diversos são os paradoxos em torno das migrações mundiais. Se, por um lado, os direitos
civis e sociais dos migrantes, estrangeiros e naturalizados estão cada vez mais protegidos por meio
de documentos internacionais de direitos humanos; por outro, porém, esses avanços geraram uma
exclusão ainda maior dos diversos tipos de migrantes; especialmente refugiados e dos requerentes
de asilo. Isso pois estes migrantes acabam não sendo beneficiados pela difusão dessas normas
cosmopolitanas (BENHABIB, 2012), e sim cada vez mais segregados seja por não terem direitos
civis e políticos garantidos, seja por viverem em condições de marginalização na estrutura
econômica e social.
Observa-se, especialmente nos países centrais, que, apesar do contingente cada vez maior de
migrantes, os Estados atuam rumo à criminalização dos mesmos. Tal postura vem ganhando maior
apoio social com o aumento dos ataques terroristas nestes países.
Assim, em vários países vem crescendo o número de conflitos envolvendo migrantes e o
apoio à movimentos com contornos raciais, xenófobos e violentos. Fatores estes que tornaram o
tema das migrações central também na agenda de debates políticos e campanhas eleitorais nos
últimos dois anos.
Segundo Gill (2002, p. 244), a análise de discurso representa “uma rejeição da noção realista
de que a linguagem é simplesmente um meio neutro de refletir, ou descrever o mundo, e uma
convicção da importância central do discurso na construção da vida social.”. Para Caregnato e Mutti
(2006, p. 680), “a análise discursiva tem a pretensão de interrogar os sentidos estabelecidos em

*
Coordenadora e professora do curso de Relações Internacionais do Unilasalle-RJ e professora do Programa de Pós-
Graduação em Direito da Universidade Católica de Petrópolis. denise.salles@lasalle.org.br
**
Mestrando em Ciência Política pelo PPGCP/UNIRIO. gus.amaral7@gmail.com.
169

diversas formas de produção, que podem ser verbais e não verbais, bastando que sua materialidade
produza sentidos para interpretação”.
O suporte teórico utilizado por este trabalho é construído através da linha francesa da análise
de discurso, que “articula o linguístico com o social e o histórico” (MELO, 2005, p. 192) e trabalha
com o sentido, ou seja, a ideologia e o contexto social e histórico que permeam o discurso, ao invés
de analisar o conteúdo do texto.
Para Brandão (2004), o discurso é o espaço em que se articulam os processos ideológicos e é
através dele que o indivíduo reproduzirá, de forma voluntária ou não, a ideologia que se é adepto.
Pinto (2005, p. 92) afirma que “todos os discursos pretendem impor verdades a respeito de um tema
específico”, caracterizando a sua eficácia através de dois pontos: a capacidade de desconstrução do
outro e a forma de construir a si próprio. Ainda, a definição de discurso não se limita apenas aos
pronunciamentos formais realizados por representantes políticos, incluindo qualquer tipo de
manifestação ideológica que seja capaz de formular opiniões e moldar a realidade.
O corpo discursivo, para Pêcheux (1990), é uma das mais importantes noções para a análise
de um discurso, sendo o material de análise que deve ser definido pelo pesquisador. Existem duas
condições indispensáveis para definir um corpo discursivo: ele deve possuir unidade, possibilitando
seu estudo como um fenômeno específico, e, nessa unidade, conter uma prularidade de discursos
que possibilite dar conta da hipótese proposta pelo pesquisador (PINTO, 2005).
Partindo do exposto neste tópico, este trabalho propõe uma análise dos discursos sobre
migrantes dos dois principais candidatos de duas das principais eleições dos últimos anos: a eleição
à Presidência dos Estados Unidos em 2016, protagonizada por Donald J. Trump e Hillary Rodham
Clinton, e a eleição à Presidência da República Francesa em 2017, protagonizada por Emmanuel
Macron e Marine Le Pen.
Para que seja possível apreciar a questão de maneira mais precisa, o trabalho propõe, ainda,
que sejam destacados três parâmetros específicos dentro dos discursos políticos: a migração
econômica e a possibilidade de naturalização de imigrantes; a caracterização do solicitante de
refúgio perante a crise de refugiados que se agravou, principalmente, pela guerra civil na Síria; e,
por fim, a caracterização dos migrantes árabes e a correlação entre terrorismo e a religião islâmica.
Sobre os objetos estudados neste trabalho, serão observados pronunciamentos e posicionamentos
que sejam relevantes aos parâmetros estabelecidos anteriormente, no intuito de compreender a
ideologia e a visão dos candidatos sobre os assuntos em questão.
170

2. A Eleição Presidencial de 2016 nos Estados Unidos: Análise dos discursos de Donald Trump
e Hilary Clinton
Marcada por percepções negativas, a eleição presidencial estadunidense foi enxergada pela
população como uma das mais negativas da história, apesar de campanhas à presidência serem
tipicamente negativas no país1. Os dois grandes partidos que dominam o cenário político americano
nomearam, em suas primárias, dois dos candidatos mais impopulares da história: a ex-Secretária de
Estado Hillary Rodham Clinton, do Partido Democrata, e o magnata Donald J. Trump, do Partido
Republicano2. Outras características importantes de se destacar sobre esse processo eleitoral
particular foi a vitória de Donald Trump, mesmo perdendo o voto popular 3 e o seu ingresso na
presidência como o presidente mais impopular das últimas décadas 4, gerando um clima de
ressentimento e divisão nacional.
Um dos assuntos mais comentados durante a referida eleição foi a imigração, principalmente
a econômica5, e a correlação entre refugiados e terrorismo6.

O que eu não farei é receber 200,000 sírios que podem ser do ISIS. John, eu tenho
observado essa migração. E eu vejo as pessoas. Quer dizer, são homens. São em maioria
homens, e homens fortes. Esses são homens fisicamente jovens e fortes. Eles parecem
com soldados de primeira. Agora, provavelmente não é verdade, mas onde estão as
mulheres? Você vê algumas mulheres. Você vê algumas crianças. Mas em sua maioria,
você vê estes homens fortes. Então, você se pergunta duas coisas. Número um, por que
eles não estão lutando por seu país? E, número dois, eu não quero essas pessoas vindo
para cá. (TRUMP, Face The Nation, 11 de outubro de 2015, tradução nossa).7

Conforme a proposta de análise já explicitada, trataremos incialmente dos discursos dos


candidatos em relação aos migrantes econômicos. Em relação a este tópico, Trump reforçou uma
visão de oposição entre trabalhadores estadunidenses e migrantes e afirmou ser necessário garantir

1
Disponível em: <http://www.businessinsider.com/r-negative-tone-of-white-house-race-sours-young-voters-2016-
10>. Acesso em 5 set 2017.
2
Disponível em: <http://www.telegraph.co.uk/news/2016/09/17/us-election-2016-welcome-to-americas-
unpopularity-contest/>. Acesso em 6 set 2017.
3
Disponível em: <http://www.politifact.com/wisconsin/statements/2016/nov/21/reince-priebus/despite-losing-
popular-vote-donald-trump-won-elect/>. Acesso em 5 set 2017.
4
Disponível em: <http://abcnews.go.com/Politics/trump-remains-unpopular-presidency-hand-poll/story?
id=44815005>. Acesso em 4 set 2017.
5
Disponível em: <http://www.independent.co.uk/news/world/americas/us-elections/us-illegal-immigration-donald-
trump-us-presidential-election-2016-myth-a7403371.html>. Acesso em 3 set 2017.
6
Disponível em: <http://www.people-press.org/2016/07/07/4-top-voting-issues-in-2016-election/>. Acesso em 5 set
2017.
7
“What I won't do is take in 200,000 Syrians who could be ISIS. John, I have been watching this migration. And I
see the people. I mean, they're men. They're mostly men, and they're strong men. These are physically young,
strong men. They look like prime-time soldiers. Now, it's probably not true, but where are the women? You see
some women. You see some children. But for the most part, I'm looking at these strong men. So, you ask two
things. Number one, why aren't they fighting for their country? And, number two, I don't want these people coming
over here”. Disponível em: <https://www.cbsnews.com/news/hillary-clinton-donald-trump-presidential-debate-
hofstra-university-transcript-video/>. Acesso em 5 set 2017.
171

prioridade aos cidadãos no mercado de trabalho8. O candidato republicano defendeu a construção de


um muro “impenetrável” na fronteira dos Estados Unidos com o México para diminuir a imigração
ilegal para o país9. Por fim, em seus pronunciamentos, afirmou a conexão entre imigração ilegal,
aumento da criminalidade nos EUA e formação de gangues10.
De forma diametralmente oposta, Hilary Clinton, do partido democrata, que já buscava
projetar uma imagem de defensora moderada dos imigrantes que contribuíam com o
desenvolvimento nacional, afirmou em sua autobiografia que estes mantém a população dos
Estados Unidos “jovem e dinâmica”, enquanto a maior parte de seus competidores no comércio
internacional enfrenta uma crise de envelhecimento populacional, além de construírem importantes
laços com seus países de origem (CLINTON, 2014, p. 550).
Com relação ao terrorismo e a religião islâmica, Trump, em um primeiro momento, defendeu
a proibição da entrada de muçulmanos nos Estados Unidos. Afirmava a existência de uma conexão
direta entre a religião islâmica e o radicalismo, argumentando, inclusive, que algumas tragédias que
ocorreram durante o ano de 2016 nos Estados Unidos poderiam ser evitadas caso tais políticas de
controle migratório fossem implementadas. Ao longo da campanha, no entanto, sua posição
flexibilizou e o candidato passou a defender apenas a proibição de migrantes muçulmanos de
“regiões conectadas ao terrorismo”.11Porém, Trump expressou apoio à ideia de monitorar
mesquitas, investigando a possível existência de retórica jihadista, com a possibilidade de fechar
templos caso mostrassem caráter extremista12.
Hilary Clinton, por sua vez, condenou as afirmações de Donald Trump sobre proibir a entrada
de muçulmanos nos Estados Unidos como uma atitude “não-americana”, contrária aos valores
estadunidenses. Ademais, salientou que que os muçulmanos americanos são a “linha de frente” da
defesa dos Estados Unidos, sendo indispensáveis para combater o terrorismo por possuírem maior
capacidade de identificar problemas que possam estar ocorrendo em suas comunidades. A
colaboração deste grupo seria essencial no combate ao terrorismo e excluí-los seria não apenas
ofensivo, mas também perigoso. Por fim, a candidata democrata advogou a importância de trabalhar
ao lado de países muçulmanos no combate ao Estado Islâmico, não contra o Islã.

8
Disponível em:
<https://web.archive.org/web/20161101083855/https://www.donaldjtrump.com/policies/immigration/>. Acesso em
7 set 2017.
9
Disponível em: <https://www.cnbc.com/2015/10/28/donald-trump-mexico-going-to-pay-for-wall.html>. Acesso em
7 set 2017.
10
Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/news/the-fix/wp/2016/10/19/the-final-trump-clinton-debate-
transcript-annotated/>. Acesso em 7 set 2017.
11
Disponível em: <https://apnews.com/c5b756a81d9a413db610598ac471a4a9/his-words-donald-trumps-evolving-
muslim-ban>. Acesso em 7 set 2017.
12
Disponível em: <https://www.cbsnews.com/news/face-the-nation-transcripts-june-19-2016-trump-lynch-lapierre-
feinstein/>. Acesso em 9 set 2017.
172

Nesse quadro específico, é possível observar uma preocupação da candidata democrata em


salientar a importância de construir um discurso integrador, focado na auto-estima da população
muçulmana. Durante a campanha, Hilary Clinton demonstrou que o discurso divisivo de Trump
seria uma ameaça para a segurança nacional estadunidense, sendo responsável por aflorar
sentimentos nacionalistas e, portanto, dificultar ainda mais o processo de integração desse grupo
social marginalizado, integração essa que pode ser considerada um dos pontos-chave para reduzir a
emergência de pensamentos mais radicais.
Os temas do refúgio e da Crise da Síria também foram constantes na campanha eleitoral
estadunidense de 2016. Donald Trump afirmou que os Estados Unidos deveriam ajudar a Síria
economicamente, mas também disse que acolher migrantes forçados egressos do país árabe poderia
ser pior do que o Cavalo de Tróia.13 Apesar de identificar que a crise de refugiados é, em parte,
culpa da intervenção estadunidense no Oriente Médio, o candidato republicano manteve sua posição
de que os Estados Unidos não deveriam receber recebê-los, reforçando, no seu discurso, que a
maioria destes refugiados parecem ser de “homens fortes” 14, o que visava associar os refugiados a
soldados do ISIS.
A candidata democrata, em posição contrária, defendia que os Estados Unidos aceitassem 65
mil refugiados sírios após um processo de verificação. Em comparação, o Governo Obama
planejava aceitar apenas 10 mil refugiados em território nacional 15. Para Hillary, de acordo com a
história dos Estados Unidos, a coisa certa a fazer seria negociar com os aliados da OTAN para que
o país participasse de um processo de reassentamento de refugiados sírios16.
Por fim, o tema cidadania e naturalização foi outro tópico em ralação às migrações que
apareceu nas últimas campanhas eleitorais. Trump se posicionou claramente pela diminuição de
concessão de cidadania à estrangeiros. Argumentou o candidato, nesse sentido, que a 14ª Emenda
deve ser corrigida para acabar ou regular o direito à cidadania estadunidense baseada no nascimento
em território nacional17. Além disso, Trump defendeu que qualquer caminho para a naturalização de
imigrantes ilegais deva ser bloqueado e removido das leis do país18.

13
Disponível em: <https://www.cbsnews.com/news/face-the-nation-transcripts-october-11-2015-trump-carson/>.
Acesso em 7 set 2017.
14
Disponível em: <http://abcnews.go.com/Politics/week-transcript-donald-trump/story?id=34187405>. Acesos em 8
set 2017.
15
Disponível em: <https://www.cbsnews.com/news/democratic-debate-transcript-clinton-sanders-omalley-in-iowa/>.
Acesso em 5 set 2017.
16
Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/news/the-fix/wp/2016/02/11/transcript-the-democratic-debate-
in-milwaukee-annotated/>. Acesso em 5 set 2017.
17
Disponível em: <http://time.com/4037239/second-republican-debate-transcript-cnn/>. Acesso em 8 set 2017.
18
Disponível em: <https://www.pbs.org/newshour/politics/donald-trump-believe-candidate-stands-10-issues>. Acesso
em 7 set 2017.
173

Com uma postura extremamente crítica em relação a seu oponente, Hillary Clinton era
partidária de uma reforma migratória compreensiva, com um caminho para a cidadania ampla e
igual, que fosse capaz de tratar cada indivíduo de maneira digna. Nesse sentido, defendia proteger
as famílias migrantes de serem separadas, pois separá-las despedaçaria o país. O foco correto, para a
candidata, seria deportar apenas os criminosos violentos, mas não aqueles que tivessem contribuído
para o bem comum19. Assim, observa-se que a candidata democrata defendia medidas mais
humanas ao reforçar leis de imigração, inclusive protegendo aqueles com histórico de serviço às
comunidades e aqueles que tivessem vivenciado explorações trabalhistas20.
Além destes detalhes puramente discursivos, é interessante destacar também os slogans de
campanha utilizados pelos dois candidatos. Clinton escolheu a frase “Stronger Together” (mais
fortes juntos) para representar sua campanha, em apelo à união nacional e clara oposição às divisões
agravadas por Trump. O slogan é uma referência ao seu livro It Takes A Village, em que Clinton
defendeu a importância de toda a sociedade em conjunto na educação infantil, prezando por um
processo educativo mais inclusivo, capaz de atender todas as necessidades das crianças. Para
Hillary, a campanha personalista de Donald Trump não era somente fundamentalmente contra sua
visão para uma sociedade estadunidense próspera e integrada, mas contra os valores americanos21.
Em contraposição, Trump adotou o slogan “Make America Great Again” (fazer a América
grande novamente) para sua campanha, em alusão ao discurso feito pelo presidente Ronald Reagan
durante a Convenção Nacional do Partido Republicano em 1980. Assim como Reagan, Trump
instrumentalizou essa frase para criticar o atual presidente. À época, Reagan disputou a presidência
com Jimmy Carter, um presidente que a maioria dos republicanos lembra como ineficiente e fraco e
é constantemente comparado a Barack Obama, prometendo ao povo estadunidense que seu país
retornaria à sua glória do passado. Para Trump, porém, esse slogan tomava proporções ainda
maiores: alinhadas aos seus discursos de anti-globalização e nativismo, apelava para uma população
socialmente conservadora e xenofónica22.

3. A Eleição Presidencial de 2017 na França: Análise dos discursos de Marine Le Pen e


Emmanuel Macron
A última eleição presidencial na França foi considerada por muitos como uma das eleições
mais importantes dos últimos anos, com a capacidade de moldar o futuro do processo de integração
19
Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/news/the-fix/wp/2016/10/19/the-final-trump-clinton-debate-
transcript-annotated/>. Acesso em 7 set 2017.
https://www.hillaryclinton.com/issues/immigration-reform/
20
Disponível em: <https://www.hillaryclinton.com/issues/immigration-reform/>. Acesso em 5 set 2017.
21
Disponível em: <https://www.npr.org/2016/08/08/489138602/trump-comment-gives-clinton-a-campaign-slogan-
with-layered-meaning>. Acesso em 2 dez 2017.
22
Disponível em: <http://www.news.com.au/world/north-america/the-littleknown-history-of-make-america-great-
again/news-story/fb8a09b40aa59defd39ef0bcdeaeb281>. Acesso em 2 dez 2017.
174

europeu23. Isso pois o segundo turno acabou sendo disputado pelos dois candidatos cujas opiniões
sobre a integração europeia se mostraram mais contrastantes 24. O terrorismo foi um dos temas mais
importantes da eleição, recebendo destaque graças aos últimos ataques terroristas 25 e trazendo
atenção também a tópicos adjacentes como refugiados e migrações 26. Após acirrada disputa no
segundo turno, Emmanuel Macron venceu as eleições com mais de 66% do voto nacional27.
Marine Le Pen, filha de Jean-Marie Le Pen, tentou imprimir um rumo menos extremista e
polêmico à Frente Nacional. Durante a liderança de Jean-Marie Le Pen, o partido chegou a propor a
deportação de 3 milhões de estrangeiros e defendia abertamente posições racistas e xenofóbicas,
além de negar o Holocausto28. Ainda assim, no que toca à questão dos migrantes, a candidata
afirmou durante sua campanha que pretendia inserir uma cota de 10 mil migrantes por ano, no
intuito de cortar a imigração para a França em 80%, além de punir empregadores que contratassem
estrangeiros com uma taxa de 10% de sua renda.29.
Na campanha, Marine Le Pen declarou apoio a construção de um mecanismo de bloqueio para
imigrantes econômicos, argumentando que a França já possui milhões de desempregados e não
poderia absorver mais indivíduos30. Defendeu também o afastamento da União Europeia, posição
reforçada ao defender a possibilidade de um referendo de “Frexit” 31. Além disso, a candidata
prometeu que retiraria a França da área de Schengen32 e acusou o governo francês de dar mais
direitos aos estrangeiros do que aos nacionais franceses33.
Em contraste à sua oponente, Emmanuel Macron não enxerga o futuro da França como um
país isolado do mundo. Durante sua campanha, o candidato propôs reduzir o tempo de espera para a

23
Disponível em: <https://www.washingtonpost.com/blogs/right-turn/wp/2017/04/21/why-the-french-elections-are-
more-important-than-brexit/?utm_term=.cb2e946dce01>. Acesso em 5 out 2017.
24
Disponível em: <http://www.bbc.com/portuguese/internacional-39688081>. Acesso em 7 out 2017.
25
Paris – Novembro de 2015; Nice – Julho de 2016.
26
Disponível em: <http://www.telegraph.co.uk/news/2017/04/20/terrorism-france-having-huge-impact-presidential-
election/>. Acesso em 5 out 2017.
27
Disponível em: <https://www.theguardian.com/world/live/2017/may/07/french-presidential-election-emmanuel-
macron-marine-le-pen>. Acesso 7 out 2017.
28
Disponível em: <http://www.bbc.com/news/world-europe-38321401>. Acesso em 7 out 2017.
29
Disponível em: <http://www.independent.co.uk/news/world/europe/french-elections-latest-marine-le-pen-
immigration-suspend-protect-france-borders-front-national-fn-a7689326.html>. Acesso em 7 out 2017.
30
Disponível em: <http://www.spiegel.de/international/europe/interview-with-french-front-national-leader-marine-le-
pen-a-972925-2.html>. Acesso em 7 out 2017.
31
A expressão “Frexit” faz referência à saída do Reino Unido da União Europeia, popularmente batizada de Brexit.
Disponível em: <https://www.bloomberg.com/news/articles/2015-06-23/call-me-mrs-frexit-le-pen-sees-france-
euro-exit-next>. Acesso em 5 out 2017.
32
A área de Schengen é um espaço criado pelo Acordo de Schengen, que garante aos cidadãos da União Europeia
“viajar, trabalhar e viver em qualquer país da União Europeia sem formalidades especiais”
(https://ec.europa.eu/home-affairs/what-we-do/policies/borders-and-visas/schengen_en). Atualmente, a área de
Schengen inclui 25 países: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Eslováquia, Eslovênia, Espanha, Estônia,
Finlândia, França, Grécia, Hungria, Islândia, Itália, Letônia, Lituânia, Luxemburgo, Malta, Países Baixos, Polônia,
Portugal, República Tcheca, Suécia e Suíça (https://www.axa-schengen.com/en/countries-schengen-area).
33
Disponível em: <http://www.independent.co.uk/news/world/europe/french-elections-latest-marine-le-pen-
immigration-suspend-protect-france-borders-front-national-fn-a7689326.html>. Acesso em 7 out 2017.
175

emissão de vistos de trabalho para trabalhadores qualificados. Os planos de Macron para os


imigrantes incluíam, por exemplo, programas de integração focados em ensinar a língua e cultura
francesas para os recém-chegados serem capazes de se adequar aos costumes do povo 34. Macron
prometeu também instaurar novas medidas para atrair talento estrangeiro, incluindo investidores,
pesquisadores, artistas e outros35.
Observa-se, assim, que Macron e Le Pen, em seus discursos, focavam em elementos distintos
na questão da relação entre migração e economia. Semelhantemente a Donald Trump, Marine Le
Pen afirmou que seu governo implementaria uma política de fiscalização de mesquitas, fechando
quaisquer templos religiosos muçulmanos que disseminassem ideias extremistas 36. Ademais, pediu
ao presidente francês François Hollande que removesse a cidadania de portadores de dupla
nacionalidade que cometessem “crimes bárbaros”37. Apesar de, em uma série de momentos, os
discursos de Le Pen não incluirem menções diretas ao Islã e à população muçulmana, a candidata
foi acusada continuamente de apelar para uma parcela xenofóbica da população francesa38. A
candidata mencionou o extremismo ou terrorismo islâmico diversas vezes ao longo de sua
campanha39.
Emmanuel Macron demonstrou preocupação com o discurso xenofóbico de Marine Le Pen,
acreditando que a candidata poderia criar uma forma de guerra civil. Assim, procurando expressar
sua posição contrária e de respeito às diversas religiões e nacionalidades, Macron demonstrou
preocupação em incentivar a integração dos muçulmanos 40. Durante sua campanha, o candidato
defendeu a posição da França como um Estado laico e de liberdade religiosa, argumentando que
todos possuem o direito de viver conforme a intensidade de suas convicções desde que não
interfiram com as convicções alheias e com as regras estabelecidas41.
O tema do aumento dos refugiados e da Crise na Síria também foi um tópico sensível na
campanha francesa. Marine Le Pen criticou a política de portas abertas da chanceler alemã Angela

34
Disponível em: <http://www.express.co.uk/news/world/800900/French-election-2017-Marine-Le-Pen-Emmanuel-
macron-immigration-EU-policies>. Acesso em 5 out 2017.
35
Disponível em: <http://graphics.france24.com/macron-le-pen-platform-comparison-presidential/>. Acesso em 7 out
2017.
36
Disponível em: <http://edition.cnn.com/videos/world/2017/04/21/paris-attack-le-pen-close-islamist-mosques.cnn>.
Acesso em 7 out 2017.
37
Disponível em: <https://www.rt.com/news/221167-le-pen-france-attacks/>. Acesso em 7 out 2017.
38
Disponível em: <http://www.euronews.com/2017/02/09/what-do-we-know-about-marine-le-pen-s-policies>.
Acesso em 7 out 2017.
39
Disponível em: <http://www.foxnews.com/world/2017/04/02/france-le-pen-renews-anti-islam-remarks-ahead-
election.html>. Acesso em 7 out 2017.
40
Disponível em: <https://www.nytimes.com/2017/04/14/opinion/sunday/france-in-the-end-of-days.html>. Acesso
em 11 out 2017.
41
Disponível em: <https://en-marche.fr/emmanuel-macron/le-programme/questions-religieuses-et-laicite>. Acesso
em 11 out 2017.
176

Merkel após o atentado terrorista em Berlim durante o natal de 2016, utilizando a oportunidade para
defender o fortalecimento das fronteiras nacionais42.
Em um discurso para o Parlamento Europeu, Le Pen criticou as ações da União Europeia na
Síria, acusando os estados-membros de agravarem o caos que já estava instaurado no país árabe. Na
ocasião, a candidata criticou a política migratória do bloco, caracterizando-a como irresponsável e
culpando-a pelo grande aumento do fluxo migratório, afirmando que cerca de 30% dos migrantes
presentes haviam saído da Síria43.
Enquanto isso, Macron elogiou a política de portas abertas para refugiados da chanceler alemã
Angela Merkel durante a campanha presidencial, afirmando que a política “salvou a dignidade
coletiva” da União Europeia44. Seguindo a linha da alemã, Macron prometeu que, caso fosse eleito,
daria prioridade às solicitações de refúgio, para que fossem deferidas ou indeferidas em até seis
meses. Defendeu, ainda, que a França deveria receber os solicitantes de refúgio que realmente
necessitassem de proteção, mas todos os demais deveriam ser enviados de volta para seus países de
origem.

A responsabilidade da Europa é oferecer asilo para aqueles que são perseguidos e buscam
sua proteção. Também é ajudar a lidar com as causas dos movimentos migratórios –
subdesenvolvimento, fome, desordens climáticas. Mas a União Europeia não pode aceitar
em seu solo todos aqueles que buscam por uma vida melhor. Nesse contexto, a França
deve fazer sua parte na recepção de refugiados. (MACRON, Em Marche, 2017) 45

No que toca à questão da cidadania e naturalização de estrangeiros, Le Pen defendeu tornar


mais difíceis as regras para obtenção de cidadania francesa, eliminando o princípio da jus soli da
legislação francesa e substituindo-o pelo direito hereditário ou pela naturalização após atingir a
maioridade, além de impossibilitar a naturalização de estrangeiros sem documentos 46. A candidata
garantiu que, caso fosse eleita, iria extinguir a dupla nacionalidade para cidadãos de outros países
fora da União Europeia, com excessão da Rússia, obrigando os portadores de mais de uma
cidadania a optarem por apenas uma47.

42
Disponível em: <https://www.thelocal.fr/20161220/french-far-right-blast-germanys-open-refugee-policy-after-
berlin-attack>. Acesso em 7 out 2017.
43
Disponível em: < https://www.rt.com/news/361716-eu-responsible-chaos-syria>. Acesso em 7 out 2017.
44
Disponível em: <https://www.ft.com/content/7fa14c80-fdd1-11e6-96f8-3700c5664d30>. Acesso em 14 out 2017.
45
Disponível em: <https://storage.googleapis.com/en-marche-fr/COMMUNICATION/Programme-Emmanuel-
Macron.pdf>. Acesso em 14 out 2017
46
Disponível em: <http://graphics.france24.com/macron-le-pen-platform-comparison-presidential/>. Acesso em 11
out 2017.
47
Disponível em: <http://nationalpost.com/news/world/if-marine-le-pen-becomes-frances-president-jews-who-hold-
dual-nationality-will-be-forced-to-lose-one>. Acesso em 17 out 2017.
177

Já Macron, em sua plataforma política, defendeu que o principal critério para a obtenção da
nacionalidade se tornasse o domínio da língua francesa, reforçando a aprendizagem do idioma
nacional para aqueles que buscassem se tornar cidadãos48.
No que tange aos slogans de campanha, Macron optou por “Ensemble, la France!” (juntos,
França!), apelando a um espírito de unidade nacional, enquanto Le Pen adotou “Choisir La France”
(escolher a França), em alusão à sua mensagem anti-globalista, protecionista e nacionalista49.

4. Considerações Finais
Este trabalho analisou os discursos sobre migrantes dos dois principais candidatos de duas das
principais eleições dos últimos anos: a eleição à Presidência dos Estados Unidos em 2016,
protagonizada por Donald J. Trump e Hillary Rodham Clinton, e a eleição à Presidência da
República Francesa em 2017, protagonizada, principalmente, por Emmanuel Macron e Marine Le
Pen.
Para isso, identificou três parâmetros para compreender como a discussão sobre migrações e
política apareceu nos referidos pronunciamentos dos candidatos. O primeiro deles foi a migração
econômica e seus perigos; o segundo a crise de refugiados, especialmente pela guerra civil na Síria;
e, em terceiro e quarto lugares, a visão sobre os migrantes muçulmanos e árabes, com a consequente
correlação entre terrorismo e islamismo.
Foi possível observar a aproximação entre o discurso do candidato republicano na eleição
norte-americana e a candidata da Frente Nacional na eleição francesa principalmente em relação à
defesa de regras mais duras para a entrada de migrantes, bem como para concessão de cidadania e
na postura criminalizadora em relação aos muçulmanos. Trump e Le Pen seguem tendências anti-
globalistas e nativistas, defendendo o protecionismo econômico, o fortalecimento das fronteiras
nacionais e se opondo à proteção de migrantes das mais distintas classificações. Pode-se observar
uma tentativa da campanha de Marine Le Pen em tentar reproduzir o processo que culminou na
eleição de Donald Trump à presidência dos Estados Unidos, ao adotar um discurso fortemente
voltado ao trabalhador francês e utilizando um slogan com intuito semelhante (“Choisir La
France”, de Le Pen, e “Make America Great Again”, de Trump).
De maneira similar, a corrente mais liberal, formada por Hillary Clinton e Emmanuel Macron,
também apresenta certas aproximações em seus discursos. Em relação à crise de refugiados, por
exemplo, Hillary defendia que os Estados Unidos aceitassem 65 mil refugiados sírios e também que
o país participasse de um processo de reassentamento para receber estes migrantes forçados. Em
48
Disponível em: <http://graphics.france24.com/macron-le-pen-platform-comparison-presidential/>. Acesso em 11
out 2017.
49
http://www.europe1.fr/politique/presidentielle-choisir-la-france-ou-ensemble-la-france-le-pen-et-macron-devoilent-
leurs-slogans-3312248
178

comparação, Macron prometeu dar prioridade às solicitações de refúgio e defendeu que a França
deveria receber os solicitantes de refúgio que realmente necessitassem de proteção.
O tema do terrorismo e sua associação com os muçulmanos também foi tratado de maneira
próxima pelos dois então candidatos. Hillary claramente defendeu um discurso integrador em
relação à população muçulmana. Além disso, a candidata criticou duramente o discurso de divisão
de Trump, afirmando que o mesmo seria uma ameaça para a segurança nacional estadunidense.
Emmanuel Macron, de forma similar, demonstrou grande preocupação com o discurso xenofóbico
de Marine Le Pen, acreditando que a candidata poderia até fomentar uma guerra civil e reforçou em
seus discursos um posição contrária, de respeito às diversas religiões e nacionalidades, além de
incentivar especificamente a integração dos muçulmanos.
Por fim, no que tange aos slogans de campanha, Macron optou por adotar um tom similar ao
de Clinton, apelando a um espírito de unidade nacional a fim de superar as divisões e a xenofobia
apresentadas pela campanha de seus adversários (“Stronger Together”, de Clinton, e “Ensemble, la
France!”, de Macron). Apesar de não ser possível afirmar que a campanha de Macron tenha
intencionalmente reproduzido o tom de campanha de Hillary Clinton, é possível observar a
influência do processo eleitoral estadunidense na campanha de Macron, inclusive pela declaração
de apoio do presidente Barack Obama ao candidato liberal, fato que seria inconcebível em uma
campanha tradicional50.

Bibliografia

BENHABIB, Seyla. O declínio da soberania ou a emergência de normas cosmopolitanas: Repen-


sando a cidadania em tempos voláteis. Civitas, v. 12, n. 1, p.20-46, 2012.

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à análise do discurso. 2ª ed. Campinas: Unicamp,


2004.

CLINTON, Hillary Rodham. Hard Choices. Nova York: Simon & Schuster, 2014.

GILL, R. Análise de Discurso. In: Bauer M. W., Gaskell G. Pesquisa qualitativa com texto, ima-
gem e som: um manual prático. 3ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002, p. 244-270.

MELO, E. A. S. Gestos de autoria: construção do sujeito da escrita na alfabetização. In: Baronas R.


L. (org.). Identidade cultura e linguagem. Campinas, SP: Pontes Editores, 2005, p. 191-205.

PINTO, Céli Regina Jardim. Elementos para uma Análise de Discurso Político. Barbarói (UNISC),
v. 24, 2006, p. 78-109.

50
Disponível em: <https://www.vox.com/world/2017/5/4/15542346/obama-emmanuel-macron-endorsement>.
Acesso em 25 out 2017.
179

O DIREITO AO TRABALHO EM TEMPOS DE REFÚGIO

Helenice Pereira Sardenberg * e Adriana Motta Gonzaga**

Introdução
A partir de uma perspectiva histórica, acreditava-se que o século XXI teria como primazia
alcançar uma plataforma política de inclusão e civilidade, em que a multidiversidade fosse tolerada
e desejada e os avanços científicos e tecnológicos, dentro de uma visão global, dariam o
embasamento para uma sociabilidade que buscasse intensamente dirimir as diferenças e propagar o
respeito e a inclusão. Ao abrir os jornais de hoje, é fácil verificar que tal plataforma idealizada pelo
humanismo está longe de acontecer. Entre os séculos XV e XVII, deu-se voz a algo que já vinha
sendo percebido pelos filósofos e escritores da época, como Maquiavel, Thomas Morus, Galileu
Galilei, que reivindicavam ser o ‘homem’ o centro do universo, dotado de razão e autor de grandes
realizações, em detrimento ao que dizia a igreja. Esperava-se que os homens ao transcenderem sua
constituição primitiva criassem mecanismos cada vez mais eficientes que trouxessem bem estar
para a sociedade como um todo.
Rousseau, em seu “Discurso sobre a Origem da Desigualdade entre os Homens”, de 1754,
destaca a característica humana que mais o diferencia dentre os animais: a capacidade de se
aperfeiçoar; da mesma forma, discute a possibilidade de que todo o progresso idealizado e
construído pelo homem, para sua perfeição, pudesse também ter contribuído para a decrepitude da
raça humana (ROUSSEAU, 1754).
Refletir sobre essa questão proposta por Rousseau se faz necessária na medida em que o
mundo se vê enredado por sérios problemas referentes a guerras, ataques com armas químicas,
aumento do número de refugiados e a ameaça do terrorismo, entre outros violentos distúrbios que
assolam as primeiras décadas do século XXI. Não menos violentas, são as graves crises político-
econômicas que se fazem presentes em muitos países, desde a crise econômica mundial deflagrada
em 2008. Necessárias são as leis que protegem os homens da ganância e violência de seus pares. Os
direitos humanos foram idealizados sob forma de parâmetros internacionais para a construção de
leis em esfera regional e local. E, hoje em dia, são imprescindíveis para trazer a esperança de volta
àqueles que perderam suas pátrias e tentam resgatar sua dignidade através do trabalho nos países
que os acolhem.

*
UNILASALLE/RJ helenicefjl@gmail.com
**
UNILASALLE/RJ gonzaga.dri@gmail.com
180

O processo histórico da criação dos direitos humanos remonta ao término da segunda grande
guerra, como tentativa de proteger a vida e preservar a dignidade humana. Os direitos humanos, sob
a forma de documentos internacionais, foram criados a partir da necessidade de se garantir a
proteção frente, principalmente, às arbitrariedades do estado. Da mesma maneira que a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, adotada pela ONU - Organização das Nações Unidas, desde 1948,
outros acordos e convenções foram criados com esse mesmo propósito. Grande parte dos países,
incluindo a totalidade do continente europeu e sul-americano assinaram e ratificaram a Declaração
dos Direitos Humanos.
O Brasil, assim o fez e, prontamente, aderiu ao primeiro documento. Outro aporte jurídico
importante é a Convenção de Genebra, de 1951, a ela se juntam os respectivos protocolos
adicionais, assim como, as resoluções europeias sobre migração e refugiados, como o Acordo
Europeu sobre a Transferência de Responsabilidade pelos Refugiados, de 1980, entre outros.
A partir dessa perspectiva, este artigo visa discutir o contexto jurídico internacional
destacando a problemática do direito ao trabalho, que está na gênese da internacionalização dos
direitos humanos fundamentais, e os problemas encontrados pelos indivíduos que buscam refúgio
ou que se encontram em tal situação, para se engajarem no mercado de trabalho, tanto do ponto de
vista formal quanto informal.
Dessa forma, pretende-se mostrar os principais obstáculos que esse grupamento de pessoas
enfrenta, enfatizando as questões jurídicas. Nesse sentido, como forma de delimitação do objeto,
pretende-se discutir, como o direito pode dificultar ou mitigar a integração dos refugiados, seja por
intermédio da possibilidade ou impossibilidade de se requerer um emprego formal, enquanto o
pretendente espera pela decisão sobre o pedido de asilo. Logo, se fez necessário realizar
levantamento bibliográfico capaz de fornecer o instrumental analítico, efetuado junto às bases de
dados de institutos especializados, como os órgãos governamentais e as entidades internacionais.

O contexto jurídico internacional


O direito ao trabalho, encontra-se na gênese da internacionalização dos direitos humanos
fundamentais e se configura numa das mais significativas e inalienáveis conquistas da humanidade,
retratadas, principalmente, na Declaração Universal adotada pelas Organização das Nações Unidas,
desde 1948. Além dela, outros dispositivos internacionais como as convenções da OIT –
Organização Internacional do Trabalho estabelecem proteções aos trabalhadores migrantes e suas
famílias. Tais instrumentos jurídicos estão sendo utilizados na tentativa de se fazer uma espécie de
‘gestão’ de uma das mais graves crises internacionais que o mundo já presenciou.
181

A crise diaspórica tomou proporções gigantescas. De acordo com a Convenção de Genebra de


1951, relativa ao Estatuto de Refugiado, um refugiado é uma pessoa que

receando com razão ser perseguida em virtude da sua raça, religião, nacionalidade,
filiação em certo grupo social ou das suas opiniões políticas, se encontre fora do país de
que tem a nacionalidade e não possa ou, em virtude daquele receio, não queira pedir a
proteção daquele país; ou que, se não tiver nacionalidade e estiver fora do país no qual
tinha a sua residência habitual, após aqueles acontecimentos não possa ou, em virtude do
dito receio, a ele não queira voltar.

Segundo o ACNUR1, refugiados são “pessoas comuns que tiveram que deixar para trás seus
bens, empregos, familiares e amigos para preservar sua vida, liberdade e segurança” 2. Conforme
dados fornecidos pela ONU e divulgados pelo ACNUR 3, em 2017, já somam mais de 65 milhões de
pessoas forçadas a se deslocarem de seus países de origem e mais de 21 milhões de refugiados pelo
mundo. Destes refugiados, a maior parte são mulheres e crianças, vindas em sua maioria da Síria,
Afeganistão e Somália. Cerca de 5 milhões são refugiados provenientes da Síria. Diante desse
quadro, se faz mister intervenções dos organismos internacionais na tentativa de reassentarem esses
indivíduos e proverem proteção e recursos, a partir do trabalho. A situação é crítica pois vários
países que se dispuseram a acolher os refugiados, encontram-se com graves problemas econômicos.
Partindo do pressuposto de que as realidades mudam a cada instante, pois o homem é um ser
em contínuo movimento, é preciso que o direito acompanhe tais movimentos e mudanças,
permitindo que um certo equilíbrio social seja mantido. Bobbio (2004) afirma que os direitos do
homem e sua história são de uma classe variável, que se modificam ao sabor das condições
históricas “ou seja, dos carecimentos e dos interesses, das classes no poder, dos meios disponíveis
para a realização dos mesmos, das transformações técnicas, etc.” (BOBBIO, 2004, p.13)
No sistema universal, também, conhecido como sistema das Nações Unidas, destaca-se a
Declaração Universal dos Direitos Humanos, concebida em 1948. Pilar no que concerne à proteção
da pessoa humana, esse instrumento jurídico é um dos mais importantes documentos de direito
internacional, pois abriu caminho para diversos pactos, convenções e cartas de direito mais
vinculantes, servindo de parâmetro para os Estados estabelecerem suas próprias constituições.
Segundo Boobio (2004):

A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa a manifestação da única


prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado
e, por tanto, reconhecido: e essa prova é o consenso geral acerca da sua validade. Os
jusnaturalistas teriam falado de consensus omnium gentium ou humani generis.
(BOBBIO, 2004, p.16)
1
Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados
2
Trabalhando com Refugiados. In http://www.acnur.org/fileadmin/scripts/doc.php?
file=fileadmin/Documentos/portugues/Publicacoes/2015/10014 Acesso em 9/4/2017
3
In: http://www.unhcr.org/figures-at-a-glance.html Acesso em 9/4/2017
182

Entretanto, ela não estabeleceu os mecanismos para o seu cumprimento e não apresentou
força vinculante, o que equivale dizer que os Estados mais fortes preservaram sua soberania sobre a
efetivação de tais direitos. Essa contradição aparente na Declaração Universal vem ao encontro da
situação dos refugiados que enfrentam dificuldades em se realocar no mercado de trabalho dos
países que os receberam e os recebem. Outro importante documento é a Convenção de 1951,
relativa ao Estatuto dos Refugiados que estabelece padrões básicos para o tratamento de refugiados,
apesar de não impor limites para que os Estados desenvolvam esse tratamento.
No sistema europeu destaca-se entre os organismos de proteção e assistência aos requerentes
de asilo e refugiados o ECRE – Conselho Europeu para os Refugiados e Exilados. Este Conselho é
uma aliança pan-europeia de 90 organizações, sem fins lucrativos, que concedem proteção e
assistência na Europa, além de promover a integração dos refugiados e das pessoas a quem foi
concedida proteção subsidiária nas sociedades europeias, a partir de políticas e práticas declaradas
como justas e humanas em matéria de asilo, de acordo com a legislação internacional em matéria de
direitos humanos.
Desde 1998, o Conselho Europeu recomenda aos Estados Europeus - através de documentos
como o chamado “Posição do ECRE sobre a Integração dos Refugiados na Europa” em que
constam as conclusões-chave do ECRE sobre a integração de refugiados na Europa 4 - que não
concedam um estatuto inferior às pessoas que se encontrem em situação de refúgio. Consta do
documento menção específica sobre a situação dos refugiados em relação ao emprego:

No Tratado de Amsterdã ficou estipulado que o emprego será tratado pelos Estados-
Membros da União Europeia como uma "preocupação comum", comprometendo-se estes
a coordenar as suas ações. Na Cimeira da UE sobre o Emprego em novembro de 1997,
chegou-se a um acordo quanto às linhas de orientação sobre o emprego em toda a UE, as
quais irão sustentar os Planos de Acção Nacionais sobre o Emprego. As Linhas de
Orientação sobre o Emprego de 1999 incluem, entre as recomendações aos Estados-
Membros, a promoção da "inclusão social e a igualdade de oportunidades para os grupos
desfavorecidos". Neste contexto, o ECRE recomenda que as medidas governamentais
visando a redução do desemprego na União Europeia prestem especial atenção à situação
de emprego dos refugiados reconhecidos e das pessoas com proteção subsidiária. (ECRE,
2000)

Além disso, adotou vários instrumentos de proteção e auxílio aos refugiados, dentre eles: o
Acordo Europeu relativo à Supressão de Vistos para os Refugiados (1959); a Resolução 14, de 1967
que versa sobre Concessão de Asilo a Pessoas ameaçadas de Perseguição e o Acordo Europeu sobre
a Transferência da Responsabilidade relativa aos Refugiados (1980), ratificado por decreto pelo
governo brasileiro, em 1981.

4
Documento produzido em 1998 pelo Conselho Europeu para os Refugiados e Exilados. Disponível em:
http://www.refugiados.net/cid_virtual_bkup/integra/guia_bp_pos_ecre.html#introd Acesso em 15 de abril de 2017
183

A proteção dos direitos fundamentais conta também com a Convenção Europeia dos Direitos
dos Homens, firmada em 1950 em Roma e da Convenção Europeia de Salvaguarda dos Direitos
Humanos e das Liberdades Fundamentais,

As privações de acesso ao mercado de trabalho


Antes de destacar as privações de acesso ao mercado de trabalho, importante se faz relembrar
o conceito de trabalho em Marx (1985). Segundo este mesmo autor, o trabalho é condição da
existência humana, revelando o caráter universal da atividade humana que é transformar a natureza
para garantir sua subsistência. Contudo, não se pode perder de vista que essa atividade universal é
criadora de valor de uso, se realizando por intermédio de condições historicamente determinadas.
Assim sendo, o homem deve sua existência ao trabalho, ele é o pressuposto ontológico-fundante da
sociabilidade, isto é, o fundamento das diversas formas pelas quais os homens organizam a
produção e a distribuição da riqueza social. Destarte, independentemente de sua forma social, o
processo de trabalho possui pressupostos que o constituem e o estruturam indiferentes a sua forma
de realização.
Não se pode também deixar de enunciar que o processo de trabalho é atividade orientada a um
fim ou o trabalho mesmo, essa é uma atividade consciente, teleológica.
Além do que já foi dito, vale, mais uma vez, ressaltar que o trabalho tem por resultado a
produção de valores de uso. Contudo, de acordo com o próprio Marx em sua obra Para a Crítica da
Economia Política (1974)5, o processo de trabalho além do valor de uso, promove, no capitalismo,
valor de troca que se consubstancia por intermédio da produção, distribuição, circulação e consumo.
A satisfação das necessidades só se dá por meio da troca dos produtos oriundos do trabalho –
que é produção – constituindo esta o meio de integração entre os proprietários privados de
mercadoria, vinculando o trabalho privado ao social.
Portanto, como afirma Marx (1974) “o modo de produção da vida material condiciona o
processo em geral da vida social, político e espiritual. Não é a consciência dos homens que
determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”. (pg. 136)6
Isto posto, num plano mais concreto de reflexão, tratar-se-á, a partir deste ponto do texto, das
privações de acesso ao mercado de trabalho pelos refugiados ou por aqueles que buscam refúgio
A realidade demonstra que a privação de acesso ao mercado de trabalho e a discriminação
acontece desde a fase inicial de chegada a um país de asilo, o que pode dificultar a integração do
requerente e de sua família em longo prazo, pois sabe-se que ao saírem, repentinamente, de seus

5
MARX, Karl. Para a Crítica da Economia Política. In: Marx. Col. “Os Pensadores”. São Paulo: Abril Cultural,
1974.
6
Op. Cit.
184

países de origem e ingressarem em outros, muitas dessas pessoas – em sua maioria mulheres e
crianças – enfrentam graves problemas que podem repercutir na própria saúde entre outras formas
de deficiência, como estresse e desordens psicossociais.
O Conselho Europeu reconhece que restrições ao emprego fomentam o trabalho ilegal e pode
encarecer os cofres públicos na medida em que encoraja a dependência da assistência pública. No
documento elaborado pelo ECRE7, o Conselho Europeu se posiciona em relação às restrições aos
direitos de emprego dos refugiados como uma violação à Convenção das Nações Unidas relativa ao
Estatuto dos Refugiados e declara:

É urgente que os governos nacionais concedam aos refugiados e pessoas com estatuto de
proteção subsidiária direitos incondicionais ao emprego e acesso automático a
autorizações de trabalho. Quaisquer restrições justificadas pela segurança nacional e
considerações de cidadania deveriam ser mínimas e baseadas em fundamentos justos.
(ECRE, 2000)

Sobre os problemas relativos a desemprego e subemprego que atingem os refugiados, o ECRE


tomou o posicionamento de tentar dirimir tais situações a partir de parcerias entre instituições
públicas e agências de desenvolvimento local/regional, organizações sindicais e consultores de
emprego, entre outras. Tais parcerias são importantes pois o mercado de trabalho tende a
discriminar os refugiados, apesar das qualificações elevadas e/ou requalificação no país de
acolhimento, podendo atingir a hostilizações xenofóbicas e protecionismos, caso não seja feito
nenhum tipo de regulação no sentido de dirimir as dificuldades de inserção por parte das
autoridades. Isto porque, muitas vezes, o refugiado é visto como aquele indivíduo que ‘rouba’ um
posto de trabalho do indivíduo “nativo” da região. Não sem razão, se faz necessário buscar
reflexões e estudos a partir da perspectiva crítica dos direitos humanos, isto é, como diz Herrera
Flores (2009) na “abertura de processos de luta pela dignidade humana” do trabalhador migrante.

Por isso, nossa visão complexa dos direitos aposta em uma racionalidade de resistência.
Uma racionalidade que não nega que se possa chegar a uma síntese universal das
diferentes opções ante os direitos e também não descarta a virtualidade das lutas pelo
reconhecimento das diferenças étnicas ou de gênero. O que não aceitamos é considerar o
universal como um ponto de partida ou um campo de desencontros. Ao universal, há que
se chegar – universalismo de chegada ou de confluência – depois (não antes) de um
processo de luta discursivo, de diálogo ou de confrontação em que se rompam os
preconceitos e as linhas paralelas. (p.157)

A preocupação com a inserção das mulheres no mercado de trabalho, também, é tema de


discussão entre os organismos internacionais de proteção. Para grande parte delas, são vedados os
mesmos direitos que os homens possuem em seus países de origem, o que dificulta a integração e
inserção no mercado de trabalho no país do refúgio. Uma outra dificuldade se encontra no
7
Ibidem
185

reconhecimento e comprovação das qualificações e experiências adquiridas pelos indivíduos em


situação de refúgio, ou antes mesmo de assim serem declarados. Nem todos os países reconhecem
as qualificações estrangeiras como válidas, mas há uma tendência de se flexibilizarem os sistemas
de certificação de competências para facilitar a inserção dos refugiados no mercado de trabalho.
Não sem razão, voltarmos a Marx (1985), mais uma vez, quando este diz que o trabalho é condição
da existência humana. Além disto, o trabalho, também, é um direito fundamental. Sendo assim, vale
verificar a Declaração Universal dos Direitos Humanos, promulgado pela ONU, em 1948, que, da
mesma maneira, garante que o trabalho é um direito social. Logo, importante ressaltar o que dia o
Artigo 23 desta Declaração8:

Artigo 23
I) Todo o homem tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e
favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
II) Todo o homem, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual
trabalho.
III) Todo o homem que trabalha tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que
lhe assegure, assim como a sua família, uma existência compatível com a dignidade
humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social.

Principais iniciativas de inclusão


Na União Europeia, o ECRE recomenda que os estados estipulem critérios de verificação e
avaliação específicos, além de criação de cursos de aperfeiçoamento e programas de formação
profissional para atender ao mercado de trabalho local. Estes instrumentos são voltados para a
aquisição de experiências e estágios, servindo de ponte para se alocar em empregos formais. Tais
programas são voltados para homens e mulheres que se encontram em situação de refúgio.

Deveriam estabelecer-se programas que serviriam de "ponte", apoiando os refugiados na


aquisição de formação flexível, por forma a estarem abrangidos pelas necessidades do
mercado de trabalho. Consistiriam em cursos de pré-formação profissional, ensino da
língua direccionado especificamente para o trabalho, orientação em termos do mercado
de trabalho, aconselhamento profissional e desenvolvimento da capacidade de procurar
emprego. Deveriam estar associados a cursos de acesso ao emprego, procurando envolver
na formação "no posto de trabalho" os sectores público e privado do patronato. (ECRE,
2000)

No que concerne especificamente às mulheres, o documento recomenda que os programas


desenvolvidos sejam adaptados às demandas das mulheres refugiadas, de forma a minimizar os
problemas de adaptação à cultura local

Estes deveriam ser flexíveis e procurarem ajudar as mulheres a ultrapassar coacções ou


barreiras culturais, tais como a necessidade de cuidar das crianças, e que as impedem de

8
Disponível em: http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=7391
Acesso em 20/11/2017
186

aproveitar oportunidades de educação e de formação. Os programas deveriam, ainda,


procurar habilitar as mulheres para o desempenho de novos papéis apoiando-as
pessoalmente e à sua família. (ECRE, 2000)

Ainda em relação às mulheres, outro destaque do documento se refere à questão do


incremento à participação das refugiadas nos programas de empregos e da segurança no emprego. O
ECRE ainda recomenda que

(...) os programas que promovem a participação dos refugiados no trabalho sejam


concebidos individualmente, baseando as intervenções num conhecimento profundo da
situação do mercado de trabalho e inserindo-as numa estratégia de
desenvolvimento/regeneração da economia em geral. (ECRE, 2000)

O ECRE recomenda que “as medidas anti-discriminação que constam do Artigo 13º do
Tratado de Amsterdã – que dá à União Europeia poderes importantes para combater a discriminação
baseada na raça ou origem étnica, na religião ou crença, na deficiência, na idade e na orientação
sexual – deveriam ser igualmente aplicáveis aos refugiados, sem distinção entre cidadãos e não-
cidadãos da UE. Segundo o ECRE a integração dos refugiados deve ser um processo
a. dinâmico e recíproco: implica tanto em deveres para as sociedades de acolhimento como
para o indivíduo e/ou comunidades envolvidas. Para o refugiado requer preparo para se
adaptar ao estilo de vida da sociedade de acolhimento, sem perder a sua própria identidade
cultural. Para a sociedade de acolhimento, há a responsabilidade de adaptar as instituições
públicas às mudanças na composição da população, de aceitar os refugiados como parte da
comunidade nacional e de tomar iniciativas que facilitem acesso aos recursos e aos
processos de tomadas de decisão.
b. a longo prazo: em termos psicológicos, estes começam, muitas vezes, no momento de
chegada ao país, destino final, e termina quando um refugiado se torna um membro ativo da
sociedade do ponto de vista jurídico, social, econômico, educacional e cultural. Geralmente,
o processo de integração prolonga-se durante toda a primeira geração de refugiados.
c. multidimensional: relaciona-se às condições existentes, com a participação efetiva em
todos os aspectos da vida econômica, social, cultural, civil e política do país de asilo
duradouro. Implica, também, que os refugiados se sintam aceitos, com sentimento de
pertencimento à sociedade de acolhimento.
Iniciativas como as do ECRE devem ser espelho para os demais organismos que saem em
defesa de pessoas em situação de refúgio. A importância do estabelecimento de parcerias entre
governos, instituições como ACNUR, CARITAS, e institutos de apoio, são fundamentais para
integrarem os refugiados e as comunidades locais que os recebem, a partir da promoção e incentivo
187

à adaptação e às mudanças ambientais, através do diálogo construtivo e cooperação – local e


nacional. Assim, a partir das influências da opinião consultiva 18/03, da Corte Interamericana dos
Direitos Humanos, sobre o direito dos trabalhadores indocumentados, pode-se analisar a situação do
Brasil e o apoio que vem dando aos refugiados.
A antiga Lei que previa direitos e deveres do refugiado é a Lei n. 9.474/1997. Esta lei que
tratava do refúgio, em seu artigo 46, apontava o reassentamento de refugiados de forma planificada
e coordenada pelos órgãos estatais, sendo aberto à participação de entidades não governamentais
sob a forma de cooperação e concedia o reconhecimento gratuitamente e em caráter de urgência o
reconhecimento da condição de refugiados. Dessa forma, a lei brasileira preparou-se para os
pedidos de refúgio, conciliando seus interesses à Convenção de Genebra de 1951 que, em seu art.
17, contempla a concessão “a todos os refugiados que residam regularmente nos seus territórios o
tratamento mais favorável concedido, nas mesmas circunstâncias aos nacionais de um país
estrangeiro, no que diz respeito ao exercício de uma atividade profissional assalariada”.
A nova Lei da Migração que prevê direitos e deveres do refugiado é a Lei 13.445/20179,
publicada em 25 de maio de 2017, entrou em vigor no dia 22 de novembro de 2017. Esta lei, apesar
dos 30 vetos em 21 dos seus artigos, acabou por ampliar as disposições do Estatuto do Estrangeiro,
com uma perspectiva mais abrangente, pelos seguintes princípios e diretrizes exposto no Art. 3º10 da
nova lei:

Repúdio e prevenção à xenofobia, racismo e quaisquer formas de discriminação; Não


criminalização da migração, bem como em razão de critérios ou procedimentos pelos
quais a pessoa foi admitida em território nacional; Promoção de entrada regular e de
regularização documental; Acolhida humanitária; Desenvolvimento econômico, turístico,
social, cultural, esportivo, científico e tecnológico no Brasil; Garantia do direito à reunião
familiar; Igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e a seus familiares;
Inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas; Acesso
igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos,
educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e
seguridade social; Promoção e difusão de direitos, liberdades, garantias e obrigações do
migrante; Diálogo social na formulação, na execução e na avaliação de políticas
migratórias e promoção da participação cidadã do migrante; Fortalecimento da integração
econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, mediante constituição
de espaços de cidadania e de livre circulação de pessoas; Cooperação internacional com
Estados de origem, de trânsito e de destino de movimentos migratórios, a fim de garantir
efetiva proteção aos direitos humanos do migrante; Integração e desenvolvimento das
regiões de fronteira e articulação de políticas públicas regionais capazes de garantir
efetividade aos direitos do residente fronteiriço; Proteção integral e atenção ao superior
interesse da criança e do adolescente migrante; Observância ao disposto em tratado;
Proteção ao brasileiro no exterior; Migração e desenvolvimento humano no local de
origem, como direitos inalienáveis de todas as pessoas; Promoção do reconhecimento
acadêmico e do exercício profissional no Brasil, nos termos da lei; e Repúdio a práticas
de expulsão ou de deportação coletivas.
9
Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13445.htm Acesso em 22/11/2017
10
Ibidem
188

Ainda, com a nova Lei, há a determinação de que

ao imigrante é assegurada a garantia de cumprimento de obrigações legais e contratuais


trabalhistas e de aplicação das normas de proteção ao trabalhador, sem discriminação em
razão da nacionalidade e da condição migratória. Desta forma, a prática das autoridades
brasileiras em negar a concessão de autorizações/vistos de trabalho sob a alegação de
proteção do mercado nacional deverá mudar a partir da vigência da Nova Lei de
Migração11.

Outro ponto de destaque na nova Lei de Migração é que esta, notadamente, revoga o
Estatuto dos Estrangeiros, Lei 6.815/1980, que, até então, definia a situação jurídica do estrangeiro
no Brasil. A nova lei, portanto, entende o migrante como sujeito de direitos, inclusive o direito ao
trabalho no mercado brasileiro.
Diante do exposto, importante indicar, também, que no documento “Trabalhando com
Refugiados”, produzido em parceria com o ACNUR, o Brasil prevê acesso à Carteira de Trabalho e
Previdência Social, dando o direito ao refugiado de trabalhar legalmente e usufruir de todos os
direitos de um cidadão brasileiro, sem nenhum ônus, tanto para o empregador quanto para o
indivíduo em situação de refúgio. Dessa forma, o direito de contribuir e usufruir do sistema de
seguridade social estendeu-se a todos, inclusive aos estrangeiros que aqui residem, permitindo que
eles se integrem à sociedade usufruindo dos direitos sociais, como consta da nossa Carta, relativos à
educação, saúde, alimentação, trabalho, moradia, lazer, segurança, previdência social, proteção à
maternidade e à infância (art. 6º da Constituição Federal). O Ministério Público do Trabalho
também é peça-chave, no Brasil, no sentido de apoiar à causa dos refugiados e acolhê-los,
salvaguardando o princípio da prevalência dos Direitos Humanos; sua importância no fomento à
cidadania mundial inclui, entre outras ações:

a) aparelhamento das repartições consulares brasileiras no exterior, para que passem a


desempenhar mais do que funções meramente notariais, constituindo a verdadeira casa
dos brasileiros; b) diminuir custos dos processos de legalização de documentos; c)
investir em campanhas educativas sobre a diversidade cultural e contra a discriminação e
xenofobia; d) reconhecer a contribuição dos brasileiros que vivem no exterior, como apta
a produzir frutos econômicos e culturais para o país. (LOPES, p. 125, 2016)

Em dezembro de 2015, foi lançada a Portaria, no 1.956, que concede a gratuidade dos atos
relacionados, entre outros, à emissão da carteira de identidade, o que possibilita a celeridade na
confecção da carteira de trabalho, documento necessário para a formalização e garantias de direitos
de qualquer trabalhador. O governo procura se adequar ao aumento de demanda por refúgio a partir
de mudanças e criação de leis, rigor nas fiscalizações e melhorias em seus serviços para que se
11
Disponível em: http://www.felsberg.com.br/lei-no-13-445-de-24-de-maio-de-2017-dispoe-sobre-os-direitos-e-
deveres-do-migrante-e-do-visitante-regula-sua-entrada-e-estado-no-pais-e-estabelece-principios-e-diretrizes-para-
as-politicas/ Acesso em 22/11/2017
189

preserve o trabalho enquanto valor eminentemente global. Para tanto, entre outros fatores, as ações
governamentais devem se direcionar no sentido de coibir iniciativas que visem uma
desterritorialização precarizante das relações de trabalho e, segundo Lopes (2016),

Na mesma esteira, deve ficar ressalvada a aplicação do direito do trabalho às relações


jurídicas de fato envolvendo indocumentados e preservar o trabalho. As regras mínimas
de proteção não são apenas destinadas à tutela das relações jurídicas privadas, mas
também constituem normas de ordem pública, incidentes independentemente da vontade
das partes, porque são necessárias à preservação do tecido social. (p.125)

Apesar do mercado brasileiro estar restrito, opovo estar sofrido com as indecisões políticas e a
economia estar contraída, refletindo-se na diminuição da qualidade de vida, hoje, são mais de
quatorze milhões de desempregados - as portas e fronteiras continuam abertas e nenhum muro foi
construído.

Conclusão
Pretendeu-se mostrar, neste trabalho, os principais obstáculos que este grupamento de pessoas
entendidas como refugiadas enfrenta, enfatizando as preocupações jurídicas. A principal questão
abordada foi como o direito pode dificultar ou mitigar a integração dos refugiados, seja por
intermédio da possibilidade ou impossibilidade de se requerer um emprego formal enquanto o
pretendente espera pela decisão sobre o pedido de asilo/abrigo, na condição de refugiado.
Em primeiro lugar, ao relativizar a categoria trabalho não há como, na atualidade, desvinculá-
lo do conceito de capital, pois como afirma Mészáros12 (1995) o capital é uma relação de exploração
e controle que se dá a partir da exploração do trabalhador, “é absolutamente crucial reconhecer que
o capital é um sistema metabólico, um sistema metabólico sócio-econômico de controle” (Op. Cit.
p. 131).
Sendo assim, não é sem razão que Chesnais13 (1996) aponta a força do neoliberalismo com
uma nova forma de organização do trabalho, desregulamentada ou flexibilizada como a engrenagem
essencial da mundialização, com a articulação complexa entre o econômico e o político para a partir
daí apreendermos a constituição do novo regime mundial de acumulação, denominado
“mundialização do capital”.
Com esta nova lógica que se consubstancia sub-repticiamente, têm-se, portanto, questões a
serem pensadas. (I) Como garantir, apesar do que diz a lei 13.445/2017, trabalho para todos aqueles
que buscam refúgio no Brasil? (II) Não seriam estes explorados, apesar das supostas garantias? (III)
Os que não estão “legalmente” empregados podem ser considerados trabalhadores?

12
ENTREVISTA com Istvan Mészáros. O marxismo hoje. Crítica marxista. São Paulo: Brasiliense, vol.1, nº 2, 1995.
13
CHESNAIS, François. A Mundialização do Capital. São Paulo: Ed. Xamã, 1996.
190

Verifica-se, atualmente, uma onda de intolerância que contamina os múltiplos cenários


políticos, tecnológicos, científicos e culturais fazendo com que todos os avanços da ciência e
tecnologia não sejam capazes de afastar os fantasmas das guerras, das mortes e das perseguições
que vêm assolando as primeiras décadas do século XXI. Desta forma, percebe-se que o mundo se
encontra numa grande crise paradigmática, talvez, sem condições de atender, na prática, as
necessidades dos que procuram refúgio, em especial, aqueles oriundos das zonas de guerra que
chegam, muitas vezes, ao possível país acolhedor desprovidos de tudo, inclusive, de sua própria
identidade.
Portanto, destaca-se que para finalizar este artigo vale a reflexão sobre o que diz Kosik (1989)
quando este aduz que

Na cotidianidade a atividade e o modo de viver se transformam em um instintivo,


subconsciente e inconsciente, irrefletido mecanismo de ação e de vida. As coisas, os
homens, os movimentos, as ações, os objetos circundantes, o mundo, não são intuídos em
sua originalidade e autenticidade, não se examinam nem se manifestam: simplesmente
são; e como um inventário, como partes de um mundo conhecido são aceitos. (pg. 69)

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194

MULHERES MIGRANTES E CRIANÇAS E ADOLESCENTES NÃO ACOMPANHADOS NA


AMÉRICA LATINA E CARIBE: ALGUMAS CIFRAS E REFLEXÕES PARA O DEBATE

Paula da Cunha Duarte* e María del Carmen Villarreal Villamar**

Introdução
Mulheres, crianças e adolescentes não acompanhados têm sido historicamente protagonistas
dos fluxos migratórios. Já nas “Leis das Migrações”, Ravenstein (1885) afirmava, por exemplo, que
as mulheres tendiam a se deslocar mais do que os homens e que as migrações femininas eram
majoritárias nos deslocamentos de curtas distâncias. Por outro lado, a literatura histórica sobre a
migração europeia para as Américas de finais do século XIX e começo do século XX enfatiza a
importância de crianças e adolescentes na consequência de projetos de mobilidade familiar ou
escolhas pessoais. Bianchi (2004, p. 156) frisa, a este respeito, como em 1867 a presença de
milhares de crianças e adolescentes migrantes de origem italiana, acompanhados ou não, se tornou
“um problema público” nos Estados Unidos. Não obstante, a migração internacional é um
fenômeno em constante evolução e crescimento. Assim, em 2015 foram registrados 244 milhões de
migrantes, número recorde na história, mas equivalente ao 3,32% da população mundial 1 (ICMPD,
2017, p. 9).
Uma das características da mobilidade humana contemporânea é a feminização dos fluxos.
Desde 1970, as migrações femininas têm aumentado de forma constante, constituindo hoje uma
porcentagem significativa e, às vezes, majoritária das correntes globais, representando entre 60 e
80% dos fluxos em alguns países, como Indonésia e Filipinas. Atualmente, as mulheres integram
todas as formas de mobilidade humana e predominam nas correntes entre países com iguais e
diferentes níveis de desenvolvimento, especialmente nas direções Sul-Norte e Norte-Norte (OIM,
2013).
Por outro lado, há a migração de crianças e adolescentes não acompanhados, que, segundo a
Convenção sobre os Direitos das Crianças de 1989, são indivíduos menores de 18 anos que
atravessam fronteiras e se encontram separados de ambos os pais ou parentes e não estão sob o
cuidado de nenhum responsável legal. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância
(UNICEF, 2017), no biênio 2015-2016, foram registradas mais de 300 mil crianças migrantes
*
Mestranda em Direito da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Pesquisadora do GRISUL
(UNIRIO). Email: pcduarte12@gmail.com.
**
Pós-doutoranda no PPGSP (UENF). Doutora em Ciência Política (UCM). Pesquisadora do GRISUL (UNIRIO).
Email: mariavillarreal85@gmail.com.
1
Destacamos, a este respeito que, apesar do importante aumento dos deslocamentos, a proporção de pessoas que
permanece nos seus lugares de origem ainda predomina sobre as que decidem migrar ou são obrigadas a deixar seus
territórios natais.
195

desacompanhadas e separadas das suas famílias e, apenas na Europa, 170 mil adolescentes
solicitaram asilo sem a companhia dos pais ou de outros responsáveis legais. O fluxo migratório
deste grupo requer especial atenção, tendo em vista que a ausência de um adulto por elas
responsável coloca-as em situação de extrema vulnerabilidade, tornando-as mais suscetíveis a
sofrerem riscos de abuso e exploração por terceiros, em grave violação a seus direitos humanos.
O deslocamento de mulheres e crianças e adolescentes não acompanhados ganhou destaque a
nível internacional nas últimas décadas, mas apresenta características próprias por região, com
particular ênfase no caso latino-americano e caribenho. A região é origem de 37 milhões de
migrantes internacionais (ICMPD, 2017, p. 9) e três são seus padrões migratórios predominantes: a
imigração ultramar, a emigração para além da região (extrarregional) e os intercâmbios
intrarregionais, sendo estes dois últimos os mais intensos, especialmente a partir do final do século
XX. O estudo destes padrões evidencia como os fluxos migratórios na América Latina e Caribe têm
se alterado de forma progressiva. Dentro deste cenário, desde 1990, a feminização das migrações e
a migração de crianças e adolescentes não acompanhados vêm adquirindo maior protagonismo.
Diante do quadro apresentado, o presente artigo tem como objetivo abordar os principais
padrões migratórios da América Latina e Caribe, com foco nos dois importantes fenômenos
migratórios regionais citados. Com este propósito, o texto está dividido em três partes. Em primeiro
lugar, serão apresentados os principais padrões migratórios observados na região. Em seguida, serão
analisados as especificidades e os reptos da mobilidade das mulheres migrantes e das crianças e
adolescentes não acompanhados. Por fim, serão apresentadas algumas reflexões finais sobre os
principais desafios na construção de políticas públicas que atendam suas especificidades.

As migrações internacionais na América Latina e Caribe, ontem e hoje


No contexto da mobilidade humana internacional, destaca-se o dinamismo dos fluxos
migratórios na América Latina e no Caribe. Assim, se no ano 2000 a quantidade de latino-
americanos e caribenhos residindo em países distintos de seu nascimento era de 26 milhões, em
2010 esta cifra alcançou 28,5 milhões (MARTÍNEZ; CANO; CONTRUCCI, 2014, p. 11) e, mais
recentemente aumentou para 37 milhões de pessoas (ICMPD, 2017, p. 9).
As pesquisas e dados colhidos a respeito destes fluxos na região revelam a existência de três
padrões migratórios, identificados a partir da segunda metade do século XX: a imigração ultramar, a
emigração para além da região (extrarregional) e os intercâmbios intrarregionais.
A imigração ultramar é um padrão que remete à época do colonialismo europeu na região.
Posteriormente, estrangeiros de outros países, como Alemanha, Itália, China e Japão, vieram para as
terras latino-americanas e caribenhas, atraídos, em sua maioria, pelas oportunidades econômicas e
196

de trabalho (MARTÍNEZ; CANO; CONTRUCCI, 2014, p. 21). Não obstante, uma análise
comparativa do total de imigrantes de ultramar e os nascidos na América Latina e Caribe (imigração
intrarregional), revela uma constante diminuição dos primeiros. Em 1970, estes representavam 76%
do total de imigrantes, mas em 2010 esta porcentagem caiu para 37,2%. 2 Apesar dessa progressiva
regressão na quantidade de imigrantes de fora da América Latina e Caribe, no período de 2000 a
2010 este grupo teve uma taxa anual de crescimento de 1,23% por ano. Alguns fatores, tais como a
diminuição da pobreza, melhora nos índices macroeconômicos e a criação de mais oportunidades de
emprego podem explicar parte deste aumento. É possível também justificar o crescimento por
condições presentes nos países da Europa e da América do Norte, como a crise econômica de
algumas nações, o endurecimento das políticas de ingresso e estadia, além do clima anti-imigrante
que neles predomina, o que acaba por tornar os países latino-americanos e caribenhos uma
alternativa atraente para a população migrante (MARTÍNEZ; CANO; CONTRUCCI, 2014, p. 23).
O segundo padrão citado, a emigração extrarregional, refere-se aos indivíduos nascidos na
região da América Latina e Caribe que migram para países localizados em outros continentes, como
América do Norte e Europa. Segundo a Organização para a Cooperação e do Desenvolvimento
Econômico (OECD, 2012), em 2000, os Estados Unidos concentravam 75% da população migrante
proveniente da região latino-americana e caribenha, tornando-o o principal destino migratório
dessas pessoas, enquanto que os demais destinos extrarregionais (incluindo os membros da
organização e demais países) representavam 13%. É inegável que os fluxos migratórios
extrarregionais representam a maior parte dos migrantes latino-americanos e caribenhos, mas os
dados vêm evidenciando uma diminuição progressiva destes fluxos.
Diversos fatores justificam esta redução, tais como a crise econômica dos países do Norte,
que acaba por impactar as oportunidades de trabalho; regras que dificultam o ingresso dos
migrantes aos territórios extrarregionais, e dificuldades de caráter burocrático ou devidas ao
aumento da xenofobia e diversas formas de discriminação, enfrentadas pelos migrantes já
estabelecidos. Se de um lado os fluxos migratórios extrarregionais têm diminuído, observa-se um
aumento nos fluxos migratórios intrarregionais, terceiro padrão migratório presente na região da
América Latina e do Caribe. Com efeito, em 1970 os imigrantes intrarregionais representavam o
24% do total da população de imigrantes, mas em 2010 esta porcentagem aumentou para 63%, o
que corresponde a 3,7 milhões de pessoas (MARTÍNEZ; CANO; CONTRUCCI, 2014, p. 13).
A intensificação da dinâmica deste padrão migratório pode ser explicada por diferentes
fatores, como os altos custos e restrições de emigração para países desenvolvidos, a estabilidade

2
Em apenas dois países os imigrantes ultramar ainda são maioria: Brasil e México, que possuem, respectivamente,
70% e 86% de imigrantes ultramar no total de imigrantes (MARTÍNEZ; CANO; CONTRUCCI, 2014, p. 12).
197

política e a consequente melhora econômica de diversos países latino-americanos e caribenhos com


novas e diversas oportunidades no mercado de trabalho regional. Além disso, os processos de
integração vinculando diferentes países da América, como, por exemplo, a Comunidade Andina de
Nações (CAN) e o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), têm facilitado a circulação e, em
alguns casos, a residência dos cidadãos dos países membros, o que contribuiu para o aumento da
migração intrarregional (VILLARREAL, 2017a). Uma característica marcante neste padrão
migratório é o intenso deslocamento para países fronteiriços, devido à facilidade e aos custos (em
geral) mais baixos que implica este tipo de trânsito. Como resultado, os maiores grupos de
migrantes pertencem sempre a um país vizinho. Mesmo no Brasil, tradicionalmente alheio a esta
regra, dados recentes do SICREMI (2015) evidenciam que, assim como no resto da região, a
imigração intrarregional também está aumentando, proveniente sobre tudo de países como Haiti,
Bolívia e, mais recentemente, Venezuela.
A dinamicidade dos padrões migratórios na América Latina e no Caribe3 suscita importantes
questões acerca de políticas públicas, direito internacional e direitos humanos. É neste contexto que
se inserem os dois fenômenos migratórios aqui abordados, a mobilidade das mulheres migrantes e
das crianças e adolescentes não acompanhados, que serão analisados a seguir.

Mulheres migrantes e crianças e adolescentes não acompanhados em mobilidade na América


Latina e Caribe: especificidades e reptos
A feminização dos fluxos migratórios e a mobilidade de crianças e adolescentes não
acompanhados entre fronteiras internacionais constituem dois relevantes fenômenos, apresentando
diversas peculiaridades e desafios. Em relação à presença de mulheres nos fluxos migratórios,
estudos sensíveis às variáveis de gênero (HERRERA; MARTÍNEZ, 2002; BOYD; GRIECO, 2003;
ASSIS, 2007; HERRERA, 2017) têm demostrado o caráter, em grande medida, incompleto das
teorias migratórias, pois privilegiam um enfoque universalista e masculino, invisibilizando ou não
considerando devidamente as desigualdades de gênero; as motivações que estão por trás das
decisões migratórias das mulheres; os papéis sociais que as mesmas ocupam como mães, esposas ou
filhas; as representações sociais de gênero existentes em relação ao fenômeno 4 ou as contribuições
socioeconômicas que as mulheres realizam nos seus países de origem. Neste sentido, por exemplo,

3
Além dos três padrões migratórios analisados, Martínez, Cano e Contrucci (2014) identificam uma quarta dinâmica
migratória, que, em geral, não é considerada um padrão, mas sempre coexistiu com os demais: a migração de
retorno. Na região, os dados dos censos de 2010 demonstram um aumento no retorno de migrantes (voluntário e
forçado) em relação às décadas anteriores, mas esta é uma dinâmica migratória ainda recente e menos significativa
em relação aos padrões anteriormente descritos.
4
As representações sociais baseadas no gênero, geralmente têm um caráter positivo apenas no caso dos homens. A
migração das mulheres, de fato, é vista, muitas vezes, como um fator de desestabilização da ordem social que gera
abandono familiar, por um lado, e a renúncia ao exercício das funções tradicionais de gênero, por outro (Herrera;
Martínez, 2002; Herrera, 2017).
198

no que diz respeito aos vínculos entre migrações e desenvolvimento (VILLARREAL, 2017b), a
evidência empírica mostra que, em termos absolutos, mesmo que as remessas enviadas por
migrantes do sexo masculino sejam maiores, em termos relativos as mulheres migrantes enviam
para seus lares uma proporção maior de recursos (UNFPA, 2006, p. 29-30). Além disso, apesar de
as mesmas trabalharem em empregos precários e mal pagos, o investimento de seus recursos tende a
ser mais direcionado para formação, tratamentos médicos e gastos cotidianos familiares, ao invés de
artigos de consumo ou gastos supérfluos. Não obstante, é preciso destacar também que as imagens
idealizadas sobre as mulheres e o uso das remessas, podem reforçar estereótipos de gênero, lhes
atribuindo funções que muitas vezes não podem ou não querem assumir (OROZCO;
PAIEWONSKY; GARCÍA, 2008).
No contexto de feminização global dos fluxos, as mudanças registradas a partir das últimas
décadas não têm sido apenas quantitativas, mas também qualitativas (UNFPA, 2006; ASSIS, 2007;
OROZCO, 2010; OIM, 2013; HERRERA, 2017). Com efeito, as mulheres emigram cada vez mais
de forma autônoma e não apenas como acompanhantes dos seus familiares ou companheiros. Por
outro lado, muitas vezes, são elas que começam os processos migratórios e se tornam as
responsáveis pela manutenção do lar. Isto tem gerado um crescente interesse pelo fenômeno por
parte de pesquisadores, agências internacionais e formuladores de políticas públicas.
Da mesma forma que outros fluxos migratórios, as migrações femininas são resultado das
desigualdades econômicas, da globalização econômica e das profundas transformações do mercado
de trabalho. Contudo, estes movimentos respondem também a um duplo processo: o fracasso das
estratégias de desenvolvimento nos países do Sul do mundo e a feminização da pobreza e a
demanda de mão de obra feminina em certos setores das economias, especialmente dos países
desenvolvidos (UNFPA, 2006; OROZCO, 2010). No Sul do mundo, as estratégias promovidas pelo
neoliberalismo e o aumento do desemprego têm permitido o aumento do subemprego entre os
diversos setores da sociedade e têm gerado um crescimento elevado da pobreza que tem afetado de
forma especial as mulheres (OROZCO; PAIEWONSKY; GARCÍA, 2008). A feminização da
pobreza tem estimulado um número crescente de mulheres a cruzar as fronteiras com o objetivo de
obter uma vida melhor. Contudo, a migração laboral feminina é fruto da reprodução e exploração
das desigualdades de gênero por parte do capitalismo global (OROZCO; PAIEWONSKY;
GARCÍA, 2008). Em consequência, as funções que as mulheres desempenham nas sociedades
receptoras, especialmente nos circuitos Sul-Norte e Sul-Sul 5, se concentram no setor dos serviços e

5
Segundo Herrera (2017), entre ambos circuitos existem, contudo, importantes diferenças que determinam que,
apesar das dificuldades, as mulheres consigam, muitas vezes, uma melhor inserção laboral no eixo Sul-Sul. Por
outro lado, no que diz respeito às migrações nos circuitos Norte-Norte e Norte-Sul, é possível observar melhores
porcentagens de inserção em trabalhos que demandam maiores níveis de qualificação (OIM, 2013).
199

no subsetor dos cuidados e refletem uma divisão hierárquica do trabalho em que a variável gênero
se entrecruza com outros fatores como a etnia, a nacionalidade e a classe, reforçando as
desigualdades (ASSIS, 2007; OROZCO, 2010; HERRERA, 2017).
Como resultado do aumento das migrações femininas e dos empregos que elas
majoritariamente ocupam, o trabalho produtivo tem se internacionalizado gerando a conformação
das “cadeias globais de cuidado”: um sistema em que as mulheres imigrantes atendem as
necessidades de cuidado dos contextos de recepção, ao passo que mantém vínculos com os
ambientes de origem, onde se verifica uma recomposição dos lares e uma redistribuição das tarefas
nas quais, com frequência, são outras mulheres as que se encarregam do que, com base no sistema
desigual predominante, seriam suas “funções” (OROZCO, 2010, p. 4). Contudo, sem tirar o
protagonismo das causas econômicas, para compreender as migrações femininas é preciso
considerar outros fatores que as estimulam, como as relações desiguais entre gêneros existentes nas
sociedades de origem, o desejo de procurar uma vida melhor, a vontade de ter uma maior autonomia
vital e sexual ou a necessidade de fugir de situações de violência de gênero (BOYD; GRIECO,
2003; ASSIS, 2007; HERRERA, 2017).
Finalmente, é fundamental considerar também o papel que desempenha o crime organizado
em todo o processo, mediante o tráfico e o contrabando de mulheres e crianças com fins de
exploração sexual e laboral. A este respeito, é importante frisar que, segundo a UNODC (2016),
mais de 70% das vítimas de tráfico de pessoas são mulheres e meninas 6. Assim, mesmo que a
migração possa ser fonte de maior empoderamento para as mulheres, através, por exemplo, da
superação dos tradicionais papeis de gênero ou de uma maior autonomia financeira, os resultados
reais deste processo dependem das políticas e práticas de acolhimento, inserção e integração dos
contextos de origem e recepção.
No caso específico da América Latina e Caribe as mulheres constituem 51,6% dos migrantes
internacionais, com particular destaque nos casos das sub-regiões da América do Sul e América
Central (ver gráfico 1). Cabe destacar que, em todas as áreas, as mulheres têm deixado de ser
apenas parte de processos de reunificação familiar, protagonizando fluxos autônomos e motivados
por razões econômicas, sociais, políticas e culturais e condicionados, no caso das migrações
laborais, pelas mudanças das condições da demanda e oferta de emprego.

6
Segundo o relatório, 51% das vítimas são mulheres, 21% homens, 20% meninas e 8% meninos (UNODC, 2016, p.
7).
200

Gráfico 1. Mulheres migrantes na América Latina e Caribe

Fonte: Dados do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais. Divisão da População das Nações Unidas (OIT,
2016, p. 68).
Em termos de inserção, as mulheres atuam, principalmente, em tarefas pouco qualificadas, no
setor de cuidados e serviços. Assim, as mulheres migrantes que trabalham no serviço doméstico
representam uma importante porcentagem (35,5%) das trabalhadoras migrantes da América Latina e
do Caribe (OIT, 2016, p. 68), além de fazerem parte dos amplos contingentes de pessoas em
condição irregular e inseridas no mercado informal da região, onde as estatísticas ainda são
escassas. Nestas condições, elas não estão protegidas pelas leis de trabalho nacionais e não podem
se filiar a sindicatos, estando, portanto, sujeitas a trabalhar em condições precárias e inseguras, com
baixos salários e altas restrições à serviços públicos, como a moradia e a saúde, além de sofrer com
xenofobia e discriminação. Paralelamente, existe também um número crescente de mulheres com
maiores níveis de formação que atuam no mercado formal em setores de média e alta qualificação
como técnicas, administrativas e profissionais liberais, mas as cifras e os desafios que esta tipologia
de migrações supõe requerem ainda um maior aprofundamento (SICREMI, 2015; OIT, 2016).
Além da migração de mulheres, outro grupo que merece atenção é o das crianças e
adolescentes migrantes não acompanhados7, definidos como indivíduos menores de 18 anos que

7
Além das crianças e adolescentes migrantes não acompanhados, existem outras três categorias de crianças e
adolescentes no processo migratório, conforme a Organização Internacional para as Migrações (OIM) e o Instituto
de Políticas Públicas e Direitos Humanos (IPPDH) do MERCOSUL (2017): (i) crianças e adolescentes que migram
internacionalmente com um ou ambos os pais; (ii) crianças e adolescentes que permanecem no local de origem
quando ou ambos os pais migram; (iii) crianças e adolescentes migrantes autônomos ou independentes. Este último
grupo se diferencia daquele analisado no presente artigo (crianças e adolescentes migrantes não acompanhados)
pelo fato de migrarem voluntariamente, motivados por oportunidades de trabalho e, constantemente, com a
autorização e apoio de seus pais. O translado destes indivíduos não seria marcado por abusos ou exploração de
terceiros como no caso daqueles categorizados como “não acompanhados”. Apesar disso, eles podem acabar por
vivenciar tais situações no país de destino.
201

atravessam fronteiras e se encontram separados de ambos os pais ou parentes e não estão sob o
cuidado de nenhum responsável legal, conforme a Convenção sobre o Direito das Crianças de 1989.
A nível internacional, se estima que 33 milhões de migrantes internacionais têm menos de 20 anos,
mas existem importantes diferenças regionais no perfil deste coletivo. Assim, a proporção de jovens
entre 15 e 19 anos representa 39% na Europa, 34% na América do Norte e 32% em África e
Oceania. Por outro lado, as crianças e adolescentes, com idade entre 10 e 14 anos, representam mais
de 26% da migração deste grupo na Ásia, enquanto que na América Latina é especialmente
significativa a proporção de crianças entre 5 e 9 anos de idade, que equivale a 27% dos migrantes
com menos de 20 anos (ABRAMOVICH; CERIANI; MORLACHETTI, 2011, p. 5). No entanto,
esta quantidade não revela a real dimensão do problema, tendo em vista que diversas crianças e
adolescentes sequer chegam a ser registradas nas fronteiras, pois, muitas vezes, entram de forma
irregular no país.
Neste contexto de migração de crianças e adolescentes não acompanhados, chama a atenção a
força que este fenômeno vem ganhando na América Latina e no Caribe. Apesar de os dados
existentes sobre o fluxo migratório deste grupo serem parciais ou desagregados, é possível afirmar
que seguem os padrões gerais de migração das pessoas adultas (OIM, IPPDH, 2013).
O fenômeno se verifica na América Latina e no Caribe como um todo, mas é particularmente
grave em relação a quatro países: El Salvador, Guatemala, Honduras (países que conformam o
Triângulo Norte da América Central) e México. Segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas
para Refugiados (UNHCR, 2014, p. 5), a quantidade de crianças e adolescentes não acompanhados
provenientes destes países que migraram para os Estados Unidos cresceu de 17.059 em 2011 para
40.291 em 2013, o que representa um aumento de 136%. Esses quatro países causam forte
deslocamento de crianças e adolescentes não acompanhados em razão, principalmente, de dois
fatores: violência decorrente do crime organizado e violência em suas casas.
Em termos de migração extrarregional, o principal destino são os Estados Unidos. No entanto,
a migração intrarregional destas crianças e adolescentes não acompanhados também tem sofrido
aumento, em especial a migração transfronteiriça, que ocorre entre países limítrofes. A título de
exemplo, segundo a Organização Internacional para as Migrações (OIM, 2013), observam-se os
seguintes padrões migratórios: El Salvador recebe migrantes de Honduras e Nicarágua; Guatemala
recebe de El Salvador, Honduras e Nicarágua; Honduras recebe de Nicarágua; Panamá recebe da
Costa Rica; México recebe da Guatemala, El Salvador e Honduras. O México é um país que se
destaca como país de origem, destino e trânsito. Segundo dados do Instituto Nacional de Migração
do Governo do México, em 2014, foram repatriados pelos Estados Unidos 13.552 crianças e
adolescentes não acompanhados. Em 2015, este número diminuiu para 9.892, mas voltou a
202

aumentar em 2016, atingindo a quantidade de 10.529. As estatísticas revelam ainda que em 2016,
apresentaram-se perante as autoridades mexicanas 17.889 crianças e adolescentes migrantes não
acompanhados (INM, 2016). Deste total, 98% eram provenientes da Guatemala (8.764), Honduras
(4.533) e El Salvador (4.253).
Ainda que não se compare com a situação nos países da América Central, também merece
destaque a ocorrência deste fenômeno na América do Sul e no Caribe. Na região, determinados
países têm demonstrado preocupação com tema, o que pode ser evidenciado, em âmbito regional,
pelas declarações adotadas, como a Conferência Sul-americana de Migração, a UNASUL e o Foro
Ibero-americano de Migrações e Desenvolvimento. No âmbito doméstico, observam-se medidas
legislativas que abordam o tema, como as leis migratórias da Argentina, Bolívia e Uruguai
(CERIANI; GARCÍA; SALAS, 2014). Além disso, aponta-se a entrada em vigor da nova lei
migratória do Brasil e sua regulamentação, que substituiram o Estatuto do Estrangeiro de 1980.
Os motivos que justificam estes movimentos migratórios são a violência decorrente do crime
organizado e de conflitos armados, a busca de oportunidades profissionais e acadêmicas, os abusos
e violência dentro de seus lares, a pobreza, e as estratégias de reunificação familiar (MARTÍNEZ;
RIVERA, 2016, p. 32), assim como as consequências das mudanças climáticas e desastres naturais
(UNICEF, 2017).
Além das causas que provocam a migração deste grupo, é importante ressaltar as dificuldades
legais e institucionais que enfrentam nos países de destino, apontadas pelo Comitê de Direitos da
Criança (2012) e sumarizadas em um recente estudo internacional: criminalização da migração
irregular; carência no enfoque de direitos humanos na cooperação internacional; não levar em conta
o interesse superior das crianças e adolescentes em situação de migração; restrições ao direito de
viver em família e políticas restritivas de reunificação familiar; ausência do devido processo em
procedimentos migratórios; repatriação de crianças e adolescentes migrantes sem levar em
consideração seus interesses; exclusão da população migrante dos sistemas de proteção de direitos
das crianças e adolescentes; negativa de acesso aos direitos econômicos, sociais e culturais e aos
serviços básicos; ausência de registros de nascimento e situações de apatridia; ausência de
oportunidades para regularizar a situação migratória; ausência de sensibilização e capacitação por
parte das autoridades feito pela (OIM; UNICEF; OIT, 2013, p. 50).
Considerando a vulnerabilidade deste grupo, tanto os países da América Latina e do Caribe,
quanto a sociedade internacional devem elaborar, promover e instituir arranjos legais e
institucionais aptos a garantir o acolhimento e proteção adequados para resguardar os direitos destas
crianças e adolescentes.
203

Reflexões finais
A migração de mulheres e o deslocamento de crianças e adolescentes não acompanhados
constitui uma constante na história das migrações e, em diversos períodos e contextos, ambos os
fenômenos têm sido definidos como “preocupações” ou “problemas” públicos. Os fluxos
contemporâneos não constituem uma exceção a esta regra, mas o que muda na atualidade são as
características, o alcance e as modalidades que estes fenômenos assumem.
O deslocamento de ambos os coletivos ganha destaque desde finais do século XX e, no caso
das crianças e adolescentes não acompanhados, desde o começo dos anos 2000. Na América Latina
e no Caribe ambos os fenômenos são resultado de fatores internos e externos que estimulam estes
deslocamentos, mas também dificultam muitas vezes que os mesmos se verifiquem em condições
seguras e com garantias para seus protagonistas. Neste sentido, alguns dos principais desafios em
relação a estes coletivos são a visibilização da sua importância, mediante a produção de dados e
estudos que expressem suas reais dimensões e identifiquem as particularidades que ambos assumem
nas diversas sub-regiões e países.
Paralelamente, é fundamental a criação de leis, políticas e medidas que considerem suas
especificidades (em termos de idade, etnia, gênero, origem social, etc.) e vulnerabilidades em
relação aos abusos e formas de exploração, mas também às oportunidades que os mesmos oferecem
para os países de origem e acolhida. Assim, são necessárias, por exemplo, políticas migratórias e
políticas públicas integrais, baseadas em um enfoque de direitos humanos e de gênero que garantam
a proteção, o acolhimento e a integração destes coletivos, bem como promovam seus direitos e
autonomia. Um elemento central neste processo é o fim da criminalização das migrações e a criação
de mecanismos de regularização migratória que assegurem o acesso aos direitos econômicos,
sociais e culturais destes grupos.
Na América Latina e no Caribe é preciso também da construção de políticas que reconheçam
as diversas formas de deslocamento e a diversidade de perfis dentro das categorias mulheres e
crianças e adolescentes migrantes não acompanhados. Apesar da relevância do fenômeno na região,
nem todos os membros destes coletivos são vítimas de tráfico ou contrabando de pessoas e muitos
optam pela migração como uma escolha autônoma que precisa ser devidamente considerada, ao
passo que a luta contra o tráfico ou contrabando de pessoas não pode se tornar uma desculpa para
criminalizar ulteriormente sua mobilidade. Em consequência, mais do que o aumento da vigilância,
do controle e da criminalização dos deslocamentos, é necessária a criação de políticas e medidas
que abordem as verdadeiras causas das migrações e identifiquem fatores de risco e vulnerabilidade
lutando, por exemplo, contra a pobreza, a violência ou as dificuldades de reunificação familiar que
204

estimulam os fluxos de mulheres e crianças e adolescentes não acompanhados, garantindo, assim,


uma migração segura e baseada em um enfoque de direitos humanos.

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Parte 5

Migrações forçadas e direitos humanos


208

ENTRE A SEGURANÇA E O HUMANITARISMO: A PROBLEMÁTICA EM TORNO DO


FLUXO DE HAITIANOS NO BRASIL

Ana Luiza Bravo e Paiva* e Ana Paula Moreira Rodriguez Leite **

Introdução
No plano jurídico, a preocupação com os refugiados irrompeu logo após o fim da Primeira
Guerra Mundial, no seio da Liga das Nações, como resultado dos problemas originados pelo
deslocamento de pessoas que fugiam de suas fronteiras nacionais em função do avanço dos
exércitos inimigos. O atual regime de refugiados fora criado, em 1951, junto com o Alto
Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) – agência das Nações Unidas
responsável pela proteção de refugiados. Desde então, diferentemente da postura adotada no
período entre guerras, o Brasil tem tido uma participação ativa nas questões atinentes aos
refugiados.
A partir da década de 1990, na contramão dos países desenvolvidos, com a instituição da lei
9.474/97, se verifica um interesse crescente por parte do governo brasileiro em ampliar a concessão
de refúgio, especialmente na região América Latina. Nesta ocasião, fora incorporado ao marco
jurídico doméstico todos os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil ao longo do século
XX. No plano do discurso, junto ao ACNUR, com vistas a dirimir possíveis tensões na América do
Sul, o país tem se comprometido a oferecer uma maior atenção aos refugiados colombianos que se
encontram atualmente em território equatoriano.
Não obstante, a despeito das novas iniciativas do governo brasileiro pró-refugiados, o número
destes continua sendo reduzido. Atualmente, de acordo com dados de 2016, do ACNUR, longe de
figurar um contingente expressivo, o Brasil abriga 8.863 refugiados reconhecidos, de 79
nacionalidades. Os maiores solicitantes de refúgio são os haitianos, senegaleses, sírios, bengaleses e
nigerianos. Entretanto, a configuração é dispare em relação à concessão de refúgio na qual os sírios,
angolanos, colombianos, congoleses e libaneses lideram as nacionalidades contempladas. No caso
dos haitianos, começamos a evidenciar o posicionamento do governo brasileiro em relação ao
estatuto jurídico destinado a eles.
A partir de 2011, as autoridades brasileiras têm sinalizado uma grande preocupação com as
ameaças apresentadas pelo contingente de haitianos que, desde então, chegam às fronteiras
brasileiras para solicitar asilo. O aumento desse fluxo migratório está relacionado com a nova
realidade econômica e a presença das forças militares brasileiras no Haiti – que passou a atrair
*
Doutora em História Comparada PPGHC/UFRJ. Faculdade UnYleYa. E-mail: albepaiva@gmail.com.
**
Doutora em História Comparada PPGHC/UFRJ Escola de Guerra Naval. E-mail: a.paulamrl@gmail.com
209

migrantes do mundo inteiro – e com o agravamento das condições de vida no Haiti depois do
terremoto de 2010.
Até janeiro de 2012, as autoridades haviam ordenado o fechamento das fronteiras para os
haitianos que tentavam ingressar no território brasileiro através do Peru, já que o governo
paradoxalmente, se baseou na definição da Convenção de 1951, desconsiderando o aparato jurídico
doméstico supracitado e optou por reconhecê-los como migrantes econômicos e não como
refugiados. Em 2014, o governo do Acre, solicitou ao Ministério da Justiça o fechamento
temporário da fronteira com o Peru sob a alegação de superlotação do espaço destinado a abrigar os
haitianos e risco iminente de incêndio. No entanto, o posicionamento do ministério foi contrário.
Para além do discurso da precariedade das instalações, soma-se os discursos que consideram
refugiados e imigrantes como ameaças, seja ao convívio social, seja no mercado de trabalho. Nesses
casos, a medida do fechamento de fronteiras parece a melhor solução quando não se pretende levar
em consideração o refugiado como ser humano livre no seu direito de deslocamento.
A lógica do controle fronteiriço e sua securitização estão voltados para a eliminação das
ameaças. Estas não podem ser excluídas do contexto, entretanto, notamos algo a mais nos discursos
alarmistas, os quais justificam medidas restritivas e, muitas vezes, desumanas. Não existem
políticas eficazes que atuem na gestão das fronteiras, pois não estão voltadas à atuação global, mas
sim um controle que considera o refugiado como ameaça à segurança.
Tal atitude afastaria o Brasil da adoção das medidas globais efetivas, voltando-se a resguardar
os próprios interesses em um ambiente institucional conflituoso que se equilibra entre os interesses
federais e federativos. Ficou claro o interesse, portanto, da manutenção do projeto humanitário que,
mesmo diante do pedido de um estado, buscou advogar em causa do refúgio não autorizando o
fechamento da fronteira.
Do outro lado, ativistas e intelectuais argumentam que a legislação brasileira abriria margem
para enquadrá-los como refugiados, uma vez que prevê a concessão de asilo para indivíduos que
estejam sofrendo em seus países violação dos direitos humanos. Há, nesse sentido, um embate entre
os interesses nacionais relacionados à prática de asilo e aqueles relacionados à defesa do território
nacional. O comportamento do Estado brasileiro tem se mostrado dúbio quando se trata de conceder
refúgio: de um lado, é possível ver que o Brasil reconhece os benefícios oriundos da prática do
humanitarismo e do respeito ao direito internacional, mas por outro, também é possível perceber
que existe a crença de que tais ações poderiam incorrer na vulnerabilidade da segurança nacional.
210

A legislação e o sistema de refugiados brasileiro


O atual regime de refugiados amparado pelas Nações Unidas tem o objetivo de garantir a
proteção da pessoa humana em âmbito internacional. Com vistas a tornar possível tal intento, por
meio do lançamento da Convenção relativa ao estatuto dos refugiados de 1951 e do Protocolo
relativo ao estatuto dos Refugiados de 1967, foram estabelecidas as bases da proteção indivíduos
que se encontrem situação de vulnerabilidade. A instituição de tais dispositivos legais, dessa
maneira, visa à garantia dos direitos fundamentais àqueles que não possam gozar da proteção dos
seus Estados de origem e/ou de residência, tornando-se, assim, alvos das violações das liberdades e
direitos individuais, uma vez que a consolidação destes só poderá alcançada dentro da esfera estatal.
Assim sendo, assevera-se que com a aplicação do instituto do refúgio acarretaria na
“transferência da responsabilidade de proteção do indivíduo de um Estado para a comunidade
internacional, por meio de um de seus membros”. Isto ocorre, porque a ONU, conquanto possua um
órgão específico para o tratamento desta questão, não dispõe de um território que lhe seja próprio,
no qual a proteção possa ser gozada. Por esta razão, destaca-se a importância do engajamento dos
Estados em relação às questões atinentes aos refugiados.
Seguindo tal premissa, pode-se afirmar que instituição do direito dos refugiados deve ser
entendida como uma vertente do direito humanitário. A atual legislação que define as bases para a
concessão do refúgio no país foi fruto do Programa Nacional de Direitos Humanos de 1996, a partir
de, então, a problemática atinente ao refúgio é tratada no Brasil como uma vertente da política de
direitos humanos.
A adesão aos princípios estabelecidos pela comunidade internacional pode ser feita por duas
vias, pela ratificação dos Tratados internacionais ou pela instituição de uma legislação própria. O
Brasil optou pela incorporação instituto do refúgio tanto pela ratificação da Convenção de 1951 e
do Protocolo de 1967, quanto pela adoção de uma legislação específica: a Lei 9.474/97. A
instituição deste aparato legal definiu o conceito de refugiado adotado pelo Estado brasileiro – que
fora inspirado na Convenção de 1951, assim como, em outros instrumentos regionais de proteção ao
refugiado: a Convenção relativa aos Aspectos dos Refugiados Africanos, da Organização da
Unidade Africana, de 1969 e a Declaração de Cartagena, da Organização dos Estados Americanos
de 1984. Dessa maneira, a legislação brasileira estendeu a definição de refugiado da ONU,
passando a considerar também como refugiado aqueles indivíduos que estejam sendo perseguidos
em função de uma grave e generalizada violação dos direitos humanos em sua terra natal.
Além disso, a lei 9.474/97 se ocupa do estabelecimento dos procedimentos para a concessão
do refúgio. De acordo com a legislação brasileira, a solicitação da condição de refugiado pode ser
feita por duas vias: por meio de programas de reassentamento ou de forma voluntária. No primeiro
211

caso, o reconhecimento da condição de refugiado será dado a grupo e será feita por meio de acordos
entre o Estado e o ACNUR. Na segunda opção, o pedido de asilo é solicitado diretamente pelo
indivíduo que se encontra em situação de risco. Sendo assim, nesta situação o solicitante deve se
reportar às autoridades responsáveis. Os organismos envolvidos no processo de refúgio são: o
ACNUR, o Comitê Nacional para Refugiados (CONARE), o Departamento de Polícia Federal e a
Cáritas Arquidiocesana1.
Ao chegar ao território brasileiro, o estrangeiro que desejar o reconhecimento do refúgio
deverá expressar sua vontade a qualquer autoridade migratória que se localizar na fronteira. A partir
de tal manifestação, serão iniciados os procedimentos formais para a concessão do asilo. Supõe-se
que o primeiro contato estabelecido entre o solicitante e o governo brasileiro deveria ser
estabelecido por meio da Polícia Federal. Contudo, em função do medo de se dirigir a polícia ou por
desconhecer o procedimento, comumente estes indivíduos procuram antes os centros de acolhidas
da Caritas Arquidiocesana. Encaminhado a Polícia Federal, o solicitante de refúgio deverá assinar
um termo contendo as razões do pedido e as circunstâncias da entrada no Brasil, além de dados
pessoais básicos. No ato da solicitação, o estrangeiro receberá um protocolo provisório que
permitirá a emissão dos documentos de identificação brasileiros. Até que o pedido seja julgado, fica
vedada a deportação deste indivíduo.
A próxima etapa do processo fica a cargo do CONARE, órgão composto por representantes
dos ministérios da Justiça, Relações Exteriores, do Trabalho, Saúde, Educação e Esporte que tem
como principal atribuição a deliberação sobre a concessão do refúgio e a formulação das políticas
públicas para refugiados. Após o preenchimento do termo de solicitação de refúgio, o estrangeiro
será submetido a uma série de entrevistas com os membros do CONARE. Durante as entrevistas e
as reuniões deliberativas, o ACNUR e a Cáritas Arquidiocesana terão direito de se manifestarem em
favor do solicitante, no entanto, a decisão final caberá ao comitê.
Caso seja decidido em favor do reconhecimento da condição de refugiado, este indivíduo
poderá gozar da proteção do governo brasileiro. No entanto, na hipótese do pedido ser indeferido o
solicitante poderá entrar com um recurso que será avaliado, em última instância, pelo Ministro da
Justiça. Se o parecer negativo for mantido, o requerente estará sujeito à legislação de estrangeiro e
deverá deixar o território brasileiro se estiver em condição irregular.
Pelas razões acima expostas, é comum atribuir à legislação brasileira um caráter progressista.
De fato, a análise pura e simples da lei leva-nos a crer que o governo brasileiro estivesse pensando
em construir um aparato jurídico com vistas a promover os direitos humanos. Contudo, quando a
1
A Cáritas Arquidiocesana é uma organização não governamental ligada à Igreja Católica e que atua em inúmeros
projetos sociais, entre os quais a acolhida aos refugiados no Brasil. Atualmente é responsável pela acolhida dos
refugiados, baseada em um acordo estabelecido com o ACNUR.
212

contrapomos à realidade empírica, tal pressuposto se torna insustentável. Ainda que os discursos
governamentais estejam fundamentados em elementos de ordem humanitária, não se pode
desconsiderar que as ações em prol da proteção dos refugiados também são orientadas pelo
interesse político. Essas duas esferas estaria, portanto, entrelaçadas. No campo dos refugiados, esse
entrelaçamento, de acordo com Hyndman (2000) é justificado pelo fato dos países terem que lidar
com os deslocamentos humanos que, muitas vezes, são motivados por questões políticas, ao mesmo
tempo em que possuem obrigações morais. Toda política de refugiados é, nesse sentido, o resultado
do esquadrinhamento dos interesses estatais e da necessidade de proteção de seres humanos.
Com base no acima exposto, verifica-se que a recepção refugiados, se insere em uma lógica
dupla, uma vez que combina elementos de política doméstica e política externa. No âmbito da
soberania estatal, a formulação da política de refugiados deve levar em conta uma constelação de
fatores externos e internos, como aspectos de segurança, capacidade socioeconômica de absorção,
tradição humanitária e respeito aos regimes internacionais (WEINER, 1990; MOREIRA, 2010).
Tendo em vista a complexidade dos fatores interferem no desenvolvimento de uma política para os
refugiados, não se pode crer que a ação dos governos seja orientada somente pelos princípios
humanitaristas. Nas últimas duas décadas, os Estados passaram a se preocupar demasiadamente
com a manutenção da segurança societal, securitizando, assim, as migrações internacionais. Por
esse motivo, antes de prosseguir para a análise do estudo de caso, faz-se necessária a apresentação
do quadro teórico que justifica este novo comportamento estatal.

Por que os países não desejam receber os refugiados? Um breve panorama teórico do
processo de securitização da migração
As questões relativas aos deslocamentos humanos, não importa se sejam econômicos ou
forçados, como é o caso dos refugiados – tem pautado as agendas políticas dos governos e das
organizações internacionais. De maneira geral, sobretudo no pós 11 de setembro, os países
passaram a apreender migração internacional como questão de segurança e vem adotando,
paulatinamente, medidas restritivas aos migrantes indesejados. No âmbito acadêmico, o movimento
não poderia ser diferente. Nas últimas duas décadas, observou-se a proliferação de estudos e debates
acalorados sobre a securitização da imigração. Estes tomaram por base as redefinições do conceito
de segurança no pós Guerra Fria e passaram a alertar para o surgimento de novas ameaças à
segurança estatal e/ou internacional: o terrorismo, o crime transnacional, o narcotráfico e as
migrações internacionais.
213

Dentre as correntes com maior destaque nos debates sobre a securitização da migração,
sugere-se a Escola de Copenhague2. No contexto pós-Guerra Fria, seus principais representantes
propuseram uma revisão do conceito de segurança. Desde então, embora seja uma definição
demasiadamente vaga, para estes autores, a segurança é entendida grosso modo como “o processo
político e intelectual de identificação de um objeto como ameaça, concluindo, assim, que o assunto
deve passar a constar no domínio (e na agenda) da segurança” (BRANCANTE; REIS, 2009, p. 77).
Neste caso, a securitização da migração é justificada com base na necessidade da manutenção das
características essenciais da comunidade e, nesse sentido, a entrada de um grande número de
migrantes poderia desestabilizar essa comunidade em termos culturais, econômicos, políticos e
sociais.
A securitização da imigração, a partir da ótica da escola de Copenhague, extrapola as
dimensões das temáticas de defesa nacional e é discutida em termos de segurança societal. Para os
autores desta corrente, a segurança societal ou identitária refere-se à manutenção das características
tradicionais de determinada comunidade, a saber, língua, costumes religiosos, cultura e identidade
(BUZAN et al., 1993). De forma geral, na visão desses teóricos em alguns casos o elevado índice de
estrangeiros poderia comprometer a segurança identitária de determinados países. Diante desta
suposta ameaças, os epígonos desta corrente argumentam que, em situações excepcionais, caberia
aos policymakers adotar medidas defensivas como forma de salvaguardar a composição essencial de
sua comunidade.
Seguindo esta perspectiva, diante da variedade de ameaças, os Estados deveriam estar
conscientes dos riscos reais que os migrantes poderiam representar. Nos casos em que os fluxos
populacionais envolvam riscos, as decisões sobre tais questões devem estar sob a responsabilidade
dos mais altos níveis do governo, nos Ministérios de Defesa e Relações Exteriores, nas agências de
segurança e inteligência. Por essa razão, é destacada a necessidade de construção de políticas
públicas que visem amenizar os efeitos ou até mesmo restringir a migração. Nesta lógica, há,
portanto, a politização e, em última instância, a securitização da temática imigração.
Não obstante, por reconhecer a fragilidade dos argumentos utilizados pela Escola de
Copenhague, alguns autores, como Didier Bigo (1998) e Adamson (2006) se posicionam
contrariamente à securitização da imigração. Estes, por seu turno, sinalizam para a ausência
critérios objetivos – na proposta daquela corrente – que auxiliem na definição dos limites da ameaça
e do perigo apresentado aos Estados pelos fluxos migratórios, e, por isso, a atmosfera vivida
atualmente é de medo e ansiedade que pode levar os governos a tomarem decisões precipitadas,
2
Para este estudo, utilizamos como base os trabalhos dos fundadores da Escola de Copenhague: Barry Buzan e Ole
Waever.
214

levando, inclusive, a situações extremas de violação aos Tratados Internacionais e aos direitos
humanos, podendo engendrar, dessa forma, problemas de ordem diplomática.
A solução para os problemas decorrentes do alto volume de fluxos migratórios, de acordo
com os críticos da Escola de Copenhague, deveria ser encontrada no longo prazo e não deve se
basear na lógica maniqueísta (nacionais vs. alienígenas), mas sim tentar resolver os conflitos entre
os diferentes grupos, protegendo-os e levando em conta a lógica multicultural dos Estados. E que,
ao contrário, do que tem se falado, a recepção de fluxos migratórios pode incorrem em benefícios
econômicos e culturais incalculáveis, mas estes efeitos têm sido mascarados pelos discursos
políticos, uma vez que a securitização da migração foi politizada e agora esta temática faz parte das
agendas dos partidos políticos, sobretudo nos países de tradição imigratória.
Para Adamson (2006), ao invés de insistir na lógica da segurança societal, os Estados
deveriam investir na cooperação internacional. De acordo com a autora, em tempos de globalização
e de intensa circulação de pessoas, a vinculação entre migração e segurança nacional poderia levar a
um processo de radicalização da xenofobia e da discriminação racial. Como forma de harmonizar os
interesses de segurança humana e estatal, Adamson sugere que os Estados invistam em políticas de
cooperação que possibilitem o compartilhamento de informações de inteligência, bem como, a
criação de normas internacionais.
Em 1994, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) criou o conceito
de Segurança Humana e deu um novo significado ao conceito por utilizá-lo somente na esfera
estatal, o que, de acordo com Buzan e Weaver (2012), resultou na ampliação das categorias das
ameaças e dos setores onde poderia se aplicar, dentre elas o crescimento populacional, as
disparidades econômicas e as migrações.
O novo conceito enfrentou críticas dos que alegavam que a abordagem da segurança humana
já consistia um fato implícito em uma agenda humanitária, já que os fundamentos já estavam
explícitos na Carta da ONU. Mas, de fato, podemos analisar que o objetivo era retirar do discurso o
peso que a segurança estritamente territorial trazia para buscar solucionar os problemas das
sociedades civis que seriam os receptores da promoção da paz. Nesse sentido, os estudos
migratórios sofreram uma clivagem, na qual a abordagem humanitária não se traduzia mais em
efeitos secundários, mas que posicionava os migrantes como centro dos estudos e das políticas
empreendidas pelos Estados.
De fato, a carta da ONU já trazia a defesa dos Direitos Humanos, inclusive em relação aos
indivíduos que cruzam fronteiras. Nesse sentido, se a segurança humana fosse pensada centrada nas
atitudes dos Estados para com seus cidadãos, como solucionar as questões atinentes aos refugiados
e às milhares de pessoas que, por motivos diversos, cruzam fronteiras? Pensar na segurança humana
215

desprovida da agenda humanitária dos Estados permite incrementar ações com instituições não
governamentais, por exemplo.
Rosita Milesi (2007) argumenta que as políticas migratórias devem sempre ser fundamentadas
nos Direitos Humanos e não como pauta de segurança, pois os migrantes constituem parte
importante de um processo histórico de transformação de aspectos econômicos e culturais e de
evolução do Direito. Há, nesse sentido, a necessidade de uma nova lei para as migrações, na qual
países e sociedades desconsiderem o securitário e prezem pelo teor econômico das migrações como
sendo fonte de riquezas e benefícios, aliado a programas que visem à acomodação de interesses,
posto que a imagem do migrante como fator econômico poderia gerar xenofobia, na medida em que
os não qualificados não seriam aceitos.
A autora sugere, no entanto, a criação de um direito universal que não ultrapasse a soberania
dos Estados, mas que garanta direitos mínimos aos migrantes em igualdade aos nacionais. Contudo,
as leis devem considerar não somente a realidade de países receptores, mas também dos evasores,
nos quais se desenvolveram fatores de repulsão. O objetivo não é a garantia de respeito da
dignidade humana no destino, mas que também sejam garantidas condições de sobrevivência nos
países de origem para que haja outra solução além da emigração.
Milesi (2007) aponta que o processo de securitização da questão, em detrimento da efetivação
dos conceitos da dignidade humana e da quebra de barreiras propostas em planos, pactos e acordos
no plano doméstico e internacional cria, de fato, um dissenso entre os tratados e as práticas
interestatais. Os documentos assinados, nos quais os migrantes são sujeitos com direito de livre
circulação e proteção tratam também de diferenciar os nacionais e os estrangeiros, a despeito do
comprometimento de tratar a especificidade do imigrante como pessoa humana.
No campo do refúgio, ao menos no discurso governamental, a situação é diferente. Desde a
fundação do ACNUR, sobretudo depois do período de redemocratização, a atuação do governo
brasileiro tem se mostrado favorável à recepção de refugiados. Tal inclinação pode ser evidenciada
na aprovação, em 1997, da Lei de Refúgio que amplia a definição de refugiado proposta pela ONU,
passando a considerar também os casos relacionados à violação dos direitos humanos. Contudo,
quando observado o comportamento do Estado brasileiro, evidencia-se que a propensão do país em
receber refugiados pode ser questionada, levando-nos a supor que talvez essa nova atitude pró-
refugiados seja fruto de uma estratégia de inserção internacional, na qual o respeito ao direito
internacional seja interpretado como uma forma de lograr os interesses nacionais. Nas linhas que se
seguem, serão expostos os argumentos que sustentam tal proposição.
Após esta breve análise teórica, pode-se depreender que na conjuntura atual a questão da
imigração foi politizada e que, por essa razão, alguns Estados optam por torná-la um tema fulcral de
216

sua agenda, em geral, associando-a as novas ameaças do pós Guerra Fria. Entretanto, a postura do
Brasil, até o momento, andava na contramão dos países desenvolvidos, deixando para segundo
plano as questões referentes aos fluxos migratórios. Cabe destacar, a obsolescência da legislação
migratória no país que remonta aos tempos de ditadura militar. Recentemente, a Comissão de
Relações Exteriores e Defesa Nacional, aprovou em 06/04/2017, o texto da Nova de Lei de
Migração, que substituirá o Estatuto do Migrante. Esta visa incorporar no marco jurídico doméstico
elementos do direito internacional e seguiu para o Senado sob a forma de PLS 288/2013 (SENADO,
2017).

Entre o discurso e a prática: um estudo de caso dos haitianos no Brasil


As primeiras levas de haitianos chegaram ao Brasil logo após o terremoto que assolou a
capital haitiana, Porto Príncipe, em 2010. O agravamento das condições de vida no local fez com
muitos nacionais passassem a considerar a realização de um empreendimento migratório. Este
pequeno grupo de haitianos – cerca de trinta e cinco – chegou à cidade de Tabatinga, cidade
fronteiriça com o Peru, e solicitou o status de refugiado, valendo-se da prerrogativa de estarem
sofrendo uma grave violação dos direitos humanos no país de origem. Após análise das solicitações
de asilo, o Comitê Nacional de Refugiados (órgão responsável pela concessão de refúgio) decidiu
pela aprovação de vistos de trabalho temporário, contrariando, assim, o imperativo da lei. Até
aquele momento, por se tratar de um contingente reduzido, a chegada dos haitianos não figurava
uma grande preocupação para o governo brasileiro.
A escolha do Brasil como país de destino pode ser entendido como resultado de uma maior
projeção internacional, em consequência da nova realidade econômica brasileira. Soma-se a isso, a
presença brasileira, desde 2004, em território haitiano na qualidade de líder da Missão das Nações
Unidas para a estabilização no Haiti (MINUSTAH). Desde então, pode-se verificar o
estabelecimento de laços sociais entre a população haitiana e os militares brasileiros.
Por essa razão, ao invés de diminuir, com o passar do tempo, o fluxo de haitianos para o
Brasil tomou uma proporção cada vez maior. Em janeiro de 2011, um ano após o terremoto,
milhares de haitianos tentaram ingressar no Brasil através das fronteiras com o Peru e a Bolívia. Ao
invés de recebê-los, em resposta ao aumento do fluxo de haitianos, o governo brasileiro, optou por
fechar as fronteiras e proibir a entrada destes imigrantes. Na ocasião, mais de 300 haitianos se
encontravam em Inãpari, cidade peruana, esperando a autorização do governo brasileiro para
atravessar a fronteira. Enquanto aguardavam, a decisão das autoridades brasileiras, os solicitantes
de refúgio contavam apenas com o apoio de igrejas locais e de ONGs que atuam na região
217

fronteiriça. Para completar o cenário caótico, a cidade de Inãpari foi assolada pela pior enchente
ocorrida nas duas últimas décadas. Assim, sendo, a situação que já era dramática tornou-se pior.
O governo brasileiro argumenta que a legislação brasileira não prevê a concessão de refúgio
para casos que estejam relacionados a desastres naturais e, por esse motivo, os haitianos não
poderiam ser considerados refugiados. Com efeito, o conceito que define refugiado como o
indivíduo que esteja em situação de violação de direitos humanos é deveras amplo, sendo, portanto,
passível de contestação. Dessa forma, a situação de precariedade e as condições sub-humanas
experimentadas pelos haitianos em sua terra natal na conjuntura pós-terremoto poderia ser
considerada um tipo de desrespeito aos direitos humanos.
Porém, a crítica que pretendemos articular quanto ao posicionamento brasileiro, encontra
respaldo em outras legislações internacionais, nas quais o Brasil está inserido. No âmbito da ONU,
a própria Resolução que cria a MINUSTAH, caracteriza o Haiti como um failed State, logo sua
população em situação de vulnerabilidade e desatenção nos seus direitos mais básicos está inserida
na lógica da proteção internacional que poderia ampliar as condições de refúgio. Ademais,
destacamos a normativa da Declaração de Cartagena que norteia proteção de indivíduos, no âmbito
regional, que sejam atingidos por violações dos direitos humanos, mesmo que não haja algum
conflito instalado (Minchola: Redin, 2013).
Destarte, ao considerar a ação do governo brasileiro uma violação dos Tratados
Internacionais, o Ministério Público Federal (MPF) abriu um processo contra a União, na 1ª Vara
Federal de Rio Branco (AC), com vistas a garantir os direitos humanos dos imigrantes haitianos que
vêm ao Brasil em busca de trabalho e condições dignas de sobrevivência. A decisão judicial
intimava a Polícia Federal a não barrar mais os haitianos na fronteira, devendo acatar, assim, os
pedidos de asilo. A ação empreendida pelo MPF cobrava o reconhecimento da condição de
refugiados dos haitianos e o fim das barreiras contra imigrantes.
Diante das pressões internas e internacionais, a saída encontrada pelo governo brasileiro foi
disposta pela Resolução Normativa n° 97, de 12 de janeiro de 2012, segundo a qual, seriam
concedidos vistos temporários – com validade de cinco anos - e de caráter humanitário. Além
disso, a partir da data de implementação da resolução, foram estabelecidas cotas anuais para a
concessão de vistos para haitianos e os solicitantes deverão dar entrada ao processo ainda no país de
origem - no Consulado brasileiro no Haiti. Com a adoção deste dispositivo, cerca de dois mil e
quinhentos dos quatro mil haitianos que se encontravam em situação irregular puderam permanecer
no Brasil. Contudo, apesar das autoridades brasileiras terem se mostrado propenso a solucionar este
litígio, a situação ainda pode ser considerada preocupante. Por conseguinte, tal limitação tem
provocado inquietações entre os defensores dos direitos humanos:
218

"Estamos preocupados com o funcionamento efetivo do 'visto humanitário' e também


com a situação daqueles que têm sua entrada negada no Brasil. Há relatos de famílias
desabrigadas em zonas de fronteira, confrontadas pela Polícia Federal e sem ter como
nem para onde regressar. Isso não é condizente com uma política que se autodenomina
humanitária" (CONECTAS, 2012, s/p).

Conforme observado, conquanto pudessem ser enquadrados na definição de refugiados


proposta pela lei brasileira, o governo brasileiro optou por recebê-los como migrantes temporários.
Acredita-se que tal medida tenha sido tomada pelo governo brasileiro, visando a inibição de novas
solicitações de refúgio e por estar amedrontado diante das novas pressões migratórias. De fato, ao
se apropriar do construto teórico ora apresentado, evidencia-se que o problema da migração deve
ser avaliado em dois níveis: controle das fronteiras e impacto interno (político, econômico e social).
Em geral, os governos, tem dado um maior destaque aos óbices causados pela presença de
alienígenas nas sociedades. Aqueles argumentam que um grande volume de migrantes engendraria
problemas complexos, tais como: o desemprego, o inchaço dos sistemas de proteção social, a
xenofobia e a criminalidade.
Todavia, a nova realidade econômica brasileira parece desmentir a primeira preocupação do
governo. Grande parte do grupo de haitianos que chegou ao país já fora absorvida pelo mercado de
trabalho. De acordo com dados do Ministério do Trabalho, a maioria deles foi contratada pelo setor
de construção civil. Igualmente, em relação à questão da criminalidade, a primeira vista os haitianos
parecem não estar engajados em redes internacionais de terrorismo, tampouco relacionados aos
crimes transnacionais. Em realidade, ao contrário do que argumenta o governo brasileiro, o não
reconhecimento da condição de refugiados poderá incorrer no aumento do tráfico de pessoas, já
que, em situações de restrição, estes indivíduos adotaram estratégias para burlar o controle
governamental, qual sejam a contratação de coiotes e a falsificação de documentos.

Considerações Finais
É indiscutível que os países receptores dos grandes fluxos migratórios se sintam mais
ameaçados do que aqueles que recebem um menor contingente de alienígenas e talvez seja essa a
chave de interpretação para avaliar o comportamento do governo brasileiro. Perante a chegada de
haitianos ao seu território, pela primeira vez na história recente, o Brasil de viu envolvido em uma
situação potencial de ameaça às fronteiras. É indiscutível que diante do imprevisível, o temor seja a
primeira reação.
Ao decidir fechar as fronteiras, o governo sinalizou que estava sentindo-se intimidado frente
aos fluxos de haitianos que chegavam ao território brasileiro para reivindicar o status de refugiado.
Contudo, ao avaliar a situação dos imigrantes haitianos dentro da abordagem teórica proposta,
219

conclui-se que este contingente de migrantes não representa ao país nenhum tipo de ameaça, ao
contrário, a não admissão destes indivíduos como refugiados poderia incorrer na violação aos
direitos humanos.
A solução encontrada pelo governo demonstra o despreparo das instituições brasileiras na
recepção dos refugiados. A opção por estabelecer cotas – 1200 anuais – e prazo de validade para os
vistos, em detrimento do reconhecimento da condição de refugiado aos haitianos, está muito aquém
do desejado. Em primeiro lugar, destaca-se que o número de vistos concedidos é inferior à
demanda, deixando, assim, um grande contingente de solicitantes em situação de risco. Além disso,
ao término do prazo estabelecido pelo visto temporário, a maioria dos imigrantes permanecerá no
território brasileiro em condição irregular, situação esta que poderá acarretar em uma situação de
maior vulnerabilidade tanto para o país e quanto para os migrantes, comprometendo de uma só vez
dois níveis de segurança: a societal e a humana.
É inquestionável, conforme demonstrado pelo Ministério Público, que os haitianos deveriam
ser receber o status de refugiado. Acredita-se, no entanto, que o governo brasileiro estivesse
considerando que a concessão de refúgio a estes indivíduos pudesse incentivar novas solicitações.
Além de ser infundada, esta justificativa torna patente a ideia de que o governo brasileiro estaria
lançando mão de um discurso pró refugiados, mas que na prática não estaria disposto a aumentar a
recepção de refugiados. Sendo assim, pode-se inferir que, sob a roupagem do humanitarismo,
estaria escondido o interesse de projeção internacional do governo brasileiro.
De maneira geral, a atuação do governo brasileiro no campo dos refugiados contradiz a letra
da lei. A partir da análise do caso dos haitianos no Brasil, observa-se que, em que pese à adesão do
regime de refugiados e a aprovação de legislação doméstica para a concessão de refúgio, haveria
um baixo grau de efetividade (compliance) dos compromissos internacionais assumidos pelo país
no campo de refugiados, uma vez que ao ser confrontado por um grande fluxo de refugiados optou
por securitizar o tema e adotar medidas diplomáticas que visavam diminuir as pressões migratórias.
Sendo assim, partindo da análise das solicitações de refúgio dos haitianos, acredita-se que não há
concordância entre o discurso e a ação governamental brasileira nas questões atinentes aos
refugiados.

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CIDADANIA AMPLIADA: DIREITOS POLÍTICOS DE ESTRANGEIROS NOS CASOS


ARGENTINO, BRASILEIRO E EQUATORIANO

Roger Lucas Correa Martins*

1. Introdução
A questão migratória tem ganhado relevância nos debates internacionais, regionais e
nacionais, onde cada vez mais se evidencia a importância dos migrantes enquanto atores
fundamentais tanto nas sociedades de origem como nas de destino. A politização desse debate levou
a uma progressiva demarcação de direitos humanos referentes aos migrantes no cenário
internacional e tem repercutido em âmbitos regionais e nacionais.
No caso sul-americano, a questão migratória tem recebido uma profunda atenção.
Primeiramente, predominavam políticas de segurança, criminalização da mobilidade e diferenciação
de migrantes enquanto “desejáveis” e “não desejáveis” ao mercado nacional. Agora se observa uma
mudança de orientação das políticas migratórias, pautadas por conceitos diferentes, como
mobilidade humana e cidadania. Acompanhadas de políticas regionais de integração, essas
mudanças acarretaram em legislações baseadas nos direitos humanos dos migrantes, garantindo-os
direitos civis, sociais e políticos.
Aqui os direitos políticos ganham relevância. De maneira geral, direitos de participação
política, tanto formais (através do direito ao voto, associação partidária e elegibilidade) quanto
formas menos convencionais (mobilização, associativismo), são direitos restritos a nacionais,
assegurados por uma perspectiva de soberania do Estado-Nação. A concepção de cidadania
proposta através das novas políticas migratórias na região sul-americana é desvinculada da
nacionalidade. Complementada pelo direito de residência, essa cidadania ampliada assegura a
imagem jurídico política dos imigrantes, tornando-os sujeitos com direito a ter direitos.
Assim, o objetivo do artigo é identificar e comparar essas mudanças em três casos específicos:
Argentina, Brasil e Equador, comparando seus avanços. A análise tem como pano de fundo os
marcos normativos internacionais e regionais. A hipótese é de que o Brasil não tem acompanhado
os esforços de outros países, como a Argentina e o Equador, em assegurar uma cidadania política
aos estrangeiros residindo em seu território, mesmo estando integrado em espaços regionais e seja
parte de acordos internacionais que fomentam tais avanços.
Para avançar nesses pontos, utiliza-se uma metodologia de análise qualitativa, buscando
identificar os marcos normativos no espaço internacional, presentes nas convenções internacionais

*
Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP-UERJ). E-mail: rlcm136@gmail.com
223

da Organização das Nações Unidas (ONU), e regional, presentes na Comunidade Andina de Nações
(CAN), no Mercado Comum do Sul (MERCOSUL), e na União das Nações Sul-americanas
(UNASUL), no que tange a cidadania política de imigrantes. A partir disso, faz-se uma análise
comparativa dos três casos estudados, atentando a quão próximos se encontram das normas
internacionais e regionais e como tem avançado na ampliação da cidadania aos estrangeiros
residentes em seus territórios nacionais.
O marco teórico utilizado é baseado na teoria crítica das relações internacionais. A
ressignificação da cidadania é a base para a transformação da comunidade política em uma
comunidade ampliada, onde a identidade e o comprometimento com a comunidade não se
estabelece somente pela nacionalidade (LINKLATER, 1997). Essa transformação também implica
na reconfiguração das relações entre migrantes enquanto forças sociais e as comunidades enquanto
formas de Estado (COX, 1996).
Assim, esse trabalho busca aprofundar essas questões com o intuito de ampliar o debate dos
direitos dos migrantes para além dos espaços de trabalho. Identifica-los enquanto sujeitos jurídicos
e políticos, para que possam efetivamente exercer seus direitos através de uma cidadania completa,
é o caminho para se promover o cumprimento e o gozo desses direitos.

2. Cidadania ampliada
As migrações representam um fenômeno internacional que pode ser identificado ao longo da
história humana. Elas não apenas antecedem as formações dos Estados como também foram
elementos constitutivos dos mesmos. A formação de comunidades culturais homogêneas e o
fortalecimento de fronteiras nacionais é uma conquista recente dos Estados-Nação (LINKLATER,
1998). Isso constituiu o “projeto totalizante” do Estado-Nação (LINKLATER 1999), cujo objetivo
foi criar comunidades políticas relativamente coesas, eliminando conflitos internos a partir de um
suposto “interesse nacional”. Assim formulou-se uma concepção de pertencimento exclusivamente
nacional, a cidadania nacional.
Porém, o processo de globalização levou a os Estados a começar a quebrar construções de
poder focadas no território. A cidadania também é afetada por esse processo, levando a novas
formas de pertencimento e a formas de comunidade política alternativas. A União Europeia (EU)
não foi a única a avançar nessas transformações, a América do Sul também avançou nessa agenda.
Uma das mudanças introduzidas por essas transformações foi o destaque da dimensão política
das migrações. Essa dimensão política é definida enquanto tipos de participação direta na política
do país de origem e de participação direta e indireta nas instituições políticas do Estado de
recepção. No contexto da imigração, onde as pessoas podem não ter acesso à cidadania formal, o
224

político é definido de forma ampla, incluindo dimensões informais da política, como mobilizações,
organizações frente a causas de agenda pública (WAYLAND, 2006).
Essa dimensão introduz uma abordagem social que redefine o papel dos atores migrantes nos
espaços nacionais e internacionais, que deixam de ser vistos apenas como mão de obra, deixando de
lado a visão economicista sobre esses sujeitos (RAMÍREZ, 2016). Ela também contribui para se
pensar em alternativas políticas reais, ampliando a discussão sobre a diversidade nas comunidades
para o âmbito político e jurídico (DE LUCAS, 2009).
Assim, identificando a dimensão política na qual os migrantes se inserem e a migração
enquanto elemento desvinculado da condição laboral, torna-se inviável avaliar alternativas de
ampliação da comunidade política sem conferir uma personalidade jurídica e política aos migrantes.
A categoria que garante essa personalidade não é a de trabalhador, mas sim a de cidadão.
Diferente da concepção clássica de cidadania de T. H. Marshall (1967), onde a cidadania é um
status conferido pelo Estado na relação do mesmo com os indivíduos e avança progressivamente de
direitos civis a políticos e depois a sociais, aqui se ressalta seu caráter substantivo. A cidadania se
expressa não somente na relação indivíduo-Estado, isto é, a expressão formal, ela também assume
um caráter prático. Essa dimensão não aparece em Marshall, pois o autor enxerga a cidadania a
partir de uma progressão institucional apenas, sem levar em consideração os conflitos que giraram
em torno de sua ampliação (a luta por inclusão de negros, mulheres, não proprietários, etc). A
cidadania substantiva reconhece a dimensão política dos sujeitos de forma ampla, congruente com a
dimensão política dos migrantes.
Em seu trabalho focado em cidadania sul-americana, Ramírez (2016) reforça a questão
substantiva da cidadania, capaz de outorgar direitos e deveres independente da comunidade política
a que pertencemos. O autor trabalha com um conceito de cidadania mista, ligada a participação
política em diversas esferas: local/municipal, nacional e regional/intergovernamental. No nível
local/municipal, os imigrantes enfrentam condições reais de acesso a serviços básicos como
educação e saúde; no nível nacional, a atividade política versa sobre fluxos de bens, capitais e
pessoas; e no nível regional/intergovernamental, se promove a extensão e internacionalização de
direitos, viabilizando novos atores e entidades políticas. Essa cidadania seria atribuída a partir de
um direito de residência e do reconhecimento político jurídico.
Essa abordagem é de extrema relevância já que o princípio de residência para se outorgar
cidadania a estrangeiros é uma construção concreta do regionalismo sul-americano, adotada por
diversos países no continente. Dessa forma, o que se busca identificar nos marcos internacional e
regional, e comparar nos casos nacionais, são justamente esses elementos que definem um conceito
de cidadania ampliada na região sul-americana.
225

3. Marco internacional
O regime internacional de direitos humanos oferece bases sólidas para a ação internacional na
proteção dos migrantes. “O problema maior relaciona-se à implementação insuficiente das referidas
normas internacionais no plano nacional” (FARIA, 2015, p.179). O regime das migrações é
fragmentado, setorializado e não estimula a adoção de políticas nacionais coerentes e
multifacetadas, impedindo uma visão completa do processo migratório. A governança global das
migrações apresenta uma configuração diferente do multilateralismo que vigorou em temas como
capitais, bens e serviços no âmbito da ONU no pós Segunda Guerra (FARIA, 2015).
Diversas convenções tratam do tema migratório indiretamente. Focando na questão da
cidadania e dos direitos políticos, cabe ressaltar uma delas: O Pacto Internacional de Direitos Civis
e Políticos (1966). Em seu segundo artigo, o Pacto estabelece em seus artigos 2 e 25,
respectivamente, que:

Os Estados Partes do presente pacto comprometem-se a respeitar e garantir a todos os


indivíduos que se achem em seu território e que estejam sujeitos a sua jurisdição os
direitos reconhecidos no presente Pacto, sem discriminação alguma por motivo de raça,
cor, sexo. língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou
social, situação econômica, nascimento ou qualquer condição (...)
Todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação
mencionadas no artigo 2 e sem restrições infundadas: a) de participar da condução dos
assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente escolhidos; b) de
votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e
igualitário e por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores; c) de
ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país (ONU,
1966).

O artigo número 25 refere-se exclusivamente a cidadãos dos Estados, sejam nacionais ou


aqueles que adquiriram a cidadania, não fazendo referência à migrantes que não possuem a
cidadania nacional. Porém, a Observação Geral1 de número 15 do Comitê de Direitos Humanos da
ONU aponta que o segundo artigo englobaria também estrangeiros, de modo que não poderiam
haver discriminações entre nacionais e migrantes quanto aos direitos expressos no Pacto, incluindo
os do 25o artigo (IPEA, 2015).
Outro documento de extrema relevância é a própria Convenção Internacional Sobre a
Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias
(1990). Além de buscar unificar as garantias dos direitos civis, políticos, sociais, culturais e
trabalhistas, ela engloba uma série de garantias atribuídas tanto a migrantes em situação de

1
As observações gerais são “o instrumento pelo qual o Comitê interpreta e exprime sua interpretação dos
dispositivos do Pacto” (IPEA, 2015, p.35). Elas assumem caráter geral por serem aplicáveis a todos os Estados-
parte. Apesar de não possuir caráter normativo, as Observações Gerais ressaltam problemáticas que devem ser
resolvidas pelos Estados.
226

regularidade quanto aos que se encontram em situação de irregularidade. Aqui vale ressaltar seu
42oartigo (ONU, 1990):

Artigo 42º
1. Os Estados Partes ponderam a possibilidade de estabelecer procedimentos ou
instituições que permitam ter em conta, tanto no Estado de origem quanto no Estado de
emprego, as necessidades, aspirações e obrigações específicas dos trabalhadores
migrantes e dos membros das suas famílias e, sendo esse o caso, a possibilidade de os
trabalhadores migrantes e os membros das suas famílias terem nessas instituições os seus
representantes livremente escolhidos.
2. Os Estados de emprego facilitam, de harmonia com a sua legislação nacional, a
consulta ou a participação dos trabalhadores migrantes e dos membros das suas famílias
nas decisões relativas à vida e à administração das comunidades locais.
3. Os trabalhadores migrantes podem gozar de direitos políticos no Estado de emprego se
este Estado, no exercício da sua soberania, lhes atribuir esses direitos.

Existem duas problemáticas ao se analisar a Convenção Internacional dos Migrantes.


Primeiro, a Convenção é a com o menor número de ratificações entre os as convenções
internacionais, onde nenhum dos principais países receptores de imigrantes assinou ou ratificou,
abrigando assim uma porcentagem pequena dos migrantes internacionais e deixando um vácuo de
normatização (FARIA, 2015). Segundo, o principal documento de garantia de direitos a migrantes
no nível internacional ainda os vincula a categoria laboral.
Os espaços não institucionais também merecem atenção. Dentro do âmbito internacional,
existe uma grande mobilização dos atores migrantes através de movimentos sociais e espaços de
deliberação de redes. Destaca-se aqui o VII Fórum Social Mundial de Migrações, realizado em São
Paulo em 2016. Em declaração, os grupos ali presentes redigiram uma declaração onde expressam:

Os debates durante o Fórum abordaram este eixo (Eixo: Direitos humanos, trabalho digno,
educação, moradia, participação política e movimentos sociais) de uma forma multidimensional,
privilegiando a crítica a todas as formas de violência, discriminação e exclusão que impedem à
população migrante o pleno gozo de seus direitos humanos, o acesso a condições dignas de
trabalho e a direitos humanos básicos, como: saúde, educação, moradia, previdência social, acesso
à justiça e a consagração de seus direitos na participação política, expresso em seu direito ao
voto e a ser eleito, como um direito fundamental das e dos migrantes (FSMM, 2016, p.4, grifo
nosso).

Dessa forma é possível identificar o arcabouço normativo presente no âmbito internacional


que trata da inclusão política de estrangeiros, porém percebe-se a falta de comprometimento por
parte dos Estados com as normativas internacionais, tendo em vista que as observações do Comitê
não tem caráter normativo e a pequena adesão a Convenção Internacional dos Migrantes, não
ratificada por um total de 131 países, mostra um vácuo normativo no âmbito internacional. Além
disso, a Convenção, enquanto principal documento da ONU de proteção aos migrantes, ainda os
vincula a condição de trabalhadores, mantendo uma perspectiva economicista.
227

4. Marco regional
O espaço regional ganhou proeminência enquanto destino para migrantes sul-americanos nos
últimos anos. Em 2015, 70% da imigração da região era inter-regional e as populações de migrantes
na maioria dos países da região era sul-americana (OIM, 2017). Isso se deu a partir de uma
reconfiguração das políticas migratórias da região, iniciada pela onda de governos progressistas de
esquerda nos países durante o início do século XXI, que promoveram legislações migratórias
baseadas em direitos humanos e políticas regionais de facilidade de mobilidade. Dentro desse
âmbito, é possível identificar três espaços de avanço de políticas regionais, a CAN, o MERCOSUL,
e a UNASUL.
Dentro da CAN, cabe ressaltar o Estatuto Andino de Mobilidade Humana (2015), enquanto
documento mais promissor da comunidade. Sua substituição do termo “migração” por “mobilidade
humana” demonstra uma perspectiva de não criminalização da mobilidade, e em todo documento se
faz referência a categoria de cidadão ou cidadã andina, assegurando direitos e recordando deveres
de ambos Estados parte e cidadãos (RAMÍREZ,2017). O Estatuto estabelece em seu Preambulo e
13o, respectivamente (CAN, 2015, tradução nossa):

Reiterando a vontade dos países andinos de cooperar para a conformação e consolidação


da cidadania andina e sulamericana, por meio da qual se propenderá pela garantia do trato
igualitário para todos os cidadãos, sem nenhum tipo de discriminação por sua
nacionalidade.
Os cidadãos andinos em situação de mobilidade exercerão seus direitos políticos e
participação em qualquer dos países membros. Para isso, os países de origem assegurarão
que seus postos consulares disponham da infraestrutura necessária para garantir o direito
ao voto e a participar dos mecanismos de democracia direta dos nacionais no exterior. Da
mesma maneira, os Estados promoverão a participação política dos nacionais andinos que
tenham estabelecido sua residência em algum dos países membros, conforme com o
disposto na legislação nacional do país receptor (CAN, 2015, tradução nossa).

O MERCOSUL, inicialmente, não tinha pretensões de se tornar um espaço


intergovernamental, porém a agenda social e política começa a ingressar no bloco devido a
emergência das questões sociais que acompanhou os governos progressistas. Assim, em 2010 o
MERCOSUL aprova seu Plano de Ação para o Estatuto da Cidadania MERCOSUL, que expressa a
igualdade de direitos civis, sociais, culturais e econômicos para os nacionais dos Estados parte do
bloco. Quanto aos direitos políticos, aponta que os Estados parte irão sem comprometer em:

11.1 Avaliar as condições para avançar progressivamente no estabelecimento de direitos


políticos, de acordo com as legislações nacionais que regulamentem seu exercício, em
favor dos cidadãos de um dos Estados Partes do MERCOSUL que residam em outro
Estado Parte de que não sejam nacionais, incluindo a possibilidade de eleger
parlamentares do MERCOSUL (MERCOSUL, 2010, Art.3).
228

Ainda que esses dois espaços tenham avançado na concretização de uma cidadania
supranacional, desvinculada da identidade nacional, em ambos a cidadania está atrelada a situação
trabalhista do migrante (RAMÍREZ, 2016). O projeto de cidadania sul-americana da UNASUL
difere da das duas organizações pois aqui a cidadania sul-americana é tomada como uma categoria
jurídico-política, ao mesmo tempo que uma categoria sociocultural, abarcando direitos e deveres
assim como a identidade, costumes, tradições e cosmovisões. A combinação desses dois elementos
é que permite uma concepção substantiva da cidadania, uma cidadania mista vinculada à uma
comunidade imaginada ampliada, concepção defendida pelo autor.

A ruptura que temos projetado desde a UNASUL é que não se deve abordar o tema desde a
categoria de trabalhador migrante, e sim de cidadão sul-americano. É fundamental recuperar o
conceito de cidadania porque esta categoria é a que transforma uma pessoa em sujeito de direitos.
E aqui há todo um debate, porque a proposta que fazemos é superar a visão clássica tanto do
conceito de cidadania como o de direitos humanos. Superar a visão marschalliana da cidadania e a
visão liberal anglo-saxã dos direitos humanos (RAMÍREZ, entrevista por VILLARREAL, 2016).

No que tange aos direitos políticos, vale ressaltar aqui o Tratado Constitutivo da UNASUL
(2008) que expressa:
Art 2

construir, de maneira participativa e consensuada, um espaço de integração e união no


âmbito cultural, social, econômico e político entre seus povos, priorizando o diálogo
político, (...)
Art 3
a consolidação de uma identidade sul-americana através do reconhecimento progressivo
de direitos a nacionais de um Estado Membro residentes em qualquer outro Estado
Membro, com o objetivo de alcançar uma cidadania sul-americana (...) a participação
cidadã, por meio de mecanismos de interação e diálogo entre a UNASUL e os diversos
atores sociais na formulação de políticas de integração sul-americana

Dessa forma, o caso regional apresenta diversos avanços em garantir uma política migratória
que favoreça a mobilidade humana e uma cidadania supranacional, mas deve-se ressaltar que a
cidadania sul-americana expressa nos termos da UNASUL é a que mais avança em estabelecer uma
categoria não trabalhista dos migrantes na região.
Com base nos marcos apresentados, agora é possível identificar e comparar os avanços nas
políticas nacionais referentes a ampliação da cidadania através da participação política. A análise irá
se limitar a participação de imigrantes dentro do território nacional de cada caso.

5. Argentina
A legislação migratória argentina de 2003 inaugura a abordagem humanitária do país com
relação aos migrantes e estabelece sua conformidade com a normativa internacional e regional e
uma concepção de cidadania comunitária. Ela apresenta diversas garantias em acesso a serviços
229

sociais básicos como educação, saúde, justiça, trabalho, emprego e previdência social,
independentemente de sua condição migratória, isto é, se está regularizado ou não (DOMENECH,
2008). A lei ressalta o tratamento da questão da irregularidade migratória, buscando a regularização
dos imigrantes a fim de reconhecer sua existência e garantindo acesso à justiça para identificar a
razoabilidade e legalidade em qualquer processo de expulsão (NEJAMKIS, 2013). O pluralismo
cultural é outro ponto relevante na legislação, de modo que o Estado argentino agora se
responsabiliza não apenas ao tocante a regularização ou aos fluxos populacionais, mas também à
inserção social, econômica, política e cultural dos imigrantes (DOMENECH, 2008)
Entretanto, segundo Domenech (2008), apesar do discurso oficial se embasar nos direitos
humanos, as justificativas das práticas estatais empreendidas ainda apoiam-se em interesses e
necessidades econômicas e de segurança. O autor ainda ressalta que, apesar da irregularidade
migratória ser o principal problema enfrentado pelas prática estatais, onde a regularização implica
na garantia de diversos direitos aos migrantes, ela não assegura o efetivo exercício desses direitos.
Assim, é preciso entender que o acesso efetivo a cidadania e a participação é um processo dinâmico
de lutas pela ampliação dos direitos e seu exercício real que vai além dos aspectos formais e
normativos (DOMENECH, 2008).
Os direitos políticos são reconhecidos em todo território nacional, sendo restritos ao nível
municipal, o tempo de residência para imigrantes poderem votar é de dois anos. O principal
problema aparece nos entraves burocráticos e administrativos para se conseguir o direito ao voto, e
os documentos e requisitos necessários para o processo variam de município para município,
assumindo muitas vezes um caráter arbitrário. Ser eleito é mais complicado, devido a limitações nas
próprias legislações municipais que dificultam a candidatura de estrangeiros, seja impedindo-os de
encabeçar listas ou proibindo-os de ocupar cargos do Executivo. Apesar das províncias de Córdoba
e Buenos Aires terem aprovado a participação de estrangeiros para o nível provincial, a participação
política geral dos estrangeiros ainda encontra muitos entraves e a difusão de informações é escassa
(BARALDI e GAINZA, 2013).

6. Brasil
Com a sanção da nova lei de migrações em maio de 2017, o Brasil deu mais um passo para a
continua evolução da questão migratória na política nacional. Ela acabou com o anacronismo e
conflito de perspectivas gerado pelo Estatuto do Estrangeiro e a Constituição de 1988, onde o
primeiro apresentava uma perspectiva de segurança nacional e criminalização dos migrantes, e a
segunda uma perspectiva baseada nos direitos humanos, e enfatizou a garantia de direitos dos
migrantes. Porém vale ressaltar que a sanção foi acompanhada de 20 vetos (OLIVEIRA, 2017).
230

Entretanto, a nova Lei de Migrações brasileira caminhou passos curtos na direção dos direitos
políticos e expansão da cidadania, garantindo o direito de associação sindical e para outros fins
lícitos, assim como o direito à reunião para fins pacíficos, abrindo a possibilidade de associações e
reuniões com fins políticos, o que era expressamente proibido na legislação anterior. Ela também
busca o “diálogo social na formulação, na execução e na avaliação de políticas migratórias e
promoção da participação cidadã do migrante”, mas não coloca de que maneira se promovera tal
diálogo ou se ele terá apenas um caráter consultivo.
Quanto a participação política de estrangeiros no Estado brasileiro, a Constituição coloca, em
seu 14o artigo, 2o§, “Não podem alistar-se como eleitores os estrangeiros e, durante o período do
serviço militar obrigatório, os conscritos” (BRASIL, 1988), fazendo do Brasil o único país da
América do Sul que não reconhece o direito de voto à estrangeiros em nenhum nível administrativo
(BARALDI e GAINZA, 2013), com exceção para os estrangeiros de origem portuguesa que tem
acesso após residência de 3 anos no país.

7. Equador
O Estado equatoriano, em questão migratória, apresenta instrumentos progressistas e
inovadores que não foram produto apenas da realidade migratória do país, mas também dos atores
que interviram no processo de tornar visível a importância do tema na sociedade (BARALDI e
GAINZA, 2013). Tanto em sua Constituição de 2008 quanto em sua Lei Orgânica de Mobilidade
Humana de 2017 se faz referência a concepções de cidadania universal, andina e sul-americana, se
garante a livre mobilidade humana, proibindo a criminalização de migrantes independente de sua
situação de mobilidade. Outro avanço foi a criação de uma Secretária específica para tratar da
implementação e regulamentação da política migratória equatoriana, a Secretaria Nacional do
Migrante (SENAMI).
No que tange aos direitos políticos, aos estrangeiros é garantido a possibilidade de eleger e ser
eleito após cinco anos de residência, participar dos assuntos de interesse público, apresentar
projetos de iniciativa popular normativa, ser consultado, fiscalizar atos do poder público, revogar
mandatos, ocupar empregos e cargos de função pública e participar de partidos e movimentos
sociais (BARALDI e GAINZA, 2013). O direito de voto concedidos à estrangeiros explicitado pela
Constituição aparece no artigo 63: “As pessoas estrangeiras residentes no Equador tem o direito ao
voto sempre que tenham residido legalmente no país por pelo menos cinco anos”. O mesmo é
contemplado e reforçado pela nova lei de mobilidade em seu 49o artigo.
231

8. Conclusão
As políticas migratórias na região Sul-americana tem mostrado um avanço promissor em
direção a uma abordagem mais humanitária do fenômeno migratório. A região passou por
transformações profundas nesse início do século XXI, modificando legislações e levantando
discussões em espaços regionais e fóruns internacionais. A análise desses casos é uma forma de
avaliar o progresso dos países em acompanhar essas mudanças e reorientar suas políticas.
O caso brasileiro é o que se mostra mais distante dos marcos internacionais e regionais no que
tange a ampliação da cidadania. Primeiro é importante ressaltar que o Brasil, junto com o Suriname,
são os dois únicos países da América do Sul que ainda não ratificaram ou assinaram a Convenção
Internacional dos Migrantes. A nova Lei das Migrações brasileira representa uma nova posição do
Estado brasileiro frente ao fenômeno migratório, mas pouco avançou na conquista de uma cidadania
ampliada para os estrangeiros residentes no país.
No caso argentino, apesar de seus avanços em estabelecer um marco normativo em
conformidade com as disposições internacionais com relação a irregularidade migratória, e
regionais com relação a uma cidadania supranacional, o país ainda enfrenta entraves burocráticos
para a efetiva execução de uma cidadania ampliada para estrangeiros. O efetivo exercício da
cidadania requer que o Estado garanta os meios pelos quais ela possa ser exercida, facilitando o
acesso a informação, à aquisição dos documentos necessário para se poder exercer o direito de voto
e a progressiva inclusão dos migrantes no espaço público.
O caso equatoriano é o mais promissor. Desde sua Constituição de 2008 até sua nova
legislação migratória de 2017, o Equador tem promovido uma agenda migratória baseada na livre
mobilidade humana, na cidadania universal, latino-americana e andina, nos direitos humanos, na
participação de emigrados na política nacional, assim como de estrangeiros residentes no país e na
não criminalização do migrante, independentemente de sua condição migratória. Sua política
migratória vai além das condições expressas na Convenção, assim como sua concepção de
cidadania, que atribui aos migrantes uma condição jurídica e política, não vinculada a situação
trabalhista. Dessa forma, a política equatoriana serve como um exemplo a região, que pode avançar
ainda mais na concretização de uma política de cidadania ampliada e na inclusão política dos
imigrantes.

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