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Comunicação Intercultural e do período colonial e o surgimento do Estado-

Folkcomunicação num mundo Nação e a posterior hegemonia do mercado, que


em conflito afetaram os povos originários, as comunidades

É impossível deixar de considerar o impacto


sociocultural que a pandemia de Covid-19
trouxe em termos culturais, sociais, econômicos em
subalternizadas econômica e socialmente, assim
como exacerbaram a reaparição de nacionalismos
e movimentos sociais que encenam culturalmente
qualquer uma das áreas relacionadas com as Ciências formas de resistência, somado às contradições
Sociais e Humanas. E, em particular nas Ciências sociais no acesso e apropriação social dos meios
da Comunicação, claro, também em seus termos de comunicação massivos e das tecnologias de
comunicacionais. A pandemia não se desenvolveu informação e comunicação. Tais fatores constituem
no “vácuo”, mas se inscreveu em um complexo um marco de discussão ampla e crítica para
tecido de relações sócio-históricas atravessadas por compreender as interações entre as culturas e
conflitos que revelaram os problemas endêmicos de agentes comunicacionais e socioculturais diversos.
diferenciação econômica e de acesso à informação Os temas que tratamos aqui fazem parte do
que afetam amplos grupos populares em diferentes trabalho desenvolvido pelo GT Comunicação
países. Também se formou um contexto que Intercultural e Folkcomunicação da Associação
facilitou o surgimento e a recontextualização de Latino-Americana de Pesquisadores em
antigas lacunas informacionais e de preconceitos Comunicação, atualmente coordenado pelo Dr.
em torno de outras culturas (com a visibilidade Marcelo Sabbatini (Brasil) e que está sob a Vice-
mundial de movimentos de extrema direita que Coordenação da Dra. Marta Melean (Argentina)
promovem atitudes negativas em relação a outros e do Dr. Cristian Yáñez Aguilar (Chile). Neste
indivíduos, seja por critérios raciais, migratórios, espaço, pretendemos provocar um diálogo entre
de gênero ou classe social). Isto ocorreu e ocorre duas esferas relevantes para se pensar com uma
por meio das redes e da criação de novos espaços perspectiva crítica e situada: os encontros culturais
virtuais que compõem as sociabilidades onde o com as suas práticas cotidianas e patrimoniais
18 intercultural surge como um espaço de encontros, (tanto nas instâncias de agência local e através das
de conflitos e de processos políticos, enquanto o suas representações nos meios, como também nas
popular encontra novas instâncias de enunciação interações em redes) e o lugar que corresponde
que merecem ser analisadas e acompanhadas a segmentos sociais histórica e estruturalmente
através de perspectivas críticas e comprometidas. subalternizados. Como afirmamos anteriormente,
O perigoso protagonismo adquirido por é um dossiê que contempla as diretrizes do GT
grupos racistas e/ou classistas tende a gerar novas 1 da ALAIC - Comunicação Intercultural e
tensões na comunicação, desde os circuitos socio- Folkcomunicação, com foco nos processos de
tecnológicos às interações cotidianas. Entre esses comunicação, seja em meios de comunicação de
conflitos se incluem as tensões entre os modos de massa, seja em canais paralelos de comunicação
conhecimento científico e atitudes negacionistas, social, incluindo as redes digitais., Transformados
além de uma crítica da visão hegemônica da pela perspectiva do ciberativismo e da cultura
ciência ocidental frente às “epistemologias do hacker, observa-se também uma diversidade de
Sul”. Também o conflito entre as minorias sociais abordagens metodológicas, o que revela a própria
e a ampla diversidade que encontramos no tecido diversidade que afeta o campo da Comunicação na
social e nas classes e grupos dominantes do poder. América Latina e nos coloca no papel de continuar
Conflitos de longa data histórica, como aqueles a gerar pontes que nos permitam compreender os
fenômenos das interações culturais através da suas ações sociais e políticas de resistência e
­comunicação em sua relação com os processos transformação. O texto “Grupos marginalizados
sociais. Nestes, a cultura, o folclore, a mídia, na ­arena política em tempos de pandemia e
as artes ou o patrimônio estão inseridos em desestruturação democrática” utiliza bases
processos sociais e econômicos que contribuem bibliográficas e documentais para analisar como
para a comunicação intercultural e processos esses grupos, vinculados aos movimentos sociais,
comunicacionais folkcomunicacionais. têm atuado efetivamente na luta por práticas e
Nesse sentido, muitos dos trabalhos políticas públicas que garantam a manutenção e
responderam ao nosso apelo e abordaram sua sobrevivência coletiva.
o contexto pandêmico. Para começar, a No cenário mundial marcado pela incidência
pesquisadora Betania Maciel apresenta o texto da Covid-19, com rupturas e desestabilização
“Folkcomunicação, cultura e arte em busca política, Rosi Cristina Silva questiona o papel dos
de resiliência em tempos de pandemia”, que grupos marginalizados e quais práticas sociais
buscou identificar as manifestações por meio são eficazes para estabelecer sua voz. Assim,
da arte de rua que expressassem sentimentos “Celebrações religiosas em tempos de pandemia:
coletivos em relação à tragédia de Covid-19. um olhar sobre a Festa de Nossa Senhora da
Essas manifestações, circunscritas na pesquisa Conceição” analisa dados das redes sociais para
ao Estado de Pernambuco, ao contrário do forte comparar suas manifestações com as de anos
caráter político que caracteriza o graffiti e outras anteriores e chega à conclusão de que há uma
formas de arte popular, foram colocadas lado a ressignificação das festividades religiosas, com
lado com os esforços de governos e autoridades uma quebra na participação dos fiéis.
para expressar mensagens que promovessem a Se durante a pandemia quase todas as
adesão aos protocolos sanitários; mas ao mesmo atividades diárias foram transferidas para a
tempo incorporando elementos da cultura local e Internet, o mesmo pode ser dito para a pesquisa
regional como forma de estabelecer uma ligação científica. Nesse sentido, muitos pesquisadores 19
identitária com o seu público. encontraram na virtualidade o campo para
Atuando em cerca de vinte comunidades investigar a realidade, como Camila Leite de
quilombolas, Ivonete da Silva Lopes, Jéssica Araujo e Cristiane Barbosa, que nos trazem
Suzana Magalhães Cardoso e Daniela de Ulysséa o artigo “Rede social de imagens e produções
Leal e Carina Aparecida Veridiano entrevistaram locais para pensar sobre um problema nacional:
mulheres entre 18 e 76 anos para compreender a pandemia da Covid-19 no Brasil”. A partir
a recepção de mensagens relacionadas à da coleta de dados em uma rede social de
pandemia em seu artigo “Mulheres quilombolas imagens e, especificamente a partir do projeto
e ausência de comunicação intercultural para @covidphotobrazil, as autoras concluem que
o enfrentamento da COVID-19”. As autoras a fotografia tem desempenhado um papel de
­denunciam a ausência de mensagens dirigidas provocar debates, conscientizando sobre os
aos ­grupos sociais e comunidades tradicionais diversos aspectos sociais e políticos demarcados
mais ­vulneráveis. pela crise da saúde.
Cristina Schmidt Silva Portéro destaca que, Por sua vez, “Verdades mínimas: relatos
no contexto da pandemia, os sistemas estatais pandémicos expresados en los periódicos
de proteção social foram desestabilizados, miniaturas de la fiesta de Alasitas de La Paz,
fazendo com que grupos populares acentuassem Bolivia” de Vanessa Calvimontes Díaz e Juan
Villanueva Criales se aprofunda no aspecto o meio analisado no texto “O cotidiano
cultural, tendo os jornais em miniatura como folkcomunicacional no seriado ‘Carga Pesada’”
objeto de investigação. No contexto da pandemia, de Felipe Adam e Ivan Bomfim. A icônica série
este meio de comunicação popular manteve seu da TV Globo tem 64 de seus episódios analisados​​
caráter de sátira e de humor para traçar um a partir de categorias de comunicação popular,
panorama da realidade boliviana no fatídico mesclando o universo dos caminhoneiros com
ano de 2020, incluindo comentários de natureza questões familiares, questões relacionadas à
política. violência e marginalização, além da superstição
Além dos trabalhos que enfocaram o contexto e da religião, representando o contexto cultural
da pandemia, recebemos artigos que exploraram brasileiro sob uma ótica dos grupos populares.
a relação entre os meios de comunicação ‒ No artigo “Folclore e adaptação: os
tradicionais ou sob novas perspectivas ‒ e tensionamentos em ‘Cidade Invisível’”, Andriolli
os processos comunicacionais subalternos e Costa oferece-nos uma crítica cultural da série
populares. “O patrimônio cultural dos sinos ficcional que se tornou uma das mais vistas
preservado por meio da narrativa folkmidiática dos últimos tempos através da plataforma da
transmídia”, artigo apresentado por Urbano Netflix. O objetivo do trabalho é refletir sobre os
Lemos Jr e Vicente Gosciola, aborda o projeto desafios e tensões que permeiam a forma como
“Som dos Sinos” por meio do qual as expressões os elementos do folclore são adaptados nas novas
culturais de uma comunidade são disseminadas mídias, a partir de um processo que é abordado
por esta expressão artística de natureza religiosa pelo conceito de Folkmídia. O texto aborda as
a partir do conceito de narrativa folclórica tensões entre o reconhecimento da identidade e
transmídia. A pesquisa visa mostrar como os as disputas narrativas, sendo a série considerada
projetos transmídia podem contribuir para a um exemplo que expressa como tais relações são
preservação e disseminação de elementos do produzidas no contexto contemporâneo.
20 patrimônio cultural, de forma que o uso dos sons Em “Narrativas Folkcomunicacionais nas
dos sinos se integre ao sistema de comunicação, mídias sociais: as quadrilhas juninas contam o
com potencial de repercussão em outros espaços, Nordeste” Juliana Hermenegildo da Silva e Maria
graças aos recursos transmídia. Erica de Oliveira Lima analisam a construção
No artigo “Religiosidade afro-gaúcha e de narrativas e processos representativos e um
Folkcomunicação: discussões a partir do festival muito característico da cultura popular,
documentário Cavalo de Santo” Ícaro Matos procurando um cruzamento entre a teoria
Kropidloski e Antônio Hohlfeldt analisam três da Folkcomunicação, a teoria narrativa e as
festas religiosas tradicionais a partir de suas proposições da cibercultura. As autoras concluem
representações um documentário e a partir que os meios técnicos contribuem para repensar
delas comentam suas manifestações e analisam o imaginário popular, além de servirem como
as perspectivas de participação de diferentes meio de resistência.
classes sociais. Segundo os autores, o sincretismo O artigo “Decolonialidade e jogos digitais:
verificado nos três festivais permite classificar releituras históricas, resistência e luta”, de Marcelo
essas expressões como folkcomunicacionais. Sabbatini, propõe uma análise qualitativa através
Na perspectiva da comunicação popular da qual categorias e subcategorias para abordar
estabelecendo relações com os meios como os jogos digitais ‒ entendidos como meios
de comunicação de massa, a televisão é de comunicação ‒ podem tornar-se experiências
de resistência cultural com potencial pedagógico. artigo “Folkcomunicação, cultura popular e feiras
Para isso, analisa um jogo digital que coloca livres no Nordeste: uma revisão integrativa”onde
o jogador no comando de um quilombo, mapeiam a produção científica na intersecção
conduzindo escravos libertos em sua luta contra destes elementos. A análise quantitativa revela
a dominação dos latifundiários, englobando lacunas quanto ao tratamento das feiras populares
categorias como o revide e a outremização que como espaço de comunicação.
podemos entender como decoloniais e pós- Para encerrar, o artigo “As TICs no cotidiano
coloniais. de famílias agricultoras: apropriações e
Por fim, três artigos do dossiê se propõem a incorporações no meio rural contemporâneo”
avançar nas fronteiras teóricas e metodológicas não se enquadra nas questões pandêmicas,
da Folkcomunicação no século XXI, como se midiáticas ou de comunicação popular em sua
pode verificar no artigo “Folkcomunicação essência, mas ainda assim fornece uma visão
e resistência: elementos de uma práxis crítica dos processos de comunicação para a
informacional” de autoria de Guilherme Moreira inclusão social e econômica. O tema de pesquisa
Fernandes, Flávio Menezes Santana e Karina escolhido por Lírian Sifuentes, João Vicente Ribas
Janz Woitowicz. O texto busca articular a teoria e Aline Bianchini são as tecnologias digitais e sua
proposta originalmente por Luiz Beltrão com apropriação por famílias camponesas do sul do
as abordagens da tradição latino-americana que Brasil, evidenciando que na contemporaneidade
privilegiam as resistências culturais, políticas o urbano e o rural são difusos e que a atividade
e comunicacionais, principalmente aquelas econômica desenvolvida pelas famílias, em
praticadas pelos movimentos sociais. Defende, especial a agricultura familiar, orientam a
dessa forma, uma práxis comunicacional voltada integração das tecnologias na vida cotidiana.
para a luta pela liberdade e pelos Direitos Se há um aspecto chave para pensar e
Humanos. acompanhar os processos sociais e históricos na
Por sua vez, Marcelo Pires de Oliveira apresenta- América Latina, é o cultural. Assim, o propósito 21
nos uma análise de um método de investigação deste dossiê e de nosso Grupo de Trabalho
bastante característico da área da cultura em continuará sendo o de gerar instâncias para
seu “Bibliometria do uso da metodologia da pensar tais processos a partir da dinâmica da
História Oral na pesquisa em Folkcomunicação comunicação, seus processos interculturais e
2000-2020”. Além de apresentar e discutir os sua relação com estruturas econômicas e sociais
usos e apropriações da História Oral no campo de subalternização e interações, como vem
da Folkcomunicação, a análise da produção abordando a teoria da comunicação popular
científica mostrou que, embora revele grande desenvolvida décadas atrás. Sejam bem-vindas
potencial para a compreensão dos fenômenos e bem-vindos a um número para pensar sobre a
comunicativos populares, o campo necessita comunicação de culturas e com a mídia.
de um maior rigor metodológico. O autor
ainda aponta instruções para a nova geração de Marcelo Sabbatini
pesquisadores utilizá-lo em plenitude. Marta Melean
Também no campo metodológico, a inovação Cristian Yáñez Aguilar
nos métodos de pesquisa é um dos elementos
aportados pelos textos de Ermaela Cícera Silva
Freire e Itamar de Morais Nobre que apresentam o

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