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Universidade La Salle

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Diógenes V. Hassan Ribeiro
José Alberto Antunes de Miranda

INDÍGENAS E IMIGRANTES:
problemas jurídicos e sociais da atualidade

Universidade La Salle – Editora Unilasalle


Canoas, 2021.
SUMÁRIO

PREFÁCIO .................................................................................................................................................... 7
Diógenes V. Hassan Ribeiro; José Alberto Antunes de Miranda

NOMEAR, CLASSIFICAR, HIERARQUIZAR: A QUESTÃO TERRITORIAL E O RETORNO DO


INTEGRACIONISMO NA POLÍTICA INDIGENISTA BRASILEIRA ................................................... 11
Dailor Sartori Junior

INDÍGENAS NO BRASIL: ESTRANGEIROS EM SUA TERRA ............................................................. 22


Diógenes V. Hassan Ribeiro; Rodrigo de Medeiros Silva

CONFORMAÇÃO CONSTITUCIONAL À CAUSA INDIGENISTA ..................................................... 33


Hilbert Maximiliano Akihito Obara

URBANIZAÇÃO E POVOS INDÍGENAS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA: FLUXOS MIGRATÓRIOS,


DESLOCAMENTOS FORÇADOS E FAVELIZAÇÃO ............................................................................. 45
Isabella Cristina Lunelli; Marina Corrêa de Almeida

PRÁTICAS DE RACISMO E ANTIPOLÍTICA INDIGENISTA NO GOVERNO ATUAL ................... 60


Roberto Antonio Liebgott; Iara Tatiana Bonin

IMIGRANTES, PROTESTANTISMO E OS INDÍGENAS ....................................................................... 72


Sandro Luckmann

A BUSCA POR REGULARIZACÃO MIGRATÓRIA VS. A LETRA FRIA DA LEI: O ENCONTRO DE


UMA SOLICITANTE DE REFÚGIO COM O ESTADO BRASILEIRO .................................................. 79
Aline Passuelo de Oliveira

A COLONIALIDADE COMO OBSTÁCULO À TUTELA DOS DIREITOS DA POPULAÇÃO


MIGRANTE VENEZUELANA: UMA ANÁLISE SOBRE A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA
DA UNIÃO EM RORAIMA ....................................................................................................................... 86
César de Oliveira Gomes; Jonatan Braun Ledesma

IMIGRANTE REFUGIADO E A COLABORAÇÃO INTERNACIONAL DA UNIVERSIDADE NO


ÂMBITO DA RESPONSABILIDADE SOCIAL ..................................................................................... 100
José Alberto Antunes de Miranda; Paulo Fossatti

REDE DE APOIO LOCAL, ASSISTÊNCIA JURÍDICA E ACESSO A DIREITOS PARA IMIGRANTES


EM SANTA CATARINA ........................................................................................................................... 110
Karine de Souza Silva; Thalia Pasetto Biléssimo; Jonatan Carvalho de Borba

O ACESSO AO MERCADO DE TRABALHO NO BRASIL POR MIGRANTES COM NÍVEL


SUPERIOR ................................................................................................................................................ 123
Odisséia Aparecida Paludo Fontana; Sara Regina Naszeniak; Silvia Ozelame Rigo Moschetta
DA POLÍTICA DA DIFERENÇA À ECOLOGIA POLÍTICA: APORTES REFLEXIVOS SOBRE
A PARTICIPAÇÃO DA ETNIA WARAO NO CONSELHO MUNICIPAL DE PROMOÇÃO DA
IGUALDADE RACIAL DA CIDADE DE BELO HORIZONTE ............................................................ 132
Vagner Gomes Machado; Ana Maria Paim Camardelo
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

PREFÁCIO
Diógenes V. Hassan Ribeiro
José Alberto Antunes de Miranda

A obra ora apresentada à comunidade jurídica, e demais leitores que se interessarem, foi proposta com o
objetivo de descrever as relações - se é que existem - entre os indígenas brasileiros e os imigrantes. Constituíram
problemas para o objetivo das pesquisas inseridas no livro, exemplificativamente, (a) analisar se o indígena é um
“imigrante” no seu solo natal e original e (b) se os imigrantes enfrentam situações semelhantes às enfrentadas pelos
indígenas, como, por exemplo, a imposição do aculturamento, do assimilacionismo, e, portanto, o abandono da sua
cultura natal. Os autores, contudo, exploraram também temáticas diversas.

É certo que os imigrantes que chegaram no Brasil a partir do início do Século passado, e mesmo no Século
XIX, como se movimentaram em grandes quantidades de pessoas e receberam áreas grandes de terras em seu
proveito, como alemães e italianos, especialmente, mas também vieram poloneses e holandeses, entre outros de
outras origens, tiveram condições de manter sua cultura, pelo conjunto da população e pela forma amistosa com que
foram recebidos, além de estímulos econômicos. Assim, as pesquisas atuais não pretendem analisar estas antigas
movimentações humanas. Todavia, importantes são os dados históricos trazidos no capítulo de Sandro Luckmann,
Imigrantes, Protestantismo e os Indígenas, no qual apresenta um relato da destinação das terras do povo Kaingang
aos imigrantes europeus. As terras a eles destinadas não eram terras devolutas ou desocupadas, mas prevaleceu o
interesse geopolítico do Governo Brasileiro da época na perspectiva de colonização. De qualquer modo as pesquisas
atuais, anotada a indispensabilidade dessa análise histórica, que revela os resultados prejudiciais ainda atuais aos
indígenas, como bem menciona o Prof. José Alberto Antunes de Miranda, coorganizador e coautor, preocupam-
se com as movimentações humanas que ocorreram no final do Século passado e ainda ocorrem nestas primeiras
décadas do Século XXI.

Com relação aos indígenas brasileiros, eles ainda padecem demasiadamente com a forma perniciosa e
preconceituosa com que são tratados, nas comunidades próximas às suas aldeias, ou por integrantes de órgãos públicos
que os veem como intrusos, como pessoas que não merecem uma proteção especial. Já foi de há muito imposto o
assimilacionismo e o aculturamento, para além de abusos quanto a terras originais e que são terras indígenas.

Portanto, na primeira parte do livro, além do capítulo de Sandro Luckmann, mencionado acima, o capítulo
de Dailor Sartor Júnior, Nomear, Classificar, Hierarquizar: A Questão Territorial E O Retorno Do Integracionismo Na
Política Indigenista Brasileira, propõe-se a mapear as normas, os projetos de lei e as políticas indigenistas em curso que,
segundo o autor, colocam em xeque os direitos territoriais indígenas afirmados no paradigma do reconhecimento,
tendo como objetivo compreendê-los a partir dos discursos integracionistas que as fundamentam

No capítulo de Diógenes V. Hassan Ribeiro e Rodrigo de Medeiros Silva, Indígenas No Brasil: Estrangeiros
em sua Terra, os autores tratam sobre a diferenciação que há entre estrangeiros e imigrantes, como dos indígenas
brasileiros, em face de uma cidadania plena no país e discute as origens históricas, a colonialidade não superada, bem
como a xenofobia e preconceitos existentes, diante da eleição, como ideal, o padrão europeu de vida. Mostra, então,
que, pela visão colonial, tanto os povos originários, como imigrantes de países que foram colônias europeias não são
desejados por determinados setores conservadores da sociedade brasileira, que hoje estão à frente do Governo Federal.

O capítulo de Hilbert Maximiliano Akihito Obara, Conformação Constitucional à Causa Indigenista, o texto
propõe uma percepção constitucional, a partir da viragem linguística, em prol da causa indigenista, no sentido
de que o jurídico tenha idoneidade para amparar transformações sociais. Defende, assim, que a Constituição não

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

compactua com um eu encapsulado, formador de um nó duro, de pretensão elitista, constituidor de uma “verdade”
de superficialidade humanística, que faz crer que a violência, a segregação, a destruição, a morte e o genocídio seriam
as melhores respostas para os problemas sociais. E traz à luz, portanto, uma ideia jurídico-constitucional firmada em
igualdade de fundo, igualdade no direito a ter direitos, a festejar a diversidade, a pluralidade, a abertura ao outro, a
primar por construções dialéticas.

Isabella Cristina Lunelli e Marina Corrêa de Almeida, Urbanização e Povos Indígenas na Amazônia Brasileira:
Fluxos Migratórios, Deslocamentos Forçados e Favelização, voltam os olhos para a urbanização da floresta Amazônica,
diante dos impulsos capitalistas. Nesse contexto, o trabalho apresenta os resultados parciais de uma investigação mais
ampla sobre as consequências da expansão das fronteiras mercantis sobre a Amazônia no século XXI - atribuindo
especial atenção aos resultados encontrados sobre as recentes dinâmicas de urbanização indígena na Amazônia
brasileira. Esclarecem, as autoras, que além dos dados demográficos mais recentes indicarem um crescimento da
população indígena amazônica vivendo no meio urbano, sobretudo em áreas de periferias (“favelas”), as dinâmicas
político-econômicas no território apontam para a necessidade de identificar a diversidade de formas de inserção que
estão a ocorrer nas cidades - inclusive, descolonizando conceitos e categorias usualmente empregadas. Por meio da
metodologia multiescalar, analisam-se as causas e consequências do (neo) extrativismo e das políticas internacionais,
regionais e nacionais para a população indígena que habita e reproduz sua vida em território urbano.

Os autores Roberto Antonio Liegbott e Iara Tatiana Bonin, no capítulo Práticas de Racismo e Antipolítica
Indigenista no Governo Atual, relatam que os povos indígenas sofrem, sistematicamente, de diversas formas
de violências, e estas são praticadas tanto por segmentos da sociedade civil, quanto por instituições públicas
responsáveis por zelar pelo cumprimento dos preceitos constitucionais. Argumentam, no texto, que o
relacionamento do Estado com os povos indígenas sustenta-se no racismo, que diz respeito à promoção da
morte direta, como também ao ato de expor ao perigo e multiplicar os riscos à vida. Examinam, sobretudo, a
antipolítica indigenista do governo brasileiro, alicerçada no tripé da desconstitucionalização dos direitos, da
desterritorialização dos povos e na tentativa de integração dos indígenas à sociedade majoritária.

Na segunda parte dessa obra se destaca as questões relacionadas a imigrantes a partir de algumas reflexões
jurídicas e sociais. A proposta é chamar atenção para a importância do debate sobre imigração a partir de dados como o
apresentado pelo relatório de 2018 do Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) quando destaca que
estamos testemunhando os níveis mais altos de deslocamento já registrados no planeta. Um número sem precedentes
de 68,5 milhões de pessoas em todo o mundo foi obrigado a sair de casa. A taxa de crescimento é surpreendente, ou seja,
quase uma pessoa é forçada a se deslocar a cada dois segundos como resultado de conflito ou perseguição, sem falar por
causas econômicas. A mobilidade representa a perda muitas vezes traumática do lar e o exílio.

A questão da migração internacional passou a ser capitaneada pelo governo brasileiro em prol do
reconhecimento político internacional. A partir do ano de 2009 o governo brasileiro assume em seus discursos
de política externa a questão dos Direitos Humanos dos imigrantes. Crítica, por um lado, as restrições da União
Europeia a imigrantes latino-americanos. Por outro, sinaliza portas abertas no Brasil a imigrantes em situação que
exige a aplicação de Direitos Humanos no tratamento da migração internacional. O estranhamento e as fronteiras
são constructos relacionais. No embate entre o Estado nacional, que perde em soberania, e a economia globalizada,
que ganha em hegemonia, os migrantes têm se deparado com novas configurações de segmentação e separação.
Instituições, inclusive jurídicas, e coletivos, sejam nativos ou estrangeiros, se debatem para visualizar as novas linhas
que permitam a integração ou a repulsa do estranho ou do diferente.

Nesse sentido, Cesar Gomes e Jonatan Ledesman no capítulo intitulado A Colonialidade como Obstáculo
à Tutela dos Direitos da População Migrante Venezuelana: uma análise sobre a atuação da defensoria pública da
União em Roraima analisam em seu texto o estado da arte da política migratória do Estado Brasileiro em relação a
migrantes e refugiados venezuelanos no Estado de Roraima. Os autores verificam que algumas instituições públicas

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

brasileiras reproduzem ações discriminatórias contra aquele grupo vulnerável, maioria de ascendência indígena, que
decorrem de históricos discursos desumanizantes, consolidados a partir de uma cosmovisão eurocêntrica de mundo.

Odisséia Fontana, Sara Regina Naszeniak e Silvia Moschetta contextualizam a relação entre o fenômeno da
imigração e o acesso ao mercado de trabalho no Brasil no capítulo intitulado O Acesso ao Mercado de Trabalho no
Brasil por Migrantes com Nível Superior Para tanto, traz relatos vinculados às notícias que dão voz a essa parcela da
população. Tem como objetivo geral analisar as dificuldades encontradas por imigrantes com ensino superior de se
inserirem no mercado de trabalho formal, especialmente em sua área de formação do país de origem.

Vagner Gomes Machado e Ana Maria Paim Camardelo no capítulo intitulado Da Política da Diferença à
Ecologia Política: aportes reflexivos sobre a participação da Etnia Warao no Conselho Municipal de Promoção da
Igualdade Racial da Cidade de Belo Horizonte analisam o case da etnia Warao no Brasil, especialmente no que se
refere a sua participação recentemente assegurada junto ao Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial
de Belo Horizonte (COMPIR/BH), onde examinam as características gerais da cultura dessa etnia e a sua história
recente; o contexto e situação atual da população Warao no Brasil; o status jurídico dos indígenas Warao no Brasil; a
representatividade Warao no COMPIR/BH e por último contribuições de Enrique Leff ao caso em análise.

Karine de Souza Silva, Thalia Pasetto Biléssimo e Jonatan Carvalho de Borba evidenciam no capítulo
intitulado Rede De Apoio Local, Assistência Jurídica e Acesso a Direitos para Imigrantes em Santa Catarina a
importância da assistência jurídica prestada pela rede de apoio local em Santa Catarina para que pessoas imigrantes
tenham acesso a direitos.

Aline Passuelo de Oliveira promove no capítulo A Busca por Regularização Migratória VS. A Letra Fria da
Lei: o Encontro de uma Solicitante de Refúgio com o Estado Brasileiro uma discussão acerca da legislação migratória
brasileira a partir de um caso concreto de encontro entre uma solicitante de refúgio colombiana e o Estado brasileiro
a partir das intrincadas burocracias envolvidas na implementação das legislações que visam a regularização de
migrantes no Brasil.

Por último, Jose Alberto de Miranda e Paulo Fossatti exploram no capítulo O Imigrante Refugiado e
a Colaboração Internacional da Universidade no Âmbito da Responsabilidade Social análise sobre o papel da
universidade como ator de cooperação internacional que promove a internacionalização a partir de ações que
integrem o imigrante refugiado ao contexto da comunidade. O imigrante em situação de refúgio na universidade
pode contribuir para promoção da colaboração internacional e da interculturalidade a partir das trocas e laços que
passam a ser estabelecidos com a comunidade acadêmica e local.

Resta, ainda, os necessários e indispensáveis agradecimentos a todos que, de uma forma ou outra, auxiliaram na
organização e na produção deste livro. Agradecemos, portanto, aos autores dos capítulos, especialmente à Universidade
Comunitária da Região de Chapecó - UNOCHAPECÓ que, por meio do seu Programa de Pós-graduação em Direito
e do Programa de Mestrado em Políticas Sociais e Dinâmicas Regionais. Agradecemos também a contribuição do
Programa de Pós-graduação em Relações Internacionais e Direito da Universidade Federal de Santa Catarina.
Igualmente agradecemos à Universidade de Caxias do Sul pela contribuição do Programa de Pós-graduação em Direito,
à Defensoria Pública da União do Município de Canoas. Agradecemos pelo apoio para revisões, análise e contatos ao
Rodrigo de Medeiros Silva, também coautor de capítulo, doutorando no PPGD-Lasalle.

Agradecemos, especialmente, ao Programa de Pós-graduação em Direito, níveis mestrado e doutorado, da


Universidade LASALLE, à sua coordenadora, Profa. Renata Almeida da Costa, e ao subcoordenador, Dani Rudnicki,
pelo permanente apoio.

Por fim, agradecemos à Universidade Lasalle, nas pessoas do reitor, Ir. Dr. Paulo Fossatti, e Vice-Reitor, Ir. Dr.
Cledes Antonio Casagrande, estendendo à Editora Unilasalle, na pessoa do Editor Ricardo Figueiredo Neujahr.

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PRIMEIRA PARTE
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

NOMEAR, CLASSIFICAR, HIERARQUIZAR:


A QUESTÃO TERRITORIAL E O RETORNO DO INTEGRACIONISMO
NA POLÍTICA INDIGENISTA BRASILEIRA1
Dailor Sartori Junior 2

1. Introdução
O atual paradigma jurídico dos direitos indígenas privilegia o reconhecimento das diferenças e a titularidade
de direitos culturalmente específicos, sendo um movimento de superação das políticas integracionistas e tutelares
que permaneceram até a promulgação da Constituição Federal de 1988.

Não obstante esta virada normativa, fruto da pressão dos movimentos indígenas desde antes da Constituinte,
vive-se hoje um período de intensos retrocessos no exercício destes direitos, sobretudo no acesso, demarcação e
usufruto das terras indígenas, o que se materializa, principalmente, em polêmicos projetos de lei no Congresso
Nacional e em atos normativos inconstitucionais do órgão indigenista.

É importante considerar que tais retrocessos estão assentados em discursos sobre identidade e diferença
que estabelecem velhas oposições binárias e, assim, (re)produzem estereótipos e hierarquias de poder. Neste
sentido, medidas legislativas e administrativas são explícitas em garantir direitos apenas a certas “categorias”
de indígenas, como residentes de terras já homologadas, e negar apoio às comunidades que se encontram em
acampamentos de retomadas.

Antes de ser uma abordagem meramente equivocada ou ultrapassada, esses discursos indicam uma
compreensão assimilacionista e proposital da diferença como estática e essencialista, contrária ao paradigma
constitucional da plurietnicidade, e estão sempre conectados à pauta territorial.

Considerando este contexto, este artigo busca mapear normas, projetos de lei e políticas indigenistas em
curso que colocam em xeque os direitos territoriais indígenas afirmados no paradigma do reconhecimento, e
compreendê-los a partir dos discursos integracionistas que as fundamentam. O objetivo central é fornecer elementos
para uma abordagem geral e das entrelinhas de tais medidas, em complemento à dogmática jurídica e à análise da
constitucionalidade/inconstitucionalidade de cada ato.

2. Paradigma normativo da questão indígena no Brasil: do integracionismo à plurietnicidade


O caminho percorrido até o atual paradigma do reconhecimento, que irradia deveres de respeito e promoção
das diferenças, foi tortuoso na história jurídico-política brasileira: desde o Brasil Colônia até a promulgação da
Constituição Federal de 1988, é possível afirmar que a ideia de aculturação pautou a política oficial destinada aos
povos indígenas, seja pela dimensão mais violenta da assimilação cultural, seja pela subsequente ideia de integração
à sociedade não-indígena (SILVA, 2015, p. 34).

1 O presente trabalho foi realizado com apoio do Programa de Excelência Acadêmica (PROEX) da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001. Uma versão inicial deste
artigo foi publicada na primeira edição da revista “Vukápanávo: revista Terena” (ISSN2596-2426), periódico acadêmico
organizado por pesquisadores e pesquisadoras indígenas do povo Terena.
2 Doutorando em Direito pela UNISINOS (bolsa CAPES/PROEX). Mestre em Direitos Humanos pela UniRitter. Assessor
jurídico do Conselho de Missão Entre Povos Indígenas (COMIN). Advogado da Rede Nacional de Advogadas e Advogados
Populares (RENAP).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

A assimilação do período colonial visava a uma verdadeira aniquilação física e simbólica da alteridade, cuja
relação era pautada pela exploração da mão-de-obra através da escravidão, pela catequese agressiva como política
oficial e pelas “guerras justas” contra os povos hostis que não aderissem à fé cristã ou à entrega de seus territórios
(KAYSER, 2009, p. 144).

A transição para o integracionismo ocorreu no contexto da afirmação da modernidade eurocêntrica


como fenômeno global, marcada por um cientificismo, o Estado-nação, o individualismo e o capitalismo,
refletindo na formação oligárquica do Estado brasileiro e na posição subalterna que as coletividades nativas
teriam mesmo após a Independência.

Neste sentido, tal paradigma marcou a postura do Estado sobretudo a partir do final do século XIX, quando
as ideias positivistas e evolucionistas de desenvolvimento linear da humanidade colocavam os povos indígenas
como representantes de um estágio primitivo, sem direito à própria história, mas com direito a alguns poucos
direitos (KAYSER, 2009, p. 161). Como exemplo, o Código Civil de 1916, Lei nº 3.071, definia os “silvícolas” como
relativamente incapazes, e que o regime tutelar imposto a eles cessaria “[...] à medida que se forem adaptando à
civilização do paiz” (art. 6º).

É a partir da década de 70 que se observa na América Latina uma tendência constitucional em reconhecer as
comunidades indígenas como portadoras de identidades étnicas próprias. Apesar disso, tal constitucionalismo estava
moldado no paradigma do bem-estar social, cujo objetivo era integrar os povos indígenas ao Estado e ao mercado, por
isto pode ser entendido como “constitucionalismo social integracionista” (YRIGOYEN FAJARDO, 2011, p. 139).

Neste período, o país contou com uma legislação própria em relação aos povos indígenas e seus direitos,
inclusive territoriais. Apesar disso, o Estatuto do Índio, Lei nº 6.001 de 1973, hoje recepcionado apenas em parte pela
atual Constituição, classificava os indígenas em isolados, em vias de integração e integrados (art. 4º), e determinava
que os indígenas e as comunidades “ainda não integrados à comunhão nacional” ficariam sujeitos ao regime tutelar
(art. 7º), o que somente poderia ser liberado por um juiz a partir do atingimento dos critérios de idade mínima de
21 anos, conhecimento da língua portuguesa, habilitação para o exercício de “atividade útil” na comunhão nacional
e razoável compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional (art. 9º).

Somente no período de transição dos regimes autoritários latino-americanos, de 1982 a 1988, identificam-se
reformas constitucionais que introduzem o conceito de diversidade cultural e, consequentemente, direitos indígenas
específicos ao território, à língua, costumes e tradições, motivo pelo qual Yrigoyen Fajardo o denomina de ciclo do
“constitucionalismo multicultural” (YRIGOYEN FAJARDO, 2011, p. 141).

O processo não foi diferente no Brasil: a partir de movimentos de retomada de territórios, os povos indígenas
passaram a demandar uma relação mais direta e autônoma com o Estado, sem esperar passivamente pela ação
do órgão indigenista. Neste sentido, a União das Nações Indígenas (UNI) promoveu certa unidade política com a
mobilização “Povos Indígenas na Constituinte”, que buscava garantir uma política indigenista não mais de cima para
baixo (KAYSER, 2009, p. 189).

Assim, a política integracionista somente foi superada, no Brasil, pela promulgação da Constituição Federal
de 1988, que “[...] não repetiu o dispositivo que constou em todas as constituições republicanas (com exceção da
Constituição de 1937), que dispunha a incorporação dos indígenas à comunhão nacional” (LEIVAS; RIOS; SCHÄFER,
2014, p. 377). Mais do que isso: passou a reconhecer no art. 231 o direito à diferença e à titularidade permanente de
direitos coletivos e, no art. 232, a superação da tutela, ao reconhecer-lhes a legitimidade processual para ingressar em
juízo na defesa de seus direitos e interesses.

O destaque maior dado pelo Constituinte aos povos indígenas certamente foi o reconhecimento de sua
territorialidade própria, através da garantia do direito originário e imprescritível sobre as terras tradicionalmente
ocupadas, a posse permanente e o usufruto exclusivo dos recursos nelas existentes e o dever da União em demarcá-las.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

A transição de paradigma também é observada no sistema universal dos direitos humanos, sobretudo pela
substituição da Convenção n° 107 da OIT, de 1957, pela atual, de 1989. A OIT foi criada em 1919 com o objetivo
de melhorar as condições de trabalho no mundo. Ao olhar para os trabalhadores rurais, percebeu que grande parte
provinha dos povos indígenas, então passou a dirigir ações específicas a estes grupos. Com a necessidade de contar
com uma norma específica, aprovou a Convenção nº 107, reconhecendo o direito à terra, ao trabalho e à educação
destes grupos, mas numa perspectiva colonialista, considerando o “problema indígena” como solucionável pela via
econômica, através de obras de desenvolvimento para a integração à sociedade não indígena (IKAWA, 2008, p. 497).

Em contrapartida, o novo instrumento adotado, a Convenção n° 169 Sobre Povos Indígenas e Tribais em Países
Independentes, de 1989,3 avança significativamente no reconhecimento cultural, no direito à autodeterminação, à
consulta prévia, à territorialidade, a novas formas de participação e, inclusive, à autodeclaração como critério de
pertencimento aos grupos por ela protegidos.

Por conta desta influência na incorporação de novos direitos por países latino-americanos, a Convenção nº
169 inclui-se em outro ciclo de reformas constitucionais, o “constitucionalismo pluricultural”, presente de 1989 a
2005. Segundo Yrigoyen Fajardo, neste ciclo as Constituições“[...] introducen fórmulas de pluralismo jurídico que
logran romper la identidad Estado-derecho o el monismo jurídico, esto es, la idea de que sólo es ‘derecho’ el sistema
de normas producido por los órganos soberanos del Estado” (YRIGOYEN FAJARDO, 2011, p. 142).

O ciclo seguinte de reformas constitucionais no continente pode ser denominado “constitucionalismo


plurinacional”, cujos marcos são os processos constituintes da Bolívia (2006-2009) e do Equador (2008), bem como
a aprovação da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, em 2007. Neste ciclo, os povos
indígenas não são mais vistos timidamente como “culturas diversas” para quem o Estado reconhece direitos, mas
como nações originárias com autodeterminação que definem inclusive um novo modelo de Estado (YRIGOYEN
FAJARDO, 2011, p. 149).

Dentre as temáticas do ciclo, encontram-se novos direitos baseados nas cosmovisões indígenas, como o
direito à água, ao “bem viver” (SumakKawsay) e à segurança alimentar, além de novos sujeitos de direito, como
Pachamama na Constituição do Equador. O então chamado “novo constitucionalismo latino-americano” é “[...] um
constitucionalismo que vem das bases e é por esta influenciado, um ‘constitucionalismo desde abajo’; no qual o poder
constituinte popular se sobrepõe ao poder constituído” (WOLKMER; FAGUNDES,2013, p. 339).

Nesta transição de constitucionalismos ou de paradigmas, é possível identificar elementos jurídicos que


possibilitam uma análise de políticas, normas e leis. Rodríguez Garavito e Baquero Díaz (2015), por exemplo,
propõem uma tipologia que dialoga com os ciclos constitucionais de Yrigoyen Fajardo (2011). Em relação ao
paradigma do “liberalismo integracionista”, definem sendo aquele em que a demanda central é a liberdade e a
igualdade formal, cujo princípio norteador é a assimilação sem discriminação e o paradigma jurídico seria a
regulação. Os povos indígenas teriam o status de “objetos de políticas”, as fontes seriam as Constituições nacionais
e a Convenção 107 da OIT, e atores centrais das políticas seriam somente os governos (RODRÍGUEZ GARAVITO;
BAQUERO DÍAZ,2015, p. 41).

O paradigma do “multiculturalismo hegemônico” avançaria para uma demanda central de diversidade, mas
ainda sob a perspectiva da igualdade formal. Isto porque o princípio norteador seria da diversidade com participação,
o paradigma seria a governança entre interesses contrários na sociedade e os indígenas permaneceriam limitados a
objetos de políticas ou sujeitos de direitos meramente individuais, mediados por um órgão protetor. As fontes principais

3 A Convenção nº 169, originalmente de 1989, foi publicada no Diário do Congresso Nacional em 1993, aprovada pelo
Decreto Legislativo nº 143 em 2002 e, no mesmo ano, ratificada. Em 19 de abril de 2004 foi promulgada, através do Decreto
de Execução nº 5.051. Por fim, em 2019, através do Decreto nº 10.088, de 5 de novembro, foi consolidada, juntamente
com demais atos normativos editados pelo Poder Executivo Federal que dispõem sobre a promulgação de convenções e
recomendações da Organização Internacional do Trabalho – OIT ratificadas pela República Federativa do Brasil e em vigor.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

avançariam para as Constituições multiculturais e para a Convenção nº 169 da OIT, cuja eficácia resta limitada pela
teoria do duplo estatuto adotada pelo STF.4 Os atores centrais incluiriam, além dos governos, a OIT, organizações não-
governamentais e Cortes de Direitos Humanos (RODRÍGUEZ GARAVITO; BAQUERO DÍAZ, 2015, p. 41).

Avançando em relação às demandas centrais dos povos originários, está o que os autores nomeiam como
“multiculturalismo contra-hegemônico”. A demanda central permaneceria a diversidade, mas sob perspectiva da
igualdade material ou substancial, não apenas a formal. O princípio norteador seria o da autodeterminação, com
um senso de reparação histórica pelos prejuízos sofridos desde a colonização. Além disso, os povos indígenas
deixariam de ser meros objetos de políticas para se transformarem em sujeitos de direitos coletivos. Dentre as fontes,
acrescentam-se a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Declaração dos Direitos Indígenas
da ONU de 2007 e as constituições pluriculturais que já incorporaram avanços vindos deste paradigma. Finalizando,
somam-se aos atores centrais as próprias organizações indígenas, mas também organismos de relatorias especiais da
ONU, por exemplo (RODRÍGUEZ GARAVITO; BAQUERO DÍAZ, 2015, p. 41).

Embora existam diferenças significativas entre países no que concerne a experiências políticas e estágios
normativos, tais elementos podem funcionar como marcadores de análise das políticas, projetos de lei e jurisprudência
atuais, pois materializam de forma clara a passagem do integracionismo ao reconhecimento e, assim, permitem
avaliar eventuais retrocessos políticos e jurídicos.

3. Terras indígenas, discursos, normas e políticas do governo atual: retorno ao integracionismo?


Em entrevista para a televisão no dia 5 de novembro de 2018, já eleito, o Presidente da República dizia
novamente que sua gestão não demarcaria um centímetro de terra indígena:
Eu tenho falado que, no que depender de mim, não tem mais demarcação de terra indígena. Afinal
de contas, temos uma área maior que a região Sudeste demarcada como terra indígena. E qual a
segurança para o campo? Um fazendeiro não pode acordar hoje e, de repente, tomar conhecimento,
via portaria, que ele vai perder sua fazenda para uma nova terra indígena (RESENDE, 2018).

Na mesma entrevista, marcada por uma profunda incompreensão sobre o direito à diferença, emitiu o antigo
discurso integracionista que caracterizou a política indigenista de todo o século XX, mas que foi especialmente
acionado durante a Ditadura Civil-Militar:
“Índio é um ser humano como nós. Ele quer empreender, quer luz elétrica, quer médico, quer
dentista, quer um carro, quer viajar de avião” (RESENDE, 2018).

Dias depois, no final de novembro de 2018, voltou a proferir falas desumanizantes e contrárias aos direitos
indígenas, comparando as comunidades que residem em reservas com “animais em zoológicos”:
Sobre o acordo de Paris, nos últimos 20 anos, eu sempre notei uma pressão externa – e que foi
acolhida no Brasil – no tocante, por exemplo, a cada vez mais demarcar terra para índio, demarcar
terra para reservas ambientais, entre outros acordos que no meu entender foram nocivos para o
Brasil. Ninguém quer maltratar o índio. Agora, veja, na Bolívia temos um índio que é presidente. Por
que no Brasil temos que mantê-los reclusos em reservas, como se fossem animais em zoológicos?
[...] O índio é um ser humano igualzinho a nós. Quer o que nós queremos, e não podemos usar o

4 Com relação à incorporação de tratados de direitos humanos pelo ordenamento jurídico brasileiro, o STF firmou a chamada
“teoria do duplo estatuto”, ao julgar o Recurso Extraordinário 466.343-SP, sobre a impossibilidade de prisão do depositário
infiel. A decisão foi no sentido de reconhecer que os tratados de direitos humanos aprovados no Congresso sem o quórum
qualificado do §3º do art. 5º da Constituição, instituído somente em 2004, têm valor supralegal, ou seja, com hierarquia
superior às leis infraconstitucionais, mas abaixo da Constituição. Esta é a situação, portanto, da Convenção nº 169 da OIT
no direito brasileiro.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

índio, que ainda está em situação inferior a nós, para demarcar essa enormidade de terras, que no
meu entender poderão ser, sim, de acordo com a determinação da ONU, novos países no futuro.
Justifica, por exemplo, ter a reserva ianomâmi, duas vezes o tamanho do estado do Rio de Janeiro,
para talvez, 9 mil índios? Não se justifica isso aí (G1, 2018).

E logo após a sua posse, em janeiro de 2019, afirmou que as terras indígenas estariam longe do “Brasil de
verdade”, e que as comunidades indígenas seriam manipuladas por ONGs nas suas reivindicações por território:
Mais de 15% do território nacional é demarcado como terra indígena e quilombolas. Menos
de um milhão de pessoas vivem nestes lugares isolados do Brasil de verdade, exploradas e
manipuladas por ONGs. Vamos juntos integrar estes cidadãos e valorizar a todos os brasileiros
(AYRES; FONSECA, 2019).

Longe de significar falas isoladas de quem reproduz uma dificuldade histórica em lidar com o “diferente”, as
ideias explícitas e implícitas em tais discursos são ativamente produzidas por atos de linguagem e relações de poder,
e resultam na violação de direitos por normas e políticas concretas.

Logo no início da gestão, o Presidente da República assinou a Medida Provisória nº 870 que, ao reorganizar
a estrutura administrativa do Governo Federal, transferiu a competência da demarcação de terras da FUNAI para
o Ministério da Agricultura, e retirou o vínculo do órgão indigenista do Ministério da Justiça para subordiná-lo ao
Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.

A medida provisória acabou rechaçada pelo Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal, pois
a mudança de competência violava a finalidade do ato administrativo pela flagrante intenção de paralisar as
demarcações, jogando-as ao setor do governo dominado pelos interesses do agronegócio e explicitamente contrários
aos direitos territoriais indígenas.5

Em verdade, o movimento tentou replicar no âmbito do Poder Executivo, portanto passível de ações por
conveniência e oportunidade política, o que já vem sendo tentado há décadas no Congresso Nacional, através
de sucessivos arquivamentos, desarquivamentos e apensamentos de projetos de lei ou de alterações da própria
Constituição: primeiramente pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 215, de 2000, e depois pelo Projeto
de Lei (PL) nº 490, apresentado originalmente no ano de 2007.

Seguinte o curso de medidas polêmicas, em janeiro de 2020, o Ministro da Justiça à época devolveu à FUNAI
dezessete processos demarcatórios de terras indígenas que apenas aguardavam a sua assinatura nas respectivas
portarias declaratórias, tendo em vista a aprovação dos estudos técnicos definindo os limites geográficos. A
justificativa foi a necessidade de adequação ao hoje suspenso Parecer nº 001/2017 da AGU, que obriga a aplicação do
marco temporal nos estudos técnicos e a todos os órgãos da Administração federal.

Outra medida recorrente é a perseguição e desmobilização de equipes de servidores experientes da FUNAI


que atuam nas diretorias de demarcação de terras e principalmente de proteção a povos indígenas em isolamento
voluntário, como pode ser observado na reportagem “Funai e o descaso com os índios isolados” (LEITÃO, 2020).

Mas há outros fatos políticos e jurídicos que indicam o enfraquecimento proposital da FUNAI como órgão

5 O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) é comandado pela Ministra Tereza Cristina. Dentro da sua
estrutura está a Secretaria Especial de Assuntos Fundiários (SEAF/MAPA), comandada por Luiz Antônio Nabhan Garcia.
Além de representantes do agronegócio, ambos possuem histórico de envolvimento pessoal em disputas fundiárias com
comunidades indígenas. Como exemplo, vide a reportagem “Disputa judicial acirra conflito por terras entre índios terena
e família da ministra Tereza Cristina”, na qual é narrada a disputa dos índios sobre a área de ampliação da reserva Taunay-
Ipegue, no Mato Grosso do Sul, objeto de retomada em 2013 e declarada como de ocupação tradicional em 2016, mas que
há 150 anos é reivindicada. Ocorre que sobre esta área está a Fazenda Esperança, de parentes da Ministra, que luta na justiça
pela anulação da demarcação (SOUZA, 2019).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

legitimado a conduzir os processos administrativos das 310 terras indígenas que estão estagnados em alguma etapa
do procedimento demarcatório, assim como outras mais de quinhentas6 que ainda não tiveram nenhuma providência
do Estado para proceder com sua identificação. Tudo isto ocorre em meio à diminuição orçamentária do órgão que,
embora nunca tenha sido suficiente para a demanda enfrentada, vem caindo significativamente nos últimos anos.
Por este motivo, especialistas indicam que não se trata de escassez de recursos ou de dificuldades técnicas, mas de
decisão política do centro do governo, assim como ocorre atualmente com as políticas de (des)proteção ambiental.7

Em 16 de abril de 2020, a FUNAI editou a Instrução Normativa nº 09, que tratava da declaração de
reconhecimento de limites em relação a imóveis privados em terras indígenas. A Declaração de Reconhecimento de
Limites se destina a fornecer aos proprietários ou possuidores privados a certificação de que os limites do seu imóvel
respeitam os limites das terras indígenas, mas apenas daquelas já homologadas ou reservadas. A instrução anterior,
de nº 03 de 2012, incluía as terras em processo de demarcação, em qualquer estágio.

Logo, além de acirrar conflitos fundiários, um dos efeitos da instrução nº 9, era de possibilitar que invasores
de terras indígenas ainda não homologadas, mas em estágio avançado de demarcação, obtivessem a certificação
oficial do Estado, legitimando e consolidando a sua posse ilegal. A instrução abanou suspensa em uma série de
estados, a partir de ações das respectivas Procuradorias do MPF.

Além disso, a Procuradoria da FUNAI passou a solicitar a exclusão do órgão do polo passivo de processos
judiciais que buscam despejar comunidades indígenas de acampamentos de retomadas, sob o argumento de que o
art. 232 da Constituição Federal, que acabou com o regime tutelar, impede que pessoas ou órgãos atuem em nome
das comunidades indígenas, já que elas possuem legitimidade para litigar em nome próprio.

Nesta mesma linha, em 26 de agosto de 2020, o Presidente da FUNAI assinou ofício circular que acatou
entendimento da Procuradoria Federal Especializada, no sentido de negar assistência judicial do órgão às
comunidades que realizam retomadas:
Casos de invasão de propriedade particular por indígenas integrados não geram atuação judicial
da PFE FUNAI em prol dos grupos invasores. Isso seria fomentar futuras condenações da entidade
indigenista brasileira por apoio a essas ações ilícitas, ainda que as mesmas sejam denominadas de
‘retomadas’ e o objetivo seja forçar a demarcação territorial, que segue rito próprio previsto em
decreto presidência (SANTANA, 2020).

Talvez a norma mais explícita do léxico integracionista do atual governo foi a edição da Resolução nº 4 da
FUNAI, de 22 de janeiro de 2021, que buscava estabelecer novos critérios de “heteroidentificação”, ou seja, pelo
Estado, de quem seriam os povos indígenas no Brasil. Segundo o art. 1º, o objetivo da Resolução seria “[...]aprimorar
a proteção dos povos e indivíduos indígenas, para execução de políticas públicas” (BRASIL, 2021), ou seja, os
critérios serviriam para proteger a identidade indígena e evitar fraudes na obtenção de benefícios. Em verdade, o
restabelecimento de hierarquias e classificações entre os povos indígenas poderia facilitar a exclusão de determinados
grupos e regiões do acesso a políticas diferenciadas.

6 Essas áreas se encontram na chamada fase da “qualificação de demanda”, não prevista como fase oficial do Decreto nº
1.775/1996, na qual os escritórios regionais da FUNAI realizam avaliação prévia da verossimilhança da demarcação
reivindicada por uma comunidade indígena. Após estudos preliminares apontarem a necessidade de constituição de grupo
técnico, o que pode demorar anos, o processo é finalmente aberto e passa a tramitar na sede da FUNAI de Brasília, mais
precisamente na Coordenadoria- Geral de Identificação e Delimitação que integra a Diretoria de Proteção Territorial. A
escassez de servidores do órgão gera filas de análise das reivindicações das comunidades indígenas, o que as coloca em
estado permanente de vulnerabilidade.
7 “Nos cinco primeiros meses de 2020, a Fundação Nacional do Índio (Funai) executou o menor volume de recursos dos
últimos dez anos, em valores corrigidos pela inflação. O mesmo ocorreu com o orçamento destinado à demarcação de
terras indígenas, que além de receber mais baixo valor desde 2011, teve também a menor execução no período: apenas
R$84 mil gastos entre janeiro e maio, ou 1,18% do valor disponível para ações deste tipo” (SANTANA; MIOTTO, 2020).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Segundo a Constituição Federal e os tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil, o critério da
autoidentificação é o único critério aceito para o reconhecimento da identidade étnica, pois decorre do direito à
autodeterminação e do respeito à organização social, costumes e tradições de cada povo indígena. Ou seja: está no
plano da autonomia dos povos indígenas a definição, implícita na própria cultura, de critérios de pertencimento ao
grupo e, portanto, a capacidade de reconhecer quem são seus membros.

Essa nova postura sugere que o Governo Federal, o Congresso Nacional – através da Bancada Ruralista – e
a FUNAI, agora ocupada por agentes sem experiência no indigenismo, passaram a deliberadamente ignorar o dever
constitucional de demarcação das terras indígenas por várias frentes.

Quanto ao combate à pandemia, alguns fatos são também marcantes. A situação socioeconômica e
epidemiológica das comunidades indígenas as tornam ainda mais vulneráveis a ações e omissões que retomam
discursos, classificações e conceitos da política tutelar e integracionista do passado.

Em relação à Amazônia, o primeiro caso registrado de Covid-19 na região ocorreu em 19 março em Alter do
Chão, no Pará, levando à óbito uma liderança indígena de 87 anos do povo Borari. Como ela não morava em aldeia,
mas na cidade, o caso foi tratado como sendo de uma pessoa não-indígena.

A situação dos indígenas em contexto urbano, aqueles que vivem nas cidades e fora das terras indígenas
homologadas, é extremamente preocupante, pois a eles não é ofertado atendimento de saúde diferenciado e, se não
puderem dispor de um plano de saúde, entram na fila do SUS como não-indígenas. É o que relatou uma liderança
Tikuna de Manaus: “Os moradores aqui da comunidade têm vergonha de ir ao hospital, à UBS. Eles dizem ‘ninguém
lá me entende, ninguém me escuta’, porque temos a nossa cultura, a nossa maneira de falar. Às vezes, a pessoa não
entende o que a gente fala” (SANTOS, 2020).

Neste sentido, em entrevista ao Instituto Socioambiental, o titular da Secretaria de Saúde Indígena, Robson
Santos da Silva, confirmou que a SESAI possui estrutura para atendimento apenas aos indígenas que vivem em
terras indígenas e fora do contexto urbano, o que contraria a Recomendação nº 11/2020-MPF do Ministério Público
Federal,8 pois não há, na Constituição Federal de 1988, qualquer discriminação entre “categorias” de indígenas por
conta da sua moradia (ISA, 2020). Segundo o IBGE, dos 896,9 mil indígenas do país, 324,8 mil ou 36% viviam em
zona urbana em 2010, quando foi realizado o último censo no Brasil (IBGE, 2010).

Em monitoramento feito pela APIB na campanha Emergência Indígena, apurou- se uma série de descasos
no enfrentamento à pandemia entre povos indígenas, como hospitais querendo registrar indígenas positivados que
vivem em contexto urbano como pardos, prejudicando a coleta de dados e indicadores; aumento dos crimes de
racismo contra comunidades indígenas em pequenas cidades, por influência da postura do Governo; indígenas se
negando a realizar testagem para detectar o novo coronavírus ou a realizar tratamento devido ao racismo sofrido;
aumento dos os conflitos internos nas comunidades por conta desses novos desafios (APIB, 2020).

A omissão da FUNAI e do Governo Federal motivou a elaboração de uma lei específica para estipular
parâmetros e obrigações da política pública emergencial de proteção aos povos indígenas. A proposta dispôs sobre
medidas de proteção social para prevenção do contágio da Covid-19 e criou o Plano Emergencial para Enfrentamento
à Covid-19 nos territórios indígenas. Além das aldeias isoladas ou de recente contato, a lei se aplica a indivíduos que
vivem fora das terras demarcadas e a povos indígenas de outros países que se encontram no Brasil em situação de
migração provisória.

O projeto de lei foi aprovado apenas em junho de 2020 por ambas as casas legislativas, e o texto final seguiu
para o Presidente da República que, em 7 de julho, o sancionou com 22 significativos vetos. No texto original, havia

8 A Recomendação pode ser acessada no seguinte endereço: <http://www.mpf.mp.br/df/sala-de-imprensa/docs/


RecomendacaoSaudeIndigenaCOVID19.pdf>.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

a previsão do acesso das comunidades indígenas a uma lista de serviços a serem prestados “com urgência e de forma
gratuita e periódica” pelo poder público. Seis deles foram vetados, inclusive o acesso universal à água potável e a
distribuição gratuita de materiais de higiene.

Ao retornar ao Congresso, 16 destes vetos foram derrubadas em votação tranquila na Câmara dos Deputados
e no Senado Federal, definindo o texto final da Lei nº 14.021/2020, hoje em vigor.

Na ausência de políticas públicas emergenciais e adequadas para a proteção das comunidades indígenas,
e por conta da longa tramitação da Lei nº 14.021/2020 sem que o Governo Federal se adiantasse na elaboração de
um plano emergencial, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), junto com os partidos PSB, PSOL,
PT, PCdoB, REDE e PDT, ajuizou no STF, no dia 1 de julho de 2020, a Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF) nº 709.

A ação buscou obrigar o poder público – Governo Federal, FUNAI e Ministério da Saúde – a adotar medidas
concretas no combate à COVID-19 em relação aos povos indígenas, tanto ações quanto omissões, a fim de evitar,
inclusive, o genocídio de etnias inteiras que se encontram em isolamento voluntário da sociedade envolvente ou de
outros povos indígenas.

A medida cautelar requerida pelos autores foi deferida em parte no dia 8 de julho de 2020 pelo Ministro
relator, Luís Roberto Barroso, e no dia 5 de agosto de 2020 foi confirmada pelos demais Ministros no Plenário do
Tribunal. Antes da liminar, o Governo Federal prestou informações sobre o que vinha realizando em relação à
pandemia e os povos indígenas. Sobre tais medidas, o Ministro Barroso classificou o Plano de Contingência Nacional
para Infecção Humana pelo Novo Coronavírus em Povos Indígenas como “vago” e “meras orientações gerais”. Ainda,
a formulação das diretrizes não contou com a participação de comunidades indígenas, o que é indispensável pela
Convenção nº 169 da OIT. Por fim, sobre a orientação do Secretário de Saúde Indígena antes comentada, o ministro
destacou ser “inaceitável” a falta de prestação de saúde por meio do Subsistema Indígena de Saúde para povos
aldeados em terras ainda não homologadas.

Após a liminar, o que se seguiu foi um grande descaso do Governo Federal e da FUNAI em cumprir com
as diretrizes fixadas na decisão, consideradas mínimas diante da situação de avanço da pandemia sobre povos em
isolamento voluntário, por conta da presença de garimpeiros e de desmatadores, da vulnerabilidade epidemiológica
e socioeconômica destes grupos, que demandam normas e políticas específicas em saúde.

Tanto que o “Plano Geral para Enfrentamento e Monitoramento da Covid-19 para Povos Indígenas”,
proposto pelo Governo Federal, somente foi aprovado em sua quarta versão, no mês de março de 2021, e ainda
assim de forma parcial.

A política tutelar, o paradigma integracionista e a questão territorial estão intimamente conectadas: antes
de 1988, justamente pela tutela, as comunidades indígenas não tinham acesso por si próprias ao Sistema de Justiça,
e não possuíam mecanismos efetivos de comunicação com o poder público para reivindicar os territórios tomados
pelo avanço do agronegócio e pelos processos de colonização. Além disso, são inúmeros os relatos de violência e
expulsões cometidas pelos próprios órgãos indigenistas, SPI e posteriormente a FUNAI, intensificados no século XX
com a Ditadura Civil-Militar de 1964.

Neste sentido, o Relatório da Comissão Nacional da Verdade, publicado em 2015, traz fartos relatos que
comprovam a relação entre as violações de direitos humanos e os interesses econômicos de não-indígenas e do
próprio Estado brasileiro sobre os territórios indígenas. A espoliação das terras indígenas pelo Estado e a consequente
invasão de não-indígenas foi uma prática recorrente a partir dos anos 1930.9

9 A Comissão Nacional da Verdade (CNV), criada pela Lei nº 12.528, de 2011, e instituída em 16 de maio de 2012, entregou
em dezembro de 2014 seu relatório final à sociedade identificando as violações de direitos humanos cometidas por agentes
do Estado no período de 1946 a 1988. No volume II do relatório, foram incluídos os povos indígenas nas discussões oficiais

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Muitos territórios indígenas foram considerados como terras devolutas e outorgadas pelos Estados a
particulares por conta do art. 64 da Constituição de 1891. O próprio órgão indigenista criado em 1910, o SPI,
certificou a inexistência de índios em algumas localidades, para que então os Estados incorporassem ao seu
patrimônio e emitissem títulos de propriedade a particulares (SOUZA FILHO, 2012, p. 133).

Esta foi uma estratégia comum dos processos de colonização do interior do país, com vistas a expandir
as fronteiras agrícolas e promover o desenvolvimento, já que, no imaginário positivista, os índios deveriam ser
assimilados como trabalhadores. Souza Filho observa que as terras “deixadas” pelos índios foram juridicamente
nomeadas como “aldeamentos extintos” e transferidas à União ou a estados (SOUZA FILHO, 2012, p. 135).

4. Considerações Finais
A forma como são tratados, classificados e nomeados os povos indígenas no contexto do atual Governo,
a partir de discursos, políticas e normas, revela um jogo perverso de dominação: por um lado, garante-se certos
direitos aos indígenas “aldeados”, ou das terras indígenas já homologadas, pois estes seriam os “verdadeiros indígenas”,
segundo a visão estereotipada e colonial que tem no branco o padrão normalizado de identidade.

Ocorre que, ao fazer isso, significa estipular discursivamente que indígenas em contexto urbano, moradores
de acampamentos de retomadas seriam “integrados”, portanto não-indígenas, devendo ser tratados como cidadãos e
trabalhadores sem direitos culturalmente específicos, ou, ainda pior, como indivíduos em situação ilegal em relação
à posse das suas terras, facilitando a tomada e a exploração dos territórios reivindicados.

A chamada “etnologia das perdas” (PACHECO DE OLIVEIRA, 1998), apoiada em ideias evolucionistas, que
tende a deslegitimar os povos indígenas como sujeitos históricos, não deveria integrar o léxico das políticas públicas
sob o paradigma pluriétnico e de reconhecimento das diferenças da Constituição de 1988. Um indígena não deixa de
sê-lo por conta do que veste, do que adquire, de onde reside; não há um modelo único de sujeito em que o indígena
estaria em estágio ainda inferior, como afirma insistentemente o Presidente da República.

Como visto, identidade e diferença são produções discursivas envoltas em relações de poder, que não
simplesmente descrevem uma dada realidade. Assim, parece que a estereotipação do indígena e sua classificação
servem a alguns propósitos específicos: toda esta dinâmica está inserida nas notícias, falas e atos oficiais de não
demarcar mais terras indígenas ou de anular grande parte das que se encontram em processo de demarcação.
Para aquelas já consolidadas, parece haver a intenção da sua liberação para atividades econômicas de terceiros,
sobretudo a mineração.

O “retorno ao integracionismo” sugerido neste artigo, portanto, não ocorre somente por conta da classificação
e hierarquização dos povos indígenas, violando o direito à diferença e sua autodeterminação. Ocorre, também, pelo
objetivo de enfraquecer as demarcações e pela racionalidade extrativista do Estado e de setores da sociedade: não
demarcar aquelas em processo perante a FUNAI, sobretudo de regiões com conflitos históricos e sobreposições
dominiais, e abrir aquelas já homologadas à exploração dos recursos por terceiros, fulminando a proibição de
arrendamento e o usufruto exclusivo dos povos indígenas.

da Justiça de Transição, ao se constatar as diversas violações sofridas por muitas etnias neste período: esbulhos, extermínio,
mortes causadas por grandes obras, contágio por doenças infecto-contagiosas, prisões, torturas e maus tratos. Pelo menos
8.350 indígenas foram mortos no período (BRASIL, 2014, p. 204-205).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

INDÍGENAS NO BRASIL: ESTRANGEIROS EM SUA TERRA


Diógenes V. Hassan Ribeiro10
Rodrigo de Medeiros Silva11

1. Introdução
A legislação nacional e internacional busca proteger os imigrantes no mundo. Isto se deve à evolução do
um dia chamado direitos das gentes, direito internacional e aos direitos humanos. Mas ainda se fala em busca,
pois há uma distância entre o ser, o dever-ser, ocorrendo, de forma sistemática, a violação de direitos. É muito
comum práticas e políticas discriminatórias, fruto do preconceito, do estranhamento com o diferente, fomentando
preconceitos de toda ordem. O comércio, as novas tecnologias ajudaram a estreitar, a aproximar o mundo, porém,
as mercadorias circulam mais facilmente que as pessoas.

Segundo a Organização das Nações Unidas há uma estimativa de 10 milhões de apátridas no mundo (ONU,
2015, s/p). Isto significa uma parcela da população com enorme dificuldade de acesso a direitos, por não possuir
cidadania, um país que lhe conceda direitos e garantias e, perante aos demais, procure lhe defender. Por mais que
haja preceitos legais, sociais, religiosos e humanitários dissipados pelo mundo, estes não se sobrepõem à dificuldade
de inclusão que a maioria das sociedades possuem do diverso, do que vem de fora.

Os povos indígenas, que vivem no território brasileiro, são originários desta terra, como sua denominação
indica. Todavia, pelo processo colonial violador, terminaram por ser minoria da população. Certo que na dita maioria
do povo brasileiro, há fortes elementos culturais e genéticos destes povos, mas também por todo o preconceito e
violência, há uma negação e um intenso processo de esquecimento desta identidade. Tudo isto, fruto de um habitus
que leva a uma marcha incessante de conquista de espaço; produção e extração de commodities, atendendo a
interesses do mercado nacional e internacional. Na mesma medida em que se mantêm os expedientes de submissão
ou extermínio destes povos, para que se atendam os interesses econômicos mencionados.

O tratamento, então, conferido aos povos originários mostrou-se similar ou pior ao conferido aos
imigrantes. Certo que por muito foram tratados como cidadãos de segunda categoria, sendo isto quebrado apenas
pela Constituição Federal de 1988, ao menos formalmente. Pois, transcendo no tempo, a política de branqueamento
imposta no país traz reflexos nos dias de hoje. Ela fez e faz com que determinados imigrantes consigam mais acessos
e oportunidades de quem era original do delimitado território nacional.

Este trabalho, assim, quer provocar a reflexão e caracterizar a condição de injustiça na qual o estado
e sociedade brasileiros terminam por colocarem os indígenas no Brasil. Impelidos a uma “comunhão nacional”
totalitária, que não tolera a pluralidade de povos, culturas e línguas, com reflexos, inclusive, na preservação do meio
ambiente, por eleger uma lógica eurocêntrica de relação com a natureza. Mal que atinge de forma similar, imigrantes
com origem étnica dos países e povos, que sofreram pela colonização europeia.

10 Desembargador aposentado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, possui graduação em Direito pela Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (1987), mestrado em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2001), doutorado em
Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2006) e Pós-doutorado pelo CES - Centro de Estudos Sociais/
FEUC/ Universidade de Coimbra, Portugal (jan/2017). É professor da graduação na UNILASALLE, e do mestrado e do
doutorado no PPGD da UNILASALLE/CANOAS-RS.
11 Advogado, membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), doutorando em Direito e Sociedade na
Universidade La Salle, na condição de bolsista CAPES/ PROSUC; Mestre em Direitos Humanos pela UniRitter, Porto Alegre/RS
(2019), na condição de bolsista CAPES; é especialista em Direito Civil e Processual Civil, pelo Instituto de Desenvolvimento Cultural
- IDC, em Porto Alegre-RS (2016); e graduou-se em Direito pela Universidade de Fortaleza-UNIFOR, Fortaleza/CE (2003).

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2. Os imigrantes e o desafio da proteção de seus direitos


A Constituição Brasileira garante aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, dentre outros direitos e garantias (artigo 5º, da CF). A Lei nº
l3.445/2017 (Lei da Imigração), em seu artigo 4º, reproduz, basicamente, o trecho citado. Percebe-se daí uma primeira
dificuldade, pois para serem considerados residentes há certas exigências, requisitos, que precisam ser avaliados em
específico processo administrativo12. O visto temporário permite a residência (artigo 14, da Lei nº 13.445/2017), ou
nos casos específicos de autorização de residência (artigo 26, §8º, e artigo 30, da Lei nº 13.445/2017).

Há ainda outros instrumentos normativos de proteção. Existe a Convenção relativa ao Estatuto dos
Refugiados, de 1951. Ela foi promulgada no Brasil via Decreto nº 50.215, de 28 de janeiro de 1961. Há também,
com redação similar, a Convenção sobre o Estatuto dos Apátridas, que entrou em vigor de 1960, e garante: a não
discriminação de raça ou religião (artigo 3º); os direitos de Propriedade Intelectual e Industrial (artigo 14); o direito
de associação (artigo 15); o acesso ao Poder Judiciário (artigo 16); o acesso ao ensino básico (artigo22); a assistência
pública (artigo 23); dentre outros também concedidos a estrangeiros residentes. Esta Convenção foi internalizada via
Decreto nº 4.246, de 22 de maio de 2002. Há uma situação mais facilitada aos integrantes do MERCOSUL, referente
à Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Paraguai, Peru e Uruguai. O chamado Acordo sobre Residência do
MERCOSUL foi aqui promulgado pelo Decreto nº 6.975, de 07 de outubro de 2009.

O Brasil registrou mais de 700 mil imigrantes entre os anos de 2010 e 2018, destacando-se como as três
principais nacionalidades, que procuram o país, as de haitianos, venezuelanos e colombianos. Sendo que, de 20011
a 2019, 239.706 pessoas solicitaram refúgio, concentrando-se em venezuelanos (20.935 solicitações), sírios (3.768
solicitações) e congoleses (1.209 solicitações)

(MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E DA SEGURANÇA PÚBLICA, 2020, s/p).


(MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E DA SEGURANÇA PÚBLICA, 2019, s/p)

O número de imigrantes com carteira assinada, em 10 anos, cresceu 168%, o que demonstra uma inserção
na sociedade (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E DA SEGURANÇA PÚBLICA, 2020, s/p). Mas nem todos que buscam
refúgio no Brasil conseguem, em 2019, mais de 80 mil pessoas solicitaram esta condição, sendo reconhecida a
situação a cerca de 30 mil pessoas (ACNUR, 2020, s/p). Há uma realidade de imigrantes ilegais. E, agora, durante
a pandemia, pelas barreiras sanitárias impostas pelos países, aumentou o fluxo de imigrantes irregulares chegando
pagarem 600 reais para entrar no Brasil (RÁDIO BANDEIRANTES, 2021, s/p).

12 GOVERNO DO BRASIL. Obter Autorização de Residência. Disponível em: <https://www.gov.br/pt-br/servicos/obter-


autorizacao-de-residencia-e-carteira-de-registro-migratorio>. Acesso em: 04 ago 2021. Publicado em: 02 ago 2021.

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Importante também reconhecer que, os preconceitos enraizados no país, devido ao seu passado colônia e
escravocrata, refletem na relação com os imigrantes. Há uma receptividade bem maior das pessoas brancas e/ou de
países centrais no sistema mundo, pelo país ter uma referência cultural, predominante, eurocêntrica. As organizações
e movimentos sociais identificam, por exemplo, a dificuldade de empregos maior e uma mais intensa perseguição
da Polícia Federal aos imigrantes africanos. Muitas empresas considerariam os africanos desqualificados, ilegais e
envolvidos em práticas delitivas, como o tráfico de drogas. Entretanto, os europeus predominam entre os imigrantes
presos por tráfico de drogas no Brasil (GELEDÉS, 2013, s/p).

A imigração também significa situação irregular e de violação de direitos. O trabalho informal é uma
realidade e mais que isto, o trabalho análogo ao escravo:
Em meio à crise do coronavírus, costureiras estrangeiras passaram dois meses ‘confinadas’ em oficina
de costura, trabalhando 14h por dia e recebendo menos que o salário mínimo. Além de violações
trabalhistas, bolivianas são vítimas de violência doméstica e famílias temem serem despejadas.
[...]
A rotina era imutável. As irmãs trabalhavam de 7h às 22h, com breves intervalos para comer. Aos
sábados, das 7h às 12h. O único pagamento que receberam foi de R$ 380 — outros R$ 120 Carlos
entregou na primeira semana das jovens na casa-oficina. Aos domingos, elas limpavam corredor e
banheiro e podiam fazer duas refeições. Para acessar à internet, pagavam R$ 50. 
Além da jornada de trabalho 14 horas por dia, da alimentação precária oferecida por Carlos e do
pagamento irregular, nos quase dois meses em que as bolivianas estiveram na oficina de costura,
sair para a rua não era uma opção. Durante a semana, a mulher de Carlos dizia que as jovens
eram “muito lerdas” e que sair na hora do almoço ia atrapalhar o rendimento. Os patrões diziam
que elas precisavam “costurar mais e melhor porque foram trazidas para isso”, por entre gritos e
xingamentos, segundo os depoimentos dados aos auditores, aos quais a Repórter Brasil teve acesso.
A porta da casa-oficina ficava trancada aos domingos (LAZZERI, 2020, s/p). 

O que se depreende do quadro apresentado acima é que o imigrante não possui, de imediato, os direitos
resguardados pelo ordenamento jurídico. Além disso, apesar de direitos e garantias fundamentais serem estabelecidos
para os estrangeiros, a sua situação, formalmente, não é tão plena quanto ao cidadão pátrio. E, para além disto, há
uma distância entre o dever-ser e o ser, com muitos imigrantes encontrando-se em situações violadoras de direitos,
motivadas por discriminação, preconceito por sua origem.

3. Indígenas, cidadania incompleta em seu próprio território


Os indígenas também encontram um distanciamento, quando se observa, em face do ordenamento jurídico,
do que deveria ser e do que é realmente. A origem, muitas vezes, não declarada da diferenciação, é por não ser
reconhecida a eles a condição plena de brasileiros. A cidadania limitada, na perspectiva formal, era assim estabelecida
até a Constituição de 1988. Apesar da mudança de paradigma no atual ordenamento jurídico, isto não foi introjetado
por boa parte da sociedade, impactando, inclusive, na atuação das instituições e órgãos públicos.

O Brasil foi colonizado por Portugal, que possuía uma política de assimilação. Esta consistia em conferir acesso,
direitos e oportunidades, a partir do abandono da cultura dos povos colonizados, para a assimilação do modo de ser
da metrópole colonizadora. A assimilação, então, representa a própria relação de dominação (MACAGNO, 1996, p. 3),
com argumentos civilizatórios e/ou de catequização, por exemplo. Isto perdurou, após a independência do país.

Por isso, quando os indígenas apareceram no ordenamento jurídico, no Código Civil de 1916, foram como
relativamente incapazes, tendo que ser tutelados, só alcançando a plena cidadania quando se “adaptassem à civilização
do país” (artigo 6º, §º único). Este etapismo para se tornar sujeito de direitos foi consagrado nas Constituições que se
seguiram a este Código, impelindo a uma “comunhão nacional”, como se não fossem plenamente brasileiros, devendo

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abandonar seus modos de vida para tanto. Eram, desta maneira, como se não plenamente cidadãos brasileiros, uma
categoria disposta no limbo, possuindo determinadas proteções legais, mas tal os estrangeiros, não tendo o mesmo
acesso que os considerados nacionais.

Fatos históricos demonstram tais tratamentos, como no caso da Guerra Ofensiva aos Botocudos, decretada
por D. João VI, no início do sec. XIX, justificada, dentre outros motivos, pela não “domesticação” e aceitação da fé
cristã (SILVA, 2010, p.363). Na missiva de Duque de Caxias concordando com o massacre de Porongos, na Revolução
Farroupilha, percebe-se que diferencia em importância, quanto brasileiros, as pessoas brancas, sendo os indígenas
tratados de forma instrumental:
Caxias confiava no poder do ouro. Com poderes ilimitados e verbas consideráveis para sobrepor-
se aos “obstáculos pecuniários” que surgissem ao negociar com os líderes farrapos, ele tentou um
acordo com David Canabarro, o principal general farrapo, para terminar a guerra. De comum
acordo decidiram destruir parte do exército de Canabarro, exatamente seus contingentes negros,
numa batalha pré-arranjada, conhecida como a “Surpresa dos Porongos”, em 14 de novembro de
1844. Em suas instruções secretas para o comandante legalista da operação Caxias orientou-o
no sentido de “poupar sangue brasileiro o mais possível, particularmente de homens brancos da
província, ou índios, pois você bem sabe que essas pobres criaturas ainda nos podem ser úteis no
futuro” (CARRION, 2014, p. 26) (grifo nosso).

É fato público que o Brasil realizou uma política de branqueamento, utilizando imigrantes europeus
(LOTIERZO, 2013, p. 113). Estes terminavam por receber um tratamento melhor que os povos originários, obtendo
acesso a direitos, investimentos e créditos, para que se estabelecessem em prejuízo aos da terra, incentivando-se uma
relação de conflito e não de convívio entre os modos de vida diversos.

A ideia do caminho civilizatório para a “comunhão nacional” é tão forte, que ainda se faz presente em
algumas decisões judiciais e manifestações do Ministério Público, como pode se verificar do exemplo abaixo, um
julgado de 2016. Há o dever de proteção e promoção de direitos por parte de órgãos e instituições, que justificam,
em determinadas ações judiciais a manifestação, o litisconsórcio necessários, a denunciação à lide, o chamamento
ao processo, o amicus curiae (artigos 114, 125, 130 e 138, do CPC), etc. Mas não mais a função de tutela, com
fundamento em dispositivos não recepcionados pela Constituição Federal (artigo 232):
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO DE INTERDITO PROIBITÓRIO. FUNAI.
REPRESENTAÇÃO DOS INDÍGENAS. LEGITIMIDADE PASSIVA AD CAUSAM. O artigo 7º
da Lei nº 6.001/1973 dispõe que os índios e as comunidades  indígenas  ainda não integrados à
comunhão nacional estão sujeitas a regime tutelar, a ser exercido pela União, por meio de órgão
federal de assistência aos silvícolas. A Lei nº 5.371/1967, por seu turno, estabelece que a Fundação
Nacional do Índio (FUNAI) exercerá os poderes de representação ou assistência jurídica inerentes
ao regime tutelar do índio. Nesse contexto normativo, incumbe à FUNAI a tutela dos indígenas não
integrados à comunhão nacional, regra que não contraria a norma prevista no artigo 232 da
Constituição Federal (Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para
ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos
os atos do processo), porque somente os índios totalmente integrados poderiam defender-se de
forma autônoma, sem necessidade de intervenção (apoio) de qualquer órgão estatal. A FUNAI é
parte legítima para integrar o polo passivo da ação em que se busca impedir ocupação/interrupção
de rodovia federal, ameaçada por eventual manifestação indígena. Havendo necessidade de dilação
probatória para avaliação do nível de integração dos  indígenas  à sociedade, é prudente que se
mantenha a  FUNAI  no polo passivo da ação, medida que não contraria a Constituição Federal
(art. 232) na tutela que lhe é confiada pela lei, sobretudo quando evidenciada dificuldade para o
exercício do direito de defesa.
Processo: 5009492-71.2013.4.04.7001
UF: PR

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Data da Decisão: 08/06/2016
Orgão Julgador: QUARTA TURMA
Relatora: VIVIAN JOSETE PANTALEÃO CAMINHA
(Grifo nosso).

O Brasil exortou a extinção dos grupos diversos, mesmo que estes sejam os originais da terra, não se concebia,
de fato, uma democracia, na linha do neoconstitucionalismo, que respeitasse minorias, a pluralidade, limitando os
poderes do Estado na defesa de direitos fundamentais (CAMANDUCCI, 2009, p.75), rompendo com um positivismo
estreito, utilizado para justificar, por exemplo, os crimes contra humanidade cometidos pelo Nazismo. Não é à toa
que o Brasil articulou a retirada do etnocídio, para a aprovação do texto da Convenção para a prevenção e a repressão
do crime de Genocídio (VIEIRA, 2011, p.41). A consecução deste crime realizava a política assimilacionista.

Em determinada medida, o ideal de cidadania adotado pelo Estado brasileiro era ou é totalitário, pois só
aceita, em sua inteireza, como “brasileiros”, quem se encaixar numa determinada maneira de ser. Simbólica é a fala
do Ministro Rangel Reis, durante a Ditadura Civil-Militar, em 1976, que para impor uma determinada organização
social e econômica, previa o fim dos povos indígenas: “Os índios não podem impedir a passagem do progresso
(...) dentro de 10 a 20 anos não haverá mais índios no Brasil”(BRASIL, 2014, p.251). Todo este quadro demonstra
que, apesar destes povos serem da terra, eram vistos como não integrantes da sociedade brasileira, pelo menos não
completamente, a não ser se abandonassem suas identidades étnicas.

4. Autoritarismo e retrocessos para indígenas e imigrantes: a exclusão pela origem étnica


A partir da concepção de mundo eurocênctrica e de expansão do mercado internacional, preconceitos,
discriminações reproduzidas nos mais diversos cantos do mundo, hierarquizaram as pessoas por raças e culturas.
Haveria os indesejáveis e, em contrapartida, um modelo, um padrão a ser alcançado. Em determinada acepção,
seriam os estranhos (BAUMAN, 2017, p. 104), os diferentes, que remetem ao perigo, por isso, também, combatidos
e a eles negados direitos. É o outro marginalizado, não podendo ter voz igual, por isso o tratamento diferente perante
as leis e instituições (SIMMONS, 2011, p. 9), o que significa os tornar mais expostos à destruição física e cultural
(BAUMAN, 1998, p. 28).

Não se nega aqui a dificuldade de diversos imigrantes europeus, que viviam marginalizados, com dificuldades
materiais, pobreza extrema, justamente pela estratificação e desagregação social causada pela expansão capitalista em
escala planetária, pela revolução industrial, por guerras, que levaram a migrar para o Brasil. Da mesma forma, que todo
o esforço e trabalho empreendido nas novas terras, para alcançar, o que nas sociedades contemporâneas, entende-se
por progresso ou sucesso. Mas em sociedades calcadas por preconceitos, por lógicas colonizadoras entre dominantes
e dominados a partir da origem e cor da pele, as oportunidades, em algum momento da história, foram diferenciadas.

Por isso, que neste trabalho, ao se observar a identidade entre os povos indígenas brasileiros e imigrantes, há
de se ressaltar que, com determinados povos, que vieram de fora, o paralelo se mostra mais adequado. Pois, além de
a legislação fazer uma diferenciação com os cidadãos brasileiros natos, a cor, a cultura é outro fator que, na aplicação
das normas ou no acesso a determinados bens e locais faziam e fazem a diferença. Nascimento (p.23 e 24), ao falar
da relação conflituosa dos imigrantes europeus e seus descendentes com indígenas no Estado do Rio Grande do Sul,
mostra esta diferença de tratamento:
Com a criação da Lei de Terras, em 1850, formulou-se um novo regime fundiário para substituir o
sistema de sesmaria, permitindo o acesso a propriedade privada da terra, desde que fosse comprada
em dinheiro. Assim, o Estado, de uma forma geral, protegeu o latifúndio, o qual ampliou ainda mais
as suas imensas propriedades, vedando o acesso à terra aos escravos livres, trabalhadores nacionais
(caboclos) e imigrantes pobres.

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[...]a lei de 1850 não foi feita pensando em dificultar o acesso do imigrante à terra no Rio Grande
do Sul, visto que a terra foi distribuída gratuitamente pelo governo gaúcho para muitos colonos. O
governo facilitou empréstimos bancários, prolongando o pagamento do lote, com a primeira parcela
para três anos após sua instalação. Porém, os caboclos não obtiveram as mesmas oportunidades
dadas aos europeu e não puderam apropriar-se da terra.

A origem das pessoas possui um peso diferenciado se combinado com determinados fenótipos e culturas.
Isto perdura, estão presente na avaliação de muitos dos que estão a frente de governos e instituições. Fica claro
isto na crítica do Vice-Presidente Hamilton Mourão (MAIA, 2018, s/p), a época ainda candidato, quando criticou,
nas palavras dele, a “diplomacia que foi chamada de Sul-Sul”, de cooperação entre países emergentes, quer dizer,
os que, como o Brasil foram colonizados por europeus. Segundo Mourão isto levou o país a se ligar “com toda a
mulambada [...] existente do outro lado do oceano, do lado de cá [...]”. O mesmo pensamento sobre os povos que
foram explorados pelos países europeus, coerentemente, o Vice-Presidente Mourão também possui sobre as pessoas
descendentes, ou as próprias, de origem africana e indígena, que coaduna com a discriminação apontada neste
trabalho, pela origem/etnia:
Escolhido candidato a vice na chapa do deputado Jair Bolsonaro (PSL), o general Mourão (PRTB)
declarou nesta segunda-feira (6) que o “caldinho cultural” do Brasil inclui a “indolência” dos
povos indígenas e a “malandragem” dos negros africanos. De cunho racista, a declaração (escute
no áudio abaixo) foi feita por Mourão, militar da reserva, em um evento na Câmara de Indústria
e Comércio de Caxias do Sul (Serra Gaúcha) – no que foi seu primeiro evento público já como
candidato, informa o site da revista Veja, que divulgou a fala em primeira mão.
Na ocasião, Mourão falava sobre o subdesenvolvimento e o panorama de conflitos da América
Latina – “condomínio de países periféricos”, na opinião do general.
[...]
“E o nosso Brasil? Já citei nosso porte estratégico. Mas tem uma dificuldade para transformar isso
em poder. Ainda existe o famoso ‘complexo de vira-lata’ aqui no nosso país, infelizmente. Nós
temos que superar isso. Está aí essa crise política, econômica e psicossocial. Temos uma herança
cultural, uma herança em que tem muita gente que gosta do privilégio. Mas existe uma tendência
do camarada querer aquele privilégio para ele. Não pode ser assim. Essa herança do privilégio é
uma herança ibérica. Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena. Eu sou
indígena. Meu pai é amazonense. E a malandragem, Edson Rosa, nada contra, mas a malandragem
é oriunda do africano. Então, esse é o nosso cadinho cultural. Infelizmente gostamos de mártires,
líderes populistas e dos macunaímas”, declarou o general (CONGRESSO EM FOCO, 2018, s/p).

A “mulambada”, a que se refere o Vice-Presidente do país, são todos os indesejáveis, não condizentes com o
modelo de cidadania quisto. Referindo-se aos países nos quais a população são do Sul Global (WOLKMER, 2015,
p. 84), que não são países centrais do sistema mundo. Assim, seriam pessoas não “brancas”, com exceção feita aos
japoneses, pela importância político-econômica do Japão.

Isto fica claro, ao se observar a fala do Presidente Jair Messias Bolsonaro, em 2019, quando defendeu a
política xenófoba do Presidente Donald Trump, dos EUA (PRAGMATISMO, 2019, s/p). O Presidente Bolsonaro
(FÓRUM, 2019, s/p) já havia feito outra fala que bem demonstra quais imigrantes seriam desejados e quais não.
Criticando a seleção francesa por ser, nas suas palavras, “multirracial”, afirmou-se contra a imigração de pessoas do
norte da África, da Venezuela e do Haiti. Nesta mesma oportunidade, disse que os suecos não iam querer vir para
o Brasil, pois aqui seria um lixo, e que nunca viu “japonês pedindo esmola”, por ser “uma raça que tem vergonha na
cara”. Importante também lembrar que, seguindo a sua ideologia excludente e preconceituosa, quando deputado, em
2015, falou que “a escória do mundo” estaria “chegando ao Brasil como se nós não tivéssemos problema demais para
resolver”, apontando diretamente haitianos, senegaleses, bolivianos e sírios (CARTA CAPITAL, 2018, s/p).

Tal postura do Chefe de Estado brasileiro levou o país a sair do Pacto Global para Migrações Seguras, Ordeiras

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e Regulares (GCM), logo que iniciou o seu governo. O Pacto Global para Migração tem o intuito de fazer os países
cooperarem para enfrentar a crise migratória, visando controlar a imigração irregular, combater o tráfico de pessoas,
dentre outras ações (GARCIA, 2019, s/p). O documento foi chancelado por 193 países, estabelecendo diretrizes para
o acolhimento de imigrantes, na busca por garantir-lhes direitos humanos (BBC, 2019, s/p). Bolsonaro, ao retirar o
país do Pacto, afirmou que fez por ato de soberania, que tem que ter critério para entrar no país. Por todas as suas
manifestações em relação às migrações, infere-se que os critérios do Presidente não observam direitos e garantias
fundamentais (artigo 5º, da CF):
Mas o pacto foi percebido de maneira distinta pelo presidente Bolsonaro e seu chanceler. Em
letras amarelas sobre um fundo verde, Araújo afirmou ser o pacto “inadequado para lidar com
o problema”. “A imigração não deve ser tratada como questão global, mas sim de acordo com a
realidade e a soberania de cada país”, afirmou o ministro das Relações Exteriores pelo Twitter. O
presidente do Brasil foi além em transmissão pelo Facebook, em dezembro. “Não somos contra os
imigrantes. Mas, para entrar no Brasil, tem de ter um critério bastante rigoroso. Caso contrário, no
que depender de mim enquanto chefe de Estado, não entrarão” (VEJA, 2019, s/p).

A xenofobia e o racismo, expressados pelas mais altas autoridades do Brasil, igualam em desprezo os povos
indígenas brasileiros e imigrantes advindo do Sul Global, ou países periféricos do Sistema Mundo. O Chefe do
Executivo brasileiro, por vezes, junto com a União, por causa desta sua postura é alvo de inúmeras denúncias de
violações contra os povos originários, seja por ações e omissões.1314151617181920212223 Denúncias compatíveis com o
seu lamento de que o Exército Brasileiro não tenha dizimado os índios, como fez a Cavalaria dos Estados Unidos
(MARÉS, 2018, s/p).

Considerações Finais
A forma que o Brasil se estruturou, a partir de seu histórico colonial, calcado na ideia de supremacia da
Europa e, posteriormente, EUA, promovendo discriminação contraculturas e povos diversos, ainda impacta o
presente. Verifica-se isto, nos exemplos de falas de autoridades apresentadas no trabalho, bem como na política
que empregam a frente da administração pública, do Executivo Federal. Levando à manutenção de um tratamento
negativo, não inclusivo, seja de imigrantes de países periféricos do sistema mundo, como também da população
negra do país e de seus povos originários.

Sendo a inclusão a possibilidade de consideração social das pessoas (RIBEIRO; RIBEIRO, 2016, p. 122),
percebe-se que estrangeiros, não são plenamente incluídos, a todos os acessos e direitos, da mesma maneira de
alguém que seja brasileiro nato, ao menos na perspectiva formal do ordenamento jurídico. Esta diferenciação
existe desde os tempos antigos, por exemplo, a época das cidades-estado gregas, onde havia fortes restrições para

13 PGR denuncia Jair Bolsonaro por racismo, e Eduardo Bolsonaro por ameaças a jornalista (MPF, 2018, s/p)
14 MPF denuncia Bolsonaro e Funai por discurso de ódio contra indígenas (VERMELHO, 2020, s/p)
15 Governo Bolsonaro denunciado na ONU por violência contra indígenas (CHADE, 2021, s/p)
16 Ministério Público Federal (MPF) denuncia retrocessos do governo Bolsonaro na questão indígena (PELLICCIONE, 2021, s/p)
17 MPF denuncia indicação de ruralistas para análise da demarcação da Terra Indígena Piripkura (CLIMAINFO, 2021, s/p)
18 Com Bolsonaro, fazendas foram certificadas de maneira irregular em terras indígenas na Amazônia (FONSECA,
OLIVEIIRA, 2021, s/p)
19 ONU denuncia “escalada de violência” contra indígenas nos anos Bolsonaro (CHADE, 2021, s/p)
20 Ação contra Bolsonaro avança em Haia, e indígenas vão denunciá-lo por genocídio e por ecocídio (OLIVEIRA, 2021, s/p)
21 MPF pede direito de resposta de indígenas em live de Bolsonaro (INSTITUTO HUMANITAS UNISINOS, 2020, s/p)
22 Delegação indígena denuncia governo Bolsonaro em Fórum Permanente da ONU (MOBILIZAÇÃO NACIONAL
INDÍGENA, 2019, s/p).
23 “Estamos diante de uma política de extermínio indígena no Brasil”, denuncia assessor jurídico da Apib na ONU (CIMI,
2021, s/p).

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os estrangeiros (GODOY, 1999, p. 310). Isto seguiu e foi se adaptando a contextos, como na formação dos estados
nacionais, chegando a hoje a se defender um tratamento regular igual ao concedido aos seus próprios nacionais
(PATARRA, 2005, p. 29), o que causa reação dos setores mais xenófobos dos países.

O que este texto buscou demonstrar é que a ojeriza, o preconceito no Brasil a imigrantes, como em muitos
lugares no mundo, não é linear. Há determinados segmentos que o deslocamento e fixação no país são narrados
como uma epopeia, um romance heroico, onde há méritos, dentro de uma percepção sempre positiva. Sem negar
as dificuldades e esforços, o que se verifica é que, a depender a origem e etnia, toda uma caminhada e obstáculos
a serem vencidos, não são reconhecidos, pelo contrário. Ademais, para determinados imigrantes foram dadas
oportunidades, que a outros não e nem mesmo aos próprios da terra, os povos originários.

Foi visto que, por muito tempo, os povos indígenas foram tratados de forma diferenciada, condição
estabelecida, inclusive, pelo ordenamento jurídico, rompida com a Constituição Federal de 1988. Contudo, uma
construção social existente por tanto tempo, ficou arraigada na sociedade e instituições, dificultando a imediata
mudança de relação. Observando o momento político brasileiro, há por parte do Governo Federal, uma tentativa
de retomar o negativo tratamento discriminatório e violador, mesmo que não albergado pela atual ordem jurídica.

Isto se deve há um habitus colonial não superado, na qual a forma de se relacionar remete às concepções
de conquista, submissão e exploração. A partir de uma visão eurocêntrica, na qual as populações de suas colônias
estariam aquém do seu desenvolvimento humano e cultural. O é Habitus aqui utilizado como uma ferramenta de
interpretação (ARAÚJO, OLIVEIRA, 2014, p. 217), para esta forma de relacionar, categoria formulada por Pierre de
Bourdieu, que define práticas, num sistema de disposições duráveis e transponíveis, com preferências sistemáticas
e necessidades objetivas, fazendo correspondência entre o espaço das posições sociais e o espaço dos estilos de vida
(BOURDIEU, SAINT-MARTIN, 1976, p. 1).

A colonialidade, existente no país, despreza indígenas e imigrantes de regiões que foram colônias. Tal conduta
advém da visão eurocêntrica do que seja progresso, que elege modos de vida, fenótipos e termina por desintegrar
a condição humana, massificando (WOLKMER, 2015, p. 318), criando um modelo, um padrão, no qual as pessoas
com estas origens não seriam aceitas. A política assimilacionista dos indígenas, que confere direitos ao se negar suas
identidades, possui esta gênese, na qual só se considera cidadania, desenvolvimento, se for observado o padrão europeu
(FANON, 1968, p. 76). Daí a assertiva deste trabalho de que, numa determinada perspectiva, os indígenas são como
estrangeiros em sua própria terra, por não alcançarem os mesmos acessos e respeito a direitos, que determinados
setores da sociedade brasileira. Estaria, de fato, negada a condição de brasileiros, a cidadania plena.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

CONFORMAÇÃO CONSTITUCIONAL À CAUSA INDIGENISTA


Hilbert Maximiliano Akihito Obara 24

1. Introdução
Em um momento em que a causa indigenista ainda é invisibilizada ou vista sob uma perspectiva preconceituosa,
por boa parte da sociedade brasileira, em face de uma formação moderna de dominação eurocêntrica-colonialista-
capitalista, surge a relevância da crítica sob o ângulo da anterioridade hermenêutica-filosófica e da perspectiva social
humanística. Os standards de racionalidade hermenêuticos e a discussão sociológica do tema indigenista são aptos a
dar vazão, na “ciência do direito”, a uma igualdade de fundo, não reificante, contribuindo para novas possibilidades
transformadoras do jurídico e do social, em prol das humanidades.

O texto identifica a vinculação do modelo positivista jurídico, amparado na filosofia da relação sujeito-
objeto, com a percepção moderna colonialista, eurocêntrica e capitalista, em um enfeixamento que trabalha
para a manutenção do status quo, em detrimento da causa indigenista. Em seguida, indica uma nova perspectiva
constitucional que parte da linguistic turn com a aptidão tanto para garantir conquistas quanto permitir progressos,
de acordo com as exigências contemporâneas e democráticas adequadas à causa indigenista.

O escrito exige a investigação da ultrapassagem filosófica das perspectivas objetificantes da modernidade


para o reconhecimento de que os sentidos estão presentes somente no sujeito, em sua inserção tempo/espacial. O ser,
ao mesmo tempo que produz sentidos, também os têm limitados na sua condição temporal. Surge, daí a condição de
possibilidade hermenêutica filosófica, o dasein, do sujeito no mundo, a permitir, na intersubjetividade da semântica,
no conhecimento social, no jurídico, a construção de possibilidades democráticas, onde estão os enfrentamentos
dos grupos excluídos, discriminados e invisibilizados, que em suas resiliências e resistências participam de processos
constituidores de novas realidades.

No jurídico, partindo do pressuposto da relevância da Constituição, é traçada a viabilidade da mesma


abandonar o seu paradigma restritivo de coincidência de texto e sentido do texto para adquirir vivacidade.
Nessa vivacidade está a premissa para a relevância dos debates sociais, da discussão das causas indigenistas, da
conscientização a respeito e do empoderamento desse grupo vulnerabilizado. Sobretudo, tendo em vista a igualdade
de fundo, amparada constitucionalmente, é fomentado o debate sobre o tema indigenista, permitindo a apropriação
e aprofundamento da temática também para os juristas.

A pesquisa dirigida à causa indigenista procura averiguar a presença, no Brasil atual, de visões colonialistas
discriminatórias e estereotipadas, racionalizando sobre a superação, para que seja assumida a condição igualitária
dos indígenas e de seus povos, de conformidade com um paradigma perseguido de Constituição capaz de ter um
fito democrático efetivo. Nessa perspectiva, a participação dos indígenas, seus diversos grupos e comunidades,
adquire indispensabilidade para o desenvolvimento do Estado democrático de direito brasileiro, de modo a atender
o primado do respeito e valorização das singularidades e diferenças, para que irrompa a produção de ressignificações
constituintes, aptas a favorecer um florescimento multicultural humanístico e social.

24 Juiz de Direito no TJRS, Mestre e Doutor em Direito pela UNISINOS, Professor da Graduação e do mestrado e do doutorado
na UNILASALLE/Canoas-RS.

33
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

2. Viragem-linguística, positivismo, colonialismo e o direito indigenista: Possibilidade de


ultrapassagem do status quo.
A filosofia da relação sujeito-objeto foi por muito tempo a guia do direito, estando atrelada ao positivismo
jurídico. Na perspectiva positivista foram desenvolvidos desde paradigmas de estrita legalidade, em que havia a
pretensão de reconhecer que o texto legal traria sentidos em si aptos a solucionar todos os problemas jurídicos
(OBARA, 2019, p. 197-225), até visões arbitrariamente desprendidas do texto legal, em que as soluções podiam ser
solipsistas (OBARA, 2020b, p. 154-167).

A filosofia objetificante crê que os sentidos são propriedade daquilo que se interpreta e como tais poderiam ser
objetivamente extraídos. Percepção em que a semântica é fixa e delimitada, com o que a formulação dos textos poderia
ter um tratamento rigoroso de clareamento de sentidos a desencadear uma única possibilidade compreensiva, um
sentido universal e imutável. No segundo Wittgenstein, contudo, esses pressupostos metafísicos são ultrapassados com
o desvelamento do conceito de jogos de linguagem, em que a semântica das expressões linguísticas é sempre dependente
do contexto espaço-temporal de inserção do sujeito e de seu objetivo de utilização (WITTGENSTEIN, 1994, p. 32).

A percepção positivista legalista, ignorando a viragem linguística, em um pernicioso fechamento científico de


indiferença à história e aos fatos sociais (BAPTISTA DA SILVA, 1997, p. 194), continuou a crer que o texto legal poderia
conter um rigorismo semântico autorizativo de que todas as respostas jurídicas pudessem ser alcançadas pelo método
subsuntivo. Aos juristas caberia, então, a tarefa de buscar a “correta” interpretação, contando com a responsabilidade
dos legisladores de primarem sempre pela “clareza” da lei. No entanto, diante da insuficiência do texto legal, em face da
dinâmica vivencial, houve o apelo aos métodos interpretativos, mas, ao menos em um primeiro momento, buscando
o alcance de respostas pseudocientíficas do modelo de pretensão universal uma única verdade (GRONDIN, 2003,
p. 173), já dada desde sempre, de inspiração platônica. Nessa perspectiva seria impossível que um mesmo texto
legislativo pudesse permitir sentidos diversos em face do contexto temporal do intérprete, consequentemente a
univocidade semântica do texto constitucional propiciou o desprezo de sentidos que divergissem da fala dominante.25

O discurso legalista, da cientificidade do jurídico, apto a uma resposta exata e universalizante, cristalizou o
direito do Estado. O direito em uma perspectiva descendente, de imposição governamental. A formalidade da lei, a
sua origem estatal, era suficiente para torná-la legítima, de onde surgiu a oposição crítica ao direito do Estado pelo
Estado de direito. Na linha repreendida está uma percepção iluminista despreocupada com as humanidades, em que
o jurídico é justificado instrumentalmente, de uma visão da forma pela forma como ápice da ciência e da civilização
(OBARA, 2019, p. 197-225). Disso decorre uma concepção iluminista que fortalece a equivocada percepção
supremacista de um colonialismo insidioso, sempre presente (SANTOS, 2012, p. 24), a rechaçar quaisquer outras
produções diferentes das suas, taxando-as de obscuras. Corolário disso, há a negação de um direito desenvolvido
pelos povos indígenas e a rejeição de seus sistemas jurídicos taxados, a priori, de rudimentares.

O paradigma jurídico legalista criticado vai ao encontro do pensamento colonialista eurocêntrico, em que
é assumido o entendimento da propriedade de uma cultura superior civilizada cuja missão é levar seus avanços aos
outros povos. Ocorre que esse “processo civilizatório” parte de pressupostos equivocados, como o da desconsideração
da viragem linguística. Esse “processo civilizatório”, em um enfeixamento com as ambições colonialistas, eurocêntricas
e capitalistas, antes de promover qualquer civilidade, acabou produzindo visões classificatórias e supremacistas
de gêneros humanos, de culturas, de ordenamentos jurídicos, de significações compreensivas. Atado a essas (des)
qualificações de humanidades, na imputação da qualificação de silvícola, selvagem, de inimigo, de criminoso, ao
outro, (MBEMBE, 2018, p. 35) estiveram sempre presentes processos de genocídio, escravidão, tortura, dentre outros
tantos atentados aos direitos humanos.

25 Na proposição dos sentidos obtidos independentemente do intérprete, pré-viragem linguística, havia o obscurecimento de
uma fala autorizada. O sentido era dado inevitavelmente por um sujeito e os juristas encarregavam-se de divulgá-lo como
a vontade, espírito da lei ou outras equivalências metafísicas, de fundamento vazio (GADAMER, 1999, p. 412),

34
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Em um segundo momento do desenvolvimento positivista jurídico, em face da insuficiência da legalidade


estrita, os métodos interpretativos conduziram a uma predação do direito por elementos externos. O sujeito
do eu cogito, da filosofia da consciência, passou a ser ilimitado, inclusive pela lei e pelo direito, ignorando que
o desvelamento imprescinde do compartilhamento (HEIDEGGER, 2009, p. 127). Esse intérprete seria capaz de
alcançar sentidos, inclusive jurídicos, desconsiderando completamente a sua inserção no mundo (GADAMER,
1999, p. 436), com aptidão, portanto, para desdenhar das construções racionais jurídicas e do próprio texto legal.
Nesse paradigma o político e o moral da subjetividade passaram a dar as cartas no direito. Então, a depender do
sujeito, poderiam ser tomadas atitudes tanto favoráveis como contrárias aos povos indígenas, em uma insegurança
socialmente indesejável. De todo modo, na subserviência do jurídico ao político, a lógica é a de que aquele poder
dominante continuasse reproduzindo o velho pensamento colonialista, eurocêntrico, capitalista, com a manutenção
e quiçá reforço das práticas opressivas.

Na viragem linguística e na condição de possibilidade hermenêutica-filosófica o texto escrito continua sendo


fundamental para alcançar parâmetros seguros e desejáveis, como nas conquistas indigenistas. Porém, eventual
ausência de texto escrito não pode ter o condão de obstar avanços jurídicos nesse ou em qualquer outro campo.
Tanto é assim que em países da common law, em que o conteúdo constitucional está em decisões, sua garantia está
presente, não comportando eliminação sem uma ruptura da tradição que atingiria os fundamentos e instituições do
Estado de Direito (SANTORO, 2006, p. 228).

No caso brasileiro, de matriz da civil law, é dado ao texto legal escrito uma relevada importância, que deve ser
limitada ao fortalecimento das garantias e nunca impeditivas de avanços sociais e democráticos. De todo modo, há
espaço para aperfeiçoamentos e acréscimos legislativos, sem que possa ser ignorado que já há na Constituição escrita
postulados textuais normativos e no albergue de convenções internacionais elementos descritivos eficazes, sempre
no pressuposto da inexistência de limitação de sentidos e neutralidade da lei. Por isso, nas interpretações dos textos
legislativos e construções jurídicas constitucionais e democráticas relativas à causa indigenista são inevitavelmente
exigíveis mediações culturais (SANTOS, 2012, p. 44-46), respaldando a conscientização e a luta para a implementação
de processos de transformação da realidade brasileira.

A linguistic turn abre novos caminhos. O texto legal deixa de ser limitador em face do dasein, produtor de
sentidos, entretanto na sua inserção mundana, com relevo para a intersubjetividade como condição “existenciária”
do próprio ser (HEIDEGGER, 2012, p. 341-363), de modo que na imprescindibilidade do mundo pragmático surgem
as reivindicações de validade do conhecimento (HABERMAS, 2002, p. 352). Paradigma em que o texto continua
sendo importante e limitador dos sentidos, ao mesmo tempo em que coloca o sujeito como elemento fundamental
da interpretação, (OBARA, 2020b, p. 154-167), de modo que, no jurídico, há a preservação de conquistas, inclusive
constante de textos legislativos, bem como são possíveis novas aquisições, de forma ininterrupta. O jurídico assume,
no pertencimento de mundo do sujeito (MARMOR, 2005, p. 83), na intersubjetividade, em que estão, no plano
apofântico, os temas sociais, a responsabilidade colaborativa progressiva. Perspectiva em que as conquistas indigenistas
são não só protegidas como é desejável o reforço da conscientização sobre novas conquistas a desencadearem ações
e processos de transformação da realidade, colhendo quiçá aprendizados para uma boa convivência de todos, em
harmonia com a mãe terra (XAVIER, .2017, p. 15). Assim, surge a imprescindibilidade da discussão jurídica da
temática indigenista para efeito de uma (re)constitucionalização a respeito no Brasil.

3. Constituição vivificada e dinâmica como fundação da causa indigenista


A Constituição, no pressuposto da sua supremacia e eficácia, guiada pela filosofia da relação sujeito-objeto,
poderia dizer tudo ou nada. Seria tudo porque seus sentidos seriam conformadores de todas as leis infraconstitucionais
e nada porque o solipsismo teria o condão de ignorar a sua existência. Porém, mesmo quando pudesse dizer tudo

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

ainda seria democraticamente insuficiente diante de sua limitação a sentidos pré-dados de seu texto, em uma
paralisia prejudicial a qualquer capacidade evolutiva. A Constituição forçosamente é no ser temporal e contextual na
viragem linguística e na condição de possibilidade hermenêutica-filosófica, em uma anterioridade compreensiva a
impor o vetor de racionalidade da historicidade inevitavelmente conformadora de sentidos nas ciências do espírito
(GADAMER, 1999, p. 400). Desse modo, a questão indigenista, de extrema relevância constitucional, não pode
permanecer refém da contraproducente paralisia jurídica, do legalismo puro (OBARA, 2020a, p. 117-136), e muito
menos de retrocessos, em face da desconsideração dos marcos textuais constitucionais (OBARA, 2021, p. 61-76).

Indispensável a percepção linguística para que a Constituição alcance a vivacidade cristalizadora de conquistas
e impulsionadora de novos avanços. Nesse paradigma a Constituição e sua normatização dependem do dasein, em
que o jurista é produtor de sentidos em uma intersubjetividade inevitável, de futuros desconhecidos, mas que podem
ser guiados progressivamente (ARAÚJO DE OLIVEIRA, 1996, p. 220-221), nos limites decorrentes da tradição e
da história efeitual, da realidade histórica (GADAMER, 1999, p. 415-416). Para tanto são conjugados os standards
de racionalidade hermenênutico-filosóficos e a epistemologia do conhecimento do direito de modo a alcançar a
normatização constitucional em uma consensualidade pressuposta em dado momento fático, nem aprisionado a
um saber dominador dado desde sempre e nem refém de uma mobilidade incontrolável irracionalista/relativista
(ALVAREZ GARDIOL, 1998, p. 181-182).

A interpretação do texto constitucional decorre de leituras sempre originais. Cada leitor extrairá a compreensão
de conformidade com a sua singularidade, enquanto ser no mundo nunca idêntico a outro, em que as essências e as
experiências trazem a desejável diferença produtiva de sentidos. Até mesmo uma releitura do texto constitucional
ou de qualquer outro texto empreendida pelo mesmo sujeito é fatalmente uma nova leitura, posto que o sujeito já
não será o mesmo em sua temporalidade, como na lição heideggeriana, não muito distante da velha máxima de
Heráclito da inviabilidade de alguém banhar-se no mesmo rio duas vezes (OBARA, 2020b, p. 159-160). Todavia,
essa compreensão/interpretação do escrito constitucional, dentro dos limites impostos pela intersubjetividade, deve
ser guiada de forma progressiva, em direção aos fins humanísticos do pressuposto de abertura de um nó flexível. Por
isso, a interpretação filosófica não despreza os marcos legais, sobretudo da Constituição e dos tratados internacionais,
pois como visto os textos trazem limites significativos, e é desejável que as lutas e conquistas indigenistas estejam
presentes nesses marcos legislativos, bem como nos infraconstitucionais (TAMBURINI, 2012, p. 249-274).

O evento único de interpretar, compreender e aplicar a Constituição, no dasein, na fusão de horizontes do


pressuposto da viragem linguística e da condição de possibilidade hermenêutica-filosófica (STRECK, 2015; STRECK,
2009) traz a relevância da capacidade transformadora e da efetividade constitucional (OBARA, VIGNOCHI OBARA,
2020, p. 294-309). Nisso está o ponto de partida da afirmação de uma beleza desejável no fluir temporal, da condição
de um sujeito que habita e é habitado pelo lugar, sem abrir mão da sua condição de passageiro na fugacidade da
vida. Condição que impulsiona para uma vida que valha a pena ser vivida, de renovação, criação e fortificação de
laços humanos, em uma convergência de caminhos, em atitude de ambicionado acolhimento, de não indiferença ou
rejeição (MBEMBE, 2017, p. 247). Então, na Constituição que abriga a causa indigenista está o olhar para o rosto
do outro como alguém fundamentalmente igual, na essencialidade humana, no direito a ter direito, ultrapassando
todas as causas opressivas discriminatórias quanto à raça ou origem, enxergando que não há um outro ou um eu
opostos, mas uma diferença com potencial benéfico e produtivo comum, de uma humanidade muito mais vasta do
que pregava o colonialismo de ímpeto discriminatório purificador.

O percurso constitucional da vivacidade no implemento de conquistas, como as da causa indigenista, é


íngreme. A Constituição como fundamento social não necessariamente escrito (VERDÚ, 2004, p. 4-7) independe
da mera vontade de qualquer sujeito ou grupo de pessoas determinados, partindo da tomada de consciência e lutas
para a implementação histórica e inclusão jurídica-social. Exige a formação de uma consensualidade pressuposta
e não simplesmente posta em uma determinada conjuntura. Essa consensualidade de pressuposição estabelece um

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

ponto comum a ser alcançado em face das construções jurídicas, de uma ciência que busca uma verdade alcançável
na temporalidade, sem renunciar aos sentidos da experiência humana, na adoção da diferenciação de Hanna
Arendt (1993) entre pensamento e racionalidade, experiência e ciência, sentido e verdade. Há, dessa maneira, uma
composição aproximada da mentalidade alargada kantiana, do julgar como faculdade política, e da produção do
conhecimento jurídico, da phrónesis grega, ou discernimento, e sabedoria (ARENDT, 2016, p. 221-222), sempre na
condição da finitude. Nesse fim pressuposto e progressivo está um objetivo sempre em aberto impeditivo do vazio
decorrente do alcance da meta, razão pela qual a tarefa está inserida no tema democrático do Estado de direito
constitucional, em que o democrático é uma tarefa em incessante construção, cuja sobrevivência está atrelada a seu
poder de se inventar e reinventar (MBEMBE, 2017, p. 32).

Na Constituição vivificada e dinamizada na viragem linguística haverá sempre a busca do novo como
consequência de uma produção anterior, em uma formação histórica de significações encadeadas, de uma vivência
histórica (GADAMER, 1999, p. 578) de possibilidades para o futuro (HABERMAS, 1993, p. 25). Futuro viabilizador
de significativos ganhos no respeito e interação com a lógica indigenista, com seus princípios organizacionais de
sociedade, de marcante evolução adaptativa (SANTOS, 2012, p. 28-29). Trilha em que o jurídico e o constitucional
são desprendidos do aprisionamento legalista, da sua estagnação semântica, de um direito despreocupado e apartado
do mundo da vida, em que a questão da efetividade social é irrelevante ou de menor importância (VERDÚ, 2007, p.
148-149). Para admitir sentidos humanisticamente progressivos, de sensibilidade, abertura à alteridade e harmonia
global com o outro, com os seres sencientes e com o meio ambiente. Reside aí mais uma fundamental diferenciação
da Constituição compreendida pela filosofia objetificante, submissa a uma fala do passado, na pressuposição de que
a temporalidade e o sujeito não afetam a significação ou de uma fala que possa ser alheia a qualquer estruturação
histórica e jurídica, de um protagonismo legislativo ou judicial (OBARA, 2021, p. 114-176).

O positivismo jurídico, sobretudo na tradição da civil law, apostando na lei objetiva como resultado do
desejo do povo implementado pelos seus representantes legisladores, instalou, de fato, muitas vezes, um indesejado
exercício de poder descendente da autoridade. Nesse diagnóstico há de ser resgatada a perspectiva democrática
que exige a renovação de um jurídico de natureza ascendente, no reconhecimento de uma sensibilidade jurídica
latente na comunidade que deve florescer máxime na Constituição, acrescendo o dinamismo jurídico defendido
neste escrito, a permitir a harmonização social (VERDÚ, 2004, p. 64). O dinamismo jurídico e a harmonização
social brasileira imprescinde do estudo aprofundado das diversas experiências indigenistas, como das formações de
espécies de entidades coletivas efetivamente participativas nas tomadas de decisões e com a aproximação daqueles
que exercem cargos de autoridade com a comunidade (OSÓRIO; RODRÍGUEZ, 2012, p. 57-58). Situação que retrata
apenas uma das inúmeras possibilidades de ganhos substanciais na valorização das diferenças, que, no caso, pode
trazer a fortificação da desejável ascendência democrática.

A Constituição deve ir para além de um texto escrito para efetivamente assegurar as conquistas históricas
humanísticas, pois a coincidência de texto e sentido do texto torna o jurídico passível de retrocesso em face da
revogação ou modificação das regras jurídicas formais, de conformidade com o interesse do detentor do poder de
legislar do momento, reduzindo o direito a um mero e pernicioso nominalismo jurídico (VERDÚ, 2004, p. 246-
247). Desse modo, na sociedade é depositado o encargo de constituir-a-ação do democrático, de conscientização e
lutas por aperfeiçoamento, onde está a causa indigenista. Nela está a busca pelo reconhecimento de uma precedência
história nos territórios colonizados, de uma construção cultural ancestral cuja autonomia deve ser assegurada,
encontrando legitimidade na dimensão constituinte e democrática, para o enfrentamento de pretensões colonialistas
jurídicas e políticas do Estado moderno (SANTOS, 2012, p. 12).

Na Constituição vivificada e dinâmica há o rechaço à aceitação da regra pela regra, sem exame do conteúdo,
sem a verificação da legitimidade social e histórica material, cujo sistema legal é propício a permitir o rompimento da
tradição (ARENDT, 2016, p. 207), quando o jurídico constitucional e democrático, vivo e dinâmico, exige conquistas

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

encadeadas, com significações e ressignificações temporais. É cabível a lembrança de que o povo que aceita com
facilidade e docilmente a lei, qualquer que seja ela, pois podado de capacidade crítica, com o mesmo desembaraço
poderá ser prontamente submetido a qualquer codificação (ARENDT, 1993, p. 133). O caminho criticado é inaceitável
por estar atrelado ao imponderável do sujeito, de qualquer sujeito que alcança o poder, ao arbítrio governamental,
cujas consequências desastrosas para a humanidade trazem sempre a lembrança da lamentável tragédia nazista. Por
isso, os temas indigenistas não podem continuar sendo ignorados nesta quadra da história (VARGAS, 2012, p. 295-
379). As conquistas indígenas exigem um solo firme sob seus pés, um jurídico constitucional de justiça como virtude
e não como valor do homo faber, resultado da categoria meio e fins (ARENDT, 2016, p. 218). Enfim, justiça como
excelência da ação, de um aperfeiçoamento constante (RIBAS, 2019, p. 143), em que justiça e direito, na constituição
dinâmica (OBARA; VIGNOCHI OBARA, 2020, p. 294-309), estão em harmonia e nunca em antagonismo.

4. Constituição e concretude social: Construções normativas indigenistas possíveis e desejáveis


Na dinâmica e vivacidade constitucional a norma não é dada, mas sim construída no caso concreto de
conformidade com o fim da consensualidade pressuposta, com o que o conteúdo jurídico da norma, incorpora no
dasein, do ser histórico, todas as produções legais e jurídicas (OBARA, 2020b, p. 154-167). Sempre de modo a garantir
as conquistas adquiridas (OBARA, 2021, p. 61-76), mas também com capacidade progressiva (OBARA, 2020a, p. 117-
136). Linha em que a Constituição consegue manter as conquistas e albergar os progressos descolonizadores, em uma
percepção evolutiva de direitos em que estão inseridos os temas indigenistas (ALCOREZA, 2012, p. 425-441). Então,
surgem alguns pressupostos a serem discutidos e estabelecidos para a produção normativa vinculada à causa indigenista.

Na normatização constitucional atrelada a temas indigenistas a regra objetiva é fundamental. Nesses


dispositivos devem ser destacados os textos das convenções internacionais que adquirem status constitucional, como
a convenção 169 da OIT, a Convenção Americana de Direitos humanos, a Declaração da ONU e a Declaração
Americana sobre Direitos dos Povos indígenas da organização dos Estados Americanos (OEA). Esse arcabouço
tem aptidão para rebater as possibilidades colonialistas que levam ao extermínio e segregação, bem como as
perspectivas integracionistas, previstas em regras infraconstitucionais e nas práticas a elas atreladas. A isso é somado
o texto constitucional do art. 5º da Constituição que prevê a isonomia a exigir a abertura à alteridade, de um nós
flexível, de respeito às singularidades, inclusive culturais, sem qualquer predominância, portanto, de incentivo ao
interculturalismo (HEEMANN, 2017, p. 5-18) e a um direito de autodeterminação e de consulta aos povos indígenas,
reconhecido internacionalmente, no art. 6º da Convenção 169 da OIT e cuja semântica também pode ser integrada
ao disposto no caput do art. 215º da Constituição federal na garantia do Estado a todos do “pleno exercício dos
direitos culturais” e valorização “das manifestações culturais”.

A tradição colonialista de aversão ao indígena, amparada em uma falsa superioridade humana e cultural,
está presente em leis discriminatórias, que a pretexto de tutelar acabam por forçar o integracionismo, contrariando
o reconhecimento constitucional da igualdade do art. 5º e da plurietnicidade do par. 1º, do art. 215º, da Constituição
Federal, conforme referido. Ao que cabe o reforço de que o último dispositivo exige que o indígena seja “participante
do processo civilizatório nacional” e não alvo da “civilização”/dominação colonialista. Assim, é constitucionalmente
vital que os instrumentos de dominação colonialistas de diversas naturezas, inclusive legislativas cedam espaço para
o diálogo e intercâmbio cultural (HEEMANN, 2017, p. 6).

A Constituição democrática brasileira aponta impreterivelmente para o reconhecimento da autossuficiência


do povo indígena, amparada na capacidade coletiva e individual. Linha em que cabe o incentivo ao surgimento
de organizações populares e sociais indigenistas, aptas a construírem alianças democráticas a assegurarem a sua
participação nos processos decisórios do Estado de Direito, sobretudo em relação aos temas que lhes sejam afetos
(SANJINÉS, 2012, p. 381-406). Nessa direção, a exemplo do que ocorreu na Bolívia e Equador, esse esforço de

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

formação de movimentos sociais indígenas em alianças com outras organizações populares e sociais propiciou o
empoderamento desses grupos que eram invisibilizados pelo poder dominante, mas que, com a união, conseguiram
dar início a movimentos políticos descolonizadores e anticolonialistas, de refundação, com força para romper a
dominação eurocêntrica, caracterizando uma “segunda independência” (SANTOS, 2012, p. 13).

Os pressupostos de respeito à igualdade que desvela os simbolismos de dominação colonialista e capitalista


formam o filtro constitucional que obsta a taxação de incapacidade de alguém simplesmente por nascer no meio
indígena e o objetivo de aculturamento (integração) previstos em legislações infraconstitucionais como o art. 4º
do atual Código Civil e o art. 7º e ss. do Estatuo do índio (Lei 6.001/73). Essas imposições são inconstitucionais
por contrariarem o princípio isonômico, de uma igualdade de essência de todos os seres humanos, de um direito
a ter direitos, a propiciar uma harmonia e uma solidariedade ampliativa de um tecido social comunal e plural a
ensejar a busca por um “bem viver”. Cabe, então, retomar o conceito de “jogo de palavras” linguístico revelado
por Wittgenstein para perceber que o texto produz limites, mas deve ser interpretado de conformidade com a
contextualidade temporal. Ilustra isso o “bem viver” ou Qamaña na linguagem Aymara, como consta no preâmbulo
e em diversas outras passagens da Constituição boliviana de fevereiro de 2009, que está em contraposição ao “viver
melhor” de natureza competitiva, capitalista, às custas dos outros, a revelar o benefício que a alteridade, que a
percepção indigenista (XAVIER, 2017, p. 1-16), pode agregar ao constitucional.

A Constituição democrática, na sua qualidade de apontar sempre para as novidades progressivas, alberga
projetos de transformação da realidade, conformadores de novos momentos históricos. Modo pelo qual a segurança
e o progresso jurídico constitucional das temáticas indigenistas têm como importante o marco legal, mas não fica
limitada a ele ou a promessas políticas eleitorais, ao sabor do vento, a cada ciclo eleitoral. Há uma árdua tarefa de
longo prazo de implementação de um paradigma diverso, indigenista, contra o monopólio do saber jurídico e da
dominação cultural que há séculos está presente na sociedade brasileira. Trajeto em que, ao mesmo tempo em que é
rechaçado o integracionismo, é repudiada a colocação do povo indígena em um local de segregação, concedendo-lhe
uma autonomia indiferente, com um espaço próprio só seu, sem comunicação ou interferência no jurídico e cultural
dominante e hegemônico eurocêntrico. Há uma interculturalidade a ser implementada, com espaço para a justiça
indigenista ancestral que o colonialismo eurocêntrico demonizou e procurou fazer esquecer, mas que na democracia
constitucional é valorizada. Desse antagonismo ao velho colonialismo eurocêntrico a justiça indígena é capaz de
criar campos de tensão e afetar conceitos basilares do direito moderno como autonomia, unidade e soberania, dando
ensejo à criação de um Estado plurinacional (SANTOS, 2012, p. 14-16).

O direito colonialista teve no positivismo, em sua pretensão monopolística, o caminho para a manutenção
de sua dominação sobre os outros povos e culturas. No legalismo, sobretudo, está a defesa intransigível de um
órgão legislativo estatal como fonte exclusiva do direito. No entanto, esse paradigma de um direito exclusivamente
descendente, do ocupante de poder para o povo, deve ceder para outras possibilidades ascendente, que partam
diretamente da sociedade, do seu povo, local em que devem ser prestigiadas diversas fontes, como a do direito
indigenista. Nisso está a quebra da sonhada simetria positivista legalista do direito, por meio de normatizações
sempre originais, derivadas de construções específicas de conformidade com a singularidade de cada caso concreto,
levando em consideração a inserção contextual de mundo dos envolvidos (OBARA; VIGNOCHI OBARA, 2020, p.
294-309). Maneira pela qual é dada vazão às exigências da heterogeneidade, interna e externa ao direito, superando
contradições legislativas e estruturando as diferenças (SANTOS, 2012, p. 16-18).

A relação entre o direito indígena e o direito ordinário, neste estudo, na perspectiva da Constituição pós linguistic
turn, deixa para trás a lógica colonialista discriminatória molecular, de preconceitos eurocêntricos (MBEMBE, 2017,
93), de ocultação da diversidade, de taxação prévia de subdesenvolvimento, de uma justiça bárbara. Os modelos de
negação, coexistência à distância e reconciliação, onde respectivamente, não há reconhecimento da outra justiça, há
reconhecimento sem interações e a dominante reconhece a outra como subalterna (SANTOS, 2012, p. 33-34), são

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

deixados para trás. É pregado um paradigma convivencial, em que as interações são proveitosas para ambas, em
suas autonomias. Nisso está uma perspectiva que vai além de visões episódicas, que chamam a atenção para excessos
em comparação com a justiça ordinária, para ser pregado um olha mais amplo e aprofundado capaz de revelar os
aspectos inevitavelmente positivos de uma justiça ancestral, que remonta, na américa-latina, há pelo menos 10.000
a.C (ESCOBAR, 2012, p. 151), e que teve aptidão para cumprir seu papel de pacificação social durante largo lapso
temporal, antes das colonizações, e que continua até os dias de hoje, em muitas comunidades não alcançadas pela
justiça colonialista. Há, portanto, o inegável desejo constitucional e democrático de intercâmbio, por reconhecer que a
troca pode ensejar frutos para ambas as tradições, em face de seus desenvolvimentos históricos guiados por lógicas e
pressupostos distintos e próprios, celebrando a diversidade étnica, racial e cultural (SANTOS, 2012, p. 19-22).

As trocas jurídicas aptas a favorecer os dois lados pressupõem a igualdade humanística e cultural dos grupos
envolvidos, imposta constitucionalmente. Nisso está a conscientização da perversidade da classificação eurocêntrica
de subgrupos humanos, geradora do racismo, da reificação das pessoas e povos diversos, a justificar a dominação e o
desejo de segregação e morte como se disso dependesse a própria sobrevivência do colonializador (MBEMBÉ, 2018,
p.17-20). O pressuposto da renúncia a uma percepção de inferioridade e servilismo indígena para uma reabilitação
do poder da diversidade cultural, também no direito, na sua percepção social de um povo que é resistência, luta,
inclusive dialética, na afirmação de seus valores, a proporcionar transformação, renovação (ESCOBAR, 2012, p. 164-
181) e, portanto, reconstitucionalização traz o respeito e valorização indigenista. Nisso está plasmada a aproximação
de tradições jurídicas distintas com ganhos recíprocos, próximo do que contemporaneamente vem ocorrendo em
relação ao direito da civil law e common law denominada como interferenze orizzontali (TARUFFO, 2002, p. 89),
porém com muito mais dissemelhanças e, consequentemente, maiores possibilidades de ganhos.

Há um longo percurso a ser vencido para que haja o compartilhamento de saberes desejáveis da justiça
indígena e do direito ordinário. É preciso vencer estigmas eurocêntricos colonialistas reavivados constantemente pela
opinião pública que colocam a resistência indígena como inimiga, como um obstáculo ao desenvolvimento nacional,
demonizando-a. O reforço aos indesejados estigmas vem do capitalismo, em sua retroalimentação colonialista
eurocêntrica. A lógica desse reforço decorre da resistência que o indígena opõe ao propalado desejo de sucesso
vendido pela cultura capitalista ocidental, amparado no desejo egoístico de acumulação de riquezas, como acontece
no modo de ser, estar e proceder guarani ou Ñande Reko, em que são priorizados o respeito, a reciprocidade e o
compartilhamento daquilo que a natureza pode oferecer (XAVIER, 2017, p. 11-12).

Um embate emblemático dos interesses capitalistas e indigenistas, nos dias de hoje, está na exploração
neoextrativista. Enquanto o mercado não enxerga limite para o aproveitamento da natureza a causa indigenista
traz uma defesa ambiental. Nesse enfrentamento as forças capitalistas imputam um falso atraso e ignorância aos
indígenas, buscando minar o seu hercúleo esforço em prol do meio ambiente (SANTOS, 2012, p. 31-33). Nessa
empreitada há marcante exemplo do quanto é possível aprender com a causa indigenista. É revelada uma percepção
de vida coletiva, com maior valorização do diálogo com a natureza, em uma forma diferente de ser com o outro,
de ser livre, de conviver, das relações entre os povos, a demonstrar uma visão muito mais ampla, uma cosmovisão
(ESCOBAR, 2012, p. 152-161) que foge da lógica do lucro a qualquer custo, da sede pelo poder, pela dominação e
submissão do outro e da natureza, em uma espécie de “bancocracia”, no equívoco de colocar o lucro como o objetivo
maior do homem (NUSSBAUM, 2015, p. 142-144).

É necessário perceber que, muito em razão do preconceito colonialista, ainda é pouco conhecida a produção
cultural e jurídica indigenista, mesmo em linhas gerais, com rasa exploração de sua ancestralidade e no que interessa
sobremaneira neste estudo, nas suas relações intersubjetivas e intercomunitárias, em uma forma diversa da capitalista
de coabitar, coexistir e compartilhar (ALCOREZA, 2017. p. 11-18). Existe um farto campo de estudo a explorar
a complexidade e diversidade dos povos indígenas. Apesar de uma visão geral que possa ser extraída de alguns
aspectos comuns, há muitos ganhos a serem alcançados em aprofundamentos ainda não realizados em dimensões de

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

relevo, sobretudo no que toca a heterogeneidades e hibridizações. Porém, para tanto, deve ser deposta a pretensão
de superioridade colonizadora, para que um processo constitucional de prestígio dos temas indigenistas, da justiça
indígena, seja alcançado, ultrapassando a perspectiva positivista de direito, em que a Constituição pode guiar a
coordenação, convivência e interação para a formação de uma interlegalidade e híbridos jurídicos de saberes que
enriquecerão ambas as justiças (SANTOS, 2012, p. 35-37).

Há no constituir-a-ação deste artigo, a ultrapassagem do modelo legalista positivista de carta constitucional


para admitir a incessante refundação constituinte do Estado, atento a uma realidade nacional. Ótica em que é dada voz
a grupos oprimidos, marginalizados e invisibilizados, como o dos povos indígenas, em uma conscientização e luta por
processos de transformação social atreladas à diversidade identitária, étnica e cultural. Desse modo, é abandonado o
modelo de tradição fechada e de pretensão supremacista, de fundo colonialista eurocêntrico, monocultural, para valorizar
a experiência indígena (SILVA JUNIOR; CAMPOS, 2018, p. 151-184). O experiencial indigenista traz significações e
ressignificações constitucionais democráticas, embasado precipuamente em verdadeira igualdade, em um princípio
que ganha um conteúdo de fundo a proteger as diferenças, com o que, de fato, será possível uma efetiva participação
decisória coletiva, indígena e não indígena, em todas as temáticas de interesse do Estado de direito brasileiro.

5. Conclusão
A linguistic turn e a condição de possibilidade hermenêutica-filosófica desobstruem o desenvolvimento e
o progresso da temática e da causa indigenista no direito. Na inevitabilidade do dasein, no desvelamento de que o
texto não possui sentidos embiocados em si, o ser no mundo, inserido na sua contextualidade temporal, deve buscar
a validade do conhecimento jurídico na intersubjetividade pressuposta. Desse modo, a Constituição e os demais
textos legislativos infraconstitucionais têm o condão de garantir conquistas e amparar novos avanços democráticos.

A Constituição dinâmica, pós-viragem linguística é diversa da percepção aprisionada à relação sujeito-


objeto. Os vetores racionais hermenêutico-filosóficos elucidam que os sentidos são sempre do intérprete em face
do texto. Inexistem métodos interpretativos aptos a extrair sentidos técnicos unívocos. A metafísica de sentidos
unívocos extraíveis do texto causa a paralisia constitucional. Por outro lado, a viragem linguística também identifica
limites semânticos a permitir a comunicação. A palavra em suas finitudes significativas rejeita, portanto, sentidos
arbitrários da mesma leitura. Residem aí os parâmetros norteadores da capacidade de ressignificação do mesmo
escrito a atribuir a dinâmica constitucional textual.

No estabelecimento de limites aos sentidos das palavras é estabelecido o porto seguro semântico. Os
sentidos, portanto, não podem contrariar ou ir além das fronteiras significativas delimitadas pelas palavras. Por
isso, é indispensável para a interpretação adequada o que se insere e o que se exclui do texto constitucional,
tanto quanto o contexto fático temporal de inserção do intérprete, sem descuidar da tradição. Por isso, os marcos
legislativos em prol da causa indigenista são relevantes, mas a ausência deles não é impeditiva do reconhecimento
jurídico de suas conquistas sociais.

A partir do texto devem ser buscadas as possibilidades progressivas interpretativas finitas, temporais. Isso é,
existe a necessidade de um contínuo caminhar, de uma ininterrupta evolução. Inviável é a pretensão universalizante,
imutável, de significações perfeitas e acabadas, como já se imaginou um dia, sobretudo no positivismo legalista
moderno. O jurídico deve buscar a adequação social, onde está incorporada a consideração das culturas distintas,
pertencentes ao mesmo sistema constitucional, a justificar a valorização da causa indigenista. O intérprete como ser
histórico e contextual traz a diferenciação de sentidos, indispensavelmente em face de suas relações intersubjetivas,
pressuposto em que, no jurídico, estabelecerá os sentidos normativos cabíveis. A normatividade jurídica dos povos
indigenistas é desenvolvida identicamente, porém considerando inevitavelmente a sua diversidade contextual
e histórica cultural, extraindo as significações que lhes são próprias. Assim, é indefensável qualquer pretensão

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

dominante e hegemônica externa, muito antes o contrário, há de ser promovido o diálogo e a busca de convergências
em prol de interesses comuns.

Há um ponto comum de partida das normatizações indígenas e não indígenas que está na Constituição. Na
contemporaneidade de relevância da Constituição e das convenções internacionais, está a busca de concretização
de princípios de dignidade da pessoa humana para todos. Para que esses princípios não fiquem apenas no papel ou,
pior, sejam utilizados como ferramentas para justificar atos de dominação, guerra e destruição, mais do que nunca,
é de ser acolhida e valorizada a diversidade. Então, das fontes da convencionalidade e da constitucionalidade, com
atenções humanísticas, devem ser traçados novos percursos do Estado democrático de direito brasileiro, pautados
pelo respeito à pluralidade cultural, ao desejo de pacificação e de percepção fraterna do outro, sempre priorizando e
promovendo o diálogo para vencer as dificuldades comuns.

Nas situações em que uma mesma Constituição abarca a cultura indígena e não indígena, como no caso do
Brasil, é imprescindível a instauração de um diálogo intercultural, com base em uma condição de descolonização,
para que sejam alcançadas metas verdadeiramente exitosas no sentido democrático. Nisso está indispensavelmente
a abertura ao outro, ao seu ser e ao seu modo de viver, promovedor de um nó, flexível capaz de superar o medo e a
aversão ao diferente, geradores de discriminações invisibilidades e perniciosos desejos de segregação e destruição.
Esses nós, sensível, cósmico, enxerga caminhos humanísticos e democráticos inéditos que só a diferença é capaz de
trazer. Nele há a percepção de que o olhar do outro, antes de tudo, é transformador, enriquecedor, promovedor da
dinâmica inevitável da condição finita de todos. Enfim, na condição de todos como passageiros o melhor é aproveitar
a viagem, na receptividade fraterna à diversidade e riqueza que somente o outro pode proporcionar.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

URBANIZAÇÃO E POVOS INDÍGENAS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA: FLUXOS


MIGRATÓRIOS, DESLOCAMENTOS FORÇADOS E FAVELIZAÇÃO
Isabella Cristina Lunelli 26
Marina Corrêa de Almeida 27

1. Introdução
Há múltiplas dimensões para se abordar a Amazônia, vinculando-se, cada qual, a narrativas determinadas e
consequências diversas, apreendendo e descrevendo uma realidade. Seja em escala local, regional ou mundial, o que
se constata é uma prevalência dos discursos e práticas econômicas e ambientais sobre o espaço, deixando à margem
das discussões as interações com os povos indígenas, que as extrapolam. São discursos e políticas que não enxergam a
realidade sociocultural existente neste território, e não tomam em conta as “relações sociais que o constroem, o destroem,
o inventam e o reconstroem num processo que supõe conflitos, contradições e lutas dos sujeitos” (OLIVEIRA, s/d, p. 1).

O tema da urbanização da Amazônia brasileira, quando relacionado aos povos indígenas, é ainda pouco
discutido. De fato, a presença indígena nas cidades amazônicas brasileiras é um fenômeno antigo, podendo-se
afirmar que o próprio surgimento dessas está diretamente relacionado à presença indígena desde os tempos coloniais.
Mesmo assim, insiste-se num pré-conceito das cidades como um “não-lugar” (ASSIS, et al., 2019). Com suas áreas
de ocupação florestais diminuindo, aos indígenas sobram os estigmas e pré-conceitos que tendem a projetar sobre
eles, corriqueiramente, uma imagem e um senso comum que os afasta das discussões sobre o espaço urbano. Como
consequência, a ausência de instrumentos vinculados à inclusão e participação social na ação pública, assim como seu
planejamento e monitoramento, traz consequências na proteção de seus direitos nas cidades e à cidade.

Nesse contexto, este trabalho apresenta os resultados parciais de uma investigação mais ampla sobre as
consequências da expansão das fronteiras mercantis sobre a Amazônia no século XXI, na qual se analisou as dinâmicas
de urbanização da população indígena em cidades brasileiras da região amazônica.28 Ao se acompanhar o avanço das
fronteiras capitalistas sobre a floresta e as terras indígenas vêm incidindo nesse início de século XXI na urbanização
dessa população, as dinâmicas político-econômica no território amazônico apontam para a necessidade de identificar a
diversidade de formas de inserção desse setor da população nas cidades, inclusive, descolonizando conceitos e categorias
usualmente empregadas.

26 Doutora em Direito, Política e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (PPGD/UFSC). Pesquisadora do
Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Prévio, Livre e Informado e Coordenadora do
Subprojeto Jurisprudência sobre Consulta Prévia e Protocolos Autônomos (PUCPR/ Convênio Ford Foundation) e integrante da
equipe da Indigenous Peoples Rights International (IPRI) no Brasil. É pesquisadora associada do Instituto de Pesquisa, Direitos e
Movimentos Sociais (IPDMS) e advogada membra da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP).
27 Doutora em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Nacional Autônoma do México (UNAM, México). Pesquisadora
no Programa Universitário de Direitos Humanos da Universidade Nacional Autônoma do México (PUDH/UNAM) (2020-
2021). Membra fundadora da Associação Nuestroamericana de Estudios Interdisciplinarios en Crítica Jurídica, a.c. (ANEICJ,
México). Integrante da Rede Internacional de Pesquisadores: Direito, Luta de Classes e Reconfiguração do Capital. E-mail:
marinacacalmeida@hotmail.com
28 A pesquisa foi realizada no marco da convocatória do Conselho Latino-Americano de Ciências Sociais (CLACSO)
“Expansão mercantil capitalista e a Amazônia como nova fronteira de recursos no século XXI”. Com o título “Favelas
Indígenas na Amazônia Brasileira: análise de dois processos de urbanização da população indígena e acesso a políticas
públicas diferenciadas nas periferias das cidades de Manaus, Altamira e São Gabriel da Cachoeira”, a pesquisa buscou
problematizar os processos de “favelização” da população indígena em decorrência da expansão mercantil capitalista sobre
a Amazônia brasileira entre os anos 2003-2020 (LUNELLI; ALMEIDA, 2021).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Para a execução da pesquisa, empregou-se metodologia multiescalar para verificar as consequências do (neo)
extrativismo e das políticas internacionais, regionais e nacionais para a população indígena que habita e reproduz
sua vida em território urbano, dentro de uma espaço territorial e temporal específico. Quanto às técnicas de pesquisa
empregadas, para essa etapa do estudo, foram utilizadas a revisão bibliográfica, organização e análise de dados e
documental.

Dessa forma, esse capítulo se estrutura em três partes. Inicialmente, caracterizam-se as dinâmicas demográficas
da urbanização indígena na amazônia brasileira a partir das informações obtidas extraídas dos dados censitários.
A seguir, apresenta-se uma revisão dos estudos sobre povos indígena nas cidades, indicando as múltiplas situações
de urbanidade passíveis de serem identificadas. E, posteriormente, expõe-se considerações sobre as categorias de
análise da urbanização indígena, como fluxos migratórios, deslocamentos forçados e favelização. Por fim, tece-se
conclusões acerca do processo de urbanização que estão sujeitos os povos indígenas atualmente na região amazônica
do Brasil.

2. Dinâmicas demográficas da urbanização indígena na Amazônia brasileira


Em que pese haver referência à existência dessa população em território brasileiro desde o início da invasão
dos povos ocidentais e da conquista portuguesa, estendendo-se de forma lacunosa durante toda a fase imperial e
republicana, foi somente a partir do Censo Demográfico de 1991 (seguidos pelos Censos de 2000 e 2010), que os e as
indígenas passaram a ser localizados na população nacional utilizando-se o critério da autodeclaração.29 E, somente
no Censo realizado em 2010, por meio da autodeclaração da identidade étnica desses - “etnia de pertencimento” - e
de suas línguas, foi possível conhecer a diversidade cultural intrínseca à caracterização indígena.

A publicização de dados sobre a população indígena permitiu não só um avanço na caracterização étnico-
racial dessa parcela populacional brasileira, mas também contribuiu ao progresso das pesquisas socioambientais no
país, bem como à possibilidade de definições de novas práticas de planejamento da política indigenista – marcadas essa
última, sobretudo, pelo desafio de superação das práticas integracionistas. Além disso, a constatação da pluralidade
cultural trouxe inúmeros desafios à gestão governamental, dada as especificidades e dinâmicas próprias de cada
povo e a necessidade de se evitar uma totalização na análise desses dados. Isso porque, a respeito dos últimos dados
censitários nacionais divulgados (IBGE, 2010), pode-se conhecer a existência de uma população indígena de 817.963
indivíduos (homens e mulheres), pertencentes a 305 povos distintos culturalmente que, juntos, representavam 0,4%
da população nacional.

Os dados oficiais têm demonstrado, de uma forma geral, uma importante “recuperação” demográfica da população
indígena nessas últimas décadas, contrariando a visão de que o indígena era uma categoria racial transitória, fadada à
extinção. Nesses trinta anos, o que se verificou, de fato, foi um aumento significativo da população indígena atribuído a
diversos fatores,30 como o próprio aperfeiçoamento da coleta de dados, a melhoria das condições de vida (elevada taxa de

29 Conforme Silva e Lunelli (2019, p.10): “no recenseamento de 1872, primeiro levantamento estatístico demográfico registrado,
a aplicação da categoria caboclo recaía aos indígenas e a seus descendentes como critério de descendência racial e a de pardo
os descendentes da miscigenação de brancos e pretos. No Censo Demográfico de 1940, elimina-se a categoria caboclo e passa
a classificar os indígenas na categoria de pardo. O Censo Demográfico de 1960, além de reproduzir a categoria pardo como
sinônimo de mestiçagem, incluiu a primeira utilização da categoria índio. Contudo, essa categoria era aplicável apenas para
indígenas localizados em áreas de aldeamento ou postos indígenas, permitindo a delimitação de sua distribuição geográfica e
a localização de aldeamentos indígenas. Constatada a inexistência de dados específicos sobre os indígenas dentro do território
nacional para direcionamento de políticas públicas e atendendo a demanda de especialistas, de organismos internacionais
e movimentos sociais, em 1991, o IBGE altera o critério de atribuição étnica e passa a atuar com a autodeclaração dos
entrevistados, sempre que possível, incluindo a categoria de “indígena” como uma das opções elencadas no quesito cor/raça”.
30 A população indígena teve um aumento significativo de 267% em 20 anos, passando de 306.245, em 1991, para 734.131, em
2000, e 817.963, em 2010. (IBGE, 1991; IBGE, 2000; IBGE, 2010).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

fecundidade e diminuição da taxa de mortalidade), ou mesmo diante do fenômeno social observado na politização da
etnicidade - que também se denominou de “emergência indígena” ou “etnogênese” (BENGOA, 2007; OLIVEIRA, 2011).

Ao se aprimorar a coleta de dados, além da diversidade étnica e linguística, como destacado, outras informações
foram trazidas à conhecimento e debate, como o quantitativo da população indígena residente em terras indígenas e a
distribuição domiciliar por zonas rurais e urbanas. Nos estudos que seguiram a publicação dos dados pelo IBGE (2010),
se evidenciou tanto o número de indígenas com domicílio em terras indígenas (517.383, aproximadamente 64% da
população), quanto aqueles com domicílio fora de terras indígenas (379.534, 46% da população).31

Nos dados nacionais de 2010, registrou-se que 25.963 indígenas mantinham o domicílio de forma permanente
dentro de terras indígenas urbanas e 298.871 viviam fora de terras indígenas urbanas. Aquém das hipóteses em
que as terras indígenas foram demarcadas dentro do perímetro urbano ou mesmo de que a expansão dos limites
geográficos das cidades passou a incorporar terras indígenas, sabe-se que 95% dos indígenas nas áreas urbanas não
mantinham domicílio em terras indígenas. Em 2010, 36% da população indígena brasileira vivia em zonas urbanas
e fora de terras indígenas.

Com base ainda na distribuição domiciliar, também se verificou a crescente presença da população indígena em
zonas urbanas;32 tomando como referência os anos de 1991 e 2010 - período em que a localização do domicílio indígena
começou a ser monitorado e o último censo realizado - de uma forma geral, pode se afirmar que ao se considerar a situação
do domicílio indígena, a proporção da população indígena em áreas rurais diminuiu e em áreas urbanas aumentou.33

Nesse período (1991-2010), enquanto a população indígena em áreas rurais caiu de 75,8% para 61,5%, efeito
contrário ocorria nas áreas urbanas, que viram um crescimento da população indígena de 24,2% para 38,5%. Em
números absolutos, a população indígena em áreas urbanas quadruplicou (4,43), enquanto a população indígena em
áreas rurais duplicava (2,25). Destaca-se que o aumento da população indígena em áreas urbanas teve incidência direta
sobre o crescimento da população em números absolutos (2,45), que mais que dobrou nesse intervalo de 30 anos.
Mapa 1 e 2 – População indígena em áreas urbana (IBGE, 1991 e 2010))

Fonte: IBGE, 1991, 2010 - Disponível em: <https://indigenas.ibge.gov.br/downloads.html>.

31 Necessário evidenciar que foram consideradas terras indígenas apenas as que tinham situação jurídica até o início de 2010 caracterizada
como “declaradas”, “homologadas” ou “registradas”. Segundo o Instituto Socioambiental, essa delimitação sobre o conceito de terras
indígenas nas informações censitárias excluiu 150 processos demarcatórios em curso, possibilitando que indígenas com domicílio em terras
indígenas em processo de demarcação fossem contabilizados como domiciliados fora das terras indígenas. (ISA). Disponível em: <https://
www.socioambiental.org/pt-br/blog/blog-do-monitoramento/ibge-detalha-dados-sobre-povos-indigenas>. Acesso em 03.07.2020.
32 Em 2010, 315.180 indígenas, ou seja, 38% da população nacional viviam em áreas urbanas e 502.783, ou seja, 62%, em áreas
rurais. (IBGE, 2010).
33 Em 1991, os indígenas em área urbana representavam 24,2%, e em área rural, 75,8%; enquanto em 2010, 38,5% em área
urbana e 61,5% se encontravam em áreas rurais (IBGE, 1991; IBGE, 2010).

47
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Na região norte, o foco deste estudo, não foi diferente. Absorvendo quase 38% da população indígena
nacional, sabe-se que 17,96% se encontram em centros urbanos dos estados do Acre, Amapá, Amazonas, Pará,
Roraima, Rondônia e Tocantins.
Tabela 1 - População residente por condição de indígena, segundo a situação
do domicílio, nas UF da Região Norte – Brasil 1991/2010

UF Situação do domicílio 1991 2000 2010

Total 4.746 8.009 15.921

Acre Urbana 839 1.098 2.595

Rural 3.907 6.911 13.326

Amapá Total 3.245 4.972 7.408

Urbana 182 1.258 1.360

Rural 3.063 3.714 6.048

Total 67.882 113.391 168.680

Amazonas Urbana 5.223 18.783 34.302

Rural 62.659 94.608 134.378

Total 16.131 37.681 39.081

Pará Urbana 2.227 11.718 9.966

Rural 13.904 25.962 29.115

Total 23.425 28.128 49.637

Rondônia Urbana 656 4.223 2.906

Rural 3.478 6.460 9.109

Total 23.425 28.128 49.637

Roraima Urbana 2.513 5.797 8.212

Rural 20.912 22.331 41.425

Total 5.053 10.581 13.131

Tocantins Urbana 321 3.428 2.179

Rural 4.732 .153 10.952

Elaborado pelas autoras Fonte: IBGE (1991-2010)

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Como já salientado, a Amazônia encerra múltiplas realidades. Comparando o quantitativo populacional


indígena em áreas urbanas entre os anos de 1991 e 2010, em todos os estados da região norte observa-se um aumento,
cada qual guardando aspectos específicos. Enquanto alguns estados essa população dobrou, outras cresceram 6, 7
vezes (como os estados do Amazonas e do Amapá, respectivamente), como se observa na tabela acima.
A análise temporal, no entanto, não pode ser linear. Embora se acompanhe claramente uma tendência à
inversão do local de residência dessa população aos centros urbanos, podemos identificar dois momentos distintos
entre o período de 1991 a 2010. O primeiro momento, entre os anos de 1991 e 2000, quando o aumento populacional
indígena nas áreas urbanas se deu em todos os estados da região norte; e, um segundo momento, entre 2001 a 2010,
quando se observou dinâmicas distintas - conforme destacado no gráfico a seguir:

Elaboração das autoras Fonte: IBGE (1991-2010)

Num primeiro momento, é possível afirmar que o aumento em números absolutos da população indígena
em áreas urbanas acompanhava o que acontecia com toda a população brasileira – que crescia nos centros urbanos
decorrente “do crescimento vegetativo nas áreas urbanas” e “da incorporação de áreas que em censos anteriores eram
consideradas rurais” (PEREIRA, 2004, p. 4) – agregada à crescente autoidentificação da população indígena em
relação ao censo de 1991.34 Já entre os anos de 2000 a 2010, ao mesmo tempo em que alguns estados apresentaram
um aumento significativo, outros tiveram certa estagnação, com casos de pequeno declínio populacional.
De uma forma ou de outra, são esses números que vêm demonstrando as dinâmicas de mobilidade e da
população indígenas e fornecendo relevantes dados sobre os chamados fluxos migratórios internos, bem como o
processo de urbanização a que estão submetidos os povos indígenas atualmente na Amazônia. Com isso, ao tratar
da urbanização indígena na Amazônia brasileira, convém esclarecer uma fundamental diferença que existe entre a
urbanização territorial e a urbanização social. Enquanto a primeira se relaciona com a expansão da área do território
urbano, ou seja, o crescimento das cidades; a segunda, com o aumento desproporcional da população nas áreas
urbanas, quando comparada à população rural (SANTOS, 1993). Assim, quando nos referimos à urbanização da
população indígena aludimos, precipuamente, ao incremento da população indígena em áreas urbanas da Amazônia
que se expande em proporção maior do que a população em áreas rurais.

3. Os estudos sobre os povos indígenas nas cidades: as múltiplas situações de urbanidade


É certo que, mesmo com o acúmulo de informações fornecidas pelos censos demográficos nessas últimas

34 Para o IBGE, “essa é uma das hipóteses mais plausíveis”, justificando esse aumento de “indígenas urbanizados” a partir
da própria opção dos indígenas por essa categoria no Censo Demográfico de 2000 – que antes se classificavam em outra
categoria (IBGE, 2005, p. 36).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

décadas ou mesmo um despertar dos antropólogos sobre essa questão, a situação dos povos indígenas em áreas
urbanas é ainda pouco conhecida e divulgada no meio científico brasileiro ou latino-americano.

Os primeiros estudos antropológicos sobre a presença indígena nos centros urbanos no Brasil, como destacou
Baines (2001) e outros autores (Melatti, 2004), aparecem logo no final da década de 60, com a publicação do livro
“Urbanização e Tribalismo: a integração dos índios Terena numa sociedade de classes”, de autoria do professor Roberto
Cardoso de Oliveira (1968).35 Sob sua orientação ou participação, o tema viria a encontrar aportes na década de 80
por meio de algumas pesquisas realizadas no curso de mestrado do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
da Universidade de Brasília (UnB). Ao retratar a situação dos indígenas que haviam migrado para cidades do estado
do Amazonas, essas pesquisas aos poucos sedimentaram um giro sobre o campo de estudo antropológico no Brasil
(PENTEADO, 1980; LAZARIN, 1981; ROMANO 1982; FÍGOLI, 1985).

Embora a presença indígena nas cidades brasileiras seja um fenômeno antigo, em que o próprio surgimento
das cidades esteja diretamente relacionado à presença indígena desde tempos coloniais, o que se verifica nos estudos
sobre a questão no transcorrer das décadas do século XX é o que Nunes (2010, p. 9) define como um “silêncio
antropológico”. O autor atribui essa ausência do interesse antropológico sobre a questão, dentre outras causas, às
concepções indigenistas em vigência no Brasil, que projetavam uma imagem sobre os indígenas que os distanciaram
por si só do espaço urbano:
Aqui talvez possamos equacionar nossa própria disciplina às ideias que circulam num âmbito mais
amplo, o imaginário nacional, no qual há uma associação entre índios e floresta/natureza, por
um lado, e não-índios e cidade/civilização, por outro. Num tal contexto, a passagem (lógica) dos
indígenas ao ambiente urbano tende a ser pensado como um processo de “desagregação cultural”,
aculturação, tornar-se igual a outro e, em consequência, perder-se de seu próprio ser. Eis aqui um
conjunto de ideias análogas àquelas que sustentam o pesadelo de Marx – a corrosividade do capital
(NUNES, 2010, p. 11).

A partir de Oliveira (1968), e as pesquisas mencionadas, a ideia dos indígenas nas cidades é aos poucos
legitimada, desconstruindo dois fundamentos do indigenismo integracionista: o primeiro, de que ao se submeterem
à urbanidade estariam os indígenas predestinados à perda da cultura e identidade indígena; e, o segundo, de ser as
cidades espaços de exclusividade étnica ou racial do não-indígena.

Independente do rompimento desse silêncio no pensamento antropológico brasileiro, foi somente na década
de 90 que os estudos sobre a presença indígena em centros urbanos parecem vir a encontrar um novo alento – com
singular interesse à região amazônica, como exemplo, as cidades de Manaus (OLIVEIRA et al., 1996; SILVA, 1997,
1998, 2001, 2015) e Boa Vista (FERRI, 1990). Desde então, ainda que timidamente, acompanhamos gradativamente o
interesse (e a publicação de estudos) de pesquisadores e pesquisadoras sobre outras regiões urbanas e que, articuladas
com as organizações da sociedade civil (indígena e não-indígena), vem conquistando vozes e certa visibilidade.

Essa relativa escassez de produções científicas, que foi se atenuando no século XXI, não impediu que os
significativos estudos que se correlacionam acerca do tema trouxessem – e continuassem a trazer – importantes
contribuições à produção de conhecimento sobre “o estreitamento das relações entre segmentos indígenas e centros
urbanos” (PAULA, 2015).36

35 Ao abordar a obra, Nunes (2010, p.22) explica que Oliveira propõe um duplo deslocamento de estudo: “a cidade “presente”
na aldeia/reserva” como “um modo de existência, uma socialidade específica, ao passo que nesta cidade na qual a aldeia
“persiste”, está se falando do espaço físico”.
36 É também instigante ressaltar a multiplicidade de abordagens dadas à questão, refletindo a própria pluralidade da perspectiva
indigenista no pensamento antropológico. As causas da migração indígena para as cidades (FERRI, 1990; SOUZA, 2012),
a sobrevivência identitária e a reprodução social nos centros urbanos em meio às transformações do comportamento
cultural (SILVA, 2015), a inserção nas cidades e as características socioeconômicas desses imigrantes (MAINBOURG,
2002), os desdobramentos da questão de gênero sobre a temática, foram aspectos abordados nas pesquisas encontradas.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Dentre os conhecimentos acumulados, destacamos a própria imprecisão terminológica que ainda paira sobre
a questão, muitas das quais trazendo sérias repercussões epistemológicas e impactando na vida dessa população. Se,
por um lado, identificamos a utilização da expressão “população indígena urbana” pelo IBGE (2012); por outro, não
há consenso nos estudos sobre qual expressão a ser empregada melhor caracterizaria a situação dos povos indígenas
em centros urbanos. Isso porque, as referências a “povos indígenas urbanos” ou “população indígena urbana”, “povos
indígenas em contexto urbano”, “índios citadinos”, “indígenas desaldeados”, não é suficiente para descrever os efeitos
ou mesmo como essa “urbanidade” é vivenciada. Em muitas vezes, o que se acompanha é um emprego perverso da
expressão, que deve ser constantemente questionada e desconstruída.

Há de se ter em consideração, além do mais, que ao se estabelecer distinções conceituais entre “indígenas
urbanos” e “indígenas rurais”, ainda que simbolicamente, a consequência imediata constatada tem sido a geração
de inúmeras discriminações, que ao final tendem a anular ou restringir o exercício de direitos em igualdade de
condição (BRASIL, 1969; SILVA et al., 2019).37 Entretanto, não se deve ignorar que cada contexto urbano possui suas
complexidades empíricas, as quais se sobrepõem às diversas relações interétnicas e interculturais. À vista disso, é
essencial esclarecer que, ao se tratar do processo de urbanização da população indígena, não se propõe diferenciá-los
daqueles que a ele não se submeteram; mas, sim, trazer à tona as complexidades que envolve a sobrevivência cultural
e física dos povos indígenas que estão inseridos no meio urbano.

Em decorrência disso, dentre as complexidades da análise dos processos de urbanização da população


indígena está a impossibilidade de se debruçar de forma totalizante sobre uma única dinâmica demográfica
indígena. Ou seja, não há uma dinâmica aplicável a todos os povos, nem sequer sendo possível compreendê-la de
uma forma regionalmente homogênea, mas sim muitas dinâmicas. Como afirmou Melatti (2004, p.6), “para nos
convencermos de que a população indígena está realmente crescendo, deveríamos examinar as etnias indígenas caso
a caso”. Isso porque, da mesma forma que alguns povos mantêm uma constante diminuição populacional (alguns,
em risco, inclusive, de extinção), outros têm sua população aumentada. Da mesma maneira, se nos aproximarmos
da realidade demográfica regional, por sua vez, encontraremos divergências que não a possibilitam envolver em um
discurso homogeneizador.

Isso tem implicações ao se tomar como parâmetro os dados demográficos. Embora seja um indicador
importante (e tanto o é que a publicação do censo de 1991 também serviu para resgatar e potencializar as pesquisas
dentro dessa temática), em contrapartida, por meio dele não se pode sentenciar a realidade indígena de uma forma
massificada. Essa questão ganha destaque, sobretudo, quando se examina o declínio da população indígena em áreas
urbanas, em números absolutos no território nacional, entre os anos de 2000 e 2010.

De fato, há muitas especulações sobre o dado que descreve a diminuição da população indígena absoluta em
áreas urbanas entre os anos de 2000 e 2010. Entre elas, de uma forma geral, com uma conotação positiva, está o retorno
(temporário ou permanente) dos indígenas ao ambiente rural, declarando uma atenuação dos fatores que decorrem da
migração para as cidades. Por outra via, tem-se apontado para o etnocídio que vive essa população nos centros urbanos,
vindo a perderem sua identidade étnica nessa última década. Somam-se a esses argumentos, constantes indagações a
respeito da imprecisão da amostra, incapaz de fornecer um retrato fiel da realidade, ou mesmo se, no momento da coleta
das informações, estariam os indígenas constrangidos de assim se autodeclararem por questões de racismo (institucional
ou estrutural), ou inclusive estarem temporariamente fora dos centros urbanos para alguma outra finalidade.

37 A exemplo cita-se as orientações da política pública de saúde indígena durante a gestão do governo de Jair Messias
Bolsonaro, na qual a Secretaria Especial de saúde Indígena (SESAI) vêm limitando sua cobertura apenas aos indígenas
que estão domiciliados em terras indígenas, negando-se atendimento àqueles que não se encontram em terras indígenas,
inclusive os que estão a residir nos espaços urbanos. Para mais, ver: NOBRE, Noéli. Secretário de Saúde Indígena afirma que
não pode se responsabilizar por indígenas urbanos Agência Câmara de Notícias, Brasília, 14 de maio de 2021. Disponível
em: <https://www.camara.leg.br/noticias/759762-secretario-de-saude-indigena-afirma-que-nao-pode-se-responsabilizar-
por-indigenas-urbanos/>. Acesso em 10 agosto 2021.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

O que percebemos, numa primeira aproximação com o tema, é que essa ideia totalizante de declínio da
população indígena em áreas urbanas, verificada na comparação dos dados entre os anos de 2000 e 2010, não é capaz de
acompanhar a realidade de alguns estados da região norte, como já relatado. Demonstrando claramente que a população
indígena em determinadas cidades amazônicas - especialmente do estado do Amazonas - continua em clara ascensão.

Assim, ao se acercar das dinâmicas de migração da população indígena brasileira para os centros urbanos –
ou mesmo desses nas cidades – é imprescindível destacar que, da mesma forma em que as características regionais (e
estaduais) são distintas, a diversidade de povos e de suas demografias específicas demonstra que não há uma dinâmica,
mas muitas dinâmicas em movimento, cada qual com uma realidade distinta a ser desvelada em trabalhos etnográficos.

Como explicou Marta Azevedo (2008, p. 21), o que há é “um grande mosaico de microssociedades com
populações de pequeno ou médio porte, com dinâmicas demográficas distintas, revelando não só autonomias
culturais, como também qualidade de vida e perfis epidemiológicos muito diferentes”.

A título de exemplo, numa pesquisa realizada com os povos indígenas em 2001, na cidade de Boa Vista
– capital do estado de Roraima, região amazônica brasileira –, em que foi possível analisar as causas da migração
indígena e as condições socioeconômicas por etnia, pesquisadoras demonstraram a existência de uma variabilidade
de situações entre os povos indígenas, ainda que estivessem numa mesma cidade e dentro de um mesmo período
de coleta de informações (MAINBOURG, 2002). Não se possibilitando falar em uma situação de urbanidade de
indígenas, mas em muitas.

Em alguns casos mais extremos, pesquisas demonstraram que o próprio termo migração parece inapropriado,
revelando as diferentes interfaces entre a epistemologia colonial e as epistemologias indígenas na compreensão do
fenômeno. De fato, determinados povos possuem territórios de ocupação tradicional e histórica que ultrapassam
fronteiras – seja municipal, estadual ou, até mesmo, nacional. Para esses povos transfronteiriços, o deslocamento
aos centros urbanos, instituídos dentro da territorialidade tradicional desses povos, pode constituir um tipo de
mobilidade populacional que se adequa à uma lógica de ocupação diferenciada do território. Aliás, mais do que o
ambiente físico (se urbano ou rural) aos quais se inserem, é a própria lógica indígena de ocupação do espaço que
deve ser sobrevalorizada, pois o surgimento das cidades não as constituem em um ambiente alheio à territorialidade
indígena (SILVA, 2007; NUNES, 2010), passando a ser ocupadas de distintas formas e em distintas temporalidades.

Essas percepções têm levado pesquisadores a considerar em seus estudos sobre o deslocamento espacial
da população indígena a multilocalidade desses (justificando inclusive as distintas formas de migração), além da
relativização dos próprios conceitos de rural e urbano sob a ótica dessa população.

Em alguns casos, o que se verifica é que o emprego das categorias “rural” e “urbano”, como marcadores da
divisão espacial da população indígena local, são insuficientes. Embora essas categorias atuem de forma singular
quando se considera as especificidades das políticas públicas implementadas nos municípios (IUBEL, 2020, p. 110),
muitas vezes acabam não sendo definidas a partir das experiências dos povos indígenas. Da mesma forma, nem a
noção de urbano pode se exaurir na percepção sobre a cidade. Esse é o caso do estudo realizado por José Carlos
Matos Pereira (2019, p. 20-47) que, ao tratar das especificidades da urbanização da Amazônia, afirma que mesmo
ciente de que o conceito de cidade se apresenta “como o local do não rural”, o urbano pode não se esgotar dentro
do conceito de cidade que por vezes, deve considerar “simultaneamente o urbano, o rural e o indígena contidos na
cidade”.

4. Categorias de análise da urbanização indígenas: fluxos migratórios, deslocamentos forçados


e favelização
O processo de urbanização indígena tende a se relacionar usualmente ao fenômeno da migração interna. A

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

respeito das possíveis causas de migração da população indígena para zonas urbanas, via de regra, são relacionadas
à intensificação do êxodo rural indígena. No entanto, o fenômeno guarda algumas complexidades.

Sabe-se que a implementação de práticas arbitrárias pelo estado que venham a causar os deslocamentos
forçados dos povos indígena, perpetuadas ao longo dos séculos pelo avanço violento das fronteiras de expansão
mercantil sobre a Amazônia, restou expressamente vedada no ordenamento jurídico interno e internacional no
período pós-ditadura. Tanto a constituição brasileira de 1988 (art. 231, § 5),38 quanto às convenções e declarações
internacionais de direitos humanos dos povos indígenas (como por exemplo, o art. 16, Convenção OIT n.º 169/89;39
o art. 8, item 2, “b” e “c”40 e o art. 10,41 Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas; art.
XXIX, item 4 e 5, Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas42), repudiam a remoção, o translado
e o reassentamento forçado, isto é, sem o consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas – salvo
exceções claramente determinadas, ressalvando o direito ao retorno ou à reparação.

Mesmo assim, algumas práticas de deslocamentos forçados ou de desterritorialização dos povos indígenas
continuam a ser executadas, inclusive, pelo estado; porém, ao invés de assim serem caracterizadas são por vezes
dissimuladas através de retóricas coloniais que a mascaram.

De fato, o processo de desterritorialização indígena ocorre desde os princípios da colonização como uma
prática de dominação territorial. Na Amazônia, a imposição de um sistema econômico com particularidades próprias
- a ausência de monoculturas deixou de atrair um número apreciável de escravos africanos – tornou o indígena o
componente principal na formação da população local, provocando o deslocamento de índios pelos escravagistas de
suas aldeias para as povoações coloniais (WAGLEY, ALVÃO, 1961, p. 184). Contudo, a análise dos processos atuais

38 Dispõe o § 5º, do art. 231, da CF/88: “é vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do
Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do
País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco”.
39 Conforme o artigo 16: 1. Com reserva do disposto nos parágrafos a seguir do presente artigo, os povos interessados não
deverão ser transladados das terras que ocupam. 2. Quando, excepcionalmente, o translado e o reassentamento desses
povos sejam considerados necessários, só poderão ser efetuados com o consentimento dos mesmos, concedido livremente
e com pleno conhecimento de causa. Quando não for possível obter o seu consentimento, o translado e o reassentamento
só poderão ser realizados após a conclusão de procedimentos adequados estabelecidos pela legislação nacional, inclusive
enquetes públicas, quando for apropriado, nas quais os povos interessados tenham a possibilidade de estar efetivamente
representados. 3. Sempre que for possível, esses povos deverão ter o direito de voltar a suas terras tradicionais assim que
deixarem de existir as causas que motivaram seu translado e reassentamento. 4. Quando o retorno não for possível, conforme
for determinado por acordo ou, na ausência de tais acordos, mediante procedimento adequado, esses povos deverão receber,
em todos os casos em que for possível, terras cuja qualidade e cujo estatuto jurídico sejam pelo menos iguais aqueles
das terras que ocupavam anteriormente, e que lhes permitam cobrir suas necessidades e garantir seu desenvolvimento
futuro. Quando os povos interessados prefiram receber indenização em dinheiro ou em bens, essa indenização deverá ser
concedida com as garantias apropriadas. 5. Deverão ser indenizadas plenamente as pessoas transladadas e reassentadas por
qualquer perda ou dano que tenham sofrido como consequência do seu deslocamento.
40 Dispõe o art. 8, item 2, alíneas “b” e “c”: “os Estados estabelecerão mecanismos eficazes para a prevenção e a reparação de:
[...]. b) Todo ato que tenha por objetivo ou consequência subtrair-lhes suas terras, territórios ou recursos. c) Toda forma
de transferência forçada de população que tenha por objetivo ou consequência a violação ou a diminuição de qualquer dos
seus direitos.
41 Segundo o art. 10, os povos indígenas não serão removidos à força de suas terras ou territórios. Nenhum traslado se
realizará sem o consentimento livre, prévio e informado dos povos indígenas interessados e sem um acordo prévio sobre
uma indenização justa e equitativa e, sempre que possível, com a opção do regresso”.
42 Conforme art. XXIX: 4. Os Estados realizarão consultas e cooperarão de boa-fé com os povos indígenas interessados por
meio de suas próprias instituições representativas a fim de obter seu consentimento livre e fundamentado antes de aprovar
qualquer projeto que afete suas terras ou territórios e outros recursos, especialmente em relação ao desenvolvimento, à
utilização ou à exploração de recursos minerais, hídricos ou de outro tipo. 5. [...]. Os povos indígenas que tenham sido
despojados de seus próprios meios de subsistência e desenvolvimento têm direito à restituição e, quando não seja possível,
à indenização justa e equitativa, o que inclui o direito à compensação por qualquer dano que lhes tenha sido causado pela
execução de planos, programas ou projetos do Estado, de organismos financeiros internacionais ou de empresas privadas.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

de urbanização não pode ser distanciada das redes de poder simbólico e de ingerência do estado, devendo ser relidos
sobre outras circunstâncias.

O que queremos afirmar com isso é que os fluxos migratórios dos povos indígenas às cidades na Amazônia
brasileira não se tratam apenas de deslocamentos de indivíduos ou de grupos culturalmente diversos num
determinado espaço geográfico – como foi a migração da população da região nordeste ao norte brasileiro, durante o
ciclo da borracha, no final do século XIX. Ou, então, serem lidos a partir de um simples fluxo migratório entre a área
rural e urbana, naturalizando-se a própria urbanização territorial e social da Amazônia. Tampouco pode o êxodo
rural indígena ser compreendido como consequência involuntária da modernidade – assim como o era a noção de
indígena como uma categoria transitória. É dizer, o que ora qualificamos como migração indígena, em outros termos
e em determinados casos, pode ser considerada uma prática explícita de deslocamento/remoção, transferência ou
reassentamento dos povos indígenas - ainda que assim não as intitulam ou deixem de apresentá-las como resultados
previsíveis de políticas públicas empreendidas sobre a Amazônia.

As causas atribuídas da migração da população indígena para zonas urbanas, via de regra, são relacionadas
à intensificação do êxodo rural indígena devido à ausência do reconhecimento estatal de seus territórios em áreas
rurais, comprometimento da sobrevivência e a qualidade de vida decorrentes da degradação ambiental, insegurança
territorial frente às invasões relacionadas com atividades extrativistas e agropecuárias ilegais ou mesmo à imposição da
grandes obras de infraestrutura (LUNELLI; ALMEIDA, no prelo). Ao reconfigurar a própria noção de deslocamento
e desterritorialização, essas práticas acabam por perverter o sentido do deslocamento forçado dos povos indígenas
como um processo natural de migração, quando não a elevando a uma evolução civilizatória que deixa as florestas
para se viver nas cidades e retiram do estado qualquer responsabilidade sobre as ações - ou omissões - sobre o
território e a população indígena

Há ainda outras camadas a serem consideradas nas categorias de análise do fenômeno da “migração” e da
urbanização indígena. Ao se deter nas falhas e insuficiências dos mecanismos jurídicos estatais que doam garantias
ao direito dos povos indígenas à terra e de se manter nelas – demarcando ou protegendo as territorialidades
indígenas nas áreas florestais que o levam ao êxodo rural – é preciso atentar-se também ao acesso do domicílio (isto
é, de moradia) dos povos indígenas nos centros urbanos. Isso porque, considerado a situação de vulnerabilidade
econômica, ao se estabelecerem nos centros urbanos, o domicílio só vem a ser viabilizado “através de processos de
ocupação de terras ociosas e da autoconstrução de moradia, gerando assentamentos insalubres” (CARDOSO, 2016,
p. 29) - ou seja, nas áreas de periferias ou, na linguagem popular, nas favelas.

Cabe destacar que o crescente processo de urbanização da população indígena, que passa progressivamente
a concentrar domicílio nos centros urbanos, guarda, assim, estrita relação com o problema habitacional vivenciado
nas cidades. Essa expansão da presença indígena nessas áreas ocupadas à margem de uma política de planejamento
e regularização fundiária - incapaz de atender às necessidades básicas e de conter as ocupações de espaços
inadequados para habitação - vem estimulando processos de favelização tanto de determinadas áreas da cidade,
quanto da população indígena. É dizer, para além da transformação e ampliação do espaço urbano que passa a se
caracterizar pela irregularidade e precariedade de moradias, o que se acompanha nas cidades amazônicas é a própria
apreensão da presença indígena em áreas ausentes de infraestrutura urbana, acentuando ainda mais a situação de
vulnerabilidade que se encontram os povos indígenas nas cidades.

Por isso, sob a expressão “favelização indígena”, estamos trazendo à tona a presença indígena nas periferias
das cidades amazônicas e legitimando as favelas como um espaço dos indígenas em centros urbanos, expondo as
distintas formas de inserção dos indígenas nesse território em conceitos passíveis de serem apropriados em dimensões
nacionais, regionais ou mundiais. Por favelização indígena, também denunciamos a precarização da vida em distintos
níveis, desnaturalizando as ausências e as condições degradantes a que estão submetidas essa população. Ainda que
essas situações estejam se generalizando nos processos de urbanização descontrolada do território amazônico como

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

consequência da expansão capitalista na região, colocando não apenas os povos indígenas em difíceis condições de
sobrevivência física, é necessário dar visibilidade a esses determinados contextos que os tem levado não somente à
uma perda de sua identidade cultural (“etnocídio”), mas há um genocídio dessa população.

Entendemos, nesse contexto, que a expansão das fronteiras mercantis capitalistas sobre a Amazônia, ao
impulsionar a intensificação da migração da população indígenas aos centros urbanos, guarda estrita relação com
os processos de favelização da população indígenas nessas localidades. Isso porque, quando cessam as condições
para a permanência nos territórios de ocupação tradicional em áreas florestais, o deslocamento forçado dos povos
indígenas para as cidades torna-se, na maioria dos casos, uma necessidade de sobrevivência física (seja individual
ou familiar). Essa expansão da presença indígena nessas áreas ocupadas à margem de uma política de planejamento
e regularização fundiária, que permanece incapaz de atender às necessidades básicas e de conter as ocupações de
espaços inadequados para habitação, é o que vem caracterizar a favelização indígena.

Para além transformação do espaço urbano que passa a se caracterizar pela irregularidade e precariedade
de moradias, o crescimento da população indígena em áreas de favelas vem demonstrando o aprofundamento dos
níveis de segregação (e discriminação) social e racial que os alcança nos espacos urbanos amazônicos. No caso da
Amazônia brasileira é fundamental visibilizar esta dimensão social das problemáticas concernentes às favelas de
suas cidades, pois estas vêm sendo encobertas pelos discursos ambientalistas e econômicos que predominam sobre
a região marginalizando nos debates científicos acerca dessas sociabilidades emergentes.43

Além disso, nem sempre a migração indígena para as cidades é definitiva e esse processo de favelização ao qual
nos deteremos guarda outras especificidades em sua análise. Não são poucos os casos em que a regra é a sazonalidade,
isto é, a permanência de famílias indígenas nas cidades por um período de tempo determinado e o regresso posterior
às aldeias, provocando mudanças não só na forma de vida das famílias que permanecem em processo de migração
constante, mas também nas relações sociais dentro das aldeias. Para dar um exemplo, em São Gabriel da Cachoeira,
os indígenas Hup’däh possuem uma histórica migração sazonal, na qual “estar em movimento é uma característica
marcante nas descrições etnológicas do povo Hup´däh e da sua interação social” (SILVA, 2017, p. 55).

Nesse contexto, o próprio conceito de “migração” pode ser questionado e colocado em tensão nessa
relação entre culturas distintas, indicando os limites que uma epistemologia determinista e reducionista pode vir a
encontrar ao se analisar as realidades indígenas amazônicas. Independente dessas formas específicas e culturais de
se compreender o deslocamento no território amazônico, não restam dúvidas que, utilizando-se das considerações
tecidas por Mike Davis (2006, p. 193) esse processo de urbanização também atua na “transformação estrutural e
intensificação da interação em todos os pontos de uma linha contínua urbano-rural”. Em analogia pode-se afirmar
que esse deslocamento constante entre a floresta e o urbano observado, na qual a realidade dos povos indígenas nas
favelas é desvinculada da industrialização e do desenvolvimento, não apenas amplia as áreas de periferias urbanas
como as leva ininterruptamente a urbanização (e as favelas), entre corredores fluviais para as entranhas da floresta. A
favelização sob essa perspectiva é um indicativo perverso da transformação da paisagem - nem rural, nem urbana, e,
sim híbrida - que avança sobre o território amazônico nesse século XXI, denotando novos padrões do uso e relação
que se estabelecem com o meio ambiente, a terra e tolerância sobre a degradação da vida.

43 Em interessante reportagem sobre as favelas na Amazônia, ainda em 2015, foi exposto uma trágica realidade e pouco
desconhecida, a de que “um terço da população das grandes e médias cidades da Amazônia vive em territórios do tráfico e
com violações de direitos humanos” e é essa realidade a qual destacamos. Como descrito, “nas periferias da maior floresta
tropical, a qualidade de vida é pior que nos morros e nas favelas de Rio de Janeiro e São Paulo” (NOSSA, 2015) e poucos são
os conhecimentos gerados e compartilhados sobre a situação da população indígena nesses territórios.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

5. Considerações Finais
Este artigo problematiza o processo de urbanização da população indígena na Amazônia brasileira buscando
visibilizar a análise da relação entre o impulso da expansão mercantil capitalista sobre a Amazônia brasileira e a
migração dos povos indígenas para centros urbanos.

Não obstante, os consequentes fluxos migratórios indígenas não podem ser lidos de maneira superficial, isto
é, o movimento migratório indígena na Amazônia nas últimas décadas não é resultado apenas de um deslocamento
de indivíduos ou grupos no espaço; tampouco pode ser lido apenas como um fluxo entre a área rural e urbana, como
consequência involuntária da modernidade.

O que este artigo destaca é que, por um lado, a mobilidade populacional indígena não pode ser vista
somente sob a óptica migratória, já que para povos indígenas o surgimento de cidades nestes espaços ocupados
tradicionalmente não a transformam em ambientes alheios à sua lógica de ocupação, ainda que ali venham a sofrer
discriminação, violências e ausência de direitos. Por outro, em muitos casos, a migração indígena amazônica pode ser
considerada uma prática explícita de deslocamento ou reassentamento de povos indígenas. Ao se impor uma única
via desenvolvimentista sobre a região amazônica, desvirtuando o sentido do interesse público e da sustentabilidade,
impulsiona-se indivíduos e famílias às periferias urbanas.

Por esta razão é que ao se analisar os processos de urbanização indígena, busca-se descrever a inserção
indígena na territorialidade urbana, sem ignorar que cada contexto urbano possui complexidades, assim como
complexas são as relações interétnicas e interculturais estabelecidas. Por isto, ao se tratar do processo de urbanização
da população indígena não buscamos diferenciá-los daqueles que continuam na floresta, mas sim visibilizar esta
realidade, que vem colocando em risco a sobrevivência cultural e física dos povos indígenas na Amazônia.

Dentre as consequências dos processos de urbanização indígena e da floresta, sobressai o desencadeamento


de uma crise de moradia indígena, levando-os a ocupar terras de forma irregular e, assim, gerando uma precarização
dos assentamentos humanos. Isto porque a transformação da paisagem amazônica, urbanizando-a, não trouxe
consigo investimentos para a construção de “cidades de direitos”, mas ao contrário, gerou novos espaços irregulares,
com serviços públicos ausentes ou precários, além da falta moradias dignas, provocando o aprofundamento dos
níveis de segregação (e discriminação) social dos indígenas nas cidades, o que podemos considerar como novos
espaços periféricos ou favelas urbanas.

O progressivo conhecimento da situação da população indígena, a contrassenso do planejamento das ações


públicas, não resultou numa ampliação das obrigações positivas estatais ou mesmo num aperfeiçoamento de políticas
voltadas à situação dos povos indígenas que estão a migrar para as cidades ou que tem presença nas cidades44 de
maneira temporal ou permanente. O deslocamento constante observado entre a floresta e o urbano amplia as áreas
de periferias urbanas e os leva à urbanização - e à favelização - fazendo com que a realidade vivida pelos indígenas
nas periferias, guardem inúmeras similitudes com àquela vivida por qualquer indivíduo nas favelas.

É esse impulso gerado pela expansão capitalista sobre a Amazônia aos movimentos migratórios indígenas,
durante essas primeiras décadas do século XXI, uma narrativa socioambiental até então desconsiderada nos discursos
econômicos e ambientais que precisa ser trazida à tona, denunciando suas causas e as consequências. A questão

44 O interesse preponderante do estado sobre a situação das terras indígenas - e não da população propriamente dita - adquire
prioridade na definição e coleta de dados. São com base, sobretudo, nos indicadores da população indígena “aldeada”, ou
seja, com domicílio em terras indígenas, que as políticas indigenistas existentes são em sua maioria planejadas e (des)
construídas, definindo inclusive tendências sobre educação, saúde, renda e, também, mobilidade e migração populacional.
É dizer, a atuação do estado por meio das políticas públicas – ainda que edificadas na busca da materialidade dos direitos
reconhecidos aos povos indígenas – pode contribuir para com outros objetivos: o de liberar as terras indígenas da presença
indígena. Isso porque, por meio de políticas públicas pode-se influenciar o que ocorre dentro das terras indígenas e, até
mesmo, o estímulo às emigrações indígenas de suas terras a outros territórios, como os centros urbanos.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

invisibilizada, portanto, na narrativa ambiental e econômica sobre a Amazônia, sobretudo na dimensão mundial, é
que ao se constatar esse impulso dos processos migratórios para as cidades, os indígenas não estão migrando para
terras indígenas, e sim ocupando regiões periféricas dos centros urbanos, isto é, as favelas. Logo, quando pretendemos
analisar o processo de favelização da população indígena na Amazônia, estamos não apenas destacando a presença
indígena nas favelas, mas, sobretudo, legitimando as favelas como mais um espaço dos indígenas em centros urbanos.

Partindo destas dimensões, chegamos à conclusão de que, se num primeiro momento não é possível
generalizar os processos de urbanização vivenciados pela diversidade de populações indígenas na Amazônia
brasileira, podemos reconhecer nestes a presença de muitas das problemáticas elencadas. Essa constatação nos faz
chegar a conclusão de que é possível tratar essa realidade observada como um processo de favelização; estando,
sobretudo no âmbito das ciências sociais, ainda pendente de visibilização e diálogo sobre possíveis soluções, para
além da estigmatização a que estão sujeitos, os conceitos de favela e de periferia no imaginário social local, regional
e também internacional.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

PRÁTICAS DE RACISMO E
ANTIPOLÍTICA INDIGENISTA NO GOVERNO ATUAL
Roberto Antonio Liebgott 45

Iara Tatiana Bonin 46

1. Introdução
Em 4 de agosto de 2021 a jovem Kaingang Daiane Griá Sales, de 14 anos – que vivia no Setor Barreiras da
Terra Indígena do Guarita, localizada região noroeste do Rio Grande do Sul – foi assassinada e encontrada, nua, com
partes inferiores do corpo arrancadas e dilaceradas. A atrocidade deste feminicídio, deste crime sexual e deste crime
de ódio materializa o racismo e o desejo de aniquilação do outro. Em nota de denúncia e repúdio, a Articulação
Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA) afirmou:
Temos visto dia após dia o assassinato de indígenas. Mas, parece que não é suficiente matar. O
requinte de crueldade é o que dilacera nossa alma, assim como literalmente dilaceraram o jovem
corpo de Daiane, de apenas 14 anos. Esquartejam corpos jovens, de mulheres, de povos. Entendemos
que os conjuntos de violência cometida a nós, mulheres indígenas, desde a invasão do Brasil é uma
fria tentativa de nos exterminar, com crimes hediondos que sangram nossa alma. A desumanidade
exposta em corpos femininos indígenas precisa parar!47

A Articulação dos Povos Indígenas da Região Sul (Arpinsul) e a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)
se manifestaram sobre o crime afirmando que “A violência contra os povos indígenas tem se intensificado a cada dia.
Assassinam nossos jovens, nossas mulheres, nossas lideranças; roubam nossas terras e querem tirar nossos direitos”. 48

A violência contra indígenas tem sido, quase sempre, banalizada, naturalizada e invisibilizada, isso quando
não se insinua que a responsabilidade é das próprias vítimas! Apesar da atrocidade e da brutalidade do crime
praticado contra a jovem Kaingang, não houve ampla cobertura por parte das grandes redes de comunicação e
informação e também não se gerou a comoção e a indignação social correspondente à gravidade deste feminicídio.
Argumentamos, no presente texto, que o racismo – que é estrutural e alicerçado nas relações do Estado com os povos
indígenas – opera promovendo essa invisibilização e banalização das vidas e das mortes dessas pessoas. Isso se dá
de modo sistemático e se reforça, no tempo atual, por meio de uma antipolítica que, ao mesmo tempo, promove o
desmonte de garantias instituídas e estimula as invasões e explorações dos territórios indígenas.

O brutal assassinato da jovem Daiane se relaciona dramaticamente com outros acontecimentos históricos
no estado do Rio Grande do Sul: o primeiro diz respeito ao assassinato de uma mulher Kaingang, “encontrada em
1984, com um pedaço de taquara trespassando seu corpo, o qual é colocado entre a vagina e a boca. Seu corpo é
encontrado na área indígena, mas nas proximidades de Tenente Portela” (SIMONIAN, 1991, p. 30). O segundo
acontecimento, ainda na década de 1980, diz respeito ao assassinato de um homem Kaingang que “é esfaqueado oito
vezes, além de ter os órgãos genitais decepados, os quais são colocados em seu peito” (Ibid., p. 34). Nestes e em outros

45 Bacharel em Direito pela PUCRS; graduado em Filosofia pela Faculdade Nossa Senhora da Imaculada Conceição;
Coordenador do Conselho Indigenista Missionário – regional sul. E-mail: cimisulpoa@gmail.com
46 Doutora em Educação pela UFRGS; Mestre em Educação pela UnB; Professora do Programa de Pós-Graduação em
Educação da ULBRA. E-mail: iara.bonin@ulbra.br
47 O documento, na íntegra, está disponível em: <https://apiboficial.org/2021/08/05/manifesto-das-mulheres- indigenas-do-
brasil-contra-a-barbarie-cometida-a-jovem-daiane-kaingang-de-14-anos/>. Acesso em 06 de agosto de 2021.
48 O documento pode ser consultado em: <https://apiboficial.org/2021/08/05/justica-para-daiane-kaingang/>. Acesso em 06
de agosto de 2021.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

crimes, expressa-se o desejo de extermínio e aniquilação deste outro corpo – que é corpo cultural e étnico – desses
seres humanos e de suas possibilidades biológicas para a reprodução e a continuidade da vida.

As formas de racismo e de promoção da morte não se restringem, entretanto, ao assassinato. Os povos


indígenas estão sendo agredidos sistematicamente, tanto por segmentos da sociedade civil, quanto por instituições
públicas que deveriam atuar na sua defesa e proteção. No momento atual, o governo federal se tornou o principal
algoz, na medida em que propaga discursos que inferiorizam as culturas dos povos indígenas e que propõe a sua
integração compulsória por meio de projetos de exploração agropecuária e minerária. Pode-se dizer, ainda, que o
ato mais violento é a premeditação do integracionismo e do extermínio – na medida em que se desregulamentam
as garantias territoriais, em que se paralisam das demarcações, em que se estimula invasões, em que se contraria o
direito dos indígenas de viver conforme suas culturas e tradições.
Os dados reunidos e sistematizados no âmbito do Observatório da Violência contra os povos indígenas
no Brasil,49 do Conselho Indigenista Missionário, indicam crescimento das invasões das terras para exploração
madeireira, garimpeira, bem como para plantio de grãos e criação de gado. Desse modo, as áreas vão sendo devastadas
e, com elas, as condições de vida das populações que nelas habitam. Os dados de 2019 do Relatório Violência contra
os Povos Indígenas do Brasil50 contabilizam 256 casos de invasões possessórias, exploração ilegal de recursos naturais
e danos diversos ao patrimônio, totalizando 1.120 casos de violências contra aos bens indígenas.
Cabe ressaltar que, das 1.298 terras indígenas no Brasil, 829 apresentam pendências nos procedimentos de
regularização fundiária. Destas, 536 terras não tiveram nenhuma providência relativa ao processo de demarcação até
o momento. Foram mais de 135 mortes por assassinados e, ademais, o sistemático processo de violações dos direitos
indígenas – materializado em casos de discriminação, ameaças, suicídios – seguem em número crescente e são um
indicativo irrefutável do racismo contra estes povos.
Franz Fanon (2008) afirma que o racismo diz respeito a um processo de produção de hierarquias que tem por
base o humano e a partir do qual são estabelecidas categorias de superioridade e inferioridade. O racismo foi política
e estrategicamente fabricado nas estruturas de dominação europeia ao longo de séculos, e adquiriu formas variáveis
em distintos tempos históricos. Aqueles que são classificados acima da linha do humano desfrutam de certos direitos,
de certas garantias, de certa posição social, já os posicionados abaixo desta linha teriam sua humanidade colocada
em questão, em uma zona de “não-ser” (FANON, 2008, p. 26).
O racismo sustenta-se na ideia de que os grupos sociais poderiam ser vertical e hierarquicamente ordenados,
e tal entendimento marca as desigualdades que se consolidam e que são, desse modo, naturalizadas e, muitas vezes,
justificadas por discursos meritocráticos. Sob as bases do pensamento racista parece aceitável a precarização
das condições de vida e a morte de alguns para assegurar as condições de vida de outros (a desterritorialização
que de falaremos adiante é traço visível dessa disposição para permitir a morte). Tem-se, portanto, um modo de
funcionamento do racismo que não diz respeito somente à prática de assassinato e de extermínio direto, mas também,
conforme conceitua Foucault (2010) quando discute racismo de Estado, ao ato de expor certos grupos ao perigo e de
multiplicar os riscos para suas vidas.
O que temos visto, no Brasil, é uma ativa multiplicação dos riscos para a vidas dessas coletividades indígenas
– quando não se demarcam suas terras tradicionais, quando não se oferece as condições de atendimento adequado
em saúde, quando se estimulam as invasões em seus territórios, quando se propaga a desconstitucionalização
de seus direitos. Nesse sentido, as ações e omissões governamentais no que concerne à proteção das vidas e dos
territórios integram também o conjunto de estratégias racistas que expõem ao perigo e multiplicam os riscos, ou seja,
configuram o racismo institucional.

49 Ver em: <https://cimi.org.br/observatorio-da-violencia/>. Acesso em 06 de agosto de 2021.


50 Ver em: <https://cimi.org.br/2020/09/em-2019-terras-indigenas-invadidas-modo-ostensivo-brasil/>. Acesso em 06 de
agosto de 2021.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Nilma Lino Gomes, em entrevista à Carta Capital (20 de julho de 2015),51 afirma que “o racismo brasileiro
tem uma peculiaridade: a ambiguidade. É um fenômeno que se afirma através da sua própria negação. Quanto mais
se nega a existência do racismo no Brasil, mais esse racismo se propaga”.52 Convém mencionar que há resistências
(de âmbito acadêmico) ao uso do termo racismo para referir as relações com os povos indígenas (BONIN, 2016;
MCCALLUM, RESTREPO, REESINK, 2018). Em artigo intitulado

Existência e diferença: o racismo contra os povos indígenas, Milanez, et al (2019) explicam que a busca
por interlocutores de universidades para discutir racismo nem sempre foi bem recebida porque alguns intelectuais
afirmavam que esta não seria a categoria mais adequada para pensar a problemática. Os autores ponderam, então, que
se para muitos acadêmicos de instituições brasileiras a violência contra populações indígenas não
deve, ou não precisa, ser descrita como racismo, para os indígenas (...) não havia a menor dúvida
de que sofrem e vêm sofrendo racismo desde a chegada dos europeus ao continente, racismo que
se estende também, é preciso dizer, à forma como são tratados pela universidade (MILANEZ, et al,
2019, p. 2170).

É necessário reconhecer o racismo como um sistema estruturado em muitas dimensões - epistêmica, política,
cosmológica, institucional – contra os povos indígenas. No referido artigo são inseridos depoimentos indígenas nos
quais se reafirma o racismo, alguns dos quais destacamos a seguir:
As relações do Estado brasileiro com os povos indígenas são profundamente influenciadas por
uma histórica relação de genocídio, de extermínio, e uma expectativa hipócrita de que os que
sobrevivessem seriam mantidos em reservas cercadas por agronegócio, reservas sempre prestes a
serem invadidas por garimpeiros, por fazendeiros, e descritas até por alguns presidentes da FUNAI
como ‘não produtivas’, como contrárias aos interesses da sociedade brasileira. É uma relação de
desigualdade, de segregação que penaliza os povos indígenas de uma maneira tão disfarçada que
parece um benefício. Assim como o Brasil consegue ter, na visão de alguns, a experiência do racismo
cordial, ele também consegue produzir um outro fenômeno que é o benefício racista, que é quando
você, a pretexto de proteger alguém, de preservar algum direito, na verdade segrega e controla. O
racismo, ele se disfarça o tempo todo (KRENAK, MILANEZ, et al, 2019, p. 2171-2172).
Nós, indígenas, temos que conviver todo dia tendo que provar a existência, a vida, mas já com
a morte decretada. É um negócio meio maluco a gente provar que está vivo, quando outros que
estão no lugar do poder disseram que você não existe mais. E o meu povo vem dessa experiência
colonizadora, tentando compreender o porquê dessa ausência, uma ausência que, na verdade, foi
sempre uma presença, porque a cara de índio ficou. Isso é uma forma de racismo institucional
porque é uma decisão de Estado, do governo, que diz assim: “você não existe, meu irmão”. E o meu
povo viveu isso. Uma decisão do Estado: “vocês não existem mais” (GAMELA, MILANEZ, et. al,
2019, p. 2172).

As ações do governo brasileiro no tempo presente estão em fina sintonia com as práticas de racismo
historicamente engendradas. Argumentamos, assim, que o atual governo age para solidificar o racismo estrutural
contra os povos indígenas na medida em que coloca em curso uma “antipolítica”, alicerçada no tripé da
desconstitucionalização dos direitos, da desterritorialização dos povos e na tentativa de integração dos indígenas
à sociedade majoritária. Antes, porém de abordarmos as faces desse processo de desregulamentação dos direitos
indígenas, retomamos as garantias constituídas, estas que hoje são alvos preferenciais das ações racistas e bélicas do
bolsonarismo contemporâneo.53

51 Disponível em: <https://memoria.ebc.com.br/cidadania/2015/07/quanto-mais-se-nega-existencia-de-racismo-mais-ele-


se-propaga-diz-ministra>. Acesso em 10 de agosto de 2021.
52 Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/sociedade/quanto-mais-se-nega-a-existencia-de- racismo-mais-ele-se-
propaga-diz-ministra-2416/>. Acesso em 10 de agosto de 2021.
53 Chamamos de bolsonarismo o conjunto de ações, estratégias e discursos articulados em torno de um projeto de extrema-
direita personificado na figura de Jair Messias Bolsonaro. De acordo com Reis (2020), o bolsonarismo é a face brasileira

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Ao empregarmos o termo bolsonarismo, entendemos que as ações transcendem a figura de Jair Bolsonaro,
atual chefe do executivo federal, e envolvem segmentos do legislativo, do judiciário e da sociedade como um todo,
que são seus aliados.

2. Direitos e garantias instituídos numa longa trajetória de lutas – ou daquilo que está no alvo
dos ataques bolsonaristas
Na Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 1988, são estabelecidos os direitos
fundamentais, sociais e humanos, que se aplicam a todos os cidadãos. Especificamente sobre os direitos indígenas
(Capítulo VIII: Dos Índios), o Artigo 231 estabelece que “são reconhecidos aos índios sua organização social,
costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens” (Art. 231, caput).

As terras indígenas são a base sobre a qual se produzem as formas próprias de viver dos diferentes povos e,
por isso, nos termos constitucionais, “são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis” (Art.
231, § 4º). Essas terras são parte do patrimônio da União e, por isto, recai sobre a esfera federal a responsabilidade de
demarcar, proteger e fazer respeitar seus limites.
É necessário fazer referência também ao que determina o Artigo 20, XI, da Constituição. Nele
fica estabelecido que as terras tradicionais indígenas são bens da União e, portanto, o título de
propriedade não é indígena. Essa norma protege não somente a ocupação física da terra, mas
também o direito à ocupação tradicional. Se extrai deste conteúdo, combinado com o artigo 231,
que o uso da terra não se restringe aos aspectos econômicos e sociais, pois projetam uma expectativa
futura, onde os Povos tenham condições de se expressarem (social, política e economicamente)
a partir das suas diferenças étnicas. E é obrigação do Estado assegurar-lhes proteção às áreas
ambientais, aos espaços sagrados e àqueles de caráter simbólico, tendo como referência o futuro do
Povo (CUPSINSKI, et al, 2021, p. 513).

O usufruto sobre as referidas terras é exclusivo das comunidades indígenas e, por essa razão, a Constituição
afirma que “são nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o
domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos
lagos nelas existentes” (Art. 231, § 6º). Sobre o reconhecimento da tradicionalidade destas terras, afirma-se no § 1º do
mesmo artigo que “são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente,
as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a
seu bem-estar e as necessárias à sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições”.

Em dispositivos constitucionais e infraconstitucionais asseguram-se aos indígenas outros direitos,


concernentes, por exemplo, ao atendimento diferenciado em saúde, ao reconhecimento de suas pedagogias e
processos próprios de aprendizagem (Art. 210, § 2º), à consulta livre, prévia e informada sobre programas que
impactam suas terras, à participação indígena no planejamento e na fiscalização de ações públicas a eles destinadas
(Convenção OIT 169).

3. Desconstitucionalização, desterritorialização e integração: o tripé da antipolítica indigenista


O momento atual coloca-nos a urgência de um debate sobre os direitos dos povos indígenas que estão sendo

de um movimento mundial no qual a extrema-direita vem ganhando espaço e expressão. A afirmação do bolsonarismo
se dá pelo agenciamento de três dimensões: das tradições autoritárias que marcam a história da sociedade brasileira; o
ressentimento pela consolidação de direitos e princípios democráticos a partir da aprovação da Constituição de 1988; as
reações anti-petistas mobilizadas na campanha eleitoral de Jair Bolsonaro.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

franca e abertamente confrontados. Vemos ser ativamente produzida uma sensação de insegurança jurídica no que
tange aos direitos individuais e coletivos dos povos indígenas (e também quilombolas e comunidades tradicionais)
a partir da estruturação de uma antipolítica indigenista e que vem alicerçada no tripé da desconstitucionalização
dos direitos, da desterritorialização dos povos e da tentativa de integração dos indígenas à sociedade majoritária,
conforme indicado anteriormente.

Chamamos de antipolítica o conjunto de medidas e ações governamentais que contrariam direitos inscritos
no texto constitucional e que fragilizam instâncias voltadas à proteção e promoção das formas de viver indígenas
(LIEBGOTT, 2020). Tem-se, assim, uma deliberada ação de desmonte de estruturas e de políticas que foram sendo
consolidadas, ao longo de décadas, por meio da mobilização e da articulação dos povos e suas instâncias organizativas.
O desmonte e a fragilização dos preceitos legais de proteção aos indígenas amplia os riscos e expõe os povos
indígenas ao perigo, constituindo-se, assim, em ação de base racista, conforme argumentado anteriormente. Através
de discursos contra a demarcação de terras e em prol de sua exploração, o governo amplifica o risco aos indígenas.
Em pronunciamentos, desqualifica-os como sujeitos de direitos, afirmando que os “índios estão se tornando cada vez
mais humanos” e, portanto, seus direitos específicos e diferenciados seriam privilégios. A antipolítica de Bolsonaro
tornou os povos originários e comunidades tradicionais inimigos a serem combatidos.

A desterritorialização, primeiro aspecto da antipolítica, diz respeito a tudo aquilo que limita o usufruto
exclusivo das terras pelos indígenas e que se alicerça no anseio de liberá-las ao capital privado, estejam elas
demarcadas ou não. Por um lado, o governo inviabiliza os procedimentos de regularização fundiária e, por outro,
não coíbe as invasões, a exploração ilegal dos recursos, os desmatamentos, a grilagem, as queimadas, os loteamentos,
os arrendamentos de terras.

Os povos, neste contexto, ficam cada vez mais ameaçados, uma vez que o estado, ao invés de protegê-los,
tornou-se o agressor. Há um incentivo à invasão garimpeira por parte do governo federal, quando a Constituição
de nosso país proíbe atividades dessa natureza em terras indígenas e condiciona, as minerárias, a uma lei
específica, mediante autorização do Congresso Nacional e ouvidas as comunidades afetadas. Mas, apesar das
regras constitucionais, acompanhamos uma escalada sem precedentes de invasão garimpeira em áreas indígenas,
demarcadas ou em demarcação, especialmente nas terras Yanomami, Raposa Serra do Sul, Munduruku, etc. Há
centenas de requerimentos apresentados por empresas de mineração ao Departamento Nacional de Produção
Mineral – DNPM – vinculado ao Ministério de Minas e Energia. Estas empresas pretendem exercer exploração em
terras indígenas, mas são impedidas já que não existe, ainda, lei complementar. Ao que parece, o garimpo, que é
ilegal, torna-se uma espécie porta de entrada para posterior implementação minerária.

O garimpo constitui-se em processo devastador das terras, do meio ambiente e dos modos de ser e viver das
comunidades. Há, como mais um agravante, forte articulação dos setores que promovem o garimpo junto ao governo
Bolsonaro e as bancadas parlamentares dos estados da Amazônia. A expropriação do direito e a busca por expansão
dos espaços de exploração comercial são expressões contundentes do bolsonarismo. Esse tipo de posicionamento
tem sido, no atual contexto, deflagrador das invasões e responsável pelo aumento dos índices das violências contra
a pessoa, contra a saúde e o patrimônio público. Exemplo contundente a invasão de mais de 20 mil garimpeiros à
terra Yanomami, estado de Roraima, nos meses iniciais de 2021. Foram promovidos, naquele estado, ataques contra
os indígenas e contra agentes da Polícia Federal.54

Tantas formas de exploração e de invasão territorial obrigam as comunidades a migrar de um lugar para outro,
porque a terra está sendo desmatada, queimada, escavada e aniquilada pela ação dos madeireiros e garimpeiros que,
além dos riscos a que submetem as comunidades (YANOMAMI, MUNDURUKU, MAKUXI, SURUI, por exemplo)
contaminam o ar, as águas e comprometem a qualidade de vida. Os povos sentem-se agredidos e impactados pela

54 Ver matéria jornalística em: <https://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2021/05/21/policia-federal-envia-agentes-a-


comunidade-na-terra-yanomami-alvo-de-ataques-de-garimpeiros.ghtml>. Acesso em 06 de agosto de 2021

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

violência das invasões e destruição ao meio ambiente. Há medo entre os Karipuna, de Rondônia, ao ouvir, de suas
aldeias, o ronco das motosserras, metáforas de destruição de uma natureza sagrada para todos os seres que nela
habitam. São vidas ameaçadas de morte pelos grileiros e loteadores de terras.

Outro destaque pode ser feito aos incêndios criminosos, uma prática que atingiu povos da Amazônia (Acre,
Amazonas, Pará, Amapá, Maranhão, Roraima, Rondônia, Mato Grosso) povos do Cerrado (Tocantins, Goiás, Mato
Grosso, Minas Gerais, Maranhão, Piauí, Mato Grosso do Sul, Bahia), povos do Pantanal (Mato Grosso e Mato Grosso
do Sul) que tiveram suas terras e vidas devastadas.

E há povos que perderam as terras para invasores e, apesar das constantes denúncias e reivindicações, o poder
público nada fez para ampará-los. Uma das estratégias de desterritorialização é a paralisação de procedimentos de
demarcação das terras indígenas, ato administrativo sob a responsabilidade da FUNAI. O contexto é de violência
cotidiana, tanto daqueles que vivem em terras demarcadas, como daqueles que lutam por elas. E sem a garantia das
terras, algumas comunidades permanecem às margens de rodovias ou em áreas degradadas. Esta dramática situação
afeta os Guarani Kaiowá, em Mato Grosso do Sul, os Kaingang, Mbya e Ava Guarani, no Sul do Brasil.

Liebgott (2011) afirma que, no Rio Grande do Sul, existem 77 terras indígenas (a maioria aguardando que
se realizem os procedimentos de demarcação) e, destas, 22 são identificadas como acampamentos e estão situadas
à beira de rodovias. Essas comunidades Kaingang e Guarani vivem entre cercas e barrancos, nas proximidades de
fazendas instaladas sobre suas terras tradicionais. A condição degradante em que se encontram é resultante de uma
história de esbulho territorial, na qual um violento processo de expropriação abriu trincheiras para a instalação de
novas colônias no final do século XIX e primeiras décadas do século XX. Nas condições de vida em acampamentos,
quando existe alimentação, ela provém do esforço das próprias comunidades e/ou de doações feitas por pessoas
ou organizações da sociedade civil. A realidade dos povos mostra rostos de crianças subnutridas, porque não há
alimentação adequada. Além disso, a vida cotidiana nos acampamentos priva-os de áreas para pequenos plantios, de
água potável para beber, banhar-se e lavar as roupas.

Como segundo aspecto da antipolítica, consolida-se na desconstitucionalização de direitos através de


medidas que fragilizam os órgãos de fiscalização e proteção do patrimônio da União (INCRA, IBAMA, FUNAI, por
exemplo); como também através da implementação de medidas administrativas que criam obstáculos à ocupação
dos territórios pelos indígenas; através da proposição de medidas legislativas voltadas à exploração de recursos
ambientais e minerais e, ainda das tentativas de validação de teses jurídicas que restringem o alcance dos preceitos
constitucionais – a exemplo do marco temporal, que será abordado adiante.

Podemos destacar o que vem ocorrendo com a FUNAI, que deveria proteger e resguardar os povos indígenas,
mas que tem sua ação canalizada para a mediação das negociações para uso e exploração das terras por terceiros.
Na gestão governamental atual, o órgão indigenista passou a ser orientado e conduzido por segmentos que são
historicamente antiindígenas – os empresários do agronegócio, da mineração, do ruralismo, do fundamentalismo
religioso e de militares. Estes definem como a Funai deve atuar e conduzem a política de governo destinada aos
povos indígenas. Se anteriormente havia morosidade nas ações, agora ocorre a inviabilização da Funai, enquanto
estrutura de Estado voltada a desenvolver as políticas de proteção dos povos e seus territórios.

As consequências dessa face da antipolítica se refletem na paralisação de todas as demarcações de terras,


nas restrições orçamentárias para as ações e serviços, no abandono das atividades voltadas à proteção dos povos em
situação de isolamento e risco à fiscalização das terras demarcadas, em especial na Amazônia. Tome-se, ainda, como
exemplar deste desmonte e fragilização de instâncias de proteção aos indígenas o ofício circular – 28/08 de 2020 – do
presidente da Funai, Marcelo Augusto Xavier Silva, que “retoma a ideia da tutela do Estatuto do Índio de 1973, Lei
6001, mas agora ao reverso, ou seja, não para protegê-los, mas para inibi-los, controlá-los, amedrontando-os a não
agirem em sua defesa, pelos seus direitos e pelas suas terras” (LIEBGOTT, 2020). No referido ofício, defende-se “a
possibilidade de atuação jurídica da Funai em caso de invasão de propriedade particular por indígenas integrados”.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Não bastasse a busca de deslegitimação da luta e da identidade indígena (feita sob o argumento de que se trata
de indígenas integrados), o teor do ofício incita a uma ação que coíbe e ameaça os povos em suas estratégias de
enfrentamento da desterritorialização.

Outro aspecto a destacar, acerca da desconstitucionalização dos direitos, é o investimento na tese do marco
temporal, que confronta o princípio do indigenato. Sobre este último, o jurista Afonso da Silva (2000, p. 831) afirma que
Os dispositivos constitucionais sobre a relação dos índios com suas terras e o reconhecimento de
seus direitos originários sobre elas nada mais fizeram do que consagrar e consolidar o indigenato,
velha e tradicional instituição jurídica luso-brasileira que dita suas raízes já nos primeiros tempos
da Colônia, quando o Alvará de 1.º de abril de 1680, confirmado pela Lei de 06 de junho de 1755,
firmara o princípio de que, nas terras outorgadas a particulares, seria sempre reservado o direito
dos índios, primários e naturais senhores delas.

O jurista Dalmo de Abreu Dallari vincula o direito constitucional ao que estabelece a Convenção 169 da
Organização Internacional do Trabalho, pois, para ele:
É possível sustentar que os objetivos inspiradores do art. 14 da Convenção nº 169 da OIT são
coincidentes com os que deram origem ao art. 231 da Constituição. E os efeitos de ambos são
praticamente os mesmos, pois se é verdade que pelo fato de não serem proprietários os índios
brasileiros não poderão dispor das terras que tradicionalmente ocupam é igualmente certo que
também a União, embora proprietária, não tem o poder de disposição (DALLARI, 1991).

Com base nos preceitos legais indicados, entende-se que a imposição de um marco temporal – correspondente
à promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 5 de outubro de 1988 – é equivocada, posto que
instituiria “como data insubstituível e componente necessário para determinar ocupação de um determinado espaço
geográfico por essa ou aquela etnia aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam” (CUPSINSKI, Et al, 2021, p. 516). Ademais, os autores argumentam
que a aplicação do chamado marco temporal não recebe respaldo constitucional, ao contrário, representa uma
afronta a uma série de direitos e garantias fundamentais.

Problematizando também a tese do marco temporal, Silva (2016, sp), indaga:


Onde está isso na Constituição? Como pode ela ter trabalhado com essa data, se ela nada diz a
esse respeito nem explícita nem implicitamente? Nenhuma cláusula, nenhuma palavra do art. 231
sobre os direitos dos índios autoriza essa conclusão. Ao contrário, se se lê com a devida atenção o
caput do art. 231, ver-se-á que dele se extrai coisa muito diversa. (...) O termo “marco” tem sentido
preciso. Em sentido espacial, marca limite territorial. Em sentido temporal, como é o caso, marca
limites históricos, ou seja, marca quando se inicia algum fato evolutivo. O documento que marcou
o início do reconhecimento jurídico-formal dos direitos dos índios foi a Carta Régia de 30 de junho
de 1611, promulgada por Fellipe III, que firmou o princípio de que os índios são senhores de suas
terras, “sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se lhes fazer moléstias ou injustiça alguma
(SILVA, 2016, s/p).

As tentativas de estabelecer a tese do marco temporal emergem tanto de setores do Poder Judiciário, quanto
do Legislativo. Neste último, encontra-se em tramitação, em fase adiantada, o PL 490/2007. A este Projeto de Lei
foram apensados 13 outros, tendo por objetivo a modificação da Lei 6.001/1973 (Estatuto do Índio) e pretende firmar
entendimento sobre precedentes mais antigos do STF e, ao mesmo tempo, segue uma linha de reinterpretação do
julgado no caso Raposa Serra do Sol - Pet 3388/RR, introduzindo, ao parecer, as teses do marco temporal, o renitente
esbulho e as condicionantes todas do caso Raposa Serra do Sol. Com essa estratégia incorporam-se à proposta de lei
as medidas já adotadas pelo Governo Federal no Parecer 001/2017/GAB/CGU/AGU- da Advocacia Geral da União.

A tese do marco temporal, bem como as condicionantes do julgamento da ação popular contra a homologação
de Raposa Serra do Sol não encontram guarida no texto constitucional relativo às demarcações de terras, conforme

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

sustentado anteriormente. O resultado do julgamento contra Raposa Serra do Sol demonstra que se pretendia dar a
devida legitimidade ao trabalho demarcatório realizado pela Funai. O voto-vista apresentado pelo ministro Carlos
Menezes Direito - o qual propôs as 19 condicionantes e o marco temporal ao procedimento demarcatório daquela
terra - deve ser analisado com cuidado para que não sejam generalizadas as decisões daquele julgamento. Isso
porque, sobre as condicionantes e o marco temporal foram interpostos vários embargos de declaração que, por um
lado, tinham o intuito de rejeitar as condicionantes, e, por outro lado, de vinculá-las às demais demarcações de terras
no país. Os embargos da Pet 3388/RR55 foram julgados e os ministros do STF, em sua maioria, se manifestaram no
sentido de restringir – condicionantes e o marco temporal – ao caso concreto de Raposa Serra do Sol.
A decisão do Supremo diz respeito a um caso específico. Não criou jurisprudência geral coisa
nenhuma. Pode ser que, no futuro, o STF afirme alguma outra coisa, mas, até lá, um caso único e
específico pode até criar um precedente, mas não uma jurisprudência. O que a AGU está fazendo é,
a partir da sua própria interpretação do que os ministros decidiram em 2009, estender para todos
os outros casos a decisão (Agência Brasil, 20/07/2012).

Com o julgamento a Pet 3388/RR (DJe de 01/07/2010), o STF deixa evidente que o Art. 231, § 1º, da
Constituição Federal não cria marco temporal vinculando as demarcações futuras, mas estabelece que, no caso
concreto da terra indígena Raposa Serra do Sol, havia que se estabelecer, não somente um delimitador para
reconhecimento da demarcação, mas acima de tudo para dizer que ao longo da história os povos daquela terra
foram esbulhados. Justifica-se, neste caso, a argumentação do renitente esbulho. Segundo o STF, “o renitente esbulho
se caracteriza pelo efetivo conflito possessório iniciado no passado e persistente até o marco demarcatório temporal
da data da promulgação da Constituição de 1988, materializado por circunstâncias de fato ou por controvérsia
possessória judicializada”.

Portanto, a polêmica estabelecida no âmbito do Poder Judiciário – através de decisões de juízes,


desembargadores e ministros – utilizando-se da tese do marco temporal e do renitente esbulho servem, em essência,
para estabelecer limites aos direitos e condicionar - povos e comunidades – a apresentação de provas de que estavam
sobre a terra, ou em conflito e/ou em disputa processual pela área pleiteada naquele período – comprovando o
renitente esbulho. Há, todavia, que se dizer que o esbulho contra indígenas e quilombolas é comprovado pela história
passada e recente de nosso país. São fartas as bases documentais que comprovam terem ocorrido intensos conflitos,
esbulhos e expulsões dos indígenas das terras que habitavam tradicionalmente. Também são fartas as fontes que
mostram que os povos eram impedidos de voltar às terras ou de pleiteá-las, dadas às pressões políticas e as violências
sofridas. O renitente esbulho não deve e não pode ser caracterizado pelo conflito evidente, aparente ou de fácil
caracterização, mas, sobretudo, deve ser investigado aquele que se prolongou ao longo do tempo em função de um
leque interminável de circunstâncias, que não apenas os conflitos físicos, armados e/ou judicializados.

A presença contemporânea dos povos indígenas e das comunidades quilombolas em luta pela terra é a
comprovação do renitente esbulho. Eles não sucumbiram ao passado, vivem no presente e deles – povos e comunidades
de hoje –o Estado e o Poder Judiciário devem se preocupar. Acerca do instituto do renitente esbulho, o jurista Afonso
da Silva (2016) observa que não é correto interpretar, à luz da Constituição Federal, que os conflitos envolvendo
terras indígenas tenham um caráter tipicamente possessório na forma caracterizada pelo direito civil, porque a
ocupação indígena não é uma mera posse, mas fundamentada no indigenato. Para eles a ocupação é alicerçada em
direitos originários, de sorte que quando o não-índio se apossa dessas terras, ele não retira apenas a posse dos índios
sobre elas, mas um conjunto de direitos que integram o conceito de indigenato.

Vale salientar que, no julgamento do caso Raposa Serra do Sol-Pet 3388/RR, o ministro Ministro Ayres
Britto trouxe os elementos do indigenato para reafirmar os direitos territoriais indígenas. O indigenato, segundo

55 Disponível em: <http://stf.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/25136325/embdecl-na-peticao-pet-3388-rr-stf>. Acesso em 20


de julho de 2021.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

ele, garante o direito primeiro, a primeira posse, o que não admite o esbulho e a segunda posse (nula, nos termos do
artigo 231 da CF). Nesse sentido, o jurista apresenta uma conceituação do direito originário nos seguintes termos:
Os direitos dos índios sobre as terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente
“reconhecidos”, e não simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se torna de
natureza declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório é uma situação jurídica
ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de “originários”, a traduzir
um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre pretensos direitos
adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos de legitimação de posse em
favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição declarou como “nulos e extintos” (§ 6º
do art. 231 da CF). (Ementa do acórdão Pet. 3.388/RR).

Assim, a interpretação restritiva de esbulho renitente como controvérsia possessória judicializada é inaceitável
porque:
A controvérsia não é tipicamente possessória..., ou seja, não é uma disputa individual em que um
possuidor retira a posse do outro, pois os direitos originários dos índios sobre a terra não pertencem
a eles como indivíduos, mas às comunidades indígenas; demais os índios e as comunidades
indígenas antes da Constituição de 1988 não tinham legitimidade processual, pois estavam sujeitas
ao regime tutelar, de sorte que exigir deles o cumprimento de ônus, qual seja a defesa das terras
que ocupam, que são de propriedade da União, e que, pela sua situação de tutelado, não podem
cumprir, é desconhecer que o direito (SILVA, 2016, s/p).

Há que se considerar, em tempos da tutela governamental, as fontes históricas e as frequentes denúncias que
indicam a responsabilidade dos próprios órgãos de assistência pelo esbulho e exploração das terras, tendo alguns
servidores públicos atuado para coibir e reprimir as comunidades e lideranças indígenas. Nessa direção, o Relatório
Figueiredo56 registra atrocidades praticadas contra as comunidades indígenas nos anos de 1950 a 1970. Portanto, no
âmbito do Poder Judiciário, os indígenas não agiam porque eram impedidos, e somente após a Constituição de 1988
eles são considerados sujeitos de direitos individuais e coletivos – Artigo 232 da CF: “Os índios, suas comunidades
e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o
Ministério Público em todos os atos do processo”. Assim, estes não devem ser punidos porque não ingressaram com
reclamatórias na justiça em um contexto no qual tal ação não lhes era facultada.

Ainda hoje, observa-se que, na maioria das demandas contra as demarcações de terras, os povos e suas
comunidades não estão sendo intimados ou citados para responder e se fazer representar. Isso implica, conforme a
Constituição Federal, na nulidade das ações em que os povos não foram citados – sendo eles partes legítimas tanto
no polo passivo, como no ativo das ações. Os exemplos apresentados até aqui mostram que há um processo de
desconstitucionalização de direitos indígenas, centralmente voltados para aqueles que se referem aos territórios e ao
usufruto exclusivo destes pelas comunidades.

Por fim, o terceiro aspecto da antipolítica do atual governo diz respeito ao retorno às estratégias de integração
dos povos à “comunhão nacional”. Em pronunciamentos presidenciais fica evidente a tentativa de reativar medidas
políticas, jurídicas e legislativas inauguradas na ditadura militar, período em que se apregoava a gradativa integração

56 Trata-se do Relatório Jader Figueiredo ao Ministério do Interior, no qual se investigam crueldades praticadas contra
indígenas em todo o país — principalmente por latifundiários e funcionários do extinto Serviço de Proteção ao
Índio (SPI). Supostamente eliminado em um incêndio no Ministério da Agricultura, o relatório foi encontrado
em 2013 no Museu do Índio, no Rio de Janeiro, com mais de 7 mil páginas preservadas e contendo 29 dos 30 tomos
originais. Entre denúncias de caçadas humanas promovidas com metralhadoras e dinamites atirados de aviões,
inoculações propositais de varíola em povoados isolados e doações de açúcar misturado a estricnina – um veneno
–, o texto, redigido pelo então procurador Jader de Figueiredo Correia, deve ser analisado agora pela Comissão
da Verdade, que apura violações de direitos humanos cometidas entre 1946 e 1988. <http://6ccr.pgr.mpf.mp.br/
institucional/grupos-de-trabalho/gt_crimes_ditadura/relatorio-figueiredo>. Acesso em 20 de julho de 2021.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

dos indígenas à comunhão nacional e não o respeito às culturas, organizações sociais, crenças e modos de viver destas
coletividades. A busca pela dissolução das diferenças, implementada tanto no âmbito das políticas públicas, quanto
no plano de ruptura do preceito de usufruto exclusivo dos territórios pelos povos originários pode ser pensada como
prática racista, na medida em que se sustenta em hierarquias sociais e em entendimentos de que um modo de viver
(capitalista, exploratório, desenvolvimentista) seria superior aos outros (comunitaristas, de reciprocidade, de bem
viver, de produção sem depredação).

A seguir, destacamos alguns exemplos da perspectiva integracionista – de base racista – mobilizada por
Bolsonaro. No ano de 2018, quando era ainda candidato à presidência, Bolsonaro afirma sobre os indígenas em seu
futuro governo que: “Vamos integrá-los à sociedade. Como o Exército faz um trabalho maravilhoso tocante a isso,
incorporando índios”.57

Em São Paulo, em 06 de agosto de 2019, como parte de um discurso repleto de ironias, Bolsonaro questiona
a precisão dos dados sobre o desmatamento da Amazônia e afirma: “Sou o capitão motosserra (...) Se eu fosse
rei de Roraima, com tecnologia, em 20 anos teria uma economia próxima à do Japão. Lá tem tudo. Mas 60% está
inviabilizado por reservas indígenas e outras questões ambientais”.58

Em 24 de setembro de 2019, discursando na 74ª Assembleia Geral das Nações Unidas (ONU), na sede da
organização, em Nova York, nos Estados Unidos, Bolsonaro declarou: “Hoje, 14% do território brasileiro está demarcado
como terra indígena, mas é preciso entender que nossos nativos são seres humanos, exatamente como qualquer um
de nós. Eles querem e merecem usufruir dos mesmos direitos de todos nós”, prosseguiu afirmando com veemência:
“Quero deixar claro: o Brasil não vai aumentar para 20% sua área já demarcada como terra indígena, como alguns
chefes de Estados gostariam que acontecesse”. E insinuou, ainda, que “algumas pessoas, de dentro e de fora do Brasil,
apoiadas em ONGs, teimam em tratar e manter nossos índios como verdadeiros homens das cavernas”.59

Em janeiro de 2020, durante transmissão em vídeo realizada nas redes sociais, Bolsonaro, declara: “Com
toda a certeza, o índio mudou, tá evoluindo. Cada vez mais o índio é um ser humano igual a nós”.60 Em várias outras
ocasiões, o atual presidente afirmou que os indígenas não podem “continuar sendo pobres em cima de terras ricas”,
referindo-se principalmente aos depósitos minerais presentes em territórios indígenas na Amazônia. Em outras
ocasiões, disse que os indígenas são “pobres coitados” e que “nosso projeto para o índio é fazê-lo igual a nós”.

Em seu último pronunciamento, em 9 de agosto de 2021 – Dia internacional dos Povos Indígenas –, em uma
solenidade em Brasília, o Presidente afirmou que a legislação deve ser mudada para que os indígenas produzam, tal como
os fazendeiros, pois, deste modo, teriam dignidade. Afirmou, ainda, que o que os índios querem é produzir, plantar soja,
trigo, grãos, e explorar reservas minerais, “eles querem é cada vez mais se integrar à sociedade, e trabalhar...”.

Nas passagens destacadas observa-se a desqualificação das formas de viver e pensar indígenas – reiteradamente
o presidente afirma serem eles pobres coitados, e insinua que, ao se integrarem, vão se tornando efetivamente
humanos. Nesse sentido, a humanidade seria dada pela identificação com a cultura majoritária. Pode-se entender
que, para o presidente, os indígenas em suas culturas e formas próprias de viver seriam menos humanos. O apelo
a um sentido de primitivismo também se faz notar nas falas de Bolsonaro, em comparação a uma suposta forma
modelar de vida, desenvolvida, produtiva, viável. Nesse sentido, observa-se nos recortes anteriores a afirmativa de
que as terras indígenas inviabilizariam o desenvolvimento de estados e do país.

57 Disponível em: <https://www.survivalbrasil.org/artigos/3543-Bolsonaro>. Acesso em 06 de agosto de 2021


58 Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/meio-ambiente/ultimas-noticias/redacao/2019/08/06/bolsonaro-ironiza-
criticas-sobre-desmatamento-sou-o-capitao- motosserra.htm>. Acesso em 06 de agosto de 2021.
59 Discurso disponível, na íntegra, em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2019- 09/presidente-jair-bolsonaro-
discursa-na-assembleia-geral-da-onu>. Acesso em 06 de agosto de 2021.
60 Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2020/01/23/indio-ta-evoluindo- cada-vez-mais-e-
ser-humano-igual-a-nos-diz-bolsonaro.htm>.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

A integração seria, assim, a solução final para desobstruir os territórios, tal como apregoavam governos
militares de outros tempos. Em relação aos sentidos de trabalho, também se faz notar o estereótipo, de senso comum,
de que os indígenas não trabalhariam e que, somente ao se inserirem nas formas produtivas capitalistas, estariam
trabalhando. Esse conjunto de argumentos liga-se a um pensamento racista sobre os povos indígenas.

4. Considerações finais
No presente texto, argumentamos que o racismo contra povos indígenas opera, por um lado, promovendo
a morte direta, como no caso do assassinato brutal da jovem Kaingang Daiane Griá Sales, de 14 anos, e de tantos
outros crimes de ódio de que são vítimas os indígenas. Morte que se promove por ação e omissão do estado, e se
contabiliza em mais de 113 pessoas assassinadas, 133 suicídios, 80 ameaças e agressões contra indígenas, conforme
dados do Cimi relativos ao ano de 2019. Morte que se promove, também, por meio da invasão garimpeira, dos
incêndios criminosos, da grilagem das terras, da paralisação das demarcações e da permanência em acampamentos
provisórios por numerosas famílias indígenas. Morte que tem, inclusive, dimensões simbólicas e que se expõe no
não reconhecimento das identidades, das ancestralidades e dos direitos originários sobre as terras que os povos
tradicionalmente ocupam.

Para além da ação direta de matar, o racismo também se expressa na forma de uma anti política indigenista,
por meio da qual se gera insegurança territorial e jurídica, uma vez que as demarcações de terras e as ações de
proteção e fiscalização das áreas foram suspensas, propiciando um avassalador processo de invasão e esbulho,
conforme argumentamos neste texto. Desse modo, os riscos à vida são multiplicados, os povos são expostos ao
perigo, seus meios de vida são fragilizados.

Por meio da desterritorialização, da desconstitucionalização dos direitos e de um renovado integracionismo,


ocorre a amplificação da violência, das mortes e, portanto, do extermínio. Uma ofensiva aos preceitos constitucionais
gera grave insegurança, sobretudo no que concerne ao direito à terra, espaço que sustenta a vida, a resistência, a luta e
as perspectivas de futuro dos povos indígenas. Diante deste contexto adverso, os povos, comunidades e movimentos
indígenas - com suas redes de apoios na sociedade civil - realizam intensas mobilizações visando a garantia da vida
e a defesa dos direitos inscritos no texto constitucional.

Referências

ADVOCACIA GERAL DA UNIÃO. Parecer 001/2017. ISA – Instituto Socioambiental. Disponível em: <https://
www.socioambiental.org/pt-br/tags/parecer-0012017-da-agu>. Acesso em: 24 Mar. 2021.
BONIN, Iara Tatiana. “Pela Ordem e pelo progresso”: cartografias do racismo contra os povos indígenas no Brasil
contemporâneo. Anais. XI Reunião Regional da ANPED – XI AnpedSul – Curitiba, PR, 24 a 27 de julho de 2016.
BRASIL. CONSTITUIÇÃO (1988). Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional
promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações determinadas pelas Emendas Constitucionais de Revisão
nos 1 a 6/94, pelas Emendas Constitucionais nos 1/92 a 85/2015 e pelo Decreto Legislativo no 186/2008. Senado.leg.
br, 2015. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/handle/id/508200>. Acesso em: 24 Mar. 2021.
CIMI. Conselho Indigenista Missionário. Violência contra os povos indígenas no Brasil: Dados de 2019. Disponível
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seus-territorios-aponta- relatorio-do-cimi/>.

70
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

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71
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

IMIGRANTES, PROTESTANTISMO E OS INDÍGENAS


Sandro Luckmann 61

A chegada dos imigrantes no Brasil fez parte da estratégia geopolítica governamental de consolidar o
território brasileiro e proteção das fronteiras internacionais, sobretudo pela iminência de incursões na região do
Prata. Para a ocupação territorial, havia a necessidade premente de soldados para formação do exército, de colonos,
enfim, de muitas pessoas. Tais demandas foram assim definidas: “estradas tinham que ser construídas. As colônias
militares que guarneciam essas estradas precisavam de alimento. Precisava-se de colonos” (DREHER, 2005, p. 50).

Concomitante à estratégia geopolítica governamental, a chegada dos imigrantes europeus também atendeu
a outros dois propósitos, um racista e outro econômico. O primeiro considerava que o Brasil era constituído
majoritariamente pela população negra. Concebeu-se, então, a estratégia de branquear a população. Para tanto, fez-se
necessário permitir o ingresso de populações europeias, também protestantes, constituindo as bases para o segundo
propósito, de ordem econômica. O translado dos migrantes europeus ao Brasil também visou substituir a mão de obra
escrava, à qual a população negra estava submetida. Instituiu-se o regime da pequena propriedade familiar e o sistema
de “parceria” nas grandes fazendas, onde o imigrante branco substituía a mão de obra negra (DREHER, 2005, p. 50).

Os imigrantes que desembarcaram no Rio Grande do Sul a partir de 1824 foram assentados em terras
consideradas devolutas, apesar de serem habitadas e dominadas por diferentes grupos Kaingang. Conforme indicações
de Witt (1999, p. 43), historiador luterano, no período dos assentamentos dos imigrantes, os Kaingang dominavam
três áreas distintas: “duas áreas ficavam entre os rios Ijuí e Passo Fundo e uma terceira iniciava no rio Passo Fundo,
estendendo-se até à serra e os vales do Sinos e Caí”. Conforme Ítala Becker (1976, p. 58), as áreas dos assentamentos dos
imigrantes incidiram no território ocupado pelo grupo e comunidades Kaingang lideradas por Braga, a leste do rio Passo
Fundo até o vale do Sinos e Caí. A ocupação Kaingang era de longo tempo e, definitivamente, as terras não poderiam
ser consideradas como desocupadas ou devolutas. Ao contrário, para os Kaingang o assentamento dos imigrantes pode
ser caracterizado como “a ocupação de parte de seu espaço geográfico de sobrevivência” e o estabelecimento de uma
história de espoliação aos territórios tradicionais dos Kaingang (BECKER, 1976, p. 69; WITT, 1999, p. 43).

A realidade que se estabelece a partir de então, com os assentamentos em territórios tradicionalmente


dominados pelos Kaingang, foi o conflito, pilhagem, assaltos, sequestros e mortes entre os dois grupos, Kaingang e
imigrantes. Nos ataques, os Kaingang, além de defenderem o território, também obtiveram materiais, como metais,
fazendas (tecidos), mantimentos e sal, que passaram a utilizar (BECKER, 1976, p. 69). No conflito se evidenciaram
as dinâmicas distintas, das duas sociedades, de ocupação, manejo e utilização da terra para a subsistência. Para os
Kaingang, a necessidade de ocupação e domínio de amplo território se justificava pelo fato de sua economia se
basear na coleta e obtenção de fontes nutricionais em diferentes e dispersos nichos (SCHOULTEN, 1990, p. 36).
Em contraste, o modelo advindo com a imigração estabeleceu a derrubada da mata e a exploração da terra através
da agricultura intensiva. O modelo agrícola implantado pelas famílias imigrantes promoveu a espoliação do espaço
geográfico dominado pelos Kaingang, rompendo e desestruturando os fundamentos culturais Kaingang, uma vez
que a mata se constituía na fonte primária nutricional, medicinal e religiosa da cultura (SCHOULTEN, 1990, p. 38).

O assentamento das famílias imigrantes em territórios Kaingang caracterizou uma estratégia de ocupação
e segurança geopolítica do governo imperial. O conflito entre indígenas e imigrantes advindo dessa estratégia
afetou ambos os grupos, porém o intento governamental foi “garantir a posse dessas terras, valorizá-las e expulsar o
elemento indígena indesejado” (SCHOULTEN, 1990, p. 36). Contudo, ainda que pese o fato de o governo imperial se

61 Graduado em Teologia, pela Faculdades EST; Mestre em Educação nas Ciências, pela UNIJUI.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

abster no envolvimento direto no conflito e permitir que os imigrantes estabelecessem estratégias e meios de disputa
e defesa das terras concedidas, imputa-se ao governo imperial a concepção da estratégia geopolítica sob à custa da
terra e da vida dos povos indígenas. Witt (1999, p. 44) constata que “a possibilidade de tratar os índios como pessoas
com igualdade de direitos, respeitando sua cultura e sua língua e o espaço respectivo para a sua existência, nunca
foi considerada com sinceridade do ponto de vista da legislação e das respectivas políticas oficiais”. O historiador
luterano. Martin Dreher (1992, p. 18) pontua que tal fato também constitui a história da igreja de confissão luterana,
em virtude de que as famílias imigrantes evangélicas protestantes também foram usadas pelo império em sua
estratégia geopolítica e, por isso, foram envoltas na eliminação física de povos indígenas. Estes imigrantes também
foram assentados em “terras devolutas”, que segundo o historiador é sinônimo de terras indígenas, e se envolveram
em conflitos e disputas com os grupos indígenas.

Os grupos e comunidades Kaingang foram alijados e despojados de seu território de ocupação e domínio
tradicional, tendo como consequência a redução territorial, a carência alimentar e a impossibilidade de acessar e
obter novos bens materiais. Assim se estabelece o inconformismo e os ataques como estratégia de obtenção de bens
e víveres e a defesa territorial indígena. Essa estratégia aconteceu de acordo com a emergência e o desespero em
suprir suas necessidades, como ressalta Ítala Becker (1976, p. 59), ao afirmar o motivo da insatisfação e dos ataques:
“não é também uma simples atitude de cobiça que o faz agir nessa situação, mas sim, a satisfação de necessidades
bem primárias”. Por outro lado, os imigrantes afetados consideravam tais ataques como “violentações e injustiças
praticadas pelos índios” (BECKER, 1976, p. 69).

De forma geral, propõe-se dividir em dois períodos os ataques ou confrontos entre os indígenas e os imigrantes
colonizadores. Para tanto, se estabelece a constituição dos aldeamentos pelo governo provincial em meados do século
XIX como divisor dos dois períodos. Conforme Becker (1976, p. 58), os confrontos se acentuaram no primeiro período,
ou seja, anterior à constituição dos aldeamentos, sobretudo entre 1829 e 1832, no primeiro avanço colonizador. No
período posterior à constituição dos aldeamentos ocorreram casos isolados, com justificativas específicas, como, por
exemplo, os ataques liderados por Nicué, que, em decorrência de conflitos com outros grupos Kaingang, “realiza
diversos assaltos, onde se procura abastecer e onde rapta pessoas, possivelmente, para aumentar os braços femininos
do seu grupo” (BECKER, 1976, p. 69).Conforme levantamento de Becker (1976, p. 61), os municípios em que mais
se intensificaram os conflitos foram São Leopoldo, Caí, Montenegro, Taquara e Nova Petrópolis.

Os migrantes alemães evangélicos tomaram parte de projetos de colonização e ocupação territorial no Brasil
inicialmente na região sul e sudeste, onde estabeleceram comunidades religiosas protestantes e centenas de escolas
comunitárias e confessionais (ALTMANN, 2008, p. 108). Porém, nas primeiras décadas, os migrantes estavam
entregues à própria sorte. Apesar da liberdade religiosa, garantida pela Constituição do Império do Brasil, os migrantes
encontravam dificuldades na organização da vida de fé, como o impedimento da identificação exterior dos locais que
serviam de templo; questões concernentes ao matrimônio; educação de fé; o impedimento de sepultar em cemitério
público, pois eram administrados pela Igreja Católica (DREHER, 2005, p. 52). Além das questões de ordem religiosa,
os migrantes teutos também enfrentaram outras situações de marginalidade decorrentes de seu estabelecimento em
povoados em regiões pouco habitadas, que lhes expuseram a hostilidades e adversidades (DECKMANN, 1985, p. 15).

Os aldeamentos estabelecidos em meados do século XIX pelo governo provincial do Rio Grande do Sul,
no intento de reunir e concentrar as comunidades e grupos indígenas em espaços determinados, não impediram
que os Kaingang realizassem excursões e acessassem os territórios tradicionais, campos e matas para suprimento
nutricional, de que careciam nos toldos provinciais (BECKER, 1976, p. 59). Apesar das reclamações enviadas às
autoridades, coube aos próprios imigrantes estabelecer estratégias para evitar ou reprimir os ataques indígenas.
A constituição das Companhias de Pedestres62 surge neste contexto, como iniciativa de particulares, no intento

62 Biasi (2010, p. 13), em nota de rodapé, define as Companhias de Pedestre como “forças militares constituídas com

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

de controlar e limpar as matas, postulando o aprisionamento ou o extermínio dos grupos indígenas indesejados
(BECKER, 1976, p. 66). As Companhias de Pedestres arregimentaram a participação de indígenas, de grupos
dissidentes e adversários, destacando-se Victorino Cundá e Doble (BECKER, 1976, p. 67).

Os conflitos entre os imigrantes e indígenas também evidencia a perspectiva colonizadora de que a sociedade
indígena e seu modelo sociocultural deveriam ser suprimidos, sob o entendimento de que os imigrantes do século
XIX eram portadores da civilização. Essa perspectiva colonizadora dos imigrantes do século XIX insiste, de forma
semelhante, na perspectiva colonizadora colonial portuguesa, executada desde o século XVI. Por decorrência,
as possíveis iniciativas missionárias evangelizadoras também esbarravam em tal perspectiva preconceituosa ao
considerarem as comunidades indígenas carentes da civilização cristã (WITT, 1999, 44-45, 51).

O empreendimento de uma missão evangelizadora por parte dos imigrantes luteranos, que foram assentados
em terras tradicionais Kaingang, foi considerando no processo da constituição eclesial da igreja de confissão luterana.
Constata-se o impedimento para as missões entre as comunidades indígenas, além do preconceito colonizador ante
as comunidades indígenas, a própria estrutura eclesial, provisória e restrita, mesmo após o período dos conflitos,
na segunda metade do século XIX (WITT, 1999, p. 44-45). Outra questão que se estabeleceu no debate interno, na
incipiente constituição eclesial e na disposição em estabelecer “frentes missionárias além dos círculos étnicos” dos
imigrantes luteranos decorreu do entendimento de que o número de pastores e/ou diáconos estava aquém da própria
demanda de atendimento às comunidades eclesiásticas (WITT, 1999, p. 51).

Contudo, ainda no século XIX, após a criação do Sínodo Rio-Grandense, as comunidades evangélicas são
desafiadas a considerar a realidade indígena. Em 1888, foram publicados na revista Der Deustche Ansiedler 63 três
artigos sobre a situação de comunidades indígenas no Brasil.64 Conforme Witt (1999, p. 45), “diante destas notícias,
as comunidades evangélicas no Brasil foram lembradas de que, em relação aos indígenas, elas eram como pessoas
ricas frente ao pobre Lázaro que está à porta”. Apesar do desafio colocado às comunidades de imigrantes evangélicos
pelos pares da Alemanha, de se estabelecer uma missão entre povos indígenas, esbarrou-se na deficiência de recursos
financeiros e na eleição local de outras prioridades.

O desafio de uma missão entre indígenas foi retomado e abordado nas assembleias do Sínodo Rio-
Grandense, entre 1900 e 1905, ao se debater as primeiras experiências ou tentativas empreendidas pelo P. Bruno
Stysinski e pelos diáconos e missionários Otto von Jutrzenkae Curt Haupt no Rio Grande do Sul no início do
século XX (WITT, 1999, p. 46-47; 1994, p. 151-154).
A primeira tentativa de estabelecer uma missão entre indígenas foi realizada pelo P. Stysinski, que se deslocou
para conhecer a comunidade Kaingang do Toldo Pontal (ou Pontão), em Lagoa Vermelha/RS, na páscoa de 1900.
Conforme relato do P. Stysinski, a primeira atitude foi estabelecer contato com o cacique local, conhecido como
general Faustino, que, conforme avalia, o recebeu “amigavelmente”. Após se identificar e explanar a Faustino sobre as
intenções e pretensões de sua visita, o pastor presenteia o cacique e outros membros da comunidade. Após a entrega

a finalidade de manter a segurança dos colonos contra as chamadas ‘correrias’ indígenas. Deviam também proteger os
aldeamentos contra possíveis ataques de indígenas não aldeados. Essa força militar saía à procura dos indígenas no caso de
algum ataque e rapto de colonos e contavam com auxílio de ‘bugreiros’, força paramilitar de combate aos indígenas; faziam
verdadeiras caçadas e chacinas de indígenas que resistiam aos aldeamentos”.
63 Publicação da Sociedade Evangélica de Barmen/Alemanha, sendo a tradução do título: O Colono Alemão. A Sociedade
Evangélica de Barmen também é responsável pelo envio de “muitos pastores e professores para as comunidades evangélicas
no Rio Grande do Sul” (WITT, 1999, p. 45).
64 A primeira notícia tratava sobre “a existência de mais de milhão de índios no Brasil que ainda não tinham sido atingidos pela
atuação missionária”, em referência a uma matéria publicada por um jornal menonita norte-americano. A segunda notícia, oriunda
de jornais teuto-brasileiros, relatava a ação do bugreiro Joaquim Bueno e seu bando, que exterminavam comunidades indígenas
de 300 até 5000 indivíduos, através do envenenamento de águas, na divisa entre Paraná e São Paulo, região do Paranapanema. E
a terceira tratava da carta de um viajante alemão e sua incursão junto ao povo pareci no Mato Grosso (WITT, 1999, p. 45).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

dos presentes, o P. Stysinski se empenhou em obter informações sobre o histórico, a situação da comunidade e o
uso da língua Kaingang. Dialogou com muitos membros da comunidade e realizou visitas às moradias Kaingang,
concebidas como “choupanas” (WITT, 1999, p. 47). Em seu relatório o pastor conclui que “através da criação de uma
escola e um Direktorium (diretório) poderíamos preservar esta estirpe do extermínio e instruí-los [sic] para a honra
de Deus e o proveito da nossa pátria” (apud WITT, 1999, p. 48).
No período natalino de 1900, o P. Stysinski empreendeu nova viagem, esta à região de Nonoai, conhecendo os
toldos de Nonoai e Serrinha, considerados os dois maiores da região. O pastor avaliou que nesses toldos haveria maiores
avanços que em Pontal (ou Pontão), devido à maior aplicação, conhecimento da língua portuguesa, produtividade
laboral e conhecimento de conceitos religiosos. Apesar das considerações, o pastor constata que os indígenas “de modo
geral não são reconhecidos na legislação republicana como cidadãos. Suas matas e seus campos não estão demarcados,
sua propriedade não é reconhecida, nem são traçadas linhas de divisas” (apud WITT, 1999, p. 49). Em suas conclusões,
apontou para a necessidade do apoio na defesa e garantia de direitos e usufruto da terra, bem como estímulo e ânimo ao
trabalho, cultivo e criação de animais, enfatizando que sem tais atitudes não haveria perspectivas de futuros aos “nossos
pobres índios” (WITT, 1999, p. 49). Apesar dos relatos e conclusões apontadas pelo P. Stysinski, não se estabeleceu ação
missionária entre as comunidades indígenas, de imediato, por falta de recursos.
Durante a realização da 17ª Assembleia do Sínodo Rio-Grandense, ocorrida em Taquari/RS no mês de
março de 1903, retoma-se o debate sobre a missão entre indígenas. A assembleia dividiu-se entre manifestações
desfavoráveis, pois “havia ainda muitas necessidades a serem supridas nas comunidades formadas por descendentes
de alemães”, e manifestações que ponderavam que era “momento para começar a missão que se propunha avançar os
limites étnicos”. De forma geral, não se obteve consenso na assembleia, mas se propôs criar um Comitê de Missão, a
quem se transfeririam recursos financeiros para a missão entre indígenas (WITT, 1994, p. 153).
Em consequência da assembleia, dois diáconos missionários, Curt Haupt e Otto Von Jutrzenka,65 se
prontificaram a novas viagens às comunidades indígenas para averiguar onde iniciar a missão entre as comunidades
indígenas. A viagem dos diáconos ocorreu a partir de agosto de 1903. Visitaram primeiramente o Toldo Pontão
(Lagoa Vermelha/RS), em agosto de 1903, também recebidos pelo cacique general Faustino. Novamente repete-se
a prática de oferta de presentes. Os missionários propõem a criação de uma escola, proposta aceita pelo cacique,
que afirma que cerca de cem crianças poderiam frequentar o educandário. Faustino apela para que os missionários
atendessem a comunidade. O apelo causou comoção aos missionários, pois consideraram que a comunidade se
encontrava em situação de penúria (WITT, 1999, p. 49-50).
Os missionários deram prosseguimento à viagem, deslocando-se até o toldo do rio Ligeiro, onde se
depararam com a situação conflituosa entre os Kaingang e famílias agricultoras, inclusive resultando na morte de
um indígena e duas pessoas não índias (WITT, 1999, p. 50). Haupt e Jutzrenka se deslocaram, em seguida, até o
Toldo Serrinha, onde chegaram em 27 de agosto de 1903. Os missionários foram recebidos pelo cacique capitão
Manoel Oliveira, que expôs sua desilusão às constantes promessas de ajuda, que se revelavam ineficazes. Sobre a
proposição dos missionários para a construção de uma escola, o cacique afirmou que esta já havia sido prometida
em outras oportunidades, porém se não concretizara. Diante da relutância de Manoel de Oliveira, os missionários
se dispuseram a prolongar a permanência, na tentativa de persuadir o cacique que cumpririam com o propósito,
inclusive buscaram um local para instalar uma escola. Após a permanência de quatorze dias no Toldo Serrinha, os
missionários visitaram o Toldo Nonoai, concluindo não ser o local para fixar uma missão evangélica protestante nas
comunidades indígenas, uma vez que se cogitava de a Igreja Católica implantaria uma escola junto à comunidade

65 Os diáconos missionários provinham “da Fundação Evangélica São João de Berlim e, quando de sua chegada no Brasil,
permaneceram em Petrópolis/RJ, atuando como professores a fim de melhor dominar o idioma português. Vieram ao
Rio Grande do Sul em março de 1903 e participaram, no mês de maio, da 17ª Assembleia Sinodal em Taquari. Nesta
oportunidade o tema da missão entre indígenas estava outra vez na pauta”. Após a assembleia, então os missionários
realizam a viagem aos toldos Kaingang do Rio Grande do Sul e Paraná (WITT, 1994, p. 153).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

indígena. Além dos toldos mencionados, Haupt e Jutrzenka também visitaram famílias indígenas no rio Ligeiro,
Costa da Forquilha e em Palmeira durante o percurso (WITT, 1999, p. 50).

Em setembro de 1903, em continuidade às visitas aos toldos indígenas, Haupt e Jutzrenka adentram na região
dos toldos no rio Chapecozinho. Os missionários ao se reunirem com o cacique major Venâncio ofertaram presentes
e propuseram a instalação de uma escola, a que tiveram a recusa aos presentes e à escola. O cacique interpela aos
missionários se eram protestantes, estes afirmaram serem protestantes. Apesar da recusa e da interpelação cética do
cacique, Haupt e Jutzrenka permaneceram na comunidade indígena para conhecer e uma maior aproximação. Assim,
conheceram os toldos Formiga e rio Chapecó Grande. Desconsideram, porém, a possibilidade de fixar uma missão
entre indígenas na região. De acordo com suas avaliações, comparando-se a realidade das comunidades indígenas do
Paraná66 às do Rio Grande do Sul, estas apresentavam maiores dificuldades de acesso, miserabilidade e desesperança.
Os missionários também consideraram o atendimento prestado por padres católicos (WITT, 1999, p. 50-51).

Os missionários apresentam o relatório da viagem na 18ª Assembleia do Sínodo Riograndense, em 1904,


realizada em Taquara/RS. A assembleia resolve protelar a decisão. Após assembleia, os missionários Haupt e Jutzrenka
conseguiram iniciar as atividades no Toldo Serrinha, porém, logo que iniciaram a instalação, foram expulsos
pelos indígenas. Segundo os missionários, a comunidade indígena foi instigada por um padre católico, que não
concordava com a presença de missionários protestantes. Então os missionários se estabeleceram em Nonoai/RS,
onde implantaram uma escola para crianças brasileiras, mantendo o objetivo de se reaproximarem dos indígenas.
Contudo, em janeiro de 1905, foram outra vez expulsos pela comunidade indígena, incitados pelo padre Peters, que
desejava conduzir a catequese dos Kaingang na região (WITT, 1994, p. 153-4).

Diante do insucesso na implantação da missão junto às comunidades indígenas, empreendida pelos


missionários Haupt e Jutzrenka nos anos iniciais do século XX, o Sínodo Rio-Grandense não estabelece novas
tentativas (WITT, 1994, p. 153-154). Todavia, as experiências do P. Stysinski e dos missionários Haupt e Jutzrenka
trouxeram à evidência o conflito incipiente na estruturação e formação eclesial, iniciada com os imigrantes luteranos.
O conflito se constituiu através do debate entre a preservação da identidade germânica das comunidades evangélicas,
defendido pelo grupo majoritário, e o desafio e compromisso da Igreja de extrapolar os laços étnicos, defendido por
parcela minoritária, contudo sem negar a própria identidade (WITT, 1994, p. 156).67

O debate entre o germanismo e o romper dos laços étnicos persistiu noutros momentos da constituição da
igreja de confissão luterana e seu engajamento com as realidades e grupos sociais no Brasil, como demonstrado no
histórico da constituição da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB), com bases confessionais de
acordo a reforma religiosa protestante do século XVI e da imigração de europeus, especialmente alemães evangélicos,
ao Brasil. Considera-se relevante o contexto em que se estabeleceu o debate, no início do século XX, durante
tentativas de se estabelecer ações missionárias entre indígenas, pois trata-se de uma mudança de postura frente às
comunidades indígenas, quando não são considerados como uma ameaça e um infortúnio a ser superado, para que
os imigrantes tomem posse da “terra devoluta”. As tentativas de estabelecer uma ação missionária entre os Kaingang,
então, promoveram o apoio e a garantia de espaços demarcados, os toldos, como proposto pelo P. Stysinski. Persiste
ainda a concepção de que os e as indígenas são miseráveis e carentes de benefícios da sociedade civilizada, por isso
o objetivo de implantar uma escola. Obviamente que se pode avaliar essa concepção como tentativa de dominar e

66 A região visitada pelos missionários constituía na época território do Estado do Paraná. A constituição atual, como
território do Estado de Santa Catarina, ocorreu somente em 1917.
67 Witt (1994, p. 156) evidencia o fato de que “muitas famílias de ascendência germânica não davam a menor importância
à preservação da germanidade, em especial aquelas que viviam longe do alcance do poder de influência do seu grupo
étnico. Assim, p. ex., o P. Lechler obrigava-se a pregar em português nas cercanias de Vacaria [em 1901], pois lá, em meio
a brasileiros lusos, afros e indígenas, as famílias teuto-brasileiras já tinham abdicado do idioma alemão, e também em Três
Forquilhas, pois lá viviam famílias negras [ex-escravas dos alemães e batizadas evangélicas] às quais Lechler não julgava
certo fechar as portas do evangelho” (WITT, 1994, p. 156).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

restringir a circulação dos indígenas, uma vez que persiste a concepção de que as “terras devolutas” passaram à posse
e exploração dos imigrantes e seus descendentes.

Os diferentes momentos estabelecidos entre os imigrantes europeus evangélicos e as comunidades


indígenas, do conflito homicida pela disputa de território e a implantação de missão entre indígenas, ocorrem
num espaço temporal menor que um século. Nesse tempo sobressaíram os períodos de conflitos e tentativas
de dominação, expulsão, aculturação e extermínio das comunidades indígenas. Por isso, Dreher (1992, p. 18)
sentencia: “na maioria das vezes, os indígenas não nos sentiram como discípulos de Jesus Cristo, mas como
adversários e invasores”, concebendo o estabelecimento de um cativeiro aos indígenas. O teólogo e historiador
luterano também pondera que ocorreram algumas tentativas no processo histórico, como as do início do século
XX, de colocar pequenos sinais da responsabilidade social junto aos povos indígenas, mas ressalta que um
engajamento maior se estabelece no período posterior ao abordado. Porém também esse se deve “a invasões de
membros luteranos em áreas indígenas (Tenente Portela/RS; Gleba Arino/MT, Rondônia)” (DREHER, 1992,
p. 18) em relação às missões nas comunidades indígenas estabelecidas a partir das décadas de 1960 e 1970 no âmbito
da IECLB. Essas missões serão implantadas concomitantemente à estruturação, solidificação e constituição da
organização eclesial da IECLB como uma igreja nacional e que se propunha a testemunhar o evangelho de Jesus
Cristo no Brasil. Simonian (1995, p. 80) afirma que foi a partir dessa data que “os missionários protestantes passaram
a ter uma inserção mais sistemática entre os mesmos”, a saber, os povos indígenas. E, dentre as missões citadas
por Dreher, a que se constituirá de atuação constante até a atualidade será a ação missionária indigenista junto às
comunidades Kaingang e Guarani na Terra Indígena Guarita (Redentora, Tenente Portela e Erval Seco/RS).

Referências
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ESTUDOS Teológicos, Ano 34 n. 2, 1994. São Leopoldo: Escola Superior de Teologia/IECLB, p. 150-158.

77
SEGUNDA PARTE
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

A BUSCA POR REGULARIZACÃO MIGRATÓRIA VS. A LETRA FRIA DA LEI: O


ENCONTRO DE UMA SOLICITANTE DE REFÚGIO COM O ESTADO BRASILEIRO
Aline Passuelo de Oliveira 68

1. Introdução
Inicialmente, é preciso localizar o momento em que a história que aqui será contada ocorreu. Para tanto, é
necessário uma breve apresentação das duas legislações migratórias vigentes no período: a Lei n° 6.815 de 1980, conhecida
como Estatuto do Estrangeiro e a Lei n° 9.474 de 1997 que versa sobre o Instituto Internacional do Refúgio no Brasil.

A Lei n° 6.815/1980 foi gestada no período da Ditadura Militar e sua fundamentação é baseada em três
temas que centrais para que se compreenda aquele momento histórico: segurança nacional, ameaça estrangeira e
terrorismo. Competiu a ela legislar sobre todos os tipos de vistos para pessoas “estrangeiras” no Brasil (de trabalho,
de estudante, de turista, etc) e sua implementação ficava a cargo do Conselho Nacional de Imigração - CNIg, sediado
no Ministério do Trabalho e Emprego. Este fato expõe uma das várias dimensões do entendimento da sociedade
brasileira acerca do imigrante: é visto como força de trabalho. Já a Lei n° 9.474/1997 foi concebida na esteira do
primeiro Plano Nacional de Direitos Humanos de 1996 e concretiza a internalização de convenções e tratados
internacionais e regionais dos quais o Brasil é signatário, dentre eles o primeiro documento internacional sobre
refúgio: a Convenção de Genebra de 1951.

Assim, sendo concebida no âmbito de um Plano Nacional de Direitos Humanos e tendo obrigações
internacionais a cumprir, tal legislação é festejada como uma das mais avançadas em termos de direitos humanos
do Mundo. Sua implementação é realizada pelo Comitê Nacional para Refugiados - CONARE. Seu caráter inovador
reside na definição que apresenta para refugiado, abarcando os cinco motivos clássicos postulados pela Convenção
supracitada: perseguição por raça, religião, opinião política, pertença a grupo social e nacionalidade, além da definição
regional adotada pela América Latina a partir da Declaração de Cartagena de 1984, que preconiza a concessão de
refúgio a pessoas provenientes de regiões com grave e generalizada violação de direitos humanos.

Diante do exposto, percebe-se que havia uma lacuna imensa entre as concepções das legislações em questão.
Lacuna essa habitada por milhares de seres humanos em busca de uma vida digna, foco da próxima seção.

2. A busca da regularização
A história de uma mulher colombiana, aqui nomeada Joana,69 chegou a mim através de uma pessoa
conhecida que atuava em um Centro de Referência da Assistência Social (CRAS),70 localizado em uma cidade de
médio porte da região metropolitana de Porto Alegre. O contato foi feito a fim de receber alguma orientação sobre

68 Doutora e Mestra em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Rio Grande
do Sul - PPGS/UFRGS. Bacharela em Ciências Sociais pela mesma universidade. Professora da Área de Conhecimento de
Humanidades da Universidade de Caxias do Sul/UCS. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Identidades Étnicas e Racismo
- PPGS/UFRGS. Investiga questões referentes a Sociologia das Migrações, Política Migratória, Legislações e Categorizações
Jurídicas e seu impacto na vida das populações migrantes no Brasil.
69 O nome verdadeiro foi omitido a fim de preservar a identidade da interlocutora.
70 Previsto pela Lei n° 8.742 de 07 de dezembro de 1993 em seu artigo 6o: “as proteções sociais, básica e especial, serão ofertadas
precipuamente no Centro de Referência de Assistência Social (Cras) e no Centro de Referência Especializado de Assistência
Social (Creas), respectivamente, e pelas entidades sem fins lucrativos de assistência social de que trata o art. 3o desta Lei”. Sua
inclusão foi realizada pela Lei n° 12.435 de 06 de julho de 2011.

79
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

a possibilidade de regularizar sua estada no Brasil. Foi em meados de 2016 e a Lei n° 6.815/1980, conhecida como
Estatuto do Estrangeiro, ainda estava em vigência no país. Tal legislação impunha uma série de dificuldades para a
transformação de vistos. Assim, a orientação foi buscar um serviço de assessoria jurídica que pudesse informá-la
sobre os trâmites legais. Acompanhei informalmente sua trajetória até que Joana decidiu ir até São Paulo buscar
melhores oportunidades. Desde dezembro de 2016 não tive mais notícias suas.

Quando foi até o CRAS, Joana se encontrava desempregada havia alguns meses. Chegou ao Brasil pela fronteira
terrestre com a Argentina, tendo ingressado por Uruguaiana em novembro de 2011. Lá preencheu o Formulário de
Solicitação de Refúgio na Delegacia da Polícia Federal (DPF) e recebeu o Protocolo de Solicitação de Refúgio.

Após um contato inicial por telefone marcamos de conversar ao vivo e pude conhecer melhor os meandros da
sua trajetória. Joana nasceu em 1978 em Quibdó, no departamento de Chocó, na Colômbia. Chocó fica no noroeste
do país, na região costeira conhecida como Pacífico Colombiano. Sua população é formada majoritariamente por
afro-colombianos, como Joana. Sem entrar em detalhes acerca dos fatos que a fizeram deixar a Colômbia e se deslocar
até o sul do continente, a interlocutora relatou de forma sucinta que sua família vivia na zona rural e que em dado
momento tiveram que deixar o pequeno sítio de onde tiravam seu sustento. As histórias de extorsão no meio rural
colombiano são recorrentes e parte de uma série de estratégias que objetivavam a manutenção do conflito pelas
diferentes forças envolvidas (OLIVEIRA, 2012).

As conversas giravam em torno dos desafios impostos ao seu estabelecimento no Rio Grande do Sul por
conta da dificuldade em ter um emprego fixo e as exigências para fazer sua regularização migratória. Como
relatado inicialmente, Joana solicitou refúgio na cidade de Uruguaiana e foi percorrendo um longo caminho até
chegar na capital do estado.

A interlocutora contou que ficou com receio de detalhar algumas informações em seu formulário de refúgio,
pois teve medo de quem iria acessá-lo. No momento em que preencheu o formulário colocou o endereço de uma
pensão, local que permaneceu até a metade do ano seguinte. Havia conseguido alguns trabalhos de limpeza de casas.
Esses trabalhos foram conseguidos através intermediados por uma senhora chamada Maria, que conheceu na Igreja
e, assim, conseguiu se manter na cidade por alguns meses.

Joana contou que apesar de ter como se sustentar em Uruguaiana, não se sentia incluída na cidade. Em
algumas ocasiões referiu que a cor da sua pele e sua origem colombiana eram as motivações para isso. Colombianos
sofrem estigmatização por conta da ligação com o narcotráfico. Mulheres colombianas no Equador, por exemplo, são
discriminadas relacionadas de forma generalizada à prostituição (OLIVEIRA, 2012).

Com o protocolo de solicitação de refúgio em mãos foi até a rodoviária da cidade e pegou um ônibus
para Porto Alegre. Sobre sua estada em Porto Alegre a interlocutora não deu muitos detalhes, apenas relatou que
em um dado momento seu protocolo venceu e que foi até a DPF para carimbá-lo. Na delegacia soube que sua
solicitação de refúgio “não tinha dado certo”, não sabendo especificar se havia sido arquivada por conta da falta
do endereço atualizado, que não permitiu que a entrevista fosse marcada, ou se o pedido havia sido negado. De
acordo com seu relato, sua ida até a DPF ocorreu na metade de 2013 e a conheci em 2016, estando desde então
de forma não-autorizada no país.

Esse relato é bastante emblemático de diferentes situações enfrentadas por imigrantes de diferentes origens
e motivações migratórias para o Brasil. Independente das especificidades processuais do caso é possível depreender
dos dados diversos pontos em que a relação com as normas jurídicas e o aparato estatal são determinantes para o
percurso adotado.

Conforme a legislação, o procedimento de registro de uma solicitação de refúgio segundo o Título IV do


Processo de Refúgio da Lei nº 9.474/1997:

80
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

CAPÍTULO I - Do Procedimento
Art. 17. O estrangeiro deverá apresentar-se à autoridade competente e externar vontade de solicitar
o reconhecimento da condição de refugiado.
Art. 18. A autoridade competente notificará o solicitante para prestar declarações, ato que marcará
a data de abertura dos procedimentos.
Parágrafo único. A autoridade competente informará o Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados - ACNUR sobre a existência do processo de solicitação de refúgio e facultará a esse
organismo a possibilidade de oferecer sugestões que facilitem seu andamento.
Art. 19. Além das declarações, prestadas se necessário com ajuda de intérprete, deverá o estrangeiro
preencher a solicitação de reconhecimento como refugiado, a qual deverá conter identificação
completa, qualificação profissional, grau de escolaridade do solicitante e membros do seu grupo
familiar, bem como relato das circunstâncias e fatos que fundamentem o pedido de refúgio,
indicando os elementos de prova pertinentes.
Art. 20. O registro de declaração e a supervisão do preenchimento da solicitação do refúgio devem
ser efetuados por funcionários qualificados e em condições que garantam o sigilo das informações
(BRASIL, 1997).

Joana conta que chegou à fronteira determinada a pedir refúgio. Contou que foi informada pelo agente da Polícia
Federal que deveria preencher o formulário e que o mesmo seria encaminhado para dar prosseguimento ao processo.
Joana disse que aguardou alguma comunicação e como meses depois não havia sido contatada, decidiu se deslocar
para a capital. Conforme relato, apesar de ter sido informada que deveria atualizar seu endereço na DPF mais próxima
do local de nova residência, demorou meses para fazer isto. Estava trabalhando na limpeza de um estabelecimento
comercial e não poderia faltar, já que havia sido contratada informalmente e tinha medo de ser dispensada.
Quando Joana procurou o CRAS, em meados de 2016, já estava sem emprego e com sua solicitação de
refúgio indeferida. Independente do encaminhamento dado ao processo de Joana, indeferimento ou arquivamento
por não comparecimento na entrevista da solicitação de refúgio, a interlocutora foi orientada informalmente que
a única via para a sua regularização seria por intermédio do Estatuto do Estrangeiro. As anistias para imigrantes
em situação não regularizada, que sempre desempenharam um papel de facilitação desse processo, havia ocorrido
em 2009.71 No entanto, foi somente com a busca de informações com uma assessoria jurídica feita pelo intermédio
do CRAS, que Joana foi informada de que poderia ser regularizada no Brasil pelo Acordo sobre Residência para
Nacionais dos Estados Parte do Mercado Comum do Sul-Mercosul:72
Artigo 1 - OBJETO
Os nacionais de um Estado Parte que desejem residir no território de outro Estado Parte poderão
obter residência legal neste último, conforme os termos deste Acordo, mediante a comprovação de
sua nacionalidade e apresentação dos requisitos previstos no artigo 4o do presente.
(...)
Artigo 4 - TIPO DE RESIDÊNCIA A OUTORGAR E REQUISITOS
1. Aos peticionantes compreendidos nos parágrafos 1 e 2 do Artigo 3o, a representação consular
ou os serviços de migração correspondentes, segundo seja o caso, poderá outorgar uma residência
temporária de até dois anos, mediante prévia apresentação da seguinte documentação:
a) Passaporte válido e vigente ou carteira de identidade ou certidão de nacionalidade expedida pelo
agente consular do país de origem, credenciado no país de recepção, de modo que reste provada a
identidade e a nacionalidade do peticionante;
b) Certidão de nascimento e comprovação de estado civil da pessoa e certificado de nacionalização
ou naturalização, quando for o caso;

71 Conforme a Lei nº 11.961/2009: Art. 1o poderá requerer residência provisória o estrangeiro que, tendo ingressado no território
nacional até 1o de fevereiro de 2009, permaneça em situação migratória irregular. (BRASIL, 2009)
72 Brasil, Argentina, Paraguai, Uruguai, Bolívia, Chile e Peru. A Colômbia passou a fazer parte do Acordo em 2012.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

c) Certidão negativa de antecedentes judiciais e/ou penais e/ou policiais no país de origem ou nos
que houver residido o peticionante nos cinco anos anteriores à sua chegada ao país de recepção ou
seu pedido ao consulado, segundo seja o caso;
d) Declaração, sob as penas da lei, de ausência de antecedentes internacionais penais ou policiais;
e) Certificado de antecedentes judiciais e/ou penais e/ou policiais do peticionante no país de
recepção, quando se tratar de nacionais compreendidos no parágrafo 2 do Artigo 3o do presente
Acordo;
f) Se exigido pela legislação interna do Estado Parte de ingresso, certificado médico expedido por
autoridade médica migratória ou outra autoridade sanitária oficial do país de origem ou de recepção,
segundo equivalha, no qual conste a aptidão psicofísica do peticionante, em conformidade com as
normas internas do país de recepção;
g) Pagamento de uma taxa de serviço, conforme disposto nas respectivas legislações internas.
2. Para efeitos de legalização dos documentos, quando a solicitação tramitar no consulado, bastará
a notificação de sua autenticidade, conforme os procedimentos estabelecidos no país do qual o
documento procede. Quando a solicitação tramitar pelos serviços migratórios, tais documentos
deverão somente ser certificados pelo agente consular do país de origem do peticionante,
credenciado no país de recepção, sem outro cuidado (BRASIL, 2009).

Várias questões podem ser depreendidas a partir do percurso percorrido por Joana no Brasil. A fragmentação
com que as informações chegaram até a interlocutora é bastante evidente. Desde sua entrada no país até sua chegada
a um CRAS da região metropolitana de Porto Alegre. Do momento do preenchimento do formulário de solicitação
de refúgio, quando Joana deveria estar segura quanto ao sigilo de suas informações, isso significaria que a sua
história seria contada com riqueza de detalhes e sem temores. Passando pelo arquivamento ou indeferimento de seu
pedido. E chegando até a informação sobre a regularização via Acordo do Mercosul, acerca da qual poderia ter sido
informada no momento em que descobriu que não seria reconhecida como refugiada.

Além disso, os itens parte do parágrafo 1 do Artigo 4 referem-se às exigências de documentações para lograr
a regularização via Acordo. A lista de documentos é bastante específica e exige uma preparação para quem sai de
um país em direção ao outro. Joana sai da Colômbia com o intuito de solicitar refúgio em algum país da região,
isto é, em uma migração sob coação (WEIB, 2018). Sendo assim, dificilmente teria conseguido organizar uma série
de documentos para levá-los consigo. Uma das características do conflito colombiano é que antes de atravessar
fronteiras internacionais a fim de solicitar refúgio, muitas pessoas realizam um deslocamento interno. Assim, vão
percorrendo departamentos do país em que o conflito seja mais brando ou de zonas rurais em direção às urbanas.
Por conta disto, a Colômbia é um dos países que possui uma alta cifra de deslocados (desplazados) no interior de seu
território (OLIVEIRA, 2012).

A história de Joana é bastante emblemática tanto das trajetórias de refugiados por conta do longevo conflito
colombiano ao longo do século XX, quanto dos encontros e desencontros com os processos de regularização e com os
diferentes níveis da burocracia brasileira. Os detalhes foram coletados em entrevistas realizadas com a interlocutora
ao longo de alguns meses. Assim, o intuito é trazer elementos destacados por quem vivenciou tais experiências e não
trazer dados que foram buscados em processos e formulários.

Outro elemento importante em seu relato diz respeito à falta que faz a presença de entidades da sociedade
civil que atuam no tema migratório no país em determinadas regiões. Em seu percurso, teve a Polícia Federal como
única fonte de orientação, fazendo com que muitas vezes algumas informações não chegassem a ela. Atuando com
a temática, me parece evidente que a ocorrência disso pode ser fruto de diversos fatores como a falta de formação
adequada ao agente que atua diretamente com a população imigrante, a ausência de intérpretes que ajam como
mediadores no momento do preenchimento dos formulários, dentre outros. Cabe ressaltar que o acesso à informação
ultrapassa a mera tradução de frases ou expressões que dizem respeito a procedimentos jurídico-burocráticos.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Como Joana solicitou refúgio, ou seja, possuía uma história de vida que julgava reveladora do seu fundado
temor de perseguição, a atenção deve ser redobrada por parte do Estado. Geralmente os solicitantes de refúgios
possuem lembranças extremamente traumáticas que devem ser consideradas no seu processo e rememorá-los pode
ser extremamente doloroso e, em muitas situações, lembranças podem ser bloqueadas, não permitindo seu acesso.

Outro ponto fundamental para compreender a trajetória de Joana no Brasil diz respeito à natureza do conflito
colombiano. A vida em um clima de medo, como a imposta pelo conflito na Colômbia do século XX, é responsável
pela socialização dos indivíduos (OLIVEIRA, 2012). Uma das características dos colombianos em deslocamento
internacional é não formar redes com seus compatriotas nas sociedades de recepção, como é extremamente comum
com grupos de outras nacionalidades no Brasil. Joana nunca citou ter alguma pessoa conhecida ou amigo imigrante
colombiano ou de qualquer outra procedência em sua estada no Rio Grande do Sul. Ao refletir sobre sua dificuldade
em obter informações precisas que pudessem colaborar com sua regularização, este fator a respeito da natureza da
imigração colombiana pode ter contribuído.

Analisando o formulário de solicitação de refúgio vigente no país em 2015, é possível discutir aspectos
formais do processo de registro de regularização. Cabe ressaltar que o objetivo desta seção é focar no processo de
preenchimento do formulário e não analisar os encaminhamentos processuais, que são de escopo jurídico.

Mesmo Joana tendo solicitado refúgio antes de 2015, a regulamentação do modelo de formulário não
incorreu em mudanças significativas do tipo utilizado anteriormente. No entanto, a ele foram acrescidas definições
sobre as modalidades de regularização migratória, citação da legislação adotada e dos documentos internacionais
que se referem ao tema e uma lista de telefones úteis.

No relato de Joana, ela não soube precisar se seu pedido foi arquivado ou indeferido. Verificando os
esclarecimentos presentes no formulário, as situações em que ocorre o arquivamento do processo são as seguintes:
será passível de arquivamento pelo CONARE, sem análise de mérito, a solicitação de reconhecimento
da condição de refugiado daquele que: I - não compareça por duas vezes consecutivas à entrevista
para a qual foi previamente notificado, com intervalo de 30 (trinta) dias entre as notificações, sem
justificação; ou II - deixe de atualizar o seu endereço perante à CGARE num prazo máximo de 30
(trinta) dias, a contar da sua última notificação (BRASIL, 2017).

De acordo com os critérios explicitados, é possível que o caso tenha sido arquivado, já que Joana não
atualizou seu endereço prontamente quando se deslocou de Uruguaiana até à região metropolitana de Porto Alegre.
Formalmente, então, a solicitante não seguiu as orientações exigidas pelo país.

Algumas questões presentes no formulário merecem destaque:


Para sair de seu país e solicitar refúgio no Brasil, você precisou se utilizar de documentos falsos?
[...] Por favor, explique as razões pelas quais você decidiu deixar seu país de origem ou residência
habitual e buscar proteção como refugiado no Brasil. Dê explicações detalhadas, descrevendo
qualquer acontecimento, experiência pessoal ou medidas adotadas contra você ou membros de
sua família que o (a) levaram a abandonar seu país de origem ou residência habitual. Se possuir
provas de suas alegações, favor anexá-las. [...] O que aconteceria se você regressasse ao seu país
de origem ou residência habitual? [...] Você teme sofrer alguma ameaça a sua integridade física ou
mental ou à sua liberdade caso você regresse ao seu país? Explique quem poderia ameaçá-lo e qual
é a razão para ter sua integridade ameaçada. Indique datas, nomes e lugares, sempre que possível.
[...] Eu solicito o reconhecimento como refugiado por que possuo fundado temor de perseguição
por: raça, religião, nacionalidade, opinião política, situação de grave ou generalizada violação de
direitos humanos, outros. [...] Eu solicito o reconhecimento como refugiado, pois temo que poderei
ser vítima de tortura ou tratamento cruel, desumano ou degradante caso retorne ao meu país de
origem ou residência habitual (BRASIL, 2017).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Importante mencionar que diversas perguntas anteriormente expostas se referem a eventos extremamente
delicados e que podem colocar os solicitantes em risco. Sem dúvida, não se pretende sugerir que o país que
concede refúgio não deva coletar e investigar as histórias relatadas, até como forma de proteger este importante
instituto jurídico internacional. No entanto, é visível que determinadas questões que evocam uma profundidade
deveriam ser manejadas com acompanhamento de profissionais qualificados para lidarem com questões da área
da saúde mental, por exemplo.

3. Considerações Finais
A história de Joana foi escolhida como representativa das dificuldades impostas pelos procedimentos
burocráticos de regularização migratória no Brasil. No entanto, não pretendeu esgotar as possibilidades de reflexão
e nem se colocar como único encontro possível com o Estado brasileiro por parte de um solicitante de refúgio.
Destaca-se que em se tratando de uma mulher negra proveniente de um país da América do Sul e que se desloca para
outro no mesmo continente. Uma série de atravessamentos acabam por agudizar os percalços enfrentados: o fato de
ser mulher em deslocamento entre sociedades patriarcais, a identificação fenotípica em contextos racializados e as
vulnerabilidades presentes no ciclo migratório (LUGONES, 2020).

Acerca do contexto colombiano, as negociações de paz têm avançado nos últimos anos. Não obstante, o
conflito segue impactando vidas de grupos no país de diversas maneiras, inclusive mobilizando deslocamento
populacionais internos ou internacionais.

Com a aprovação da Lei n° 13.445/2017 e sua regulamentação uma série de mudanças foram implementadas.
Como mencionado no início do texto, a pesquisa empírica que sustenta este artigo se estendeu até 2017. Assim, as
mudanças implementadas pelo Governo Brasileiro desde então não foram aqui discutidas.

Refletir acerca das categorizações jurídicas na vida de pessoas concretas envolve um questionamento mais
ampla acerca do sistema econômico capitalista:
(...) definir um ser humano como imigrante ou como refugiado não se configura em uma simples
escolha de um vocábulo isento, mas representa e se sustenta por um discurso que legitima ou
deslegitima tanto a escolha, quanto esse ser humano. A imposição de categorias jurídicas evidencia
a linha tênue que separa os seres humanos que se deslocam forçadamente e os que se deslocam de
forma voluntária, definições por si só bastante imprecisas e problemáticas. A discussão acerca das
categorizações impostas aos seres humanos em deslocamento internacional envolve uma reflexão
mais ampla sobre a socialização na sociedade capitalista, que pressupõe a acumulação desigual de
capital, de poder e dos acessos decorrentes. Desta forma, cabe discutir se há referências suficientes
para pensar em algum tipo de migração que seja de fato voluntária (OLIVEIRA, 2020, p. 63).

Desta forma, o estudo das categorizações jurídicas produzidas pelas legislações nacionais e das burocracias
envolvidas na regularização de migrantes e refugiados no Brasil é um campo que deve ser expandido, tendo a
sociologia jurídica como um lócus privilegiado para seu desenvolvimento.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

A COLONIALIDADE COMO OBSTÁCULO À TUTELA DOS DIREITOS


DA POPULAÇÃO MIGRANTE VENEZUELANA: UMA ANÁLISE SOBRE
A ATUAÇÃO DA DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO EM RORAIMA
César de Oliveira Gomes 73
Jonatan Braun Ledesma 74

1. Introdução
Essa pesquisa analisa o estado da arte da política migratória do Estado Brasileiro em relação aos migrantes
e refugiados procedentes da República Bolivariana da Venezuela, que, nos últimos anos, foi acometida de uma
grave crise humanitária, cujas consequências vêm repercutindo em toda a América Latina. O Brasil é um dos países
mais afetados, por conta do intenso fluxo migratório estabelecido na fronteira com o país andino. O Estado de
Roraima, principal porta de entrada dos migrantes e refugiados venezuelanos, é o locus de análise sobre as dinâmicas
estabelecidas pelas instituições públicas brasileiras para enfrentar o problema.

A partir desse contexto, o estudo se propõe a responder as seguintes questões: quais as razões pelas quais o
tratamento conferido aos migrantes e refugiados venezuelanos, cuja maioria é de ascendência indígena, ostenta um
viés de afronta aos princípios da igualdade e não-discriminação? Qual o papel da Defensoria Pública da União na
promoção dos direitos humanos das pessoas migrantes e refugiadas procedentes da Venezuela?

Sob as lentes da teoria descolonial, referencial teórico desta pesquisa, parte-se da hipótese de que o Estado
Brasileiro reproduz discursos desumanizantes cujas raízes deitam nos pilares da cosmovisão eurocêntrica de mundo.
A pesquisa é qualitativa, e utiliza como técnica a revisão bibliográfica, a análise documental e o estudo de caso.

Na primeira seção, analisa-se a política migratória seletiva adotada pelo Estado Brasileiro nos primeiros anos
de República. A opção em incentivar a imigração europeia e criar empecilhos para a imigração de pessoas oriundas
da África e da Ásia está associada ao pensamento moderno inaugurado com a Revolução Francesa, cuja perspectiva
aponta para uma superioridade europeia, no que se refere ao ideal de progresso e desenvolvimento da humanidade.

A segunda seção trata da situação na fronteira do Brasil com a Venezuela, no que toca ao fluxo migratório de
cidadãos provenientes deste país. Identifica-se o caráter discriminatório de algumas normas editadas pelo poder público
federal e estadual, sob a justificativa da necessidade de limitar o ingresso de imigrantes venezuelanos em território nacional.
Na mesma seção, vislumbra-se o perfil constitucional da Defensoria Pública como instituição responsável pela promoção
dos direitos humanos, bem como pela defesa dos direitos dos grupos vulneráveis. Delimita-se a análise à atuação da
Defensoria Pública da União, em virtude de suas atribuições para postular diante de instituições públicas federais.

Na terceira seção apresentamos casos em que a Defensoria Pública da União provocou as demais instituições
públicas federais a buscar uma solução pautada nos princípios da igualdade e não discriminação, de forma a garantir
os direitos humanos dos migrantes e refugiados provenientes do território venezuelano.

73 Defensor Público Federal. Diretor da Escola Nacional da Defensoria Pública da União (ENADPU). Mestre em Direito Público
pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul - PUCRS. Membro do Núcleo de Direitos Humanos (NDH) da UNISINOS. Editor da Revista das Defensorias
Públicas do MERCOSUL (REDPO). Co-fundador do grupo DiversoS - Educação em Direitos Humanos. Membro convidado
da Comissão Especial da Verdade sobre a Escravidão Negra da OAB/RS.
74 Defensor Público Federal. Chefe da Defensoria Pública da União (DPU) em Canoas/RS. Especialista em Direito Previdenciário
e Processo Previdenciário pelo Instituto Damásio de Direito. Especialista em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio.
Bacharel em Direito pela Universidade da Região da Campanha – URCAMP.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Ao final, conclui-se que em plena a terceira década do Século XXI, discursos e hierarquias que desumanizam
grupos minoritários ainda têm pautado a forma como o Estado Brasileiro direciona a sua política migratória para
pessoas oriundas de países periféricos. A população migrante venezuelana, maioria indígena, é vítima de sistemática
violação de direitos humanos, por força de estruturas intocadas do poder estatal brasileiro, que ainda reproduzem a
lógica da colonialidade.

2. A colonialidade e o tratamento discriminatório do Estado brasileiro em relação aos imigrantes


não-europeus
No ano de 1890, ainda em seus primeiros movimentos após o fim da monarquia, o Governo Provisório da
“República dos Estados Unidos do Brazil” editou o Decreto n. 528 (BRASIL, 1890), com o objetivo de regularizar o
fluxo migratório no País. O art. 1º deste ato normativo previa a possibilidade de livre ingresso no Brasil de imigrantes
“válidos e aptos para o trabalho”, à exceção de “indígenas da Ásia” e africanos, os quais só poderiam ser admitidos
em território brasileiro mediante autorização do Congresso Nacional, de acordo com condições especificamente
previstas.75 O Decreto concedia à polícia dos portos a função de impedir o desembarque de pessoas oriundas dos
continentes asiático e africano.76 Previa, também, a fixação de multa e perda de privilégios para os comandantes de
embarcações que trouxessem pessoas dessas regiões.77

Em relação aos imigrantes de origem europeia, o Decreto n. 528 estabeleceu uma série de incentivos
financeiros a serem patrocinados pelo Estado Brasileiro, a fim de estimular o ingresso no País de pessoas oriundas
daquele continente que estivessem aptas para o trabalho. Entre os estímulos previstos, destacavam-se subvenções
à companhias de transporte marítimo que trouxesse imigrantes da Europa para os portos da República78 e auxílios
para aquisição de lotes de terras.79

Em 1892, motivado pela necessidade de mão-de-obra para trabalhar nas lavouras de café (SÃO PAULO,
2008), o Governo da República, por meio da Lei n. 97, autoriza o ingresso de imigrantes chineses e japoneses no
País, e revoga parcialmente as proibições e restrições contidas no Decreto n. 528 de 1890. Em relação aos imigrantes
africanos, o Estado brasileiro não sinalizou qualquer flexibilização no sentido de permitir o ingresso de pessoas
advindas daquele continente em território nacional.

A legislação brasileira do final do Século XIX, no que se refere à questão migratória, espelha o caráter
discriminatório e desumanizante perpetrado pelo Estado em relação aos imigrantes não-europeus. As autoridades
políticas do Brasil reverberavam a cosmovisão eurocêntrica de mundo, para a qual o progresso econômico e científico
estava associado a uma ideia que inseria o homem branco europeu em níveis superiores, de forma a estabelecer uma
hierarquia entre seres humanos (BRAGATO, 2016, p. 1811).

75 Art. 1º E’ inteiramente livre a entrada, nos portos da Republica, dos indivíduos válidos e aptos para o trabalho, que não
se acharem sujeitos à ação criminal do seu país, excetuados os indígenas da Ásia, ou da África que somente mediante
autorização do Congresso Nacional poderão ser admitidos de acordo com as condições que forem então estipuladas.
76 Art. 3º A polícia dos portos da Republica impedirá o desembarque de taes indivíduos, bem como dos mendigos e indigentes.
77 Art. 4º Os comandantes dos paquetes que trouxerem os indivíduos a que se referem os artigos precedentes ficam sujeitos a
uma multa de 2:000$ a 5:000$, perdendo os privilégios de que gozarem, nos casos de reincidência.
78 Art. 7º O Estado concederá ás companhias de transporte marítimo que o requererem a subvenção de 120 francos pela
passagem de cada imigrante adulto que elas transportarem da Europa para os portos da Republica e proporcionalmente, na
razão da metade daquela quantia pelos menores de 12 anos até 8 inclusive, e a quarta parte pelos desta idade até 3 anos,
uma vez que as mesmas companhias se obriguem a preencher as formalidades constantes deste decreto, e a não receber
dos imigrantes mais do que a diferença entre a citada quantia e o preço integral das passagens; o que deverão provar com
as declarações por eles firmadas, as quase serão aqui verificadas no ato da chegada.
79 Art. 24. Os lotes contendo uma casa provisória, de valor não inferior a duzentos e cinquenta mil réis, conforme o tipo
aprovado pelo Governo, serão vendidos a imigrantes com família pelo preço máximo de 25$, por hectare, estando as terras
incultas, ou 50$, estando as terras cultivadas.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Os discursos depreciativos direcionados às pessoas não-brancas nos primeiros anos da República tiveram a
contribuição de intelectuais de expressão como Nina Rodrigues, para quem a raça negra no Brasil constituiria sempre
um dos fatores da inferioridade do povo brasileiro (1977, p. 7). Ao analisar esse momento histórico, lembra Bertúlio
que a imigração “era um recurso utilizado nos novos países americanos para preencher as brechas populacionais e
de mão-de-obra ao tempo em que ‘limpavam’ de seus territórios, as raças ‘inferiores’” (2019, p. 31).

A política migratória seletiva do Brasil tinha na centralidade europeia, portanto, o seu principal fundamento
filosófico. Os ideais da Revolução Francesa e da concepção liberal que permearam o pensamento político moderno
estabeleceram uma crença universal e abstrata a respeito da natureza humana (DOUZINAS, 2009, p. 109). A
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, promove os direitos humanos a partir de uma ótica que
define o ser humano como aquele indivíduo capaz de estar em constante processo de apreensão do conhecimento, a
partir de padrões científicos (GOMES, 2018, p. 27).

O problema dessa abordagem teórica é que ela exclui do conceito de humano uma série de indivíduos que
não se encaixam no estereótipo hegemônico. Todos aqueles que não são considerados capazes de contribuir para o
progresso e desenvolvimento da humanidade, por características específicas, restam alijados do acesso aos direitos
universalmente proclamados. Lembra Bragato que “a sua proteção parece estar ligada à condição daqueles sujeitos nos
quais o discurso racional-individualista identifica os traços do humano enquanto a violação parece estar ligada aos
processos de discriminação sofrida por aqueles que não são percebidos como integralmente humanos” (2016, p. 1816).

A análise crítica acerca da insuficiência da teoria dominante dos direitos humanos para a proteção de grupos
de pessoas historicamente subalternizados demanda, também, uma reflexão a respeito da expansão imperialista
das potências europeias no continente americano, a partir do Século XV. Essencial à compreensão desse estudo é
o conceito de colonialismo, que, de acordo com Maldonado-Torres, se trata de “uma relação política e econômica
em que a soberania de uma nação ou de um povo repousa sobre o poder de outra nação, o que torna essa nação
um império” (2007, p. 131).

É a partir do colonialismo que se entende a contradição existente entre a positivação dos direitos humanos,
ocorrida no final do Século XVIII, e as barbáries que caracterizam a modernidade, representadas pela escravidão
africana, pelo genocídio indígena, pelo saque das riquezas dos continentes colonizados e pela propagação do racismo
(BRAGATO, 2014, p. 219). Os discursos de inferiorização de seres humanos tidos por irracionais – por exemplo,
negros, indígenas, mulheres, não-proprietários, minorias religiosas – presta-se a justificar a relação de dominação
e diferença (MAHMUD, 1999, p. 1220) estabelecida entre colonizador e colonizado. A Europa cumpriria a “missão
civilizadora” de salvar o resto da humanidade do primitivismo e dos ciclos de atraso (BRAGATO, 2014, p. 213).

Observa Dussel que o conceito emancipatório de modernidade esconde uma “falácia desenvolvimentista”,
que é componente específico do eurocentrismo (1994, p. 13). Ao tempo em que se reconhece os direitos humanos
para um grupo específico – homem, branco, europeu, cristão e heterossexual -, exclui-se a maioria das pessoas do
espectro de proteção desses direitos, acarretando sucessivas práticas discriminatórias.

A independência das colônias no continente americano não foi suficientemente disruptiva a ponto de encerrar
os ciclos de subordinação em relação à matriz colonial de poder. Isso porque as nações independentes seguiram o
padrão do colonizador quanto ao modo de pensar, viver e constituir as dinâmicas políticas, sociais e culturais. Disso
decorre a manutenção de mecanismos de diferenciação que relegam a cosmovisão de mundo não-eurocêntrica à
periferia e à marginalidade. É o que se compreende como colonialidade. Nas palavras de Quijano (1992, p. 12),
[...] no obstante que el colonialismo politico fue eliminado.la relación entre la cultura europea,
llamada tambien “occidental”, y las otras, sigue siendo una relación de dominación colonial. No se
trata solamente de una subordinación de las otras cuIturas respecto de la europea, en una relación
exterior. Se trata de una colonización de las otras culturas, aunque sin duda en diferente intensidad

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

y profundidad según los casos. Consiste, en primer término, en una colonización del imaginario de
los dominados. Es decir, actúa en la interioridad de ese imaginario. En una medida es parte de él.

A colonialidade – do poder, do saber e do ser – materializa o legado da concepção hegemônica de mundo


cuja origem repousa nas antigas hierarquias coloniais. Grosfoguel (2008, p. 126) aponta que “a colonialidade
permite-nos compreender a continuidade das formas coloniais de dominação após o fim das administrações
coloniais, produzidas pelas culturas coloniais e pelas estruturas do sistema-mundo capitalista moderno/colonial”.
E prossegue o teórico porto-riquenho:
A expressão “colonialidade do poder” designa um processo fundamental de estruturação do
sistema-mundo moderno/colonial, que articula os lugares periféricos da divisão internacional do
trabalho com a hierarquia étnico-racial global e com a inscrição de migrantes do Terceiro Mundo
na hierarquia étnico-racial das cidades metropolitanas globais. Os Estados-nação periféricos e os
povos não-europeus vivem hoje sob o regime da “colonialidade global” imposto pelos Estados
Unidos, através do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial (BM), do Pentágono
e da OTAN. As zonas periféricas mantêm-se numa situação colonial, ainda que já não estejam
sujeitas a uma administração colonial.

É a colonialidade do poder que chancela a reprodução de inúmeras violações de direitos humanos de grupos
minoritários, em que pese a Declaração Francesa de 1789 e, já no Século XX, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos, de 1948. E era essa a lógica do Estado brasileiro ao estabelecer a sua política migratória ao apagar das
luzes do Século XIX.

Passados mais de 130 anos do Decreto-lei n. 528/1890, verifica-se que o Estado brasileiro, no âmbito
legislativo, avançou de maneira expressiva ao promulgar a Lei n. 13.445/2017, que estabelece uma política migratória
em sintonia com diretrizes previstas pelo Direito Internacional dos Direitos Humanos. Todavia, demonstrar-se-á ao
longo desse estudo que a lógica da colonialidade ainda orienta as autoridades governamentais do País na condução
das políticas estatais pertinentes ao tema.

3. O fluxo migratório venezuelano no Brasil e o papel da Defensoria Pública da União na tutela


dos direitos humanos de grupos em situação de vulnerabilidade
Em virtude de uma grave crise econômica, milhões de cidadãos oriundos da República Bolivariana da
Venezuela vêm consolidando nos últimos anos um intenso fluxo migratório para outros países. A América Latina
tem sido a região mais afetada por esse fenômeno, uma vez que no ano de 2015 recebeu 695 mil migrantes, e no ano
de 2019 viu esse número aumentar para 4 milhões de pessoas (COSTA, 2020, p. 52).

A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, por meio da Resolução n. 02/2018 (OEA, 2018),
considerou que as sucessivas violações de direitos humanos ocorridas na Venezuela, com impactos em inúmeros
direitos econômicos, sociais e culturais, têm ocasionado migrações forçadas de pessoas venezuelanas para outros
países. No documento, a CIDH aponta a existência de graves práticas xenofóbicas e discriminatórias contra
imigrantes venezuelanos em países de passagem e de destino, ações essas que estimulam a proliferação de discursos
estigmatizantes contra essas pessoas.

A crise humanitária na Venezuela tem impedido o país de assegurar os direitos previstos no Pacto
Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (WESTON, 2020, p. 147), os quais são indispensáveis
para que a pessoa obtenha uma vida digna. A ineficiência do Estado em conter a crise, a ponto de gerar a escassez
de alimentos e a manifesta ausência de acesso à saúde para a população mobilizou a comunidade internacional. Em
razão disso, o Alto Comissariado das Nações Unidas – ACNUR – emitiu uma nota de orientação, solicitando que

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

os Estados observassem a Declaração de Cartagena,80 a fim de reconhecer a condição de refugiados dos imigrantes
venezuelanos (ACNUR, 2019).

O Brasil está entre os países latino-americanos que mais recebem imigrantes venezuelanos, tendo recebido,
até julho de 2021, 261.461, entre refugiados e migrantes do país andino (ACNUR; OIM, 2021). Embora seja signatário
de expressivos documentos internacionais que tratam dos direitos humanos de migrantes, tem se verificado na
prática reiteradas ações de resistência por parte do Estado brasileiro em acolher e garantir os direitos das pessoas
venezuelanas que ingressam em seu território.

A maioria dos imigrantes possuem ascendência indígena. Uma pesquisa realizada pela ACNUR acerca do
perfil socioeconômico da população indígena refugiada e migrante abrigada no Estado de Roraima – principal porta
de entrada de cidadãos venezuelanos em busca de proteção internacional – dá notícia de cerca de 90% ser da etnia
Warao, 5% da etnia E’ñepa e 5% declararam não pertencer a nenhuma das duas primeiras etnias (ACNUR, 2021).

Em relação aos indígenas Warao, um recorte histórico revela-se essencial nesse estudo. Silva observa que o
assíduo contato desta etnia com a sociedade venezuelana iniciou nos anos sessenta do século passado, por força de
intervenções ambientais e invasões de suas terras por agricultores e pecuaristas criollos. A partir de então, intensifica-
se a migração do grupo para os centros urbanos, impulsionados pela desterritorialização de seus espaços e pela
exploração do petróleo (2018, p. 244).

O que se depreende do processo de inserção dos Warao na sociedade venezuelana é que as violações de
direitos humanos praticadas contra essa comunidade remontam a um período muito anterior à crise política e
econômica do país andino. A migração forçada para outros países da região é mais um capítulo no longo processo
de privação e vulnerabilização ao qual os indígenas Warao vêm sendo submetidos.

No mês de abril de 2018, as instâncias políticas brasileiras encaminharam ao Poder Judiciário a questão do
fluxo migratório de refugiados oriundos da Venezuela. O Estado de Roraima ajuizou perante o Supremo Tribunal
Federal a Ação Originária n. 3121, por meio da qual pleiteava o fechamento temporário da fronteira entre Brasil e
Venezuela ou, alternativamente, a limitação do ingresso de imigrantes venezuelanos no território brasileiro. O autor
da ação fundamentou o pedido sustentando que o número de imigrantes venezuelanos instalados na cidade de Boa
Vista já superava 10% da população do Estado, gerando impacto significativo na criminalidade e na utilização dos
serviços públicos essenciais. O requerimento foi negado em caráter liminar, decisão proferida pela Ministra Rosa
Weber (BRASIL, 2018). No entanto, antes da comunicação da decisão do Supremo Tribunal Federal, o juízo da 1ª
Vara Federal de Roraima deferiu pedido de fechamento da fronteira entre Brasil e Venezuela. Por aproximadamente
15 horas, houve o efetivo fechamento da fronteira entre os dois países por decisão judicial (FOLHA, 2018).

A origem do litígio repousava no Decreto n. 25.681/2018, do Estado de Roraima, o qual impôs uma série de
restrições para que os imigrantes venezuelanos acessassem os serviços públicos brasileiros. O art. 3º, parágrafo único
do Decreto continha norma flagrantemente discriminatória, ao prever a necessidade de o estrangeiro apresentar
passaporte válido para ter acesso aos serviços de saúde do Estado. O texto ainda excluía da exigência os cidadãos
de nacionalidade uruguaia, argentina e paraguaia, por gozarem dos direitos e prerrogativas do MERCOSUL. O art.
1º dispunha sobre “a atuação especial das forças de segurança pública e demais agentes públicos estaduais em todo
o território do Estado de Roraima, provocada pela intensificação do fluxo migratório de indivíduos oriundos da
República Bolivariana da Venezuela”.

O espírito do Decreto n. 25.681/2018 guarda afinidade com os motivos que conduziram à edição do Decreto-
lei n. 528 de 1890, analisado na primeira seção desse estudo. Assim como naquele contexto histórico a intenção era
restringir a inserção de imigrantes africanos e asiáticos no processo civilizatório brasileiro, o decreto do Estado de

80 A Declaração de Cartagena sobre Refugiados (1984) estabelece o conceito de “violação maciça de direitos humanos”, com
o objetivo de conferir um espectro mais amplo para as hipóteses de refúgio no âmbito da América Latina.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Roraima tinha a manifesta intenção de criar obstáculos à imigração de cidadãos venezuelanos que adentram no
território brasileiro em situação de extrema vulnerabilidade.

O que se pode aferir é que a lógica da colonialidade ainda repercute no imaginário do poder político
brasileiro, que não raro se sente autorizado a ignorar tratados internacionais de direitos humanos que expressam
avanços civilizatórios. O sistema de justiça não foge desta lógica, pois a base da ideologia jurídica e política
hegemônica tem origem na racionalidade liberal burguesa (HERRERA FLORES, 2009, p. 98). Esse ponto de análise
é essencial para se entender a má compreensão dos direitos humanos por parte de instituições políticas e jurídicas,
e a excessiva tolerância destas em relação às sistemáticas violações desses direitos em desfavor de determinadas
minorias (GOMES, 2021, p. 125). É nesse estado de coisas que emerge a Defensoria Pública, única instituição com
previsão constitucional específica para promover os direitos humanos.

A Constituição da República Federativa do Brasil, no art. 134, dispõe que “a Defensoria Pública é instituição
permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe, como expressão e instrumento do regime
democrático, fundamentalmente, a orientação jurídica, a promoção dos direitos humanos e a defesa, em todos os
graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos necessitados
[...]”. A missão conferida pelo constituinte à Instituição traz uma perspectiva emancipatória para os grupos em
situação de vulnerabilidade, dada a representatividade daquela para pleitear as demandas destes perante o sistema
de justiça (GOMES, 2021, p. 128).

A evolução constitucional das Defensorias Públicas do Brasil tem nas Emendas Constitucionais n. 74/2013 e
80/2014 o seu ápice. A primeira conferiu autonomia financeira e administrativa à Defensoria Pública da União e do
Distrito Federal.81 A Emenda Constitucional n. 80 atribui à Defensoria Pública, “como instrumento e expressão do
regime democrático”, a missão de promover os direitos humanos.

O legislador constituinte, a partir das mencionadas emendas constitucionais, reposiciona a Defensoria Pública
na arquitetura constitucional. Além de sua função precípua de prestar assistência jurídica integral e gratuita aos
economicamente necessitados, ela se torna responsável pela promoção dos direitos humanos. A mudança constitucional
foi o resultado de um movimento que teve início com a Emenda Constitucional n. 45/2004 – conferiu autonomia
financeira e administrativa às defensorias públicas dos Estados -, passando por uma densa guinada legislativa com a
Lei Complementar n. 132/2009, que alterou a Lei Complementar n. 80/1994,82 e trouxe significativas inovações para
o panorama institucional das Defensorias Públicas do Brasil. Menciona-se, a título de exemplo, o art. 3º-A, que prevê
entre os objetivos da Defensoria Pública: (i) a primazia da dignidade da pessoa humana e a redução das desigualdades
sociais; (ii) a afirmação do Estado Democrático de Direito; (iii) a prevalência e efetividade dos direitos humanos.

A Organização dos Estados Americanos – OEA -, por meio da Resolução n. 2656/2011, corrobora esse
panorama da Defensoria Pública brasileira ao mencionar o acesso à justiça como um direito: “Afirmar que o acesso à
justiça, como direito humano fundamental, é, ao mesmo tempo, o meio que possibilita que se restabeleça o exercício
dos direitos humanos que tenham sido ignorados” (OEA, 2011).

O amadurecimento e o protagonismo da Defensoria Pública no processo de democratização da justiça


(GOMES, 2021, p. 131) demanda uma reflexão a respeito do sentido das palavras contidas no texto do art. 134
da Constituição da República, com a redação dada pela Emenda Constitucional n. 80. De acordo com González,
“percebe-se que a Defensoria Pública é expressão do regime democrático na medida em que sua presença e atuação
consistentes são manifestação do avanço da sociedade rumo à consolidação democrática” (2017, p. 26).

81 As defensorias públicas dos Estados adquiriram autonomia financeira e administrativa por meio da Emenda Constitucional
n. 45/2004, que ficou conhecida como a Emenda da Reforma do Judiciário.
82 Organiza a Defensoria Pública da União, do Distrito Federal e dos Territórios e prescreve normas gerais para sua organização
nos Estados, e dá outras providências.

91
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

A definição da Defensoria Pública como “instrumento do regime democrático”, por outro lado, está associada
a ideia de a instituição ser o meio pelo qual as pessoas necessitadas irão acessar o sistema de justiça para buscar a
tutela dos seus direitos. Observa González que “ser instrumento do regime democrático é ser um meio para se obter
a consolidação democrática” (2017, p. 29).

O conceito de necessitado, que, nessa perspectiva, afina-se com os conceitos de vulnerabilidade e minorias,
também deve ser redimensionado. Não se está a tratar tão-somente das pessoas economicamente vulneráveis. Para
Bragato (2018, p. 49), a vulnerabilização decorre da “condição de alta suscetibilidade à violação de direitos resultantes
da posição cultural não-dominante (ou minoritária) que certos indivíduos ou grupos ocupam na sociedade”. Já o
conceito de minoria está relacionado à condição de grupos sociais não hegemônicos culturalmente e que, por esse
motivo, carecem de poder em suas dimensões econômica, cultural e política (BRAGATO, 2018, p. 52).

Os imigrantes venezuelanos que têm ingressado no Brasil pela cidade de Pacaraima/RR inserem-se no
conceito de “grupos vulneráveis”. A ineficiência do Estado brasileiro em garantir os direitos humanos dessa população
migrante os torna destinatários dos serviços da Defensoria Pública da União, que estruturou um Comitê Temático
Especializado para acompanhamento do fluxo migratório na fronteira entre Brasil e Venezuela.83

3. A atuação da Defensoria Pública da União na tutela dos direitos humanos das pessoas
migrantes e refugiadas no Estado de Roraima
Desde março de 2020, em razão da pandemia de COVID-19 decorrente da disseminação do novo coronavírus
- Sars-CoV-2 -, o governo brasileiro vem editando sucessivas portarias que dispõem sobre a restrição excepcional e
temporária de entrada no País de estrangeiros, de qualquer nacionalidade. Atualmente, vige a Portaria n. 652/2021,
que prevê restrições específicas às pessoas migrantes oriundas da República Bolivariana da Venezuela.

O art. 2º da Portaria n. 652/2021 restringe a entrada no País de estrangeiros de qualquer nacionalidade, por
rodovias, por outros meios terrestres ou por transporte aquaviário. Contudo, o texto promove inúmeras flexibilizações
que viabilizam o ingresso de estrangeiros advindos de países fronteiriços, à exceção de migrantes procedentes da
Venezuela. A Portaria restringe a entrada mesmo para aqueles que já tenham autorização de residência no Brasil ou
tenham familiares no País.

O art. 8º, à exemplo das portarias anteriores, prevê a responsabilização civil, administrativa e penal pelo
descumprimento dos termos da Portaria n. 652/2021, além da repatriação ou deportação imediata e a inabilitação
para pedido de refúgio.

No dia 06 de maio de 2020, a Defensoria Pública da União, em conjunto com a organização da sociedade
civil Caritas Arquidiocesana de São Paulo, expediu a Recomendação n. 3608825 – DPU RS/DRDH RS (BRASIL,
2020), direcionada aos Ministros da Casa Civil, da Justiça e Segurança Pública, da Saúde e da Infraestrutura. Na
Recomendação, recordava-se as autoridades públicas citadas de que a política migratória deve observar os princípios
da igualdade e não discriminação, que formam os pilares do direito internacional dos direitos humanos.

A Defensoria Pública da União e a Caritas, a fim de promover diálogo institucional profícuo e orientado
pelos marcos normativos internacionais, destacaram que a Resolução n. 1/2020, intitulada “Pandemia y Derechos
Humanos en las Américas”, adotada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos em abril de 2020 (OEA,
2020), estimula os Estados da região a darem especial atenção ao impacto diferenciado de medidas de urgência
e contenção nos direitos humanos de grupos historicamente vulnerabilizados, como as pessoas em situação de
mobilidade humana.

83 Cfe. Portaria GABDPGF n. 10/2021.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

A par disso, a Lei de Migração – Lei n. 13.445/2017 – não prevê a sanção de inabilitação do refúgio para a
hipótese de ingresso no território nacional sem autorização. Não poderiam as portarias, que possuem natureza de
ato infralegal, promover inovação na ordem jurídica, em prejuízo aos direitos das pessoas migrantes.

Após o exaurimento das tentativas de resolução extrajudicial, a Defensoria Pública da União, a fim de suscitar
a inconstitucionalidade, inconvencionalidade e ilegalidade das sucessivas portarias, ajuizou ações civis públicas
perante a Justiça Federal do Rio Grande do Sul e do Acre. Nessa última, a DPU, em conjunto com o Ministério
Público Federal, com a Associação dos Direitos Humanos em Rede (Conectas Direitos Humanos) e com a Caritas
Arquidiocesana de São Paulo, ajuizou, em 17.08.2020, a Ação Civil Pública n. 1004501-35.2020.401.3000. O Juízo
da 3ª Vara Federal Cível e Criminal da Seção Judiciária do Acre deferiu parcialmente a tutela de urgência para
“suspender os atos de deportação, repatriação ou outra medida compulsória de saída de estrangeiros em condição de
vulnerabilidade, interessados em obter acolhida humanitária ou refúgio no Brasil, devendo a União assegurar-lhes o
direito de requerer administrativamente o reconhecimento da condição de refugiado” (BRASIL, 2020). No entanto,
a União interpôs o recurso de agravo de instrumento perante o Tribunal Regional Federal da 1ª Região e obteve a
tutela recursal para suspensão dos efeitos da decisão do juízo de primeiro grau.

Na ação civil pública ajuizada no Estado do Rio Grande do Sul, o juízo da 3ª Vara Federal da Subseção
Judiciária de Porto extinguiu o processo sem resolução de mérito, por entender pela inadequação da via eleita.
Na sentença, o magistrado fundamentou no sentido de se tratar de apreciação de direito em tese, pois a ação civil
pública teria como objetivo discutir a inconstitucionalidade e a ilegalidade da Portaria Interministerial n. 225/2020.
O processo encontra-se em fase recursal, devido à interposição de recurso de apelação por parte da Defensoria
Pública da União.

As duas ações coletivas mencionadas demonstram os desafios que a Defensoria Pública da União tem
enfrentado ao buscar a garantia dos direitos dos migrantes venezuelanos no âmbito judicial. A complexidade do tema
e a urgência em promover a tutela dos direitos humanos desse grupo vulnerável nem sempre é bem compreendida
pelo Poder Judiciário. Por outro lado, inobstante o art. 5º, § 3º da Constituição da República,84 a obrigatoriedade de o
Estado brasileiro observar os tratados internacionais de direitos humanos dos quais é signatário, é pauta que ainda sofre
resistências por parte de profissionais do direito vinculados a uma formação mais dogmática do pensamento jurídico.

O Comitê dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU – CDESC, na Observação Geral n. 18, que
trata sobre o direito ao trabalho, destacou que o princípio da não discriminação deve ser aplicado às oportunidades de
emprego de trabalhadores migrantes e suas famílias (ONU, 1989). Em razão disso, os Estados devem estabelecer planos
nacionais de ação e políticas públicas migratórias a fim de promover a não discriminação de migrantes, solicitantes
de refúgio, refugiados e deslocados internos. Leão observa que o CDESC “preocupa-se em conectar suas análise e
fundamentos com outros tratados internacionais do sistema de tratados de direitos humanos das Nações Unidas”. O
autor esclarece que o objetivo é materializar a ideia de sinergia do sistema ONU em favor da afirmação da dignidade
humana e dos direitos humanos de categorias ou grupos minoritários, como os migrantes e refugiados (2019, p. 181).

O monitoramento realizado pela DPU, no que se refere a situação das pessoas migrantes e refugiadas em
Roraima, tem levado em consideração essas e outras recomendações do Sistema Internacional de Proteção dos
Direitos Humanos. Por esse motivo, a Instituição emitiu várias notas técnicas endereçadas ao Governo Federal, a fim
de solucionar inúmeros problemas de migrantes venezuelanos indocumentados. No dia 25.01.2021, a DPU emitiu
a Nota Técnica n. 2, solicitando a alteração da Portaria Interministerial n. 651/2021, para incluir entre as situações
excepcionais de ingresso em território nacional, devido à hipervulnerabilidade, indígenas, crianças e adolescentes,
separados ou acompanhados dos pais, e seus núcleos familiares; portadores de doença grave, pessoas idosas ou

84 Art. 5º, §3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do
Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas
constitucionais (Incluído pela Emenda Constitucional nº 45, de 2004).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

com deficiências, e mulheres grávidas e por razões de emergência médica ou força maior, mediante avaliação da
autoridade sanitária responsável (DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, 2021, p. 7-8).

O Governo Federal, mais uma vez, não fez qualquer movimento no sentido de considerar as observações
da Defensoria Pública da União, o que resultou, em conjunto com o Ministério Público Federal, no ajuizamento da
Ação Civil Pública n. 1001365-82.2021.4.01.4200, perante a 2ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária de Roraima.
Nesta ação, os autores problematizaram a necessidade de o Estado brasileiro promover o acolhimento humanitário
de pessoas migrantes em situação de hipervulnerabilidade. A ação também continha pedido no sentido de proibir
qualquer ato de deportação, repatriação ou medida de compulsória de saída dos migrantes em situação de acolhimento
pela Força Tarefa Humanitária em Roraima e no Amazonas.85

A Defensoria Pública da União e o Ministério Público Federal ressaltaram na ação coletiva o comportamento
contraditório do Estado Brasileiro em relação à assistência aos migrantes venezuelanos. Em que pese a Operação
Acolhida prestasse atendimento aos migrantes indocumentados, as instituições de segurança pública – Forças
Armadas, Polícia Federal e Pelotão Especial de Fronteira – orientavam-se no sentido de dar cumprimento literal à
Portaria n. 652/2021, encaminhando os cidadãos venezuelanos para imediata deportação. O mesmo Estado promove
o acolhimento e encaminha a deportação, a depender do órgão que encontra os migrantes indocumentados.

O Juízo da 2ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária de Roraima deferiu o pedido de tutela provisória para
o fim de determinar à União que se abstivesse de adotar quaisquer atos de deportação, repatriação ou outra medida
compulsória de saída dos migrantes em situação de acolhimento (hipervulneráveis) pela Força Tarefa Humanitária
(Operação Acolhida) em Roraima e no Amazonas, exceto nas hipóteses previstas na Lei n. 13.455/2017 e acaso
não sejam reconhecidos como refugiados. A União também deverá assegurar o direito de a pessoa requerer
administrativamente a regularização migratória (BRASIL, 2021). A decisão judicial enfrenta o debate em torno dos
princípios da igualdade e não-discriminação, mencionando a postura xenofóbica do Estado Brasileiro:
O tratamento discriminatório e xenofóbico concedido aos Venezuelanos não possui, por evidente,
qualquer lastro constitucional, convencional ou legal. Qual diferença há entre o ser humano
nascido na Venezuela e nos demais países que legitime ignorar o preâmbulo da Constituição (‘Nós,
representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na
ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção
de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL) (destaquei) e o
tratamento igualitário lançado no caput do art. 5º da CR/1988? Não verifico nenhuma.
E por mais que a Venezuela tenha passado, e ainda esteja passando, por uma crise humanitária, com
intenso fluxo migratório para o Brasil, discriminar os vizinhos fronteiriços não passa pelo crivo
das normas elencadas no capítulo precedente, sendo certo ainda que vai de completo encontro ao
Decreto n. 9.285/2018, que reconheceu, em seu art. 1º, a ‘... situação de vulnerabilidade decorrente
de fluxo migratório para o Estado de Roraima, provocado pela crise humanitária na República
Bolivariana da Venezuela’.

A União interpôs agravo de instrumento em face da decisão, e em 30 de março de 2021, os efeitos desta
foram suspensos pelo Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Em razão disso, os migrantes que ingressaram em
território brasileiro após as portarias de restrição de entrada permaneceram indocumentados, pois não era possível
o requerimento administrativo da regularização migratória e, tampouco, a solicitação de refúgio.

85 A Força Tarefa Humanitária, conhecida como Operação Acolhida, foi criada pelo Governo do Brasil pelo Decreto n.
9.286/2018, com o objetivo de garantir atendimento humanitário aos refugiados e migrantes venezuelanos em Roraima,
principal porta de entrada do País para pessoas provenientes da Venezuela.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

A respeito do tema, menciona-se a Observação n. 23 do CDESC, que trata do direito dos migrantes a
condições justas e favoráveis de trabalho (ONU, 2016). O Comitê destaca que os migrantes não documentados estão
expostos a um conjunto de vulnerabilidades que resultam em exploração, longas jornadas de trabalho, temor de
represálias por parte de seu empregador, entre outras práticas trabalhistas abusivas (LEÃO, 2019, p. 183).

No dia 28.07.2021 foi publicada sentença confirmando a tutela provisória e julgando parcialmente
procedentes os formulados pela Defensoria Pública da União e pelo Ministério Público Federal. A decisão judicial
determina, ainda, que a União se abstenha, por meio de seus órgãos de segurança pública, de ingressar em abrigos
de acolhimento a migrantes em situação de vulnerabilidade ou em outros locais onde estes vivam, como residências
ou ocupações, fora das hipóteses constitucionalmente previstas. E que se abstenha de realizar rondas ostensivas,
barreiras de fiscalização ou de controles documentais voltados a intimidar e impedir o acesso de pessoas migrantes
aos equipamentos de saúde e assistência social, públicos e privados, disponíveis no Município de Pacaraima, aí
incluídos os abrigos sob gestão da Força-Tarefa Logístico-Humanitária (Operação Acolhida) ou geridos por entidades
socioassistenciais privadas de qualquer natureza.

Os conflitos levados ao conhecimento do Poder Judiciário pela Defensoria Pública da União e instituições
parceiras evidenciam a postura discriminatória do Estado Brasileiro em relação aos migrantes venezuelanos, cuja
maioria é de ascendência indígena. A tensão existente na fronteira entre Brasil e Venezuela vem sendo acompanhada
pela Instituição desde o início do Projeto “Missão Roraima”,86 no ano de 2017 (DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO,
2017). Naquela oportunidade, a DPU já havia identificado um contexto de extrema vulnerabilidade econômica,
social e cultural da população migrante da região, as quais estavam expostas ao tráfico de pessoas, exploração sexual
e trabalho escravo (DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, 2017, p. 7).

No Relatório de monitoramento dos direitos humanos de pessoas migrantes e refugiadas em Roraima


(DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, 2021), a DPU esclarece que a sua atuação
[...] em matéria de monitoramento de direitos humanos vem buscando cada vez maior adequação
aos standards e princípios consolidados pelo ACNUDH – Alto Comissariado das Nações Unidas
dos Direitos Humanos, em especial quanto à garantia do direito e da proteção de pessoas
potencialmente atingidas, com a compatibilização à normativa nacional de assistência jurídica e
das prerrogativas da Defensoria Pública da União contidas na Lei Complementar nº 80/94. Quanto
à primeira fonte, com as devidas adaptações para o contexto local adota-se o rol de princípios
sintetizado no documento Comisiones de Investigación y Misiones de Determinación de los Hechos
em Derechos Humanos y Derecho Internacional Humanitario – Guia y Práctica.

Neste documento, a DPU aponta violações de direitos humanos contra a população migrante em praticamente
todas as áreas essenciais em matéria de política sociais. Na saúde, há informação de que o Subsistema de Atenção
à Saúde Indígena (SASISUS) não considera em seu censo os povos indígenas venezuelanos que migraram para o
Brasil. O fundamento é o de que os indígenas venezuelanos não são legalmente considerados indígenas, motivo pelo
qual não estariam abrangidos pela política pública. Em razão disso, a DPU verificou que há tratamento diferenciado
para indígenas brasileiros e indígenas não-brasileiros, ainda que esses últimos estejam regularizados no território
nacional (DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO, 2021, p. 13-14).

O Relatório expõe, ainda, violências resultantes de discriminação múltipla, que é um outro tema que vem
merecendo atenção do direito internacional dos direitos humanos. Há relatos de violência baseada em gênero,
violência física e psicológica contra grupos LGBTIQ+ e situação de migrantes alojados em terminal rodoviário
vítimas de tráficos de pessoas e trabalho em condições análogas à de escravos.

86 O Projeto Roraima consistiu em uma missão itinerante da Defensoria Pública da União de 1 (uma) semana, ocorrida no período
de 23/10 à 27/10/2017, no Estado de Roraima. A missão foi composta de 4 quatro) Defensoras Públicas Federais, lotadas em
diferentes estados do Brasil, integrantes dos Grupos de Trabalho de Assistência às vítimas de Tráfico de Pessoas e GT Migrações e
Refúgio. As atividades se concentraram nos municípios de Boa Vista e Pacaraima, destinos principais dos migrantes venezuelanos.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

A Defensoria Pública da União, como foi demonstrado nesta seção, vem mobilizando sua estrutura no sentido de
provocar as demais instituições públicas responsáveis para que efetivamente garantam os direitos humanos dos migrantes
e refugiados venezuelanos em Roraima. A Instituição, que já possui um núcleo estabelecido no município de Boa Vista,
tem promovido sucessivas missões de campo no Estado, especialmente na capital e no município de Pacaraima, a fim de
acompanhar a execução da política migratória dispensada pelo Estado Brasileiro aos migrantes venezuelanos.

4. Considerações Finais
A política migratória do Estado Brasileiro, desde os primeiros anos da República, orienta-se por diretrizes
que reverberam práticas discriminatórias em desfavor de alguns grupos de pessoas. Essa pesquisa demonstrou que
o eurocentrismo exerceu forte influência nas autoridades políticas brasileiras, a ponto de a legislação do final do
Século XIX consolidar hierarquias entre imigrantes europeus e não-europeus, em virtude de uma associação dos
primeiros a um ideal de progresso da humanidade.

Após o fim do colonialismo, as nações independentes no continente americano continuaram reproduzindo


práticas do período colonial que invisibilizavam modos de ser e viver estranhos aos olhos do colonizador. A essa
perspectiva dá-se o nome de colonialidade. Ela não se restringe a uma concepção econômica, mas também alcança
um padrão político e cultural que perpassa toda a forma de saber identificado como relevante a partir de uma
centralidade europeia.

A crise humanitária que vitimou milhares de cidadãos venezuelanos, que de repente se viram obrigados a
realizar migrações forçadas para outros países, impactou sobremaneira a América Latina. O fluxo migratório de
venezuelanos no Estado de Roraima, porta de entrada principal do Brasil para as pessoas provenientes do país
andino, obrigou o Estado Brasileiro a adotar uma política migratória adequada a padrões humanitários consagrados
pelo direito internacional dos direitos humanos.

A realidade, no entanto, despiu o status discriminatório e xenofóbico de autoridades e instituições públicas


brasileiras, de forma a revelar, na terceira década do Século XXI, o mesmo pensamento que norteou a política
migratória no apagar das luzes do Século XIX.

A Constituição da República Federativa do Brasil, por outro lado, previu a criação de uma instituição
especificamente vocacionada à promoção dos direitos humanos. A Defensoria Pública, como expressão e instrumento
do regime democrático, surge como um horizonte emancipatório para os grupos minoritários que são vítimas de
discriminações históricas por parte do Estado.

Essa pesquisa demonstrou, a partir dos casos em que houve atuação judicial e extrajudicial da Defensoria
Pública da União no Estado de Roraima, que a matriz colonial de poder ainda orienta as dinâmicas de muitas
instituições públicas brasileiras, e é o cerne de sistemáticas violações de direitos humanos praticadas contra os
migrantes e refugiados venezuelanos, cuja maioria possui ascendência indígena. Demonstrou-se, também, que as
inúmeras violações possuem caráter múltiplo, com recortes de raça, gênero, orientação sexual e condição social, o
que insere esse grupo de pessoas em um contexto de hipervulnerabilidade.

A Defensoria Pública da União, cujas atribuições constitucionais e legais autoriza estabelecer diálogos com
outras instituições públicas federais, deverá assumir protagonismo na difícil missão de aproximar o Estado Brasileiro
do ideal de humanidade preconizado pelo Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

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UNITED NATIONS. United Nations High Commissioner for Refugees. Guidance Note on the Outflow of Venezuelans,
março de 2018. Disponível em: <https://www.refworld.org/cgi-bin/texis/vtx/rwmain?docid=5a9ff3cc4>. Acesso em
12 ago. 2021.
WESTON, Julia Cirne Lima. A questão venezuelana como possibilidade de aplicar os direitos humanos de segunda
geração à concessão de refúgio. In: DUTRA, Cristiane Feldmann.; PEREIRA, Gustavo de Lima. Direitos Humanos
e Migrações Forçadas: migrações, xenofobia e transnacionalidade. Porto Alegre: Editora Fi, 2020. Disponível em:
<https://www.editorafi.org/31direitoshumanos>. Acesso em: 12 ago. 2021.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

IMIGRANTE REFUGIADO E A COLABORAÇÃO INTERNACIONAL DA


UNIVERSIDADE NO ÂMBITO DA RESPONSABILIDADE SOCIAL
José Alberto Antunes de Miranda 87
Paulo Fossatti 88

1. Introdução
A Universidade foi chamada a contribuir para encontrar soluções na comunidade na ajuda aos imigrantes em
situação de vulnerabilidade, com isso colabora para a cooperação internacional no âmbito do acesso a oportunidades.
Os imigrantes necessitam integrar-se à sociedade civil como cidadão de direitos. O acesso à Universidade torna-se uma
possibilidade que precisa ser dada a esses visitantes. O futuro desses imigrantes em situação de refúgio no âmbito da
sociedade depende do acesso ao conhecimento onde poderão contribuir para o desenvolvimento de um país.

O tema imigração necessita ocupar mais espaço na agenda das discussões sobre o papel da universidade
no âmbito da cooperação internacional e no acesso a direitos. A intersecção entre a cooperação internacional e a
educação multicultural oferece oportunidades para o corpo docente, estudantes e colaboradores de uma universidade.
Essa intersecção ajuda os alunos, professores e colaboradores da universidade a compreenderem o multiculturalismo
e a justiça social ante o contexto global.

O objetivo deste ensaio é analisar o papel da universidade como ator de cooperação internacional que
promove a internacionalização a partir de ações que integrem o imigrante refugiado ao contexto da comunidade.

Na primeira parte do ensaio se examina a intersecção entre a cooperação internacional da universidade e a


educação multicultural que oferece oportunidades para o corpo docente, estudantes e colaboradores e o imigrante. Estas
ações na área da educação promovem a inclusão social e a integração do imigrante refugiado ao contexto da comunidade
local e no mundo do trabalho. Neste viés, as atividades de formação e integração desenvolvidas pela universidade sob uma
perspectiva humanista contribuem para as trocas de conhecimento interculturais no campus e na sociedade.

Na segunda parte do trabalho se explora a cooperação internacional da universidade como instrumento


de responsabilidade social. Como parte do processo de resposta da universidade ao problema social a comunidade
precisa considerar não só o impacto que os imigrantes têm sobre as localidades que se encontram, mas também
compreender quais são os impactos mais amplos para os próprios imigrantes e para o mercado de trabalho, além das
necessidades educacionais dos países que enviam esses imigrantes.

A resposta aos fluxos de imigrantes não é, portanto, apenas uma questão de vistos, de controle de fronteiras
e outras medidas restritivas. É também uma questão de responsabilidade social onde a oferta educacional pelas
universidades tem uma importância fundamental na tentativa de melhor inseri-los na sociedade. As discussões
sobre o controle ou a acomodação dos fluxos de imigrantes, lidar com os desafios de reassentamento e promover
a integração bem-sucedida de curto e longo prazo precisam incluir a universidade como ator de cooperação
internacional. A universidade possui um papel fundamental e tem condições de ajudar no sentido de contribuir com
a solução dos problemas locais provocados por esses deslocamentos.

87 Doutor em Estudos Estratégicos Internacionais pela UFRGS, Mestre em Relações Internacionais pela UFRGS, Especialista
em Integração e Mercosul pela UFRGS, Bacharel em Direito pela Unisinos, Professor permanente do PPGD e Assessor de
Assuntos Interisntitucionais e Internacionais da Universidade La Salle.
88 Doutor em Educação pela PUC-RS, Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS, Professor permanente do
PPGD e Reitor da Universidade La Salle.

100
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Na terceira e última parte se apresenta o estudo de caso da Universidade La Salle, Canoas no Brasil a partir
do desenvolvimento do Projeto Universidade La Salle que inclui apoio aos imigrantes e o Projeto Integrador do
Curso de Relações Internacionais e Direito. A Universidade La Salle é uma instituição comunitária, por isso tem o
compromisso de acolher quem está no seu entorno. É sob esse preceito que nasceu em 2017 o projeto de extensão
universitária em parceria com a Associação Batista sendo depois incluída a Defensoria Pública. 

O projeto integra a Universidade e a comunidade a partir do atendimento aos imigrantes. Destes imigrantes
cadastrados, os alunos que já passaram pelas etapas de nível básico e intermediário do português no Centro de
Referência são encaminhados à Universidade La Salle para cursarem o português nível avançado. Cursos de graduação
e pós-graduação foram integrados no projeto de extensão contribuindo para ampliação da formação dos imigrantes.

2. A cooperação internacional na universidade como ambiente promotor da multiculturalidade e


da inclusão
Na Universidade a capacidade de resposta cultural, também conhecida como orientação cultural, é uma
habilidade do facilitador de honrar a cultura e as experiências de um aluno, a fim de aprimorar seu aprendizado.
Essa capacidade de resposta cultural, por sua vez, fornece a todos os alunos acesso a instruções afetivas e recursos
adequados para o aprendizado. Isso requer responsividade individual e organizacional (KILLICK, 2015).

Responsabilidade cultural é a capacidade de aprender e se relacionar respeitosamente com pessoas de sua


própria cultura, bem como com pessoas de outras culturas. Inclui o ajuste de seus próprios comportamentos e de sua
organização com base no que você aprende. Assim, o desenvolvimento cultural dos imigrantes, necessita moldar as
experiências educacionais através das lentes da orientação cultural. A universidade precisa estar orientada à inclusão,
dedicada a aprender sobre diversas culturas e pensar criticamente sobre experiências nacionais e internacionais, que
podem ajudar a validar as identidades dos estudantes sejam nacionais ou estrangeiros. Isso dependerá da capacidade
dos educadores nacionais de oferecer aos nossos alunos e aos estrangeiros orientações relacionadas à importância da
diversidade (BRUCE; LUEKER; WICK, 2019).

As experiências dos imigrantes variam de acordo com as situações de origem e suas experiências vividas.
Como estudantes nas universidades brasileiras, a entrada sedutora que representa a chegada na universidade nem
sempre é correspondida. Muitas vezes esses imigrantes não são incluídos na universidade como qualquer outro
aluno estrangeiro em situação normal de intercâmbio, são tratados como algo a parte do contexto universitário,
ficando distantes dos alunos nacionais, não sendo integrados à vida acadêmica universitária, ou pelo menos tendo
oportunidade de fazê-la (ELLIOTT, 2019).

Fronteiras não são simplesmente limites de diferentes culturas. São, ao contrário, construções humanas
complexas que representam desejos muito humanos - o desejo de sentir-se em casa e de se associar com pessoas
que compartilham culturas comuns, o desejo de uma classe dominante permanecer no poder, o desejo de um senso
de valor que vem com orgulho nacional, ou o desejo de secularidade em um mundo confuso e perigoso (ELLIOTT,
2019). À medida que nos acostumamos às fronteiras, essas complexidades são fáceis de ignorar. Como universidade,
podemos tentar ajudar migrantes e nacionais a compreender essas questões melhorando o entendimento com relação
às interações humanas que estão por trás das próprias ações de internacionalização da universidade.

A aprendizagem intercultural pressupõe fronteiras culturais entre o eu e os outros, para serem compreendidos.
A estrutura e o currículo vivido por um estrangeiro imigrante em qualquer situação presumem uma fronteira distinta
entre antes, durante e depois da experiência vivida. A universidade ajuda a promover essa experiência por meio do
conhecimento que é compartilhado (WHALEN, 2019).

O Relatório de 2018 do Comissário das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) observou que estamos

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

testemunhando os níveis mais altos de deslocamento já registrados. Um número sem precedentes de 68,5 milhões
de pessoas em todo o mundo foi obrigado a sair de casa. Entre eles estão quase 25,4 milhões de refugiados, dos
quais mais da metade tem menos de 18 anos. As pessoas deslocadas correspondem aproximadamente às populações
combinadas dos dois estados mais populosos dos EUA: Califórnia e Texas (cerca de 68,5 milhões) (ACNUR, 2018).

A taxa de crescimento é, de acordo com o mesmo relatório, surpreendente, ou seja, quase uma pessoa é forçada
a deslocar-se a cada dois segundos como resultado de conflito ou perseguição. Muitos são impedidos de mobilidade
pela pobreza ou política. Para outros, a mobilidade representa uma perda traumática de lar e exílio. Para uma elite
privilegiada, a mobilidade possibilita uma jornada rumo a algo positivo, educação, aventura, prazer e esclarecimento. A
distinção entre ir em direção e recuar está no coração dos paradoxos da mobilidade (WOOLF, 2019).

A experiência de estudos no exterior já foi definida pelo sentimento de se estar totalmente perdido, de se
estar verdadeiramente imerso, para depois se estar  totalmente investido em uma nova comunidade. No entanto,
com a conectividade constante e informações imediatas oferecidas pela tecnologia de hoje, o estudo no exterior é
um evento de viagem mais benigno para um estrangeiro em situação normal de um intercâmbio, tornou menos uma
experiência de alteração de vida. 

Já para um imigrante em situação de vulnerabilidade  representa uma alteração completa de vida e uma
expectativa de inserção na nova sociedade que o recebe. Ser capaz de contornar o desconforto do desconhecido, a
solidão da discrição e muitas vezes a rejeição do meio que deveria o acolher proíbe o desenvolvimento de uma conexão
mais profunda com o local que deveria apoiar para atender às suas necessidades sociais. Da mesma forma, quando
o imigrante tem a oportunidade de se tornar um membro da comunidade se envolve totalmente em sua dinâmica.
Então, e somente então, alguém pode se tornar parte da comunidade e não apenas um espectador (ORTEGA, 2018).

Nesse sentido, observamos que desenvolver capital social e uma comunidade forte e saudável é um processo
multifacetado e de longo prazo. A universidade e o seu processo de internacionalização possuem importante
papel por meio do auxílio ao estudante estrangeiro, seja imigrante ou não, em ser encorajado a desenvolver
relacionamentos que o envolva na comunidade na forma de contribuir para o desenvolvimento da mesma. Ações
voluntárias desenvolvidas por estudantes nacionais ou estrangeiros ajudam a obter uma conexão mais profunda com
suas comunidades por meio de serviços prestados. 

Os benefícios do serviço social é se conectar com a comunidade. Além do projeto específico em questão, os
envolvidos têm a oportunidade de desenvolver relacionamentos com pessoas que eles não teriam necessariamente
encontrado no ambiente habitual de estudo, como outros voluntários beneficiários e líderes comunitários. Por meio do
voluntariado e das ações promovidas pela universidade no contexto do processo de internacionalização da educação
superior, os envolvidos podem obter uma compreensão mais profunda da situação política, econômica e social em que
estão vivendo e como as situações locais e as lutas para enfrentá-los, fazem parte de uma narrativa global. 

Os sistemas de ensino superior têm um papel fundamental a desempenhar para uma mudança  positiva
no social e na economia. Economicamente, a universidade cria mão-de-obra qualificada.  Da mesma forma, as
universidades de pesquisa estão no centro das inovações e das economias do conhecimento. Socialmente, eles
fomentam benefícios públicos amplos através da criação de cidadãos mais informados, sociedades mais tolerantes,
comunidades mais participativas e melhores condições de vida. Nós olhamos para as universidades em seus contextos
espaciais e locacionais, ou seja, os estados-nação e as regiões das cidades de que fazem parte. Se defende aqui que,
em nível nacional, as universidades podem ser importantes não apenas para o desenvolvimento econômico local
e nacional, mas também para o projeto de construção da nação. Universidades e instituições de pesquisa podem
desempenhar um papel fundamental nos sistemas de inovação e na formação de capital em nível local, amplificado
por sua importância crescente para o estabelecimento e desenvolvimento das economias regionais da cidade. O
imigrante pode também contribuir.

102
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Historicamente, há um forte reconhecimento de que as universidades desempenham um papel importante


no processo de construção da nação, em outras palavras, as expectativas de que as universidades, como guardiões
e geradores da cultura nacional (particularmente, mas não somente, através das humanidades, como as línguas, a
história e as artes) podem contribuir ativamente para a valorização das culturas nacionais e estrangeiras.

  Envolver as comunidades e promover a estabilidade política através da formação e fortalecimento dos


estados-nação e através da sua contribuição para a construção e reconstrução de identidades locais, nacionais e
globais se reconhecendo as diferenças e promovendo a diversidade na integração. Abertas ao fluxo de novas ideias e
provendo os espaços intelectuais para contestar as estruturas sociais, políticas e econômicas existentes e emergentes,
as universidades desempenharam um papel particularmente importante na contemporaneidade (BEALL, 2016).
Mas a universidade tem um papel ainda mais relevante para contribuição da resolução de inúmeros problemas locais
e que estão intrinsecamente relacionados aos globais como a questão da imigração. 

A contribuição das universidades para o desenvolvimento local e regional não é um fenômeno novo: há
séculos que as universidades têm uma relação profunda e dinâmica com a vida econômica, social e cultural das cidades
em que se baseiam. Há alguns anos atrás a OCDE, o Banco Mundial e outras agências internacionais reconhecem e
promovem a ideia de que as universidades desempenham um amplo leque de funções em nível local e regional, por
meio de educação, pesquisa e atividades relacionadas à cultura, com ênfase particular em sua contribuição para o
desenvolvimento econômico (OECD, 2007).

No Brasil em particular os governos nacionais e municipais ainda têm dificuldade em ver as universidades
como essenciais para os sistemas de inovação econômica e o próprio desenvolvimento das comunidades. O ensino e
a aprendizagem desenvolvem o capital humano e graduados altamente qualificados são reconhecidos como insumos
fundamentais para o desenvolvimento industrial bem-sucedido em uma determinada localidade. Os imigrantes, seja
lá qual a sua situação, precisam ser vistos como agentes potenciais de transformação para o local, pois muitos trazem
consigo práticas e conhecimentos de suas regiões que contribuem para criação de práticas inovativas no novo meio
em que se encontram. O imigrante atual precisa ser visto pelas universidades e entes públicos como um potencial
contribuidor ao desenvolvimento e não como um usurpador ou degradador da sociedade local. Fato novo para o país
no período, decorrente de nova configuração do poder internacional-transnacional do segundo pós-guerra o Brasil
passou a receber estrangeiros também na condição de refugiados e apátridas. 

No período de 1947 a 1953, já eram identificados os outros além dos já conhecidos portugueses, espanhóis,
italianos, alemães ou japoneses, de períodos históricos anteriores. Em termos jurídicos, a entrada de estrangeiros
como refugiados no país a partir de 1947 foi decorrente da participação do Brasil na Organização Internacional de
Refugiados – OIR (1947), posteriormente recriado como Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados
– ACNUR (1950), com a subsequente edição do Estatuto dos Refugiados (1951) (MENEZES, 2018).

Durante a maior parte do período da ditadura, não foi preciso revisar e sistematizar a legislação
infraconstitucional sobre o imigrante ainda anterior da Constituição de 1946. O apelo ao civismo moral popular e
a coerção policial do Estado foram suficientes para garantir a aceitação dos atos e resoluções que administravam o
diminuto contingente de imigrantes. O potencial de grande nocividade à ordem pública e interesses nacionais era
nesse tempo o marco regulatório de tratamento ao estrangeiro. 

Para Ana Paula Amaral e Luiz Rosado Costa com o Estatuto do Estrangeiro, o imigrante irregular passou
a ser tratado juridicamente como agente potencialmente subversivo, que exigia permanente controle e vigilância.
Para tanto, cabia à Polícia Federal as atribuições de recepção do imigrante, conjugadas com aquelas de repressão à
criminalidade transnacional. Além do modelo policial, o Estatuto propiciava que o tratamento ao imigrante tivesse
novamente ampla discricionariedade por parte das autoridades administrativas para disponibilização de vistos,
permanência e naturalização de estrangeiros (AMARAL; COSTA, 2017).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

No mesmo sentido, o Estatuto vedava a regularização de situações migratórias irregulares (salvo com anistia
concedida em lei), obrigando o irregular à clandestinidade, o que lhe acometia extrema vulnerabilidade sóciojurídica.
Dessa forma, os procedimentos administrativos de recepção, permanência e trabalho caracterizaram o Brasil como
um dos países mais restritivos quanto à imigração de estrangeiros (PATARRA, 2005). Como resultado dessa política
econômica, o contingente de imigrantes recebidos na primeira quinzena do século XXI reverteu-se a ponto de ser
comparado com aquele da migração de massa dos fins do Império e inícios da República. Apesar das ambiguidades
institucionais e sociais no tratamento do imigrante, o Brasil tornou-se ponto de inflexão no processo de imigração
global nos inícios do século XXI. As universidades com isso são pela primeira vez chamadas a contribuir para
resolução dos problemas.

3. A Cooperação Internacional como instrumento da Universidade para a responsabilidade


social.
O desenvolvimento de atividades por parte da universidade que ajudem os imigrantes a se integrar na
sociedade é parte de sua função social. Esse tipo de atendimento também contribui para um conjunto de ações da
internacionalização da própria instituição onde o imigrante é convidado a contribuir para um ambiente de diversidade
de culturas e opiniões que é o espaço universitário. De muitas maneiras, as instituições de ensino superior estão melhor
equipadas e mais flexíveis do que outros setores para lidar com imigrantes pois já recebem estudantes internacionais. As
mesmas possuem infraestrutura bem desenvolvida no local, desde salas de aula, bibliotecas até assistência com serviços
de laboratório e alimentação, juntamente com outros recursos-chave e pessoal de apoio treinado.

Como parte do processo de resposta da universidade ao problema social a comunidade precisa considerar
não só o impacto que os imigrantes têm sobre as localidades que se encontram, mas também compreender quais
são os impactos mais amplos para os próprios imigrantes e para o mercado de trabalho, além das necessidades
educacionais dos países remetentes. A resposta aos fluxos de imigrantes não é, portanto, apenas uma questão de
vistos, de controle de fronteiras e outras medidas restritivas. É também uma questão de responsabilidade social
onde a oferta educacional pelas universidades tem uma importância fundamental na tentativa de melhor inseri-los
na sociedade. As discussões sobre o controle ou a acomodação dos fluxos de imigrantes, lidar com os desafios de
reassentamento e promover a integração bem-sucedida de curto e longo prazo precisam incluir a educação como
um fator essencial. A universidade possui um papel fundamental e tem condições de ajudar no sentido de contribuir
com a solução dos problemas locais provocados por esses deslocamentos (WIT; ALTBACH, 2015).

Conforme já salientado anteriormente, a capacidade de resposta cultural ou orientação cultural é uma habilidade
do facilitador de honrar a cultura e as experiências de um aluno, a fim de aprimorar seu aprendizado. A capacidade de
resposta cultural fornece a todos os alunos acesso a instruções afetivas e recursos adequados para o aprendizado.

Nesse sentido, observamos que desenvolver capital social e uma comunidade forte é saudável e é um
processo multifacetado de longo prazo. A universidade como ator que promove a cooperação internacional
possui importante papel por meio do auxílio ao estudante estrangeiro, seja imigrante ou não, em ser encorajado a
desenvolver relacionamentos que o envolva na comunidade na forma de contribuir para o desenvolvimento dessa
comunidade. Ações voluntárias desenvolvidas por estudantes nacionais ou estrangeiros ajudam a obter uma conexão
mais profunda com suas comunidades por meio de serviços prestados.

Os benefícios do serviço social é se conectar com a comunidade. Além do projeto específico em questão, os
envolvidos têm a oportunidade de desenvolver relacionamentos com pessoas que eles não teriam necessariamente
encontrado no ambiente habitual de estudo, como outros voluntários beneficiários e líderes comunitários. Por meio
do voluntariado e das ações promovidas pela universidade no contexto do processo de cooperação internacional,

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

os envolvidos podem obter uma compreensão mais profunda da situação política, econômica e social em que estão
vivendo e como as situações locais e as lutas para enfrentá-los, fazem parte de uma narrativa global. 

No Brasil o ano de 2018 foi o maior em número de solicitações de reconhecimento de condição de refúgio.
Isso porque o fluxo de venezuelanos em deslocamento aumentou exponencialmente. No total, foram mais de 80 mil
solicitações no ano de 2018, sendo 61.681 de venezuelanos. Em segundo lugar está o Haiti, com 7 mil solicitações. Na
sequência estão os cubanos (2.749), os chineses (1.450) e os bengaleses (947) (Brasil, 2018). Deste cenário apresentado
os estados brasileiros que mais apresentam solicitações em 2018, “são Roraima (50.770), Amazonas (10.500) e São
Paulo (9.977)” (ACNUR, 2018). Para contextualizar o crescente número de solicitações, Roraima apresentou um
número de 16 mil solicitações em 2017. 

 No ano de 2018 predominaram os fluxos oriundos do Sul Global, com destaque para haitianos e venezuelanos
que tiveram o maior número de refugiados. Conforme dados divulgados pelas Nações Unidas-Brasil, o Brasil é o
país da região com maior número de haitianos. “Até o fim de 2016, foram autorizadas 67 mil autorizações de
residência no país, incluindo temporárias e permanentes” (UN-BRASIL, 2017). Recentemente os venezuelanos
chegam ao Brasil caracterizando-se, uma das correntes migratórias que ganhou força no cenário atual. Conforme
o artigo 44 da lei de migração 9.474/97, o reconhecimento de certificados e diplomas e o ingresso em instituição
a situação desfavorável vivenciada pelos refugiados. Porém, as barreiras hoje existentes são inúmeras para esses
indivíduos acessarem a educação superior. 

Neste contexto, em que predominam estas e outras necessidades pontuais em relação à formação destes
cidadãos no contexto atual, à Universidade La Salle Canoas/RS-Brasil como instituição comunitária tem o
compromisso social de acolher quem está no seu entorno e nesse sentido foi convidada para encontrar soluções na
ajuda aos refugiados. Neste envolvimento com a sociedade, a Gestão Universitária se preocupa em criar políticas de
acolhimento a estes cidadãos integrarem-se à sociedade civil como cidadão de direitos. 

Diante desta realidade em que se faz necessária uma política de inclusão de imigrantes e refugiados no
contexto educacional, a Universidade La Salle foi convidada a participar das ações de responsabilidade social
junto a estes cidadãos. 

4. O Projeto Universidade La Salle Inclui: apoio aos imigrantes


O Projeto de extensão “UNIVERSIDADE LA SALLE INCLUI: apoio aos imigrantes” teve seu início no
mês de novembro de 2017 (Universidade La Salle, 2017, s/p). Atualmente o projeto de extensão envolve o Projeto
Integrador do Curso de Relações Internacionais que assimilou o projeto intencionista. O projeto integrador tem
como objetivo proporcionar o exercício prático das competências a serem desenvolvidas no curso e a integração
entre os conhecimentos estudados, por meio de experiências que articulam ensino, pesquisa e extensão.

Os projetos vinculam-se a uma situação real, desafiando os estudantes a resolverem algum problema na
sua área de atuação, de forma competente, contando, com o suporte do conjunto de conhecimentos abordados no
curso até o momento.

A Universidade La Salle é uma instituição comunitária, por isso tem o compromisso de acolher quem está no
seu entorno. É sob esse preceito que nasceu, em 2017, na Universidade La Salle, o projeto de extensão em parceria com
a Associação Batista, responsável por atividades junto aos imigrantes em Canoas (UNIVERSIDADE LA SALLE, 2018).

O projeto oferece aulas do idioma Português aos imigrantes do Haiti que moram na Região Metropolitana
da capital. No mês de março de 2018, iniciaram as aulas de língua portuguesa como língua de acolhimento para um
grupo de 30 alunos imigrantes haitianos, que estão em andamento e acontecem no campus da Universidade La Salle. 

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

O projeto Universidade La Salle Inclui: apoio aos imigrantes oferece aulas de Língua Portuguesa para estrangeiros
como língua de acolhimento acontece em três estágios; num primeiro momento dentro de um contexto de acolhida e
de inclusão num contexto interdisciplinar. O projeto envolve diferentes áreas do conhecimento por meio de oficinas nas
áreas do direito, Saúde, Recursos Humanos, Relações Internacionais, Psicologia, Informática entre outros. 

As atividades acontecem dentro de um contexto de integração entre saberes, onde os conhecimentos são
vivenciados entre educandos e educadores. Segundo o Jornal Diário de Canoas (2018) a professora titular do projeto
destaca algumas dificuldades percebidas em relação a compreensão do idioma, dentre elas a pronúncia quando
inclui dígrafos, além disso a leitura e a escrita são desafios a serem vencidos. “Mas a interação deles já melhorou muito
e ao conversarem mais, eles acabam aprendendo mais rápido” (DIÁRIO DE CANOAS, 2018, CONTRA/CAPA). 
Neste processo o professor se destaca como mentor das atividades integradas com outras áreas de conhecimento
como direito, psicologia, saúde, informática, além de várias outras atividades.

 Fossatti e Casagrande (2011) afirmam que “Formar para a vida torna-se sinônimo de vivência de ideais
e valores, de preparação para o mercado de trabalho de enfrentamento criativo das adversidades que o cotidiano
apresenta [...]” (FOSSATTI, CASAGRANDE, 2018). Neste viés, o ensino do idioma é desenvolvido num ambiente
onde as atividades acontecem de forma dinâmicas e inovadoras que desenvolvam a formação integral do aluno,
cuidando da vida do desenvolvimento pessoal, profissional e da sua integração no contexto educacional no mercado
de trabalho e na sociedade. Estas ações estão de acordo com os princípios Lassalistas “formar integralmente,
cultivando a inteligência do aluno, atingindo sua dimensão afetiva e exercitando sua vontade, orientando-o na
aplicação à vida concreta daquilo que aprendeu” (LA SALLE, 2013, p. 2).

As atividades do Projeto Integrador contribuem para que os imigrantes tenham acesso a informações
essenciais principalmente permitir aos imigrantes que residam em Canoas/RS subsídios para que conquistem seus
direitos como cidadãos, desenvolvendo habilidades e saberes específicos em diferentes áreas do conhecimento para
que possam inserir-se no mercado de trabalho, resultando em uma melhor vida em comunidade.

Também é objetivo do projeto integrador capacitar os alunos para o atendimento de demandas comunitárias,
incluindo a formação em pensamento estratégico e design thinking para tornar o atendimento mais eficiente, criando
habilidades centrais para a futura inserção dos alunos no mercado de trabalho.

As ações inclusivas na educação superior da Universidade La Salle para imigrantes: contempla a integração
entre comunidade e a universidade, através da acolhida, inclusão e inserção do aluno no contexto acadêmico. Esse
processo se desenvolve por meio das aulas de Português como língua de acolhimento que são ministradas num
ambiente acadêmico de sensibilização e de escuta de suas histórias relacionadas a família, e suas vivências. Além
do aprendizado do idioma, da cultura, da troca intercultural de conhecimentos, promovemos atividades em que os
alunos têm oportunidades de circular no campus, interagindo com a comunidade acadêmica com graduandos, pós-
graduandos e educadores. 

O projeto também contempla a preparação para o mercado de trabalho por meio de oficinas de formação nas
áreas de Recursos humanos, com a elaboração de currículo, preparação para entrevista de emprego e encaminhamento
para ingresso no mercado de trabalho. Da mesma forma às áreas do direito e relações internacionais contemplam a
resolução de problemas com a documentação, além da qualificação por meio das oficinas de computação integrando
o aprendizado do idioma e o mundo da tecnologia além dos atendimentos que estão previstos junto ao Núcleo de
Apoio às Relações Internacionais.

Da mesma forma, as iniciativas visam a inclusão de imigrantes e refugiados no mundo acadêmico.  Neste
processo destacamos a importância das ações de cooperação internacional e da Responsabilidade Social e que
precisam ocupar um lugar de destaque no contexto da Gestão da Internacionalização das Universidades brasileiras e
que proporcionem a possibilidade de ingresso na educação superior aos imigrantes em situação de vulnerabilidade.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

     Uma das características da educação de qualidade social é garantir uma formação de base que permita
o desenvolvimento das habilidades cognitivas. O mesmo autor explica ainda que isso acontece através do domínio
dos conteúdos, preparação para o mundo tecnológico, comunicacional e da mesma forma a integração cultural
(LIBÂNEO, 2013).

A Internacionalização instigada pela globalização, ganha um destaque na atual sociedade, com implicações
que se destacam no campo econômico, político, cultural ou social. Para a autora, essas mudanças causaram alterações
no comportamento da humanidade e criaram a necessidade de novas respostas às condições impostas por essa
sociedade globalizada (STALIVIERI, 2017, p. 16). 

Nesse sentido de buscar respostas a essas novas necessidades a partir do fenômeno da imigração é que
identificamos a necessidade de novas respostas diante do cenário de inclusão de parte dessa população.

5. Considerações Finais 
As universidades brasileiras por meio de ações de cooperação internacional com responsabilidade social
precisam se abrir aos benefícios do multiculturalismo construindo suas economias por meio da inserção e integração
dos imigrantes.  Esses também podem contribuir para preencher as lacunas de habilidades ajudando a aliviar as
necessidades econômicas de seus países receptores. O imigrante ao retornar para seu país de origem reconstrói
seus próprios países a partir do que vivenciam e aprendem na comunidade, no mercado e nas universidades
brasileiras ajudando, com isso, a construir um mundo mais estável e pacífico para as futuras gerações. Portanto, tal
processo passa necessariamente por assumir o desafio de consolidar uma cultura da responsabilidade social, pessoal
e institucional, na acolhida plena ao imigrante, passando necessariamente pela inserção social, pela inclusão no
mundo universitário e no mundo do trabalho. 

A cooperação internacional universitária é a melhor forma ou  meio para alcançar objetivos comuns no
mundo globalizado. Ela abre portas de oportunidade para os países em desenvolvimento, para as universidades e
seus atores. Mas cooperação como ímpeto de continuidade das ações, pois todos os parceiros tentam maximizar seus
interesses. Assim, consumar um acordo e sustentá-lo até o final do projeto/programa comum é uma tarefa que exige
atenção. Constituem benefícios da cooperação, o compartilhamento dos custos, o acesso à experiência, tecnologia
e instalações. A cooperação serve também como reforço político para o projeto/programa; cria ou estreita boas
relações, exerce influência sobre os parceiros e funciona como efeito de demonstração de liderança. 

A promoção das ações de cooperação internacional da universidade, sob o ponto de vista da responsabilidade
social, tanto pessoal quanto institucional, tem a sua centralidade  na integração das dimensões internacional,
intercultural e global aos processos de ensino e aprendizagem e inserção no mercado de trabalho.  Como universidade,
podemos tentar ajudar imigrantes e nacionais a compreender essas questões melhorando o entendimento com relação
às interações humanas que estão por trás das próprias ações de internacionalização da universidade. Os movimentos
migratórios no século XXI, inclusive o experimentado no Brasil, tendem a ser daqueles que são obrigados a se deslocar. 

Se observa a urgência de um engajamento maior por parte da comunidade no sentido de acolher esses
cidadãos não somente como um problema a resolver, mas como irmãos que devem ser acolhidos e respeitados por
cada um de nós e pela sociedade. Nesse sentido se faz necessário uma busca por soluções inovadoras para promover
a integração destes cidadãos tendo como foco principal a educação. 

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Referências 

ACNUR. Refúgio em números 4º edição. 2018a. Disponível em:  <https://www.acnur.org/portugues/wp-content/


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109
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

REDE DE APOIO LOCAL, ASSISTÊNCIA JURÍDICA E ACESSO


A DIREITOS PARA IMIGRANTES EM SANTA CATARINA
Karine de Souza Silva 89
Thalia Pasetto Biléssimo 90
Jonatan Carvalho de Borba 91

1. Introdução
Inobstante o formal avanço nas políticas migratórias através da promulgação da Lei de Migração (Lei
13.445/2017) na esfera federal e da Lei estadual nº 18.018/2020 em Santa Catarina, constata-se que a mudança legal
pretendida ainda não alcançou a vivência das pessoas migrantes em sua plenitude. Partindo-se da constatação da
insuficiência e/ou da inércia de atuação de alguns setores públicos para implementação das referidas normas, este
trabalho objetiva evidenciar a importância da assistência jurídica prestada pela rede de apoio local para a afirmação
do e da imigrante enquanto sujeito de direitos em Santa Catarina. A base teórica deste texto está assentada nos
estudos anti/pós/de-coloniais e na teoria crítica dos direitos humanos, uma vez que estes permitem uma análise do
panorama a partir das imbricações de marcadores tais como raça, gênero, classe e nacionalidade que impactam a
experiência migratória. Além desta introdução e das considerações finais, o trabalho está dividido em três seções. A
primeira parte apresenta os direitos migratórios e sociais que decorrem das legislações migratória nacional e estadual,
bem como enfatiza a forma como a colonização e a classificação social baseada em raça impactam a mobilidade
humana. Em seguida, o segundo tópico apresenta o debate sobre a importância da assistência jurídica para o acesso
a direitos, enquanto a terceira seção, por sua vez, analisa como essa dinâmica ocorre na prática em Santa Catarina.

Esta pesquisa, inédita nos estudos sobre as migrações contemporâneas em Santa Catarina, faz parte dos
estudos realizados no grupo Eirenè: “Centro de Pesquisas e Práticas Pós-coloniais e Decoloniais aplicadas às Relações
Internacionais e ao Direito Internacional”, que tem como foco abordagens voltadas às migrações sul-sul para o Brasil
e Santa Catarina (SILVA; MÜLLER; SILVEIRA, 2018; SILVA; BORBA; MÜLLER, 2020), atravessadas, sobretudo por
raça (SILVA; ROCHA; D’ÁVILA, 2020; SILVA, 2020) e gênero (SILVA; MORAIS, 2021) com objetivo de produzir
saberes e práticas emancipadoras, bem como auxiliar na criação de políticas públicas especificamente direcionadas
para os setores que melhor impactam as vulnerabilidades impostas à população migrante.92

89 Doutora e mestra em Direito Internacional pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora dos programas
de pós-graduação stricto sensu em Relações Internacionais e em Direito da UFSC. Coordenadora do EIRENÈ e do Projeto
de Extensão Núcleo de Apoio a Imigrantes e Refugiados (NAIR/EIRENÈ). Pesquisadora Produtividade em Pesquisa (PQ)
do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
90 Bacharela em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisadora do EIRENÈ e membro do Projeto
de Extensão Núcleo de Apoio a Imigrantes e Refugiados (NAIR/EIRENÈ).
91 Doutorando e mestre em Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Pesquisador do
EIRENÈ e membro do Projeto de Extensão Núcleo de Apoio a Imigrantes e Refugiados (NAIR/EIRENÈ). Bolsista do
Programa UNIEDU/FUMDES Pós-Graduação.
92 Para fins deste trabalho, utiliza-se a definição inclusiva de “migrante”, que considera como migrante todos aqueles/as que
são refugiados/as ou não, utilizada pela Organização Internacional para Migrações, que assim define: “Um termo guarda-
chuva, não definido pelo direito internacional, refletindo o entendimento laico comum de uma pessoa que se afasta do
seu lugar de residência habitual, quer dentro de um país ou através de uma fronteira internacional, temporariamente ou
permanentemente, e por uma variedade de razões. O termo inclui o número de categorias jurídicas bem definidas de
pessoas, tais como trabalhadores migrantes; pessoas cujos tipos específicos de movimentos são legalmente definidos, tais
como migrantes contrabandeados; bem como aqueles cujo status ou razões de movimentação não estão especificamente
definidos nos termos do direito internacional, como os estudantes internacionais (OIM, 2019, p. 132) (tradução nossa)”.

110
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

2. Legislação migratória no Brasil e em Santa Catarina e as suas violações por parte do Estado
A política migratória brasileira adotou diferentes abordagens de tratamento das(os) imigrantes a depender
do momento histórico e dos “interesses nacionais” de cada época (RICCI; SILVA, 2018). Não obstante, Silva (2020, p.
26) ressalta que o Direito migratório brasileiro tem funcionado como verdadeira tecnologia destinada à racialização
e ao controle de corpos negros, na medida em que “as políticas migratórias serviram, historicamente, como uma das
armas de guerra contra indivíduos não brancos neste país”.

É somente a partir da década de 1990, após a promulgação da Constituição Federal de 1988, que passam a
se fazer presentes na sociedade, de forma mais difundida, mobilizações para a alteração deste paradigma através
dos esforços para a substituição do Estatuto do Estrangeiro - diploma legal formulado a partir dos princípios de
segurança nacional adotados à época da Guerra Fria e que via o imigrante como potencial inimigo da nação (RICCI;
SILVA, 2018). A mudança na legislação propriamente dita, no entanto, ocorreu apenas em 2017 por meio da
Lei 13.445, após movimentações no campo político provocadas desde 2013 por pressões internas e internacionais
intensificadas pelos recentes movimentos migratórios, sobretudo com a chegada de pessoas do Haiti (SILVA,
BORBA DE SÁ, 2021; RICCI; SILVA, 2018).93

Apesar dos vetos presidenciais e do Decreto contraditório que regulamentou a Lei de Migração94 (Decreto
9199/2017), a nova legislação trouxe mudanças positivas para a política migratória brasileira. Dentre as principais
conquistas está a alteração do paradigma de segurança nacional e da noção da pessoa migrante enquanto “inimiga”,
anteriormente aplicada pelo Estatuto do Estrangeiro, para uma ótica de direitos humanos que considera o/a imigrante
como um verdadeiro sujeito de direitos. Entre os grandes avanços da Lei de Migração, podemos citar a redução da
burocracia no processo de regularização migratória, a não criminalização por razões migratórias, além de conferir
uma série de direitos às/aos migrantes que até então não eram garantidos, bem como a institucionalização da política
de vistos humanitários (GUERRA, 2017, p. 1722).

Na mesma esteira, três anos após a promulgação da Lei nacional sobre assuntos migratórios, o Estado de
Santa Catarina aprovou a sua política estadual de migração, através da Lei Estadual nº 18.018 de 9 de outubro de
2020 (SANTA CATARINA, 2020), resultado de um processo aberto de discussões sediado no Grupo de Trabalho
de Imigrações da Assembleia Legislativa de Santa Catarina (ALESC), que inclui representantes do Legislativo, da
sociedade civil e outras várias instituições públicas, como a Universidade Federal de Santa Catarina, e privadas
(SILVA; BORBA; DAVID, 2020).95

A Lei nº 18.018, conta com 10 artigos que reafirmam os direitos sociais dos imigrantes e determina as medidas
a serem aplicadas para sua concretização. A norma se mostra como uma inovação no ordenamento jurídico brasileiro
ao incluir políticas de ações afirmativas para imigrantes e refugiadas(os) negras(os) (art. 3º, XI) e pontuar a necessidade
da abordagem interseccional das políticas públicas para combate às opressões de raça, gênero, etnia, orientação sexual,
nacionalidade, idade e deficiência (art. 3º, III) (SILVA; BORBA; DAVID, 2020).96 De maneira geral, as leis supracitadas
introduzem inúmeros outros direitos para a população imigrante para além dos já aqui mencionados.

93 Oliveira (2020), por sua vez, pontua que já haviam dispositivos legais no país que davam sinais da flexibilização da agenda
migratória, como a Lei do Refúgio (Lei nº 9.474/97) em 1997; o Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados
Partes do Mercado Comum do Sul – Mercosul, Bolívia e Chile, em 2009; e os dispositivos de regularização editados a partir
chegada dos fluxos oriundos da República do Haiti, em 2010.
94 Logo após a entrada em vigor da Lei, editou-se o seu Decreto regulamentador, nº 9.199/2017. Ao contrário da Lei, o
Decreto não contou com a participação da sociedade civil e foi alvo de duras críticas por esses atores. Ao fim, o Decreto
acabou por trazer enxertos que contradizem e/ou modificam a Lei de Migração e seus objetivos.
95 A construção da norma se iniciou, na Assembleia Legislativa, por sua vez, com o Projeto de Lei 0464/2019 de autoria do
deputado Fabiano da Luz (PT – Partido dos Trabalhadores).
96 Ambos os incisos foram formulados pela Professora Karine de Souza Silva, professora da Universidade Federal de Santa
Catarina e coordenadora do Eirenè.

111
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Deste modo, é possível afirmar que tanto o Brasil como o estado de Santa Catarina possuem instrumentos
legais voltados à proteção e à integração dos migrantes internacionais em consonância com os direitos humanos
internacionais. Na prática, contudo, a implementação de políticas públicas especialmente direcionadas às pessoas
imigrantes do hemisfério Sul se mostra insuficiente para corresponder aos comandos legais de forma integral.

Nessa esteira, atualmente, os principais contingentes migratórios internacionais que chegam à Santa Catarina
são formados majoritariamente por pessoas advindas de outros países do hemisfério Sul, racializadas como não-
brancas. Ainda que se fale sobre “igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e a seus familiares” na
Lei de Migração (BRASIL, 2017), a manutenção da classificação racial através da colonialidade se nota por meio
de tratamento diferente para os imigrantes racializados como não brancos em relação aos brancos do Norte global
(SILVA, 2020). Nesse sentido, Silva (2020, p. 31) critica a Lei de Migração:
[...] a Lei 13.445 peca por universalizar a pessoa imigrante e não assumir que os que aqui chegam
partem de lugares geográficos, sociais e raciais diferentes. Os corpos brancos do Norte global ainda
são lidos e acolhidos aqui, diferentemente dos corpos racializados como não brancos. A raça e as
suas intersecções com o gênero e sexualidades dificultam a entrada e permanência e vulnerabilizam
a condição de existência das vidas negras. O Direito tem obrigação de corrigir estas iniquidades
nesta nação que tem uma dívida histórica com os povos africanos/as e os da diáspora. Fato é que,
até hoje, mesmo com a vigência da nova lei de Migração, são esses os coletivos que têm mais
dificuldade de regularização migratória e de acesso a direitos humanos no Brasil.

A racialização iniciada a partir da colonização da América é, dessa forma, o ponto de origem do racismo
estrutural que atualmente caracteriza as relações sociais, políticas, econômicas, institucionais e também a aplicação
das políticas migratórias no Brasil (SILVA, 2020). A majoritária parte das/os imigrantes, não-brancas/os do Sul
global, são marcadamente atingidos pelo processo de hierarquização de raças iniciado com o colonialismo europeu
e mantido pela colonialidade, que não os reconhece plenamente enquanto sujeitos de direitos. Diante dessa situação,
a/o imigrante racializada/o é colocado/a em lugar marginal, na periferia do conceito de “humano”. Ainda que a
Lei de Migração tenha reconhecido seus direitos, a estrutura social mantida pela colonialidade, de racialização e
hierarquização, não a/o assim considera e não desenvolve estruturas para que seja tratado como tal.

Dessa forma, o conceito de colonialidade ajuda a compreender o processo histórico de depreciação que
certos seres humanos enfrentam através da desumanização discursiva e material baseada na classificação racial. Ela
explica como a categoria de “seres humanos” foi reputada ao homem branco, heterossexual e cristão, deixando de
fora aqueles/as que não se enquadram neste padrão. Quanto mais longe dessa categoria alguém se encontra, mais
vulnerável a violações de direitos ela está (BRAGATO, 2016). As classes colocadas na zona de marginalidade são as
que com maior frequência enfrentam violações de direitos humanos, incluindo desde abusos administrativos até
violência repressiva pelo Estado (SILVA, 1999). Segundo Pires (2020, p. 308), “os corpos que foram escravizados,
expropriados de sua memória, forma de vida e dignidade são os mesmos que atualmente continuam sendo alvo das
mais variadas formas de representação da violência de Estado”.

Considerando-se que grande parte dos imigrantes residentes no estado são provenientes de países do Sul
Global e são pessoas pretas, pardas ou indígenas, elas se encontram distantes do padrão colonial/racial de sujeitos
de direitos reputados ao homem branco ocidental. Padrão racial esse que, como expressão da colonialidade,
mantém-se não apenas ativo nas relações sociais da contemporaneidade, mas que é o próprio alicerce do sistema
capitalista vigente (QUIJANO, 2005). É nesse sentido que as teorias decoloniais são ferramentas de leituras úteis
porque permitem compreender como os marcadores sociais de diferença se relacionam com a situação de violação
de direitos dos imigrantes em Santa Catarina. Uma vez que o perfil do migrante internacional catarinense foge do
padrão racial dos tidos e tratados como sujeitos de direitos, são imputadas a esse grupo inúmeras opressões.

Historicamente, percebe-se o imenso contraste no tratamento despendido aos atuais fluxos migratórios

112
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

em comparação àqueles europeus que foram incentivados e financiados pelo governo a migrar para o estado no
século XIX. Conforme frisam Silva, Rocha e D’Ávila (2020), as/os imigrantes não-brancas/os do Sul não são pessoas
vulneráveis, mas vulnerabilizadas em razão da ausência de políticas públicas estaduais e municipais inclusivas.
Segundo Silva (2020, p. 37), “a hospitalidade brasileira é seletiva, pois nomeia e elege corpos que são merecedores
de abrigo e proteção e, por outro lado, os que são passíveis de rechaço, de controle e desassistência”. De acordo com
a ótica colonial, essa inércia do poder público serve para manter as estruturas hierarquizantes da colonialidade,
alocando e mantendo o/a imigrante não-branco/a advindo/a do Sul Global no local do subalterno, do cidadão de
segunda categoria (SILVA; ROCHA; D’ÁVILA, 2020). Ao atuar no sentido da manutenção dessa estrutura racializada
e pouco acolhedora, ou no mínimo não agir para mudá-la, o Estado contraria os princípios e objetivos trazidos pela
Lei de Migração e pela Lei estadual que posicionam todas/os as/os imigrantes na zona dos sujeitos de direitos.

Dessa forma, a perpetuação da colonialidade que impõe a verticalização das relações sociais faz com que a/o
imigrante não-branca/o do Sul Global ocupe, na prática, um lugar às margens do direito. Ainda que respaldado por
garantias, sem a aplicação de medidas que as tornem eficazes, o/a imigrante torna-se alvo de violações reiteradas de
direitos. Diante desse cenário, diferentes medidas podem se mostrar eficazes enquanto formas de enfrentamento e de
minimização dos danos, sendo a assistência jurídica uma delas. Assim, para que se verifique qual a importância da
assistência propriamente jurídica para o acesso a direitos, a seguir, buscaremos apresentar a relação entre assistência
jurídica, acesso à justiça e acesso a direitos para imigrantes.

3. Assistência jurídica, acesso à justiça e acesso a direitos para imigrantes


De maneira simplificada, conforme melhor detalhado a seguir, a assistência jurídica é um requisito para o
acesso à justiça que se refere à prestação de serviços jurídicos, seja no âmbito judicial ou extrajudicial. Por essa razão,
a fim de se compreender de que maneira a assistência jurídica contribui para a proteção das garantias legais das(os)
imigrantes, precisamos abordar primeiramente o tema do acesso à justiça.

Destarte, além de ser um meio de efetivar direitos, o acesso à justiça é em si mesmo um direito social. O
direito ao acesso efetivo à justiça é o que de fato sustenta todos os demais direitos individuais e sociais, conforme
afirma Cappelletti e Garth (1988, p. 5):
(…) a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos para sua efetiva
reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como o requisito fundamental — o
mais básico dos direitos humanos — de um sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda
garantir, e não apenas proclamar os direitos de todos.

O acesso à justiça é respaldado em uma série de tratados internacionais. No plano global, o Pacto Internacional
de Direitos Civis e Políticos da Organização das Nações Unidas (ONU) e, no plano regional, a Convenção Americana
sobre Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA), determinam a obrigação dos Estados
parte de respeitar os direitos e liberdades da pessoa (definido pela Convenção supracitada como todo ser humano)
sem discriminação por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza,
origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. Os dispositivos
internacionais determinam, também, que toda pessoa tem direito a garantias judiciais quando da determinação de
seus direitos ou obrigações seja penal, civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. Há, ainda, a previsão da
proteção judicial, com garantia a recurso efetivo perante juízes ou tribunais competentes que proteja a pessoa contra
atos que violem seus direitos fundamentais.

No plano nacional, a Constituição Federal (BRASIL, 1988) prevê no inciso LXXIV do art. 5º que o “Estado
prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”, enquanto a Lei de
Migração (BRASIL, 2017) garante especificamente ao imigrante no inciso IX do art. 4º, o “amplo acesso à justiça e à

113
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

assistência jurídica integral gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. O direito ao acesso à justiça está
positivado em diferentes instrumentos legais e aplica-se a toda(o) imigrante residente no Brasil sem discriminação
quanto a sua situação migratória no território brasileiro.

Para além de ser um direito, a definição do que significa, na prática, ter acesso à justiça não é unânime. A
depender do(a) autor(a), o conceito é situado, às vezes, mais próximo da matéria de processo civil e outras da justiça
social (MARINONI, 1993). De acordo com Boaventura de Souza Santos (1999), o tema do acesso à justiça é que
mais equaciona de forma direta as relações entre o processo civil e a justiça social, entre igualdade jurídico-formal
e desigualdade socioeconômica. O acesso efetivo à justiça, além de se constituir como um tópico na matéria de
processo civil, é um assunto intimamente ligado a direitos sociais e igualdade de classes.

A fim de que o acesso à justiça seja efetivo, é necessário que as pessoas ultrapassem todas as objeções
impostas pelo sistema (burocracia, morosidade processual) ou pessoais (falta de conhecimento jurídico, grupos
vulnerabilizados) e consigam buscar o cumprimento de seus direitos:
a gama de ações para o acesso à justiça é múltipla e vai desde a necessária alfabetização jurídica
das pessoas para que, precisamente, possam conhecer seus direitos, até a eliminação de todas
as barreiras existentes que impedem ou dificultam o acesso da pessoa à justiça, levando-se em
consideração especialmente os grupos vulneráveis (MAYOR; VELASCO, 2020, p. 66).

Diante de todos os requisitos necessários para que seja possível efetivar o acesso à justiça, a assistência jurídica
se mostra como um desses. Rodrigues e Marcacini (1998) atentam especialmente para a diferença entre assistência
jurídica e assistência judiciária, sendo essa uma espécie daquela:
A assistência jurídica consiste na prestação gratuita de serviços jurídicos, podendo ser dividida em
assistência judiciária, que é o patrocínio de causa judicial, e em assistência jurídica extrajudicial,
consistente no serviço de orientação jurídica. A assistência jurídica não se confunde com a justiça
gratuita, que é a isenção de pagamento das despesas decorrentes do processo. A assistência jurídica
consiste numa prestação positiva devida pelo Estado ao carente de recursos (RODRIGUES;
MARCACINI, 1998, p. 402).

Por essa razão, a atuação prestada pela rede de apoio local aos imigrantes frente à Administração Pública,
detalhada na próxima seção, enquadra-se também como uma medida de assistência jurídica. A prestação de
assistência ou assessoria jurídica97 não se resume a ações necessariamente voltadas para o judiciário, ela pode se
expressar por meio de orientação, acompanhamento e auxílio em relação a procedimentos no âmbito administrativo,
como frequentemente ocorre com os imigrantes frente à Polícia Federal, por exemplo.

Já em relação propriamente à esfera judicial, Abreu (2008) afirma que, enquanto originalmente no contexto
do Welfare, a incorporação de direitos ocorria sobretudo no campo da política, atualmente esse locus passou para
o Judiciário, onde os juízes assumiram uma função de resguardar os direitos fundamentais. O autor ressalta ainda
que a percepção do Estado democrático de direito, enquanto afirmação dos direitos de cidadania, pressupõe do
Judiciário um comprometimento com os valores sociais e políticos que a sociedade almeja preservar. Assim, ele
conclui que a democracia e a jurisdição democrática tornam o Judiciário em um locus efetivo da consolidação da
cidadania e da participação, superando os entraves do acesso à justiça. Essa observação demonstra aplicabilidade no
contexto migratório de Santa Catarina, visto que é a partir da atuação judicial da Defensoria Pública da União (DPU)
de Florianópolis, que o poder Judiciário, frente à inação do poder Executivo, garante em determinadas esferas a
realização dos objetivos legais e constitucionais de proteção a essa população. Cabe ao judiciário, em muitas ocasiões,
o papel de obrigar o Estado a aplicar as normas vigentes.

Nesse sentido, Watanabe (1988) destaca a atuação do Estado, enquanto Poder Executivo e nas suas variadas

97 Para fins deste trabalho, utiliza-se assessoria e assistência jurídica como sinônimos intercambiáveis.

114
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

formas (autarquias, fundações, Administração Direta e Indireta etc.), como litigante em grande parcela de causas
judiciais. Essa é outra realidade que se aplica diretamente ao contexto migratório catarinense (e nacional). Quando
o Estado falha em materializar por meio de políticas públicas o rol de direitos sociais e migratórios dirigidos a esse
público previsto na Lei de Migração, conforme melhor exposto no último tópico, ele faz com que mecanismos de
acesso à justiça, como a assistência jurídica prestada pela rede de apoio local, sejam procurados para suprir o vácuo
criado em razão da omissão do poder executivo.

Especialmente no que concerne ao âmbito migratório, a Relatoria Especial sobre os Direitos Humanos dos
Migrantes das Nações Unidas ressalta a importância da assistência jurídica e da representação legal para garantir o
acesso à justiça para imigrantes, junto ao direito à informação e à interpretação, à assistência consular e ao acesso
a recursos e à reparação (MAYOR; VELASCO, 2020). Ademais, o estudo recomenda que estes serviços sejam
gratuitamente prestados pelo Estado às pessoas que não o podem pagar, tornando verdadeiramente operacional o
direito ao devido processo (UNITED NATIONS, 2018).

A assistência jurídica também é considerada pela OIM (2019), conforme Nota Informativa sobre Direito
Internacional Migratório, como uma garantia processual, figurando ao lado da necessidade de informações serem
prestadas em língua estrangeira, do tempo razoável do processo, do acesso a cortes de apelação e do efeito suspensivo
das execuções. Ademais, a OIM (2019) considera como principais obstáculos para o acesso à justiça das/os imigrantes
a falta de esclarecimentos sobre as reparações legais existentes (informações sobre quais medidas legais podem ser
tomadas ante as violações de direitos, judiciais ou extrajudiciais); a falta de sensibilização dos juízes e advogados
acerca da legislação em matéria de igualdade; a falta de proteção para reclamantes e testemunhas e a aplicação
inadequada da inversão do ônus da prova (especialmente importante em casos de discriminação). Em relação aos
obstáculos citados que dificultam o acesso à justiça aos imigrantes, a assistência jurídica mostra-se relevante ao
ser capaz de atingir diretamente alguns deles e assim facilitar o acesso a direitos. Ao atuar como uma ponte entre
a/o imigrante e os remédios jurídicos disponíveis para determinado direito violado,98 a assistência jurídica aborda
diretamente problemas como a falta de conhecimento acerca das reparações legais existentes, o direito à informação
e também à representação legal. Quando o imigrante é capaz de receber informações sobre como proceder diante
da perda da sua identidade brasileira, ou do indeferimento da sua autorização de residência, ou da negativa de
determinada escola em matricular seu filho, essa orientação prestada pela rede de apoio mostra-se como uma forma
de assistência jurídica, aproximando o/a imigrante dos métodos de resolução para determinado direito violado.

De maneira geral, a assistência jurídica é um dos elementos que garantem o efetivo acesso à justiça, que,
por sua vez, é um meio de se alcançar o respeito a direitos que são reiteradamente violados pelo Estado. Importante
pontuar, no entanto, que a assistência jurídica não é o único meio capaz de alcançar direitos e não possui a capacidade
de abordar diretamente as discriminações que são inerentes ao próprio direito, instrumento do qual faz uso. Na
esfera migratória, a assistência jurídica ganha especial relevância ao se mostrar como um instrumento que fornece
à/ao imigrante o conhecimento acerca dos seus direitos, esclarece e auxilia no uso dos dispositivos disponíveis para
a sua consecução e, em última instância, também é capaz de fornecer assistência judiciária.

A partir dos apontamentos levantados sobre como a assistência jurídica é capaz de gerar a consecução das
garantias legais desrespeitadas pelo Estado, a próxima seção aborda, por fim, como essa assistência jurídica se apresenta
na rede de apoio local especificamente em Santa Catarina, sobretudo no âmbito da regularização migratória.

98 A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) também inclui a assistência jurídica como requisito essencial
para o exercício do acesso à justiça para imigrantes, por meio da Opinião Consultiva OC-18/03, de 17 de setembro de 2003,
nomeada de Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes Indocumentados.

115
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

4. Rede de apoio local e assistência jurídica prestada para imigrantes em Santa Catarina
De acordo com questionário99 promovido pelo Grupo de Trabalho Migrações, Apatridia e Refúgio da
Defensoria Pública da União, em parceria com outras instituições acerca da rede de apoio local para imigrantes no
Brasil, em que participaram 30 instituições que atuam na temática migratória de 19 municípios de Santa Catarina,100
61% das respostas consideraram que não há ou ficaram incertos sobre a consolidação da rede de apoio a imigrantes
na sua região, o que corrobora a necessidade de maior atenção e investimento do poder público nesse quesito.

Em questão de abrangência, das 7 regiões intermediárias101 de Santa Catarina, apenas a região de Lages não
foi representada por nenhum município na pesquisa. Todas as demais regiões, Criciúma, Florianópolis, Blumenau,
Joinville, Caçador e Chapecó contaram com a representação de ao menos uma instituição. As regiões com o maior
número de instituições participantes foram Florianópolis e Chapecó, com 12 e 8 instituições, respectivamente. Das
instituições mapeadas, há tantos órgãos públicos como entidades da sociedade civil que atendem demandas variadas.
Quase metade das instituições participantes são órgãos vinculados à rede de Assistência Social Municipal, que em sua
maioria são Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializada da Assistência
Social (CREAS) ou a própria Secretaria de Assistência Social. O restante das respostas se divide entre instituições da
Sociedade Civil, incluindo algumas vinculadas à Igreja Católica, como a Cáritas e Pastoral do Migrante de diferentes
municípios, e outras Organizações Não Governamentais, nacionais e internacionais.

Ainda sobre a rede de apoio para o atendimento a imigrantes, a partir do questionário supracitado, percebe-se
que as maiores cidades são as que possuem capacidade de fornecer atendimento mais extensivo para as/os imigrantes
nas diferentes esferas necessárias, como ocorre em Florianópolis e Chapecó, por exemplo. Somado, nota-se também
como instituições da sociedade civil, sobretudo aquelas ligadas à Igreja Católica, exercem papel de protagonismo no
estado ante a omissão dos poderes públicos em prover atendimento a essa população.

Dos dados coletados, a assistência jurídica pode ser diretamente identificada nas instituições que auxiliam
nos procedimentos de regularização migratória. Nos municípios menores, percebe-se que o ponto focal de assistência
jurídica a imigrantes são os CRAS ou CREAS, que muitas vezes respondem conjuntamente por demandas de
regularização migratória, inserção laboral, pessoas em situação de rua e todos os outros que não foram abordados
na pesquisa. Relevante pontuar, no entanto, que os CRAS e CREAS não são instituições com atendimento jurídico
especializado voltado ao público imigrante, mas sim focados em assistência social de maneira geral. Por outro lado,
a Defensoria Pública da União, órgão capaz de fornecer assistência jurídica capacitada e especificamente voltada às
causas migratórias, foi referenciada apenas na cidade de Florianópolis (apesar de se fazer presente de fato também
em Criciúma e Joinville). Para além da DPU/Florianópolis e das suas duas outras unidades em Santa Catarina,
poucas entidades foram relatadas como prestadoras de assistência jurídica especializada para imigrantes na região,
como alguns núcleos de universidades em Florianópolis, Joinville e Chapecó.

Especificamente na região de Florianópolis, com o fechamento do Centro de Referência de Atendimento ao


Imigrante (CRAI/SC) em setembro de 2019, após dois anos de funcionamento e mais de 13.000 atendimentos em
Florianópolis, houve uma forte precarização da condição de vida de inúmeras/os imigrantes que ficaram sem um

99 O formulário elaborado pelo Grupo de Trabalho Migrações, Apatridia e Refúgio da Defensoria Pública da União em
parceria com outras instituições possui o intuito de mapear a rede de apoio a imigrantes e refugiados nas mais diversas
regiões do país, sobretudo no âmbito do apoio a regularização migratória e da inserção laboral. O questionário foi lançado
na segunda metade de 2020 e até a finalização deste trabalho continuava aberto para recebimento de respostas.
100 Os dados foram colhidos até 22 de abril de 2021 e respondidos por organizações de Santa Catarina#.
101 As regiões do estado foram divididas de acordo com a classificação feita pelo IBGE a partir de 2017 que extinguiu as
mesorregiões e implantou as regiões intermediárias. Em Santa Catarina, por sua vez, há 7 regiões intermediárias:
Criciúma, Florianópolis, Blumenau, Joinville, Caçador, Lages e Chapecó. Ver em: <https://www.ibge.gov.br/apps
/regioes_geograficas/>.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

local de referência para o acolhimento de suas principais demandas na região da capital catarinense.102 Diante dessa
realidade, a DPU/Florianópolis decidiu expandir seu setor de atenção a imigrantes a partir da segunda metade de
2019, ampliando o número de estudantes do Eirenè/UFSC que já atuavam em parceria com a Defensoria desde 2016
(SILVA, et al., 2020).103 Entre outubro de 2019 e março de 2020, foram efetuados 1.327 atendimentos a imigrantes,
com mais de 80% das pessoas atendidas advindas do Sul e racializadas como não brancas.

Diferentemente do CRAI,104 o principal foco do setor de imigração na DPU/Florianópolis é prestar orientação


jurídica voltada à regularização migratória, fornecer esclarecimento e auxílio para a obtenção e organização dos
documentos necessários para procedimentos de solicitação e renovação de autorização de residência, solicitação de
refúgio, opção de nacionalidade, naturalização, entre outros.

Em tratando-se de regularização migratória, esta é uma das principais causas de violações de direitos
de migrantes em Santa Catarina. O fato de não se encontrar em situação migratória regular resulta também no
cerceamento de vários outros direitos fundamentais que são obstaculizados pela falta de apresentação de um
documento brasileiro, como na impossibilidade de abrir contas bancárias, dificuldade em conseguir um trabalho
formal, etc. (SILVA, et al., 2020).

Assim, quanto à regularização migratória, identificou-se nos atendimentos na DPU/Florianópolis/Eirenè


UFSC três obstáculos principais que influenciam diretamente na possibilidade de imigrantes resolverem suas
demandas de forma autônoma no Brasil: a capacidade de se comunicar em língua portuguesa; a acessibilidade
digital a computadores e à internet; e a demora em se conseguir um atendimento na Polícia Federal. Sobre o
primeiro obstáculo, das pessoas atendidas no órgão, apenas 35,3% responderam que se comunicavam bem em
português, enquanto 22,5% informaram que conseguiam se comunicar, porém com dificuldade, ao passo que 42%
afirmaram não falar bem português (SILVA, et al., 2020). Sobre o segundo, os processos de regularização migratória
obrigatoriamente ocorrem em uma ou mais de suas etapas via internet. A etapa inicial da maioria dos procedimentos
consiste no preenchimento online de um formulário através do qual é gerado um número de protocolo que será
usado para efetuar o agendamento (também de forma online) de um horário na Polícia Federal. Segundo os dados
apresentados por Silva, et al. (2020), 72,9% das/os imigrantes atendidos na DPU/Florianópolis, entre outubro de
2019 e março de 2020, não possuía computador em casa e 32,1% não tinha acesso à internet. Dentre aquelas/es que
responderam ter acesso à internet em casa, 67,3% declararam que possui acesso apenas pelo telefone celular. As
autoras também relacionam os dados com o fato de o site da Polícia Federal não possuir uma versão integralmente
compatível com aparelhos móveis, o que evidencia a dificuldade enfrentada pelas/os imigrantes para conseguirem
iniciar e finalizar seu processo de regularização por conta própria. Sobre a demora em conseguir atendimento na
Polícia Federal, em agosto de 2021, os atendimentos para a unidade da Polícia Federal em Florianópolis estavam
sendo agendados para junho de 2022.

A Polícia Federal está envolvida com a quase totalidade dos processos de regularização migratória, uma
vez que efetua a emissão de documentos migratórios como as CRNMs - Carteiras de Registro Nacional Migratório
(anteriormente conhecidas como CIE/RNE - Carteira de Identificação de Estrangeiro/Registro Nacional de

102 Silva, Borba e David (2020) afirmam que a área de maior procura foi a integração, uma vez que a busca por trabalho
correspondeu a 36,6% dos atendimentos. No entanto, se somadas todas as demandas que fazem parte do rol de proteção,
a porcentagem final resulta em 49,5% do total. Ou seja, quase metade dos atendimentos foram direcionados a medidas de
proteção da população imigrante, incluindo sobretudo casos de regularização migratória. Neste rol, destacam-se os pedidos
de Autorização de Residência# (14,1%) e de Acolhida Humanitária (11%), sendo que essa última, se aplica especificamente
à população haitiana e síria.
103 A partir do início da expansão da atuação voltada a imigrantes na DPU/Florianópolis, iniciado em setembro de 2019,
produziu-se um relatório com os dados dos atendimentos prestados entre outubro daquele ano e março de 2020.
104 Sobre a atuação do CRAI, a instituição atendia demandas em quatro áreas principais: proteção, integração, assistência
social e psicologia.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Estrangeiro) e DPRNMs - Documentos Provisórios de Registro Nacional Migratório (conhecidos como “protocolos
de solicitação de refúgio”), bem como suas respectivas renovações e segundas vias.

Assim, uma vez que as/os imigrantes não conseguem atendimento na Polícia Federal, permanecem irregulares
e sem um documento brasileiro válido. Nessa situação, diante da falta de capacitação adequada de servidores, muitos
serviços públicos são equivocadamente negados a essa população, como tratamentos no Sistema Único de Saúde,
inscrição na rede de educação básica e benefícios assistenciais. Conforme decretado pelo inciso XI do art. 3º e
pelo inciso VIII e parágrafo 1º do art. 4º da Lei de Migração (BRASIL, 2017), o acesso aos direitos sociais deve ser
igualitário e garantido independentemente da situação migratória, o que é cotidianamente violado por instituições
bancárias, escolas, empregadores e pelos próprios órgãos do Poder Executivo.

Nesta esteira, Silva, et al. (2020), apontam que, num período de 6 meses, 1.269 imigrantes procuraram o
serviço da DPU/Florianópolis/Eirenè UFSC buscando auxílio para conseguirem agendamento na Polícia Federal, o
que resultou em uma média de 211 imigrantes atendidas(os) por mês para esse fim. Em contrapartida, apenas 272
agendamentos foram realizados durante o mesmo período, ou seja, apenas 21,4% das/os imigrantes com necessidade
de regularização conseguiram suprir a sua demanda.

Somado ao atendimento jurídico voltado ao âmbito administrativo, as ações da DPU/Florianópolis no


judiciário também exemplificam a importância da assistência jurídica para imigrantes mediante prestação de
assistência judicial. A título de exemplo, a Justiça Federal em 2020 confirmou que a DPU possui a prerrogativa
de requerer a autorização de residência de crianças e adolescentes separadas, desacompanhadas ou apátridas,
independentemente de estarem ou não com o representante legal (NÚMERO, 2021). Nesse caso, a Polícia Federal
havia se recusado a iniciar o processo de autorização de residência das crianças alegando que estavam sem
representação legal.105

Conforme exposto, no caso das/os imigrantes em Santa Catarina, grande parte das intervenções de assistência
jurídica prestadas pela rede de apoio local é voltada à interação com a Administração Pública. Isso acontece tanto
porque as principais violações ocorrem nessa esfera e podem ali ser elucidadas, como porque a maior parte das
instituições espalhadas pelo estado, com exceção da Defensoria Pública da União, não contam com uma estrutura
própria e assistência judiciária para a judicialização das causas, como no caso dos CRAS e CREAS. Interpreta-se,
a partir do baixo número de organizações propriamente voltadas para assistência para imigrantes, que questões de
maior complexidade que envolvam conhecimento aprofundado da legislação migratória ficam desamparadas na
maior parte do estado.

No caso das/os imigrantes, em especial, a assistência jurídica ganha destaque por representar, na prática,
uma intérprete dos direitos e das legislações para as línguas estrangeiras de compreensão desse público. Nesse
sentido, a DPU/Florianópolis/Eirenè UFSC também lançou uma “Cartilha de Apoio a Imigrantes na Grande
Florianópolis” em português, inglês, espanhol e francês, na qual traz informações sobre as leis que asseguram
direitos a imigrantes e refugiadas/os, regularização migratória, direitos laborais e como acessar serviços de
educação, saúde e assistência social (NÚMERO, 2021).

Isso posto, o elevado número de demandas relacionadas à proteção evidencia a necessidade de assistência
especializada para os processos de regularização no Brasil. Apesar da legislação nacional ter facilitado o processo
de autorização de residência para determinados contingentes populacionais (como venezuelanos e haitianos),
ainda perduram inúmeras barreiras práticas que impedem ou dificultam a execução dos procedimentos de forma

105 Em outra ocasião, em agosto de 2020, por meio também da judicialização do caso pela DPU/Florianópolis, a Justiça
Federal do estado autorizou a entrada no Brasil de quatro crianças e jovens haitianos que não conseguiam obter o visto
na Embaixada do Brasil em Porto Príncipe (Haiti) em razão de complicações locais. Deste modo, essas crianças e seus
genitores apenas puderam efetivar seu direito à reunião familiar, preconizado no art. 4º, inciso VI da Lei de Migração
(BRASIL, 2017), após a intervenção judicial promovida pela Defensoria.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

independente por parte das/os imigrantes, como a própria burocracia do sistema, a falta de tradução dos sites para
línguas estrangeiras e a falta de acessibilidade digital dos/as imigrantes. Essa grande porcentagem de demandas
para a proteção, principalmente via regularização migratória, expõe também o fato de que a assistência jurídica
para imigrantes se mostra muito voltada para o âmbito administrativo, não tanto judicial. Essa atuação, por sua vez,
ocorre principalmente frente à Polícia Federal (PF) e ao Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE), órgãos
responsáveis pelo processamento de pedidos relacionados à autorização de residência e ao reconhecimento da
condição de pessoa refugiada, respectivamente.

Frente à inércia estatal, a assistência jurídica prestada pela rede de apoio local, ao instruir sobre os documentos
necessários para autorização de residência, auxiliar no agendamento na Polícia Federal, prestar informações sobre
direitos variados e representar judicialmente os interesses resistidos das/os imigrantes, mostra-se essencial para a
dissolução de alguns dos maiores obstáculos impostos para essa população.

Diante das potencialidades da assistência jurídica expostas nesta seção e na anterior, algumas reflexões
podem ser feitas no tocante às características dos fluxos migratórios e às violações de direitos. Assim, a seguir serão
expostas as considerações finais deste trabalho acerca da importância da assistência jurídica para a afirmação da/o
imigrante enquanto sujeito de direitos em Santa Catarina.

5. Considerações Finais
As principais dificuldades para imigrantes do sul global giram em torno dos procedimentos de regularização
migratória, do agendamento na Polícia Federal, da utilização pelo governo de plataformas inteiramente digitais,
como a CTPS digital e o SISCONARE, da falta de capacitação dos servidores públicos e da falta de comunicação
em língua portuguesa. Esses obstáculos, por sua vez, conectam-se ao racismo estrutural e à xenofobia e contrariam
de forma diametralmente oposta o objetivo central das legislações nacional e estadual de garantir a proteção dos
direitos humanos das/os imigrantes.

A partir de todo o exposto neste trabalho, algumas considerações a partir desse cenário geral podem ser
delineadas. Em primeiro lugar, importa expor a precariedade de dados acerca da população de imigrantes no estado.
As fontes sobre o número de pessoas, os perfis, as características, as tendências dos recentes fluxos migratórios,
suas principais demandas e as políticas públicas aplicadas são escassas e não padronizadas, com os dados aqui
apresentados sendo, sobretudo, aqueles coletados pelo NAIR/Eirenè da UFSC junto às suas entidades parceiras
(CRAI e DPU/Florianópolis). Desse modo, cabe frisar a importância e a necessidade urgente do Poder Público
despender recursos e atenção para a reunião de dados recentes e atualizados sobre essa população imigrante no
estado de Santa Catarina, pois, somente dessa forma, políticas públicas poderão ser criadas com embasamento na
realidade efetivamente vivida e sentida por essas pessoas.

Nesse mesmo sentido, ressalta-se exatamente a inexistência de políticas públicas. A promulgação de uma
Lei de Migração considerada progressista e que segue os parâmetros internacionais está longe de significar que os
imigrantes desfrutam de todos os seus efeitos.

Diante dessa realidade de reiteradas violações de direitos garantidos em lei, diferentes iniciativas surgiram
para suprir essa demanda que não é atendida pelo Poder Público. Algumas instituições já foram citadas neste
trabalho, como o extinto CRAI/SC – que foi uma política pública, ainda que temporária – e a DPU/Florianópolis (que
apesar de órgãos públicos são/foram mantidos pela parceria e iniciativa constante do grupo NAIR/Eirenè UFSC)106
mas somam-se a elas várias outras que se espalham pelo estado na tentativa constante de fornecer ao imigrante

106 O Eirenè/NAIR desenvolve as ações da Cátedra Sérgio Vieira de Mello para Migrações e Refúgios da Universidade Federal
de Santa Catarina (CSVM/UFSC).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

um mínimo de acesso às garantias legais. Essas organizações, por esse motivo, mostram-se como importantes
ferramentas na prestação de assistência para essa população, assistência sobretudo jurídica, mas também laboral,
social e psicológica.

No que concerne à assistência jurídica, especificamente, esta adquire contornos muito importantes ao
abordar algumas das principais barreiras apresentadas às/aos imigrantes, como os procedimentos e documentos
para a regularização migratória - incluindo o agendamento na Polícia Federal, e, assim, o acesso a serviços públicos.
Diante da omissão do Poder Executivo, a assistência jurídica é uma ferramenta essencial na promoção de acesso à
justiça que expõe os meios de exigibilidade de direitos, seja no âmbito administrativo ou no judicial. A assistência
jurídica qualificada possibilita às/aos imigrantes o conhecimento sobre a seara de proteção legal e as formas de torná-
la efetiva. Assim, em um ambiente como o catarinense, que promove o descumprimento da legislação migratória, a
assistência jurídica é utilizada pelas/os imigrantes como um instrumento de busca das garantias legais.

No entanto, cabe notar que a assistência jurídica atua principalmente (embora não somente) a posteriori
à violação de direitos. Dito de outra forma, a assistência jurídica, apesar de extremamente importante diante da
violação de direitos humanos, não é suficiente para solucionar os problemas que levam à vulnerabilização dessa
população, pois não é capaz de abordar a sua origem: a omissão estatal. E, na ausência do Estado, organizações da
sociedade civil e organizações internacionais, assumem para si a tarefa de garantir o mínimo de dignidade humana a
essas/es imigrantes. Porém, essas entidades trabalham através de projetos, que consequentemente são marcados pela
brevidade e escassez de recursos. Apesar de importantes, suas ações são temporárias, não conseguindo, portanto,
implementar soluções duradouras que são de obrigação do Estado.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

O ACESSO AO MERCADO DE TRABALHO NO BRASIL


POR MIGRANTES COM NÍVEL SUPERIOR
Odisséia Aparecida Paludo Fontana 107
Sara Regina Naszeniak 108
Silvia Ozelame Rigo Moschetta 109

1. Introdução
Os processos de migração moldam as sociedades e desempenham papel central nos movimentos de expansão
comercial, formação de nações e transformações sociais, culturais e econômicas. Tais movimentos podem estar
relacionados a diversos fatores, tais como guerra, conflitos políticos, fatores econômicos, pobreza, falta de oportunidades
e razões pessoais. Contudo, buscar condições de vida digna é o principal desejo dos imigrantes. Para este recorte
científico, será considerada a categoria imigrante como público-alvo, a qual contemplará tanto os solicitantes de refúgio,
refugiados reconhecidos, como os imigrantes econômicos (voluntários) e os imigrantes forçados.

O encontro de tal anseio possui conexão com o acesso à renda, a qual, no atual modelo nacional de produção,
advém da venda da força de trabalho. Porém, as condições de ingresso e permanência ao mercado de trabalho
encontradas nem sempre são as melhores, tampouco são homogêneas quando comparados diversos indicadores, tais
como nacionalidade de origem, grau de escolaridade, faixa etária e sexo.

A partir dessas reflexões, o presente trabalho pretende demonstrar como ocorre o processo de acesso ao
mercado de trabalho no Brasil por imigrantes, dando especial destaque àqueles com nível superior. Inicialmente, será
realizada uma análise sobre as características dos fluxos migratórios brasileiros atuais, destacando como os períodos e
as políticas adotadas causam oscilações nos movimentos de entrada e saída de pessoas. Na sequência, serão abordados
dados divulgados pelo OBMigra sobre o perfil dos imigrantes que passaram a residir em território brasileiro no atual
cenário pandêmico, com enfoque nas principais nacionalidades de origem e atividades desenvolvidas. Por fim, serão
demonstradas as dificuldades de imigrantes com nível superior de se inserirem no mercado de trabalho formal,
especialmente de exercerem atividades na área de formação do país de origem.

Destaca-se que a análise foi realizada por meio de pesquisa bibliográfica, a partir de dados referentes ao
mercado de trabalho formal, devido à dificuldade de identificarmos órgãos oficiais informações relativas aos

107 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestra em Direito Público e Evolução Social
pela Universidade Estácio de Sá – Rio de Janeiro. Professora permanente do Programa de Mestrado Acadêmico em
Direito UNOCHAPECÓ na Linha de Pesquisa: Direito, Cidadania e Atores Internacionais. Integrante dos Grupos de
Pesquisas: Relações Internacionais, Direito e Poder – atores e desenvolvimento pluridimensional; Liberdade, Estado e
Desenvolvimento, ambos da UNOCHAPECÓ. Professora no Programa de Mestrado em Políticas Sociais e Dinâmicas
Regionais da UNOCHAPECÓ. Advogada. Lattes: http://lattes.cnpq.br/243222678358836 ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-8488-4549. E-mail: odisseia@unochapeco.edu.br
108 Mestranda em Direito pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó – Unochapecó. E-mail: sarareginan@hotmail.
com
109 Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Mestra em Direito Público e Evolução Social
pela Universidade Estácio de Sá – Rio de Janeiro. Professora permanente do Programa de Mestrado Acadêmico em Direito
UNOCHAPECÓ na Linha de Pesquisa: Direito, Cidadania e Atores Internacionais. Integrante dos Grupos de Pesquisas: Relações
Internacionais, Direito e Poder – atores e desenvolvimento pluridimensional; Liberdade, Estado e Desenvolvimento, ambos da
UNOCHAPECÓ. Integrante da Rede de Pesquisa Interinstitucional (UFSC, UNESC, UCS, ESUCRI, UNOCHAPECÓ) em
Republicanismo, Cidadania e Jurisdição – RECIJUR. Mediadora. Advogada. Lattes: http://lattes.cnpq.br/1370518931808075
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3722-8581 E-mail: silviaorm@unochapeco.edu.br

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

trabalhos exercidos de modo informal. Para buscar estampar o rosto dos imigrantes no texto, foram trazidas notícias
em que relatam a realidade encontrada no Brasil e os motivos que os impulsionaram a migrar, utilizando-se os
métodos dedutivo e qualitativo de pesquisa. Por meio de suas narrativas, é possível perceber discursos que destacam
a cooperação, especialmente financeira, por parte dos familiares que ficaram no país de origem, o desejo de conseguir
boas condições de vida que tornem possível buscar a família, a precariedade nas relações de trabalho, as dificuldades
de inserção no mercado de trabalho formal, as alternativas buscadas para sobreviver e o abuso de empregadores que
submetem a jornadas de trabalho exaustivas principalmente aqueles que estão em situação irregular.

2. Atuais fluxos migratórios brasileiros


Os fluxos migratórios sempre moldaram as composições sociais em todo o Planeta. No Brasil, sem fugir à
regra, o processo migratório se iniciou por volta do ano de 1.500, primeiramente com o escravagismo, posteriormente
com a vinda da coroa portuguesa. No século XX, o Brasil, novamente, tornou-se destino de refugiados das duas
Grandes Guerras Mundiais (FERREIRA, BRASIL, 2019). O século XXI é marcado por um cenário de mobilidade,
de modo que, apesar do controle das fronteiras pelos Estados Nacionais, os fluxos migratórios internacionais têm-
se intensificado. Seguindo essa lógica, os movimentos migratórios no Brasil reforçam a tendência de configuração
de espaços das migrações. A partir disso, surge a necessidade de novas perspectivas para as escalas transnacionais e
arranjos institucionais junto aos quais esses fluxos se processam (BAENINGER, 2013).

Historicamente, o Brasil foi marcado pela existência de fluxos migratórios diferenciados. Tanto fatores internos
quanto externos são responsáveis por moldar esse fenômeno (CÂMARA, 2014). Os projetos migratórios estão cada
vez mais heterogêneos e complexos; contemporaneamente, convivem os projetos de migração de assentamento com
a migração de retorno definitivo e a migração circular. Tendência mundial, as migrações deixaram de apresentar
características unilinear-bipolar (países de emigração x de imigração) e unilateral. Essa realidade demonstra que os
fluxos migratórios vêm perdendo a essência de projetos fechados e planificados, mas configuram-se por vínculos
entre a sociedade de origem e a de destino. Nesse sentido, os processos migratórios atuais são complexos, dinâmicos,
multifacetados, difíceis de contabilizar e mudam constantemente (CASSARINO, 2008; PORTES, 2012).

Em razão dos atuais processos migratórios, torna-se árduo o desafio de entender as particularidades de
cada migrante (BAENINGER, 2013). Constata-se considerável diversificação de origens, adoção de variadas rotas e
motivações. Especialmente em relação aos motivos das migrações, destacam-se como as principais busca por melhores
condições de emprego e renda, zonas de conflito ou calamidades naturais nos países de origem, fuga de situações de
desemprego, instabilidade, risco ou vulnerabilidade social (CÂMARA, 2014).Em 1980, a publicação da Lei n.6.815–
Estatuto do Estrangeiro –,além de regulamentar a situação jurídica dos imigrantes no Brasil, também atuou como
marco direcionado ao cerceamento de direitos eà limitação de liberdades individuais de imigrantes. Coincidentemente,
entre os anos de 1980 e a primeira década do século XXI, houve uma baixa incidência de imigração em massa para o
Brasil, sendo a emigração muito maior durante esse período (FERREIRA, BRASIL, 2019).

Recentemente, diante da crise econômica e humanitária no Haiti e na Venezuela, o Brasil passou a acolher
refugiados oriundos desses países, vivenciando, novamente, um período intenso de recebimento de imigrantes. Por
essa razão, objetivando a construção de um texto legal pautado na inclusão e servindo como importante mecanismo
de gestão migratória do ponto de vista humanitário, promulgou-se a Lei de Migração n. 13.445, de 24 de maio
de 2017 (FERREIRA, BRASIL, 2019) e, em 20 de novembro de 2017, o Decreto n. 9.199 (BRASIL, 2017a), que
regulamenta a lei de migração. A migração internacional não se constitui um fenômeno novo e estanque, sempre
existiu ao longo dos tempos, acompanhando a história da civilização. Apesar disso, a cada tempo, ganha novas
características. Momentos impactantes como crises ambientais, guerras e pandemias são problemas que extrapolam
as fronteiras e, por essa razão, não há possibilidade de passarem desapercebidos.

124
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Todos os estudos referentes a esses períodos, inevitavelmente, terão como pano de fundo peculiaridades,
influências e desdobramentos relacionados a esses contextos. Nesse cenário, faz-se um recorte comparativo entre 2019
e 2020: constata-se significativa redução no número de imigrantes no último ano. Essa diminuição pode ser justificada
pelo fechamento das fronteiras, imposição de medidas restritivas e políticas de proibição à concessão de vistos. Tais
atitudes foram tomadas com intenção de reduzir os reflexos negativos da pandemia de Covid-19 (CAVALCANTI,
OLIVEIRA, 2020). Por essa razão, traça-se um panorama acerca dos imigrantes no Brasil especificamente a partir do
primeiro semestre de 2020– período de pandemia causada pelo coronavírus. Por meio desse panorama, percebe-se
que os impactos foram diferentes a depender do país de origem e dos objetivos migratórios.

3. Migrantes e a relação com o mercado de trabalho no Brasil em cenário pandêmico de Covid-19


A partir do momento em que os imigrantes ingressam formalmente no mercado de trabalho, possuem os
mesmos direitos trabalhistas conferidos aos brasileiros. A preocupação concentra-se em torno daqueles que não
possuem acesso ao mercado de trabalho, visto que isso, além de impedir de forma imediata condições dignas de vida,
compromete o recebimento de benefícios previdenciários em situações futuras de maior vulnerabilidade, causadas
por incapacidade laboral, velhice ou limitações de saúde. Em situação agravada pela dificuldade de serem imigrantes,
disputam vagas com um grande contingente de desempregados brasileiros. De acordo com dados do IBGE, o Brasil
encerrou o ano de 2020 com média de 14 milhões de desempregados. Esses dados demonstram que a situação de
desemprego estrutural não é preocupação exclusiva de imigrantes, mas atinge indistintamente toda a população.

A pandemia de Covid-19 afetou os processos migratórios e o acesso dos imigrantes aos postos de trabalho
formais. O primeiro impacto foi causado devido à interrupção dos projetos migratórios, por meio do fechamento das
fronteiras, medidas restritivas de circulação e política de proibição de concessão de vistos. O segundo, relacionado a
fatores como nacionalidade, sexo, grau de escolaridade e região de residência no Brasil (CAVALCANTI, OLIVEIRA,
2020). Ainda que de formas distintas, a depender do setor de atuação, a pandemia afetou toda a população imigrante
–ressalta-se, aqui, que o recorte deste artigo compreende refugiados e solicitantes de refúgio, migrantes econômicos
e migrantes forçados. Nesse sentido, tomando por base os dados do OBMigra (2020b), faz-se uma comparação
entre os níveis de ocupação laboral pelos migrantes de janeiro a junho de 2020, o que permite traçar uma visão
panorâmica das movimentações de migrantes no mercado formal de trabalho no Brasil em cenário pandêmico.

Em fevereiro de 2020, início da aplicação de medidas restritivas no Brasil, a quantidade de admissões de


migrantes aparecia em movimento crescente e a de demissões, decrescente, o que gerava um saldo positivo. No
início de março de 2020, o movimento se inverteu. Ao final de abril de 2020, eram em torno de 3.000 postos de
trabalho a menos para imigrantes. Nos meses de maio e junho, a quantidade de admissões voltou a crescer, e a de
demissões, a cair, fazendo com que o saldo voltasse a ficar positivo (OBMIGRA, 2020b). De acordo com os dados
apresentados, o impacto da pandemia entre os imigrantes no mercado formal de trabalho, embora tenha sido forte,
foi de curta duração. A crise relacionada ao mercado de trabalho não foi tão drástica entre os imigrantes em relação à
parcela geral da população brasileira devido ao fato de que diferentes setores, regiões e perfis de trabalhadores foram
afetados desigualmente pela crise (CAVALCANTI, OLIVEIRA, 2020).

Atualmente, no Brasil, os dois maiores grupos de imigrantes são formados por haitianos e venezuelanos.
Ambos mantiveram as taxas de ocupação similares às registradas em 2019. Já entre os grupos menores, de argentinos,
paraguaios e bolivianos, os saldos de desemprego aumentaram (OBMIGRA, 2020b). Quanto ao sexo, os efeitos
negativos no mercado formal de trabalho foram mais intensos para as mulheres do que para os homens. A queda,
comparando 2019 a 2020, foi de 15,2% para os homens e de 47,9% para as mulheres (OBMIGRA, 2020b). Conduzindo
a análise para as regiões do País, os maiores efeitos negativos foram sentidos pelas regiões Sudeste, Nordeste e Norte.
Em sentido oposto, a região Sul, lugar para onde migrou grande parte dos haitianos, registrou aumento positivo

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

no saldo de empregos (OBMIGRA, 2020b). Os efeitos do isolamento social atingiram mais drasticamente setores
que dependiam da circulação das pessoas, como comércio e serviços, ao passo que os setores relacionados a bens e
serviços essenciais, a exemplo de setores industriais e agropecuários, foram menos afetados.

A exemplo disso, cita-se o setor de frigoríficos de suínos e aves, o qual apresentou, no primeiro semestre
de 2020, saldo de empregos superiores ao ano de 2019 (OBMIGRA, 2020b). Ao analisar as taxas de desemprego
a partir do grau de instrução dos imigrantes, verifica-se que, embora as percentagens tenham apresentado grau
de similaridade entre pessoas que possuem nível fundamental, médio e superior, as pessoas com menor nível de
instrução foram as menos afetadas, o que se deve às funções exercidas (OBMIGRA, 2020b).Interessante destacar
que grande porcentagem de imigrantes possui nível superior, contudo as ocupações exercidas são aquelas em que
não há exigência de formação específica. Logo, traça-se um perfil divergente entre as habilidades desses imigrantes
e as atividades que realmente exercem, ou seja, estão ocupados em atividades que não condizem com a qualificação
profissional adquirida em nível superior no seu país de origem.

De acordo com dados do OBMigra (2020b), visualiza-se que o impacto da pandemia foi diferenciado,
levando em consideração o setor de atuação, o sexo, a região de residência e o grau de escolaridade. Os homens de
baixa escolaridade, venezuelanos e haitianos, predominantemente na região Sul e com trabalhos em funções que
exigiam baixo grau de especialização, em especial ao final da cadeia do agronegócio, foram pouco afetados. Em
sentido contrário, as populações de outras nacionalidades, em especial mulheres e pessoas com escolaridade mais
elevada, residentes na região Sudeste e trabalhando em setores de comércio e serviços sofreram os maiores níveis de
desemprego (CAVALCANTI, OLIVEIRA, 2020).

A desinformação por parte dos empregadores é outro fator que dificulta a inserção de refugiados no mercado
de trabalho. Entender como a questão dos imigrantes e dos refugiados é encarada no ambiente empresarial é um desafio
que deve ser analisado com a devida cautela. A partir dessa inquietação, a pesquisa “Caminhos para o refúgio: inserção
produtiva e social de refugiados”, coordenada pelo professor Leandro de Carvalho, pesquisador da Universidade de
Brasília, apontou que 64,7% dos profissionais de recursos humanos que responderam à pesquisa não têm discernimento
entre o status de refugiado, o qual relaciona-se a perseguições e violações de direitos humanos, e a situação de imigrante
empobrecido. Além disso, 91,2% dos que responderam ao questionário alegaram não dominar os procedimentos para
contratação de refugiados – ou seja, desconhecem que se tratam dos mesmos para contratação de brasileiros (PASSONI,
2018). Os dados demonstram a necessidade de diálogo com os setores responsáveis pela contratação.

Diante da dificuldade de conseguir emprego formal e da necessidade de sustento, muitos imigrantes


encontram no empreendedorismo uma saída. A partir da análise de algumas notícias sobre a inserção no mercado de
trabalho por imigrantes, há uma tendência a tecer elogios a casos isolados de empreendedorismo que deram certo.
Promove-se a ideia de que a iniciativa deve partir do imigrante, valendo-se de sua criatividade e esforço individual.
A maioria dos venezuelanos migrantes decidiu empreender para ganhar dinheiro, atuando no setor da alimentação,
na preparação de arepas e patacones. Os demais se viram como cabeleireiros, barbeiros e manicures. As diferenças
de renda auferida e o sucesso no empreendedorismo dependem da região do País em que se instalaram. Enquanto,
por exemplo, o rendimento médio de imigrantes em Boa Vista (Roraima) foi de menos de um salário mínimo, em
São Paulo, girou entre R$4,5 mil e R$25 mil. Da mesma forma, enquanto em Boa Vista trabalham sozinhos, em São
Paulo têm, pelo menos, um empregado informal contratado (VÍTOR, 2020).

As notícias transferem a responsabilidade aos imigrantes, dando a impressão de que, com esforço individual,
há a possibilidade de obter sucesso fora de seu país de origem. Contudo, essa perspectiva desconsidera diversos
fatores, dentre os quais, a necessidade de sair do país de origem por questões involuntárias, o que aumenta o grau
de vulnerabilidade dessas pessoas. Os dados e notícias comprovam que questões relacionadas ao emprego e à renda
constituem significativo ponto de preocupação envolvendo imigrantes. Por essa razão, buscando fazer um recorte,
analisa-se a situação específica dos imigrantes com nível superior, a partir das principais dificuldades encontradas

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

e tecendo reflexões sobre o fato de que, além de questões burocráticas, aspectos relacionados ao cenário econômico
nacional e ao preconceito estrutural também influenciam no fator de empregabilidade.

4. Empregabilidade de migrantes com nível superior no Brasil


A forma como acontece a participação dos imigrantes no mercado de trabalho brasileiro coloca em pauta
importantes indagações a respeito das desigualdades sofridas nas distintas esferas das relações sociais, a qual
acentua-se na seara laboral. As assimetrias referem-se a diferenças ao acesso, permanência e ascensão profissional
dos trabalhadores. A Lei de Migração – n.13.445/2017–dispõe sobre os direitos e deveres do migrante e do visitante,
passando a regular sua entrada e permanência no País, bem como estabelece princípios direcionadores para a
efetivação de políticas públicas direcionadas à mobilidade urbana, à não criminalização de imigrantes e à inclusão
de novos direitos, diretrizes que convergem com tratados internacionais já existentes e com a Constituição Federal
de 1988. Nesse sentido, iguala o trabalhador nacional com o imigrante em situação de regularidade, indicando que o
mercado de trabalho não deve ser fechado e que a migração deve ser analisada como um fator de desenvolvimento.
(SILVA, MANDALOZZO NETO, SILVA, 2018).

Em relação ao aspecto trabalhista, o artigo 14, § 5º da Lei n.13.445/2017prevê a possibilidade de o imigrante


realizar atividades laborais com ou sem vínculo de emprego, bem como dispensa profissionais estrangeiros de
possuírem prévia oferta de trabalho no Brasil para a obtenção de visto temporário de trabalho, desde que comprovem
titulação em curso de ensino superior ou equivalente. Em que pese esse comando geral de igualdade de tratamento
e oportunidades, os imigrantes estarão restritos pela regulamentação de cada profissão e pela exigência de licenças
específicas para cada atuação profissional. As desigualdades delineadas pelos imigrantes no mercado de trabalho
exigem análise sobre as políticas migratórias. Além da preocupação com as políticas de entrada de imigrantes em
território nacional, deve-se analisar qual a abrangência das políticas públicas universais oferecidas a essa parcela da
população (SILVA, MANDALOZZO NETO, SILVA, 2018).

Além de evidenciar desigualdades e incongruências nas políticas públicas nacionais, o fenômeno migratório
externaliza fragilidades sociais dos países de origem dos imigrantes (LUSSI, 2015). Casos de imigrantes vítimas
de trabalho escravo escancaram, além de um problema nacional, também a falta de fiscalização do trabalho, da
promoção de condições mínimas para seu exercício e vulnerabilidades sociais também do país de origem desses
migrantes (SILVA, MANDALOZZO NETO, SILVA, 2018). Nesse sentido, o fenômeno migratório, analisado como
um fato social, deve ser encarado a partir de uma perspectiva de garantir acesso a direitos mínimos a todos, com o
fim de não cristalizar desigualdades discriminatórias (LUSSI, 2015). A partir dessa perspectiva, deve-se pensar em
políticas públicas que abranjam a complexidade e multidimensionalidade do fenômeno migratório e promovam a
proteção aos direitos sociais básicos do trabalhador, por meio da adoção de uma política de acolhimento direcionada
a afastar a discriminação e promover a universalização ea proteção ao trabalho.

Em relação aos imigrantes com nível superior, além de competirem com nacionais que também sofrem com
a falta de emprego, destacam-se como suas dificuldades a impossibilidade de formalizar contrato de trabalho devido
à falta de documentação do país de origem e a burocracia enfrentada para validação de diploma e formação realizada
em outro país. A Portaria Normativa n. 22/2016 apresenta normas e procedimentos gerais de tramitação de processos
de solicitação de revalidação de diplomas de graduação de estrangeiros, bem como sobre o reconhecimento de
diplomas de pós-graduação stricto sensu (mestrado e doutorado) expedidos por estabelecimentos estrangeiros de
ensino superior. Desde que submetidos ao procedimento, os certificados terão valor equivalente aos concedidos no
Brasil. Em que pese a portaria apresentar normas gerais sobre o procedimento de validação, caberá às instituições
revalidadoras, universidades públicas que tenham curso do mesmo nível e área ou equivalente, divulgarem normas
procedimentais internas (BRASIL, 2016).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Em linhas gerais, para dar início ao processo de revalidação de diplomas, será necessário apresentar uma
série de documentos: cópia do diploma, do histórico escolar, titulação do corpo docente, informações institucionais,
conteúdo programático e reportagens que validam a qualidade da instituição a uma universidade credenciada, a
qual será responsável por analisar a equivalência do diploma ao currículo válido no Brasil. Além disso, o interessado
também deverá pagar uma série de taxas, que terão valor variado a depender da instituição, referente ao custeio das
despesas administrativas (BRASIL, 2016). Considerando as dificuldades de pessoas que foram forçadas a se deslocar
de seus países e, portanto, não possuem os documentos exigidos, o artigo 14 da Portaria Normativa n. 22/2016 prevê
que pessoas reconhecidas como refugiadas pelo Conare terão direito a um processo facilitado.

Os imigrantes que se encontram na situação prevista nesse artigo 14, em vez de apresentarem os documentos,
poderão realizar uma prova na qual seus conhecimentos e habilidades na área em questão serão testados. Em que
pese a Portaria Normativa n. 22/2016 ter sido um importante instrumento normativo, que flexibilizou exigências, a
revalidação de diploma continua sendo um obstáculo à inserção no mercado de trabalho, devido à burocracia para
conseguir toda a documentação necessária e pelos custos que tal procedimento exige. Apesar de todas as dificuldades
encontradas pelos imigrantes para realizar a validação de curso superior realizado em seu país de origem, este é
apenas o primeiro obstáculo à inserção no mercado de trabalho na área em que pretendem atuar.

Ao ingressar em território nacional, a primeira dificuldade enfrentada pelos imigrantes é a do idioma. Sem
qualquer familiaridade com a língua portuguesa, os imigrantes enxergam-se em uma situação de desinformação,
incerteza e inacessibilidade. Tal circunstância torna-se uma importante barreira ao acesso ao mercado de trabalho
(COSTA, GONÇALVES, 2016). Enquanto aguardam o procedimento de validação de diplomas e registro profissional,
os trabalhadores sujeitam-se a situações de trabalhos que exigem menos qualificação, aproveitando, quando possível,
o conhecimento que possuem em áreas correlatas. As oportunidades, ainda que distantes da área para a qual possuem
maiores habilidades, são comemoradas. É o caso do engenheiro eletricista venezuelano que se alegra ao conseguir
um trabalho formal:
Vim sozinho para o Brasil e fiz trabalhos voluntários em Roraima. Depois de alguns meses, minha
esposa e meus três filhos chegaram em Boa Vista e foram abrigados, o que nos ajudou muito.
Agora vou viajar novamente sozinho, mas vou para outra cidade brasileira”, diz. Enquanto a família
permanece no estado roraimense, Gilbert será interiorizado para Blumenau, em Santa Catarina,
com a carteira de trabalho pronta para ser assinada. Ele é um dos 28 venezuelanos levados para o
Sul do Brasil para ocuparem postos de trabalho no ramo têxtil, em uma articulação da Operação
Acolhida, resposta humanitária do Governo Federal, e da Organização Internacional para as
Migrações (OIM) com os empresários da indústria (OIM BRASIL, 2021).

Apesar das condições precárias de acesso ao trabalho e à renda que encontram em território nacional, alguns
migrantes ajudam os familiares que permaneceram residindo no país de origem:
Desde 2010 ela está na cidade buscando reconstruir a vida para trazer os filhos e o marido. Há três
meses ela atua como cuidadora na Casa de Apoio às Crianças filhos de Migrantes. No projeto, que
é desenvolvido pela Paróquia de São Geraldo, a professora retribui a ajuda recebida e auxilia nos
cuidados aos 18 filhos de imigrantes haitianos atendidos na entidade. Com as economias do novo
trabalho ela planeja trazer a família para Manaus. Após os três últimos anos residindo em Manaus,
Gloriane considera a cidade um novo lar. Ela é enfática ao destacar os aspectos mais importantes
da capital amazonense: “É um povo maravilhoso, por isso não voltei para o meu país. Fui bem
acolhida. Um povo que gosta de ajudar. Antes de trabalhar na Casa de Apoio, cheguei a vender
rosquinhas na rua e as pessoas sempre tentavam ajudar mesmo quando não queriam as rosquinhas,
isso me deixou mais feliz”, comentou Gloriane Aimabree (SEVERINO, 2013).

As situações de exploração também estão presentes nas relações de trabalho envolvendo imigrantes, que,
devido à necessidade de sobrevivência, submetem-se a situações precárias. O relato de Aracely Merida, de 38 anos,
boliviana e moradora de São Paulo há 15 anos, revela essa situação:

128
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Para nós que trabalhamos com costura, a pandemia chegou forte. Todas as oficinas ficaram sem
serviço, tivemos que procurar outras coisas para poder ter uma renda. A entrada de pedidos de
roupas diminuiu muito, praticamente foi a zero, porque não tinha lojas abertas. Tivemos que focar
em máscaras e aventais, mas é um trabalho que requer mais esforço. Eles estavam pagando 30, 20,
até 10 centavos por máscara. Ficou bem complicado mesmo. Para ter um bom rendimento para
sua casa, é preciso fazer muito. Trabalhamos umas 14 a 16 horas por dia para tirar algum dinheiro
(apud CARRANÇA, 2020).

Outra situação enfrentada pelos imigrantes nas relações de trabalho é a xenofobia, no momento da contratação
ou por seus pares. O preconceito agrava-se a depender do país de origem e da cor da pele. O relato de Anivain Pierre
Paul, que está há cinco anos no Brasil, descreve a xenofobia que tem sofrido calado: “Já me chamaram de burro, chifrudo
e macaco. Há duas semanas, um ajudante de pedreiro da empresa quis que eu lhe desse a pá que usava para retirar a
areia do caminhão. Eu disse que não. Só porque sou haitiano, ele me deu um empurrão” (apud DINIZ, 2016).

Mesmo diante de situações de exploração e preconceito, alguns migrantes, movidos pela necessidade de
continuar trabalhando, permanecem calados para não sofrerem maiores estigmas. Anivain Pierre Paul relatou ainda
que, de acordo com sua concepção, “o preconceito acentua-se por ser haitiano” (apud DINIZ, 2016).

Os dados apresentados demonstram que, apesar de situações distintas, tanto os refugiados analfabetos, sem
qualquer instrução básica ou capacitação, quanto os formados e com boa qualificação possuem dificuldades para se
inserir formalmente no mercado de trabalho. Diante das dificuldades de acesso, alguns assumem funções nas entidades
que fazem o atendimento e acolhimento de outros migrantes, atuando como tradutores e facilitadores (VIANA, 2020).
Traça-se um perfil comum a países com tradição de recepção de fluxos migratórios. Em sua maioria, os migrantes
contam com formação profissional superior, mas no momento da incorporação ao mercado de trabalho, disputam
vagas com nacionais, que também se encontram em situação de vulnerabilidade; decrescem na escala laboral e,
consequentemente, na social. Comumente, os imigrantes se inserem no mercado de trabalho em uma posição inferior
ao seu grau de especialização, formação acadêmica e experiência laboral anterior (CAVALCANTI, 2015).

Sob essa perspectiva, ainda que tecnicamente possuam uma qualificação específica e especializada, socialmente
serão considerados trabalhadores sem qualificação, isso porque os imigrantes só existem para o Estado Nacional no
momento em que atravessam suas fronteiras. Experiências anteriores, formações técnicas e diplomas são desconhecidos
e apenas serão considerados em território nacional depois de passarem por um criterioso processo de validação
(SAYAD, 2001). Assim, a política migratória brasileira não se faz apenas na entrada dos imigrantes no País. O trabalho,
instrumento de construção de identidades e promoção de dignidade, deve ser pensado como política pública direcionada
a integrar o imigrante e garantir direitos básicos a todos, de modo a construir um modelo global de acolhimento.

5. Considerações Finais
Os processos migratórios sempre fizeram parte da história das civilizações. Apesar de impulsionados por
fatores diversos, todos esses migrantes possuem em comum a necessidade de acesso à renda, a qual, no modelo
nacional vigente, será atingida por meio do exercício de uma atividade laboral. A partir dessa perspectiva, além
das dificuldades da condição de imigrante muitas vezes incompreendidas, do desconhecimento da língua local, das
particularidades culturais, do preconceito por parte de empregadores que desconhecem a forma de contratação,
essas pessoas precisam competir com nacionais em um cenário de desemprego estrutural.

Os dados apontam que muitos imigrantes brasileiros possuem como característica comum grau de
escolaridade em nível superior no país de origem. A falta de documentação e as dificuldades de validação do diploma
de formação, especialmente pelos custos e pela burocracia, direcionam considerável número de imigrantes para o
mercado de trabalho informal ou para funções que exigem menor grau de qualificação. Esse cenário, além de ter um

129
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

impacto individual de inferiorização, desperdiça mão de obra com peculiaridades e saberes próprios que poderiam
contribuir na construção da sociedade local, a partir dos conhecimentos e experiências anteriores desses imigrantes.

O trabalho, fator de construção de identidades e meio para garantir dignidade, deve ser analisado como critério
basilar no processo de integração social efetiva e harmoniosa de imigrantes nos países acolhedores. A integração dos
imigrantes nas sociedades receptoras é um processo que exige articulação, a qual deverá ser vista a partir da ótica da
interculturalidade, de modo a conduzir uma participação igualitária na sociedade. O primeiro passo para que essa
integração ocorra será por meio da possibilidade de inserção dessas pessoas no mercado de trabalho, sem distinção
de raça, origem étnica, religião, nacionalidade ou grupo social. Tal objetivo pode ser alcançado a partir do momento
em que o fenômeno for compreendido a partir de suas peculiaridades e com um olhar para a contribuição que essas
pessoas terão à formação da sociedade brasileira.

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131
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

DA POLÍTICA DA DIFERENÇA À ECOLOGIA POLÍTICA: APORTES REFLEXIVOS


SOBRE A PARTICIPAÇÃO DA ETNIA WARAO NO CONSELHO MUNICIPAL DE
PROMOÇÃO DA IGUALDADE RACIAL DA CIDADE DE BELO HORIZONTE
Vagner Gomes Machado 110
Ana Maria Paim Camardelo 111

1. Introdução
A América Latina caracteriza-se por sua grande diversidade. As inúmeras etnias que habitam o continente
latino-americano asseguram uma pluralidade de culturas, idiomas e tradições. Essa riqueza, entretanto, é ameaçada
cotidianamente pela chegada do “progresso” e “desenvolvimento”, que na forma de pensar hegemônica significa
converter os ambientes naturais em insumos para o processo produtivo, mesmo que isso signifique destruir
ecossistemas inteiros e inviabilizar a vida de grandes populações e etnias.

Um exemplo dessas vítimas do “progresso” é a etnia Warao. Após diversos incidentes, um número significativo
dessa população indígena passou a se deslocar dentro do território venezuelano. Com a intensificação da crise
socioeconômica do país, um dos destinos procurados por essas pessoas passou a ser o Brasil.

Ao chegar em território brasileiro, os Warao enfrentaram inúmeras dificuldades, uma vez que sua
vulnerabilidade econômica se associa a duas outras condições: a de imigrante e a de indígena.

Tais condições, porém, não devem impedir o exercício pleno de sua cidadania. O direito à diversidade e a sua
participação na construção de soluções para os problemas enfrentados devem ser garantidos.

O presente texto, ao analisar o case da etnia Warao no Brasil, especialmente no que se refere a sua participação
recentemente assegurada junto ao Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial de Belo Horizonte
(COMPIR/BH), dedica-se a examinar: i) as características gerais da cultura dessa etnia e a sua história recente; ii)
o contexto e situação atual da população Warao no Brasil; iii) o status jurídico dos indígenas Warao no Brasil; iv)
Representatividade Warao no COMPIR/BH; v) Contribuições de Enrique Leff ao case em análise.

2. Etnia Warao: características gerais de um povo e sua história recente


O povo Warao é originário do Estado venezuelano Delta Amacuro, um dos 23 que compõem a República
Bolivariana da Venezuela. O seu território tem como característica a grande extensão de águas fluviais formadas

110 Doutorando em Direito pela Universidade de Caxias do Sul - UCS (Bolsista CAPES). Mestre em Direito pela mesma
Universidade (Bolsa CAPES). Bacharel em Direito pela UCS com período de Mobilidade Acadêmica Internacional na
Universidade de Coimbra - Portugal (Bolsa PMAI-UCS). Conselheiro junto ao Conselho Municipal de Proteção ao Meio
Ambiente (COMDEMA) da cidade de Caxias do Sul. Conselheiro no Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da Universidade
de Caxias do Sul (CEPE - UCS). Integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas e Sociais da Universidade
de Caxias do Sul (NEPPPS-UCS) e Direito Ambiental Crítico: Teoria do Direito, Teoria Social e Ambiente. Colaborador
voluntário no Centro de Atendimento ao Migrante. E-mail: vgmachado1@ucs.br.
111 Graduada em Serviço Social pela Universidade de Caxias do Sul, mestra em Serviço Social pela Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul e doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
Professora adjunta III da Universidade de Caxias do Sul, atuando como docente no curso de graduação em Serviço Social
e no Programa de Pós-Graduação em Direito e no Programa em Pós-graduação em Psicologia. Coordenadora do Núcleo
de Estudos e Pesquisas em Políticas Públicas e Sociais (NEPPPS) e coordenadora da Incubadora Social e Tecnológica da
Universidade de Caxias do Sul. E-mail: ampcamar@ucs.br.

132
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

principalmente por caños (igarapés) do rio Orinoco e por zonas litorâneas localizadas ao norte, na divisa com o
Golfo de Paria e com o mar de Trinidad e Tobago (GONZÁLEZ-MUÑOZ, 2019, p. 3).

Conforme informa o Parecer Técnico n° 10/2017: SP/MANAUS/SEAP, do Ministério Público Federal (MPF),
diversos estudos antropológicos, linguísticos e arqueológicos indicam que há pelo menos 8.000 anos o delta do
rio Orinoco é habitado por esse povo. A sua distribuição espacial nos últimos séculos em uma área relativamente
definida decorre tanto das suas dinâmicas de mobilidade, quanto da interação com outras populações caribenhas e
com os colonizadores europeus. Atualmente, os Warao são a segunda etnia indígena mais populosa da Venezuela,
contabilizando cerca de 49.000 (quarenta e nove mil) pessoas (BRASILa, 2017, p. 6).

A maior parte dos Warao que seguem ocupando o seu território original é composta pelos chamados
“morichaleros”. A expressão advém do manejo da palmeira de buriti (Morichi, no idioma Warao), prática ecológica
tradicional ligada à subsistência indígena nas áreas alagadas do delta do rio Orinoco (DE ALMEIDA, ORTOLAN,
DA SILVA, 2018, p. 4).
[...] é importante destacar que há uma significativa heterogeneidade nas “formas de ser Warao”, que
se traduz em práticas culturais e modos de vida relativamente distintos entre os grupos localizados
em diferentes regiões do delta do Orinoco. Mas, apesar da ausência de uma homogeneidade relativa
a suas práticas culturais, é possível afirmar que os Warao se constituem em uma unidade étnica
diferenciada, verificável nos planos linguísticos e das relações sociais intra e interétnicas, formando
uma unidade sociológica mais ampla (BRASILa, 2017, p. 7).

Apesar de haver algumas diferenças entre os agrupamentos Warao, a história e cultura desse povo os
une. Nesse sentido, é pertinente referir ao fato de que durante milhares de anos essa sociedade se especializou na
exploração de subsistência dos manguezais e dos ecossistemas litorâneos da região em que habitavam. O povo
Warao é o único conhecido que teve a sua sobrevivência ligada a um amplo conhecimento sobre palmeiras.

Utilizando-se de um sofisticado conhecimento ambiental/ecológico os Warao lograram satisfazer suas


necessidades econômicas. Uma vez que, tradicionalmente, a agricultura não era uma característica marcante de
suas práticas, a sua economia baseava-se principalmente na pesca, na colheita de produtos silvestres e na caça de
animais de pequeno porte (WILBERT, LAFÉE-WILBERT, 2007, p. 340).

Contudo, há alguns aspectos em particular da história desse povo, relacionados à sua relação com o
ambiente, sua subsistência, e a interação com os povos não indígenas. De acordo com Wilbert e Lafée-Wilbert
(2007), ao longo do período pós-contato com os colonizadores europeus foram registrados quatro deslocamentos
massivos da população Warao. Contudo, para o escopo deste capítulo, será abordado apenas o último, que trouxe
milhares de indivíduos dessa etnia ao território brasileiro em busca de melhores condições de vida do que as
encontradas em seu país de origem.

3. A população Warao no Brasil


A partir de 2014, os primeiros registros de Waraos chegando ao Brasil foram documentados. A sua entrada
em território nacional se dava por meio terrestre, por meio do estado de Roraima. No entanto, apenas em 2016 o
fluxo apresentou um aumento significativo (BRASILa, 2017, p. 9).

Diversas causas motivaram a sua vinda ao Brasil, podendo-se citar as precárias condições de permanência em
seus territórios tradicionais, a vulnerabilidade econômica e social dos indígenas no contexto urbano na Venezuela,
o agravamento da crise generalizada enfrentada pelo país e a consequente falta de segurança alimentar, assistência
médica, educacional, etc. (DE ALMEIDA SANTOS, ORTOLAN, DA SILVA, 2018, p. 6).

133
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

Segundo o Parecer Técnico n° 10/2017: SP/MANAUS/SEAP, do MPF, a deterioração da capacidade do


governo venezuelano de prestar serviços públicos foi especialmente grave no caso do amparo às populações indígenas.
Os Warao relataram que durante o governo de Hugo Chávez havia políticas públicas voltadas para
os povos indígenas na Venezuela, como o repasse de alimentos (trigo, macarrão, açúcar, etc.) para
as comunidades na beira dos caños. No entanto, tais medidas foram interrompidas nos últimos
anos. Era comum ouvi-los dizer que atualmente o “governo não chega às comunidades”, o que se
traduz pela falta de políticas públicas de atendimento à saúde e de assistência social. A ausência de
medicamentos nas comunidades era constantemente apontada como uma das causas de mortes
nas comunidades, assim como a fome, que já estava vitimando parentes que permaneceram na
Venezuela (BRASILa, 2017, p. 17).

É importante destacar que a migração Warao ocorre em um contexto de fluxo massivo em que a população
indígena representa a menor parte dos migrantes venezuelanos. De acordo com a Plataforma Regional de
Coordenação Interagências das Nações Unidas (2020), mais de 5 milhões de pessoas já deixaram a Venezuela em
busca de segurança nos países vizinhos. O Brasil é o quinto maior anfitrião de venezuelanos, tendo recebido, até
dezembro de 2019, aproximadamente 260 mil refugiados, solicitantes de asilo e migrantes temporários (ACNURa,
2020, p. 1). Destes, conforme consta no Relatório de atividades para populações indígenas de junho de 2020 do Alto
Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (2020), a população indígena contabilizava 5020 pessoas. A
etnia com a maior quantidade de indivíduos é a Warao, com 66% do total, seguida das etnias Pemon (30%), E’ñapa
(3%) e Kariña (1%). Também é pertinente salientar que dos indígenas registrados, 3305 procederam a solicitação do
reconhecimento da condição de refugiado como forma de realizar a sua regularização migratória, enquanto apenas
1715 o fizeram por outros meios jurídicos (ACNURb, 2020, p. 1).

4. Status jurídico da população Warao no Brasil


A presença Warao no Brasil é condicionada por dois status jurídicos imputáveis a essa população. O primeiro
se refere ao fato de serem imigrantes, o segundo, de serem indígenas. Ambas condições são objeto de normas
constitucionais, infraconstitucionais. Assim, a compreensão da situação jurídica dessa etnia no Brasil demanda uma
análise cuidadosa dos principais instrumentos normativos incidentes.

A Constituição Federal brasileira (CF), no caput do artigo 5º, ao tratar dos Direitos e Garantias Fundamentais,
determina que é garantido ao estrangeiro residente no país (migrante) a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade,
à igualdade, à segurança e à propriedade (BRASIL, 1988). Dessa forma, o imigrante equipara-se ao nacional no que
se refere aos direitos e garantias fundamentais, individuais e coletivas, previstas pela Constituição.

No plano infraconstitucional, a Lei 13.445/2017 (“Nova Lei de Migração”), ratificando o conteúdo do artigo
5º da CF, dispõe em seu art. 4º que “ao migrante é garantida no território nacional, em condição de igualdade com
os nacionais a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”. O art. 4º, em
seus diversos incisos, lista alguns direitos de forma específica dada a sua importância. Considerando o contexto de
migração dos Warao e a vulnerabilidade econômica e social que os aflige, cabe dar destaque aos dispositivos que
asseguram a sua igualdade em relação aos nacionais no que diz respeito a: i) direitos e liberdades civis, sociais, culturais
e econômicos; ii) acesso a serviços públicos de saúde, assistência social e à previdência social, sem discriminação em
razão da nacionalidade e da condição migratória; iii) ao amplo acesso à justiça e à assistência jurídica integral gratuita
aos que comprovarem insuficiência de recursos; iv) ao direito à educação pública, vedada a discriminação; v) à garantia
de cumprimento de obrigações legais e contratuais trabalhistas e de aplicação das normas de proteção ao trabalhador.
Além disso, o §1º do mesmo artigo prevê que os direitos e as garantias previstos pela supracitada lei “serão exercidos em
observância ao disposto na Constituição Federal, independentemente da situação migratória” (BRASILb, 2017).

134
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

A Lei de Migrações, contudo, vai além. Trata-se de um documento jurídico-normativo de caráter humanitário.
Isso pode ser verificado no artigo 3º, onde constam os princípios e diretrizes da política migratória brasileira. São elas:
I - universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos;
II - repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação;
III - não criminalização da migração;
IV - não discriminação em razão dos critérios ou dos procedimentos pelos quais a pessoa foi
admitida em território nacional;
V - promoção de entrada regular e de regularização documental;
VI - acolhida humanitária;
[...]
VIII - garantia do direito à reunião familiar;
IX - igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e a seus familiares;
X - inclusão social, laboral e produtiva do migrante por meio de políticas públicas;
XI - acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos,
educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade
social;
XII - promoção e difusão de direitos, liberdades, garantias e obrigações do migrante;
XIII - diálogo social na formulação, na execução e na avaliação de políticas migratórias e promoção
da participação cidadã do migrante;
XIV - fortalecimento da integração econômica, política, social e cultural dos povos da América
Latina, mediante constituição de espaços de cidadania e de livre circulação de pessoas;
XV - cooperação internacional com Estados de origem, de trânsito e de destino de movimentos
migratórios, a fim de garantir efetiva proteção aos direitos humanos do migrante;
XVI - integração e desenvolvimento das regiões de fronteira e articulação de políticas públicas
regionais capazes de garantir efetividade aos direitos do residente fronteiriço;
XVII - proteção integral e atenção ao superior interesse da criança e do adolescente migrante;
XVIII - observância ao disposto em tratado;
[...]
XX - migração e desenvolvimento humano no local de origem, como direitos inalienáveis de todas
as pessoas;
XXI - promoção do reconhecimento acadêmico e do exercício profissional no Brasil, nos termos
da lei; e
XXII - repúdio a práticas de expulsão ou de deportação coletivas (BRASILb).

O caráter humanitário da política migratória brasileira, no plano normativo, é um dos fundamentos para
a construção de uma resposta eficiente e adequada à crise que veio a se estabelecer devido ao fluxo massivo de
pessoas nos últimos anos advindas da Venezuela. Com base na Lei 13.445/2017 é possível identificar obrigações do
governo brasileiro não apenas em relação à proteção da população migrante/refugiada, mas também em relação às
populações que além de possuir tal característica também são uma minoria étnica e estão expostos riscos adicionais,
vide incisos I e VI, do art. 3º.

Tendo em conta que a outra característica marcante dos Warao é o fato de, além de migrantes, serem um
povo indígena, torna-se indispensável apresentar as bases legais brasileiras que tratam do assunto.

A Constituição do Brasil concentra no seu capítulo VIII as disposições acerca dos povos indígenas. Em seu
art. 231, reconhece o direito à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam. O art. 232, por sua vez, determina que os direitos das comunidades

135
INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o
Ministério Público em todos os atos do processo (BRASIL, 1988).

Uma vez que a Constituição não aborda o assunto em profundidade, coube à legislação ordinária dispor
de forma mais detalhada sobre os direitos indígenas. A lei 6.001 de 1973 (Estatuto do Índio) é um dos principais
documentos normativos sobre o tema. É nela, por exemplo, que há a definição de “índio” e “comunidade indígena”.
A conceituação dos termos está prevista pelos incisos I e II do art. 3º:
Art. 3º Para os efeitos de lei, ficam estabelecidas as definições a seguir discriminadas:
I - Índio ou Silvícola - É todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica
e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem
da sociedade nacional;
II - Comunidade Indígena ou Grupo Tribal - É um conjunto de famílias ou comunidades índias,
quer vivendo em estado de completo isolamento em relação aos outros setores da comunhão
nacional, quer em contatos intermitentes ou permanentes, sem, contudo, estarem neles integrados
(BRASIL, 1973).

No contexto de imigração indígena é necessário dar destaque ao fato de que a definição jurídica de “índio”,
ou “indígena”, no Brasil, não está associada ao seu local de nascimento, mas à sua ascendência pré-colombiana e o
seu pertencimento a um grupo étnico que o distinga da sociedade nacional.

A partir do reconhecimento dos sujeitos e das comunidades enquanto indígenas, segundo o art. 2º do
Estatuto do Índio, cabe ao governo federal, governos estaduais e municipais, bem como aos órgãos das respectivas
administrações indiretas, nos limites de suas competências, promover a proteção das comunidades indígenas e
a preservação dos seus direitos. Os incisos do supracitado artigo elenca uma série de deveres do Poder Público,
sendo relevante indicar alguns: i) prestar assistência aos índios e às comunidades indígenas ainda não integrados
à comunhão nacional (inciso II); ii) respeitar, ao proporcionar aos índios meios para o seu desenvolvimento, as
peculiaridades inerentes à sua condição (inciso III); iii) respeitar, no processo de integração do índio à comunhão
nacional, a coesão das comunidades indígenas, os seus valores culturais, tradições, usos e costumes (inciso VI); iv)
executar programas e projetos tendentes a beneficiar as comunidades indígenas sempre que possível (inciso VII);
v) utilizar a cooperação, o espírito de iniciativa e as qualidades pessoais do índio, tendo em vista a melhoria de suas
condições de vida e a sua integração no processo de desenvolvimento (inciso VIII) (BRASIL, 1973).

A responsabilidade institucional para formular, coordenar e monitorar as políticas voltadas aos povos
indígenas é da Fundação Nacional do Índio (FUNAI). A FUNAI vincula-se diretamente ao Ministério da Justiça e
Segurança Pública. As políticas direcionadas à saúde, educação e assistência social são de incumbência dos Ministérios
da Saúde, da Educação e da Assistência e Desenvolvimento Social, mas cabe à FUNAI assegurar sua coordenação e
contribuir com aportes técnicos e reforçar a participação e a autonomia dos povos indígenas (TORELLY, 2018, p. 69).

A FUNAI atua com 305 povos indígenas, inclusive transfronteiriços. Segundo Torelly (2018), a sua atuação na
promoção e defesa dos direitos dos povos indígenas no contexto urbano é limitada devido a restrições orçamentárias
do governo federal. No caso dos povos indígenas migrantes que vivem no meio urbano, ainda há o questionamento
sobre a atribuição do órgão para atuar, visto que a situação de migração ultrapassaria suas competências.

É preciso, porém, destacar que a lei que criou a FUNAI (Lei nº 5.371/1967) e o seu regimento interno,
estabelecido pelo Decreto nº 9.010/2017, não excluem do escopo de atuação do órgão os indígenas que não nascidos
em território nacional.

Assim, para todos os efeitos, a população Warao residente no Brasil deve gozar de todos direitos implicados
no reconhecimento de sua condição indígena, bem como de sua condição de imigrante.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

A fim de examinar um caso em que tais direitos foram aplicados em um contexto de representatividade,
inclusão sociocultural e pluralidade de saberes, é interessante a análise do caso do Conselho Municipal de Promoção
da Igualdade Racial de Belo Horizonte.

5. Representatividade Warao: o caso do Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial


de Belo Horizonte
Em 2010 o município de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, instituiu a Lei 9.934, que dispôs sobre
a Política Municipal de Promoção da Igualdade Racial (PMPIR) e criou o Conselho Municipal de Promoção da
Igualdade Racial – COMPIR/BH – (BELO HORIZONTE, 2010).

Trata-se de uma Lei que consolida, em nível local, importantes direitos e objetivos a serem perseguidos
pelo Poder Público municipal. A Lei estabelece, por exemplo, que são objetivos da PMPIR: i) garantir o respeito à
dignidade de todo ser humano e o direito do cidadão à autonomia e à convivência comunitária; ii) garantir a não-
discriminação no acesso a bens ou a serviços públicos e privados; iii) afirmar o caráter multiétnico da sociedade belo-
horizontina; iv) reconhecer os diferentes grupos étnicos, com ênfase na cultura indígena e na afro-brasileira, como
elementos integrantes da nacionalidade; v) contribuir para implantar, no currículo escolar, a pluralidade étnico-
racial brasileira; vi) enfrentar as desigualdades raciais e promover a igualdade racial como premissa e pressuposto a
ser considerado no conjunto das políticas de governo; vii) contribuir para que as instituições da sociedade assumam
papel ativo como protagonistas na formulação, na implantação e no monitoramento das políticas de promoção da
igualdade racial; entre outros (BELO HORIZONTE, 2010).

Com o objetivo de estimular a participação da sociedade civil na definição da PMPIR, a mesma Lei
determinou a criação do COMPIR, órgão colegiado que integra a estrutura da Administração Direta Municipal. O
Conselho, nos termos da Lei, caracteriza-se por ser permanente, de composição paritária entre governo e sociedade
civil, sendo um órgão consultivo.

No dia 22 de janeiro de 2021 ocorreu um importante acontecimento relacionado à representatividade da


população Warao residente no município de Belo Horizonte. Na referida data foi publicado no Diário Oficial
do Município o resultado das eleições para a composição da 5ª gestão do COMPIR/BH. A eleição definiu que,
representando grupos étnicos indígenas, haveria a participação do Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas,
cujos representantes são Roseane Tomáz do Carmo – Darupü’üna Tikuna e Yolis Del Carmen Rodriguez Lyon
(BELO HORIZONTE, 2021).

Darupü’üna Tikuna, da etnia Tikuna, é artista, filha do professor, mestre e monitor bilíngue Mepawecü
(Reinaldo Otaviano do Carmo) e da professora, artista e pedagoga Mutchique’ena (Hilda Tomaz do Carmo),
lideranças influentes em seus territórios (FONTE BR, 2021).
“Ser indicada a cargo de conselheira Municipal de Promoção da igualdade Racial pelo Comitê
Mineiro de Apoio ás Causas Indígenas é um imenso prazer, pois são várias etnias que fazer parte
desse comitê, são vozes que são silenciadas por esse sistema racista, e ocupar essa Cadeira no
COMPIR é uma forma de fazer ouvir essas vozes silenciadas que de uma forma gritam por direitos
iguais, pois somos indígenas dentro e fora do território” Darupü’üna Tikuna (FONTE BR, 2021).

Yolis, por sua vez, é líder comunitária da etnia Warao, e originária da Venezuela, mais especificamente da
comunidade do Barranco de Fajardo. Yolis, é artesã, graduada em Comunicação Social e Analista Social do Serviço
Jesuíta a Migrantes e Refugiados de Belo Horizonte. Atualmente, no estado de Minas Gerais, a população Warao
é composta por aproximadamente 150 indivíduos, incluindo bebês já nascidos em território brasileiro. Conforme
aponta o jornal Fonte Br (2021), “a candidatura de Yolis nasceu da necessidade das diferentes etnias da RMBH de

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

ter uma representatividade onde se possa levar as necessidades e realidades vividas, seja a âmbito municipal ou até
mesmo internacional”.

Entre as principais dificuldades enfrentadas na cidade, conforme relato de Roseane e Yolis, são especialmente
graves a dificuldade para se acessar políticas públicas, benefícios e serviços básicos, o não reconhecimento de
documentos, racismo, xenofobia, violências contra trabalhadores e mulheres, e a dificuldade para o ingresso no
mercado de trabalho e em instituições de ensino. Assim, como pauta de suas reinvindicações, as representantes do
Comitê Mineiro de Apoio às Causas Indígenas buscarão concretizar o Centro de Referência Indígena no município,
um espaço para as reivindicações de direitos, promoção artístico-cultural e segurança à integridade das populações
indígenas (FONTE BR, 2021).

A representação indígena, por si só, já é algo de grande valor para a construção de um ambiente plural e
aberto à consolidação de uma cidade inclusiva e que respeite a diversidade étnica, cultural e humana em todas as
suas expressões. No entanto, o fato de o COMPIR contar com a participação de uma pessoa da etnia Warao é algo
que, no atual contexto migratório e de acolhimento no país receptor (Brasil), é altamente relevante. Apesar das
dificuldades enfrentadas pela comunidade Warao, dentro e fora do País, o fato de na cidade de Belo Horizonte haver
um movimento de inclusão e ocupação de espaços de discussões de políticas públicas pode ser entendido com um
marco no processo de imigração desses sujeitos para o Brasil.

O acolhimento e efetivação dos direitos da comunidade Warao no Brasil, para além dos enunciados
constitucionais e infraconstitucionais, exige uma dimensão prática / concreta. Para tanto, a participação dessas
pessoas na esfera pública é algo indispensável para que, a partir da pluralidade de saberes, suas necessidades e
reinvindicações possam ser atendidas da melhor maneira possível.

Trata-se de uma conquista não apenas para os Warao residentes no Brasil, mas para a Inclusão, para a
Diversidade, para os povos indígenas e não indígenas. Consiste uma participação calcada no acolhimento que,
fundada nas diretrizes constitucionais e infraconstitucionais, promove valores fraternos e humanos, possibilitando
a disseminação de novos saberes e perspectivas socioculturais em território brasileiro, fortificando, assim, a própria
ideia de dignidade humana.

6. Diálogo de saberes, política da diferença e ecologia política: contributos de Enrique Leff para
análise da participação Warao no COMPIR/BH
A partir do caso da migração Warao para o Brasil é possível promover uma série de reflexões acerca do
entrelaçamento entre os processos de degradação ambiental, apropriação das terras tradicionais e crises humanitárias.
Nesses casos, em que há o envolvimento direto de povos originários, os conflitos socioambientais são, geralmente,
notáveis, visto que tais populações possuem um vínculo profundo com o território. Esse vínculo, como no caso dos
Warao, pode ter relação com a cultura, sua cosmovisão, sua subsistência e a própria organização social dos povos.

O sociólogo e ambientalista, Enrique Leff, fornece importantes reflexões que merecem ser tomadas em
conta ao se pensar a situação dos Warao no Brasil, o seu deslocamento e a participação que lhes foi assegurada no
Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial da cidade de Belo Horizonte. A complexidade dos fatores
envolvidos deve ser considerada de maneira ampla. Fatores sociais, ambientais e jurídicos entrelaçam-se, dando
forma ao contexto de crise e dificuldade enfrentado atualmente pelo povo Warao.

Entre os argumentos apresentados por Leff, e que merecem ser sintetizados para se refletir sobre o case
em evidência, é pertinente referir a sua afirmação de que a crise ambiental que ganhou notoriedade no mundo a
partir dos anos 1960 é também expressão de uma crise civilizatória. Para o autor essa crise tem, como uma de suas
bases, o modo hegemônico de compreensão do mundo, do conhecimento científico e da razão econômica que se

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

institucionalizou no processo de globalização. Isso teria interferido nos “cursos naturais da vida e eliminando as
condições de sustentabilidade da vida” (tradução livre) (LEFF, 2017, p. 229).

Dessa forma, Leff (2017) afirma que a construção de um mundo sustentável coloca a política diante de uma
questão epistemológica:
[…] Coloca o desafio de questionar o pensamento, os paradigmas da ciência e as estratégias de
poder do discurso do desenvolvimento sustentável, que em seus efeitos de sentido e em suas
formas de atuar o metabolismo da biosfera, degradam as condições de sustentabilidade de vida
[...] Da mesma forma, torna-se imprescindível implementar estratégias teórico-políticas capazes
de conduzir um processo de reordenação social de acordo com as condições ontológicas de vida
(tradução livre) (LEFF, 2017, p.229-230).112

A construção de um futuro calcado em bases sustentáveis segue sendo um campo aberto ao possível. Para
Leff, a construção desse porvir, idealmente, deve advir do “encontro de outridade em um diálogo de saberes, capaz
de acolher visões e negociar interesses contrapostos na apropriação da natureza” (LEFF, 2006, p. 375). Esse diálogo
é forjado a partir do reconhecimento dos saberes (autóctones, tradicionais, locais) que somam suas experiências e
conhecimentos ao saber científico. Essa dialética, porém, implica o dissenso e a ruptura com a ideia de que há um
caminho único e hegemônico para a sustentabilidade. É, portanto, a abertura para uma ideia de diversidade que
se opõe a uma lógica unitária e transcende a perspectiva de apenas se implementar uma estratégia de inclusão e
participação de visões alternativas e racionalidades diversas (LEFF, 2006, p. 375-376).

A diversidade significa, necessariamente, reconhecimento e interação entre diferentes conhecimentos,


experienciais, e visões de mundo. Esse diálogo formula-se na “fecundidade da outridade que abre um porvir que não
está dado nem na extrapolação do presente, nem na condução racional de um processo de desenvolvimento fundado
no conhecimento”. O porvir, afirma Leff (2006), situa-se além da geratividade dos aspectos materiais da vida. “Está
além do devir e da transcendência como expressão de algo contido de antemão dentro de uma ordem ontológica,
epistemológica e fenomenológica; como urna potencialidade do ser, do real e da linguagem” (LEFF, 2006, p. 376).

É nesse processo que o saber social emerge, do encontro de seres diferenciados pelas culturas e que partilham
a intenção de articular os conhecimentos em prol da sustentabilidade. O diálogo de saberes acaba promovendo a
elevação do sujeito, enquanto ser formado em uma certa cultura, à esfera das identidades coletivas que formam o
“crisol da diversidade cultural em uma política da diferença”. Nesse campo, mobilizam-se os atores sociais imbuídos
da construção de estratégias alternativas de reapropriação da natureza em um ambiente de poder conflitivo. Tais
conflitos assumem formatações diversas e incorporam, muitas vezes, entendimentos antagônicos em relação à
construção de um futuro sustentável (LEFF, 2009, p. 19).

O papel das populações indígenas, nesse contexto, é fundamental. A diversidade cultural implicada nas
inúmeras etnias que compõem o tecido social (especialmente na América Latina), deve ser compreendida como um
elemento de extrema importância para a construção de novos paradigmas socioambientais. A partir das experiências
e conhecimentos desses povos, articulados em espaços favoráveis ao diálogo e genuinamente comprometidos com a
construção de soluções dialógicas, avanços consideráveis podem ser feitos no sentido de um futuro mais sustentável.

Esses saberes, muitas vezes ignorados, possuem o potencial de intervir em todas as práticas sociais, culturais,

112 […] plantea el desafío de cuestionar el pensamiento, los paradigmas de la ciencia y las estrategias de poder del discurso del desarrollo
sostenible, que en sus efectos de sentido y en sus modos de en actuar el metabolismo de la biosfera, degradan las condiciones de
sustentabilidad de la vida […] Asimismo, se vuelve imperativo implementar estrategias teórico-políticas capaces de conducir
un proceso de reordenamiento social conforme con las condiciones ontológicas de la vida. LEFF, Enrique. LAS RELACIONES
DE PODER DEL CONOCIMIENTO EN EL CAMPO DE LA ECOLOGÍA POLÍTICA. Ambiente & Sociedade, São Paulo,
v., n. 3, p. 229-230, set. 2017. Disponível em: <https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1414-753X2017000300225&script=sci_
abstract&tlng=es>. Acesso em: 18 fev. 2021.

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

simbólicas, produtivas. Os saberes, afirma Leff (2001), se inscrevem, se articulam e se expressam, em processos
ecológicos, culturais, econômicos e tecnológicos. Ou seja, afetam a vida social de forma geral. Esses saberes, uma vez
alçados e articulados na esfera pública, mobilizam os atores sociais a tomar posições diante do mundo, definir suas
identidades e projetar suas utopias (LEFF, 2001, p. 279).

O conhecimento, conforme aponta Leff (2001), condiciona todo processo de significação do mundo e de
apropriação da natureza. O saber, enquanto objeto de estudo, rompe o binômio ecológico-cultural e passa a ser um
fator determinante dentro da esfera mental envolvida no processo de apropriação do mundo e da natureza. “O saber
cultural é interrogado para saber como se constroem as diferentes formas de significação que orientam as práticas
sociais e produtivas dos diferentes grupos étnicos” (LEFF, 2001, p. 279).

Diversas iniciativas parecem buscar a consolidação de uma nova política, uma política do lugar, da identidade
e da diferença. Leff (2006) argumenta que o clamor pelo reconhecimento dos direitos à sobrevivência, à diversidade
cultural e à qualidade de vida dos povos, é uma política do ser, do devir e da transformação. Essa é uma política que
valoriza o direito de cada sujeito, de cada povo e de cada comunidade a forjar sua própria vida e construir seu futuro.

Não se trata, portanto, somente de uma luta voltada a preservação dos usos, costumes e idiomas dos povos,
mas sim “uma política cultural para a reconstrução de identidades que projetam seres individuais e coletivos para
um futuro, indo além do Mundo Objeto prefixado e excludente” (LEFF, 2006, p. 159).

A força política da diferença emerge a partir da pluralidade de valores, visões e dos princípios ontológicos e
éticos do diálogo de saberes. A legitimação da diferença que codifica novos valores e potencializa os seres culturais,
surge como oposição à homogeneização induzida pelo pensamento metafísico e pela racionalidade moderna. “A
política da diferença surge como a resistência dos seres culturais ao domínio da homogeneidade hegemônica global,
à objetificação dos seres e à igualdade desigual” (LEFF, 2015, p. 49).

No caso específico da população Warao que migrou recentemente para o Brasil, há peculiaridades interessantes
que merecem destaque diante da discussão que ora se desenvolve. Em primeiro lugar, é importante pontuar que a
participação de uma representante da Comunidade Warao na cidade de Belo Horizonte, em um espaço público e de
debate político acerca de políticas públicas, é um bom retrato da luta política dos direitos às diferenças.

A sua representação na esfera pública, ainda que restrita a uma instância local, significa a promoção de um
diálogo de saberes que promove, sobretudo, a integração de sua forma de compreender o mundo, as relações e a sua
própria situação diante de um contexto de dificuldades impostas pela mobilidade humana. É, assim, um ambiente
que poderá servir tanto para dar voz às lutas e necessidades imediatas dessa população, quanto para a construção de
suas utopias e futuro / sustentabilidade desejada.

Não se pode olvidar que os deslocamentos Warao que antecederam sua vinda ao Brasil estão profunda e
essencialmente conectados à crise ambiental e social que, por diferentes motivos e em diferentes momentos, os
afetou. A crise socioambiental que o “desenvolvimento” trouxe a esse povo até o Brasil, é parte da história de diversos
membros dessa etnia e que pode servir para a construção de um porvir diferente, onde essas mazelas não se repitam.

É relevante destacar que o tema “meio ambiente / ecologia”, nesse contexto, torna-se político como
resultado do poder que se exerce sobre a natureza e sobre os processos de apropriação conduzidos por interesses
específicos de domínio do meio. Mais precisamente, pela forma com que a intervenção humana, compreendida
dentro de uma certa racionalidade hegemônica, deixa marcas ecológicas em razão da pressão que exerce sobre
o meio ambiente. Desse modo, as diferentes estratégias de interação e apropriação da natureza em diferentes
contextos ecológicos, sejam eles culturais ou capitalistas, criam processos ecológicos politizados que são efeito de
estratégias de poder (LEFF, 2017, p. 235).

É pertinente, diante de tal entendimento, evidenciar o poema de autoria da representante Warao que passou

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

integrar o Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial da cidade de Belo Horizonte, Yolis Del Carmen
Rodriguez Lyon. O poema foi originalmente publicado no Jornal Fonte Br (2021) e registra um desejo genuíno de
fazer prosperar outra racionalidade, outra ecologia, outra forma de existir, produzir e viver... em harmonia com o
meio ambiente:

“A mãe terra não é apenas o único planeta


Onde podemos morar é também nosso lar onde habitar.
O presente de Deus
Nosso universo central
Que temos negligenciado
E de acordo com o tempo destruído
Com guerras e divisão
A mãe terra nos presenteou com plantas e animais que negligenciamos
Esquecendo que precisamos de essas plantas e animais para subsistir
A mãe terra nos fornece também ar, água sol e chuva que perdemos
Precisamos conscientização e união
de cada um e trabalhemos juntos
Para cuidar dela também
precisamos de harmonia
Para respirar o ar
Olhar o sol contemplar a chuva
E sentir o fogo aquecendo nossos corações.
Sem a mãe terra não tem sentido
A vida porque não existiria raça nenhuma
Que viva a mãe terra que vivam os povos originários que são guerreiros e guerreiras que protegem nossa mãe”.

O olhar de Yolis sobre as relações do sujeito e da comunidade com a terra, com as águas, com a fauna, com a flora
e o meio ambiente como um todo, evidencia o sentimento de que é necessário haver uma mudança na forma de pensar
hegemônica, que encara a mãe terra apenas como uma fonte de recursos a serem incorporados no processo produtivo,
consumidos e descartados. A visão de Yolis, além de ser poética, também carrega um potente conteúdo político.

O conteúdo político de sua poesia pode ser compreendido dentro do espectro daquilo que Leff denomina
“ecologia política”. “A ecologia política é o campo de uma epistemologia política ambiental, de estratégias de poder-
saber que abrem caminhos alternativos para a sustentabilidade” (Tradução livre) (LEFF, 2015, p. 40).

A ecologia política, conforme Leff (2017), caracteriza-se por ser uma epistemologia política concebida em
face da desconstrução de teorias que ignoraram o meio ambiente e das estratégias e formas de exercício de poder que
geram mudanças ambientais insustentáveis.

De acordo com o autor mexicano, a ecologia política consolida-se no âmbito dos embates pela reapropriação
da natureza e da cultura, na medida em que representa uma resistência a “homologação de valores e processos
(simbólicos, ecológicos, políticos) incomparáveis e a serem absorvidos em termos de valor de mercado”. É nesse
ambiente que a diversidade cultural ganha o status de “política da diferença”, de urna diferença que transpassa
e supera a mera distribuição equitativa dos benefícios econômicos advindos de uma valoração economicista da
natureza (LEFF, 2006, p. 304).

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INDÍGENAS E IMIGRANTES: problemas jurídicos e sociais da atualidade

6. Considerações Finais
A partir dessas reflexões, tonar-se visível a relevância da participação da representante da etnia Warao no
Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial de Belo Horizonte. Além de ser um povo indígena, no Brasil
essas pessoas também são imigrantes e sofrem com os estigmas associados a ambas as condições. Assim, a conquista
desse espaço representa um importante ambiente em que a luta política (ecológica e da diversidade) podem expressar-
se de forma intensa em um pleno diálogo de saberes.

Entretanto, apesar de ser motivo de alegria a sua participação nesse espaço público, a situação da comunidade
Warao em solo brasileiro ainda é bastante precária e demanda grande atenção da sociedade civil e dos órgãos públicos
engajadas na sua proteção e amparo. O direito dessa população a viver dignamente no Brasil deve ser assegurado,
bem como o direito a expressar sua cultura, idioma e tradições.

Nesse contexto, as reflexões do sociólogo mexicano Enrique Leff a respeito da importância do diálogo de
saberes para a construção de um futuro calcado na sustentabilidade e no pluralismo, serve de lente interpretativa
para a significação da participação da comunidade Warao no COMPIR/BH. Apesar de a sua participação ser pontual
e geograficamente restrita, ela demonstra o engajamento existente, ao menos em nível local, para a implementação
de meios de participação em um espaço adequado para a promoção de uma ecologia política garantidora dos direitos
das minorias. No caso específico dos Warao, essa participação mostra-se ainda mais relevante para o exercício pleno
de sua cidadania, haja vista seus status jurídico no Brasil. Dessa forma, evidencia-se a necessidade de replicação
destas experiências a fim de instigar a inclusão desses sujeitos em espaços de construção coletiva de políticas públicas,
assegurando, assim, o cumprimento dos ditames constitucionais e infraconstitucionais.

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