Você está na página 1de 15

A HIBRIDAÇÃO INTERCULTURAL DE NÉSTOR GARCIA CANCLINI NA

AMÉRICA LATINA

Francis Rafael Mousquer1

RESUMO:

O atual ensaio pretende delinear o pensamento e as temáticas desenvolvidas por


Néstor Garcia Canclini acerca da hibridação intercultural presente no desenvolvimento
da sociedade latino-americana moderna. Para isso, é indispensável estabelecer a
conexão cultural existente entre os diferentes povos que formaram o continente austral e
suas heranças perante os influxos do processo civilizatório moderno. Assim, analisar-se-
ão as obras do autor e suas diferentes influências epistemológicas, centradas em sua
grande maioria nos processos de hibridação, os quais ressaltam a importância dos
agentes sociais e sua contínua mutação diante da produção cultural. Inaugura-se uma
entropia convergente do que pode ser considerado culto, popular e massivo, delineando
em sua abordagem o que é tradicional e o que é moderno. Por conseguinte, é imperioso
a formação de um espaço integrador, que represente através do diálogo uma nova forma
de democracia, alicerçada na diversidade e na busca de mecanismos capazes de
legitimar a emancipação cultural dos povos latino-americanos.

PALAVRAS CHAVE: Hibridação, interculturalidade, cultura e América Latina.

INTRODUÇÃO:

O presente trabalho tem como escopo apresentar as ideias de Néstor Canclini


acerca do hibridismo cultural e suas relações interculturais, como forma de dialogar e
interagir com as diversas culturas e romper com etnocentrismo hegemônico. Para isso é
necessário verificar a relação existente entre o tradicional e o moderno na formação do
corpo social latino-americano. Parte-se do multiculturalismo (desestruturação) para a
interculturalidade (interação), culminando na hibridação (integração) de Canclini.

Dessa forma, é preciso traçar elementos que conectem os diferentes fenômenos e


expliquem o momento atual e as questões de gênero, identidade e cultura que
preocupam as sociedades. A formação da América Latina constituiu-se com uma base
1
Advogado, graduado em Direito pela Universidade de Cruz Alta – UNICRUZ, especialista em Direito
Público pelo Instituto de Desenvolvimento Cultural (IDC), mestrando em direitos especiais do Curso de
Pós-Graduação em Direito – URI, Campus Santo Ângelo.
multicultural muito forte, na qual as questões multiculturais possuem especificidades
próprias, principalmente no tocante aos indígenas e aos afro-descendentes, que foram
marcados pela escravização e pela continua negação do seu reconhecimento.

Assim, a construção social latino-americana nos coloca diante de questões


históricas, mas que por outro lado, souberam resistir e hoje continuam tentando afirmar
de forma peremptória suas raízes na nossa sociedade. Infelizmente esta afirmação está
contida num cenário de dependência e de vinculação dissonante do poder, sendo
marcada pela exclusão acentuada de minorias étnicas.

O multiculturalismo surge como uma necessidade e até mesmo uma exigência de


reconhecimento por parte de grupos minoritários e suas identidades. Propõe a
convivência na mesma sociedade de diferentes culturas, conduzidas pelo respeito às
diferenças e amparadas pelo princípio da tolerância.

A interculturalidade por sua vez, indica um conjunto de propostas de


convivência democrática entre diferentes culturas, agregando-as sem anular sua
diversidade. Implica como fundamental a interação entre essas culturas, apontando para
um programa político capaz de desenvolver um diálogo como forma de garantir uma
comunhão pacífica entre os povos.

Origina-se a partir de então, a hibridação inaugurada pelo autor, a qual é


entendida como uma fusão, uma elucidação entre mestiçagem e sincretismo com a
finalidade de sinalar misturas particulares e processos socioculturais capazes de
produzir novas estruturas, objetos e práticas. Desse modo, faz-se necessário o
desenvolvimento de políticas de hibridação com o propósito de trabalhar com as
divergências de forma democrática; pois como assinala Canclini: “a hibridação, como
processo de interseção e transações, é o que torna possível que a multiculturalidade
evite o que tem de segregação e se converta em interculturalidade.”

Logo, é de substancial importância verificar a possibilidade de construções


democráticas por meio de um processo de hibridação intercultural, tornando possível a
concretização de uma interculturalidade latina, baseada na relação entre a tradição dos
povos originários e o multiculturalismo imposto pela modernidade através do
pluralismo cultural e da mestiçagem das nações.
1 BIOGRAFIA DO AUTOR:

Néstor García Canclini é um filósofo que estuda a linha antropológica latino-


americana na contemporaneidade. É um dos intelectuais latino-americanos mais
importantes e polivalentes da atualidade. Nasceu na cidade de La Plata (Argentina) no
ano de 1939, tendo estudado Filosofia e concluindo seu doutorado em 1975 na
Universidade Nacional da Prata. Em 1978 graduou-se doutor pela Universidade de
Paris - X (Nanterre).

Entre 1966 e 1975 lecionou nas Universidades do Prata e de Buenos Aires.


Desde 1990 ele é professor da Universidade Autônoma Metropolitana do México e
Pesquisador Emérito do Sistema Nacional de Pesquisadores do México. Possui uma
relação bastante estreita com o país (sendo considerado mexicano também), onde
leciona até os dias de hoje. Foi professor visitante em diversas universidades mundo
afora, entre elas destacam-se: São Paulo, Barcelona, Buenos Aires, Austin, Duke e
Stanford.

O centro de seu trabalho é a pós-modernidade (globalização) e a cultura e suas


mudanças a partir do ponto de vista latino-americano, sendo considerado um dos
maiores investigadores em comunicação, cultura e sociologia do continente. Sua obra é
bastante variada e inclui temas como a hibridização e multiculturalismo, cultura e
imaginário urbano, arte e estética, estudos culturais e políticos, entre outros.

Entre as diversas obras do autor, podemos ressaltar em especial Culturas


Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade (1990), a qual recebeu o
prêmio Book Award, por ter sido considerada o melhor livro do ano de 2002 sobre a
América Latina. Destacam-se também: As Culturas Populares no Capitalismo (1983),
Consumidores e cidadãos (1995), Imaginarios urbanos (1997), Latinoamericanos
buscando lugar en este siglo (2002) – vencedora do prêmio Anual e Ensaio Literário
Hispano-americano Lya Kostakowsky da Fundação Cardoza y Aragón -, A globalização
imaginada (2003), Leitores, espectadores e internautas (2008).

No momento, Canclini tem constituído seus estudos nas estratégias criativas e


redes culturais dos jovens; bem como nas relações existentes entre estética, arte e
antropologia.
2 A HIBRIDAÇÃO INTERCULTURAL:

O livro Culturas Híbridas, em um primeiro momento, é desprovido da


lineariedade literária que é peculiar a um trabalho de pesquisa dessa magnitude. Porém,
trata-se de um evento criado propositalmente com o fito de conferir verossimilhança ao
título impingido à obra. Situa-se sob o formato de ensaio científico, pois não se
desenvolve pautado em início-meio-fim, pois possui uma certa maleabilidade, tornando
possível sua exploração em várias direções. (CANCLINI, 2003, p. 28).

Canclini confere ao leitor a possibilidade de utilizar o texto como se estivesse


percorrendo uma cidade, na qual se poderia entrar por um dos três caminhos: do culto,
do popular ou do massivo. Uma vez inserido, tudo se mistura, “cada capítulo remete aos
outros, e então já não importa saber por qual acesso se entrou.” (CANCLINI, 2003, p.
20).

O autor apresenta em sua idéia principal um modelo chamado de “processos de


hibridação”, através do qual evidencia os agentes sociais e a cultura situados em um
desenvolvimento em constante transformação. Os agentes sociais são aqueles que
constroem as novas formas e igualmente mantém as antigas, o nativo, o imigrante, o
turista. Já a produção cultural concentra-se no que pode ser considerado culto, popular e
massivo, abordando múltiplos espaços artísticos, tais como: literatura, arte, música,
mídia, política, traçando relações em sua abordagem do que é tradicional e do que é
moderno.

[...] os migrantes camponeses que adaptam seus saberes para trabalhar e


consumir na cidade ou que vinculam seu artesanato a usos modernos para
interessar compradores urbanos; os operários que reformulam sua cultura de
trabalho ante as novas tecnologias produtivas; os movimentos indígenas que
reinserem suas demandas na política transnacional ou em um discurso
ecológico e aprendem a comunicá-las por radio, televisão e internet. Por
essas razões, sustento que o objeto de estudo não é a hibridez, mas sim, os
processos de hibridação. A análise empírica desses processos, articulados
com estratégias de reconversão, demonstra que a hibridação interessa tanto a
setores hegemônicos como aos populares que querem apropriar-se dos
benefícios da modernidade. (CANCLINI, 2003, p. 22).

O texto trabalha com a concepção de que a formação da América Latina se deu


através de um longo processo de desenvolvimento de culturas híbridas, no qual a
modernidade é sinônimo de pluralidade de relações multidisciplinares – artes e
literatura; folclore e antropologia; comunicação e mídia -, tendo início os cruzamentos
entre as “tradições cultas e populares.”

Aduz a necessidade de rompimento com a divisão estática entre o culto, o


popular e o massivo, assim como a antinomia existente entre tradicional e moderno,
para que se possa

[...] averiguar se sua hibridação pode ser lida com as ferramentas das
disciplinas que o estudam separadamente: a história da arte e a literatura que
se ocupam do culto; o folclore e a antropologia, consagrados ao popular; os
trabalhos sobre comunicação, especializados em cultura massiva. Precisamos
de ciências sociais nômades, capazes de circular pelas escadas que ligam
esses pavimentos [...] que redesenhem esses planos e comuniquem os níveis
horizontalmente. (CANCLINI, 2003, p. 19).

Uma espécie de trabalho conjunto entre as disciplinas operaria como uma


tentativa de substituição ou renovação da maneira de conceber a modernização latino-
americana, rompendo com as forças dominadoras e sugerindo um “olhar transdisciplinar
sobre os circuitos híbridos”. Leva-nos a refletir criticamente sobre a necessidade de
validar a heterogeneidade dos sistemas, dos intercâmbios e das mesclas de culturas ou
entre formas culturais.

O fracionamento das identidades, assim como da sociedade, auxiliou na


composição das culturas híbridas. As novas formas de cultura misturam elementos
populares, cultos e massivos. O autor elege algumas perspectivas político-culturais que
representam a sociedade fragmentada e concorrem na constituição das culturas híbridas:
a teleparticipação, o descolecionamento e a desterritorialização. Nessa toada, a
expansão urbana e as migrações foram sem dúvida processos/causas que impulsionaram
a hibridação cultural.

García Canclini contempla questões relacionadas às mudanças sociais trazidas


pela modernidade, levando-se em conta toda a complexidade identitária e cultural –
inserida pela mestiçagem e pelo sincretismo; artesanal e industrial – por meio das novas
formas de produção e apropriação. Tais fenômenos vivenciados pelos indivíduos na
sociedade contemporânea trouxeram implicações e severas transformações nas
relações da atualidade.

A explicação de por que coexistem culturas étnicas e novas tecnologias,


formas de produção artesanal e industrial, pode iluminar processos políticos;
por exemplo: as razões pelas quais tanto as camadas populares quanto as
elites combinam a democracia moderna com relações arcaicas de poder.
Encontramos no estudo da heterogeneidade cultural uma das vias para
explicar os poderes oblíquos que misturam instituições liberais e hábitos
autoritários, movimentos sociais democráticos e regimes paternalistas, e as
transações de uns com outros. (CANCLINI, 2003, p. 19).

Atualmente existe uma perspectiva mais intrincada sobre o relacionamento entre


tradição e modernidade, pois “a modernização diminui o papel do culto e do popular
tradicionais no conjunto do mercado simbólico, mas não os suprime.” (CANCLINI,
2003, p. 22). O equívoco dos ditos tradicionalistas e modernizadores foi à tentativa de
edificar “objetos puros”, aqueles planejaram “culturas nacionais e populares autênticas”
preservando-as da massificação urbana, da industrialização e das influências
estrangeiras. Já os modernizadores depositaram “na experimentação e na inovação
autônomas suas fantasias de progresso”, engendrando a arte pela arte e o saber pelo
saber, desprovidos de marcos geográficos. (CANCLINI, 2003, p. 21).

Nesse contexto, é necessário traçar um paralelo entre os períodos nos quais se


situa a latino-américa. Modernidade e pós-modernidade são épocas que não raramente
se confundem entre conquistas e transformações culturais e sociais, uma vez que a
ausência de estudos práticos principalmente acerca do lugar da cultura nesse período
chamado de pós-modernidade nos leva a “construir categorias ideais sem comprovação
factual.” (CANCLINI, 2003, p. 24).

Enquanto em alguns setores culturais as tendências pós-modernas são


predominantes em diversos países, na América latina consolidam-se diretrizes
modernizadoras na economia e na política. As novas formas de regulação e de
reorganização no continente trataram como prioridade as inovações tecnológicas com a
finalidade de modernizar a economia e romper com os fantasmas do passado. O que de
certa maneira é tratada com ironia, afinal

para que vamos ficar nos preocupando com a pós-modernidade se, no nosso
continente, os avanços modernos não chegaram de todo nem a todos? Não
tivemos uma industrialização sólida [...] nem uma organização sociopolítica
baseada na racionalidade formal e material [...] Nem o progressismo
evolucionista, nem o racionalismo democrático foram, entre nós, causas
populares. . (CANCLINI, 2003, p. 24/25).

É inegável a demanda por políticas de coesão social e cultural modernas,


capazes de tornar nossas sociedades governáveis, há já vista que “os caudilhos
continuam guiando as decisões políticas com base em alianças informais e relações
rústicas de força”, prossegue o autor no sentido de que as manobras operadas pelo
“caciquismo, a religiosidade e a manipulação comunicacional conduzem o pensamento
das massas.” (CANCLINI, 2003, p. 25).

Os sistemas de governo liberais apenas fizeram de conta que construíam


Estados, quando na verdade apenas organizaram alguns setores da sociedade a fim de
promover um desenvolvimento submisso e incoerente. Não formaram uma cultura
nacional, tentaram catalisar os movimentos culturais na direção das elites, excluindo os
principais formadores-fabricantes da verdadeira nacional cultura; os indígenas, artesãos
e camponeses.

As elites cultivam a poesia e a arte de vanguarda enquanto as maiorias são


analfabetas. A modernidade é vista então como uma máscara. Um simulacro
urdido pelas elites e pelos aparelhos estatais, sobretudo os que se ocupam da
arte e da cultura, mas que por isso mesmo os torna irrepresentativos e
inverossímeis. [...] Os populismos fizeram de conta que incorporavam esses
setores excluídos, mas sua política igualitária na economia e na cultura, sem
mudanças estruturais, foi revertida em poucos anos ou se diluiu em
clientelismos demagógicos. (CANCLINI, 2003, p. 25).

Este movimento excludente e direcional coadunava-se com as mudanças


ocorridas a partir da década de 80 na latino-américa. O autor pretende revisar a teoria da
modernidade sob a ótica da hibridização; principalmente no tocante as modernizações
pretendidas nos campos político e econômico e seus possíveis reflexos nas
metamorfoses culturais, populares e midiáticas.

As mudanças ocorridas são fruto de uma nova condição na qual se insere o


continente, uma tendência mundial de aproximar-se da globalização. O rompimento
com a secularização e com o evolucionismo deu lugar a novas práticas de organização
coletiva articuladas e mais complexas, aliadas de uma racionalidade científica e
tecnológica, mas ao mesmo tempo tradicional e moderna. Nossa heterogeneidade
conflui com as múltiplas existências – diversas e desiguais, num território onde cada
política de desenvolvimento relaciona-se com seus interesses e conveniências.
(CANCLINI, 2003, p. 28).

Nessa linha, concebemos a pós-modernidade não como uma etapa ou


tendência que substituiria o mundo moderno, mas como uma maneira se
problematizar os vínculos e equívocos que ele armou com as tradições que
quis excluir ou superar para constituir-se. A relativização pós-moderna de
todo o fundamentalismo ou evolucionismo facilita revisar a separação entre o
culto, o popular e o massivo, sobre a qual ainda simula assentar-se a
modernidade, elaborar um pensamento mais aberto para abarcar as interações
e integrações entre os níveis, gêneros e formas de sensibilidade coletiva.
(CANCLINI, 2003, p. 28).

A separação entre as formas de produção culturais, ou sua necessidade, é vista


pelo autor como uma forma de exclusão. O popular, por exemplo, é observado como o
excluído, “aqueles que não têm patrimônio ou não conseguem que ele seja reconhecido
e conservado, costuma ser associado ao pré-moderno e ao subsidiário.” Na cadeia
consumidora estaria no final do processo, obrigado a reproduzir o ciclo do capital e dos
dominantes. (CANCLINI, 2003, p. 205).

O popular se apresenta de certa forma em oposição ao culto, que por sua vez está
ligado aos setores hegemônicos, ao passo que o popular ao subalterno. A modernidade é
produzida pelas áreas dominantes legando ao popular e as tradições um trágico final. A
antinomia existente entre o tradicional  moderno; popular  culto; subalterno 
hegemônico para a corrente modernizadora se fundamenta pelo desenvolvimento de
seus ideais transformadores. (CANCLINI, 2003, p. 206). Já a condição subalterna dos
movimentos populares sustentar-se-ia pelos atrasos a que estão submetidos. O que de
fato está ocorrendo é a modernização das culturas populares, o que para os
modernizadores confirma a tese de que o tradicional está fadado a acabar. Para os
populares é um indício de que a primazia dos dominantes impede-os de ser quem
realmente são.

Tais paralelos comparativos foram desenvolvidos no texto a partir de uma


polarização dos campos e a inevitável dependência com relação ao mercado e às
indústrias culturais. A arte e o artesanato, o artista e o artesão, são parâmetros de um
desenvolvimento autônomo dos campos artísticos e científicos como chave da estrutura
contemporânea, “a arte corresponderia aos interesses e gostos da burguesia e de setores
cultivados da pequena burguesia [...] o artesanato é visto como produto de índios e
camponeses, de acordo com sua rusticidade, com os mitos que aparecem em sua
decoração.” (CANCLINI, 2003, p. 242/243).

Sem embargo, ambas se fundem e interagem numa nova forma de expressão


cultural, assim como na música, na literatura, nas formas de transmissão do saber e até
mesmo através das criativas formas de enfrentar as desigualdades. O autor refere uma
passagem pela cidade de Teotitlán del Valle, onde indagou um tecelão sobre as imagens
de artistas em suas tapeçarias, disse-lhe o artesão/artista que foi influenciado por turistas
que trabalhavam em um famoso museu americano, tendo até mesmo exposto seu
trabalho na Califórnia:

Em meia hora, vi aquele homem mover-se com fluência do zapoteco ao


espanhol e ao inglês, da arte ao artesanato, de sua etnia à informação e aos
entretenimentos da cultura massiva, passando pela crítica de arte de uma
metrópole. Compreendi que minha preocupação com a perda de suas
tradições não era compartilhada por esse homem que se movia sem muitos
conflitos entre três sistemas culturais. (CANCLINI, 2003, p. 242).

Observa-se aqui o eixo principal da hibridização construída pelo autor: a


ausência de conflitos por parte do tecelão. Neste ponto reside o salto quântico de sua
argumentação, pois se percebe nesse contexto que os processos híbridos são uma
espécie de interculturalidade. Leva-nos a contemplar de maneira critica sobre a
necessidade de legitimar a heterogeneidade e resgatar valores mais humanos a fim de
compreendermos com maior propriedade os problemas sociais contemporâneos e
pensarmos sobre possibilidades de atuação, no sentido de construirmos uma sociedade
mais ética e pacífica.

A cultura massiva por sua vez, invade e rivaliza cada vez mais com a cultura
popular (folclore) de nossas sociedades, exportando seus clichês e produções enlatadas
produzidas pelas grandes companhias. O entretenimento e sua indústria trataram de
difundir valores hegemônicos pelo território dos países ibero-americanos, inundando a
cultura nacional-popular com produções criadas “para deslumbrar, ou simplesmente
remoçar as telas a cada semana, para esconjurar seu medo de que o público não saia de
casa, como nas décadas anteriores, recorre ao método de assombrar sem exibir certezas
atuais, assustar com terrores distantes” (CANCLINI, 2008, p. 88).

Todavia, o próprio autor faz um contraponto com a vulgarização que se


estabelece acerca da popularização do termo “culturas massivas” e sua ameaça para as
tradições populares e a homogeneização ocorrida no continente:

A rigor, o processo de homogeneização das culturas autóctones da América


começou muito antes do rádio e da televisão: nas operações etnocidas da
conquista e da colonização, na cristianização violenta de grupos com
religiões diversas – durante a formação dos Estados nacionais -, na
escolarização monolíngüe e na organização colonial ou moderna do espaço
urbano. (CANCLINI, 2003, p. 255).
Por outro lado, a cultura das massas que se estabeleceu com a globalização torna
possível, por exemplo, que comunidades isoladas entrem em contado com o mundo,
com pessoas que estão distantes. Igualmente proporciona o conhecimento e novas
formas de alcançar o saber, seja através da literatura, seja através da internet.

Igualmente, há de se destacar que não se pode atribuir “aos meios eletrônicos a


origem da massificação das culturas populares”, completa Canclini, que “esse equivoco
foi propiciado pelos primeiros estudos sobre comunicação, segundo os quais a cultura
massiva substituiria o culto e o popular tradicionais.” O massivo configurou-se como
uma esfera intercalada inserida no campo social, como ocorreu com a arte e a literatura,
“uma subcultura determinada pela posição de seus agentes e pela extensão de seus
públicos.” (CANCLINI, 2008, p. 255).

Pode-se afirmar então, que a consciência de cultura massiva emerge no


momento em que as sociedades já estão massificadas, a inovação alçada pela mídia foi a
sua união com o populismo, “as comunicações massivas apareceram como agentes da
inovação desenvolvimentista”. É possível afirmar que as tradições culturais foram de
certo modo beneficiadas com a multiplicação dos meios de comunicação, pois “a arte
popular que tinha ganhado difusão e legitimidade social graças ao rádio e ao cinema,
reelabora-se em virtude do público que agora tomam conhecimento do folclore através
dos programas de televisão.” (CANCLINI, 2008, p. 257).

Para Canclini, o populismo possibilitou aos setores populares novas interações


com a modernização, tanto com o Estado quanto com outros atores hegemônicos,
fazendo com que parte de suas pretensões fossem atendidas, tornou possível que grupos
subalternos aprendessem a se relacionar, a reconhecer-se. (CANCLINI, 2008, p. 265).

Nesse processo é importante a convergência do populismo político com a


indústria cultural. Ao levar em conta que nas sociedades modernas o povo
existe como massa, como público de um sistema de produção simbólica que
transcendeu sua etapa artesanal, os populistas tratam de que o povo não
permaneça como destinatário passivo das ações comunicacionais. Seu
programa cultural – além de promover as formas pré-modernas de
comunicação e aliança política: relações pessoais, suburbanas – constrói
cenários nos quais o povo aparece atuando (manifestações de protesto,
desfiles, ritos multitudinários). (CANCLINI, 2008, p. 265).

Para o autor, o império da cultura de massas não devorou as demais. No entanto,


em conjunto com as expressões culturais populares e cultas originaram uma nova
conexão híbrida. No seu entendimento os Estados latinos devem elaborar políticas
dispostas a efetivar a diversidade de acordo as tradições e identidades urbanas, aliando o
local e o global. Ou seja, introduzir plataformas “que promovam a compreensão e o
respeito das diferenças na educação e nas interações tradicionais [...] que desenvolvam
também programas que facilitem a informação e o conhecimento recíprocos nas
indústrias culturais que comunicam intensamente os povos." (CANCLINI, 2006, p.
187/188).

Lamentavelmente, o comércio e a publicidade apropriaram-se da política,


reduzindo-a as suas regras, convertendo o que antes se pautava pela participação em
algo que hoje está reduzida ao simples consumo. (CANCLINI, 2006, p. 35/36). Nesse
ponto, Canclini atribui em seu livro ‘Consumidores e Cidadãos’, que o exercício da
cidadania está conectado com as estratégias políticas e com as diversas formas de
consumo proporcionadas pelos sistemas híbridos que se formaram durante as relações
sociais modernas.

Também na América Latina a experiência dos movimentos sociais está


levando a uma redefinição no que se entende por cidadão, não apenas em
relação aos direitos à igualdade, mas também em relação aos direitos à
diferença. [...] A insatisfação com o sentido jurídico-político de cidadania
conduz a uma defesa da existência, como dissemos, de uma cidadania
cultural, e também de uma cidadania racial, outra de gênero, outra ecológica,
e assim podemos continuar despedaçando a cidadania em uma multiplicidade
infinita de reivindicações. [...] Em resposta precisamos de uma concepção
estratégica do Estado e do mercado que articule as diferentes modalidades de
cidadania nos velhos e nos novos cenários, mas estruturados
complementarmente. (CANCLINI, 2006, p. 36/37).

As propostas de independência e desenvolvimento da América Latina buscaram


compatibilizar o modernismo cultural com a pseudo-modernização econômica,
transpassados pelas tradições persistentes. Pretende utilizar-se da “participação através
da ordem do consumo” e dos meios de comunicação para desenvolver o reconhecimento
recíproco das diferenças, pois “a cidadania já não se constitui apenas em relação a
movimentos sociais locais, mas também em processos de comunicação de massas.”
(CANCLINI, 2006, p. 37/110).

Compreender essas novas formas de relacionamento entre os indivíduos e o


Estado, é a chave para que se consiga entender e aperfeiçoar as conexões transmodernas
que necessitam ser concebidas por políticas de hibridação e a interculturalidade.
“Estudar o modo como estão sendo produzidas as relações de continuidade, ruptura e
hibridização – entre sistemas locais e globais, tradicionais e ultramodernos – no
desenvolvimento cultural é, hoje, um dos maiores desafios para se repensar a identidade
e a cidadania.” (CANCLINI, 2006, p. 138).

Importa observar que constantemente durante sua história os países latinos


vivenciaram processos de hibridação em suas culturas, haja vista o continente ter sido
colonizado por povos de culturas e identidades diversas, e na medida em que há uma
miscigenação de raças e uma integração entre culturas que compartilham elementos
entre si, ocorre naturalmente uma dualidade coexistencial.

Atente-se que, de acordo com o autor, os processos de hibridação são uma das
modalidades de interculturalidade, no qual a “interculturalidade remete à confrontação e
ao entrelaçamento, àquilo que sucede quando os grupos entram em relações e trocas
[...], implica que os diferentes são o que são, em relações de negociação, conflito e
empréstimos recíprocos.” (CANCLINI, 2009, p. 17). Em muitos casos essa relação não
é só de enriquecimento ou de apropriação pacífica, e sim conflitiva. É o denominado
“choque entre as culturas.”

Ao abordar a intensa interculturalidade que nos compõe como indivíduos e


grupos, Canclini retoma e amplia a preocupação antropológica com aquilo que nos
diferencia ou homogeneíza. Busca a partir de uma análise sociológica e comunicacional
estabelecerem uma relação entre a hibridação e interculturalidade presente nas
sociedades. Enfrenta temas como a desigualdade e a diversidade e suas conexões ou
desconexões nas relações individuais e coletivas inseridas nas grandes redes que
atravessam e constituem o mundo moderno.

Com o tempo, vamos concebendo a modernidade não como um estágio


homogêneo e estático, mas como um desenvolvimento que inclui diversas modalidades
de crescimento econômico, de pluralidade cultural e com ampla diversidade. Nas
condições atuais da globalização encontramos razões crescentes para empregar os
conceitos de mistura e hibridação.
As políticas de hibridação serviriam para trabalhar democraticamente com as
divergências, para que a história não se reduza a guerras entre culturas. [...] Podemos
escolher viver em estado de guerra ou estado de hibridização. (CANCLINI, 2003, p. 18)

CONCLUSÃO:

Não há dúvida de que vivemos num período em que as fronteiras físicas se


diluem dando lugar a uma multiculturalidade fértil e evidente, na qual o valor da
modernização deriva não apenas do que separa nações, etnias e classes, mas
principalmente da interculturalidade dinâmica vivenciada pelos povos e pelas nações.

A partir da análise da obra de Canclini, observa-se que sua ótica sobre as


interconexões na América Latina reflete o resultado dos cruzamentos socioculturais em
que o tradicional e o moderno se misturam, abordando aspectos do que pode ser
concebido como culto, popular e massivo.

A hibridação ocorre nas mais diversas áreas da vida em sociedade, sendo que, o
autor faz abordagens baseado no trabalho conjunto das ciências sociais, gerando assim
uma nova concepção da modernização latino-americana. Procura substituir o
tradicional, na busca pela tentativa de renovação em diversos setores encarregados da
heterogeneidade multitemporal de cada nação.

A compreensão da modernidade necessita de uma observância simultânea entre


as formas de entrada e saída que nela ocorrem, haja vista que o período temporal em
que nos situamos envolve as condições de participação e de heterogeneidade nas
relações existentes. Os agentes sociais que participam dos campos culto, popular e
massivo, reorganizam ações, procedimentos, atenuando as fronteiras existentes entre os
estilos e os seus componentes.

Nesse aspecto, a interculturalidade é entendida como um horizonte de diálogo


equilibrado no espaço de negociação e reconhecimento do pluralismo cultural no qual o
hibridismo está inserido. Traz em seu âmago, os preceitos de que nenhuma cultura é
absoluta, mas uma possibilidade constitutivamente aberta à possível hibridação por
outras culturas.
A interculturalidade define a sua proposta como uma nova concepção das
relações entre as culturas. Almeja uma convivência cultural em igualdade de condições,
considerando o pluralismo cultural como uma perspectiva de diálogo entre as espécies
de culturas e as sociedades emergentes, nas quais as etnias, os grupos e classes sociais
se reconhecem em suas diferenças buscando uma maior compreensão e valorização.

Entretanto, a hibridização proposta pelo autor não revela esta faceta dialogal,
cooperativa e harmônica entre as culturas, em especial entre as culturas hegemônicas e
as subjugadas. Nesse ponto específico reside a contribuição da teoria proposta por
Canclini, utilizar-se do hibridismo cultural como canal de diálogo para repensarmos os
vínculos entre cultura e poder, uma reconceitualização híbrida estruturada pela
interculturalidade.

A hibridação num debate intercultural e justo com o poder simbólico cultural


dominante permitiria buscar formas de mediação, de vias diagonais para gerir os
conflitos, comportando o reconhecimento e a satisfação das necessidades dos povos
com dignidade e com respeito à diversidade.

É nesse espaço transformador e de diálogo híbrido entrecruzado pela


interculturalidade é que se poderá buscar formas alternativas de fundamentação, talvez
de um pluralismo jurídico do tipo progressista-integrador, quem sabe dos direitos
humanos como processo de hibridação intercultural.

REFLEXÕES:

Decompondo a obra de Canclini, algumas reflexões emergem da constante e


dinâmica simbiose existente na interrelação entre culturas e processos culturais
presentes na sociedade multicultural.

Para que se assegure a formação sólida de um principio que refute a concepção


de hierarquia entre as culturas existentes, seja ela dominante ou subalterna, seria
necessário a transformação da concepção de direitos humanos em premissa inderrogável
da dignidade da pessoa humana, assentando-se na diferença, na diversidade e na
emancipação cultural dos povos.
A hibridação como mecanismo de diálogo intercultural – por intermédio da
tríade culto, popular e massivo -, intercederia e sustentaria a implementação de políticas
democráticas a fim de autorizar a configuração de um patrimônio comum de valores e
de direitos que subjuguem o localismo e a globalização hegemônica, inaugurando
assim, um novo tempo.

REFERÊNCIAS:

CANCLINI, Néstor Garcia. Diferentes, Desiguais e Desconectados. Rio de Janeiro:


Editora UFRJ, 3. ed. 2009.

__________. Néstor Garcia. Latino-americanos à procura de um lugar neste século.


São Paulo: Iluminuras. 2008.

__________. Néstor Garcia. Consumidores e Cidadãos: conflitos multiculturais da


globalização. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 6. ed. 2006.

___________, Néstor Garcia. Culturas Híbridas: estratégias para entrar e sair da


modernidade. São Paulo: Edusp, 4. ed. 2003.

Você também pode gostar