Você está na página 1de 51

1

Sumário
HISTÓRIA NOVA, HISTÓRIA URBANA E HISTÓRIA DA LEGISLAÇÃO
URBANÍSTICA .................................................................................................. 4

O LUGAR DA LEGISLAÇÃO NA HISTORIOGRAFIA DO URBANISMO


NO BRASIL ..................................................................................................... 10

O LUGAR DA LEGISLAÇÃO NO URBANISMO BRASILEIRO ............. 14

O LUGAR DOS PRESSUPOSTOS MODERNISTAS NA LEGISLAÇÃO


URBANÍSTICA ................................................................................................ 17

ESTUDO DE CASO.............................................................................. 24

Para Além da Lei: Legislação Urbanística e Cidadania (São Paulo 1886-


1936)............................................................................................................... 24

Introdução ......................................................................................... 24
Separar e reinar: nasce o bairro residencial exclusivo ...................... 26
Inclusão, exclusão e cidadania.......................................................... 30
0 papel do Estado: serviços urbanos e os bairros populares ............. 33
A crise dos anos 20 na cidade das multidões .................................... 37
A ponta do iceberg: a questão do arruamento irregular ..................... 41
A cidade popular pode ser anistiada e a cidade burguesa se defende . 45

Conclusão ......................................................................................... 46
DO ESTATUTO DA CIDADE AO CÓDIGO DE URBANISMO .............. 58

Introdução ......................................................................................... 58
LEGISLAÇÃO URBANA E REGISTRO Competência da União para legislar sobre direito urbanístico ........... 59
A legislação urbanística federal......................................................... 60
IMOBILIÁRIO
Deficiências da legislação federal ..................................................... 61
A Experiência internacional em direito urbanístico ................................ 63

Sugestão de agenda ......................................................................... 65

1
2 3

REGISTRO DE IMÓVEIS ..................................................................... 66

Princípio da continuidade .................................................................. 66


FACUMINAS
Princípio da especialidade objetiva ................................................... 68
Princípio da especialidade subjetiva ................................................. 71
Princípio da Inscrição ou do Registro ................................................ 72
Princípio da Legalidade ..................................................................... 75
Princípio da prioridade ...................................................................... 76
O NOVO PAPEL DOS BENS IMÓVEIS NUMA PERSPECTIVA CIVIL- A história do Instituto Facuminas, inicia com a realização do sonho de um

CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE HUMANA .............................................. 80 grupo de empresários, em atender à crescente demanda de alunos para cursos
de Graduação e Pós-Graduação. Com isso foi criado a Facuminas, como
A função econômica e social do Registro de Imóveis diante do princípio
entidade oferecendo serviços educacionais em nível superior.
constitucional da dignidade da pessoa humana .............................................. 86
A Facuminas tem por objetivo formar diplomados nas diferentes áreas de
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ...................................................... 99
conhecimento, aptos para a inserção em setores profissionais e para a
participação no desenvolvimento da sociedade brasileira, e colaborar na sua
formação contínua. Além de promover a divulgação de conhecimentos culturais,
científicos e técnicos que constituem patrimônio da humanidade e comunicar o
saber através do ensino, de publicação ou outras normas de comunicação.

A nossa missão é oferecer qualidade em conhecimento e cultura de forma


confiável e eficiente para que o aluno tenha oportunidade de construir uma base
profissional e ética. Dessa forma, conquistando o espaço de uma das instituições
modelo no país na oferta de cursos, primando sempre pela inovação tecnológica,
excelência no atendimento e valor do serviço oferecido.

2 3
4 5

HISTÓRIA NOVA, HISTÓRIA URBANA E HISTÓRIA Em termos metodológicos, a diretriz principal diz respeito à ampliação das fontes:
não apenas escritas, mas também orais, imagéticas, estatísticas, etnográficas
DA LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA
etc. A explicação histórica deve, nessa perspectiva, dar-se pela variedade de
questionamentos que se revelam mediante o reconhecimento de “vozes variadas
A partir dos anos 80, um número crescente de pesquisas vem-se
e opostas”, e não pelo ideal de uma voz oficial da história.4
direcionando para a construção da historiografia das cidades brasileiras,
estabelecendo um marco temporal em relação à escassa produção anterior Somente a partir dos anos 60, a interdisciplinaridade proclamada desde

nessa área. Um elemento a destacar – determinante para uma avaliação do os anos 20 se realiza, diluindo-se os rígidos limites entre o território da história e

estado da arte desse conjunto de trabalhos – é seu caráter multidisciplinar, uma algumas áreas das ciências humanas. Nos anos 70, o movimento passa a

vez que vêm sendo elaboradas, majoritariamente, por arquitetos, urbanistas, denominar-se Nova História, dissemina-se pela Europa e Estados Unidos, e os

planejadores, geógrafos e outros profissionais vinculados à questão urbana. historiadores a ele vinculados ampliam seu espaço nas instituições acadêmicas

Nesse sentido, a produção em curso pode ser inscrita no processo de ampliação e conquistam o acesso às editoras e à mídia. Várias questões vêm sendo

do território da história que, desde os anos 60, se dissemina na Europa e nos levantadas quanto aos rumos tomados pelo movimento dos Annales, as quais

Estados Unidos, a partir do movimento que tem origem no grupo de historiadores não cabem ser desenvolvidas no âmbito deste texto. A própria expressão Nova

ligados à revista Annales d’Histoire Économique et Sociale, surgida em 1929, na História vem sendo questionada, uma vez que nunca foram abandonados os

França, como reação aos paradigmas do historismo desenvolvido no século XIX. princípios elaborados no início do século.5 Há um debate em torno das relações
dos historiadores com o materialismo histórico, as quais oscilam entre o
dos pela visão do historismo, que tem no historiador alemão Leopold von
reconhecimento de Marx como um precursor de muitas de suas ideias e a
Ranke sua maior expressão. À história baseada unicamente nos grandes
negação do método e dos conceitos marxistas. A vinculação dos historiadores à
acontecimentos e nas fontes documentais oficiais, restrita à política e feita
Academia também é questionada: o movimento, que se inicia marcado pelo
somente por historiadores profissionalizados, contrapõem a aproximação da
inconformismo, pela negação da ortodoxia acadêmica, acaba, segundo alguns
história a outras disciplinas e a ampliação dos objetos da história e do campo de
autores, por entrar no jogo intramuros da Academia, e os procedimentos
fontes documentais. Nessa busca de ampliação do território da história e da
considerados revolucionários convertem-se “em simples instrumentos para
interdisciplinaridade está implícito o questionamento à especialização do
legitimação de trabalhos que graças a eles se inscrevem acadêmica e
historiador, que resultou da institucionalizatem um passado que pode ser
editorialmente”. 6
reconstruído, não se reconhecendo, portanto, a existência de uma história com
H maiúsculo. Assim, em contraposição a uma história referenciada em fatos que, Outra questão levantada refere-se ao fato de a chamada Nova História

nas palavras de Braudel, não passam de “espumas nas ondas do mar da ser considerada um movimento de disseminação de práticas e ideias relativas à

história”, propõem a “história total”.2 Os fatos não existem isoladamente, mas historiografia, e somente se constituir como uma “escola” no período em que é

constituem um tecido, têm uma organização na qual desempenham o papel de liderado por Fernand Braudel, quando novos conceitos são elaborados,

causa, fins, acasos etc., e cabe ao historiador “reencontrar essa organização”.3 conformando uma concepção de história.7 A principal contribuição da Nova

4 5
6 7

História ao pensamento e à prática da história seria, portanto, a introdução, por um momento de ruptura no processo de urbanização e privilegia-se o estudo da
Braudel, de uma nova dimensão da história, que diz respeito à apreensão das cidade associada à ideia de modernidade. Nessa perspectiva, a cidade moderna
forças profundas da história que só se deixam apreender e só atuam no tempo é considerada essencialmente diferente, não podendo, portanto, ser abordada
longo. Braudel decompõe a história em três planos escalonados, distinguindo como mera descendente dos núcleos urbanos do passado.
tempo histórico/tempo geográfico, tempo social e tempo individual. A eles
De modo geral, numa grande categoria denominada “história urbana”,
correspondem, respectivamente, as estruturas, as conjunturas, os
passam a enquadrar-se todos os estudos que tenham a cidade como locus,
acontecimentos. O tempo das estruturas é a longa duração, a quase imobilidade,
ocorrendo uma não-distinção entre o que é peculiar ao desenvolvimento da
uma vez que as estruturas permanecem constantes durante um tempo longo ou
cidade e aquilo que diz respeito à cultura de forma geral. As posições em torno
só evoluem de maneira imperceptível. O tempo das conjunturas são flutuações
dessa questão são diversas, com autores que consideram difícil, ainda hoje,
de dimensões diversas, oscilações cíclicas que se manifestam no contexto das
demarcar o que é um trabalho de história urbana, autores que apregoam um
estruturas. Os acontecimentos são engendrados pelas estruturas e conjunturas,
campo específico para a história do urbanismo, e autores que entendem a
são as rupturas ou o restabelecimento de equilíbrios.8
história urbana como o estudo da forma urbana como resultante de complexas
Mas em meio a todos os questionamentos, há uma concordância quanto forças sociais, psicológicas e econômicas. Em The History of Urban and
à contribuição do grupo na expansão do campo da história, bem como na Regional Planning – an annotated bibliography, publicado em 1981, Anthony
descoberta de novas fontes e novos métodos para explorá-las. Sua importância Sutcliffe faz um balanço dos trabalhos elaborados, em sua grande maioria, na
está não apenas na dilatação do território da história como também do Europa e Estados Unidos. Em suas conclusões, podem-se observar algumas
historiador, abrangendo temas e grupos sociais negligenciados pelos semelhanças com a condição atual da história urbana no Brasil, principalmente
historiadores tradicionais. em relação ao universo de pesquisas vinculadas às idéias e às práticas
urbanísticas, tanto no que se refere ao perfil dos pesquisadores, como no que
Como parte de tal processo, a história urbana desenvolve-se a partir da
se refere aos limites na utilização de recursos teórico-metodológicos. Cabe
história social e, no panorama internacional, os anos 60 constituem um momento
destacar que a maioria absoluta dos trabalhos levantados por Sutcliffe são
relevante, pois inicia-se a busca de demarcação de seus conteúdos.9 Um
elaborados no período pós-60, o que confirma esse momento como um marco
pressuposto que se impõe é assumir um ponto de ruptura no processo de
na expansão da área.
constituição da cidade, enfatizando, dessa maneira, uma abordagem
problematizada da urbe. Essa abordagem contrapõe-se à abordagem dominante O autor mostra que a maioria dos trabalhos são elaborados por
na história da cidade, desde o século XIX, que tem como pressuposto teórico a profissionais de diferentes áreas, mas vinculados à prática do planejamento
noção de crescimento evolutivo ou de desenvolvimento, “que faz com que a(s) urbano, e identifica uma imaturidade na historiografia do planejamento, a qual se
cidade(s) seja(m) considerada(s) um fato histórico, sempre o mesmo, um manifesta sob vários aspectos: há, por um lado, a necessidade de se estabelecer
fenômeno cujas transformações (materialidade e função) constituem o objeto de um “pedigree histórico” para reforçar a identidade da profissão e, por outro, a
pesquisa dos estudiosos”.Nesse sentido, considera-se a cidade do século XIX busca das origens para explicar as frustrações devidas às limitações atuais do

6 7
8 9

planejamento. Para Sutcliffe, a não-formação acadêmica dos autores na área de foram privilegiadas na explicação dos processos de estruturação urbana, para a
história faz que grande parte dos trabalhos não passem de catalogações de leis incorporação de aspectos estético-culturais. Se, nos anos 70, os marcos teórico-
ou biografias de planejadores, que não estabelecem relações com seus conceituais em suas várias vertentes eram em grande parte explicitados ou
períodos, ou, ainda, estudos de planos de cidades que não se explicam pelos reconhecíveis, nos trabalhos elaborados pós-80, com exceção daqueles
processos urbanos mais gerais. Ao mesmo tempo que detecta tais limites, vinculados à linha foucaultiana, tais questões vêm sendo minimizadas.
Sutcliffe afirma que a historiografia realizada por profissionais atuantes e
Nesse panorama, a legislação urbanística – aqui entendida como o
oriundos de todas as áreas das ciências sociais é de fundamental importância,
conjunto de regulamentações referentes ao parcelamento, uso e ocupação do
uma vez que a vitalidade da história do urbanismo está, justamente, no duplo
solo e às edificações – não foge à regra, com a agravante de não estar
vínculo com prática e teoria.
recebendo a devida atenção dos pesquisadores, embora seja o elemento
Semelhantes questões nos dizem respeito. A carência de teorização e constitutivo da disciplina do urbanismo mais desenvolvido, no Brasil, nas últimas
discussão conceitual e metodológica da história já foi apontada na análise de um cinco décadas. São poucos os trabalhos que vêm procurando inserir a legislação
universo limitado da produção brasileira, elaborada por Filgueiras & Fernandes como fato histórico no interior de uma história-problema, no sentido apontado
(1998). Vivemos um momento em que, a uma apropriação documental – uma por Veyne (1971). Ainda que a referência à legislação esteja presente na maior
verdadeira “saída dos armários” de relatórios, material iconográfico, planos, parte dos estudos sobre o urbanismo no Brasil, a legislação é, de certa forma,
relatórios etc. – corresponde uma não-apropriação metodológico-conceitual da naturalizada e, com raras exceções, ultrapassa o caráter de identificação das
disciplina história, que se expressa, por um lado, na quantidade de pesquisas leis por meio da listagem e descrição de seus conteúdos.
voltadas para a criação de bancos de dados e, por outro, no número significativo
Neste trabalho, procuramos levantar alguns pontos para a discussão dos
de trabalhos que se restringem a descrever cronologicamente planos, leis,
caminhos, abordagens e métodos em curso na historiografia da legislação
relatórios etc. Deve-se considerar que os trabalhos, no Brasil, além de
urbanística. O papel assumido pela legislação no urbanismo brasileiro constitui
sinalizarem a vitalidade de um campo temático multidisciplinar, constituem uma
um campo nebuloso e pouco explorado. Nos setores de urbanismo das
busca de ampliação de parâmetros teóricos e metodológicos para se transpor os
administrações municipais no Brasil, prevalece, há meio século, uma abordagem
limites interpretativos colocados pela pronunciada influência do referencial
legalista, ou seja, a legislação é colocada como uma meta em si, e não como um
marxista – desenvolvido, sobretudo, pela sociologia francesa dos anos 70 –, o
instrumento, dentre outros, para atingir determinadas metas de desenvolvimento
qual vinha marcando as pesquisas brasileiras. Assim, paralelamente ao
urbano. Se no período da Primeira República, quando começam a estruturar-se,
esquadrinhamento das fontes documentais, que vem permitindo iluminar todo
nas administrações públicas, as seções de obras que evoluem para seções de
um universo de constituição da engenharia, arquitetura e urbanismo brasileiros
urbanismo, a elaboração e execução dos planos de melhoramentos e,
que permanecia oculto, os trabalhos de história urbana refletem o deslocamento
posteriormente, dos chamados planos de conjunto, impõem-se como atividade
das interpretações fundamentadas exclusivamente em determinantes
privilegiada de urbanistas oriundos dos cursos de Engenharia. A partir dos anos
econômicos, em que as questões fundiária, imobiliária e de serviços urbanos
40, ocorre um nítido deslocamento da esfera de atuação desses órgãos.

8 9
10 11

Constrói-se um novo saber urbanístico – uma nova visão de atuação do Estado terra adquire o estatuto de mercadoria. Os trabalhos de Marx (1991), Fridman &
ante as novas formas de apropriação do espaço urbano – e os denominados Ramos (1992) e Fridman (1994) mostram como entre o regime jurídico do
órgãos de planejamento passam a atuar, fundamentalmente, como órgãos sistema de sesmarias do período colonial e a separação entre Igreja e Estado
normativos. A tal mudança corresponde uma nova estrutura organizacional do estrutura-se a propriedade fundiária no Brasil. Da distribuição gratuita de terras,
setor, assim como a construção de um novo perfil do urbanista – o profissional passa-se à aquisição onerosa, o que define os limites da propriedade em favor
generalista, com predominância de profissionais egressos dos cursos de do interesse público. Marx (op. cit.) mostra, de forma minuciosa, como persistem,
arquitetura. É nesse momento que se dá uma fissura entre arquitetura e por décadas, os privilégios dos grandes detentores de terra e os procedimentos
urbanismo: planejar passa a constituir-se como atividade desligada de projetar, do antigo sistema de distribuição de terras, e como, de forma tímida, os
e o zoneamento – abrangente ao conjunto da cidade e articulador de um conjunto municípios se adaptam à nova realidade político-administrativa, a partir da lei de
de parâmetros urbanísticos em zonas funcionais – consolida-se como o principal 1850 e sua regulamentação em 1854, mediante a prática dos loteamentos e dos
instrumento de planejamento. códigos de posturas, atos e resoluções.

Esses trabalhos permitem detectar a constituição de um sistema legal em


O LUGAR DA LEGISLAÇÃO NA HISTORIOGRAFIA
torno da propriedade privada – da exigência da escritura pública de compra e
DO URBANISMO NO BRASIL venda (1855) à criação do imposto predial (1878) e taxação de terrenos não-
No período anterior à década de oitenta, dois trabalhos destacam-se pela construídos em freguesias urbanas centrais (1897) – e como, já em fins do
abordagem da legislação urbanística: a tese para concurso de cátedra na Escola século XIX, se pode estabelecer uma relação entre tais medidas e o processo
Politécnica da Universidade de São Paulo, de Francisco de Paula Andrade, de de valorização imobiliária e fundiária. Além disso, apontam que, juntamente com
1966, e o livro de Nestor Goulart Reis Filho, de 1968. Embora Andrade coloque o aparato legal, ocorre uma estruturação da administração e novas funções se
que não visa a “história”, seu trabalho pode ser considerado pioneiro, pois constituem no quadro administrativo municipal. A segunda vertente caracteriza-
fornece um quadro abrangente da legislação brasileira, desde o Império até a se por estudos que têm como marco temporal a Primeira República, nos quais
primeira metade do século XX, apontando suas relações com a legislação prevalece a interpretação da legislação como instrumento de dominação e
urbana portuguesa. Reis Filho, ao estudar a evolução urbana do Brasil nos normatização da vida das classes populares e de atividades que se incluem na
séculos XVI e XVII, aponta os princípios reguladores e as instituições esfera das ilegalidades urbanas, referenciadas nos pressupostos higienistas
responsáveis por sua implementação, no âmbito da política urbanizadora no (Rolnik, 1983; Feldman, 1987; Lira, 1991; Marins, 1998). Nesses trabalhos, a
Brasil-colônia. Da análise dos trabalhos publicados em livros, anais de encontros lógica disciplinadora de um urbanismo saneador – expressão de um projeto
e seminários, dissertações de mestrado e teses de doutorado, no período pós- político de intervenção do Estado na questão social nas cidades – é desvendada,
80, podem ser identificadas três vertentes dominantes nas pesquisas voltadas tanto nas formas de habitação (Rolnik, 1983; Lira, 1991; Marins, 1998) como nos
para a historiografia da legislação urbanística no Brasil. Uma primeira vertente territórios de prostituição (Feldman, 1987). A questão da segregação espacial,
enfoca os aspectos normativos referentes à propriedade fundiária, emanados por meio da análise das primeiras normas que extrapolam a construção de
pelo poder eclesiástico até a promulgação da Lei de Terras, em 1850, quando a

10 11
12 13

edifícios contidas nos Códigos de Posturas aprovados na última década do legislação, principalmente no que se refere ao zoneamento e aos instrumentos
século XIX, em inúmeras cidades, constitui o eixo direcionador de tais análises. pós-Constituição de 1988.

Uma terceira vertente caracteriza-se pela precedência de estudos Esse conjunto de trabalhos representa o início de um processo de
voltados para os efeitos, repercussões e impactos no espaço urbano com a construção de uma história da legislação urbanística brasileira e de
aplicação da legislação, os quais têm como referência a escala assumida pela compreensão do papel que vem desempenhando no desenvolvimento de
expansão das cidades brasileiras mediante estratégias de solução da moradia à algumas cidades brasileiras. De modo geral, destacam seu caráter elitista,
margem da legislação: loteamentos clandestinos, cortiços e favelas. Nessa resultante do diálogo exclusivo entre os órgãos responsáveis por sua elaboração
vertente, podem ser discriminados estudos centrados na inefetividade da lei e os setores mais poderosos da sociedade, e seu uso como instrumento de
(Grostein, 1987; Rolnik, 1996; Nery Junior, 1998); estudos que enfatizam a segregação espacial. Há, por vezes, uma supervalorização do papel da
relação entre a legislação e a valorização imobiliária (Souza, 1994; Somekh, legislação na conformação do espaço urbano, o que acarreta que, por meio da
1996), e estudos que, com uma visão panorâmica da legislação, apontam seus legislação, se cristalizem modelos interpretativos genéricos. As linhas
efeitos no processo de planejamento (Rezende,1997) e na configuração da dominantes permitem não só detectar recortes temporais privilegiados pelas
paisagem urbana (Medina, 1997). No âmbito da questão da inefetividade da pesquisas bem como o nível de aprofundamento da reflexão. O período da
legislação, segundo os procedimentos instituídos de aprovação e fiscalização de Primeira República, no que se refere à perspectiva higienista de controle do
loteamentos e da relação poder público/loteador, Grostein (1987) mostra que se espaço urbano, é o mais profundamente estudado e desvendado. Uma
consolida uma prática de desobediência consentida e permanente anistia a explicação plausível para tal predominância é o fato de a questão higienista ter
situações produzidas fora das normas. Rolnik (1997) entende a ineficácia da sido amplamente estudada por diferentes disciplinas e o papel da legislação,
legislação em regular a produção da cidade como a verdadeira fonte de seu claramente situado no campo de um projeto político e social. Nesse sentido, os
sucesso político, financeiro e cultural, num contexto urbano de concentração de trabalhos ultrapassam a identificação das leis e penetram nos modelos
riqueza e poder. A lei age, segundo a autora, como delimitadora das fronteiras habitacionais resultantes do ideário higienista, no qual a norma é apenas um dos
do poder, conferindo significados e gerando noções de civilidade e cidadania, instrumentos de concretização (Rolnik, 1983; Lira, 1991), nas instituições criadas
mesmo quando não é capaz de determinar a forma final da cidade. A relação para a gestão dos territórios e nos procedimentos de aplicação das normas, seja
entre legislação e valorização imobiliária é analisada por meio do estudo do na esfera da habitação operária, com a Inspectoria de Hygiene de Pernambuco
processo de verticalização, entendido como resultante de uma estratégia de (Lira, 1991), seja na esfera dos territórios de prostituição, com a Delegacia de
valorização de múltiplas frações do capital (Souza, 1994) e como resultado da Costumes, em São Paulo (Feldman, 1987).
multiplicação do solo urbano possibilitada pelo elevador (Somekh, 1996). Numa
A legislação desse período, embora envolva questões espaciais, não
perspectiva não-historiográfica, estudos sobre os efeitos dos instrumentos
contém um claro conteúdo urbanístico, e estabelece-se como legislação
normativos vêm sendo realizados em torno de aspectos específicos da
sanitária. Para os períodos posteriores, quando se constitui uma legislação
urbanística stricto sensu, a lógica de construção – dos conceitos às instituições

12 13
14 15

e processos de elaboração e aprovação – ainda se mantém como um campo administrativa americana da Scientific Management School. Num estudo sobre
pouco explorado. Uma vertente emergente de pesquisa vem atuando na a reforma do serviço civil no Brasil, no período de 1945 a 1964, Graham (1968)
perspectiva de desvendar os processos de construção de instrumentos mostra que a introdução dessa abordagem na administração pública no período
urbanísticos, e não apenas seus efeitos, mediante a análise das referências anterior a 1930 articula-se a uma tradição legalista brasileira, originária dos
urbanísticas neles contidas e dos setores e instituições envolvidos em sua vínculos com os princípios administrativos da França e Portugal, herdados, por
formulação e aplicação, na esfera do Executivo e do Legislativo. (Souza, 1994; sua vez, da tradição romana.
Grostein, 1987; Feldman, 1996, 1997, 1998; Campos, 1996, 1998). No entanto,
A visão legalista consiste no enfoque da lei como uma meta em si, e não
a produção é fragmentada, com recortes temporais e espaciais restritos, além
como um instrumento, entre outros, para se atingir metas, o que leva à
de se deter em aspectos específicos da legislação. De fato, há uma
preferência por leis antecipatórias em lugar da experimentação, e à crença de
concentração de trabalhos sobre São Paulo, Rio de Janeiro e Recife, o que,
que nada pode ser assumido sem prévia legislação ou regulação. A ênfase na
como nos demais estudos de história urbana, não permite delinear um panorama
lei é, segundo Graham, vista como um ideal, ao invés de algo a ser aplicado a
abrangente da questão, nem discriminar particularidades regionais.
circunstâncias presentes com o máximo de precisão. Para o autor, uma
expressão da experiência legal no Brasil é a ênfase e valorização da codificação
O LUGAR DA LEGISLAÇÃO NO URBANISMO
das leis.
BRASILEIRO
Os trabalhos de Reis Filho (1968) e Delson (1979) apontam o rigor no
Uma das questões fundamentais que permanecem pouco elaboradas na
estabelecimento de padrões para a construção de cidades, no Brasil, pelos
historiografia da legislação urbanística no Brasil se refere ao lugar ocupado pelas
portugueses, desde o século XVIII, mas em que medida a visão legalista se
normas, a partir do momento em que ideias e práticas urbanísticas são
introduz desde as primeiras regulamentações do solo urbano e os matizes que
institucionalizadas na administração pública. Uma hipótese que levantamos é a
assume ao longo dos séculos XIX e XX representam um campo a ser
de que, a partir dos anos 40, se consolida uma visão legalista do urbanismo
investigado. O simples arrolamento das leis promulgadas não revela o processo,
brasileiro. Ao processo de declínio da importância do plano como instrumento de
uma vez que a legislação urbanística é parte de um aparato que constitui o
intervenção no espaço urbano corresponde a ascensão da legislação como
sistema legal (ou Estado legal), variável de país a país, e que repercute nas
instrumento por excelência do planejamento. Como mostramos em pesquisa
abordagens de urbanismo e planejamento urbano. O sistema legal não é apenas
realizada sobre a cidade de São Paulo, no final da década de 1940, inicia-se um
um conjunto de normas, mas parte constituinte do Estado. Portanto o “Estado
processo em que o zoneamento passa a ocupar o lugar do plano e, em pesquisa
legal” é a parte do Estado personificada num sistema legal, que penetra e
em desenvolvimento, podemos avaliar essa mudança em escala nacional, e não
estrutura a sociedade, fornecendo um elemento básico de previsibilidade e
apenas nos grandes centros urbanos. Tal processo não é fortuito, e dá-se como
estabilidade às relações sociais, e pressupõe não apenas a promulgação de leis,
parte da introdução, no Brasil, de novos princípios de administração pública,
mas formas de aplicação, caráter público, independência do judiciário etc.16
desde os anos 30, numa perspectiva da administração desvinculada da política
e do planejamento como técnicas de administração, baseados na teoria

14 15
16 17

Talvez se pudesse admitir, numa perspectiva braudeliana, que o sistema legal momento, diferentes conceitos de controle. Assim, a legislação urbanística,
constitui um elemento de longa duração. como parte do sistema legal de uma sociedade capitalista enquanto tal, estrutura
e garante relações espaciais que são intrinsicamente desiguais, mas os limites
A legislação urbanística é, portanto, parte de um determinado sistema
entre o legal e o ilegal variam no tempo. São socialmente construídos.
legal e de um determinado modelo de gestão que se apoiam em determinada
teoria administrativa. Para se entender o papel que a legislação urbanística
O LUGAR DOS PRESSUPOSTOS MODERNISTAS
assume em cada momento do processo de desenvolvimento urbano no Brasil, é
necessário desvendar a lógica do sistema legal vigente, assim como as teorias
NA LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA
administrativas que informam as estratégias de gestão. É necessário, também, Um dos aspectos privilegiados nos trabalhos de história urbana
resgatar as instituições que, em cada momento, participaram da formulação e/ou produzidos a partir dos anos 80 vem sendo a influência das referências
assumiram as funções de aplicação e fiscalização das normas urbanísticas. Por internacionais nas ideias e práticas urbanísticas desenvolvidas no Brasil. De
fim, é necessário desvendar os procedimentos adotados, considerando que modo geral, esses trabalhos vêm mostrando que, na concepção dos planos
teorias administrativas engendram modelos institucionais que originam práticas elaborados até 1930, dos quais uma parcela significativa – entre planos de
que, por sua vez, se articulam a práticas herdadas de outros momentos. Do melhoramentos, de embelezamento e de conjunto – chegou a ser executada,
ponto de vista das instituições, da organização e dos procedimentos adotados prevaleceu a influência europeia. Os anos 30 aparecem como um momento de
na implementação das leis, alguns trabalhos oferecem uma contribuição transição, em que as influências europeias começam a mesclar-se a princípios
relevante, uma vez que utilizam como fontes de pesquisa processos de do urbanismo americano, por meio das parkways, zoneamento, e das versões
aprovação das próprias leis, de loteamentos e de edificações (Grostein, 1987; americanas das cidades-jardins de Howard, como o princípio das unidades de
Feldman, 1989, 1996; Simões, 1990; Lira, 1991). Tais fontes de pesquisa vizinhança de Radburn. Nas experiências de cidade novas, a partir dos anos 30,
permitem, por meio de uma leitura menos genérica, entender a legislação como começam a ser introduzidos princípios modernistas, que se realizam de forma
um processo não-linear, mas como o resultado de embates técnicos e políticos acabada em Brasília. Se nos planos as referências internacionais são facilmente
e, ao mesmo tempo, desvendar que relação se estabelece entre cidadão e demarcadas, seja pelos traçados propostos, seja por explicitações de seus
Estado. autores em relatórios, textos, memoriais, o mesmo não ocorre em relação à
legislação. A legislação é cumulativa. Novas formas de controle com as mais
O estudo sistemático das instituições que compõem o sistema legal e os
diversas referências são constantemente incorporadas, como peças legais
respectivos procedimentos são um caminho, também, para se desvendar o
parciais, artigos, num processo contínuo de reformulações, exclusões e
avesso da visão legalista brasileira – a inefetividade das leis –, em cada
acréscimos, que não alteram, necessariamente, nem o sistema legal, nem as
momento. Se admitirmos que a lei, “em seu conteúdo e em sua aplicação, é
instituições e seus procedimentos.
basicamente (como é o Estado do qual ela faz parte) uma condensação dinâmica
de relações de poder, não apenas uma técnica racionalizada para ordenar as Os estudos mostram que os padrões reguladores portugueses se
relações sociais”,17 instituições e procedimentos engendram, em cada estabeleceram nas cidades e vilas do Brasil Colônia, e a legislação sanitária do

16 17
18 19

urbanismo higienista de finais do século XIX utiliza as referências inglesas e modernistas, o único documento que vem sendo utilizado como referência é a
francesas. As normas de controle de alinhamento e nivelamento das vias, assim Carta de Atenas, fundamentalmente no que se refere ao zoneamento funcional
como a localização de atividades consideradas nocivas ao meio urbano, as
A análise dos textos produzidos pelos arquitetos vinculados ao movimento
condições de higiene e salubridade das edificações e do espaço público,
modernista no âmbito dos CIAMs (Congressos Internacionais de Arquitetura
utilizando princípios de controle e disciplina formulados nas cidades europeias,
Moderna) revela que a legislação é colocada como um aspecto fundamental, e
são consolidadas nos chamados Códigos de Posturas Municipais, tornados
suas propostas nesse campo vão muito além do zoneamento funcional e da
obrigatórios no final do século XIX. A partir do término dos anos 20, nos
Carta de Atenas. Os arquitetos desenvolveram uma verdadeira concepção de
chamados Códigos de Obras, permanecem os princípios higienistas europeus,
legislação urbanística que tem como eixo principal o questionamento, em
e são identificados princípios da legislação americana, como é o caso, em São
múltiplos aspectos, do sistema regulador do urbanismo higienista. A referência
Paulo, dos padrões de arranha-céus. A partir dos anos 30, a referência
à legislação vigente nos anos 20, notadamente na França e na Alemanha, como
americana se impõe, principalmente na adoção do zoneamento, o qual é
entrave ao “desenvolvimento da arquitetura”, segundo os pressupostos do
incorporado à totalidade da cidade nos Códigos de Obras do Recife, em 1936, e
movimento moderno – soluções para o espaço mínimo para viver, com uma boa
do Rio de Janeiro, em 1937, e em leis parciais em São Paulo, a partir de 1931.18
iluminação, com plantas livres e flexíveis, com disponibilidade de espaço exterior
A partir dos anos 30, passam a ser incorporados, também, princípios elaborados
livre com a construção verticalizada, e viabilizar a produção em série, a
no âmbito do movimento moderno
“standardização”, a racionalização e a economia, que implicam a utilização de
Podem-se identificar três correntes do pensamento urbanístico, entre as novos materiais e novos métodos de construção – é recorrente nos textos.
que são referência para o urbanismo no Brasil, que formulam concepções de
Os arquitetos vinculados ao movimento modernista apontam, antes de
legislação: o urbanismo higienista, que estabelece uma legislação sanitária; o
mais nada, a necessidade de se distinguir dois níveis da legislação: o nível
urbanismo americano dos anos 20, que reelabora o zoneamento alemão; e o
urbanístico, que deve tratar dos limites do indivíduo frente à comunidade e dos
movimento modernista, que se contrapõe à legislação de princípios higienistas
indivíduos entre si, e o nível da construção e da habitabilidade, que deve
vigente na Europa dos anos 20. Segundo Ebenezer Howard, embora princípios
assegurar certo grau de qualidade aos edifícios. É no III CIAM, realizado em
reguladores estejam implícitos na proposta espacial de cidades-jardins, não
1930, em Bruxelas, que se explicita com maior clareza a relação pretendida entre
chegam a propor uma concepção de lei. As leis sanitárias e o zoneamento
arquitetura e urbanismo. Corbusier propõe que se formulem, juntamente com o
americano vêm recebendo a atenção da maioria dos pesquisadores voltados
sistema urbano adequado à época maquinista, novas leis que devem conter o
para a historiografia da legislação urbanística no Brasil (Rolnik, 1983; Lira, 1991;
remembramento de terrenos – “verdadeira revolução na noção sagrada de
Souza, 1994; Feldman, 1996; Somekh, 1997; Nery Junior, 1998; Marins, 1998),
propriedade”, a fim de garantir a melhoria do alcance coletivo, as construções
e as formas como tais referências foram e são absorvidas pela legislação
em altura reunidas sobre pequena superfície edificada, enormes espaços livres,
urbanística brasileira estão sendo desvendadas. Em relação às propostas
supressão de pátios e corredores, construções sobre pilotis, e tetos-jardins.
Gropius propõe que, ao invés do limite de altura dos edifícios, se utilize o limite

18 19
20 21

da densidade populacional, ou seja, propõe que se regule a relação entre o Estado não assuma tal postura, os arquitetos colocam a alternativa da
superfície de moradia/volume edificável/superfície edificável, argumentando que autoajuda, estabelecendo-se a relação direta entre o habitante como usuário e
as condições higiênicas e econômicas se tornam mais vantajosas. o construtor como produtor. O nível de qualidade da moradia passa a ser assunto
exclusivo de ambos, e a regulamentação estatal, dessa maneira, passaria a ser
É importante destacar que a crítica ao controle de altura envolve aspectos
supérflua, com o passar do tempo.
econômico-distributivos (otimização possível por meio de construções
laminares), aspectos técnicos (viabilidade de utilização de estruturas em aço ou Finalmente, preconiza que os arquitetos contem não apenas com a ajuda
concreto armado) e, ainda, aspectos formais. Em relação a estes últimos, de diversos setores da ciência e da indústria, como também com a colaboração
preconiza a simultaneidade de diferentes tipologias habitacionais em um único dos usuários, ao invés de se guiarem apenas pelas leis. Assim, os arquitetos
complexo edificado, integrado, por sua vez, a serviços ligados à moradia. Nesse poderão entrar em cena como competidores da construção especulativa de
sentido, propõe a identificação entre a tipologia da moradia e a tipologia do moradias e, ao mesmo tempo, poderão liberar a construção de moradias dos
edifício, o que permitiria a concretização de volumetrias diferenciadas ou entraves de uma regulamentação antissocial. Considera que o padrão de
repetidas num mesmo conjunto. Em segundo lugar, destaca a necessidade de a moradia ideal imposto por uma visão estritamente legalista se mostrou
regulamentação assegurar a responsabilidade técnica e social dos produtores economicamente inviável nas circunstâncias do pós-guerra e,
das moradias, como também abarcar a responsabilidade da economia do consequentemente, as ações voltadas para a categoria de moradias mais
produto. Nesse sentido, as leis devem considerar as inovações nos métodos baratas passam a efetivar-se sem que a legislação se responsabilize por elas.
construtivos, nos conhecimentos higiênicos, nas novas formas de vida propostas Para o estabelecimento de normas ideais, considera imprescindível que o
pelos arquitetos, sem ignorar as circunstâncias econômicas. Estado garanta também seu cumprimento econômico em todas as situações,
como ocorre com outros tipos de normas.
Em terceiro, aponta para a necessidade de flexibilidade da legislação e
preconiza a maior participação das entidades de engenheiros e arquitetos no Na Carta de Atenas, as considerações sobre a legislação como
processo de elaboração e aplicação das leis. Assim, excetuando-se as leis que instrumento para fixar as condições da habitação moderna são uma constante.
limitam o direito de propriedade, as normas edificatórias não deveriam passar de Nesse documento, que reúne grande parte do repertório da arquitetura
normas gerais e deveriam permitir a maior liberdade possível na definição do modernista, além de incorporar soluções urbanísticas que já vinham sendo
programa da habitação, para o cumprimento das necessidades sociais e utilizadas em cidades europeias e americanas, Corbusier (1941) preconiza a
higiênicas e para a escolha de materiais e sistemas construtivos. Em quarto, “urgência de regulamentar, por um meio legal, a disposição de todo solo útil para
limita o papel do Estado ao controle da qualidade do produto. Com o mercado equilibrar as necessidades vitais do indivíduo em harmonia com as necessidades
livre e com o sistema de produção capitalista, o promotor, o construtor e o coletivas”. Essa postura de Corbusier – inovadora em relação à legislação – já
usuário podem tornar-se pessoas totalmente independentes. Então, cabe ao estava presente em sua intervenção no III CIAM, em 1930, quando afirma que o
Estado proteger os particulares com normas edificatórias contra a ação de objetivo do Congresso, realizado em torno do tema “Métodos Construtivos
especialistas não-qualificados que ofereçam moradias de baixa qualidade. Caso Racionales. Casas Bajas, Medias y Altas”, é chegar a uma modificação da

20 21
22 23

legislação municipal em diversas cidades do mundo. As propostas modernistas, uso e ocupação do solo uma ruptura com a concepção centrada na edificação e
segundo o arquiteto, não admitem uma mudança parcial da legislação, mas fortemente marcada pela visão higienista que se inicia com os Códigos de
exigem que se estabeleça um conjunto de novas regras, que devem partir do Posturas do final do século XIX. Essa ruptura se dá, fundamentalmente, com a
reagrupamento do solo – “único caminho que conduz ao urbanismo” –, uma vez introdução de elementos reguladores de abrangência urbanística e de uma visão
que a propriedade subdividida, o caráter inalienável da propriedade, condena de urbanismo que se justifica explicitamente em termos econômicos. Parte
“toda tentativa de melhorias coletivas”. dessa mudança se verifica com a introdução do zoneamento abrangente no
conjunto da cidade, seguindo o modelo adotado no início do século em Nova
Na verdade, as propostas modernistas para a legislação podem ser
York, e não do zoneamento proposto por Le Corbusier. Este só se efetivará em
interpretadas como a proposta de um novo sistema legal, e algumas questões
1960, com a aprovação das “Normas para Construção em Brasília”.
permanecem no debate atual sobre a legislação urbanística no Brasil, embora
não se explicite tal vínculo. Suas propostas envolvem aspectos formais para a Nas demais cidades brasileiras – novas ou existentes, os códigos de
tradução das soluções de edifícios e para a organização do espaço urbano, além obras assimilarão dos modernistas, num primeiro momento, os princípios de
de questões técnicas, mas também aspectos econômicos e sociais que se ocupação do lote que relacionam altura de edifícios e solo livre, e,
realizam no processo de elaboração e decisão sobre a aplicação das leis, e que posteriormente, padrões de ocupação para grandes conjuntos residenciais, com
pressupõem a redefinição das relações entre o Estado e os demais atores a definição de espaços coletivos, ruas exclusivas para pedestres etc. Ambas as
envolvidos na construção das cidades. Além disso, num evidente propósito de estratégias evoluem para um processo de gradativa mudança dos tecidos
deslocar médicos e engenheiros deste campo de atuação, o papel atribuído aos urbanos existentes e podem ser interpretadas como formas de reagrupamento
arquitetos e suas associações é destacado.20 O estudo, ainda em processo, de do solo. Essa é, sem dúvida, a mais significativa influência do ideário modernista
como esse elenco de questões relativas à regulamentação foi assimilado, no que se realiza mediante mecanismos reguladores do uso e ocupação do solo. A
Brasil, pelos responsáveis pela elaboração das leis, por arquitetos e engenheiros análise das referências modernistas na legislação urbanística, assim como de
responsáveis por projetos de cidades novas e de habitações econômicas, vem outras referências que formularam concepções de legislação, exigem a
demonstrando que se dá de forma bastante limitada. No âmbito dos debates em identificação das estratégias utilizadas para as transferências. O foco da
torno da legislação, a partir dos anos 30, as concepções modernistas têm pesquisa sobre legislação unicamente no enunciado das leis vem-se mostrando
repercussão significativa. Em congressos e periódicos de entidades de insuficiente. Tomando Brasília como exemplo, pode-se observar que a legislação
arquitetos e engenheiros, a reivindicação por mudanças nos códigos de obras aprovada logo após a inauguração da capital absorveu os princípios formais das
com o intuito de atenderem a um novo tempo é recorrente. propostas modernistas, e foi, sem dúvida, formulada por arquitetos, uma vez que
a categoria vem, há décadas, assumindo a função de legisladores, no Brasil. No
A simplificação das leis, a maleabilidade para se atender aos materiais e
entanto, a peça legal de 1960 foi, assim como grande parte da legislação
técnicas modernas de construção, a incorporação de setores da sociedade para
urbanística no Brasil, aprovada por decreto, ou seja, ocorrem mudanças que
a redação das leis conjuntamente com técnicos são questões enfocadas por
atendem aos requisitos formais, os arquitetos conquistam um espaço como
engenheiros, arquitetos e urbanistas. Nos anos 30, esboça-se na legislação de

22 23
24 25

formuladores de leis, mas tudo isso se incorpora ao sistema legal preexistente interessantes da lei. Aparentemente, esta funciona como uma espécie de molde
no Brasil. da cidade ideal ou desejável. Mas no caso de São Paulo, e da maioria das
cidades Latino-Americanas, a legislação urbana regula apenas uma pequena
O estudo da legislação sob a ótica modernista torna evidente a
parte do espaço construído, uma vez que a cidade não é resultado da aplicação
necessidade de se discutir a questão metodológica para interpretar as
inerte do modelo contido na lei. A cidade real é consequência da relação que a
permanências e mudanças na legislação urbanística. Um caminho possível
legalidade urbana estabelece com o funcionamento concreto dos mercados
talvez esteja na identificação dos tempos propostos por Braudel: discriminar o
imobiliários que atuam na cidade. Entretanto, ao definir formas permitidas e
que permanece constante durante um tempo longo, evoluindo de maneira
proibidas de produção do espaço, a legislação define territórios dentro e fora da
imperceptível; o que flutua, oscila de forma cíclica, e o que não passa de
lei. Essa delimitação tem consequências políticas importantes, na medida em
acontecimentos, representando rupturas ou restabelecimento de equilíbrios.
que pertencer a um território fora da lei pode significar uma posição de cidadania
Talvez seja esse um dos caminhos para se entender o passado e formular
limitada. Não existir, do ponto de vista burocrático ou oficial para a administrada
propostas para o presente.
cidade, é estar fora do âmbito de suas responsabilidades para com os cidadãos.
ESTUDO DE CASO Na história da cidade de São Paulo, e de sua legislação urbanística, esta
tensão – legalidade/ilegalidade – esteve sempre presente, fortemente
Para Além da Lei: Legislação Urbanística e identificada com espaços de alta renda, fortemente regulados, que se
Cidadania (São Paulo 1886-1936) contrapõem aos espaços populares não regulados ou em desacordo com a lei.
Repetidas infinitas vezes ao longe da história, esta tensão sintetiza o movimento
Introdução
de um mercado imobiliário cuja rentabilidade e ritmo de valorização são definidos
Uma teia invisível e silenciosa se estende sobre o território da cidade: a
por uma dupla lógica: por um lado, são mais lucrativos os agenciamentos
legislação urbana, coleção de leis, decretos e normas que regulam o uso e
espaciais capazes de gerar as maiores densidades e intensidades de ocupação.
ocupação da terra urbana. Mais do que definir formas de apropriação do espaço
E por outro, se valorizam os espaços altamente diferenciados e exclusivos. A
permitidas ou proibidas, mais do que efetivamente regular o desenvolvimento de
intensidade de uso é garantida através do estabelecimento de um território fora
cidade, a legislação urbana atua como linha demarcatória, estabelecendo
da jurisdição de lei, aonde a terra pode se subdividir ao infinito; a condição é não
fronteiras de poder. Na verdade, a legalidade urbana organiza e classifica
"contaminar" as vizinhanças. Daí decorre um duplo movimento estabelecido pela
territórios urbanos, conferindo significados e legitimidade para o modo de vida e
lei: por um lado garantir a "proteção" de determinados espaços contra a invasão
micropolítica dos grupos mais envolvidos na formulação dos instrumentos legais.
de usos e intensidades de ocupação degradantes, de outro definir uma fronteira,
Por outro lado, a legislação discrimina agenciamentos espaciais e sociais
para além da qual estes mesmos usos seriam tolerados. Este movimento se
distintos do padrão sancionado pela lei. Assim, a legislação atua como um forte
expressa pela primeira vez, no Código de Posturas de 1862 , quando se demarca
paradigma político-cultural, mesmo quando fracassa na determinação, na
pela primeira vez uma zona urbana (correspondente à área central da cidade)
configuração final da cidade. Este é, sem dúvida, um dos aspectos mais

24 25
26 27

onde se proibia a construção de cortiços. O desenho desta zona foi sendo obrigando as futuras construções a obedecer a um recuo de dez metros em
sucessivamente reatualizado, sem, entretanto, romper com a concepção básica relação ao alinhamento, bem como dois metros de casa lado. Em 1898 a lei
de se manter uma zona urbana cada vez mais minuciosamente regulada e uma municipal 355 "especifica o modo de edificar nas avenidas Hygienópolis e
vasta zona suburbana (e rural) que poderia ser ocupada com usos urbanos Itatiaia", exigindo recuos mínimos obrigatórios de seis metros para jardins e
vedados para a primeira tais como matadouros, cemitérios, indústrias arvoredos e um espaço não menos do que dois metros de cada lado. A estas
malcheirosas e... cortiços. leis, definindo a especificidade do modo de construir nos bairros de elite,
corresponde uma característica absolutamente marcante na construção da
Aliado à demarcação legal destas macro fronteiras, no interior do espaço
legalidade urbana na cidade de São Paulo: a lei como garantia de perenidade do
regulado ou zona urbana – a legislação encarregou-se desde cedo de demarcar
espaço das elites.
espaços ainda mais restritos e protegidos: os loteamentos exclusivamente
residenciais da elite paulistana. Se analisarmos o conteúdo destas normas específicas, ali está contido o
chamado modelo higiênico, com todas suas letras físicas e morais: a casa
Separar e reinar: nasce o bairro residencial exclusivo
unifamiliar isolada em grande terreno separada da rua e dos vizinhos. A chave
Em 1879, dois Alemães, Glette e Nothman compram a antiga Chácara do
da eficácia em demarcar um território social preciso está evidentemente no
Capão Redondo (e desde que se tomou propriedade do Visconde de Mauá –
preço: lotes grandes, grandes recuos, nenhuma coabitação, esta é a fórmula
Chácara Mauá) e, despendendo cem contos de réis, abriram ali ruas largas e
para quem pode pagar. A lei, ao definir que ali só pode ocorrer certo padrão,
alamedas arborizadas. Tendo vendido grandes lotes apenas para famílias
opera o milagre de desenhar uma muralha invisível e, ao mesmo tempo, criar
abastadas da capital, apuraram cerca de oitocentos contos de réis depois de
uma mercadoria exclusiva no mercado de terras e imóveis e, assim, permitir um
vendidos os lotes3 . Assim nascia o bairro dos Campos Elísios, Champs Elysées
alto retorno do investimento, mesmo considerando o baixíssimo aproveitamento
paulistano, que marcaria o nascimento do modelo de bairro aristocrático,
do lote. Além do mais, aí se esboça o fundamento de uma geografia social da
exclusivamente residencial e de alta renda. Em 1890, era a vez do recém aberto
cidade, da qual até hoje não conseguimos escapar. O setor Sudoeste,
bairro de Hygienópolis concentrar os palacetes mais elegantes da cidade. Em
desenhado a partir do percurso Campos Elísios/Hygienópolis/ Paulista, e que
seguida é a Av. Paulista, construída por Joaquim Eugênia de Lima e inaugurada
depois se completaria com os loteamentos da Cia. City no Jardim América,
em 8 de dezembro de 1891. Esta, afastada do núcleo urbanizado, contava com
configura uma centralidade da elite da cidade, o espaço que historicamente
rede de água e esgoto, iluminação e piso macadamizado com pedregulhos
concentra valores imobiliários altos, o comércio mais elegante, as casas ricas, o
brancos. A construção da Av. Paulista, situada no alto do espigão que separa a
consumo cultural da moda e a maior quantidade de investimentos públicos. Na
bacia do Rio Pinheiros da Bacia do Tietê, permitia a vista para toda a cidade.
primeira República a imagem desta topografia social é feita de colinas secas,
Logo se transformaria não só em lugar das residências mais ricas da cidade,
arejadas e iluminadas de palacetes que olham para as baixadas úmidas e
mas também como símbolo cívico, realizando-se ali grandes solenidades,
pantanosas onde se aglomera a pobreza.
paradas militares e desfiles carnavalescos elegantes. Em 1894, Joaquim
Eugênio de Lima consegue aprovar uma lei exclusivamente para a Av. Paulista,

26 27
28 29

Ao mesmo tempo em que a lei vai alinhando os territórios da riqueza, vai Do ponto de vista da organização espacial interna, a configuração das
também delimitando aqueles onde deverá se instalar a pobreza. O movimento, vilas e cortiços, formas de ocupação intensa dos miolos de quadras com espaços
desde seu nascimento é centrifugo, ou seja, delimitar as bordas da zona urbana, individualizados diminutos, contrariava, por completo, os regulamentos
ou mesmo a zona rural como local onde está deveria se alojar. Diga-se de municipais de construção, que desde 1886 já se ocupavam de definir as
passagem, que a lógica de destinar as lonjuras para os pobres atravessou, dimensões mínimas dos "cortiços, casas de operários e cubículos". No código
incólume, nosso século. Isto começa com a proibição de instalação de cortiços municipal de 1886 era exigida uma largura de frente mínima de 15 metros, e a
na zona central definida pelas posturas de 1886 e reiterada pelo Código Sanitário separação de cada fileira de casas por 5 metros, no mínimo. A área mínima de
de 1894, que proíbe terminantemente a construção de cortiços e permite que as cada cômodo deveria ser de 7,5 m², deveria haver 1 latrina para cada duas
vilas operárias higiênicas sejam construídas fora da aglomeração urbana. A Lei habitações e uma área livre à frente de cada habitação de 30 m² . Entretanto,
498, de 1900, isenta de impostos municipais os proprietários que construírem boa parte dos subúrbios populares foi edificada "fora da lei". Em 1894, o primeiro
vilas operárias de acordo com o padrão municipal e fora do perímetro urbano, Código Sanitário Estadual adota um posicionamento ainda mais rígido em
delimitado por aquela lei. Em 1908, em uma cidade de 370.000 habitantes, o relação às habitações coletivas: estas devem ser proibidas e as existentes
prefeito Raymundo Duprat amplia os favores para quem construir "casas devem desaparecer, assim como as casas subdivididas e as vilas operárias –
destinadas a serem alugadas ou vendidas em prestações a quem não seja que só podem agrupar-se em conjuntos de até 6 moradias, devem ficar fora da
proprietário de casa e não tenha recursos para alugar uma higiênica e separada” aglomeração urbana7 . No entanto, o relatório de uma Comissão de Exame e
4, o que inclui, inclusive, a concessão de terrenos municipais "em lugares Inspeção das Habitações Operárias e Cortiços no Distrito de Santa Efigênia,
apropriados", leia-se fora da área urbana. O que é construído por esta sucessão publicado no mesmo ano, constata, apenas em uma área de 14 quadras a
de leis é o outro lado da geografia social proposta: outra linha imaginária que existência de 65 cortiços.
define os muros da cidade: para dentro o comércio, as fábricas não incômodas
No mesmo relatório se formula, pela primeira vez, como resposta à
e a moradia de elite; para fora a habitação popular e tudo que cheira mal, polui
gravidade da situação, a proposta de incentivar empresários a construir casas
e contamina. Esta delimitação já está presente desde a lei de 1886, que define
operárias "higiênicas" em terrenos situados num raio de 15 km da cidade: "a
o perímetro urbano – aonde se deve obedecer ao alinhamento – e a zona rural,
situação mais conveniente para as vilas operárias deve ser, sem dúvida, aquela
onde as construções podem se dar de forma distinta. O mesmo se aplica em
que reúna a facilidade de comunicação à barateza dos terrenos". Os incentivos
relação ao armamento ou loteamento, abertura de ruas por particulares para a
são de dois tipos: o estabelecimento legal de um padrão distinto – leia-se de uma
venda dos lotes, que desde 1913 devem apresentar planta antes de serem
maior intensidade de ocupação horizontal do lote ("um conforto operário") – e a
abertos. Quando na zona urbana, devem atender às prescrições da lei, na zona
implantação, por parte do Governo, de trens de subúrbio ligando os locais aos
rural não necessitam obedecê-las; porém tampouco podem contar com os
centros de emprego, além de isenção de todos os impostos municipais e
serviços públicos de calçamento e pavimentação (pagos até este momento
estaduais que incidem sobre a construção. Desta maneira se demarcava uma
integralmente pela Prefeitura).5
área "regulada" da cidade, aonde a habitação popular não poderia acontecer, ao

28 29
30 31

mesmo tempo em que se configurava, fora do perímetro urbano, uma zona de populares de imigrantes até se identificar plenamente, na década de 30, como
obscuridade, sobre a qual o olhar do poder municipal não vigorava. território estrangeiro numa cidade cujo projeto cultural era francamente
nacionalista.
Inclusão, exclusão e cidadania
As afirmações anteriores procuraram apontar como uma legalidade A estes distintos momentos corresponderam também distintas fases no

urbanística que foi sendo construída na cidade de São Paulo, ao mesmo tempo relacionamento político entre as elites urbanas, sobejamente representadas

em que se constituía uma zona de ilegalidade, que correspondia, a grosso modo, entre os legisladores, e o povo. Durante toda a República Velha e o predomínio

aos assentamentos populares. A extra legalidade estava em construir em político do PRP – Partido Republicano Paulista – as classes dominantes jamais

terrenos cujo desenho não havia sido aprovado pelos engenheiros municipais, haviam tomado conhecimento da existência do povo como expressão política.

ou em partilhar os lotes ou casas com habitações coletivas, gerando um espaço Para o governo, exercido pelos fazendeiros do café, o problema era como suprir

de alta densidade demográfica. Assim, bairros inteiros existiam sem, no entanto, sua carência de mão-de-obra. O estrangeiro, que veio substituir o escravo nesta

serem reconhecidos como parte da cidade oficial; a alta densidade do território função, tinha, na verdade, a mesma condição política: não vota nem pode ser

popular enojava e preocupava as elites, que se defendiam construindo bairros votado, não existe nas decisões sobre o destino da cidade ou do País. Durante

exclusivos e propondo favores fiscais e liberalidades construtivas para os todo o período da República Velha, embora tenha havido eleições diretas para

empreendedores que desejassem construir casas populares em zonas prefeito e vereadores, as eleições eram uma farsa montada para aparentar o

precisamente delimitadas para tal, fora do perímetro central. Apontamos também voto universal, parte da doutrina liberal a que era devoto o partido que havia

para o papel da legislação urbanística no estabelecimento de um mercado derrubado a monarquia e instaurado a República. As regras do jogo eleitoral

imobiliário dual, capaz de prover alternativas de localização para as diferentes estavam definidas pela Constituição de 1891, quando predominaram as teses do

faixas de poder aquisitivo presentes na cidade, ao mesmo tempo em que se republicanismo civil e liberal do Partido Republicano Paulista.

garantia a rentabilidade do investimento imobiliário independente da faixa de Além das restrições constitucionais, as máquinas eleitorais é que definiam
renda a que se destinava. Além das implicações econômicas, a situação de o rumo dos pleitos. Os fazendeiros de café, aliados às demais oligarquias rurais
ilegalidade urbana tem implicações culturais. Ao longo do século XX, o nos diversos Estados, não se mantinham no poder pela força militar, mas graças
paradigma da legalidade foi se construindo em torno das cidades-jardim a uma máquina eleitoral que se estendia por todo o País e cuja base era o
exclusivas da elite paulistana, habitadas pelas famílias endinheiradas. Ao coronel e sua família, amigos, parentes, que, dentro de cada Estado,
mesmo tempo em que a condição de extra legalidade foi se definindo como a centralizavam em suas mãos o poder de legislar, julgar e executar. Para servir
alta densidade e subdivisão de casas e terrenos, configuração urbanística aos coronéis, os trabalhadores ou pequenos proprietários rurais, a fim de conferir
considerada promíscua, indisciplinada e desregrada, ou seja, como espaço sem uma aparência legal ao seu predomínio, deveriam "votar com ele". Os
lei, marginal. O lugar e a condição passam a constituir assim uma só zona de analfabetos aprendiam às vezes a assinar o nome apenas para lançar na uma o
opacidade no tecido social. Esta correspondeu, em um primeiro momento, ao nome do candidato definido pelo chefe. Em vésperas de eleição, estes eleitores
território negro na cidade e depois, pouco a pouco, foi incorporando os bairros eram levados ao local de eleição, onde ficavam concentrados – eram os

30 31
32 33

chamados quartéis ou currais. O interior do País, sujeito a este regime, nas eleições era atravessada não por direitos, mas por redes de relacionamentos
concentrava 70% da população, garantindo sempre uma ampla maioria nos pessoais, a partir dos quais se poderia obter favores e oportunidades.
resultados eleitorais. Em São Paulo, assim como em outras grandes cidades, os Finalmente, a garantia de sucesso de uma eleição definida a priori, nos
currais não eram tão explícitos; porém, mesmo com porcentagens de gabinetes, se dava através do processo de reconhecimento dos resultados do
alfabetizados maiores do que no mundo rural, a cidade, durante a República pleito, que deveria ser feito pelo Senado e Câmara. Eram eleitos, diplomados e
Velha, era basicamente analfabeta e estrangeira, portanto, excluída do registro reconhecidos os candidatos que as comissões executivas dos partidos
eleitoral. O processo de naturalização – ou obtenção da cidadania brasileira – houvessem indicado em seus boletins. No dia das eleições, seções eleitorais
era um processo lento e caro. Supunha o atendimento a infindáveis formalidades inteiras poderiam não funcionar, os livros e atas ficavam na mão de juízes ligados
e severas exigências, entre elas a residência contínua de 10 anos no País. ao grupo que dirigia a política municipal, mortos e ausentes, às vezes, votavam.
Assim, tampouco por este meio, se ampliava a representação dos moradores da Com estes procedimentos se garantia a chamada degola de eleitos indesejados.
cidade. As eleições eram o preenchimento de uma formalidade com a qual se mantinha
a ilusão de que se cumpria a Constituição, e assim, prescindia de um debate
São Paulo-República Velha - população total/homens/
sobre as questões da cidade, Estado ou País e girava em torno de figuras
estrangeiros/analfabetos
políticas, os figurões e seus círculos.

0 papel do Estado: serviços urbanos e os bairros populares


O orçamento municipal era inteiramente consumido nas chamadas Obras
de Melhoramentos, em sua grande maioria obras de ampliação, calçamento e
melhorias no sistema viário, e na construção e reforma de praças e parques. Já,
O que caracterizava a relação entre eleitores e governantes não era desde o final do Século XIX, o Município havia transferido boa parte de suas
propriamente a representação de grupos de interesse, já que, dada a restrição responsabilidades públicas, como eram definidas no período colonial, para a
do número de eleitores em face dos moradores da cidade, o voto aberto e a iniciativa privada: isto foi particularmente verdadeiro para a provisão de serviços
seletividade econômica e social, os únicos grupos de interesse, efetivamente e infraestrutura urbana. No momento em que a cidade crescia rapidamente, o
representados, pertenciam à elite paulistana. Pertencer à elite paulistana era Estado resolveria o problema de geração de novas infraestruturas requeridas
participar de um círculo de grandes proprietários rurais, ricos negociantes, pelo desenvolvimento urbano — redes de água e esgoto, eletricidade,
banqueiros e por profissionais liberais – sobretudo advogados, médicos e transportes urbanos e telefonia — através de concessões monopolistas para
engenheiros – a este grupo vinculado por laços familiares ou profissionais. companhias privadas, em grande maioria constituída por capitais ingleses,

O voto popular, quando existia, era mediado por uma relação hierárquica canadenses e norte-americanos. Em São Paulo, o caso do abastecimento de

baseada em laços de obediência, lealdade e proteção. Assim, não existia água é significativo. Em 1860, diante de crises permanentes de falta de água nas

propriamente uma relação com as demandas populares; a participação popular vertentes para abastecer os chafarizes públicos, a Câmara põe à venda "pennas

32 33
34 35

d'água" para, com o lucro, investir em um sistema de utilização do manancial da " Leo-se mais uma petição da Companhia Cantareira de Águas e
Esgotos, do 12 do corrente, declarando que, em obediência o art. 1.° de
Cantareira. Em 1875 foi fundada por capitais ingleses a Companhia Cantareira
seu contrato celebrado com o Governo da Província para a construção
de Águas e Esgotos, destinada a abastecer de água a cidade, através de sistema
de sistema completo de esgotos e despejos dos prédios desta Capital se
subterrâneo de encanamentos. Através de canos de ferro, a água era distribuída mandasse demarcar ao orbita dentro do qual fição os prédios sujeitos as
a domicílio. Ao mesmo tempo em que a Cantareira vende a água aos disposições do dito contracto nos termos do art. 10 da Lei n. 45 de 1875".
consumidores conectados à rede, a Prefeitura vai, pouco a pouco, desativando
Desta forma, ao delimitar o perímetro urbano, a Câmara definia o âmbito
e demolindo todos os chafarizes públicos.
de atuação das companhias provedoras de infraestrutura. As implicações são
O exemplo da Companhia de Águas é eloquente de certo modo de imediatas: o que estava dentro era imediatamente valorizado, o que estava fora
provisão dos serviços que se constitui na cidade ao findar o Século XIX e que estava automaticamente excluído. A lógica da Cia. de Águas também valia para
atravessa a República Velha, entrando em crise nos anos 20. A partir deste outras empresas provedoras de serviços: a São Paulo Railway Company (1860),
momento os serviços de infraestrutura não são mais responsabilidade do Estado The São Paulo Gas Company Ltd. (1869), The São Paulo Tramway Light and
e devem obedecer à lógica e nacionalidade das companhias privadas. Esta se Power Co. (1900). Esta última detinha o monopólio do fornecimento de energia,
define por um lado em atender demandas com capacidade de pagamento dos telefonia e transporte urbano sobre trilhos, o bonde. Esse monopólio simultâneo
serviços ofertados e, por outro, se beneficiar da valorização gerada pela própria dos serviços mais essenciais dotara a empresa de um grande poder de gerar
provisão do ser-viço, o que se obtém através do direito de exploração de terrenos valorizações urbanas. Associando-se a empreendedores imobiliários, a Light
remanescentes, as desapropriações necessárias para a implantação dos corrompia autoridades e instituições para ver aprovados seus desígnios. Em
sistemas e redes e de associação com empreendedores imobiliários em 1909, por exemplo, quando deveria ser renovado o contrato da empresa com a
negócios conjuntos. Desta forma, a relação entre a provisão do serviço e a Prefeitura, Antônio Prado deu parecer contrário e, resistindo ao assédio da Cia.,
demanda se dá quase que exclusivamente para o mercado de alta renda, leia- despachou contra a prorrogação. Essa decisão foi festejada como uma vitória
se no centro de negócios e bairros residenciais "valorizados" ou na abertura de pela população, descontente com as tarifas altas e péssima qualidade do serviço
novos mercados de mesmo tipo, em terras que ainda não "desbravadas". No da empresa. No entanto, a Comissão de Justiça da Câmara derrubou o parecer
próprio contrato das companhias estava registrado um perímetro demarcado do Prefeito e reconfirmou o monopólio. Contra tal decisão, explodiu um motim
para sua atuação, definido como urbano, e, portanto, sujeito a regras específicas popular , que ocupou o Triângulo e uma parte da Av. São João aos gritos de
de construção. O que estava fora, ou em desacordo com as disposições "Abaixo a Light! Abaixo o monopólio! Viva Antônio Prado!” Apesar da revolta, as
estabelecidas em contrato, a Cia. não era obrigada a cobrir. Atas da Câmara condições contratuais foram mantidas e a Light continuou ditando as regras de
Municipal de 1881 registravam a preocupação da Cia. em fazer a Prefeitura indexação dos preços de terrenos, gerando eixos de expansão, e definindo, a
definir o perímetro urbano e as regras de uso e ocupação do solo, para poder partir de critérios de mercado, quem deveria ser beneficiado e quem seria
cumprir cláusulas de seu contrato: excluído da provisão de infraestruturas.

34 35
36 37

Mesmo em serviços que eram executados pela municipalidade, como A crise dos anos 20 na cidade das multidões
calçamento e drenagem, o que presidia sua atuação não era a necessidade de A cidade nos anos 20 vivia um momento especial: durante as décadas de
universalidade do atendimento ou a garantia de cobertura a todos os moradores. expansão da cultura cafeeira na província – e depois no Estado – São Paulo foi
Na verdade, a política urbanística da República Velha não via como essencial o maior ponto de atração de capitais e populações em todo o País. Com isto, na
cuidar dos pobres ou investir em suas condições de vida: década de 30 a cidade ultrapassaria a marca do um milhão de habitantes,
“French positivism, which deeply infused the governments of this tornando-se uma das metrópoles cosmopolitas da América. Por ter sido a capital
generation, provided a rationale for neglecting the less fortunate. Society da oligarquia do café durante a República Velha, a cidade abrigava a
would progress, according to positivism, if led correctly by a scientific- representação do poder econômico e provia o governo federal com presidentes
minded and determined vanguard. The masses would be pulled along
e ministros. Seu papel era, portanto, fundamental na definição dos rumos
and up if society as a whole progressed. It was wrong to expense scarce
políticos do País. No contexto da Primeira Grande Guerra, em virtude do colapso
resources on the poor, who did not know how to invest in progress. There
was also Spencerianism, a radical version of laissez-faire applied to das linhas de comércio internacional, São Paulo assistira a um grande surto de
social relations. Also known as "social Darwinism", this approach crescimento industrial, do tipo substituição de importações. As decorrências
recommended that the intelligent and talented be encouraged to excel imediatas dessa industrialização em larga escala foram, além do aparecimento
through economic rewards, while the unfit, infirm, dull and unskilled be
de um proletariado urbano, um intenso crescimento demográfico que se fez
allowed to languish and die through natural selection. These two social
sentir no aumento da demanda por terrenos e habitações e uma carestia geral,
policies held sway throughout Latin America and especially in Brazil
during the period 1880-1910.” que multiplicava os preços dos gêneros alimentícios, vestuário e aluguéis, em
plena disparada inflacionária; ao mesmo tempo em que constituía a possibilidade
Assim, os anseios e demandas populares contavam muito pouco para as
de for-mação de novas fortunas, não diretamente dependentes da produção e
regras do jogo político e sequer entravam como pauta ou agenda de discussões
exportação do café.
em conjunturas eleitorais. A célebre expressão de Washington Luís, último
presidente da República Velha, para quem a questão social, que agitava as Ao findar a primeira década do século, quando o quadro na cidade era de

cidades, era "caso de polícia", é ilustrativa do tipo de relacionamento que as escassez, especulação, inflação, sobreveio uma epidemia de gripe espanhola

elites estabeleciam com o proletariado urbano crescente e com as massas que matou milhares de paulistanos, aumentando a aflição e o descontentamento

urbanas alijadas do poder. Para eles, o controle social se dava através da na cidade. Neste contexto, acirram-se todos os tipos de tensão e conflitos que

repressão policial e não demandava uma intervenção direta do governo. existiam na cidade: sociais, étnicos, culturais, políticos e econômicos. Neste

Entretanto, esse modelo liberal e privatista e toda a construção de relações momento, emergia com força um movimento sindical no meio operário,

políticas que lhe correspondia entram em crise nos anos 20, vítima da voracidade fortemente inspirado pelo anarquismo espanhol e italiano contemporâneos. Uma

de sua criatura: uma cidade que em 1920 chega aos 600.000 habitantes, densa vasta rede de associações livres fomentadas pelos anarquistas no interior dos

e concentrada como um barril de pólvora prestes a explodir. bairros populares (culturais, esportivas, escolares e sindicais) tiveram um papel
político fundamental na ampliação da base deste movimento sindical, ao

36 37
38 39

incorporar questões para além do mundo do trabalho, como o valor dos aluguéis, emergência da expansão da fronteira interna como estratégia de acomodação
preço e qualidade dos produtos de primeira necessidade. A rede funcionava dos assentamentos populares. Enquanto a cidade adensava e se expandia, a
como base territorial da ação direta, levando à prática da autonomia e partir de 1920 o número de bondes foi sendo reduzido: em função do
autogoverno, princípios da doutrina anarquista. desenvolvimento da indústria, esta consumia a maior parte da energia elétrica
produzida pela Light, que era também concessionária do serviço de bondes, a
Por outro lado, é preciso considerar também que além da chamada
falta de bondes gerava um clima permanente de conflito. Enquanto fervia a
"questão social" levantada sobretudo pelo movimento operário, aparece na cena
agitação revolucionária na cidade, o Prefeito Pires do Rio, em final de mandato,
política um grupo totalmente novo na cena política paulistana: as classes médias.
promulgava a Lei n. 3.427 de 19/11/1929, conhecida como Código de Obras
Constituídas sobretudo por pequenos comerciantes, construtores e senhorios de
Arthur Saboya. O novo Código não apresentava grandes inovações em matéria
cortiços e vilas, funcionários públicos mais graduados e proprietários de micro
de regulação do uso e ocupação do solo, representando muito mais uma
indústrias caseiras e familiares, este grupo tampouco tinha voz na política
compilação das leis esparsas já promulgadas do que propriamente um novo
paulistana e era diretamente atingido pelas flutuações da economia do País. Do
instrumento urbanístico. Sua grande novidade era incorporar os zoneamentos
ponto de vista territorial, este grupo se misturava aos operários, na medida em
parciais que já haviam sido promulgados – definindo normas específicas para a
que estes constituíam seu mercado consumidor: um mercado consumidor ainda
ocupação de certas ruas. O Código foi recebido com frieza, quando não com
muito pouco segmentado e bastante dependente das redes de relações étnico-
críticas pelo meio técnico. Na fala dos engenheiros com representação na
culturais que o constituiu. Assim, de certa forma se produzia uma aliança entre
Câmara Municipal – como Alexandre de Albuquerque – esse já havia nascido
este grupo e os operários; aliança limitada por interesses bastante distintos. Para
velho: "Afirmei e continuo a afirmar que a "Lei Arthur Saboya" não passa de uma
o operário anarquista a propriedade era um crime, para o pequeno comerciante
Codificação de leis esparsas, sem unidade e sem originalidade". O próprio Arthur
ou senhorio a única forma de mobilidade social. A presença deste grupo será
Saboya, embora indignado com as críticas do colega, ressaltava como principal
fundamental para determinar o grau de radicalidade da ruptura que ocorre nos
qualidade do Código:
anos 30. A conjuntura 1926/1930, que correspondeu à administração do Prefeito
Pires do Rio na cidade de São Paulo, vai marcar a transição entre o modelo "a consolidação das leis municipais e estaduaes sobre construções em
geral, construções para fins especiaes, arruamentos, loteamentos de
político e territorial da Primeira República e a passagem para um Estado
terrenos e outros assuntos atinentes à viação urbana (...), todas
intervencionista, com fortíssimo acento nacionalista, que dialoga com os pobres
esparsas em cerca de 40 leis, outros tantos actos, várias resoluções
e remediados moradores urbanos. municipaes e meia dúzia de leis e decretos estaduaes, era uma
necessidade premente, uma aspiração antiga da municipalidade.
Do ponto de vista da política urbana, o advento e aumento rápido do
Somente os iniciados na administração municipal poderiam, em dado
número de automóveis nos anos 20, o surgimento dos primeiros ônibus urbanos
momento, ajuizar da vigência de uma ou outra disposição regulamentar,
e a pressão por novas oportunidade de moradia acabaram por entornar o caldo tal a quantidade de leis revogadas, total ou parcialmente, podendo se
do urbanismo da Primeira República; inaugurando a era das grandes obras calcular as dificuldades que, para o governo municipal e para os

viárias, da ampliação da intervenção do governo na provisão dos serviços e a municipaes, dali resultavam."

38 39
40 41

Na verdade, se do ponto de vista das obras viárias, e até da política de A ponta do iceberg: a questão do arruamento irregular
transportes urbanos, Pires do Rio iniciara uma revolução físico-territorial na A comparação das plantas da cidade e dados populacionais de 1914 e
cidade, ao iniciar o Plano de Avenidas e regulamentar o transporte de ônibus, do 1930 mostra um processo claro de expansão horizontal e desadensamento
ponto de vista da legislação urbanística, está ainda estava por ser feita. O populacional. Se em 1914 a área ocupada é de 3.760 hectares e a densidade de
Código, minucioso, formal e detalhado em seus 595 artigos, entrava em 110 hab/ha, em 1930 a área ocupada será de 17.653 hectares e a densidade de
contradição direta com uma cidade que iniciava um processo de expansão 47 hab/ha. A partir daí a densidade se mantém praticamente constante, em torno
horizontal desenfreada, sobretudo dos assentamentos populares. Por outro lado, de 50 hab/ha até a década de 1970 e a cidade se espalha vorazmente pelo
a existência e visibilidade das classes populares, tema fundamental da pauta território circundante, engolindo morros e várzeas em conturbação com
política da crise da República Velha, exigia também um reposicionamento municípios vizinhos.
urbanístico: até quando a legislação urbana poderia ignorar a irregularidade da
A segunda metade da década de 20 vai configurar o padrão urbanístico
cidade popular, que inclusive, àquelas alturas já havia acumulado investimentos
dominante na metrópole paulistana. Um padrão alicerçado na expansão
familiares por décadas e gerado valorização e mobilidade social? 0 Código de
horizontal, no ônibus e automóvel como meios dominantes de transporte, na
1929 era como a resposta de Washington Luís à questão social: faz de conta
autoconstrução dos assentamentos populares e... na mais absoluta
que não existe. A possibilidade de autoconstrução na expansão ilimitada da
irregularidade em relação às leis e códigos que regem as regras de uso e
fronteira trazia a resposta, do ponto de vista da economia imobiliária, à crise.
ocupação do solo na cidade. Para atender às pressões sociais para a instalação
Porém, está colocava em xeque toda a lógica de investimentos públicos e
de serviços públicos era necessário que os loteamentos e construções fossem
provisão de serviços.
oficiais. As empresas de serviços públicos manifestavam àquela altura
Para poder atender à cidade popular era preciso reconhecê-la. Mas, para claramente esta preocupação. A Repartição de Águas e Esgotos, por exemplo,
isso, faltava um elemento essencial: "que estatuto jurídico urbanístico teria esta pedia em ofício endereçado ao prefeito, datado de 1931, que este intercedesse
cidade autoconstruída, para além dos parâmetros oficiais e controlados pelos no sentido de:
códigos, que agora seria viável aconselhável ocupar?" A resposta sem dúvida
"cessar o inconveniente observado em relação às vilas e novos bairros
nenhuma não estava no Código de 1929. E tardou os anos turbulentos que
que são armados e loteados sem que tenham serviços de águas e
separam o golpe de 1930 da Constituinte de 1934 para ser formulada. Nesse esgotos e que são vendidos para operários e pessoas desprovidas de
ínterim, sucederam-se dez prefeitos nomeados por interventores federais que recursos, que ficam mais tarde privadas deste melhoramento, porque as

duraram cada qual poucos meses no poder abalados pela rebeldia de São Paulo ruas, sendo particulares, só podem dispor de canalizações por conta dos
interessados. Diante desta situação colocava-se o dilema: ou deixará
diante dos poderes ditatoriais de Getúlio e pela perda crescente de espaço
que se disseminem os poços ao lado de fossas com prejuízo para a
político da oligarquia paulista. Nestes anos rebeldes se ensaiou o que estaria por
saúde pública, ou se modificará o critério que vem sendo adotado de só
vir plenamente com as definições de rumo em 1930 e 1934. se estender as redes de águas e esgoto às mas oficialmente
reconhecidas".

40 41
42 43

Se a revolução de 30 foi feita em nome dos consumidores e produtores receber melhoramentos públicos, a questão será então quando e como o
da cidade irregular – as classes médias, os pequenos investidores urbanos e os assentamento poderá ser considerado legal a assim ser merecedor da benesse.
operários – esta teria de incorporá-los, de alguma forma, à gestão urbana e Por outro lado desaparece o art. 51 da Lei de 1929, que impedia a aprovação de
provisão de serviços. O dispositivo proposto em 1932 inova: é possível edificações em zonas ainda não armadas das zonas urbana e suburbana, e a
reconhecer o que é irregular, porém as condições de reconhecimento não estão alínea a do art. 54 que dispensava de alvará apenas as edificações que na zona
pré-definidas, dependendo de critérios dos técnicos municipais da Diretoria de rural estivessem afastadas pelo menos 6 m da via pública. Na nova redação, se
Obras. Desta vez foi dado o passo fundamental para estabelecer uma nova for casa operária na zona rural não precisa de alvará: basta ter 2 m de recuo de
ordem jurídica onde a clandestinidade ganha o estatuto de uma extra legalidade cada vizinho e 4 m de recuo da via – pública ou particular – para poder ser aceita
dependente da intermediação do Estado – no caso, da municipalidade – para como regular. Isto é reforçado por um novo art. 57, que prevê que para construir
ser reconhecida e, assim, ganhar o estatuto de legal e portanto poder inserir-se casas operárias, em qualquer zona da cidade, não é necessária a solicitação de
na órbita de obrigações de responsabilidades públicas. Finalmente, depois dos alvará, basta comunicar à Diretoria de Obras e providenciar uma planta que pode
sucessivos ensaios, se encontra a fórmula de incorporar aquilo que deve ser ser assinada pelo proprietário, construtor ou engenheiro – ao contrário do
incorporado na nova ordem, porém com o filtro da escolha e do arbítrio de quem procedimento "normal" que exige um longo e documentadíssimo processo e a
está sentado na cadeira do poder e que do alto desta poderá conceder. Inaugura- presença das três figuras acima mencionadas. Cabe evidentemente à Diretoria
se assim a era da cidadania consentida: a condição de legalidade urbana, de Obras julgar se se trata de casa operária ou não, e, portanto, enquadrá-la
fundamenta para a incorporação de vastas massas urbanas como objeto das como "normal" ou exceção.
políticas públicas é uma concessão, seletiva, do Estado. Qualquer semelhança
Em relação às construções irregulares, a Consolidação do Código de
com a formulação dos direitos trabalhistas da era getulista não é mera
1934 introduz o art. 121, onde se afirma que todas as construções particulares
coincidência.
executadas sem licença – que por sua natureza puderem ser toleradas – serão
A chave de ouro da fase de ensaios será a nova versão que receberá a medidas e desenhadas pela Diretoria de Obras e Viação. No que se refere aos
Consolidação do Código Arthur Saboya, publicada em 1934. Da comparação armamentos irregulares, introduz o Ato de 1932 como um capítulo da
entre as duas redações se depreende que a novidade de 1934 se refere Consolidação, em substituição ao art. 548 do Código de 1929 que impossibilitava
basicamente ao posicionamento adotado em relação à irregularidade assim a aceitação de ruas abertas em desacordo com a legislação. Ao permitir que
como foi definido pelo Ato de 1932. Vale a pena enumerar alguns dos ruas abertas sem prévia licença sejam aprovadas, introduz também – o que
dispositivos atingidos pela nova formulação. Em primeiro lugar se substitui o inexistia na versão de 1929 – condições para regularização das edificações
conceito de "terreno situado em lugar afastado" por "terreno situado em vias ou situadas em loteamento sem plano aprovado (largura mínima de rua de 8 m,
vielas sem melhoramentos públicos", denotando claramente a nova obras de drenagem, ocupação de apenas 1/3 do lote, recuo de frente de 4 m,
diferenciação: os que receberam e os que não receberam os investimentos de entre outras exigências) Além disto, as casas operárias, para serem
infraestrutura. Ou seja, potencialmente, em qualquer lugar da cidade se pode reconhecidas, não precisavam obedecer às condições enumeradas: bastava

42 43
44 45

estarem recuadas 4 m da via pública ou particular e 2 m de cada lado e da divisa Mas, para que isso seja possível foi necessário, além da construção de um pacto
de fundo. Através da leitura das modificações introduzidas em 1934 é possível político baseado na dádiva, um novo papel do Estado. O que se estabelece é
analisar qual é o novo pacto territorial que se estabelece entre as classes uma relação de ascendência e intermediação obrigatória do Estado em relação
dominantes e os grupos sociais emergentes: a velha ordem não se transforma às massas recém-incluídas ao pacto.
para incorporar outras formas de ocupação do espaço, na verdade apenas tolera
– seletivamente – exceções à regra que, ao serem reconhecidas, são A cidade popular pode ser anistiada e a cidade
"contempladas" com o direito de serem objeto de investimentos públicos em burguesa se defende
infraestrutura e serviços urbanos. As maiorias clandestinas entram assim na Não se pode encerrar este capítulo da história de legislação urbana de
cena da política urbana devedoras de um favor de quem as julgou admissíveis. São Paulo sem apontar o outro lado da moeda da política urbanística. Se é
A relação política que funda este pacto territorial é a que se convencionou verdade que o mote da política urbana dos anos 30 será a formulação de um
chamar na literatura sobre a questão social de "ideologia da outorga", ou seja, o modo de incorporar o território popular na gestão, é neste período que se
ato fundador da cidadania é uma relação de doação do Estado ao povo. consolida também o fundamento de uma política de zoning, que tem como
Finalmente, o termo que fecha e dá sentido à relação é "retribuir". Quem objetivo fundamental proteger as áreas residenciais de alta renda. Já em março
recebe uma dádiva cria um vínculo que desemboca naturalmente no ato de de 1931 o então Prefeito Anhaia Mello promulga o ato n. 127, que "institue o
retribuir. Assim, a força da coisa dada está em produzir em quem recebe a zoning para determinados districtos urbanos e constitue uma Comissão para o
consciência de uma obrigação de retribuir como um dever político de natureza estudo desse problema, em toda a cidade". Nos considerandos da lei se
ética. E interessante destacar a diferença entre retribuir e pagar uma dívida: explicitam os objetivos da medida: exercer o poder de polícia municipal para
retribuir uma doação não tem prazo de execução nem conteúdo previamente impedir que o cidadão use sua propriedade de forma incômoda aos vizinhos,
definido, trata-se sim do reconhecimento de uma obrigação que extrapola a definir previamente a característica dos distritos urbanos para poder prever os
dimensão utilitária. O vínculo que se estabelece pressupõe, portanto, a investimentos em infraestrutura, proteger os capitais invertidos em imóveis
ascendência do doador sobre o receptor e sua condição de devedor. Trata-se de urbanos, impedir que a especulação sobre a valorização dos imóveis provoque
um compromisso que a qualquer momento pode ser cobrado e assim assumir a mudança rápida e prematura do caráter dos distritos em detrimento da
formas variadas de retribuição20 . Durante todo o período Getulista este implicou propriedade particular e da estética. A seguir, o decreto delimita a zona dos
no reconhecimento da figura do governante e uma identificação com ela que Jardins como exclusivamente residencial e com recuo obrigatório de 6m, e cria
permitiu desarticular qualquer tentativa de organização autônoma por parte dos uma comissão para elaborar o zoning do resto da cidade.
trabalhadores/moradores. Com a redemocratização, a relação assim A promulgação deste decreto, assim como a fundação por membros da
estabelecida é que abre espaço para a construção do clientelismo e populismo: aristocracia paulistana e engenheiro-urbanistas, em 1934, da Sociedade dos
a condição de extra legalidade tolerada das maiorias clandestinas vai então Amigos da Cidade, com o objetivo de "fiscalizar e orientar o crescimento da
assumir a forma de troca. Aos rn/'horamentos obtidos se retribui com o voto. cidade", esboça a reação territorial das elites diante do espectro do fantasma do

44 45
46 47

povo. O desejo de controle da cidade por parte das elites se manifesta como as regulamentações urbanísticas, existe uma infinidade de transgressões, fruto
desejo de proteção de seu próprio espaço: a sanha do desenvolvimento urbano muitas vezes da própria atratividade e valorização que as regiões ultra
é, ao mesmo tempo, fonte de riqueza e ameaça, porque pode significar que esta regulamentadas têm na cidade.
riqueza mude de mãos ou que alguns privilégios acabem. Por isso é preciso
A contraposição destes espaços pode ter inúmeros significados. Do ponto
proteger a cidade. No discurso das elites, diante do populismo do Estado, é seu
de vista de geografia da cidade, configuram paisagens que apresentam distintos
território que necessita de proteção legal: uma proteção que tenha, ao contrário
graus de prestígio e, consequentemente, de valor no mercado de localizações.
da anistia do território popular, um perímetro e uma regra claramente definidos
Assim, a grosso modo, se poderia identificar todo o vetor Sudoeste da cidade,
em lei. A anistia e o zoning seletivo são duas faces cartografadas em mesma
traçado a partir de seu velho centro, como zona concentradora das paisagens
moeda: representam uma estratégia político urbanística em São Paulo que
formais, ricas e valorizadas, e as periferias (Norte, Leste, Sudeste e Sul) como
deitou raízes tão profundas, que praticamente nada mais aconteceu em termos
regiões pobres e desvalorizadas, marcadas pela condição de irregularidade, ou
de legislação até o final dos anos 50. Seu fundamento tem o caráter do
extra legalidade. Mais uma vez aqui é necessário um matiz: a condição de
compromisso estabelecido com a revolução de 30: as massas populares chegam
irregularidade não se refere a uma configuração espacial, mas a múltiplas. Assim
ao poder sem autodeterminação, subordinadas a um Estado protetor e populista;
não se pode falar de irregularidade como se fosse um atributo intrínseco de um
as elites se deslocam sem perder seu lugar. Enfim, tudo muda para nada mudar.
espaço urbano, como sua topografia ou a composição de seu solo. Não somente
Conclusão porque existem, na própria ordem jurídico urbanística, muitos tipos de

Ao findar o século XX, São Paulo, metrópole de 10 milhões de habitantes, irregularidade, mas também porque as normas jurídicas podem ter, na prática,

tem sua organização espacial regulada por uma ordem jurídico-urbanística diferentes significados para os atores sociais, dependendo das condições

fortemente enraizada nos princípios formulados no início do século. Um retratista políticas e culturais prevalentes. Assim, embora tanto as favelas como as casas

que necessitasse captar, através de uma imagem instantânea, esta organização populares autoconstruídas na periferia se encontrem no mesmo vasto campo da

espacial, descobriria, para além das peças de um caleidoscópio de difícil leitura, irregularidade, construir sem licença é hoje considerado muito menos ilícito do

a inércia de um desenho de cidade marcado pela contraposição entre um espaço que morar em favelas. A favela, além de ter seu espaço organizado de forma

contido no interior da minuciosa moldura da legislação urbanística e outro, três particular e não enquadrada nas previsões da lei, é uma forma de apropriação

vezes maior, eternamente situado numa zona intermediária entre o legal e o do território baseada unicamente no critério da utilização, e não em qualquer ato

ilegal. Esta contraposição não é absoluta: a ordem jurídica formal ou estatal de compra devidamente registrado, base fundamental da noção de propriedade

nunca está totalmente ausente, mesmo no mais ilícito dos espaços. No mínimo, tal como foi definida através da Lei de Terras de 1861 e consagrada no Código

se apresenta como referente e é frequentemente mobilizada nas negociações de Direito Civil de 1902.

que se estabelecem entre moradores/ocupantes destes espaços e as Poderia, por isso, e tal ocorreu inúmeras vezes ao longo da história da
autoridades estatais, que são geralmente as encarregadas pela aplicação das cidade, ser considerada passível de desocupação e até da privação de liberdade
normas. Da mesma forma, no interior dos espaços construídos de acordo com dos ocupantes como punição. No entanto, a efetiva ocupação por quem não tem

46 47
48 49

outra alternativa de moradia (e sua contraparte – o abandono da propriedade por da aplicação da norma aos assentamentos irregulares. Passaram a funcionar
parte de seus donos legais) tem sido um argumento recorrente na comunidade como "direito" local, inscrito nas relações econômicas, sociais e políticas
jurídica e fora dela, para que mesmo esta transgressão não seja punida com a efetivamente praticadas pelos atores que fabricam este território. Desta forma se
pena prevista para o caso. Permanece, entretanto, um forte sentimento de estabeleceram pactos territoriais, paralelos à própria ordem jurídico-normativa
repulsa a este desvio do direito vigente, de tal forma que a categoria "favelado" oficial, sem, no entanto, parar de dialogar com esta. Em nenhum momento, ao
é imediatamente associada à categoria "marginal", mesmo se todos seus longo de um século de legislação urbanística, estes pactos deixaram de ser
moradores não forem criminosos. Espaço criminalizado de saída, não é paralelos. Desta forma, se constituíram numa espécie de direito inoficial a
eliminado, apenas rejeitado22. amparar a infração à lei, fruto do conflito entre o legítimo e o legal, e que tem,
até os dias de hoje, como expressão urbanística a condição – ou imagem – de
Através deste mecanismo as formas de inserção irregular são
provisoriedade24.
simultaneamente estigmatizadas e legitimadas numa escala micro, sem que as
bases – macro – da legitimidade do direito de propriedade sejam colocadas em Imaginou-se, no início do século, quando a terça parte das habitações da
questão. O efeito urbanístico deste dispositivo jurídico-político é impressionante: cidade era composta de cortiços, que um dia este iria desaparecer e dar lugar à
são milhares de hectares de terrenos e de quilômetros de vias públicas que não vila operária25. Para as normas urbanísticas, o cortiço transitou de uma posição
se sabe, a princípio, se são ou não parte integrante da cidade, se devem ou não de proibição expressa a simplesmente na exclusão de certo perímetro da cidade,
ser objeto de investimentos públicos, se podem ou não ser integrados às redes onde sua presença desvalorizaria a região. Durante décadas foi, na prática,
de serviços, infraestrutura etc. A consequência inevitável da posição extra legal tolerado e se transformou em grande alternativa de investimento para um capital
é uma espécie de imagem de provisoriedade, que ao contrário do que a própria rentista e possibilidade segura – embora não sem sacrifícios – de ascensão
noção de provisoriedade supõe, é permanente. A posição de provisoriedade social. Embora superado, a partir dos anos 30, pelo modelo da autoconstrução
funciona, a nível da política urbana, como justificativa para o não-investimento da periferia, e mais recentemente pelo enorme crescimento das favelas em São
público, o que acaba reforçando a precariedade urbanística e sobretudo Paulo, o cortiço jamais desapareceu. Pelo contrário: não há nenhum distrito do
acentuando as diferenças em relação ao setor da cidade investido. Município de São Paulo onde não exista um cortiço, tanto nas áreas de
implantação mais antiga da cidade, quando antigas casas unifamiliares se
Ao longo do tempo e diante dos vários agenciamentos espaciais e formas
subdividem, como nas periferias mais distantes, onde alugar cômodos e
de inserção na cidade, os cortiços, nos arruamentos ilegais e loteamentos
compartilhar quintais é uma das estratégias fundamentais do próprio processo
clandestinos, nas casas e quintais sem alvará e habite-se, nas favelas, formas
de autoconstrução26 . Mesmo assim, jamais foi reconhecido sequer como
de moradia e bairros definidos pela ordem jurídica como irregulares foram
questão urbana. Com exceção do curtíssimo período em que as autoridades
tecendo formas de legitimação, resultado das negociações entre os atores
médicas usaram como estratégia principal de combate às epidemias na cidade
envolvidos no processo de construção das "regras do jogo" locais23. Esta
sua "desinfecção", o que poderia implicar inclusive sua demolição, o cortiço
espécie de acordo coletivo estabelecido entre as partes foi sendo adotada tanto
desaparece por completo do campo de intervenção urbanística, embora durante
pelos ocupantes/moradores como pelos funcionários e políticos encarregados

48 49
50 51

todo o século não parou de se reproduzir, reinventar, relocalizar. Dos casarões posição valorizada por mais de cem anos e de gerar continuamente
recém-abandonados no velho centro subdivididos por sublocadores, foram ressignificações e novos polos de atratividade no interior do próprio vetor. Assim,
ocupando os casarões dos Campos Elísios, da Liberdade, do Cambuci, do Brás. atravessou-se o grande Vale do Anhangabaú com um portentoso viaduto de ferro
E as sucessivas periferias foram produzidas sob sua forma. Brasileiros, italianos trazido da Alemanha por empresários interessados em investimentos urbanos,
e portugueses enriqueceram levantando milhares deles nas fronteiras liderados por Joaquim Eugenio de Lima, ao mesmo tempo em que se redefinia
sucessivas: até a virada do século ocuparam Barra Funda/Brás/Belenzinho/Bom o velho centro como espaço comercial e de serviços por excelência. Este,
Retiro/ Bexiga/Lapa, fronteira que em 1916 já ocupava Água Branca/Ipiranga/ responsável também pela ocupação da Paulista, traçou no alto do espigão que
Vila Prudente/Mooca/Pary/Tatuapé/Pinheiros. Em um padrão compacto e separa o vale do rio Pinheiros do Tietê a direção em torno da qual se estruturaria
pendurado às linhas de bonde foram gerando densidades que chegavam a 11,76 toda a zona nobre da cidade, até hoje. Do Paraíso à Consolação, em 1900,
habitantes por domicílio. esparramou-se o prestígio da nobre avenida em direção ao Rio Pinheiros,
ultrapassado nos anos 20, com o arruamento da Cidade Jardim.
E depois , já quando começavam a chegar mineiros e nordestinos e São
Paulo começava a se dispersar em periferias do ônibus, foram assumindo novas Quando, no final do Século XIX, o centro ia sendo abandonado pelas
formas. Vila Maria/Vila Guilherme/Vila Matilde/Vila Carrão/Vila Aricanduva/Água elites, foi reinvestido pela função comercial; na segunda década do século, novos
Rasa/Vila Bertioga/Vila Alpina/ Heliópolis/Sacomã/Parque Edu Chaves/Jardim loteamentos residenciais exclusivos foram abertos, abrindo frentes de expansão
Brasil/Vila Nova para os bairros burgueses – os Jardins da City introduzem então um novo
Mazzei/Mandaqui/VilaGustavo/CasaVerde/Limão//VilaMadalena/VilaOlympia/Mi paradigma de organização espacial. Quando, nos anos 30, a capacidade de
randópo lisBosque da Saúde/Vila Guarany: todos bairros arruados nos anos 20 rendimento do primeiro cinturão Oeste (Centro Novo/Hygienópolis) chegava no
e que foram paulatinamente sendo ocupados pela autoconstrução domingueira limite, foi reinvestida pelo uso vertical dos apartamentos. E a abertura da Avenida
e pelos indissociáveis cômodos de aluguel. A história dos bairros populares é a Nove de Julho, parte do Plano de Avenidas de Prestes Maia, cuja implantação
história dos quintais coletivos, dos cômodos mínimos alugados para famílias iniciou-se nos anos 30, começava a sentar as bases para a migração das
inteiras, da situação eternamente cambiante, da progressão lenta feita dos atividades terciárias do Centro, na direção Sudoeste. Assim, a Av. Paulista,
pequenos investimentos familiares. Este padrão, estes ritmos, esta lógica símbolo da riqueza gerada na Primeira República com seus palácios de novos e
comercial, espacial e financeira, sempre ausentes das normas urbanísticas, velhos ricos, vai ser implodida para poder abrigar as torres de bancos, grandes
nada têm a ver com os investimentos massivos e em bloco que criaram a cidade corporações e antenas de comunicação a partir dos anos 60, sem nunca abalar
formal. seu prestígio. Assim, a valorização sobe as colinas e desce as baixadas em
ondas de ressignificação, invariavelmente acompanhadas pela priorização dos
Do ponto de vista dos investimentos públicos, é possível afirmar que,
investimentos públicos da cidade.
grosso modo, esses privilegiaram o vetor Sudoeste, ali concentrando um
investimento acumulado em obras viárias e intervenções urbanísticas que, Variavelmente acompanhadas pela priorização dos investimentos
articuladas a grandes investimentos privados, foram capazes de sustentar a públicos da cidade. Associados às concessionárias de serviços públicos, e

50 51
52 53

sobretudo a toda poderosa Light & Power que a um só tempo monopolizava na horizonte longínquo, sem o que o empreendimento corre um risco que sua
cidade os serviços de energia, iluminação, gás e transporte coletivo, e através incorporação não deseja se submeter. O exemplo mais apoteótico deste modelo
da contratação de urbanistas de renome internacional, a elite econômica da foram os empreendimentos da City, em que um grande investimento privado se
cidade produziu um espaço para si, ao mesmo tempo em que gerava um potenciou de uma articulação profissionalmente montada com os cabeças das
poderoso ramo de investimento financeiro: a incorporação imobiliária. Ao concessionárias de serviços e os governos em seus vários níveis, e que, através
contrário das regras do jogo que regeram a formação dos subúrbios populares e da lei, garantiu que este conjunto impressionante de investimentos pudesse ser
depois das periferias e favelas, a estruturação do espaço das elites foi, durante usufruído por uma parcela pequena, mas poderosa, dos habitantes da cidade.
todo o século, inscrita de forma cada vez mais minuciosa na legislação Hoje, as zonas residenciais exclusivas de baixa densidade têm sua tradução na
urbanística. Isso faz com que praticamente toda a legislação urbanística Z-1, zona exclusivamente residencial, de baixa densidade. Nelas, se definem de
formulada ao longo de um século faça referência e tenha aplicabilidade quase saída características que só uma ocupação de alta renda tem capacidade de
que exclusivamente a um pedaço extremamente minoritário — que corresponde pagar — uso residencial exclusivamente unifamiliar, frente mínima de 10 m,
hoje a aproximadamente 30% — porém muito poderoso da cidade28 . As leis recuo de frente mínimo de 5 m de frente e fundos e 3 m lateral, taxa de ocupação
que asseguravam o uso residencial unifamiliar em grandes lotes e circundados máxima de 0,5 e coeficiente máximo igual a 129 , onde o pequeno rendimento
por jardins, que garantiam as características dos bairros de Campos Elysios, decorrente da baixa densidade é largamente compensado pela valorização
Hygienópolis e Paulista, atravessaram o século e tiveram seu princípio decorrente do prestígio. Ao longo do tempo foram se aperfeiçoando os
consagrado pela definição das Z-1 na Lei de Zoneamento, promulgada em 1972 mecanismos de sua proteção de forma que uma infinidade de zonas e subzonas
e em vigor até os dias de hoje. O conceito de bairro exclusivo, que foi foram criadas apenas para protegê-las de vizinhanças de usos e ocupações não
sucessivamente incorporado à norma urbanística (na revisão do Código de condizentes com ela, que ameaçariam sua paisagem e as principais
Obras Arthur Saboya estão assim definidas ruas contidas nos bairros de características urbanísticas de seu conforto. Assim, foram criadas a Z-17 e Z-18
Perdizes, Alto da Lapa, Jardim América, Pacaembú, Av. Paulista, Hygienópolis, e os corredores em Zl(Z8CR-1), evitando que as fricções decorrentes do
Al. Barão de Limeira, Av. Pompeya, Jardim Paulista e Paraíso), cuja ocupação contacto com outras formas de ocupação do espaço e portanto, com outras
deve obedecer de alguma forma a recuos e usos especiais mencionados — territorialidades, fossem fortes o bastante para contaminá-la e como um vírus
entrou para dentro do zoneamento eternizando uma situação de fato: sua mortal, liquidar com ela. Para isso criou-se uma espécie de cinturão de proteção,
ocupação por certo padrão de moradia e, consequentemente, por certo grupo muralha legal que envolve estas zonas.
social à sua altura.
Na prática, a Z-1 é permanentemente invadida por outros usos –
Ao contrário da cidade irregular, a característica mais marcante da relação sobretudo por escritórios de prestação dos mais variados tipos de serviços,
entre o território e a lei, neste caso, é perpetuar o tipo de contrato comercial fenômeno que se alastra na exata medida do processo de terceirização da
estabelecido entre as partes quando do empreendimento. Esta é uma condição cidade e de dispersão deste tipo de atividades pelo território. Embora os conflitos
para que os altos investimentos que são feitos nestes locais possam render num em torno da Z-1 seguem sendo negociados e cartografados em mais e mais leis

52 53
54 55

e decretos (e hoje, cada vez mais também através do instrumento do barreira, associada a uma estratégia de investimentos massivos em projetos de
tombamento, enquadrando sobretudo os loteamentos da City como patrimônio infraestrutura e desenvolvimento urbano, que equipam e valorizam a zona,
histórico), a promoção imobiliária já encontrou seu sucessor como espaço financiados por cofres públicos e capitais privados.
exclusivo e protegido: o condomínio fechado. Trata-se de pura e simplesmente
Propositadamente deixei para o final a questão do tratamento jurídico-
materializar as muralhas, presentes na lei e no imaginário urbano,
urbanístico das ilegalidades urbanas, massivamente representa-as por uma
transformando-as em muros concretos e circuitos eletrônicos de controle e
periferia migrante, que se consolida muito lentamente e se reproduz por um
segurança, que eliminam a presença de qualquer "estranho" no bairro. Isto
contínuo expandir de fronteiras sobre terras cada vez mais distantes. A este
significa levar ao limite o modelo segregacionista proposto através do pioneiro
respeito o "Esquema Anhaia", baseado já na suposta provisoriedade dos
Campos Elysios.
mecanismos que produzem a periferia – uma vez que esta desapareceria se o
No projeto dos condomínios, o perigo decorrente da existência do "outro" plano fosse devidamente aplicado – propunha que aqueles pedaços de não
é evitado com a supressão do contacto com qualquer espaço exterior e com a cidade já existentes deveriam ser mapeados e que um aparato eficiente de
construção de um novo território exterior: íntimo, protegido e seguro como o "lar". fiscalização deveria ser montado para aplicar a lei. Esta suposição continua
Protegidos pelos muros e aparato tecnológico de segurança e controle, os plenamente em vigor na cultura urbanística de nossa cidade. Como até hoje a
habitantes podem usufruir de uma espécie de imitação cenográfica de cidade, periferia não desapareceu, costumasse, nos meios urbanísticos, atribuir o fato à
com ruas e praças como se fossem uma cidade, "but stripping troubled urbanity falta de planejamento associada à falta de fiscalização ou, procurando raízes
of its sting, of the presence of the poor, of crime, of dirt, of work" . E mais: o mais profundas, à falta de ética que impele governantes a negociar diretamente
condomínio imprescinde de negociações cotidianas com territórios vizinhos e com os interesses (sem seguir planos) e construtores, moradores e fiscais a
autoridades locais para se manter. Pode ter sua própria polícia, suas próprias criarem uma relação de compra e venda de direitos e sanções.
brigadas de limpeza, seu serviço de manutenção. Isso é possível principalmente
Entretanto, como vimos, a partir dos anos 30 se estabelece um pacto
porque pode pagar para ter tudo isto, não precisando de lobbies ou guerras de
territorial, onde a ilegalidade é tolerada para poder ser posteriormente
influência na determinação das prioridades orçamentárias. Retirando-se do
negociada, pelo Estado. Uma das condições para que este pacto possa ocorrer
espaço público, podem se retirar também da vida democrática da cidade. A
é o Estado assumir o papel de provedor e o território ilegal, de devedor de um
denominação norte-americana de edge cities, identificando os condomínios
favor do Estado, já que do ponto de vista estritamente legal ali caberiam punições
situados na periferia da cidade, como Alphaville e Tamboré, tem neste caso um
e não responsabilidades e direitos. Isto ocorre, quando, no contexto da
duplo sentido: é edge por se encontrar nos limites territoriais de um município,
redemocratização, melhorias urbanas na periferia ilegal se transformam em
mas é edge por estar no limite de pertinência a este território, prestes a romper
votos e lideranças de bairro em cabos eleitorais. Entre 1940 e 1950 cerca de 100
com ele. Desta forma, se completa o movimento iniciado com a construção dos
mil famílias, mais de meio milhão de pessoas, passaram a morar em casas
palacetes em bairros exclusivos, baseado no estabelecimento de uma legislação
próprias autoconstruídas nas periferias. A maioria havia embarcado na
"protetora" que limita as possibilidades de uso e ocupação, funcionando como
perspectiva do autoempreedimento de uma casa situada em bairros sem

54 55
56 57

qualquer melhoramento público. Porém não tardou muito, para que estes contidos na planta da cidade anexa à lei. Desta forma, concedia uma anistia em
habitantes passassem a demandar do Estado os melhoramentos inexistentes. massa, tornando todo e qualquer espaço contido naquela planta passível de
Na verdade, bastou renascer a vida política paulistana, para emergir uma nova investimento público. A medida legal era fundamental para pôr em marcha um
voz, que vinha destes novos territórios. Plano de Emergência, que consistia na colocação de guias, sarjetas,
pavimentação e instalação de luz elétrica nas vias principais da periferia dos
Os comunistas, no breve período de legalidade do partido, entre 1945 e
anos 5033.
1947, foram os primeiros a perceber a periferia como um espaço propício para o
surgimento de um movimento de luta por melhorias urbanas e novas formas de Colidia assim com a posição do Departamento de Urbanismo, que
organização popular. Durante o período de legalidade, em que constituíam a defendia que os arruamentos poderiam ser legalizados caso a caso, no
maior bancada na Câmara de vereadores, organizaram dezenas de Comitês lentíssimo ritmo em que se processavam no interior da máquina da Prefeitura,
Democráticos e Progressistas, cuja função era funcionar como órgão de massa para que garantissem condições mínimas34. Desta forma, o Departamento de
do partido, mas que promoveram um trabalho de organização das vilas em tomo Urbanismo se dissocia do movimento feito pelo Prefeito, que por sua vez
a problemas comuns, que não faltavam. Inaugura-se aí uma tradição de estabelece uma negociação direta com as lideranças locais, a elas se dirigindo
reivindicação e estratégias de pressão sobre o Estado – seu principal interlocutor em suas ações. Combatidas pelos urbanistas, suas medidas eram amplamente
– que redefiniu a geografia política da cidade. Com a ilegalidade do PCB, os apoiadas pelos empresários ligados ao setor de construção civil e loteamentos,
CDPs foram fechados e os vereadores comunistas cassados. Porém, boa parte que tiveram grandes possibilidades de ampliação de seus negócios. O sucesso
destas lideranças foram incorporadas nas Sociedades Amigos de Bairro, forma eleitoral desta ação de Jânio foi imediato – em 1955 este vence a eleição para o
de organização que se transformou na principal representação da periferia na Governo do Estado, enfrentando Adhemar, e elege seu sucessor em São Paulo.
relação com a Câmara e Prefeitura. Até 1953, os vereadores – principalmente Em seu período de governador, promove uma ampliação dos serviços de água,
Jânio Quadros, suplente que havia assumido em 48, com a reabertura da aumentando em 5 vezes a adução e ampliando em quase 50% a rede,
Câmara após a cassação dos vereadores do PCB – já ressoam a voz da atendendo assim a muitos bairros da periferia. Enquanto governador, sua
periferia, denunciando as condições precárias e encaminhando reivindicações. influência contribui para a promulgação da lei de conservação, que permite a
Porém a institucionalização desta relação só se dará a partir do mandato de edificações irregulares serem legalizadas, o que era fundamental para a
Jânio, primeiro prefeito eleito pela cidade após a democratização. São Paulo, em instalação dos serviços. Com esta política, Jânio consolida um primeiro anel de
seu quarto centenário de existência, era então uma metrópole industrial de 2,5 loteamentos, ocupados entre os anos 30 e 50, enraizando ali sua poderosa base
milhões de habitantes e seu imenso território ilegal passa a ser, pela primeira política. Consolida também uma relação entre o político e a produção da
vez, priorizado pela Prefeitura. Uma das primeiras medidas administrativas de periferia, que tem, na própria condição inicial de ilegalidade do assentamento, a
Jânio foi conseguir a aprovação na Câmara de um projeto de lei sobre possibilidade de transformar investimentos públicos em poderosas moedas de
"oficialização dos logradouros", que declarava oficiais todos os loteamentos barganha em contabilidades eleitorais.
aprovados, todos os registrados de acordo com a anistia de 1936 e todos

56 57
58 59

Este pacto territorial, esboçado, como vimos, desde os anos 30, mas assistemática e incompleta, o que tem impedido a institucionalização do
definido mais claramente no contexto da redemocratização e populismo, nunca planejamento urbano. Decorrem daí graves problemas, notadamente nas
mais foi desmontado. Através dele se permite construir redes de sustentação principais cidades, como o crescimento desordenado do tecido urbano, a
política a partir de investimentos públicos nos territórios irregulares. A legalidade realização de obras setoriais contrárias aos objetivos da política urbana e a
urbanística, sob a justificativa da isonomia e igualdade, exige a aplicação de um degradação de áreas centrais dotadas de infraestrutura. A adoção de um Código
único modelo de agenciamento territorial, que com raras exceções corresponde de Urbanismo, nos moldes da legislação amplamente adotada na Europa há
aos contratos praticados no interior do território formal. Ali se estabelece uma muitas décadas, pode contribuir para a solução de muitos desses problemas.
regra milimétrica de uso e ocupação, garantindo reservas de mercado e
Competência da União para legislar sobre direito
inscrevendo contratos econômicos em lei. Ali se concentram os potenciais de
urbanístico
edificabilidade e as grandes obras públicas, os grandes equipamentos culturais
e educacionais, os maiores centros de diversão e consumo. Para além do canal Até a Constituição de 1988, a política urbana sempre foi tratada como um

do Tamanduateí começa outra cidade, construída por uma infinidade de micro assunto exclusivamente municipal, sobre o qual a União não poderia dispor

investimentos pessoais e coletivos, que foi se consolidando sob a égide da senão em linhas gerais. A Constituição incluiu o direito urbanístico entre as

provisoriedade. Ali partidos políticos e lideranças negociaram ao longo de matérias de competência legislativa concorrente entre a União e os Estados (art.

décadas uma legitimidade que garantiu sua consolidação, perpetuando ad 24, I) e atribuiu à União competência para instituir diretrizes para o

eternum. Um modelo de desenvolvimento urbano excludente e perverso. E desenvolvimento urbano (art. 21, XX). Aos Municípios foi atribuída competência

contra este modelo, que um movimento pela reforma urbana se articulou no final para “promover adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e

dos anos 80, mas esta é outra história que nestas breves linhas já não cabe controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano” e para

contar. “suplementar a legislação federal e estadual” (art. 30, II e VIII).

No capítulo específico sobre a política urbana, essa divisão de


DO ESTATUTO DA CIDADE AO CÓDIGO DE responsabilidades foi confirmada, uma vez que se estabeleceu que a política de
URBANISMO desenvolvimento urbano fosse executada pelo Poder Público municipal,
conforme diretrizes gerais fixadas em lei (art. 182). Ao consagrar o direito
Introdução
urbanístico como um ramo próprio do direito, a Constituição desvinculou-o do
A edição do Estatuto da Cidade, em 2001, foi um divisor para o direito
direito administrativo, o que veio alterar o regime jurídico de produção de suas
urbanístico brasileiro, uma vez que se trata da primeira legislação abrangente
normas. Enquanto as regras de direito administrativo são ordinariamente
sobre política urbana, que é de responsabilidade municipal. Apesar desse
produzidas pela mesma unidade federativa que as aplicará, as de direito
grande avanço, passada quase uma década de sua vigência, é importante que
urbanístico sujeitam-se ao regime da competência concorrente entre a União e
se faça uma reflexão sobre o futuro do direito urbanístico em nosso país. Em
os Estados.
comparação com outros países, a legislação brasileira ainda se apresenta muito

58 59
60 61

Conclui-se daí que, embora os Municípios possam legislar sobre direito – Lei nº 12.305, de 2 de agosto de 2010, que institui a Política Nacional
urbanístico para suplementar a legislação federal e estadual, sua competência de Resíduos Sólidos.
privativa diz respeito apenas à execução da política urbana, que se dá por meio
Além dessas leis federais, inúmeras normas estaduais e municipais
do planejamento e do controle do uso do solo urbano.
dispõem sobre desenvolvimento urbano.
A legislação urbanística federal
Deficiências da legislação federal
O direito urbanístico, que tem por objeto o ordenamento territorial das
Embora muitas das leis citadas sejam relativamente recentes e tenham
cidades, está distribuído, na esfera federal, em três leis ordinárias e uma medida
contribuído para o aperfeiçoamento da política urbana brasileira, a legislação
provisória:
nacional ainda apresenta muitas deficiências, especialmente se comparada à
– Lei nº 6.766, de 19 de dezembro de 1979, que dispõe sobre o existente nos países europeus, que se encontra sistematizada em Códigos de
parcelamento do solo urbano; Urbanismo. As três principais leis federais não adotam uma terminologia comum
e raramente são interpretadas em conjunto. Decorrem daí lacunas e
– Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001, que regulamenta os arts. 182 e
sobreposições, cujo equacionamento nem sempre é imediato.
183 da Constituição Federal e estabelece diretrizes gerais de política urbana
(Estatuto da Cidade); O Estatuto da Cidade introduziu no Direito brasileiro alguns instrumentos
de política urbana existentes na Europa, mas sua disciplina é superficial,
– Medida Provisória nº 2.220, de 4 de setembro de 2001, que dispõe sobre
notadamente no que diz respeito ao planejamento urbano. Não há uma descrição
a concessão de uso especial de que trata o § 1º do art. 183 da Constituição e
clara e abrangente do conteúdo do plano diretor e dos demais planos
cria o Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano (CNDU); e
urbanísticos nem da maneira como os instrumentos de política urbana se
– Lei nº 11.977, de 7 de julho de 2009, que dispõe sobre o Programa articulam com eles. Nos Códigos de Urbanismo, em contraposição, os planos
Minha Casa, Minha Vida – PMCMV e a regularização fundiária de urbanísticos são tipificados e detalhadamente regulamentados quanto à forma
assentamentos localizados em áreas urbanas. de apresentação, ao conteúdo e ao procedimento de elaboração.

Diversas outras leis setoriais incidem indiretamente sobre o O caso mais grave é o do plano diretor, cujo conteúdo não foi
desenvolvimento urbano, podendo-se citar as seguintes: satisfatoriamente definido, apesar de a Constituição o ter tornado obrigatório

– Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, que institui o Código Florestal; para as cidades com mais de 20 mil habitantes. Um exemplo dessa lacuna é o
fato de que, na maioria dos casos, os planos diretores elaborados após o
– Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002, que dispõe sobre a universalização
Estatuto da Cidade não contêm um mapeamento das áreas de risco, cuja
do serviço público de energia elétrica;
ocupação é vedada pela Lei nº 6.766, de 1979. De um modo geral, tende-se a
– Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007, que estabelece diretrizes tratar os planos diretores, cada vez mais, como peças de retórica política e não
nacionais para o saneamento básico;

60 61
62 63

como documentos técnicos de urbanismo, capazes de efetivamente orientar o necessárias para a revitalização de áreas degradadas, como zonas portuárias,
crescimento das cidades. centros históricos e assentamentos regularizados, medida que interessa a
praticamente todas as grandes cidades brasileiras. A ausência de um regime
Outra consequência da inexistência de um sistema de planejamento
jurídico específico, entretanto, torna esse tipo de projeto, em muitos casos,
urbano institucionalizado é a ausência de coordenação territorial entre as
inviável.
políticas setoriais e o ordenamento territorial das cidades. Um exemplo disso é
a provisão de infraestrutura urbana em assentamentos irregulares. Por
A Experiência internacional em direito urbanístico
determinação da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) às
A precariedade do estado atual do direito urbanístico brasileiro só pode
concessionárias de distribuição de energia elétrica, praticamente todos os
ser devidamente aferida por comparação com os demais países. Ao contrário do
assentamentos humanos irregulares são dotados, atualmente, de ligações
Brasil, praticamente todos os países desenvolvidos do mundo dispõem de uma
oficiais. Não há exceções à regra, que abrange, por exemplo, favelas,
legislação coerente de urbanismo. O grau de sistematização destas leis é tão
loteamentos clandestinos, áreas de proteção ambiental e áreas de risco.
grande que, em alguns países, como a França e a Itália, se adota a denominação
Tampouco há obrigatoriedade de consulta aos Municípios quanto à possibilidade
de “Código de Urbanismo”. O que garante a unidade do direito urbanístico e
e à conveniência de regularização dos assentamentos. A colocação de
inspira seus princípios básicos é ideia da necessidade do planejamento
infraestrutura em assentamentos irregulares acarreta a sua consolidação, o que
territorial. O direito urbanístico nasce quando se estabelece a obrigatoriedade de
subverte o planejamento territorial eventualmente existente e representa o
um plano geral para toda cidade que apresente algum dinamismo populacional.
principal vetor de ocupação das áreas de risco.
Seus institutos visam organizar o sistema de planejamento decorrente dessa
Outro tema que merece melhor tratamento legal é o da participação da obrigação e definir com clareza os direitos dos proprietários urbanos quanto às
população no urbanismo. Embora o Estatuto da Cidade tenha previsto essa possibilidades de utilização e transformação de seus terrenos.
diretriz, não há procedimentos claros. Os Códigos de Urbanismo europeus, em
A adoção dessa legislação urbanística abrangente iniciou-se ainda no
contraposição, são muito detalhados no que diz respeito ao processo de
começo do século, com a edição do Town and Country Planning Act (1909), na
elaboração dos planos urbanísticos e da aprovação de obras públicas e privadas.
Inglaterra, e da Lei Cornudet, na França (1919). O maior desenvolvimento desse
Exemplos desse tipo de fragilidade institucional em nosso país são a aprovação
ramo do direito ocorreu logo após a 2a guerra, quando todos os países da
de loteamentos e de grandes obras sem consultas ou audiências públicas e a
Europa aprovaram leis detalhadas relativas ao planejamento e ao
introdução de alterações no plano diretor por iniciativa das Câmaras Municipais.
desenvolvimento urbano. Entre as principais legislações internacionais de direito
A renovação de centros degradados é uma necessidade nas principais cidades,
urbanístico, que serviram de inspiração para outros países destacam-se as
pois neles já existe uma infraestrutura completa, que pode ser mais bem
seguintes:
utilizada. A legislação brasileira é praticamente omissa, entretanto, com relação
ao tema do reparcelamento, ou seja, a renovação do tecido urbano que envolva – Inglaterra: Town and Country Planning Act, de 1947, reformulado em
alterações no sistema viário ou nas áreas livres. Intervenções desse tipo são 1990;

62 63
64 65

– Espanha: Lei de Regimen del Suelo y Ordenación Urbana, de 1956, Sugestão de agenda
reformulada em 1975 e 1992; A harmonização das leis federais pode ser feita por meio de sua

– Itália: Legge Urbanistica, de 1942, reformulada em 1967 e 1977; consolidação, conforme previsto na Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro
de 1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação
– França: Code de l’Urbanisme et de l’Habitation, de 1954, reformulado
das leis. A consolidação consiste na integração de todas as leis pertinentes a
em 1973;
determinada matéria num único diploma legal, revogando-se formalmente as leis
– Alemanha: Bundesbaugesetz (Lei Federal de Ordenação Urbanística), incorporadas à consolidação, sem modificação do alcance nem interrupção da
de 1960. força normativa dos dispositivos consolidados (art. 13, § 1º).

A adoção de códigos de urbanismo não é um fenômeno localizado no A consolidação não seria o instrumento adequado, entretanto, para o
continente europeu ou nos países desenvolvidos. Nos Estados Unidos e no aperfeiçoamento da legislação existente no sentido defendido no presente texto.
Canadá, os códigos foram adotados pelos estados e províncias. No Chile, a Por essa razão, entendemos ser conveniente a elaboração de um projeto de
matéria é regulada pela Ley General de Urbanismo y Construcciones, de 1976. Código de Urbanismo no âmbito do Congresso Nacional, com ampla consulta à
Na Colômbia, pela Ley de Reforma Urbana, de 1989. No México, pela Ley sociedade e aos Estados e Municípios.
General de Assentamientos Humanos, de 1976. O mesmo sucede em países
A tramitação desse projeto certamente exigiria amplos debates, em
pertencentes a outros continentes e culturas, o que se explica pela adesão aos
ambas as casas do Congresso Nacional. Sua simples divulgação, no entanto, já
princípios do urbanismo que se disseminaram pelo mundo durante século XX.
traria para um novo patamar a discussão a respeito do direito urbanístico e da
Embora cada uma destas leis nacionais apresente particularidades política urbana no País, contribuindo para que se aprofundassem os estudos e
decorrentes do sistema institucional de cada país, há uma notável semelhança se intensificasse o debate a respeito do assunto na sociedade e nos meios
entre elas. Todas estabelecem um sistema hierarquizado de ordenação especializados. Em boa medida, foi o que ocorreu com o Projeto de Lei nº 775,
territorial, pelo qual os planos de menor escala detalham os de maior escala. de 1983, do Poder Executivo, chamado de “Lei do Desenvolvimento Urbano”,
Cada um desses planos é minuciosamente descrito quanto ao seu conteúdo, que deu origem às discussões que resultaram, em 2001, no Estatuto da Cidade.
forma de aprovação e atualização, grau de detalhamento e eficácia jurídica. A adoção de um Código de Urbanismo fortaleceria o planejamento urbano,
Mesmo em países federados, como a Alemanha e o Canadá, a legislação condição indispensável para a melhoria da qualidade de vida nas cidades. Para
relativa ao urbanismo é estabelecida nas esferas federal ou provincial. Aos oferecer uma contribuição inicial ao tema, apresentamos em anexo uma
governos locais compete elaborar os planos urbanísticos e aplicá-los, sendo tradução do índice da Ley sobre el Régimen del Suelo y Ordenación Urbana, da
reservada ainda às instâncias supramunicipais a competência para aprovar os Espanha.
planos e para fiscalizar sua conformidade com a legislação e os planos de nível
superior.

64 65
66 67

O compromisso de compra e venda de imóvel sempre é fonte de dúvidas


na qualificação registral. Uma vez registrado, tem força de obstar o registro de
REGISTRO DE IMÓVEIS escritura pública outorgada pelo promitente vendedor a terceiro? O CSM
entende que o art. 1.418, do Código Civil prevê hipótese de ineficácia e não de
Princípio da continuidade
nulidade da compra e venda a pessoa diversa do promitente vendedor. Por isso,
Serve para evitar que um imóvel seja alienado por quem não seja o seu
nos autos da Apelação Cível nº 0025566-92.2011.8.26.0477, permitiu o registro.
dono (Alyne Yumi Konno - Registro de Imóveis, Memória Jurídica Editora, p. 35).
A aplicação do princípio da continuidade não se restringe aos casos em que há
Assim, quem transfere um direito tem de constar do registro como titular desse
transferência de domínio. O registro de outros negócios jurídicos também exige
direito (Narciso Orlandi Neto, Retificação do Registro de Imóveis, Juarez de
a sua observância. Nos autos do Processo CG 35.487/2014, foi negada a
Oliveira, pág. 55/56). Exemplo: para que a escritura pública por meio da qual "A"
averbação do contrato de sublocação porque o titular de domínio que anuíra com
vende um imóvel a "B" seja registrada no registro de imóveis, é preciso que "A"
a sublocação não mais ostentava essa qualidade na matrícula. Isso aconteceu
conste na matrícula como titular de domínio do imóvel vendido. Afrânio de
porque o sublocátario, embora tenha regularmente firmado o contrato de
Carvalho explica o princípio da continuidade da seguinte forma: "em relação a
sublocação, demorou para levá-lo ao registro de imóveis. E, quando o
cada imóvel, adequadamente individuado, deve existir uma cadeia de
apresentou para averbação, foi surpreendido com a notícia de que o imóvel havia
titularidade à vista da qual só se fará a inscrição de um direito se o outorgante
sido vendido para outra pessoa.
dele aparecer no registro como seu titular. Assim, as sucessivas transmissões,
que derivam umas das outras, asseguram a preexistência do imóvel no Assim, reputou-se violada a continuidade porque, ao tempo da
patrimônio do transferente" (Registro de Imóveis, Editora Forense, 4ª Ed., p. apresentação do contrato no registro de imóveis, o anuente da sublocação não
254). mais constava da matrícula como titular de domínio. Vale lembrar que a
qualificação registral segue a regra tempus regit actum, o que significa que o
É importante observar que a continuidade relaciona-se com a pessoa que
título se sujeita às condições vigentes ao tempo de sua apresentação a registro,
está transferindo o imóvel e a que o está recebendo. E o art. 195 da LRP é
pouco importando a data de sua celebração (Ap. Cíveisl nº, 115- 6/7, nº 777-6/7,
expresso nesse sentido: Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em
nº 530-6/0, e nº 0004535-52.2011.8.26.0562). Outro tema recorrente nos
nome do outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título
recursos administrativos e apelações diz respeito à qualificação registral dos
anterior, qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do
títulos judiciais. A jurisprudência do CSM e da CG é tranquila no sentido de que
registro. Deste modo, se a escritura de inventário e partilha extrajudicial não
os títulos judiciais também se sujeitam à qualificação registral, haja vista que o
respeitar a ordem de vocação dos herdeiros que estão recebendo os imóveis, há
exame da legalidade não promove incursão sobre o mérito da decisão judicial,
quebra do princípio da legalidade e não da continuidade. Contudo, se o formal
mas à apreciação das formalidades extrínsecas da ordem e à conexão de seus
de partilha for judicial, o registrador e o juiz corregedor permanente não podem
dados com o registro e a sua formalização instrumental" (Ap. Cível nº 31881-
discutir o acerto da ordem de vocação hereditária porque a esfera administrativa
0/1.).
não pode rever a jurisdicional (CSM - Ap. Cível 0011977-27.2011.8.26.0576).

66 67
68 69

Deste modo, não se averbará o mandado de penhora se o executado não no título objeto de registro de modo a permitir sua exata localização e
constar na matrícula como titular do direito penhorado (Processo CG individualização, não se confundindo com nenhum outro.
2013/151927). É preciso destacar que, se a recusa do registrador for examinada
Narciso Orlandi Neto, ao citar Jorge de Seabra Magalhães, lembra que
e afastada pelo juízo que expediu o título, o registro deve ser efetuado ainda que,
"as regras reunidas no princípio da especialidade impedem que sejam
na visão registral, haja violação ao princípio de continuidade (Proc. CG
registrados títulos cujo objeto não seja exatamente aquele que consta do registro
14286/2013 e 98435/2011).
anterior. É preciso que a caracterização do objeto do negócio repita os elementos
De acordo com a atual jurisprudência do C. Conselho Superior da de descrição constantes do registro" (Narciso Orlandi Neto, Retificação do
Magistratura (Apelações nºs 9000001-34.2013.8.26.0531 e nº 9000002- Registro de Imóveis, Juarez de Oliveira, pág. 68).
19.2013.8.26.0531), a arrematação de imóvel em hasta pública constitui modo
Por esta razão, não se permite o registro de escritura pública que
derivado de aquisição de propriedade imóvel. O entendimento anterior, segundo
descreva o imóvel de forma diferente da que consta no registro de imóveis ( CSM
o qual a natureza dessa aquisição é originária (0007969-54.2010.8.26.0604),
Ap. Cível no 10.897/2010). O art. 176, § 1º, II, 3, da LEI Nº 6.015/73, arrola os
restou superado. Corolário disso é que, se o imóvel arrematado não estiver em
elementos de identificação dos imóveis rural e urbano:
nome do executado, o registrador poderá recusar o registro com base na
continuidade registral. Princípio da Continuidade na Lei nº 6.015/73: a - rural, o código do imóvel, os dados constantes do CCIR, a
denominação e suas características, confrontações, localização e área;
Art. 195 - Se o imóvel não estiver matriculado ou registrado em nome do
outorgante, o oficial exigirá a prévia matrícula e o registro do título anterior, b - urbano, suas características e confrontações, localização, área,

qualquer que seja a sua natureza, para manter a continuidade do registro. logradouro, número e sua designação cadastral, se houver.

Art. 237 - Ainda que o imóvel esteja matriculado, não se fará registro que Como lembra Alyne Yumi Konno (Registro de Imóveis - Teoria e Prática,

dependa da apresentação de título anterior, a fim de que se preserve a Memória Jurídica, p. 20/21), tem-se admitido a mitigação da especialidade a fim

continuidade do registro. de não obstar o tráfego de transações envolvendo imóveis, permitindo-se a


manutenção de descrições imprecisas, constantes de antigas transcrições,
Princípio da especialidade objetiva quando da abertura da matrícula, desde que haja elementos mínimos para se
Para Afrânio de Carvalho, o princípio da especialidade do imóvel significa determinar a situação do imóvel, e que ele seja transmitido ou onerado por
a sua descrição como corpo certo, a sua representação escrita como inteiro, ou seja, desde que a nova matriz a ser aberta o abranja por inteiro.
individualidade autônoma, com o seu modo de ser físico, que o torna Contudo, se o imóvel for objeto de desmembramento, fusão ou instituição de
inconfundível e, portanto, heterogêneo em relação a qualquer outro (Reg de condomínio, sua descrição deverá submeterse aos requisitos da LRP.
Imóveis: comentários ao sistema de registro em face da Lei 6015/73, 2a ed., Rio
de Janeiro, 1977, p. 219). Por isso, o imóvel deve estar perfeitamente descrito

68 69
70 71

Nos autos do processo CG nº 1241/96, o então Juiz Auxiliar da poderão ser apurados os remanescentes de áreas parcialmente alienadas, caso
Corregedoria Francisco Eduardo Loureiro, hoje Desembargador, aprofundou o em que serão considerados como confrontantes tão-somente os confinantes das
exame da mitigação da especialidade áreas remanescentes. É importante frisar que, ainda que o laudo apresentado
na ação de desapropriação descreva a área remanescente, se a descrição for
Não se nega, portanto, a possibilidade de ser descerrada matrícula com
exata coincidência com o registro anterior, em que pese a ausência de discrepante das medidas contidas na matrícula, o registrador pode exigir que a
medidas perimetrais e da área de superfície. O que não se admite é a abertura da matrícula seja precedida de retificação do registro - judicial ou
criação de nova unidade imobiliária contendo descrição perfeita, por administrativa - para que se apure a área remanescente (CSM Ap. Cível no
fusão de matrículas, quando um dos imóveis unificandos não dispõe de
0005861-92.2012.8.26.0180).
todas as medidas tabulares. Em termos diversos, imóvel com figura
imprecisa não pode gerar, por fusão ou desmembramento, nova unidade Princípio da especialidade subjetiva
com figura e descrição precisas. ... Logo, quando do descerramento de
O princípio da especialidade, diretamente ligado ao princípio da
matrícula que abranja a totalidade do imóvel, vale a descrição contida no
registro anterior, ainda que imperfeita, desde que suficiente para a continuidade, pode ser dividido em duas espécies: a especialidade objetiva e a
identificação do prédio. Quando, porém, criam-se novos imóveis especialidade subjetiva. Sobre a primeira, já se falou. Tratemos da segunda. A
decorrentes de desmembramentos ou de fusões, as unidades especialidade subjetiva impõe que na matrícula conste, como requisito
segregadas ou unificadas devem subordinar-se aos requisitos do artigo
necessário, o nome, domicílio e nacionalidade do proprietário. Cuidando-se de
176 da Lei n. 6.015/73. Não há razão, em tais casos, para tolerar a
pessoa física, seu estado civil, profissão, o número de inscrição no Cadastro de
imprecisão, porque o novo prédio não mais tem identidade descritiva
com o registro de origem.
Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda ou do Registro Geral da cédula de
identidade, ou, à falta desse, sua filiação. Tratando-se de pessoa jurídica, a sede
Esse entendimento tem sido prestigiado e até ampliado pelo CSM e pela
social e o número de inscrição no Cadastro Geral de Contribuintes do Ministério
Corregedoria Geral da Justiça, podendo-se citar a Apelação Cível nº 9000002-
da Fazenda (art. 176, II, 4, alíneas ‘a’ e ‘b’, da Lei nº 6.015/73.
16.2011.8.26.02961 , em que o CSM admitiu o registro mesmo no caso em que
a descrição deficiente constava da matrícula e não de transcrição. O que importa Via de consequência, para que seja preservada a continuidade, no título

é que a descrição do título, ainda que precária, coincida com a do registro e seja a ser eventualmente registrado perante a matrícula deve constar essa mesma
suficiente para identificar o imóvel. qualificação completa das partes. Assim, por exemplo, em uma escritura de
compra e venda a qualificação do vendedor, proprietário, deve ser idêntica à
Quando uma parte do imóvel é objeto de desapropriação, a parte restante,
qualificação que consta da matrícula. Eventual divergência implica a
chamada de remanescente, fica com a sua descrição prejudicada, isto é, deixa
necessidade de retificação. Pense-se, ainda a título de ilustração, na pretensão
de ser um corpo certo e perde a sua individualidade autônoma que o torna
de registro de um formal de partilha. O decurso do tempo faz com que o estado
inconfundível em relação a qualquer outro. A abertura de matrícula para essa
civil do proprietário possa ter sido alterado. Será o caso, nessa hipótese, de
área remanescente depende da prévia retificação do registro, n forma do art. art.
prévia atualização do estado civil – com a apresentação de averbação de
213, § 7o , da Lei nº 6.015/73: Pelo mesmo procedimento previsto neste artigo

70 71
72 73

divórcio do falecido, por exemplo – a fim de que se preserve não somente a seja feito o mais rápido possível para que o adquirente não venha a se tornar
especialidade subjetiva, mas, também, a continuidade. proprietário de um imóvel onerado por, digamos, uma penhora que na época da
lavratura da escritura de venda e compra ainda não existia (LOUREIRO, Luiz
Aliás, é por isso que se diz que ambos os princípios estão intimamente
Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. 5ª edição. Rio de Janeiro:
ligados. É por meio da preservação da especialidade subjetiva que se assegura
Forense, 2014, p. 301). Nas transmissões entre vivos, portanto, o registro tem
que a continuidade não será quebrada, transmitindo-se a propriedade apenas
efeito constitutivo. Nesse sentido:
através daquele que possuir, de fato, tal direito. Vale dizer, garante-se que a
pessoa que transmite um direito dele figure como titular no registro imobiliário, “O princípio da inscrição está positivado no caput e no §1º do artigo em
exame. Traduz o caráter constitutivo do registro imobiliário, ou seja, a
seja a transmissão decorrente de ato voluntário ou não.
transmissão e a constituição de direitos reais sobre imóveis por ato entre
Princípio da Inscrição ou do Registro vivos e derivado somente se dão com o registro, salvo exceções legais,
como o casamento pelo regime da comunhão universal de bens”
O princípio da inscrição ou do registro decorre da regra segundo a qual a
(LOUREIRO, Francisco Eduardo. Código Civil Comentado. Barueri:
transmissão de um direito real por ato entre vivos somente se dá a partir da
Manole, 2007, p. 1081).
inscrição do título translativo no Registro de Imóveis competente. Tal princípio
Importante lembrar que, diferentemente, nos casos de sucessão legítima
está expresso no caput e no §1º do art. 1.245 do Código
ou testamentária, ou ainda da usucapião, o registro tem caráter apenas
Art. 1.245. Transfere-se entre vivos a propriedade mediante o registro do declaratório. Na sucessão, o herdeiro adquire a propriedade automaticamente
título translativo no Registro de Imóveis. com a morte do autor da herança, pelo instituto da saisine (art. 1.784 do Código
§1º Enquanto não se registrar o título translativo, o alienante continua a Civil), antes mesmo do registro do formal de partilha. Na usucapião, a sentença
ser havido como dono do imóvel. declara a propriedade adquirida pelo possuidor pelo exercício da posse ad
usucapionem, sem oposição, pelo prazo legal.
Em verdade, não apenas a transmissão da propriedade, mas a
constituição, modificação, extinção dela ou de direitos reais sobre imóveis De toda forma, em quaisquer dos casos, o registro é obrigatório, pois,
apenas se concretizam com o registro (LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros mesmo nas hipóteses em que ele tem caráter apenas declaratório, o herdeiro ou
Públicos: teoria e prática. 5ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 300). pessoa que adquiriu por usucapião, não poderão alienar o bem sem antes
providenciarem na matrícula a passagem do imóvel para seus respectivos
Para ser válido, o registro deve ser efetuado no cartório de registro de
nomes, sob pena de se infringir o princípio da continuidade. Afinal, só quem é o
imóveis competente, isto é, da circunscrição do imóvel. Nos casos em que o
proprietário na matrícula pode alienar por ato entre vivos. Mesmo nos casos de
imóvel se situar em mais de uma circunscrição, deve ser registrado em todas.
transmissões causa mortis e de aquisições originárias, portanto, o registro é
Assim, não é suficiente apenas a lavratura da escritura. Para a aquisição da
necessário para a publicidade em relação a terceiros e para a garantia da
propriedade, o comprador deve registrá-la no cartório competente. Não há prazo
disponibilidade pelos titulares.
legal para que o registro seja efetuado. A prudência, entretanto, recomenda que

72 73
74 75

EMENTA. REGISTRO DE IMÓVEIS - Qualificação de título judicial - Carta Princípio da Legalidade


de arrematação - Imóvel arrematado que não pertence mais, em sua totalidade, Na esfera registraria, o princípio da legalidade assume a função atribuída
ao executado - Parte da área, anteriormente, arrematada e adjudicada, conforme ao registrador de exercer o controle de legalidade sobre os títulos que ingressam
registros já concretizados - Irrelevância da alegação de que a arrematação para registro na serventia imobiliária. Como destaca Narciso Orlandi Neto,
geradora do título ora apresentado foi efetuada antes das demais - Prevalência “estabelece a lei, pois, um filtro de legalidade para os títulos, sujeitando-os, antes
dos registros primeiramente realizados - Incidência dos princípios da inscrição, do registro, à qualificação” (ORLANDI NETO, Narciso. Retificação do registro de
da prioridade (anterioridade) e da continuidade - Exigência, outrossim, de imóveis. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999, p. 74).
apresentação de Certificado de Cadastro de Imóvel Rural (CCIR) e de prova de
Segundo Luiz Guilherme Loureiro, “na esfera do direito registral, o
pagamento do Imposto Territorial Rural (ITR) dos últimos cinco anos - Recusa
princípio da legalidade pode ser definido como aquele pelo qual se impõe que
procedente - Recurso não provido (CSMSP - APELAÇÃO CÍVEL: 1.140-6/8, data
os documentos submetidos ao Registro devem reunir os requisitos exigidos
do julgamento: 15/09/2009, Relator: Reis Kuntz).
pelas normas legais para que possam aceder à publicidade registral. Destarte,
Registro de Imóveis - Dúvida - Escritura de venda e compra lavrada no para que possam ser registrados, os títulos devem ser submetidos a um exame
ano de 1.986 - Apresentação a registro na vigência da Lei n° 8.212/91 - de qualificação por parte do registrador, que assegure sua validade e perfeição
Necessidade de apresentação da certidão negativa de débitos junto à Receita (LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. 5ª edição. Rio
Federal - Inexistência de direito adquirido, em ato complexo não consumado por de Janeiro: Forense, 2014, p. 307). Embora não esteja previsto expressamente
inteiro - Aplicação da lei vigente ao tempo do registro - Registro inviável - na Lei n. 6.015/73, decorrem do princípio da legalidade, por exemplo, as
Recurso improvido (CSMSP - APELAÇÃO CÍVEL 35.714-0/0, data do determinações previstas no artigo 189, relacionada à disputa de grau entre
julgamento: 30/12/1996, Relator: Márcio Martins Bonilha). hipotecas; no artigo 190 quanto aos direitos contraditórios; as cautelas quanto

EMENTA NÃO OFICIAL. Princípio da inscrição. A transmissão do direito ao instrumento e a forma dos títulos, conforme artigos 193 e 194, assim como

real por ato inter-vivos só se opera mediante o registro do título translativo no os requisitos do registro, que devem observar outros princípios registrarios como

registro de imóveis. A Corregedoria Permanente exerce função correcional da o da continuidade (artigo 195) e o da especialidade (artigo 196) – op. cit., p. 74,

atividade registral e tem incumbência de fazer cumprir as ordens legais de extraindo-se, nesses últimos casos, também, o princípio da legalidade.

indisponibilidade de modo que lhe falece competência para determinar o Da mesma forma, os títulos judiciais também devem observar o princípio
levantamento da indisponibilidade decretadas por outros juízos. Apenas quem da legalidade, o que é feito por meio da qualificação. Todavia, nesse caso, como
determinou a indisponibilidade, na forma da lei, poderá decidir a respeito do seu destaca Narciso Orlandi Neto “o limite, evidentemente, é a atividade jurisdicional,
levantamento (1ª VRPSP - PROCESSO: 100.09.340826-8, data do julgamento: porque o registrador não pode qualificar negativamente título judicial por
13/01/2010, Juiz Gustavo Henrique Bretas Marzagão). pretensa ilegalidade de sentença ou de decisão, ou ainda por pretensa
inobservância do processo legal, como, por exemplo, a falta de intimação do
credor hipotecário na arrematação do bem hipotecado, em execução de título de

74 75
76 77

credor quirografário; a falta de citação do proprietário no usucapião Os artigos 182, 183 e 174 da Lei de Registros Públicos dispõem,
extraordinário” (ORLANDI NETO, Narciso. Retificação do registro de imóveis. respectivamente, que “Todos os títulos tomarão, no Protocolo, o número de
São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 1999, p. 76). ordem que lhes competir em razão da sequência rigorosa de sua apresentação”,
que “Reproduzirse-á, em cada título, o número de ordem respectivo e a data de
Pertinente, novamente, a lição de Luiz Guilherme Loureiro, no sentido de
sua prenotação”, e que “O Livro n. 1 – Protocolo – servirá para apontamento de
que “a legalidade em matéria registral aplica-se a todo procedimento registral,
todos os títulos apresentados diariamente, ressalvado o disposto no parágrafo
mas tem seu ápice no denominado “exame de qualificação”, no qual o registrador
único do art. 12 desta Lei.”. Os artigos 11 e 12 dispõem, respectivamente, que
faz o controle da legalidade do título submetido a registro. No que tange ao
“Os oficiais adotarão o melhor regime interno de modo a assegurar às partes a
exame do documento, o fundamento do princípio da legalidade se funda na
ordem de precedência na apresentação de seus títulos, estabelecendo-se,
necessidade de que os assentos registrais concordem com a realidade externa
sempre, o número da ordem geral” e que “Nenhuma exigência fiscal, ou dúvida,
ao registro, evitando que ingressem documentos carentes de validade ou de
obstará a apresentação de um título e o seu lançamento do Protocolo com o
autenticidade. O exame ou análise que o registrador realiza para tornar efetivo o
respectivo número de ordem, nos casos em que da precedência decorra
princípio da legalidade é denominado “qualificação” e a função do registrador
prioridade de direitos para o apresentante”.
que examina o documento apresentado a registro é chamada de função
qualificadora” (LOUREIRO, Luiz Guilherme. Registros Públicos: teoria e prática. Extrai-se da leitura e interpretação destes dispositivos legais a regra de
5ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 307-308). que todos os títulos apresentados são obrigatoriamente lançados no Livro de
Protocolo e que a ordem de apresentação mediante atribuição de um número
Princípio da prioridade
deve ser rigorosamente respeitada. A finalidade é de dar publicidade à situação
O princípio da prioridade tem a principal finalidade de evitar conflitos de
jurídica que possibilita a atribuição dos efeitos que o ordenamento jurídico lhes
títulos contraditórios, que são aqueles incompatíveis entre si ou reciprocamente
concede e que gera direitos que terão repercussões na transmissão ou na
excludentes, referentes ao mesmo imóvel. A prioridade se apura no protocolo do
oneração dos imóveis. Afrânio de Carvalho, na mesma obra citada, diz que “A
Registro de Imóveis, de acordo com a ordem de seu ingresso. A Lei de Registros
sua caracterização é originariamente registral, pois se funda na ordem
Públicos disciplina a matéria e estabelece regras que devem ser observadas
cronológica de apresentação e prenotação dos títulos no protocolo, sendo
pelos Oficiais. De acordo com a lição de Afrânio de Carvalho - “O princípio da
irrelevante a ordem cronológica de sua feitura ou instrumentalização, vale dizer,
prioridade significa que, num concurso de direitos reais sobre um imóvel, estes
a seqüência da data dos títulos. A ordem de apresentação , comprovada pela
não ocupam todos o mesmo posto, mas se graduam ou classificam por uma
numeração sucessiva do protocolo, firma, pois, a posição registral do título
relação de precedência fundada na ordem cronológica do seu aparecimento:
relativamente a qualquer outro que já esteja ou venha a apresentar-se no
prior tempore potior jure. Conforme o tempo em que surgirem, os direitos tomam
registro. Se essa posição lhe assegurar prioridade, correlatamente lhe
posição no registro, prevalecendo os anteriormente estabelecidos sobre os que
assegurará a inscrição, contanto que o resultado final do exame da legalidade
vierem depois.” (4ª ed., Editora Forense, 1998, p.181).
lhe seja favorável.” (p.182 e 183).

76 77
78 79

Assim, de acordo com os exemplos mencionados na mesma obra citada Recepção de Títulos foi instituído pela Corregedoria Geral da Justiça com a
de Afrânio de Carvalho, se um imóvel é vendido pelo proprietário, primeiro para finalidade de assegurar o efetivo controle dos títulos e do prazo legal.
“A” e posteriormente para “B”, porém, este se adianta e apresenta o seu título
O artigo 188 da Lei de Registros Públicos estabelece que protocolizado o
para registro antes do primeiro, é ele, “B”, que terá prioridade, caso a escritura
título, este deve ser registrado no prazo de trinta dias, salvo nos casos previstos
apresentada esteja apta para ingressar no registro, ainda que lavrada em data
nos artigos seguintes. A prioridade persiste pelo prazo de trinta dias contados do
posterior à escritura de venda à “A”, e se tornará proprietário. Na hipótese de o
lançamento no protocolo, conforme previsto no artigo 205 da Lei de Registros
vendedor ter, ainda que depois de vendido o imóvel, instituído servidão de
Públicos - “Cessarão automaticamente os efeitos da prenotação se, decorridos
passagem em favor do vizinho ou constituído hipoteca, caso o vizinho ou o
trinta dias do seu lançamento no Protocolo, o título não tiver sido registrado por
credor hipotecário apresente o título antes da apresentação da escritura de
omissão do interessado em atender às exigências legais.” Este dispositivo
compra e venda, a transmissão da titularidade do domínio ocorrerá com a
compreende também os atos de averbação.
oneração da servidão ou gravado pela hipoteca.
Os artigos 189, 190 e 191, que também tratam da prioridade, assim
Em suma, a prioridade favorece aquele que apresenta primeiro o título
dispõem:
para registro, e não a preeminência do direito. A prenotação do título é o ato que
garante prioridade desses direitos, razão pela qual não pode em hipótese alguma “Art.189. Apresentado título de segunda hipoteca, com referência

o Oficial recusar o lançamento no protocolo no momento da apresentação, salvo expressa à existência de outra anterior, o oficial, depois de prenotá-lo, aguardará

na hipótese excepcional prevista no parágrafo único do artigo 12, pelo qual durante 30 (trinta) dias que os interessados na primeira promovam a inscrição.

“Independem de apontamento no Protocolo os títulos apresentados apenas para Esgotado esse prazo, que correrá da data da prenotação, sem que seja

exame e cálculo dos respectivos emolumentos.”. Somente neste caso e desde apresentado o título anterior, o segundo será inscrito e obterá preferência sobre

que haja expresso requerimento do interessado de que seja feito apenas o aquele.”

exame e cálculo dos emolumentos, não deve ser feita a prenotação do título, por “Art.190. Não serão registrados, no mesmo dia, títulos pelos quais se
inexistir nesta hipótese interesse em relação à precedência do registro. constituam direitos reais contraditórios sobre o mesmo imóvel.”

O interessado tem o direito de receber e o Oficial de entregar, no momento “Art.191. Prevalecerão, para efeito de prioridade de registro, quando
da apresentação de um título para registro, documento comprobatório deste ato, apresentados no mesmo dia, os títulos prenotados no Protocolo sob número de
com os dados pertinentes, notadamente a data e o número da prenotação. Todos ordem mais baixo, protelando-se o registro dos apresentados posteriormente,
os títulos ingressados no Serviço de Registro de Imóveis, quer para fins de pelo prazo correspondente a, pelo menos, um dia útil.”
prenotação quer para fins exclusivos de exame e cálculo dos emolumentos,
A prenotação subsiste também, na hipótese de suscitação de dúvida,
devem ser examinados de acordo com a precedência, em observância ao
prevista no artigo 198 da Lei de Registros Públicos, pois, se julgada
princípio da igualdade dos usuários perante o serviço público. O Livro de
improcedente, a prioridade fará com que os efeitos da prenotação retroajam à

78 79
80 81

data da protocolização do título. Na hipótese de ser julgada procedente, a necessidades mínimas bem como do desenvolvimento da personalidade
prenotação será cancelada (artigo 203 da Lei de Registros Públicos). Subsiste, humana. Todavia, longe de tirar a importância de direitos como o de propriedade,
ainda, a prenotação, na hipótese do artigo 260 desta mesma Lei, referente ao atribuiu-lhe importância maior, porque lhe incumbiu o ônus de servir ao ser
bem de família, nos casos de loteamento e desmembramento (Lei nº 6.766/79), humano, ao seu desenvolvimento e, portanto, assume tal direito um papel muito
de procedimento de retificação administrativa bilateral prevista no inciso II do mais relevante do que o papel de outrora, do direito como um fim em si mesmo,
artigo 213 da Lei de Registros Públicos, e de regularização fundiária e de registro que muitas vezes o tornava despido de significado maior, e facilmente atropelado
de títulos dela decorrentes, em razão da publicação de edital e prazo para por interesses diversos.
impugnação.
Como bem notou Ricardo Luiz Lorensetti, a “idéia do homem como centro
do ordenamento, afirmada de forma absoluta, não é um princípio incontestado.
O NOVO PAPEL DOS BENS IMÓVEIS NUMA
O homem não pode ser o único e excludente ponto de referência da lei, já que
PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL DA DIGNIDADE isso poderia conduzir a um individualismo exacerbado ou a uma
HUMANA desconsideração prejudicial de outros bens”.18 Em outras palavras, absolutizar

Diante da fixação do novo valor-princípio máximo do ordenamento jurídico o princípio da dignidade da pessoa humana, desconsiderando os demais

como sendo o da dignidade da pessoa humana, que hodiernamente define o direitos, como o da propriedade, teria a nefasta conseqüência de retorno ao

norte do direito civil, cumpre indagar qual o papel dos bens,16 em especial dos individualismo e abandono do bem estar coletivo, passando-se, eventualmente,

imóveis, diante de tal realidade. Teria o direito real de propriedade imobiliária do individualismo que privilegia o economicamente mais forte, vigente no

sucumbido diante da supremacia da pessoa, como novo valor central do liberalismo, para um individualismo que privilegie o economicamente mais fraco.

ordenamento? Na medida em que o direito civil migrou seu escopo central do O ser humano, como ente social, não existe sem os bens.19 A apropriação dos

patrimônio para a pessoa, teria a propriedade imobiliária perdido a importância bens da vida é necessária ao desenvolvimento e ao crescimento do ser humano

que conservou durante muito tempo, a ponto de eventualmente transformar-se e, nesse sentido, desde que o homem é homem tem a idéia de apreensão dos

em um direito menor, facilmente superável por outros interesses jurídicos? A bens físicos, por mais rústica que fosse.20 A humanidade seguramente não teria

resposta não é simples, todavia, perece que o direito de propriedade adquiriu atingido o ponto de evolução que atingiu não fosse a idéia de propriedade.21 O

relevância ainda maior diante da personalização17 do direito privado, embora nível de organização social, o nível de evolução tecnológica, o nível cultural,

tenha sido relativizado, não mais conservando o caráter absoluto de outrora. dentre outros, têm íntima ligação com o direito de propriedade. Até mesmo a
fixação das relações familiares tem vínculo estreito com o direito de propriedade,
Em primeiro lugar, ao eleger a dignidade da pessoa como princípio
uma vez que a formação da família se dá em torno de um lugar seu, cujo
máximo, o ordenamento civil não excluiu os demais direitos ou institutos,
ancoradouro baseia-se em um direito real imobiliário. Onde o direito de
provenientes dos valores sociais juridicizados. Tratou sim, de firmar a norma de
propriedade é fraco (uma vez que a inexistência de tal conceito não nos parece
que o direito existe pelo e para os homens, de modo que os institutos jurídicos
devem servir ao desenvolvimento do crescimento, do preenchimento das

80 81
82 83

possível), por não receber a devida tutela estatal ou por estar fora da formalidade ser humano. E, note-se, que os bens disponíveis na natureza não apenas
imposta pelo Estado, fracas são as relações familiares. existem e são disponibilizados pelo homem para realizar seus desideratos, mas
existem em quantidade insuficiente à apreensão por todos os homens.
O homem precisa de uma enorme gama de bens para sobreviver e evoluir,
e, ainda assim, vive com a sensação da incompletude, do querer mais. São Tomás de Aquino já observara que a apreensão sobre os bens
Importante a lição de Justino Adriano F. Da Silva de que tendo passado o homem exteriores é inata ao ser humano:
ao status social, houve o encobrimento da condição de homem para transformar-
“Para Tomás de Aquino, ‘a posse das coisas exteriores é natural ao
se em pessoa. “Não mais vive, mas convive. É um estar-com-o-outro que se homem.’ [...]
caracteriza pela colaboração, pela solidariedade, pela amizade, pelo auxílio
“Dotado de razão e de vontade livre,” o homem “servese, licitamente, de
mútuo, mas também pela animosidade, pela indiferença, pela disputa e até pela todos os demais seres inferiores, para a consecução do seu destino
guerra. Daí a necessidade de ter de dispor das coisas para a construção de seu natural. [...]

novo habitat”. Nesse quadro, dizer que o homem pode dispor naturalmente dos bens e
dos seres exteriores representa poder dispor deles segundo a finalidade,
Não é possível cogitar a existência humana sem a noção de apropriação
sine poenitentia. Sem nenhum arrependimento ou constrangimento.
dos bens da vida,23 uma vez que, tais bens existem e estão à disposição na
Essa é a ordem, essa, a harmonia, essa, a finalidade estabelecida desde
natureza, e o homem deles se apropriará para realizar seus intentos. Mesmo que sempre. [...]
se imagine o homem prisco, nômade, que não tinha vínculo de apropriação com
“Nessa tarefa de repartição dos bens exteriores, sem ferir o direito
o solo, com certeza o tinha em relação a certos bens móveis; a caça com a qual natural, cabe importante tarefa ao Estado: não pode ficar indiferente
se alimentava certamente seria defendida por “ser sua”; da mesma forma as diante desse problema e desafio. [...]
peles de animais com que se protegia das intempéries. Note-se que até mesmo
“La propiedad privada es necesaria como institución social”.25
os animais irracionais têm um senso de apropriação dos bens da vida que lhe
A utópica supressão, ou mesmo o desrespeito aos institutos patrimoniais
sejam necessários; assim, demarcam “seu território” via de regra através de
de direito privado seria contrária ao princípio da dignidade da pessoa humana,
feromônios, cuidam com seus meios de defesa do “seu” alimento, etc. Desta
por causar mazelas econômicas e sociais incomensuráveis, ao contrário do que
forma, a noção de apropriação dos bens do mundo sempre existiu, e a vida social
possa parecer num primeiro momento, embora a alteração de tais institutos a fim
é impensada sem a sua regulamentação adequada, e, portanto, nada resta ao
de adequá-los aos novos valores do ordenamento, seja algo juridicamente
direito senão reconhecer tal situação como um direito existente e necessário à
natural.26 O desrespeito aos institutos patrimoniais concebidos no ordenamento
própria existência social humana. A eventual idéia de afastar o reconhecimento
jurídico traria insegurança jurídica em nível intolerável, e com ela intranqüilidade
e a tutela ao direito de propriedade sob o frágil pretexto da personalização das
e conflito social,27 além de minar a produção e circulação de riquezas, vital para
relações jurídicas, significaria tão-somente o retorno às regras da força, tal qual
o sustento do desenvolvimento econômico de um Estado capitalista, haja vista
na apreensão dos bens nos primórdios da humanidade, uma vez que, como se
que o próprio trabalho humano ancora-se na idéia de propriedade. Tudo isto teria
disse, a apreensão dos bens da vida, tutelada, ou não, pelo direito, é inata ao

82 83
84 85

a inegável conseqüência de afastar o direito da concreção do princípio da ser respeitados pelo proprietário de bem imóvel, porque superiores ao seu direito
dignidade humana, o qual, seguramente, para ser implementado, necessita de relativo, como, verbi gratia, a conservação do meio ambiente, o respeito às
segurança jurídica, de paz social que permita o convívio pacífico dos homens, e regras de desenvolvimento urbanístico, o respeito à função social da
de desenvolvimento econômico, que permita um patrimônio material mínimo às propriedade,29 etc.
pessoas, garantindo-lhes bem-estar material.
Diante da dignidade humana fala-se em conteúdo patrimonial mínimo,30
Assim, diante da dignidade da pessoa, deve o direito reconhecer a que contempla o conjunto mínimo de direitos sem os quais não é possível o
importância que tem o direito de propriedade para o ser humano, para o seu desenvolvimento digno do ser humano, e que por isso mesmo devem ser
desenvolvimento. A pessoa que tem seu direito de propriedade protegido garantidos pelo Estado, tais como a liberdade, trabalho, moradia, educação,
devidamente pelo Estado, tem a possibilidade de trabalhar, produzir riquezas, saúde, etc. Tal conteúdo patrimonial mínimo há de contemplar o direito de
ter relações sadias em sociedade e em família. O abandono ou a proteção propriedade, ou aos menos algum direito a ele conectado; a propriedade sobre
inadequada a tal direito seria antieconômica e anti-social. Tome-se, bens mínimos, ou primários, para garantir a subsistência deve ser garantida à
exemplificativamente, o desenvolvimento cultural do ser humano, o qual não pessoa pelo Estado; o direito à moradia tem total conexão com a facilitação da
seria possível, nos moldes que conhecemos, sem a adequada tutela à aquisição do direito de propriedade imóvel ou de um direito sobre a propriedade
propriedade, eis que, como facilmente percebe-se, a casa, a escola, a imóvel de outrem, como na locação, por exemplo. A relativização do direito de
universidade, e a biblioteca, estão ancoradas sobre um direito de propriedade. E propriedade diante da sua superação pelos valores que regem a dignidade
nem se alegue que eventual regime comunista romperia tal regra, pois, ali humana não pode levar à conclusão de que a propriedade perdeu importância e
também o direito de propriedade estará dando idêntico suporte, através de que o Estado não mais deve protege-la, ou que deve protege-la com menos
direitos criados a partir da propriedade estatal, ou outra forma de propriedade, empenho. Diante dessa relativização do direito de propriedade, que passa a se
por assim dizer, coletiva. preocupar com o bem estar social, não pode o Estado descuidar-se da
segurança jurídica oferecida pela adequada tutela de tal direito ao seu titular,
É certo, porém, que o novo direito de propriedade,28 diante da
porquanto, se bem desempenhado o exercício do direito, a tranqüilidade
despatrimonialização do direito civil, não é mais o direito absoluto que já foi no
permitida pela segurança jurídica que o Estado deve garantir á necessária ao
período liberal, em que imperava o individualismo. É sim, hoje, um direito relativo,
desenvolvimento do princípio da dignidade da pessoa humana. Não é possível
onde o proprietário não é mais o senhor absoluto do seu direito, não pode mais
o desenvolvimento da vida humana de forma adequada sem a proteção estatal
tudo, tendo-selhe imposto uma série de limitações ou de obrigações em prol do
adequada ao direito de propriedade. É claro que há, ainda em obediência à
interesse coletivo. A dignidade humana impõe ao proprietário que exerça seu
dignidade humana, a necessidade de haver uma distribuição correta do direito
direito de acordo com os fins que o objeto do seu direito deve ter dentro dos
de propriedade, de haver a garantia de acesso à propriedade de um mínimo de
valores eleitos pela sociedade; o homem é um ser social, e, portanto, o exercício
bens por todas as pessoas, bem como haver o exercício adequado de tal direito
de seus direitos deve se dar de maneira que gere o bem social, e não de forma
pelo seu titular, o que não justifica eventual não-proteção ao direito de
a agredir o interesse coletivo. Nessa esteira, surgem direitos difusos que devem

84 85
86 87

propriedade, já que tais abusos encontram solução dentro do próprio sistema a ter uma importância maior do que tinha no período liberal, quando configurava
jurídico, mediante a atuação estatal, em prol do bem estar social.31 um direito em si; se tal direito recebe por isso, hodiernamente, contornos sociais
relevantes, no sentido de não poder ofender direitos não-proprietários, mister
Entretanto, reitere-se, essa nova visão jurídica do direito de propriedade,
que se analise, dentro desse novo panorama, qual o papel do Registro de
não como um fim em si mesmo, mas como um meio de alcance da plena
Imóveis, já que sua matriz está justamente na propriedade imobiliária. Terá o
dignidade humana, torna tal direito muito mais relevante, porquanto se passa a
Registro Imobiliário perdido importância diante da relativização do direito de
tratar não mais da propriedade no sentido do bem objeto do direito, mas sim, da
propriedade? Ou, ao contrário, justamente em virtude da relativização do direito
propriedade como um direito que tutela uma situação inata ao ser humano, e que
de propriedade, que lhe agregou importância porquanto passou este a ser um
lhe é essencial e indissociável, e, por isso mesmo, ao tratar da propriedade, não
meio de desenvolvimento da dignidade humana, teremos um incremento da
se está mais tratando de um direito abstrato, que tem um titular igualmente
importância do Registro de Imóveis, que passa a ser um dos mais importantes
abstrato, mas se está tratando do próprio ser humano, e dos meios de obter seu
instrumentos estatais para a consecução do fornecimento de segurança jurídica
desenvolvimento integral. Por fim, é de notar-se que o próprio direito de
ao titular do direito de propriedade, que deve ser garantido, e para a consecução
propriedade é uma das formas de concretização da dignidade da pessoa
da proteção dos direitos não proprietários, que terão na publicidade registral um
humana,32 com previsão no caput do artigo 5º da Constituição Federal, no
fundamental ponto de apoio, sendo assim importante agente fomentador da
sentido de garantia das condições materiais mínimas de vida, bem como do
dignidade humana? Parece estar nesta segunda oração a correção do
direito de propriedade em geral, quando não confrontar com situações não-
entendimento.
proprietárias de interesse coletivo.
Efetivamente, tem o Registro de Imóveis, na conjuntura atual, um papel
A função econômica e social do Registro de muito mais importante do que jamais teve a desempenhar, sendo a publicidade
Imóveis diante do princípio constitucional da dignidade registral não mais somente instrumento de proteção do direito de propriedade, a
conferir segurança e tranqüilidade ao seu titular, mas um importantíssimo fator
da pessoa humana
de consecução de paz social e de desenvolvimento econômico, cuja publicidade
passa também a cumprir o nobre mister de proteção aos direitos não-
O princípio da dignidade da pessoa humana conferiu nova formatação ao proprietários, estando o Registro de Imóveis a serviço da materialização da
direito de propriedade, como vimos. Entretanto, isto não significa alijar o direito função social da propriedade. O registro de imóveis passa a ser uma importante
de propriedade do ordenamento jurídico, o qual deve continuar recebendo ampla mão do Estado na busca da dignidade humana, através da função econômica e
tutela estatal, uma vez tratar-se de direito inato ao ser humano, ao qual resta ao social da propriedade. No mundo atual, especialmente após a Guerra Fria, o
direito apenas reconhecer, sob pena de desordem social e econômica. Desta sistema econômico capitalista impera quase que unanimemente, com um maior
forma, se temos no direito de propriedade um direito fundamental do ser humano, ou menor liberalismo mercadológico. Diante dessa realidade, fácil inferir a
que é um dos meios de consecução da dignidade humana e, portanto, que passa importância que a análise econômica das instituições tem tomado, máxime

86 87
88 89

diante do fenômeno das relações globalizadas, onde o fenômeno econômico não longo da evolução humana. O direito deve, sem sombra de dúvidas, estar atento
se localiza mais isolado dentro das fronteiras de um Estado. Nas ciências aos efeitos econômicos de seus institutos, uma vez que disto depende em
jurídicas, não é diferente a importância que tem se dado à análise econômica grande parte o desenvolvimento da sociedade. Porém, se a interpretação
dos institutos jurídicos; as relações entre direito e economia tem se estreitado de econômica significar, em algum momento, a exacerbação do individualismo que
maneira importante, a ponto de criar um fenômeno jurídico de análise econômica por vezes aflora do viés econômico, deve o Direito sobrepor-se em nome dos
do direito. valores sociais que representa. O direito de propriedade tem, inegavelmente,
uma importante função econômica. Aliás, é o direito de propriedade a própria
Nesse sentido, identificou António Menezes Cordeiro a análise econômica
base sobre a qual é erigida a economia de mercado. É em razão do direito de
do direito como sendo o último acontecimento metodológico do Século XX,
propriedade que existe o trabalho (ao menos o trabalho não-coercitivo). É o
originado do pensamento materialista norte-americano, e que tem como
direito de propriedade que permite a geração e a circulação de riquezas
premissa a assertiva de que a conduta humana é essencialmente informada por
fundamentais ao desenvolvimento humano. As obras que facilitam a vida
postulados de ordem econômica, o que traduz um vínculo muito próximo com o
humana, as pesquisas que buscam melhorar a existência humana, inclusive
direito de propriedade, em especial.33 A análise econômica do direito tem a
descobrindo a cura de patologias que até pouco dizimavam milhares em surtos
função de averiguar qual a implicação econômica dos institutos jurídicos; como
incontroláveis, o desenvolvimento do homem enquanto ser, protegendo-se do
a definição dos institutos jurídicos afeta os agentes econômicos. Se por um lado,
mau humor da natureza em relação ao clima, por exemplo, alimentando-se,
o fenômeno de análise econômica do direito não deve ser rechaçado de plano,
aculturando-se, tudo isso, depende fundamentalmente da propriedade enquanto
como pretendem alguns sob a alegação de que a interpretação econômica do
conceito econômico e, o direito não pode fechar os olhos a essa realidade. Nesse
direito tem o efeito de afastar a tutela social alcançada ao longo da evolução
ponto, o conceito econômico de propriedade aproxima-se da dignidade humana,
jurídica, a qual não se coaduna com a liberdade da economia de mercado,34 por
eis que, sem ela, o desenvolvimento humano não seria o mesmo.
outro lado, é preciso ter ciência de que a evolução jurídica fez germinar valores
sociais que nem sempre estão de acordo com os postulados econômicos; por Note-se, entretanto, que a função econômica do direito de propriedade
vezes são até mesmo absolutamente antagônicos, como a intervenção estatal deve andar de mãos dadas com o valor máximo do princípio constitucional da
em prol do interesse coletivo em institutos vitais para a economia, como a dignidade da pessoa humana, não podendo este ser ferido por aquela, mas, ao
propriedade e o contrato.35 Em verdade, a regra geral é a de que o direito contrário, deve aquela ser interpretada e exercida em conformidade com os
influencia e é influenciado pela economia.36 De qualquer forma, a análise ditames da dignidade humana. A ordem econômica, como um todo, é norteada
econômica do direito assume uma relevância substancial, pois, se é verdade que por vários princípios constitucionais, dentre eles, em especial, o da dignidade da
o homem é um ser social (mais por necessidade do que propriamente por pessoa humana, que coloca, como vimos, o homem no centro axiológico do
natureza), é igualmente verdade que o homem é um ser econômico. ordenamento jurídico.37 O conceito econômico de propriedade, liberal por
natureza, permite normalmente a acumulação de riquezas, o que em princípio
Tenha-se em mente, entretanto, que a interpretação econômica do direito
pode parecer contrário ao interesse social definido pelo Direito, mas, que é com
não pode ter o condão de afastar as conquistas jurídico-socias alcançadas ao

88 89
90 91

ele perfeitamente concatenável, pois, como bem observou Darcy Bessone, no condão de fomentar a dignidade humana, através da colocação em circulação
interesse do progresso a concentração de riquezas “é imprescindível, como dos bens mínimos a gerar o bem-estar social.
forma de poupança que se converte em estoque de capital. Qualquer
O crescimento econômico é gerado basicamente por um sistema
empreendimento, principalmente os de maior vulto, somente é factível sob o
econômico organizado, aliado a um sistema eficaz de garantir a propriedade, de
pressuposto da existência da quantidade de capital bastante para a sua
modo a atrair para esta valores em empreendimentos de atividades socialmente
implementação. Sem o suficiente estoque de dinheiro não se pode projetar um
produtivas. O conteúdo e a proteção dispensada ao direito de propriedade afeta
empreendimento, menos ainda o cronograma dos desembolsos necessários. A
enormemente os agentes econômicos.
União Soviética teve de admitir o capitalismo de Estado para que pudesse
realizar suas obras”. Sem propriedade não há mercado e nem desenvolvimento econômico,
mas, mais do que propriedade, o tráfico jurídico requer uma propriedade segura,
Tem, enfim, a propriedade, uma importante função econômica a cumprir
confiável, a qual se possa aceitar como garantia em financiamentos (o que incita
na medida em que quando se atribui a alguém certo bem, e se lhe atribui o direito
enormemente a circulação de riquezas de uma nação), e na qual se possa
de usar e gozar desse bem, sendo tal interesse tutelado e fomentado pelo direito,
investir e produzir.42 A segurança jurídica acaba por coincidir com a segurança
o titular procura conservar o bem. “As vacas teriam desaparecido se não
econômica e, nesse senso, a sua garantia é fundamental para que o direito de
tivessem sido consideradas objeto de propriedade”.39 Diante da função
propriedade possa ser o baluarte seguro do desenvolvimento econômico, o qual,
econômica a ser exercida pelo direito de propriedade, tem-se que um direito de
por sua vez, reitere-se, está apoiado no direito de propriedade. Aqui é onde entra
propriedade bem definido e seguro, gerará em si a alocação de recursos,
o sistema registral imobiliário, como o mais eficaz instituto de garantia e de
gerando bem estar social. Esta assertiva formulada por Bernardo Mueller, dita
segurança jurídica do direito de propriedade;43 quanto mais eficiente o sistema
de outro modo, quer significar que o direito de propriedade bem definido e
registral de um país, maior a possibilidade de circulação de riquezas e de
tutelado atrairá recursos, e naturalmente cumprirá sua função social.40 Caso
desenvolvimento econômico, e, portanto, maior a possibilidade de se encontrar
este cumprimento natural da função social da propriedade não ocorra, entrará
o bem-estar social e a dignidade humana, na parte que toca ao patrimônio
em ação o direito, com seus institutos coercitivos. Não há crescimento
material mínimo. O registro de imóveis, conferindo certeza e segurança ao direito
econômico sem um direito de propriedade bem definido e protegido. Não só o
de propriedade, permite a realização do tráfico imobiliário, reduzindo custos,
ordenamento jurídico deverá definir o direito de propriedade, como deverá
especialmente no que toca aos custos de informação. A falta de informação das
também estabelecer um eficiente sistema de tutela desse direito, e, é nesse
transações imobiliárias gera insegurança e incerteza intoleráveis à alocação de
mister que surge a função econômica essencial do registro de imóveis, como o
capital, e, assim, um sistema jurídico que não tenha um órgão centralizador das
aparato estatal apto a conferir certeza e segurança ao direito real de propriedade,
informações a respeito da propriedade, levará os atores econômicos a buscarem
e aos demais direitos que dele defluem, possibilitando o desenvolvimento
tais informações por outros meios, a um custo muito mais elevado, a ponto de
econômico que, num sistema capitalista, significa bem-estar social, de modo que
poder inviabilizar a negociação, e com uma segurança muito discutível. O
o desenvolvimento econômico proporcionado pelo sistema registral terá o

90 91
92 93

sistema registral logra, através dos princípios que o regem, prestar informações jurídico, e portanto confiável, do ponto de vista negocial. A qualificação registral
seguras e eficientes, reduzindo significativamente os custos transacionais.44 confere segurança jurídica a priori, isto é, antes de surgir o conflito de interesses,
acautelando os direitos reais imobiliários, tornando-os certos e aptos ao tráfego
Essa é, conforme alerta Fernando P. Méndez González, a função
jurídico e econômico. Todavia, nesse mister de depuração legal, é preciso ter em
essencial dos registros imobiliários: aumentar a segurança jurídica no âmbito
conta que o excesso de rigorismo pode ser contrário à própria razão da
imobiliário, reduzindo os custos de informação.45 Tal intento será tão mais
existência do registro de imóveis. Assim, o afastamento da inscrição de um
alcançado quanto mais desenvolvido e eficiente for o sistema registral
direito por aspectos que lhe sejam alheios e menores do ponto de vista jurídico,
adotado.46 E quando mais profícua e eficiente a atuação registral, maior o
poderá ter o condão de gerar insegurança jurídica e econômica, em verdadeira
crescimento econômico alcançado, e maior a parcela de dignidade humana
oposição aos motivos que informam a existência do sistema registral. Os
posta à sociedade pelo Registro de imóveis. Onde não há um sistema de registro
principais motivos, que por vezes acarretam um excessivo rigor registral, e que
de imóveis garantindo a segurança jurídica dos direitos inscritos e facilitando as
precisam ser manejados com cautela, procurando-se adequá-los ao necessário
informações negociais, a obtenção de tais informações será tarefa árdua e cara,
à realidade do país, são a legislação, muitas vezes em descompasso com a
além de insegura, e que, por isso, precisará sempre ser complementada por
realidade social, e a crescente atuação do Oficial de Registro como guardião de
outros meios de garantia, já não mais sobre o direito existente, mas sobre o valor
uma série de interesses fiscais, urbanísticos e administrativos.49 É preciso ter
deste direito, como o seguro, por exemplo.
em mente os fundamentos basilares da instituição registral, para bem manejar
A incerteza e insegurança sobre o direito de propriedade, ou impedirá os (seja o legislador, seja o registrador) os interesses que são postos sob a batuta
negócios imobiliários de garantia, ou, não impedindo, submeterá o proprietário à do oficial de registro, evitandose o rigorismo inútil e exagerado, que poderá
cobrança de juros exorbitantes por parte do credor, em virtude do risco conduzir o registro de imóveis ao distanciamento da sua função econômica e
assumido.47 Quanto maior a insegurança incidente sobre o direito de social, e, portanto, afastando-o igualmente da concreção do princípio
propriedade posto à disposição do credor para garantir algum empréstimo, maior constitucional da dignidade humana. Tome-se, nesse ponto,
a taxa de juros a ser cobrada porquanto maior o risco que o credor correrá em exemplificativamente, o caso brasileiro do registro da penhora. A penhora sobre
ter o bem emprestado de volta.48 A insegurança sobre o direito de propriedade, bem imóvel, constituída judicialmente, em processo de execução, precisa ser
causada pela inexistência de um sistema registral, ou pela existência de um levada ao Registro Imobiliário para que possa ser oponível a terceiros, com
sistema registral capenga, aumenta o custo social e afasta a concreção da presunção iure et de iure de conhecimento. Todavia, em muitos casos, tem-se
dignidade humana, uma vez que torna mais difícil, mais caro, o acesso ao crédito negado o registro de tal penhora por problemas registrais menores, e que em
e aos bens. absoluto colocariam em perigo a higidez do sistema, como no caso, por exemplo,
Outra importante contribuição do sistema registral ao desenvolvimento da falta de um dos elementos de qualificação das partes, elencados na Lei de

econômico, ainda na questão de diminuir os custos transacionais, é a de que na Registros Públicos, mas que em nada afetam a certeza da identificação da parte,
inscrição dos direitos há um mister registral de depuração legal, através da ou ainda a desconformidade de algum elemento da descrição do imóvel, em

qualificação dos títulos, o que torna o direito inscrito crível do ponto de vista cotejo com a descrição tabular, mas que igualmente em nada interfere na

92 93
94 95

identificação do imóvel. Este proceder, ancorado em uma interpretação literal da olhos a informalidade urbanística que há nas cidades (especialmente nas
legislação registral, coloca em cheque os próprios valores que animam o registro, grandes) desses países; inúmeras pessoas têm uma propriedade podre, fora do
pois, uma vez que a penhora está perfectibilizada no processo (e é lá que ela é sistema legal, sem titulação adequada e sem ingresso no sistema registral, o que
constituída), e uma vez que o registro tem, neste caso, apenas eficácia significa um abalo bastante significativo na economia de tais países porque tal
declarativa, não registrar, por um excessivo rigor, tal qual nos parece que ocorre propriedade não pode gerar riquezas, não pode “fazer dinheiro”, porquanto não
nos exemplos acima apresentados, significa gerar insegurança e incerteza pode servir de garantia formal. Desta forma, essas pessoas não poderão usar
jurídica, econômica e social, porquanto a penhora continuará existindo, sem seu bem para conseguir financiamento para a aquisição de bens de consumo,
publicidade contudo. Há, aqui, um procedimento desconforme com os preceitos ou mesmo de serviços (no caso de reforma do próprio imóvel, por exemplo),
constitucionais, na medida que a atividade registral se afasta do princípio fazendo com que a economia perca uma parcela importante de riquezas que
máximo da dignidade da pessoa humana, em seu aspecto patrimonial, ao gerar poderia circular e gerar mais riquezas, melhorando o bem-estar social e, por
insegurança e incerteza nas relações patrimoniais. Na análise do registro da conseqüência, indo ao encontro da dignidade humana. O ingresso do direito
penhora, deve haver uma mitigação compatível com a situação jurídica com a dessas pessoas no registro imobiliário é fundamental ao desenvolvimento
qual se está defrontando, devendo ser negado o registro somente em casos de econômico de tais países. Ao lado, certamente, de uma política urbanística
absoluta impossibilidade de ingresso do título judicial na tabula registral por ferir adequada, deve haver uma resposta registral adequada, sendo vital, social e
de morte algum princípio que move o sistema, como, verbi gratia, numa situação economicamente, a integração de todos no sistema formal e seguro de
de impossibilidade de se identificar com segurança o imóvel sobre o qual recai a propriedade.
constrição judicial. É claro que a superação da estrita interpretação dos
Hernando de Soto, ao tratar desse problema, vislumbrou nessas
requisitos legais do registro, em prol do atendimento dos princípios que norteiam
propriedades marginais não propriamente um problema, mas uma solução para
a própria existência do sistema registral, com o da segurança jurídica e da função
os países em desenvolvimento. Identificando o grande problema dos países
econômica e social, encontram limites neles próprios, ou seja, não se pode
pobres como sendo a falta de capital que permita a seus cidadãos a integração
embrenhar uma interpretação tão liberal a ponto de tornar insegura a inscrição.
adequada ao sistema capitalista, conclui aludido autor que em verdade o capital
Note-se que, no caso exemplificado, a dignidade patrimonial do devedor,
existe, mas não pode ser utilizado. As milhares de habitações ilegais que
amparada por um sistema de impenhorabilidades, já foi analisada pelo
germinam nesses países constituem um fantástico capital, estimulado pelo autor
magistrado que preside o feito, e, o não registro da penhora por excessivo rigor,
em aproximadamente 9,3 bilhões de dólares, ou seja, dinheiro suficiente para
contraria a dignidade patrimonial do credor, que pode ver frustrado seu direito.
alavancar a economia dos países pobres, e integrar suas populações ao sistema
O sistema registral imobiliário tem, ao lado das já apontadas, uma missão econômico capitalista. O problema, segundo De Soto, é que tal capital é um
econômica, à qual se mescla uma conotação social, muito grande, capital morto, porquanto não pode ser utilizado, uma vez que está
especialmente nos países em desenvolvimento, onde há uma grande massa de consubstanciado em bens imóveis que estão fora do sistema formal de
pessoas cujos imóveis estão à margem da formalidade. Salta, literalmente, aos propriedade e, portanto, não sendo direito de propriedade seguro e jurídico, não

94 95
96 97

pode ser utilizado economicamente; no máximo, há o estabelecimento de um A informação segura disponibilizada pelo Registro de Imóveis passa,
mercado paralelo, um mercado de pulgas, onde tais direitos carecem de valor necessariamente, por uma uniformização registral. Quanto mais uniformizado o
real em face de sua precariedade formal. Os pobres têm coisa, porém não entendimento e o procedimento entre os vários registros de imóveis existentes,
contam com os meios de representar sua propriedade e gerar capital.50 Têm maior a segurança jurídica e maior a confiabilidade do sistema, porquanto maior
coisa, porém não podem “tirar uma mais-valia da sua propriedade e contribuir a certeza daquilo que é registrável e daquilo que não o é, bem como, maior a
com a circulação de riquezas”.51 certeza em relação aos requisitos registrais. Quanto maior a certeza em relação
ao que é registrável e quais seus requisitos, mais apto o direito à circulação.
Não basta assim, reconhecer o direito de propriedade e segura-lo
Quanto maior a uniformização, maior a segurança jurídica exarada acerca do
juridicamente através de um sistema registral adequado. É necessário integrar a
direito inscrito, e, portanto, mais apto a circular, seja do ponto de vista
este sistema registral o número máximo possível de propriedades; é preciso que
econômico, seja do jurídico. Conferir um caráter estável à atividade registral, tem
as pessoas não tenham suas propriedades à margem do sistema registral formal,
hoje uma importância econômica muito grande na prestação de informação
mas, que sejam a ele integradas, sem o que o desenvolvimento econômico, e,
rápida e confiável, e, portanto, apta a reduzir os custos transacionais.
portanto, social também, restarão severamente prejudicados. Mister se faz que
a legislação urbanística, fundiária, e registral, estejam sintonizadas com a Ao lado da função econômica, tem o Registro de Imóveis uma função
realidade social do país, e possam integrar ao istema formal de propriedade o social muito grande, bastante conectada à função econômica. Assim, quando a
número máximo possível de propriedades; não se trata de atropelar o interesse proteção ao direito de propriedade é conferida por um sistema registral
social urbanístico ou ambiental, por exemplo, mas de estabelecer legislação que adequado, e o registro exerce sua função econômica porquanto facilita a
conceba a convivência harmônica do direito de propriedade com estes circulação desse direito e a geração de riquezas, essa mesma proteção permite
interesses, sem distanciar-se da realidade social, que é viva, e visível, e que a convivência social pacífica, permitindo que a propriedade exerça sua função
muitas vezes está longe da situação idealizada pelo legislador, a qual empurra social. O Registro Imobiliário, exerce uma função social significativa ao garantir
milhares de pessoas para a informalidade, minando o desenvolvimento eficiente profilaxia jurídica em relação aos direito inscritos, aos quais confere
econômico e social, ao invés de tutela-los.52 O interesse urbanístico deve ser certeza e segurança jurídicas a priori, isto é, antes de haver lide, prevenindo a
tutelado preferencialmente de modo preventivo, olhando-se de modo diverso existência desta, afastando-a, sendo, assim, um dos mais eficientes agentes de
para as situações consolidadas. O registro de imóveis, tem, aqui, um papel consecução da paz social. Na medida em que, como vimos, a apreensão dos
fundamental, de integração dessas pessoas no sistema formal de propriedade, bens da natureza é inata ao ser humano, a inexistência de um regramento
através de uma legislação adequada, prestando informações necessária à boa seguro do direito de propriedade e que estabeleça com segurança a extensão
análise nesse processo de integração, bem como na posterior geração de capital do direito de propriedade de cada um, através de um sistema registral adequado,
por esses novos proprietários, através da informação concentrada, confiável e inviabilizaria a vida social, geraria o caos, o império do mais forte sobre o mais
segura, que viabiliza a redução dos custos transacionais e o aumento do valor fraco, uma volta ao individualismo puro. Nesse sentido, um sistema registral
do bem.

96 97
98 99

imobiliário adequado, permite, em última análise, a própria vida social, que é o REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
fim último do direito
ANDRADE, F. de P. D. de. Subsídios para o estudo da influência da legislação
A tônica constitucional da função social da propriedade pode ser muito na ordenação e na arquitetura das cidades brasileiras. São Paulo, 1966. Tese
mais facilmente atingida quando se tem à disposição as informações registrais (Doutorado) – EPUSP.
acerca do direito que eventualmente descumpre sua função social. O Registro
AYMONINO, C. La vivienda racional. Barcelona: Gustavo Gili, 1973. BORGES,
de Imóveis bem utilizado, é, nesse sentido, um importante agente facilitador do
V. P. O que é história. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993.
controle do exercício da função social do direito de propriedade. Por um lado, a
informação registral levará ao terceiro adquirente a noção segura de que tipo de BOURGEOIS, V. “La organización de la vivienda minima”. In: AYMONINO, C. La

propriedade está a adquirir, e, portanto, qual a destinação que deverá dar a tal vivienda racional. Barcelona: Gustavo Gili, 1973.

direito, a fim de cumprir a sua função social; por outro lado, o Estado tem nas BRESCIANI, M. S. “Permanência e ruptura no estudo das cidades”. In:
informações registrais um meio valioso de angariar elementos a fim de observar FERNANDES, A., FILGUEIRAS GOMES, M. A. Cidade e História. Salvador:
o cumprimento, ou não, da função social da propriedade, aplicando os institutos UFBA/Anpur, 1992.
jurídicos adequados ao caso. Enfim, o fenômeno registral imobiliário carrega
BURKE, P. A Escola dos Annales 1929-1989: A revolução francesa da
consigo uma função social e uma função econômica que andam de mãos dadas,
historiografia. São Paulo: Editora Unesp, 1991.
e que decorrem, ambas, naturalmente de um sistema registral bem aplicado, em
consonância com os princípios constitucionais que norteiam a propriedade. E, FILGUEIRAS GOMES, M. A., FERNANDES, A. “A Pesquisa recente em história
um sistema registral bem aplicado é fundamental à consecução do princípio da urbana no Brasil: percursos e questões”. In: PADILHA, N. (Org.). Cidade e
dignidade da pessoa humana, cuja face voltada ao aspecto patrimonial, só é urbanismo. História, teorias e práticas. Salvador: MAU/UFBA, 1998.
alcançada quando se alcança a implementação da função econômica e social FRIDMAN, F., RAMOS, C. A. “A História da Propriedade da Terra no Brasil”. In:
da propriedade. FERNANDES, A.; FILGUEIRAS G. M. A. (Orgs.). Cidade & história. Salvador:
UFBA/Anpur, 1992.

FRIDMAN, F. “Os donos da terra carioca”. Espaço e Debates. São Paulo, Ano
XIV, n. 37, 1994.

GRAHAM, L. S. Civil service reform in Brazil – principles versus practice. Austin


& London: University of Texas Press, 1968.

GROPIUS, W. “Los fundamentos sociológicos de la vivienda minima (para la


población obrera de la ciudad)”. In: AYMONINO, C. La vivienda racional.
Barcelona: Gustavo Gili, 1973.

98 99
100

ARRUÑADA, Benito. Organização do registro da propriedade em países em


desenvolvimento. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, ano 27, n. 56, jan.-
jun. 2004, p. 139-59.

BRANDELLI, Leonardo. Atuação notarial em uma economia de mercado: a tutela


do hipossuficiente. Revista de Direito Imobiliário, São Paulo, ano 25, n. 52, jan.-
jun. 2002, p. 165-88.

BREY, Enrique Rajoy. A importância socieconômica dos sistemas registrais.


Boletim do Irib em revista, São Paulo, n. 313, nov.-dez. 2003, p. 125-38.

CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. A constituição aberta e os direitos


fundamentais: ensaios sobre o constitucionalismo pós-moderno e comunitário.
Rio de Janeiro: Forense, 2003. 813 p.

COULANGES, Fustel de. A cidade antiga: estudo sobre o culto, o direito, as


instituições da Grécia e de Roma. 12.ed. Tradução de Jonas Camargo Leite e
Eduardo Fonseca. São Paulo: Hemus, 1996. 310 p.

DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria geral do Estado. 16.ed. São


Paulo: Saraiva, 1991. 259 p.

100

Você também pode gostar