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Edição e arte final: Luciano Becalete


Assessoria editorial: Fabiana Lourenço Becalete
Assessoria bibliotecária: Maurício Amormino Jr.
Imagem de capa: Acervo digital.
Obra catalogada conforme regem as normas editoriais.

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verificação dos arquivos finais pelo autor e/ou seu responsável legal.
SUMÁRIO

Apresentação ........................................................................................................................................ 9
PARTE 1 – EDUCAÇÃO PATRIMONIAL, CURRÍCULO E ENSINO DE HISTÓRIA ............ 12
ENSINO DE HISTÓRIA POR MEIO DA METODOLOGIA DA EDUCAÇÃO
PATRIMONIAL: MERCADO MUNICIPAL DE ARAGUAÍNA-TO .............................................. 13
Jorge Luis de Medeiros Bezerra; Mariseti Cristina Soares Lunkes .................................................... 13
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL A PARTIR DE UM ROTEIRO HISTÓRICO-GEOGRÁFICO
EM INHAÚMA – RIO DE JANEIRO ............................................................................................... 24
Vagner Jose de Moraes Medeiros ....................................................................................................... 24
PROPOSTA CURRICULAR PARA O ENSINO DE HISTÓRIA LOCAL NA EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS DE ARAGUAÍNA ....................................................................................... 39
Laila Cristine Ribeiro da Silva; Vera Lúcia Caixeta........................................................................... 39
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NO ENSINO DE HISTÓRIA: A FEIRA LIVRE COMO
ESPAÇO DE APRENDIZAGEM HISTÓRICA ................................................................................ 54
Aletícia Rocha da Silva; Marcos Edilson de Araújo Clemente .......................................................... 54
PARTE 2 – HISTÓRIA LOCAL, ENSINO DE HISTÓRIA E APRENDIZAGEM
HISTÓRICA ....................................................................................................................................... 67
A PESQUISA COMO METODOLOGIA DE ENSINO E APRENDIZAGEM EM HISTÓRIA
LOCAL .............................................................................................................................................. 68
André Brasil da Silva ......................................................................................................................... 68
APRENDIZAGEM HISTÓRICA E HISTÓRIA LOCAL: UMA EXPERIÊNCIA COM ALUNOS
DO ENSINO FUNDAMENTAL NA CIDADE DE PARAUAPEBAS – PA .................................... 83
Mayara Alves leite; Wellington Amarante ......................................................................................... 83
CONTAR A HISTÓRIA LOCAL ATRAVÉS DA ROUPA E DA MODA: UMA PROPOSTA
DE ENSINO E DE PESQUISA ......................................................................................................... 95
João Quintino de Medeiros Filho ....................................................................................................... 95
NAS AULAS DE CLIO: O ENSINO DE HISTÓRIA E AS REPRESENTAÇÕES DE CHARGES
SOBRE A COVID-19 ...................................................................................................................... 108
Eronilda Resende Feitosa; Pedro Pio Fontineles Filho ..................................................................... 108
BRINQUEDOS E BRINCADEIRAS COMO OBJETO DA APRENDIZAGEM HISTÓRICA
NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL ................................................................ 123
Antônio Carlos Macena da Silva; Vasni de Almeida ....................................................................... 123
DIMENSÕES FORMATIVAS E APRENDIZAGEM RECONSTRUTIVA DO
CONHECIMENTO: UMA PROPOSTA METODOLÓGICA PARA FORMAÇÃO DE
PROFESSORES DE HISTÓRIA ..................................................................................................... 137
Dimas José Batista; João Paulo Mendes Maciel ............................................................................... 137
PARTE 3 – GÊNERO, SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO ............................................................ 155
AS IMAGENS DAS MULHERES NO LIVRO DIDÁTICO DA EJA COMO METODOLOGIA
DE ENSINO DE HISTÓRIA ........................................................................................................... 156
Jucileide da Silva Almeida; Vera Lúcia Caixeta .............................................................................. 156
(DES)CONSTRUINDO SABERES, (RE)INVENTANDO PRÁTICAS: UMA PROPOSTA DE
SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA EM GÊNEROS E
SEXUALIDADES ........................................................................................................................... 171
Diego Gomes Souza ......................................................................................................................... 171
PODE FALAR DE GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA? DISCUSSÕES ANALÍTICAS
E EMPÍRICAS A PARTIR DOS CARTAZES DO PROJETO “GÊNERO E DIVERSIDADE NA
ESCOLA” ........................................................................................................................................ 187
Robson Ferreira Fernandes ............................................................................................................... 187
A OFICINA: UMA METODOLOGIA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA, UM DEBATE
SOBRE AS RELAÇÕES DE GÊNERO POR MEIO DAS IMAGENS DO LIVRO DIDÁTICO ... 203
Dimas José Batista; João Cândido Carvalho Marinho ...................................................................... 203
PARTE 4 – ENSINO DE HISTÓRIA E EDUCAÇÃO PARA RELAÇÕES ÉTNICO-
RACIAIS ........................................................................................................................................... 217
LUGARES OUTROS E SABERES OUTROS: A PRODUÇÃO DE SABERES PARA/NA
ESCOLA .......................................................................................................................................... 218
Tecia Goulart de Souza; Elison Antonio Paim ................................................................................. 218
O PROJETO BATUQUE, INTERDISCIPLINARIDADE E ENSINO ANTIRRACISTA NO
COLÉGIO ESTADUAL DE CRISTALÂNDIA – TO ..................................................................... 233
Elyneide Campos de Souza Ribeiro; Martha Victor Vieira .............................................................. 233
Sobre os Autores(as) ........................................................................................................................ 249
Apresentação

A coletânea Ensino de História no Tempo Presente constitui-se num repertório de


experiências e práticas de ensino bem como sugestões metodológicas para implementação na
prática pedagógica do Ensino de História na Educação Básica brasileira, elaborado a partir
das pesquisas realizadas no ProfHistória, Programa de Pós Graduação de Ensino de História.
Este livro está dividido em quatro partes orgânicas e internamente articuladas que
demonstram os esforços realizados por professores-pesquisadores na área de História de
vários lugares do país na construção de um fazer pedagógico que visa superar práticas
didáticas e estratégias de ensino e aprendizagem consideradas repetitivas, mnemônicas e
reprodutivistas. A Coletânea ficou assim estruturada: Parte I – Educação Patrimonial,
Currículo e Ensino de História, Parte II – História Local, Ensino de História e
Aprendizagem Histórica, Parte III – Gênero, Sexualidade e Educação, e Parte IV – Ensino de
História e Educação para Relações Étnico-Raciais.
Na Parte I – Educação Patrimonial, Currículo e Ensino de História os professores-
pesquisadores demonstram que é possível discutir o Ensino de História a partir de lugares de
memória, roteiros histórico-geográficos bem como é possível tornar perceptível a história
local na narrativa da História Nacional e propor inovações curriculares para o ensino de
história na modalidade EJA. Esses estudos e pesquisas se valem de fontes variadas e buscam
dar visibilidade a objetos novos: o Mercado Municipal é o local privilegiado para o estudo da
cultura material e imaterial. Essa seção da coletânea conta com as seguintes contribuições:
Ensino de História por meio da Metodologia da Educação Patrimonial: Mercado Municipal
de Araguaína-TO, produção dos professores-pesquisadores Jorge Luis de Medeiros e Mariseti
Cristina Soares Lunckes. O trabalho de Vagner José de Moraes Medeiros, Educação
Patrimonial a partir de um roteiro Histórico- Geográfico em Inhaúma – Rio De Janeiro. A
proposta apresentada por Laila Cristine Ribeiro e Vera Lúcia Caixeta da Proposta Curricular
para o Ensino de História na Educação de Jovens e Adultos de Araguaína – TO e, por fim, o
excelente trabalho dos professores-pesquisadores Aletícia Rocha da Silva e Marcos Edilson
de Araújo Clemente que discutem a feira livre, Educação Patrimonial no Ensino de
História: a Feira Livre como Espaço de Aprendizagem Histórica.
Na Parte II – História Local, Ensino de História e Aprendizagem Histórica os
autores(as) valorizaram dois aspectos fundamentais do ensino de História no Brasil nos
últimos anos: a cultura, a economia, e os costumes das populações locais e a Aprendizagem
Histórica, isto é, como fazer com que conhecer, compreender e entender história fosse

9
significativo para os alunos e alunas do ensino básico bem como suas práticas sociais locais.
Encontramos também na Parte II, proposições para o ensino da História Local, de André
Brasil da Silva, que utiliza a pesquisa como metodologia para entender a História Local. O
trabalho de Mayara Alves Leite e Wellington Amarante, Aprendizagem Histórica e História
Local: Uma Experiência com alunos do Ensino Fundamental na Cidade de Parauapebas-PA,
demonstra a necessidade de explorar a experiencia pessoal dos aluno(a)s da educação básica e
seus saberes para compreender e fazer História.
Nesta Parte II há ainda os elucidativos e propositivos trabalhos sobre História Local e
Aprendizagem Histórica de João Qintino de Medeiros Filho, Contar a História Local Através
da Roupa e da Moda: Uma Proposta de Ensino e de Pesquisa; Eronilda Rezende Feitosa e
Pedro Pio Fontineles Fernandes, Nas Aulas de Clio: o Ensino de História e as
Representações de Charges sobre a COVID-19, e o excelente trabalho de Antonio Carlos
Macena da Silva e Vasni de Almeida que discutem os jogos e brincadeiras como estratégia
de ensino e aprendizagem para ensino de História intitulado: Brinquedos e Brincadeiras
como objeto da Aprendizagem Histórica nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental. E por
fim, o trabalho de João Paulo Santana Maciel e Dimas José Batista que refletem e propoem a
aprendizagem reconstrutiva como metodologia para o Ensino de História, Dimensões
Formativas e Aprendizagem Reconstrutiva do Conhecimento: Uma Proposta Metodológica
para Formação de Professores de História.
Na Parte III – Gênero, Sexualidade e Educação o debate e as propostas
pedagógicas trazem à tona temas pouco explorados na educação básica e apresentam
estratégias para seu estudo e compreensão no contexto da realidade da educação básica. Esta
parte compõe-se dos seguintes capítulos: Imagens Visuais das Mulheres no Livro Didático
da EJA, das professoras Jucileide da Silva Almeida e Vera Lúcia Caixeta que buscam
mostrar como trabalhar as imagens de mulheres presentes nos livros didáticos e
problematizam o papel social da mulher no tempo e espaço. O capítulo (Des)Construindo
Saberes, (Re)Inventando Práticas: Uma Proposta de Sequência Didática para o Ensino de
História em Gêneros e Sexualidades, do professor-pesquisador Diego Gomes Souza,
também enfatiza um assunto pouco discutido tanto no contexto de sala de aula nas escolas
brasileiras como as experiencias e práticas realizadas pelos professores da educação básica
sobre o tema, inova propondo uma trilha metodológica para debater esse assunto importante
na atualidade para a sociedade brasileira.
Ainda na Parte III o capítulo Pode Falar de Gênero e Diversidade na Escola?
Discussões Analíticas e Empíricas a partir dos Cartazes do Projeto “Gênero e Diversidade

10
na Escola”. Nesse capítulo destacam-se três elementos importantes da pesquisa: a fonte, a
estratégia didática e o objeto de reflexão. E encerrando essa seção da coletânea, o professor-
pesquisador João Candido Carvalho Marinho propõe a utilização da metodologia da oficina
como uma estratégia de aprendizagem para debater temas como família e família no
universo escolar do Colégio Graça Aranha na cidade de Imperiatriz no Maranhão.
Na Parte IV – Ensino de História e Educação para Relações Étnico-Raciais as
preocupações dos autores(as) se voltam para o tema da etnicidade, ancestralidade e cultura
afro-brasileira. Esse tema vem sendo explorado, com maior intensidade, desde aprovação da
Lei nº 10.639/2003. O Capítulo Lugares Outros e Saberes Outros: A Produção de Saberes
para/na Escola, os professores(as) Técia Goulart de Souza e Elison Antonio Paim propoem
a radicalização desse debate no interior da sala de aula e sua disseminação no proprio
ambiente escolar como um todo. Já os professoras-pesquisadoras Elyneide Campos de Souza
Ribeiro e Martha Victor Vieira com o capítulo O Projeto Batuque, Interdisciplinaridade e
Ensino Antirracista no Colégio Estadual de Cristalândia-TO, propõe uma atividade prática
e que envolve a musicalidade, culinária, hábitos e costumes, em suma, a discussão a cultura
Africana e Afrobrasileira junto aos alunos e alunas da escola de Cristalândia.
Convido a todos e todas a fazer uma leitura atenta e vigorosa dessa coletânea que
apesar de contemplar temas, objetos, metodologias e práticas bem diversificadas, expõe de
modo incisivo a renovação pela qual vem passando o Ensino de História no Brasil na
atualidade. Fica aqui apenas uma ligeira amostra do que espera o leitor de Ensino de História
no Tempo Presente. Nossos agradecimentos à CAPES pelo financiamento.
Boa leitura.

11
PARTE 1 –
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL, CURRÍCULO
E ENSINO DE HISTÓRIA

12
ENSINO DE HISTÓRIA POR MEIO DA METODOLOGIA DA EDUCAÇÃO
PATRIMONIAL: MERCADO MUNICIPAL DE ARAGUAÍNA-TO

Jorge Luis de Medeiros Bezerra1;


Mariseti Cristina Soares Lunkes2

Introdução

Neste texto apresentamos uma proposta de intervenção pedagógica a partir da


metodologia da educação patrimonial realizada no Mercado Público Municipal de Araguaína.
Enquanto professor da educação básica é perceptível que os conteúdos ensinados estão longe da
realidade dos alunos, uma vez que eles tratam o passado e o presente como temporalidades
estanques. O que isso quer dizer? Na verdade, a questão da temporalidade e dos diferentes sujeitos
e espaços que compõem a História, presente nos livros didáticos, e no que é ensinado durante a
trajetória escolar, não apresentam elementos que levam os alunos a reconhecer esse passado como
possibilidade de diálogo com o presente, porque é distante e sem conexão com o vivido.
Na contramão da concepção tradicional do ensino de História, acreditamos que o
conhecimento histórico nos currículos escolares pode ser trabalhado de forma dinâmica haja
vista que a metodologia da educação patrimonial apresenta significados para a vida prática
dos alunos. Para tanto, estudamos os espaços do Mercado Municipal de Araguaína buscando
compreender como diferentes espaços podem ser utilizados como recursos para dinamizar o
ensino de História na sala de aula. Um estudo de campo foi realizado com os alunos da 1ª
série do ensino médio da Escola SESI de Araguaína – TO, em 2016. As aulas/oficinas foram
propostas a partir das fases da metodologia da educação patrimonial (observação, registros,
exploração e apropriação) levando em consideração o Patrimônio Cultural e os lugares
significativos3 encontrados dentro do espaço do Mercado Municipal.
O Mercado Público Municipal de Araguaína foi fundado em 1978, período em que o
município de Araguaína ainda pertencia ao Estado de Goiás, em um contexto de grande
efervescência política e de agravamentos econômicos, durante o governo presidido pelos

1
Graduado em História pela UFT. Mestre em Ensino de História pelo PPGEHIST/UFT. Atua como professor do
IFTO.
2
Graduada em Estudos Sociais e em História pela UNISINOS. Mestre em História pela UNISINOS Doutora em
História Social pela UFRJ. Professora aposentada do Colegiado de História e do ProfHistória UFT.
3 Pierre Nora afirma que a sociedade utiliza-se hoje da História para lhe conferir lugares onde se pode pensar
que não somos feitos de esquecimentos, mas de lembranças. Os lugares de memória podem ser entendidos como
um conjunto simbólico, tais como: crenças, ritos e festas, entre outros que compõe a memória histórica de
determinado grupo.

13
militares, representados na figura do General Geisel (1974 – 1978). Surgem então os
mercados, sendo estes espaços para atividades comerciais como também para trocas culturais.
Essas trocas culturais se dão a partir do contato com os diversos produtos que ali
podem ser encontrados: comidas típicas, artesanatos, remédios medicinais, doces caseiros,
enfim, uma gama de gêneros que traduz o modo de vida e a subjetividade do seu produtor,
propiciando o saber fazer como um elemento da cultural imaterial peculiar do Município que
em trocas culturais com outros Estados, ao longo do tempo, vêm formando a identidade de
Araguaína, convertendo o Mercado Público municipal em um epicentro e irradiador desses
elementos culturais em constante ebulição.
Desde a antiguidade o mercado é parte essencial da vida dos cidadãos. Roma por
exemplo, entre suas diversas obras arquitetônicas se destaca o Forum Romanum, lugar onde
os cidadãos tinham contato com a vida pública através das mais variadas funções que esse
recinto desempenhava, contendo desde os templos de culto, como também prédios de justiça.
Através das assembleias e dos discursos feitos por oradores inflamados, o cidadão romano
ficava a par do que acontecia na cidade, pois o Forum Romannum recebia “multidões ainda
maiores que eram atraídas para o centro, a fim de comprar, de fazer o culto, de trocar boatos,
de tomar parte como espectadores ou atores em negócios públicos ou em processos privados”
(MUMFORD, 2004, p. 245).
Depois de séculos do fim do Império Romano e a perca da importância que o comércio
teve em favor da economia de subsistência, no século XI os mercados públicos ressurgem,
tendo sua história associada ao desenvolvimento urbano, pois foram as feiras e os mercados que
proporcionaram grandes transformações sociais, econômicas e paisagísticas, uma vez que vários
núcleos urbanos (burgos) surgiram em torno das atividades comerciais dando origem a novas
instituições, como os bancos e de um novo segmento social (burguesia).
Gradativamente, esses núcleos que surgem em virtude do comércio e feiras tornam-
se artéria da vida econômica, social e política. Os mercados tinham por característica seu
desenvolvimento em áreas centrais da cidade, um lugar de encontro (FILGUEIRAS, 2006).
Dessa forma, o mercado sendo não apenas um centro abastecedor, mas um ambinte de forte
interação social. O mercado é o "centro natural da vida social, pois está no centro de uma vida
de relações" (BRAUDEL, 1985, p. 18). Através de relações cotidianas podem se estabelecer
uma série de elementos, tais como hábitos alimentares, vestuários, entre outros que caracteriza
o cidadão através dos hábitos de consumo.
De certo, o Mercado Público Municipal pode ser compreendido como um espaço
social onde se encontram diversos agentes sociais com variadas formas de expressar seu modo

14
de viver e de observar o mundo, acabando por se tornar um ponto de encontro entre as
diversas culturas que compõe o mosaico da cultural local, pois as feiras e os mercados
públicos podem ser vistos não apenas pelo seu viés econômico, mas como um epicentro
cultural, pois nesses espaços diversos modos de vida são representados através dos produtos
que carregam as impressões dos agentes sociais que os conceberam.

Experiências dos alunos no Mercado Municipal de Araguaína-TO

Os trabalhos de campo foram realizados nas sextas-feiras, entre os dias 06, 13 e 20 de


maio de 2016, sempre no horário vespertino. A turma foi dividida em três grupos. Dois com doze
alunos e um com onze, denominados de grupos A, B e C. O roteiro de visitas foi previamente
discutido com os alunos, assim como os locais que seriam visitados. Os critérios para a
realização das atividades no Mercado foram construídos a partir da problematização dos
conceitos de patrimônio cultural, perpassando pela importância da história, memória e
identidades. Entendemos os bens patrimoniais presentes no Mercado Municipal como fontes que
possibilitam a imersão e reflexão sobre o passado a partir de referências do presente. Iniciamos
as atividades de educação patrimonial, seguindo-se a metodologia de Evelina Grunberg, que
através de seu Manual de atividades práticas de educação patrimonial (2007), divide a educação
patrimonial em quatro fases: observação, registro, exploração e apropriação.
Simultaneamente, aos alunos foram entregues papel, caneta e prancheta para que
fizessem as devidas anotações sobre as observações e registros dos bens culturais
selecionados. Nessa perspectiva, fora solicitado que anotassem tudo que chamasse a atenção.

Figura 1: Professor e alunos na área externa do mercado municipal de Araguaína,


em fase de observação da oficina de educação patrimonial. 05/2016 foto: P.H

Para a autora Evelina Grunberg, Maria de Lourdes Pereira Horta e Adriane Queiroz

15
Monteiro (1999), a observação tem como objetivo a compreensão do bem cultural em todas
suas dimensões. Espera-se que o aluno redirecione seu olhar para o bem estudado, em outras
palavras, a intenção é que ele passe a “enxergar” o bem cultural e não apenas “ver”, como
coloca a autora Grunberg (2007). Uma das propostas de atividades para essa fase é observar o
bem cultural, depois de uma visualização, desenhar e comparar o real com o desenho realizado.
Com intuito de criar um olhar crítico e investigativo, na finalidade do desenvolvimento de uma
percepção visual e simbólica. (HORTA; GRUNBER; MONTEIRO,1999).
O grupo A composto por doze alunos, ficou interessado em fazer o levantamento do
histórico do Mercado. Então, iniciaram suas atividades de reconhecimento do espaço
colhendo informações através de registros fotográficos e anotações no caderno de campo. A
primeira observação que o grupo A fez ao entrar na parte mais antiga do Mercado foi a placa
de inauguração do Mercado Público Municipal de Araguaína na década de 1970, sua
inauguração em 1978. Informações como nome do governador de Goiás, ministérios de
governo, superintendência de desenvolvimento do centro oeste, secretarias de Estados. Dados
que se analisados apresentam o contexto político e econômico do Estado e as políticas
públicas do governo militar brasileiro para a região do norte Goiano. Essa história era
desconhecida para a maioria dos alunos. A partir dessa observação organizamos a próxima
fase denominada exploração, onde os alunos se propuseram a estudar mais sobre a história do
Estado. Esse despertar para a história local é importante já que os alunos não têm conteúdos
de história local ou regional no currículo.

Figura 2: Placa de fundação do Mercado Público Municipal. Araguaína – TO (05/2016). Foto: V. D. C

16
Figura 3: Placa da reforma do Mercado Municipal de Araguaína. 05/2016 Foto: V.D.C

A segunda placa faz referência à entrega da reforma do Mercado Público


Municipal. Reinauguração em 14 de abril de 2011, ela possibilita algumas informações sobre
o cenário político da cidade.
O grupo B optou em trabalhar com o “mundo dos sabores” através dos temperos e
das comidas típicas. Na fase de observação e registro, elas tentaram fazer algumas entrevistas
com alguns comerciantes, porém não tiveram sua permissão. Aceitaram apenas tirar
fotografias e anotar as informações dos feirantes.

Figura 4. Parte interna do Mercado Público Municipal. Expositor de temperos e alimentos. 05/2016. Foto E.S.C

O mundo dos sabores e dos cheiros possibilitou pensar no alimento como prática
social. O cheiro e o sabor podem nos trazem a memória de algo distante reminiscências
adormecidas pelo tempo: quem nunca comeu aquele pedaço de bolo e lembrou-se da vovó? A

17
memória está relacionada com as nossas formas de nos alimentar, pois a alimentação pode ser
vista como uma das primeiras formas de socialização. Assim, os alunos foram desafiados a
lembrarem de algo que estivesse ligado à comida, em que todos tinham história para contar de
uma viagem, de uma reza, de um casamento ou de um aniversário. O Historiador e
antropólogo Genilson Nolasco faz referência a Maciel (2006) que trata à culinária como “um
resultado de um processo histórico que traz em si elementos das mais diversas procedências
que aqui foram modificados, mesclados e adaptados” (MACIEL, 2006, p.93 In NOLASCO,
2013, p. 104). Maciel ainda cita Lemos (2006) que trata do alimento com um artefato, cuja
elaboração foi resultado de conhecimentos acumulados e passados por gerações.
O terceiro grupo, denominado de C, optou em pesquisar os remédios caseiros e
medicinais, sendo que estes em sua grande maioria são provenientes de plantas do cerrado
como óleo da copaíba, óleo de buriti, mel e o óleo da mamona.

Figura 5: Banca de remédios caseiros – Mercado


Municipal de Araguaína - 05/2016 foto de G.A.S

Existe também uma grande quantidade de remédios registrados na fotografia que não
são fabricados pelos comerciantes, que vêm de outras regiões como do Pará e Maranhão. De
certo, a domesticação das plantas trouxe ao homem um conhecimento para a produção de
remédios contra as enfermidades. O remédio caseiro, por muitos anos, foi a única alternativa
de medicamento para as populações desta região que sem médicos e recursos buscavam no
conhecimento dos seus antepassados e curandeiros cura para seus males.
Através da observação e do registro, realizados de forma concomitante, os
estudantes entraram em contato com um tipo de conhecimento que poucos alunos tinham
ouvido falar, o uso dos remédios caseiros. Poucos sabiam de sua existência e muitos falaram
que essa prática era feita pelos seus avôs. Um grupo de alunos gostou da temática, que
18
juntamente com o professor de biologia, no laboratório da Escola SESI estão mapeando as
plantas medicinais da região. Em relação aos resultados da etapa da observação e de registro
destacamos algumas considerações que foram evidenciadas pelos estudantes:

Nossa visita ao local nos fez entender o porquê do Mercado Municipal ser
considerado um patrimônio cultural, a sua História e o quão é importante para o
município e que devem sim existir mais pesquisas sobre ele, sobre seus
comerciantes e clientes fiéis. (M.D.F. 04/2016).

Percebe-se nessa fala dos alunos que “... o mercado é um local histórico não somente
por sua longa data, mas também pelas pessoas que estão lá...” (I.F.S. 04/2016). Sendo assim,
a partir da problematização desse espaço em particular, eles percebem que a cidade tem outros
suportes de memória e que devem ser conhecidos e que a denominação “histórico” não pode
ser atribuído a coisas velhas ou antigas, mas também compreendem que as pessoas constroem
a história a partir da socialização e interação com o ambiente nos quais vivem. Ademais, o
objetivo maior do ensino da história é desenvolver nos alunos uma consciência histórica que
são as “operações mentais com as quais os homens interpretam suas experiências da evolução
temporal de seu mundo e de si mesmo, de forma tal que possam orientar, intencionalmente,
sua vida prática no tempo” (RÜSEN, 2001: 57)
Durante a visita, um dos alunos questiona: “... por que não estudamos História
sempre assim? Ficamos presos tanto ao conteúdo do livro que não aprendemos nada sobre
nós mesmos, nossa cultura e gente!” (Y. P. 04/2016). Percebe-se que eles começam a dar
sentido ao estudo da História, porque a mesma passa a ter significado e fazer parte do seu
cotidiano. Dessa forma, a Educação Patrimonial e o Ensino de História enfatizam uma
aprendizagem significativa e transformadora. Significativa no sentido de mostrar ao aluno que
o ensino de História faz uma leitura e uma interpretação do homem no tempo e no espaço e
transformadora por proporcionar uma reflexão de si e do contexto que o cerca, indo além dos
conteúdos programáticos oficiais.
Depois de realizados as fases de observação e registro dos objetos culturais
escolhidos pelos alunos, atividades essas realizadas no mercado e no entorno dele, iniciamos a
terceira fase da educação patrimonial denominada exploração. Para Horta (1994) a
exploração é o momento de análise, questionamento, hora de interpretar o que foi pesquisado
tendo como foco o desenvolvimento de um olhar crítico sobre o que foi observado e
registrado. Essa nova etapa de trabalho iniciou-se na sala de aula com abertura de uma roda de
conversa, na qual cada grupo tinha a liberdade de compartilhar as experiências de campo,
como as dificuldades encontradas, expondo o que mais chamou a atenção durante as duas

19
primeiras fases do projeto. Nos relatos foi possível perceber que os alunos passaram a
enxergar o Mercado com um “espaço de aprendizado”, tais como:

“Nunca imaginei estudar história na feira.”.


“Professor temos que estudar outros pontos da cidade!”
“Estudar fora da sala tornou a aula de história mais viva!”.

Outras colocações puderam ser percebidas também na produção de texto que foi
realizada onde um dos alunos sublinhou: “Com a pesquisa feita no Mercado Municipal de
Araguaína, fizemos várias descobertas e uma delas foi a de remédios caseiros que são
trazidos de outras regiões, ou até mesmo produzidos pelos próprios vendedores.” (V.N.M.
05/2016). Disse ainda que: “Quando olhamos para o mercado de forma crítica percebemos
mais que um lugar barulhento, cheio de pessoas e mercadorias, percebemos que ele faz parte
da história do Brasil, e da nossa própria história.” ( V.05/2016).
O Mercado Municipal foi ressignificado pelos alunos. Eles passaram a ver o espaço
não apenas pela sua dinâmica econômica, percebendo-o como um lugar de diferentes saberes,
contatos e de relações de poder. Essa percepção pode ser notada quando os alunos afirmaram
que o medo dos mercadores (feirantes) em não aceitarem as entrevistas e nem mesmo em
serem fotografados acabariam silenciando esses personagens e colocando-os a margem da
história. Um aluno sintetizou no seu texto que:

Trabalhar com o levantamento cultural do mercado foi uma ótima experiência para
nós alunos. Com as entrevistas podemos imaginar a evolução do mercado que
através dos anos foi juntando culturas e mesmo passando por grandes dificuldades.
Ainda assim, esse patrimônio se tornou muito importante para o município, pois nele
há várias pessoas de cidades diferentes... o Mercado Municipal é um local histórico.
(B.N 5/2016)

Acerca da experiência de uma aula de campo outro aluno aponta: “Foi legal ver que
o comércio de especiarias começou com o oriente, mas foi mais legal ver que muita coisa
está presente no Mercado Municipal de nossa cidade e nem dávamos fé disso...” (F.P
05/2016). Ao relacionar o comércio das especiarias com os produtos encontrados, o aluno
identificou o cravo da índia, canela, noz moscada, pimenta do reino, gengibre, que ganham
sentido ao serem estudados em sala de aula como conteúdos da disciplina de História.
A apropriação é o momento de internalizar o bem estudado recriando ele através de
dramatização, pinturas e esculturas entre outros modos que o bem possa ser recriado, têm
como objetivo desenvolver um sentimento de valorização do bem cultural. Nessa perspectiva,
realizamos um trabalho de exposição de fotografias para que todos os alunos da escola
pudessem conhecer um pouco da história do Mercado Municipal e da cidade de Araguaína. A

20
partir das imagens podemos obter uma gama de informações sobre os cotidianos dos sujeitos
históricos, como o modo de vestir, as diferentes cores e texturas dos produtos presentes no
Mercado. Enfim, imagens são “testemunhas mudas” de um contexto. Queiroz (2004) chama a
atenção para o envolvimento com a história do local, estabelecendo vínculos nos quais os
valores serão estabelecidos entre a comunidade. A autora enfatiza a importância do
reconhecimento e valorização dos elementos culturais peculiares às comunidades que formam
o nosso país. Enfim, foi organizada uma exposição fotográfica na escola SESI para divulgar
os diferentes olhares dos alunos do 1º Ano sobre o Mercado Municipal de Araguaína.

Figura 6: Quarta fase da Educação Patrimonial: exposição fotográfica

Figura 7: Quarta fase da Educação Patrimonial: exposição fotográfica. (Mario Saviato)

21
A atividade de produção textual realizada como mecanismo essencial para
identificarmos o nível de recepção de todos os alunos que visitaram a exposição. Através de
suas falas percebemos que o olhar sobre a cidade mudou: “O mercado municipal acompanha
a cidade há muitos anos, inaugurado em 1978, se tornou um símbolo da cultura municipal
[...]” ( E.D 9°A 08/2016) “No mercado municipal podemos encontrar diversos elementos da
cultura local que passam despercebidos no dia a dia pelas pessoas e só com um olhar crítico
podemos perceber sua importância cultural.”( M.S 9°B 08/2016).
A partir das atividades propostas percebe-se uma mudança em relação a consciência
histórica dos alunos que identificaram que a história do Mercado Municipal e dos sujeitos que
constrói a mesma fazem parte de relações construídas em diferentes temporalidades. A
história não é só o passado distante, ela também está no presente, nas aprendizagens e práticas
experimentadas no labor das vidas de cada comerciante que lutam pela sobrevivência
cotidiana, assim como fizeram os homens e mulheres de outros tempos. Para os alunos o
Mercado Municipal passa a ser visto como um espaço dinâmico, “[...] um centro cultural
onde, muitas coisas são feitas pelos próprios vendedores, como remédios que na maioria das
vezes são receitas passadas de geração a geração [...]” (A.N 7°C 08/2016). Ao evidenciar
“as muitas coisas que são feitas” pelos comerciantes no Mercado o aluno percebe a
diversidade de práticas e as permanências de saberes e fazeres. Enfim, “[...] o ensino de
história afeta o aprendizado de história e este configura a habilidade de se orientar na vida e
de formar uma identidade histórica.” (RÜSEN, 2011, p.40).

Considerações finais

A Educação Histórica traz uma nova proposta para o ensino de História,


desvinculando-o da concepção da narrativa pronta e acabada. E para isso, primeiro tem que
haver uma compreensão da estrutura de pensamentos dos alunos, pois como argumenta
Rüsen, “a consciência histórica é parte inerente ao ser humano”, todo ser humano tem algum
tipo de consciência histórica formada a partir de suas experiências, escolar, acadêmica e nas
mais variadas esferas que compõe a sociedade. Através da problematização do Mercado
Público Municipal oferecemos aos alunos uma situação real, onde tiveram que pensar
historicamente relacionando o conteúdo escolar com a vida prática, superando assim, aquela
forma de conhecer história pela forma pronta. Através da atividade de apropriação realizada
mediante a exposição fotográfica, os alunos questionaram seu próprio espaço social indo ao
encontro do que os PCNs propõem em termos de competências, tais como entender que a

22
história e a cultura brasileira são múltiplas e plurais, percebendo o patrimônio cultural como
instrumento de ensino e pesquisa em sala de aula.
Por conseguinte, a partir do estudo do Mercado Municipal alguns doravante a
concepção de educação histórica e das propostas metodológicas da educação patrimonial, foi
possível dinamizar novas perspectivas do ensino de História e oportunizar atividades
dinâmicas que levem o aluno a uma compreensão do seu espaço social e ampliação da
consciência histórica. Assim, os alunos do primeiro ano do Ensino Médio da Escola SESI,
aprenderam a relacionar os conteúdos de História na sua vida prática. Além disso, a
concepção de história pronta foi questionada: “O mercado municipal tem diversos
‘patrimônios’ cada qual contando um pouco de nossa História. Não existe um único ponto de
vista para a História de uma localidade.” (V.L 1°A 13/08). Enfim, fica a lição, não basta
apenas ensinar o conteúdo, mas perceber como ele é percebido, elaborado e apropriado pelos
alunos.

Referências

BRAUDEL, Fernand. Os Jogos das Trocas: Civilização material, economia e capitalismo,


séculos XV-XVIII, tomo 2. Tradução Maria Antonieta Magalhães Godinho. Lisboa: Cosmos,
1985. (Coleção Rumos do Mundo).
FILGUEIRAS, Beatriz Silveira Castro. Do mercado popular ao espaço de vitalidade: o
Mercado Central de Belo Horizonte. Dissertação de Mestrado em Planejamento Urbano e
Regional. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro: 2006.
GRUNBERG, Evelina, Manual de atividades práticas de educação patrimonial, Brasília,
DF: IPHAN, 2007.
HORTA, M.L.P.; GRUNBERG, E.; MONTEIRO, A. Guia básico de educação patrimonial
do IPHAN. Brasília; Petrópolis: IPHAN, 1999.
NOLASCO, Genilson Rosa Severino. As faces do patrimônio cultural In PEDREIRA,
Antônia Custodia (Org.) As diferentes faces e interfaces do patrimônio: registros para
preservação e memória. Porto Nacional – TO, 2013.
MUMFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas.
Tradução Neil R. da Silva. Martins Fontes: São Paulo, 2004.
QUEIROZ, Moema Nascimento. A Educação Patrimonial como Instrumento de Cidadania.
Revista Museu. Disponível em www.revistamuseu.com.br/artigos. Acessado em 06 de julho
de 2016.
RÜSEN, Jörn; SCXMIDT, Maria Auxiliadora; BARCA, Isabel; MARTINS, Estevão de
Rezende. Jorn Rüsen e o Ensino de História. Curitiba: Editora da UFPR, 2011.

23
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL A PARTIR DE UM ROTEIRO
HISTÓRICO-GEOGRÁFICO EM INHAÚMA – RIO DE JANEIRO

Vagner Jose de Moraes Medeiros4

Introdução

Trabalhando na Rede Estadual do Rio de Janeiro desde 2005, com ensino médio,
sempre buscava diversificar meu trabalho com atividades extraclasses. Criava projetos como
visitas a museus ou valorizando a história da cidade do Rio de Janeiro. Nunca foi fácil. Não é
somente a falta de recursos e condições de trabalho que desestimulam o trabalho de professor
no Brasil. O nosso modelo educacional também não ajuda. Em 2008, resolvi ingressar no
curso de Geografia, com a ideia de diversificar minha formação e o campo de trabalho.
Iniciado em 2009, durante o curso, os objetivos, assim como os problemas da vida, fizeram
com que esse fosse sendo levado bem devagar de modo que, entre trancamentos e
retornos, levei nove anos para concluir o curso de Bacharelado. E esse período foi marcado
por várias crises em minha vida, como a perda da minha mãe, crise no casamento e síndrome
do pânico causado pelo estresse da profissão. Contudo, o meu trabalho sempre continuou e,
com certeza, o curso de Geografia ampliou meu horizonte profissional, minhas atividades
começaram a se tornar cada vez mais interdisciplinares e, assim, os projetos foram surgindo.
Durante o início da minha da carreira de professor, algumas evoluções foram
acontecendo na educação. Dentre elas, cito a lei 10.639, de 2003, que obrigava o ensino de
história e cultura afro-brasileira, nas instituições de ensino do Brasil. Acredito que ela não
teve a necessária repercussão para a sua aplicação na época de sua aprovação, pois não
percebi nenhuma mudança. Em 2008, com a aprovação da lei 11.645, que incluía também a
obrigatoriedade do ensino sobre a cultura indígena, o processo de divulgação estava mais
forte, também por força dos movimentos sociais que lutam contra os preconceitos e abusos
que descendentes de negros e índios sofrem.
Sabendo da importância, não só da lei, mas desse tema para a construção de uma
educação democrática e cidadã, construímos um trabalho que tentasse dar conta da lei e da
demanda da comunidade escolar. Coincidência ou não, fui justamente o autor do tema para o

4
Graduado em História pela UERJ. Mestre em Ensino de História pela UFF. Atua como professor na rede
municipal de ensino da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.

24
projeto escolar a ser desenvolvido no ano de 2012: O negro e o índio na construção de Inhaúma.
A ideia desse tema não surgiu por acaso, pois lecionava no local desde 2005 e
conhecia já algumas histórias do bairro. Além do nome do bairro chamar atenção para a
origem indígena, ele é adjacente ao bairro Engenho da Rainha. Onde há engenho, há
contribuição afro-brasileira. Existia a casa principal da fazenda que pertenceu à Carlota
Joaquina, esposa do rei D. João VI e rainha do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves,
que viveu no Brasil entre 1808 e 1821. Frequentemente os alunos gostavam de citar um local
conhecido popularmente como “casarão”, que era a antiga sede do Engenho da Rainha. Havia
na casa um porão com vestígios de uma antiga senzala. Infelizmente, por abandono dos
proprietários, o “Casarão” foi ocupado por invasores e, por estar extremamente deteriorado, a
Defesa Civil o interditou. O imóvel acabou desabando.
Todo esse contexto envolvendo o bairro inspirou a criação do projeto étnico de 2012.
Cada segmento do ensino médio ficou responsável por algum tipo de atividade, dentre elas:
criação de vídeos, culinária local, festas populares, etc., todas buscando as influências
indígenas ou afro-brasileiras. A reação foi bastante positiva e os alunos conseguiram não só
mostrar a história da origem do lugar onde eles viviam, como o nome de muitos logradouros
do bairro. Inhaúma apresenta muitas ruas com nome de origem indígena.
Esse trabalho me chamou atenção para algo que extrapola os muros da escola. O
bairro de Inhaúma possui uma riqueza arquitetônica e uma herança patrimonial pouco
conhecida e valorizada. Passamos muitas vezes por alguns prédios ou logradouros e não nos
damos conta de quanta história já se passou por ali. Com isso, percebi que, em um pequeno
recorte geográfico, o bairro tinha um bom acervo patrimonial. Já mais tarde, com alguma
pesquisa, descobri que alguns prédios já eram tombados pelo Instituto Rio Patrimônio da
Humanidade – IRPH.
Foi a partir de então que comecei a elaborar um roteiro no bairro de Inhaúma, para
que pudéssemos falar dessa história de uma forma mais concreta, ou seja, não apenas ficar
assistindo vídeos ou qualquer exposição dentro da escola, mas sim uma tentativa de levar uma
experiência mais sensorial através de um trabalho de campo. Esta experiência in loco
transforma muito mais a visão do aluno, que, muitas vezes, passa pelo lugar e não consegue
enxergar a riqueza que o cerca.

25
A proposta do trabalho

Quando comecei a fazer o roteiro no bairro de Inhaúma, com os alunos do colégio


estadual Olavo Josino de Salles, de fato não imaginava o tamanho das possibilidades que esse
trabalho poderia nos dar. Não pela falta de objetivo da atividade original, pois sabia da grande
potencialidade de aprendizagem no trabalho fora de sala de aula, assim como o da história e
geografia que cada lugar possui se for pesquisada ou explorada, mas por falta de estrutura
para se desenvolver um projeto assim. A surpresa foi o apoio teórico-metodológico que o
projeto acadêmico do mestrado profissional me abriu, quando eu comecei a fundamentar a
minha prática educativa, mostrando que se pode integrar a ciência que se produz na academia
com a produção de conhecimento nas escolas de ensino básico, encaminhando, no meu caso,
o trabalho para um projeto voltado para educação patrimonial. E a cada passo que a pesquisa
evoluiu, a atividade foi ficando cada vez mais elaborada, tornando-se ainda mais interessante
para os alunos, aumentando o número de participantes, assim como o conhecimento sobre o
bairro de Inhaúma. Ainda hoje, a cada momento, o projeto cresce e fica mais estimulante
desenvolvê-lo, em um movimento de contínua evolução.
Ao pesquisar sobre educação patrimonial, encontrei muitos textos e pesquisas
relacionados aos museus. Certamente, o museu é um tradicional lugar de memória, mas
atualmente sabemos que não é somente isso. A professora e pesquisadora da área de educação
em museus, Martha Marandino (2008), aponta que um museu é um lugar de educação não
formal, mas em alguns momentos varia entre a educação informal, quando recebe visita de
famílias ou público em geral, e também formal quando recebe algum trabalho de campo
dentro de projetos de escolas. Segundo ela:

[...] um museu, por exemplo, poderia ser nomeado como espaço de educação não
formal quando o pensamos como instituição, com um projeto de alguma forma
estruturado e com determinado conteúdo programático. Mas, ao pensarmos sob o
olhar do público, poderíamos considerá-lo como educação formal, quando alunos o
visitam com uma atividade totalmente estruturada por sua escola [...].
(MARANDINO, 2008, p. 15)

Esta forma apresentada pela autora me auxilia pelo fato de a malha urbana não ser
um espaço formal de educação, porém pode se tornar formal quando se faz um trabalho
educativo naquele espaço. Outro ponto interessante que essa autora traz sobre os museus é a
dimensão mais precisamente educativa dos mesmos, pois os objetivos desses foram se
transformando ao longo do tempo e, atualmente, existe uma mudança de postura não só na
montagem, como também na apresentação do acervo do museu. Cada vez mais há uma
preocupação de tornar a exposição mais acessível ao público, de modo que este a

26
compreenda, tornando-a mais significativa, pois “é preciso que o visitante seja ativo e
engajado intelectualmente nas ações que realiza no museu e que as visitas promovam
situações de diálogo entre o público e deste com os mediadores” (MARANDINO, 2008,
p.16). Tal afirmação é bastante interessante para as nossas atividades de roteiro, pois essa
participação é fundamental para a construção do projeto. Não teríamos na cidade objetos
expostos como há no museu, mas as reflexões feitas pelos teóricos que trabalham com esse
objeto de pesquisa são fundamentais para o desenvolvimento da educação patrimonial.
A cidade não foi montada para uma exposição museal, mas assim como esta, possui
intencionalidade. Ela também é construída com intencionalidade e hoje, os fixos urbanos serão
os nossos objetos que podem ser tratados como uma espécie de museu a céu aberto, os quais
não foram retirados das suas funcionalidades para serem incorporados em um acervo, mas
podem ser enxergados como tais uma vez que compõem a história da construção do bairro e da
sociedade. Dessa forma, consigo entender que os objetos (que aqui no caso são em sua maioria
edifícios do bairro) promovem sensações, sentimentos, significações e imaginações conforme a
mediação construída, como observa a pesquisadora Isabela Carvalho de Menezes:

[...] as conexões nascem de um encontro, sempre único, entre o visitante e o museu,


sendo que ambos interferem em seu direcionamento. Elas assumem contornos
diversos, variando de pessoa a pessoa e momento a momento, pertencendo a cada
íntimo, na relação com o museu [...]. (MENEZES, 2016, p. 16)

Um dos objetivos do projeto do roteiro é justamente provocar esses sentimentos e


sensações, permitindo que o aluno seja seduzido, para que haja uma interação entre ele e os
objetos do espaço urbano, que fazem parte do trajeto a fim de que ele possa sentir e, ao
mesmo tempo, perceber realmente a beleza e a riqueza dos bens patrimoniais do bairro,
conectar-se e criar significados. Ainda seguindo a reflexão de Isabela de Carvalho, os objetos
podem ser somente úteis ou úteis e simbólicos. Um objeto quando exposto em museu, ele
deixa de exercer a função para qual foi construído, ganha uma nova significação, mas essa
não será necessariamente aquela proposta pelo museu, pois depende também do projeto
educativo e da mediação. Os participantes do roteiro trazem toda uma carga de conhecimento
e significados prévios. Possuem suas ideias, ideologias e temporalidades. Cada sujeito social
poderá construir significações próprias para o objeto a partir de suas práticas e representações
à revelia do discurso do museu. É justamente a partir desta colocação de Carvalho que o
projeto tende a caminhar, na ideia de que haja uma interação entre o aluno e o objeto, uma
proposta de diálogo dialético buscando todas as potencialidades do ponto de vista dele:

[...] cada indivíduo que entra no museu dispõe de uma história prévia, isto é, o seu
arcabouço pessoal e social de experiência, habilidades e conhecimentos aprendidos

27
ao longo da vida, que constituem, em suma, o seu histórico de mediações sociais.
Esse conhecimento é frequentemente mobilizado pelos visitantes para significar os
objetos no museu. Entretanto, os sentidos construídos pelos visitantes podem ser
potencializados pela interferência de outras pessoas, nos processos de mediação [...].
(MENEZES, 2016, p. 27)

É minha intenção, com a presente experiência, sustentar uma proposta de mediação


em que haja um diálogo entre os alunos e os objetos do roteiro, para que possa despertar neles
lembranças ou para que abra caminho para possibilidades de novas experiências e reflexões,
despertando a imaginação histórica e o interesse do aluno em conhecer e preservar a história e
o patrimônio do bairro de Inhaúma, na cidade do Rio de Janeiro.
Por isso, o ponto fundamental do projeto é a educação patrimonial, pois desempenha
um papel importante no processo de valorização do patrimônio histórico cultural da cidade.
Ainda existe alguma confusão sobre o que é patrimônio cultural e o que é patrimônio
histórico. Todo patrimônio histórico é também cultural. Há também a distinção entre
patrimônio cultural material e imaterial. A educação patrimonial vem justamente para melhor
elucidar os alunos sobre estas distinções. Muitos ainda têm uma visão extremamente ligada à
visão do passado de que patrimônio são apenas aqueles prédios antigos que tiveram um papel
importante na história política do Brasil ou foi residência de alguma pessoa ilustre. A
museóloga e pesquisadora na área de educação patrimonial, Maria de Lourdes Parreiras
Horta, umas das pioneiras em educação patrimonial no Brasil, montou um guia básico de
educação patrimonial, afirmando que:

[...] Trata-se de um processo permanente e sistemático de trabalho educacional


centrado no Patrimônio Cultural como fonte primária de conhecimento e
enriquecimento individual e coletivo. A partir da experiência e do contato direto
com as evidências e manifestações da cultura, em todos os seus múltiplos aspectos,
sentidos e significados, o trabalho da Educação Patrimonial busca levar as crianças e
adultos a um processo ativo de conhecimento, apropriação e valorização de sua
herança cultural, capacitando-os para um melhor usufruto destes bens, e propiciando
a geração e a produção de novos conhecimentos, num processo contínuo de criação
cultural [...]. (HORTA, 2006, p. 4)

Essa passagem sugere uma visão abrangente sobre o que é educação patrimonial,
mostrando uma possibilidade de relação dialética entre o conhecimento histórico e valorização
do patrimônio, e uma proposta de contínua produção cultural sobre ele. Quero também
acrescentar as possibilidades de uma proposta interdisciplinar nesse processo, pois a cidade é
um espaço que não possui somente uma materialidade, mas também uma subjetividade, além
de ser também um reflexo das disputas políticas. O processo de tombamento feito pelo Estado,
que torna um prédio oficialmente um patrimônio histórico na cidade, é palco de disputa e
reflete a luta social assim como as desigualdades numa sociedade capitalista:

28
[...] Sabe-se que as políticas de preservação se inserem num campo de conflito e
negociação entre diferentes segmentos, setores e grupos sociais envolvidos na
definição dos critérios de seleção, na atribuição de valores e nas práticas de proteção
dos bens e manifestações culturais acauteladas. Situação determinada, entre outras
causas, pelo assimétrico e desigual processo de desenvolvimento socioeconômico...
Esse quadro acaba por originar um desequilíbrio de representatividade em termos da
origem étnica, social e cultural, o que provoca, por sua vez, uma crise de
legitimidade e uma baixa identificação da população, em alguns casos, com o
conjunto do que é reconhecido oficialmente como Patrimônio Cultural Nacional.
Nesse sentido, é fundamental conceber as práticas educativas em sua dimensão
política, a partir da percepção de que tanto a memória como o esquecimento são
produtos sociais [...]. (IPHAN, 2014, p. 23)

O processo de educação patrimonial não pode deixar de demonstrar todos os


aspectos envolvidos na construção de um projeto de valorização e defesa do patrimônio
cultural da cidade.
Usar o espaço urbano para trabalhar com educação patrimonial tornou-se algo
interessante para mim que sempre gostei de fazer roteiros e conhecer as histórias da cidade.
Sou uma pessoa extremamente urbana e não nego a minha identidade pelas relações
comunitárias que acontecem nas ruas dos bairros do subúrbio carioca. Sim, a rua tem alma
como escreveu João do Rio (1908) em sua obra “A alma encantadora das ruas”. Para
desenvolver esse trabalho, é importante falar de educação patrimonial, entretanto, também é
fundamental buscar apoio na geografia cultural que complementa de modo interessante este
trabalho, pois estou tratando de um roteiro dentro de um espaço urbano que, além de uma
história, possui também uma geografia, uma natureza que sofreu intervenções antrópicas ao
longo de séculos, uma vez que, segundo Santos:

[...] A evolução que marca as etapas do processo de trabalho e das relações sociais
marca, também, as mudanças verificadas no espaço geográfico, tanto
morfologicamente, quanto do ponto de vista das funções e dos processos. É assim
que as épocas se distinguem umas das outras [...]. (SANTOS, 1999. p. 61)

Não posso deixar de observar que os objetos da pesquisa (em sua maioria são
imóveis situados no bairro de Inhaúma) fazem parte de uma paisagem que, assim como os
objetos de um acervo de museu, não possuem apenas a sua materialidade nem a
intencionalidade de quem os pôs lá. As paisagens do roteiro também fazem parte do
imaginário de quem o percorre, como os fixos que fazem parte delas. Nesse sentido, um lugar
pode ser compreendido como a espacialização de relações sociais construídas ao longo da
história. É nesse sentido que alguns lugares ganham identidade e fazem surgir o sentimento de
pertencimento. Segundo o Conselho Internacional de Museus e Sítios (ICOMOS):

[...] O ‘espírito do lugar’ consiste no conjunto de bens materiais (sítios, paisagens,


edificações, objetos) e imateriais (memórias, depoimentos orais, documentos
escritos, rituais, festivais, ofícios, técnicas, valores, odores), físicos e espirituais, que

29
dão sentido, valor, emoção e mistério ao lugar, de tal modo que o espírito constrói o
lugar e, ao mesmo tempo, o lugar constrói e estrutura o espírito [...]. (NOR, 2013, p.
125)

O sentimento de pertencimento pode despertar não só o interesse pelo patrimônio


cultural, mas também a percepção e o olhar sobre os fixos que fazem parte do trajeto. As
paisagens do roteiro também podem ser analisadas e refletidas pelos alunos como um objeto
de pesquisa. A geógrafa britânica McDowell afirma que:

[...] As paisagens não são apenas construídas, são também percebidas através da
representação de versões ideais, na pintura e na poesia, como também no discurso
científico e nos escritos acadêmicos. Em consequência, os novos geógrafos da
paisagem reteorizaram a paisagem não apenas como o resultado material de
interações entre o ambiente e a sociedade (o antigo nexo homem [sic]/terra), mas
também como a consequência de uma maneira específica de olhar. A noção de uma
maneira objetiva, neutra e especificamente geográfica de olhar a Terra é, portanto,
questionada [...]. (MCDOWELL, 1996, p. 176)

Os imóveis do roteiro estão em uma paisagem urbana e podem ser analisados


também com o arcabouço teórico da geografia cultural, promovendo assim algo que vai além
do conhecimento sobre a história ou as explicações geoeconômicas sobre o surgimento do
lugar, surgindo uma nova construção de um sentido para o espaço geográfico dado por aquele
que o observa e interage com o mesmo.

A origem do projeto

Despertar o aluno para o interesse do conhecimento das disciplinas escolares está se


tornando uma tarefa cada vez mais difícil. Algumas mudanças na sociedade atual ajudam a
explicar isso. É necessário atentar para alguns fatores no sentido de entender melhor o problema.
Apesar de existirem algumas explicações homogêneas sobre o assunto, a verdade é
que em cada escola há uma realidade diferente. Além disso, cada aluno tem a sua
individualidade e história familiar. De modo geral, as famílias estão vivenciando uma espécie
de reestruturação diante das novas demandas sociais e econômicas. Os pais estão cada vez
mais envolvidos com o mercado de trabalho e o papel que costumavam realizar na educação
básica dos filhos está sendo transferido para a escola. Acredito serem os pais os primeiros a
despertar nos filhos o interesse pela aprendizagem, mas, atualmente, não conseguem mais por
falta de tempo, dentre outros fatores, como acompanhar cotidianamente a educação e a
escolarização dos seus filhos.
Outra mudança a ser considerada diz respeito à popularização da cultura digital, pois
o acesso à internet e aos computadores portáteis permite centenas de possibilidades que

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atraem muito os alunos. Crianças e adolescentes se mostraram bastantes interessados em
atividades que sejam fáceis, rápidas e intuitivas. Se antes, para ter acesso aos conhecimentos,
era necessária pesquisa em biblioteca ou fazer curso, hoje estão disponíveis na palma da mão.
No mundo virtual, textos, imagens e vídeos ensinam e demonstram aos usuários
como fazer diversas atividades, dispensando, muitas vezes, o papel de um instrutor ou do
professor. Muitas vezes são materiais rasos ou falhos, mas há também muito conteúdo
interessante, tornando a vida mais fácil ou econômica para quem acessa àquelas informações.
Essa realidade sociocultural desafia a escola, ainda carregada de uma carga de
tradicionalidade, associada a um modelo em que o professor está na frente de uma turma,
muitas vezes, repleta de alunos, tentando expor o conteúdo das disciplinas convencionais.
Temos uma instituição e um formato de educação que há muito não se enquadram
com a realidade social brasileira. Há tentativas de se mudar esse cenário brasileiro, mas quase
todas as reformas na educação partem de uma ação do Estado, com pouquíssima ou nenhuma
participação da comunidade escolar.
É justamente dentro desse contexto que apresento a proposta de se fazer um roteiro
histórico-geográfico no bairro de Inhaúma, local em que se encontra a escola em que leciono,
de modo a criar uma possibilidade de aprendizagem para fora dos muros da escola e para além
da aula expositiva, tentando despertar o interesse pelo conhecimento com uma atividade
extraclasse e interdisciplinar. Despertar no alunado também o interesse pelos bens patrimoniais
do bairro em que vive ou estuda, no intuito de valorizar e lutar pela sua preservação.
Muito já se destruiu do patrimônio cultural da região da Zona Norte do Rio de
Janeiro. Um exemplo recente foi o prédio da casa grande da Fazenda Botafogo (um antigo
engenho colonial). Esta ficava próximo ao bairro Guadalupe, na Avenida Brasil. Abandonada
até quase virar pó, deu lugar a obras do programa do governo federal: Minha casa, minha
vida. Como uma área de concentração da classe trabalhadora da cidade, os governantes não
dispensam a mesma atenção tal qual nas áreas de turismo. Além disso, a população dessa área
da cidade pouco se mobiliza para defender os patrimônios culturais. Fica muito difícil lutar
junto aos poderes públicos se o povo não vislumbra a conservação da memória do bairro por
achar que aquilo não lhe pertence. Também não parece enxergar as possibilidades de uso dos
seus bens. Assim, faz-se necessário um trabalho de educação patrimonial na prática, pois:

[...] Para que haja preservação, faz-se necessário a interação, que leva a valorização
de sua herança cultural e a produção e novos valores e conhecimentos. Faz-se
necessário entender também que há uma diversidade de modos de apropriação do
espaço, da comunidade e da cidade, gerando uma cidade como guerra de relatos, de
interpretações, com cada grupo possuindo seu próprio mapa cultural [...].
(MAGALHÃES, 2009, p. 62)

31
Diante dessa realidade, devemos mostrar as possibilidades de aprendizagem e, por
que não, de futura atividade econômica ao se preservar o patrimônio local (como turismo,
comércio e serviços). A partir desse movimento para fora da escola, esperamos ampliar as
práticas de ensino e aprendizagem para o educando. Estimular o interesse do mesmo pelo
estudo da história do bairro e da disciplina escolar, além de mostrar que ele é também um
agente da história. É importante que o aluno perceba que seu conhecimento e a sua
participação em ações locais podem promover mudanças de rumo no futuro da sua
comunidade. Busca-se também a possibilidade de uma maior e melhor aproximação entre a
comunidade escolar e a Escola.

A metodologia do trabalho

Existem dificuldades de se fazer um trabalho fora da escola. Em geral, são duas as


principais: em primeiro lugar, está a questão do transporte, pois o custo tende a inviabilizar o
projeto, já que a escola, normalmente, não dispõe de verba e é caro para os pais dos alunos
custearem. Em segundo lugar, há a dificuldade em conseguir a autorização dos responsáveis para
a saída do educando da escola (na maior parte dos casos se trata de estudantes menores de idade).
Percebo que estamos em um contexto no qual o professor já está extremamente
vulnerável em relação à pressão da direção, dos pais de alunos, e até risco de processos
judiciais, e assim acaba não arriscando a saída com seus alunos para fora da escola.
Além disso, esse tipo de atividade também requer do professor disponibilidade,
muitas vezes sem tempo para fazer todo um planejamento fora do seu horário de trabalho. É
preciso fazer pesquisas relacionadas ao assunto do trabalho de campo.
Por fim, outra dificuldade é a grade de horário, o que exige a negociação entre
professores. Há muitas críticas por parte do corpo docente, pois afirmam que os alunos
deixarão de ter aula para fazer passeio. Atualmente, trabalho com um roteiro com os alunos
do Colégio Estadual Olavo Josino de Salles, uma escola de ensino médio da SEEDUC-RJ que
funciona somente no turno da noite (escola compartilhada no prédio de uma escola municipal
com o mesmo nome). Muitos alunos trabalham durante o dia, por isso, a opção de estudar no
terceiro turno. Isso dificulta fazer este trabalho extraclasse com minhas turmas, uma vez que
não se podem fazer visitas diurnas. Sendo assim, a atividade é marcada, em geral, nos finais
de semana. Para solucionar a dificuldade daqueles que não podem participar, foi criada como
estratégia uma avaliação substituta. Ainda assim existem dificuldades, pois muitos se recusam
a fazer ambas as atividades.

32
Nesse primeiro projeto extraclasse que montei, para o Colégio Estadual Olavo Josino
de Salles, não havia relação com roteiros, mas com educação patrimonial, com duas
justificativas bastante básicas: propor uma forma de avaliação diferente da tradicional e
estimular uma atividade extraclasse para quebrar a rotina de sala de aula. Fizemos, assim, o
primeiro trabalho de campo, que aconteceu no Museu do Trem, no Engenho de Dentro, bairro
da cidade do Rio de Janeiro.
Na matriz curricular do ensino médio, o conteúdo do segundo ano propõe, para os
bimestres finais, trabalhar o período do Segundo Reinado brasileiro. Uma fase da história que
aparecem as ações do empresário Barão de Mauá e o início da construção do transporte
ferroviário no Brasil. A atividade no museu seria para as turmas do segundo ano como forma
de complementação dos conteúdos trabalhados em sala de aula. Pesquisei sobre o Museu do
Trem que eu já havia visitado, inclusive, numa fase em que eu estava bastante interessado em
educação em museus. Todavia, partir de algumas leituras e ideias, refleti melhor sobre a
realidade da escola e fiz uma nova proposta.
A ideia de fazer uma atividade complementar extraclasse é atraente, mas a realidade
de escola noturna e compartilhada nos dá poucas oportunidades de fazer esse tipo de
atividade. Os professores não costumam se animar para realizá-las em turmas do ensino
noturno. Boa parte dos alunos trabalha durante o dia, o que dificulta mais ainda esse tipo de
trabalho. A partir daí, fiz algumas reflexões e resolvi não só abandonar a ideia de um trabalho
meramente complementar à sala de aula, como também convidei os alunos do terceiro ano.
A visita ao Museu do Trem passou a ser algo maior que complementar o conteúdo
bimestral. Com alunos de séries diferentes, pensei em uma atividade que extrapolasse o
conteúdo de história, focando a mesma em valorizar o acervo do museu e dar oportunidade
para os alunos descreverem sua visão sobre a exposição, e fotografarem aquilo que eles
achassem de mais interessante no museu.
O horário do museu era reduzido por vários motivos como, por exemplo, a falta de
funcionários, só funcionando no período de segunda a sexta, das 10 às 16 horas. Por isso,
flexibilizei a participação, pois muitos não poderiam ir em função do horário de trabalho. Com
todas as dificuldades, conseguimos ir ao museu e compareceram em torno de vinte alunos.
Uma vitória para quem achava que não iria ninguém, portanto, vimos que era possível sair da
escola com baixo custo e acreditando na vontade dos alunos de participarem dos projetos.
No caso desta proposta, a ideia é apresentar, a partir de uma caminhada a pé por um
dos lados do bairro de Inhaúma (que é cortado pela linha dois do metrô), a história local, os
aspectos geográficos e os bens patrimoniais já tombados do bairro, através de uma breve

33
exposição em cada um dos pontos do roteiro, estimulando os participantes a observarem e
refletirem, não somente sobre os fixos, mas também sobre o espaço geográfico urbano em que
estão os mesmos. Provocar o questionamento sobre como se dão as escolhas dos bens a serem
tombados e se naquele roteiro eles teriam alguma sugestão. Assim não só se divulga o que já
existe para que se valorize e se preserve, mas também se estimula a luta dos que ainda estão
para serem “salvos”.
Dito isso, o processo de construção da pesquisa foi dividido em duas partes. Na
primeira, apresento uma breve pesquisa sobre a história do bairro, assim como o histórico de
cada ponto do roteiro. Na segunda parte, apresento o processo de desenvolvimento do roteiro,
indicando a origem, a elaboração e a aplicação na prática.
Sendo o roteiro uma prática já aplicada em minha docência, mostro aqui sua
execução desde a origem. A construção do projeto e do roteiro aconteceu a partir de algumas
etapas e observações. Após o projeto étnico de 2012, surgiu o objetivo de fazer alguma
atividade envolvendo o patrimônio histórico no entorno da comunidade escolar. O bairro de
Inhaúma, fundado após o desmembramento da Freguesia de Irajá, era uma área rural que
possuía engenhos e era responsável pelo abastecimento de alimentos para a cidade do Rio de
Janeiro. Inclusive, nele ficava o Engenho da Rainha, de Carlota Joaquina, que deu o nome a
um dos bairros que faz divisa com Inhaúma.
Como um dos pontos do roteiro é a Igreja de São Tiago, que deu origem à criação do
bairro, o recorte temporal começa em 1743, ano de fundação da Freguesia de Inhaúma, tratando
de forma breve a sua história, percorrendo todo o período colonial, imperial e republicano até os
dias de hoje, por se tratar de trabalho que fala dos bens patrimoniais atuais. Todos os pontos do
trajeto a serem percorridos a pé se encontram hoje dentro da delimitação geográfica oficial do
bairro de Inhaúma determinada pela prefeitura em sua lei ordinária 3158/815.
Para ser feito esse tipo de trabalho educativo, é importante observar, além dos
aspectos já citados acima, outros pontos importantes. Na hora de escolher o roteiro, deve-se
pensar no tempo e no trajeto. O que está sendo aqui apresentado é todo feito a pé. Jovens
atuais têm cada vez menos paciência e disposição para certos tipos de atividades. De fato, isso
não deve limitar ou prejudicar o projeto, mas é bom pensar no tamanho do percurso e no
tempo na hora de se traçar a rota, principalmente, quando a proposta ainda não é conhecida
pela escola. Com o sucesso da atividade, pôde-se ampliar o roteiro de acordo com os bens que

5
Lei Municipal da cidade do Rio de Janeiro. <https://leismunicipais.com.br/a/rj/r/rio-de-janeiro/decreto/1981/
315/3158/decreto-n-3158-1981-estabelece-a-denominacao-a-codificacao-e-a-delimitacao-dos-bairros-da-cidade-
do-rio-de-janeiro>. Acesso em 20/02/2020.

34
existem no bairro. É preciso dar umas dicas durante as aulas para a preparação, como levar
água, protetor solar, e etc.
Por já usar a internet e redes sociais para outras atividades relacionadas à matéria,
promovo a divulgação com o envio de uma propaganda através do aplicativo WhatsApp.
Também faço a publicação de tudo na página do blog reservado aos alunos do C.E Olavo Josino
de Salles. A propaganda é uma espécie de panfleto mostrando alguns pontos do roteiro e os
dados principais. Um link como um mapa do roteiro georreferenciado no Google Maps também
é enviado para já orientar os alunos quanto à rota e os pontos de parada. Esse mapa aponta
geograficamente todos os pontos a serem percorridos na trajetória e apresentados no roteiro.
O ponto de partida se dá na estação do metrô. Essa escolha não é por acaso, pois a
linha dois do metrô foi construída no leito de uma antiga ferrovia, a Rio D’Ouro. Ela foi
montada para dar apoio para a construção de um duto para abastecimento de água da cidade.
De transporte de carga passou para o de passageiro. Há uma forte ligação entre o surgimento
das estações de trem e dos bairros do subúrbio carioca. Afinal, foi justamente por causa da
ferrovia que as áreas rurais do Rio de Janeiro foram se tornando urbanas. Mas, se por um
lado, esse transporte foi responsável pelo surgimento da urbanização, por outro é também
responsável pela sua divisão territorial, o que dificulta o deslocamento.
Na hora de traçar um roteiro, optou-se pelo lado em que havia mais pontos de
interesse histórico. Nem por isso se deixa de falar sobre o “outro lado” onde está situado, por
exemplo, o cemitério que possui o jazigo das judias polacas, que também é tombado pelo
Patrimônio Histórico municipal.
O grafite da Copa Grafite6, na parte externa da estação do metrô, que representa a
origem do bairro, me permite dar continuidade ao roteiro falando das origens de Inhaúma.
Uma das coisas que é tratada nesse ponto é chamar atenção para o fato de que aquela pintura,
uma vez preservada, tende a se tornar mais um patrimônio do bairro, não só pelo tema que
também é muito importante, mas também pelo fato de que ela representa um estilo de arte e
um estilo de vida que, inclusive, faz sucesso em muitos países da Europa. Ela também
valoriza a estética do lugar, deixando o bairro mais bonito, diferente se fosse uma parede toda
cheia de pichações.
Durante o trajeto, não só é falado sobre a história do bairro, mas também as
transformações geográficas que este sofreu. Trato de alguns conceitos da geografia como a
transformação de um fixo (prédio) com as suas refuncionalizações. Este é o caso da loja de

6
Torneio de Grafite nos muros das estações da linha 2 do metrô promovido pela empresa Metrô Rio em 2013.

35
parafuso Ado, que, no passado, foi um cinema de rua. Busca-se mostrar também a arquitetura
e com ela poder contar a história do bairro e a do Brasil. Nesse pequeno trecho, há um circuito
religioso de igrejas cristãs de congregações diferentes: uma presbiteriana, uma batista e uma
católica. Cada qual com sua arquitetura distinta.
O roteiro termina na Praça de Inhaúma. A praça possui o nome de Vinte Quatro de
Outubro (homenagem a Revolução de 1930) e um Busto do Visconde de Inhaúma
(patrocinado pela Marinha em homenagem a este militar). Tento alertar para o fato de que
tanto o nome da praça quanto o busto não apresentarem uma relação objetiva com o bairro,
porém tal fato é muito comum com os nomes dos logradouros públicos da cidade. Dessa
forma, vou trabalhando todo o trajeto falando dos logradouros, da arquitetura e das funções,
buscando uma aproximação entre a história do lugar e o modo como se dá o ordenamento do
espaço geográfico. Apresento como se dá a escolha das memórias que não devem ou
deveriam ser esquecidas, mas algumas delas acabam por cair em total esquecimento
justamente pelo fato de não haver nenhuma relação com a população local. Existe, inclusive,
um movimento na internet que busca mudar o nome da praça, mas parece ter pouca expressão.
As primeiras atividades foram bastante livres em relação à forma de participação do aluno.
Buscou-se fazer um trabalho agradável, não se preocupando com relatórios ou avaliações.
Houve posteriormente um debate em sala.

Conclusão

A prática docente está cada vez mais difícil, uma vez que os alunos demonstram cada
vez menos interesse pelos conteúdos formais das disciplinas. Falo por experiência e pela
vivência com outros professores de outras disciplinas. Essa atitude talvez não esteja só ligada
à carga de conteúdo que o aluno deve aprender na sua vida escolar, mas também pelo modo
tradicional que tem sido trabalhado em sala de aula. Em um século em que existe um grande
volume de informações na palma das mãos dos alunos, através de um celular conectado à
internet, o modelo tradicional de educação realmente é insuficiente. Um aluno mais
interessado pode, inclusive, questionar alguma colocação de um professor que não se atualiza
dentro de sua área apenas com uma pesquisa rápida na internet.
Esse problema, que acredito ser estrutural no modelo de educação, também não se
resolve facilmente, criando opções para possibilitar a aprendizagem dos alunos. Cada escola
tem um público e uma realidade de modo que ao se criar um projeto, por mais que se acredite
na sua capacidade de despertar a vontade de aprender do educando, vários problemas podem

36
aparecer dificultando essa realização. Isso não pode ser um desestímulo para a criação de
novos métodos, mas sim um desafio. Foi nessa realidade que desenvolvi a ideia de um projeto
de Educação Patrimonial, no qual é possível aprender Geografia e História juntas, a partir da
prática de um roteiro pelas ruas do bairro, onde está situada a escola em que leciono.
Neste trabalho, procurei mostrar a necessidade de se construir um projeto de
educação patrimonial, a partir de uma discussão, envolvendo a geografia e a história do bairro
de Inhaúma, local em que se efetuou o trabalho de campo. Mostrei que o objetivo básico do
projeto era resgatar a história local e despertar uma afetividade sobre a cultura patrimonial do
bairro, a partir de uma reflexão que os alunos deveriam fazer sobre a paisagem na qual estão
inseridos alguns bens patrimoniais do bairro. Apresentei a relevância do projeto diante do fato
da destruição de boa parte do patrimônio histórico material dos bairros da Zona Norte do Rio
de Janeiro, pela falta de interesse dos governantes e pelo fato da população não ter uma plena
consciência do valor sociocultural que esses representam. Se não é algo que lhe afeta dia a dia
diretamente, dificilmente a classe trabalhadora (que tem maior contingente de residentes nessa
região) irá se mobilizar para lutar pela preservação ou tombamento de um bem patrimonial.
O projeto por si só já pode fazer parte de uma memória histórica e geográfica,
abrindo portas para um futuro bem patrimonial imaterial, mas isso seria assunto para outro
debate. Acredito que esse conhecimento adquirido pelo aluno não ficará restrito aos muros da
escola, pois o aluno se torna um divulgador natural daquilo que ele aprende e produz. Esse
projeto irá crescer cada vez mais e ficará mais elaborado, principalmente pelo objetivo de
buscar a participação da comunidade escolar para a sua evolução. Pretende-se valorizar mais
ainda a autoridade compartilhada da mesma comunidade, em referência às novas formas de
produção intelectual, uma proposta democrática de construção do conhecimento.
Em suma, não poderia de deixar de lembrar a importância que de se fazer um
trabalho de valorização do patrimônio cultural de áreas que não têm a mesma visibilidade das
áreas tradicionais de uma cidade. Em geral, os centros históricos da fundação de uma cidade
ou as regiões habitadas pela classe média recebem as atenções das autoridades para serem
restauradas ou tombadas. Áreas periféricas, como os subúrbios em geral, ficam à margem
desse processo. E assim os seus bens culturais vão se perdendo, seja pela destruição para
construção de um novo fixo, seja pelo total abandono. Para se ter a consciência da
importância da luta pela preservação, é necessário mais do que mostrar que o objeto é bonito
ou que tem seu valor histórico na memória da comunidade. Deve-se despertar, por exemplo, a
afetividade em relação ao mesmo. Com um novo olhar, fica mais claro o objetivo de lutar pela
preservação dos seus bens culturais.

37
Referências

HORTA, Maria de Lourdes Parreira; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane Queiroz.


Guia Básico de Educação Patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, Museu Imperial, 2006.
IPHAN. Educação Patrimonial: histórico, conceitos e processos. Brasília: Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2014.
MCDOWELL, Linda. A transformação da geografia cultural. In: GREGORY, Derek, et al.
Geografia Humana sociedade, espaço e ciência social. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.
1996.
MAGALHÃES, Leandro Henrique; Martins, Patrícia; Zanon, Elisa. Educação Patrimonial -
Da teoria à prática. Londrina: Unifil, 2009.
MENEZES, Isabella C. de. Os guardiões: Jogos e teias de construção imaginativa no Museu
do Ouro. Dissertação (mestrado) – UFMG, Programa de Pós-Graduação em Educação. 2016.
MARANDINO, Martha. Educação em museus: mediação em foco. Organização Martha
Marandino.São Paulo: Geenf/Feusp, 2008.
NÓR, Soraya. O lugar como imaterialidade. Paisagem e Ambiente. Ensaios - n. 32. São
Paulo: 2013.
PREFEITURA DO RIO DE JANEIRO. Guia do Patrimônio Cultural Carioca Bens
Tombados. 5. ed. Rio de Janeiro. 2014.
SANTOS, Milton. A natureza do espaço: técnica e tempo, razão e emoção. 3 ed. São Paulo:
Hucitec, 1999.

38
PROPOSTA CURRICULAR PARA O ENSINO DE HISTÓRIA LOCAL
NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS DE ARAGUAÍNA

Laila Cristine Ribeiro da Silva7;


Vera Lúcia Caixeta8

Por que você quer conhecer Miss Jane? disse Mary. ‘Sou professor de história’ eu
disse. ‘Tenho certeza de que sua história de vida pode ajudar meus alunos a
entender melhor algumas coisas’. ‘Qual o problema com os livros que você já
tem?’, disse Mary. ‘Naqueles livros Miss Jane não está’, eu disse (E. J. Gaines, A
autobiografia de Miss Jane Pittman, 1971)9.

Introdução

É possível dizer que, entre os muitos desafios da prática docente, que fazem parte do
contexto da Educação de Jovens e Adultos, está relacionada ao programa curricular a ser seguido
ao longo dos anos. O currículo pode ser compreendido como meio facilitador de organização do
conhecimento escolar, que direciona as ações que norteiam o trabalho pedagógico.
Conforme menciona Moreira e Candau (2008, p. 18), o currículo engloba “as
experiências escolares que se desdobram em torno do conhecimento, em meio a relações
sociais, e que contribuem para a construção das identidades de nossos/as estudantes”.
Comumente, as orientações mais amplas para a construção do currículo são direcionadas pelas
propostas oficiais elaboradas pelos diferentes entes da federação, de acordo com as
competências de diretrizes relacionadas a cada um. Entretanto, para a realidade da EJA, isso
ainda é mais uma problemática a ser superada e reorganizada.
A criação, pelo governo federal em 2002, da Proposta Curricular para EJA, provocou
a articulação de um documento geral “com a finalidade de subsidiar o processo de
reorientação curricular nas secretarias estaduais e municipais, bem como nas instituições e
escolas que atendem ao público de EJA” (BRASIL, 2002, p.07). O objetivo foi aprimorar as
concepções acerca das orientações curriculares e auxiliar nas concepções dos estudantes sobre
si mesmo, direcionando a sua participação na sociedade e, além disso, servindo para a sua
integração de maneira progressiva no mercado de trabalho.
Porém, nem todos os estados ou municípios elaboraram seus guias curriculares para a

7
Graduada em História pela UFT. Bacharel em Direito pela Faculdade Católica D. Orione. Mestre em Ensino de
História pelo PPGEHIST/UFT.
8
Graduada em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Patos de Minas. Mestre em História
pela UNB. Doutora em História Social pela UFRJ. Atua como professora no curso de História da UFT/UFNT.
9
Ver PORTELLI, Alessandro. História oral como arte da escuta. São Paulo: Letra e Voz, 2018.

39
orientação dessa modalidade de ensino, ou mesmo aqueles que fizeram têm dificuldades de
oferecer um caminho eficaz de trabalho, sendo provável que muitos docentes “não encontram
nessas referências a orientação mais adequada ou mais significativa para o trabalho
pedagógico com jovens e adultos trabalhadores” (SERRA, 2017, p.25).
De acordo com Enio Serra (2017, p. 25), com raras exceções, “essas propostas
curriculares trabalham com a lógica da padronização e da uniformização de temas e
conteúdos; porque vislumbram um aluno abstrato, idealizado e, muitas vezes, estereotipado,
distante do aluno real”. Nessa perspectiva, o currículo promove um fosso entre os conteúdos
estudados e a realidade cotidiana dos estudantes da Educação de Jovens e Adultos que, por
sua vez, possui em seu cerne a heterogeneidade como marca maior.
É preciso considerar a educação escolar como direito básico de todos os brasileiros.
Porém, há que considerar as especificidades dos estudantes da EJA e, nesse sentido, a disciplina
de História deve desnaturalizar as relações do presente. Mas quais conteúdos devem ser
ministrados e com quais metodologias? De certo, os pontos que exigem reflexões são muitos.
Nesse prisma, essa pesquisa foi desenvolvida junto aos colegas profissionais do
ensino de História, atuantes na Educação de Jovens e Adultos da rede municipal de Araguaína
– TO, tendo como base uma nova perspectiva da Formação Continuada promovida em
parceria com a Secretaria Municipal de Educação. Teve como objetivo, o desenvolvimento de
uma metodologia que valorizasse as identidades dos estudantes da EJA para que estas
pudessem vir a ser consideradas no aprimoramento do trabalho com o currículo escolar.
O arcabouço metodológico esteve centrado na elaboração de oficinas que
posteriormente foram aplicadas junto aos estudantes buscando como resultados a elaboração
de relatos autobiográficos que foram analisados pelos professores para a elaboração de eixos
temáticos que pudessem contribuir como apoio ao currículo do ensino de História.

Desafios da Formação Emancipatória na EJA

Compartilhamos das reflexões fomentadas por Adair José Bernardino (2008), em sua
dissertação acerca da Concepção de cultura trabalho e tempo dos professores de EJA, ao
observar que, mesmo com as mudanças históricas educacionais, como por exemplo, a
implementação de programas e políticas de “inclusão” de jovens e adultos que não tiveram
acesso ao processo de escolarização em idade oportuna, ainda existe um grande efetivo
populacional que não conseguiu acesso ao sistema de educação. Esses não obtiveram a
efetivação desse direito positivado em tantos documentos legislativos – Constituição Federal,
Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Plano Nacional de Educação, etc. – que pretendem

40
contemplar a todos.
Ao tratar do tema Analfabetismo entre Jovens e Adultos no Brasil, Sérgio Haddad e
Filomena Siqueira (2015) reforçam que o avanço da erradicação do analfabetismo, nas
últimas décadas, tem se dado de maneira muito frágil, evidenciando a magnitude da natureza
do problema que se entrelaça na precariedade do universo escolar e nas diferenças
socioeconômicas presentes no país.
A esse respeito, os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE –
PNAD 2019) revelam o quantitativo de 11,3 milhões de analfabetos entre a população de 15
anos ou mais no Brasil, o número corresponde a 6,8% dessa população. No ano de 2018,
segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(Censo/INEP), o total de 3.598.988 brasileiros estavam matriculados na Educação de Jovens e
Adultos, em escolas de áreas urbanas e rurais, em tempo parcial e integral, um universo que
acolhe educandos de diferentes faixas etárias: adolescentes, jovens, adultos e idosos.
Essa realidade estatística no país “não deixa dúvida quanto à baixa efetividade das
estratégias de governo para a elevação da escolaridade da população [...]” (VENTURA, 2017,
p.149). Ainda se soma a tais fatores, o número considerável de evasão e abandono escolar, o
que agrava o quadro de marginalização e negação ao direito à educação e à cidadania plena.
A formação docente para a EJA sofre diretamente os impactos do tratamento
secundário e subalterno que permeia o histórico dessa modalidade de ensino. Na região norte
do país, a maioria dos profissionais não possui nenhuma capacitação específica e, muitas
vezes, atua em ensino de disciplinas que não exigem graduação acadêmica na área. A
ausência de uma formação adequada acaba por solidificar ainda mais as dificuldades
enfrentadas dentro do sistema educacional (ALMEIDA, 2018).
Desse modo, é necessário pensar a EJA como um campo fronteiriço entre o que é
ofertado pelas políticas públicas e o que se pode realizar no chão da escola 10. Logo, o que de
fato deve ser aproveitado como terreno fértil para a inovação prática e teórica em busca da
reorganização dos saberes e permanência dos educandos? Defendemos que a Formação
Continuada se apresenta como um valioso meio de aprimoramento coletivo dos saberes
docentes, por permitir a reflexão dos aspectos pedagógicos e didáticos relacionados a teoria e
a prática. A formação é, portanto, necessária para a melhoria do ensino, assim como também
para desenvolver estratégias que visem sanar as dificuldades educacionais e instalar mudanças
significativas nas práticas docentes.

10
Entendemos como chão da escola o espaço de construção e afirmação da identidade dos trabalhadores em
educação (MELO, 2009).

41
Pensar sobre o fazer profissional docente implica refletir sobre si mesmo e sobre sua
própria construção histórica. Nóvoa (1992), ao explicitar acerca dos pressupostos da
profissão, reflete sobre o elo entre os percursos profissionais e pessoais e como esses avançam
e evoluem ao longo da vida, explicitando como esse fazer se constrói conjuntamente com as
experiências adquiridas e com as trocas de saberes entre as pessoas.
Nesse sentido, cabe promover, junto aos professores da EJA e, sobretudo, do ensino
de História, ações que possibilitem o conhecimento articulado com a troca de experiências
entre os estudantes. É dentro do potencial formativo da prática que foi refletida a necessidade
de valorizar as histórias de vida dos estudantes, na tentativa de se entender as memórias,
trajetórias, anseios, cultura e expectativa de futuro. Acreditamos que tal perspectiva se
aproxima das ideias norteadoras de Paulo Freire de uma educação libertadora. Logo, pensar
na oferta educacional da EJA exige cogitar um modelo de educação emancipatória, ou seja, é
preciso ensinar de forma contextualizada, afim de que os conteúdos de História contribuam
para a compreensão do presente e auxilie na sua inserção social e na construção de futuros.

Referencial curricular para o ensino de história na EJA em Araguaína – TO

Prioritariamente, para que as unidades escolares possam desenvolver uma proposta


curricular que considere as especificidades da EJA, é necessário refletir sobre a elaboração de
um projeto que considere o lugar da participação dos estudantes, em sua criação, isso porque,
“cada escola necessita conhecer quem são seus alunos para, a partir daí, desenvolver um projeto
educativo que contemple questões importantes a serem trabalhadas” (BRASIL, 2002, p. 89).
Certamente, é preciso mobilizar os conhecimentos dos estudantes, levando em consideração
suas singularidades, a fim de não se configurar como mera adaptação de um ensino para as
crianças, ou mesmo, como apenas um suprimento de conteúdos desvinculados da sua realidade.
Diferenças de idade, características sociais, culturais, raciais, gêneros, mundo do
trabalho, local de nascimento, moradia, expectativas de futuro. Nesse sentido,
compreendemos que o currículo se estabelece como um “processo em permanente elaboração
e não como um produto pronto e acabado entregue aos professores para simplesmente
reproduzi-lo [...]” (SERRA, 2017, p.27). Assim, no documento norteador “Educação para
jovens e Adultos: propostas curriculares – 2º segmento: história” (BRASIL, 2002), temos a
reflexão sobre a singularidade da História para essa modalidade. A leitura desse material
sinaliza que a História é ensinada na concepção tradicional, fundamentada em uma visão de
tempo linear e eurocêntrica dos acontecimentos. Caberia aos professores, portanto, ensinar de

42
forma contextualizada e participativa.
Analisando o currículo proposto pela Secretaria Municipal de Educação, para o
ensino de História, no contexto municipal de Araguaína percebemos que prevalece a
concepção de ensino de uma História Tradicional. No Quadro 1, consta trecho do Referencial
Curricular para o ensino de História.

Quadro 1 – Trecho do Referencial Curricular para o ensino de História de Araguaína

REFERENCIAL PEDAGÓGICO/ EJA 2014


Estado do Tocantins
7º PERÍODO/ 2º SEGMENTO Prefeitura Municipal de
1º BIMESTRE Araguaína
Secretaria da Educação

HISTÓRIA
CONTEÚDOS HABILIDADES
 Nacionalismo e Imperialismo  Perceber como o jogo das relações de dominação, subordinação e
 Partilha da África e da Ásia resistência fazem parte das construções políticas, sociais e
 A primeira Guerra Mundial econômicas;
 A Revolução Russa  Perceber e respeitar as diversidades étnicas, sexuais, religiosas, de
gerações e de classes como manifestações culturais por vezes
conflitantes;
 Compreender as disputas capitalistas relacionadas à Primeira Guerra
Mundial e a implantação do socialismo na Rússia.

Fonte: Araguaína (2014).

É possível perceber a organização curricular formulada no ano de 2014, vigente


ainda em 2021. Até hoje prevalece uma visão tradicional do ensino de História, fundamentada
em uma concepção linear do tempo, com a priorização do estudo de temas ligados a História
do Brasil e a História dos principais países das Américas e da Europa, que parece sustentar
lugares importantes, mas comuns, herdados do século XIX.
Logo, é necessário combater o fazer pedagógico que privilegie o professor como
reprodutor de temas e conteúdos. A construção crítica e reflexiva do ensino de História da
EJA, rompendo com práticas que legitimam a exclusão dos estudantes como sujeitos da
História, tratando-os como agentes participantes da História. Por certo, realizar um trabalho
que objetive auxiliar os professores a conhecer as trajetórias de vida dos estudantes é, antes de
tudo, poder compreendê-los como ativos na construção da educação, enfatizando suas
especificidades e experiências, quebrando paradigmas de passividade e opressão. Porém, a
equalização desse ensino consciente e transformador ainda é um desafio a ser vencido, devido
às diferentes dificuldades que envolvem tanto os órgãos governamentais, quanto os próprios
trabalhos realizados junto as instituições escolares. Preleciona as Diretrizes Curriculares
Estaduais que, no Tocantins:

[...] A maioria dos professores da EJA, não são professores que tem sua carga

43
horária maior nessa modalidade. Quase sempre a EJA é utilizada como ponte para
garantir quarenta horas semanais e assim efetivar o máximo de recursos no holerite
no final do mês (TOCANTINS, 2008 p.35).

Somam-se a esses problemas, as poucas aulas destinadas ao ensino de História. Todavia,


esses desafios não podem impedir que se considere os estudantes como sujeitos detentores de
saberes e experiências possíveis de serem aproveitadas na construção de conhecimentos.
Desta feita, a possibilidade de articular oportunidades para que os estudantes relatem suas
vivências históricas, suas narrativas acerca de si, é uma forma de combater essas dificuldades, pois
para apreender as singularidades dos sujeitos “é necessário que nós compreendamos como cada um
coloca esta situação para si mesmo e para sua história, como ele biografa este contexto social e
institucional do qual ele participa” (DELORY-MOMBERGER, 2011. p.50).

A elaboração de eixos temáticos como meio colaborativo para a inserção das vivências
históricas estudantis no ensino de história da EJA

A narrativa autobiográfica, utilizada como metodologia proporciona a valorização


das dimensões pessoais dos sujeitos com seus afetos, emoções, sentimentos e desperta a
percepção da complexidade das interpretações que os autores fazem das situações que
enfrentam. Como disse Alessandro Portelli, ao utilizar a metodologia da história oral de vida,
“sabemos que ninguém consegue obter todas as informações a nosso respeito, portanto, por
que o faríamos com eles? Invariavelmente conseguiremos um fragmento daquilo que se sabe,
um fragmento daquilo que são” (PORTELLI, 1997, p.46).
Os interlocutores da pesquisa são cinco professores da disciplina de História, do II
segmento da Educação de Jovens e Adultos. A proposta consistiu em construir atividades de
ensino através de uma metodologia compartilhada no trabalho de Formação Continuada. Os
participantes escolheram uma de suas turmas para a aplicação da metodologia. A escolha foi
feita livremente, pelo próprio docente, tendo em vista que a pesquisa pretendeu considerar um
percentual de amostragem dentro da realidade municipal que possui 10 escolas e conta com
11 professores de História, que trabalham com a modalidade EJA11.
Passada a fase introdutória, realizamos um encontro de Formação Continuada,
quando estabelecemos contato com os professores e apresentamos nosso plano de trabalho.
Na ocasião, defendemos a necessidade de utilização das trajetórias de vida dos estudantes
como possibilidade de aprendizagem histórica. Ressaltamos o quanto isso pode ser
fascinante, além das possíveis relações entre presente, passado e futuro, ali articulados.

11
Dados fornecidos a pesquisadora pela Secretaria Municipal de Educação do ano de 2018.

44
Tal encontro estimulou o estudo e a construção de duas oficinas que trataram de
questões ligadas à Memória, Identidade e História. A ideia era despertar nos professores a
“vivacidade” do passado, a “recuperação do vivido conforme concebido por quem viveu”
(ALBERTI, 2004, p.16). Logo em seguida, passamos para as discussões sobre a elaboração de
um roteiro que desse conta de colher a trajetória de vida dos estudantes. Decidimos focar na
trajetória educacional: 1 Lugar de origem; 2 Início da vida estudantil; 3 O distanciamento da
escola; 4 A vida como lugar de aprender; 5 Reencontro com a escola.
A segunda fase da pesquisa esteve concentrada na aplicação das oficinas pelo
professor participante; e na produção da trajetória de vida dos estudantes. A terceira e última
fase desse trabalho, consistiu na realização de um novo encontro de Formação Continuada para
a análise coletiva dos relatos autobiográficos. Estes apontaram fragmentos de elos identitários,
narrativas e as possibilidades de exploração das temporalidades ali existentes. Por fim,
discutimos e organizamos Eixos Temáticos articulados com as vivências e interesses locais, em
uma proposta de interação dos relatos autobiográficos com o currículo escolar da EJA.
Faz-se necessário ressaltar que os encontros de Formação Continuada, bem como a
metodologia aplicada, tornaram-se objeto de avaliação, servindo de parâmetro para a
mensuração da aplicabilidade e para as mudanças na postura docente, sobretudo, na
ampliação da sua consciência crítica como sujeitos e professores de História. Enfim, os
resultados dos dados coletados estão organizados por meio de quadros e tabelas. Os relatos
autobiográficos também foram incorporados e ampliaram nosso corpus documental.
Este trabalho é fruto de uma experiência compartilhada pela pesquisadora com um
grupo de professores da Educação de Jovens e Adultos da cidade de Araguaína – TO.
Certamente, ao longo do processo de pesquisa, esses encontros exigiram uma preparação
criteriosa, mas, fundamentalmente, uma postura de escuta e de abertura para o diálogo com os
professores. Estes ajudaram a estabelecer as metas, a traçar os roteiros, a aplicar a
metodologia na sala de aula, a ouvir os relatos autobiográficos dos estudantes e, a partir daí,
contribuíram com sugestões para o enriquecimento do currículo.
Nessa intenção, a leitura das narrativas dos estudantes nos levaram a refletir, a partir
de Michel Pollack (1992, p.04), sobre o papel da memória: “A memória é seletiva. Nem tudo
fica gravado. Nem tudo fica registrado”, é, portanto, uma construção que envolve um
processo de escolha, sendo variável e também múltipla, pois cada pessoa ou grupo cultiva um
conjunto particular de recordações. Após a leitura das narrativas, destacamos, no Quadro 2, os
temas mais comuns, presentes em cada uma delas.

45
Quadro 2 – Primeiro tema percebido na análise dos relatos autobiográficos

EXEMPLOS DE TRECHOS DOS RELATOS AUTOBIOGRÁFICOS DOS


TEMA
ESTUDANTES

[...]Quero resaltar para voces jovem que naquele tempo e que bom tempo que era a
autoridade maxima na sala de aula era os, mestre e dona Maria Chiquinha uma palmatoria
que ajudava na educação dos pregiçosos e imdisciplinado. e os aluno nem pensava em
desrespeitar o professo que Dona Maria Chiquinha em trava em cena e o bicho pegava e
quando chegava em casa fose reclamar para os pais ai era que a casa caia mesmo porque
os os pais diziam que nos estavamos ali era para aprender e que o professor era
COTIDIANO autoridade[...].
(Relato do Estudante D. N.)

[...] Andei com pessoas que não tinha as melhores intenções, houve o tempo que realmente
acreditava que seria no crime que eu mudaria de vida, compraria uma casa para a minha
mãe, porém a vida me lutou com força, perdi amigos de infância, minha família já não me
aceitava mais, foi daí e uma certa quantidade de fatores me fizeram a repensar na vida, e o
curto tempo que tenho para construir um futuro, conquistar por meus méritos [...]
(Relato do Estudante R. L)

Fonte: Dados da pesquisa.

A tessitura das memórias ora apresentada revela traços das nossas vivências
cotidianas. Por certo, elas são importantes para trabalhar a relação entre experiência pessoal e
perspectivas históricas. À luz do primeiro trecho, é possível perceber que o estudante ressalta
as suas primeiras experiências vivenciadas dentro da escola: “que era a autoridade maxima
na sala de aula era os, mestre” (Estudante D. N.). Faz-se oportuno refletir sobre a
conceituação do termo autoridade, para isso, nos interessa o pensamento de Furlani (1991):
“[...] um tipo especial de relação de poder que se efetua numa instituição”. Essa narrativa
vislumbra o paradigma da Escola Tradicional que fez parte das experiências de muitos
estudantes que retomam a escola.
No campo da História, a “temática do Cotidiano está diretamente relacionada ao
contexto da renovação da História Social, principalmente a partir dos anos de 1960 com a
emergência da chamada Nova História” (SILVA, 2012, p.23). De certo, o enfoque no
cotidiano pode ser oportuno para o trabalho com a Educação de Jovens e Adultos, propondo a
valorização das experiências pessoais/sociais trazidas para a dimensão escolar. Com o Quadro
3, avançamos para o segundo tema percebido na análise dos relatos autobiográficos.

46
Quadro 3 – Segundo tema percebido na análise dos relatos autobiográficos

EXEMPLOS DE TRECHOS DOS RELATOS AUTOBIOGRÁFICOS DOS


TEMA
ESTUDANTES

[...]As 09 anos tive meu 1º emprego de vender coisas na rua.


Acordava as 5 horas da manhã e pegava um tabuleiro de cuscus e ia para batalha ou seja
sobrevivencia da familia[...]
[...] Hoje faço o EJA e ao 58 ano ja estou no 9º ano e pretendo terminar o ensino medio e
fazer pedagogia para ser um professor de matematica que é a disciplina que eu mais gosto
[...]
(Relato do Estudante D. N.)
TRABALHO [...] resolvi voltar a estudar e agora cofiarei em Deus que nada vai fazer eu parar
novamente, pois quero concluir a escolaridade e fazer um curso superior e ter mais
conhecimento e reconhecimento [...]
(Relato do Estudante M. S. A.)

[...] aos 12 anos de idade arrumei meu primeiro emprego, comecei a trabalhar em uma
padaria, acordava as 03:45 horas da madrugada trabalhava até as 08:00 da manhã,
quando chegava da padaria meu pai já ido para roça dai ele deixava sua bicicleta pra
mim ir quando chegasse, eu ia pra roça ajudava meu pai [...]
(Relato do Estudante T. G. de S. S.)

Fonte: Dados da pesquisa.

Nas narrativas sobre a infância, surge um tema marcante e comum nas memórias dos
estudantes. Este, sem dúvida, constitui uma das maiores marcas da Educação de Jovens e
Adultos, a saber, o relacionamento com o trabalho. “A infância é um dos estágios da vida
humana com maior influência na formação das identidades, por ser a casa das primeiras
experiências” (SILVA, 2017, p.55). A inserção dos estudantes no mundo do trabalho, se deu
ainda nesse momento de vida.
No texto Reinventando a EJA: projeto de Educação de Trabalhadores – PET,
Miguel Arroyo destaca essa condição de trabalhadores dos estudantes da Educação de Jovens
e Adultos como sendo um referente de marca ética-política-pedagógica:

[...] Ver os jovens – adultos como trabalhadores exige não vê-los apenas como
estudantes em percursos escolares truncados a serem supridos. Nem sequer vê-los
como estudantes que trabalham. Ser trabalhador não é um acidente a mais na sua
condição de estudante. Como ser pobres e lutar pela sobrevivência em trabalhos
formais ou informais não é um acidente dos jovens – adultos estudantes da EJA
(ARROYO, 2009, p.16)

Pelas palavras do autor, podemos sublinhar que a marca de classe está presente nos
discente da EJA, o trabalho marca sua identidade social. Nesse sentido, o retorno a escola
também se liga às expectativas do trabalho e é importante conhecer essa dimensão, pela voz
dos estudantes, de maneira a “assumir suas experiências sociais e coletivas de trabalho como
estruturantes da proposta curricular, dos conhecimentos, dos valores, da cultura a serem
trabalhadas” (ARROYO, 2017, p. 45)

47
Assim, a temática do trabalho é vista através de uma perspectiva mais ampla, “de um
ponto de vista cultural, pode ser definido como parte integrante do processo de constituição da
espécie humana” (SILVA, 2012, p.23). Está no centro das preocupações e da realidade dos
estudantes, daí a necessidade de reflexão e subsídios para a compreensão da complexidade das
relações sociais de produção da sociedade contemporânea. A família constitui o terceiro tema,
percebido na análise dos relatos autobiográficos, e segue representado nos trechos do Quadro 4.

Quadro 4 – Terceiro tema percebido na análise dos relatos autobiográficos


TEMA EXEMPLOS DE TRECHOS DOS RELATOS AUTOBIOGRÁFICOS DOS
ESTUDANTES
[...] Eramos uma casa com 13 filhos e com uma irmã se formando para professora olha
que legal, meu pai fico 02 anos desempregado e como nossa irma estava formando não
podiamos deixar ela trancar a matricula era muito importante para ela e também era a
primeira pessoa formada na familía ai que o nosso entramos em cena e como dos
homens nos era os mais velhos fomos para a batalha para que nossa irma se formasse e
assumimos todas as responsabilidade da casa.
FAMÍLIA (Relato do Estudante D. N.)
[...] Os meus pais não tiveram estudo, mas tiveram o prazer de nos incentivar a estudar.
Fizemos até a 4º série porque na época era só o que tinha no sertão, para poder avançar
mais tinha que sair pra cidade e nos não tivemos essa oportunidade, tivemos que parar
na 4º série [...]
(Relato do Estudante M. C. J. A. A)
[...] casei muito nova tive filhos muito cedo e a escola mais uma vez ficou pra trais [...]
(Relato do Estudante M. S. A)
Fonte: Dados da pesquisa.

As memórias a respeito da família possibilitam o desenvolvimento de muitos estudos


ligados às mobilidades históricas, sociais e culturais que acompanham essa instituição. Por
certo, as diferentes faixas etárias que formam a Educação de Jovens e Adultos permitem que
múltiplas visões de representações familiares convivam dentro do mesmo espaço. Aproveitar
esse tema como eixo gerador de conhecimentos, acerca da sociedade patriarcal, das relações
de gênero, das conquistas femininas, do acesso à educação, entre muitos outros, pode ser um
meio facilitador do uso da História para o entendimento das questões do tempo presente.
Menciona La Cruz e Usiel (2014, p 58) que “os sistemas de valores introduzidos
nas famílias modificaram o comportamento, a percepção, a memória, a sensibilidade e as
formas de relacionamento”. Acreditamos que trabalhar o eixo temático relacionado à família,
permite levar os estudantes a reconhecer semelhanças, diferenças e permanências nas relações
sociais, culturais e no modo de vida, compreendendo o presente a partir das relações de poder
construídas historicamente. A sociedade é o tema a ser trabalhado no Quadro 5.

Quadro 5 – Quarto tema percebido na análise dos relatos autobiográficos

48
EXEMPLOS DE TRECHOS DOS RELATOS AUTOBIOGRÁFICOS DOS
TEMA
ESTUDANTES
[...]Vão para o colegio a fim de estudar e respeitar os professores, ir a escola
porque e la não é a sua casa onde você pode tudo. Para um futuro melhor e
promissor porque um cidadão sem estudo esta na contramão da vida por mais que
tenha uma profissao mas nem sempre é tudo [...]
(Relato do Estudante D. N.)
SOCIEDADE [...]Eu nasci no Estado do Tocantins em Araguaína, sou fruto dessa cidade
conhecida como “boi gordo [...]
(Relato do Estudante R. L)
[...]sai em busca de ganhar a vida, como diziamos no sertão, foi recompensavel?
Sim, pois adquiri alguns bens através do meu trabalho, mais depois de 10 anos
longe da Escola dos estudos do ensino secular, percebi a importancia dos estudos
na vida do ser humano [...] (Relato do Estudante T. G. de S. S. ).
Fonte: Dados da pesquisa.

Os trechos evidenciados, recortados dos relatos autobiográficos, ressaltam a percepção do


tema relacionado aos estudos sobre a sociedade atual. Tomando um sentido amplo e geral desse
conceito, sociedade como trazido por Silva (2012), está ligado às instituições, formas de relação
entre as pessoas, formas de organização e normas de convivência: “Trata-se de um sistema que
compõe diversas instituições que visam garantir elementos de uma determinada população, como
territorialidade, cultura, organização interna, etc” (SILVA, 2012, p.24).
Nas narrativas dos estudantes, notamos a presença da instituição escolar, da
territorialidade local da cidade de Araguaína, do êxodo rural em busca de oportunidades de
sobrevivência, assuntos que se ligam ao contexto das relações travadas na sociedade.
Considerar, de maneira mais próxima, as experiências e vivências locais dos estudantes,
objetiva aproximar a História, como ciência e disciplina escolar, das discussões sobre os
desdobramentos da vida social. Enfim, trata-se de discutir sobre os paepéis das instituições na
manutenção das elites hegemônicas, das lutas sociais e da necessidade de compreensão das
situações de classe, raça, gênero, sexualidade, entre outros.

Quadro 6 – Quinto tema percebido na análise dos relatos autobiográficos


EXEMPLOS DE TRECHOS DOS RELATOS AUTOBIOGRÁFICOS DOS
TEMA
ESTUDANTES
[...]sou muito grato ao meu Deus por tudo [...].
(Relato do Estudante M. C. J. A. A.)
[...]pela manhã ia para roça eu meus três irmãos umas tias e uns primos [...]
CULTURA (Relato do Estudante M. S. A)
[...]Sempre gostei de acompanhar meu pai em suas pescarias e em seus trabalhos na
roça também, sempre gostei de está ali ao seu lado lhe acompanhando e aprendendo
a pescar e a trabalhar com ele [...] (Relato do Estudante T. G. de S. S. ).
Fonte: Dados da pesquisa.

As informações presentes nos relatos sobre os espaços de vida formam paisagens


49
culturais, pois no desenvolvimento do processo de transformação da natureza, o ser humano
produz cultura e transforma também a sua própria realidade. Segundo Silva (2012), a cultura
abrange todas as realizações materiais e os aspectos espirituais do homem, caracterizando tudo
aquilo que é produzido pela humanidade, no plano concreto ou imaterial. Nesse sentido, há a
necessidade de compreensão das caraterísticas culturais da região. Nossos alunos, são em grande
parte, oriundos do meio rural. Isso revela uma imersão num modo de vida cujas práticas de
sobrevivência estavam, inicialmente, alinhadas aos ciclos dos recursos naturais que deixam
marcas na construção identitária desses sujeitos. Outro instrumento de unidade de identidade
social está amparado na religião, no modo de relacionamento com o sobrenatural e como esta
subjetividade se mescla a elementos do mundo natural. E, há que se considerar ainda, a presença e
valorização da oralidade. Contar e ouvir histórias parece mais próximo para eles do que escrevê-
las. Daí a necessidade de ouvi-los e depois insistir na construção da habilidade na escrita.
Após a categorização desses temas, sintetizamos como eles poderiam ser utilizados
como Eixos a serem trabalhados em consonância com a Referência Curricular da Disciplina
de História, da EJA, em Araguaína, chegando ao produto que pode ser conferido no Quadro 7.

Quadro 7 – Produto Final do Trabalho de Pesquisa


EIXOS A SEREM UTILIZADOS EM CONSONÂNCIA COM O REFERENCIAL CURRICULAR DA
DISCIPLINA DE HISTÓRIA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS DO MUNICÍPIO DE
ARAGUAÍNA – TO
COTIDIANO TRABALHO FAMÍLIA SOCIEDADE CULTURA
O eixo temático do As repercussões desse Trabalhar o eixo O eixo sociedade está Valorizar a cultura
cotidiano é adequado tema no campo da EJA temático relacionado articulado com o local, os autores
para trabalhar as são presentes. Trata-se à família, permite estudo das locais, mas também
relações de poder, de de enfocar na formação levar os estudantes a instituições deve os saberes locais
autoridade e de da classe trabalhadora. reconhecer ressaltar a articulação transmitidos de
resistência que Das formas de semelhanças, entre as instituições e geração a geração.
marcam as relações dominação e de diferenças e a manutenção dos São saberes
sociais. Tanto os resistência permanências nas valores da ideologia indígenas,
processos de inclusão historicamente relações sociais, dominante. É preciso quilombolas, enfim,
quanto de exclusões existentes. É preciso culturais e nos modos desnaturalizar a de uma população
sociais. Perspectivas dar conta da de vida local. Deve-se dominação para não branca do norte
de classe, de raça, de complexidade das ressaltar a valorização compreender a do Brasil. Romper
sexualidade, de relações sociais de e aceitação da sociedade em diálogo com a ideia de
gênero são valiosas, produção da sociedade diversidade. Da com o passado, história e cultura
especialmente, no contemporânea e da constituição de presente e futuro que apenas produzida
contexto do ensino de desnaturalização das famílias fora do se almeja construir. pelos homens
jovens e adultos. relações de dominação, modelo patriarcal, em brancos, héteros e
exploração e de nome dos direitos da elite.
exclusão. humanos.
Nota de esclarecimento: Os eixos temáticos aqui apresentados foram formulados através dos relatos
autobiográficos produzidos no âmbito do projeto de pesquisa: “A Formação Continuada de professores na
Educação de Jovens e Adultos em Araguaína – TO: espaço reflexivo e vivências históricas”.
Professora Pesquisadora: Laila Cristine Ribeiro da Silva
Professores colaboradores: A. B;

50
M. V. D. d. S.;
M. d. M. O.;
M. F. d. S.;
R. H. B. d. S.
Fonte: Dados da pesquisa.

Cabe salientar que os temas aqui mencionados foram extraídos das análises feitas em
conjunto com os professores do ensino de História, dos relatos autobiográficos dos estudantes
da EJA de Araguaína. São temas que lidam com o modo de compreensão que as narrativas
significaram. Isso porque entendemos que todas as informações reveladas nas representações
históricas possuem elementos que as conectam a esses e as outros assuntos que poderiam ser
ampliados.
A transformação em Eixos, para o ensino de História, não objetivou oferecer um
programa de trabalho estanque, mas sim referenciais de estudos produzidos a partir do
trabalho docente que considerou a participação dos estudantes de modo a somar com o
Referencial Curricular já estabelecido. Além disso, promover um ensino em que os estudantes
pudessem reconhecer a História como parte das suas vivências e perceber a sua condição de
sujeito histórico.

Considerações Finais

Ao se considerar a amplitude que envolve a capacidade profissional de se fazer


professor(a), relembraremos que ela corresponde a um sentido muito abrangente que não
termina na formação técnica, disciplinar e conceitual, mas que alcança o terreno da prática e
as concepções pelas quais se estabelece a sua ação.
Com esse trabalho empreendido a partir da realidade da Educação de Jovens e
Adultos, do município de Araguaína, interior do estado do Tocantins, buscamos abrir diálogos
com os pares que trilham o mesmo curso da docência do ensino de História para refinar o
olhar sobre os sujeitos históricos, partindo do ponto das próprias vivências humanas presentes
nas salas de aula.
A intencionalidade da utilização metodológica de valorização das identidades
estudantis, dentro das salas de aula e no contexto das unidades escolares, no universo da
Educação de Jovens e Adultos, teve por pressuposto a busca da valorização da participação
discente, buscando garantir que as suas próprias vivências históricas permitam o vislumbrar
da condição que todos possuem como sujeito detentor de historicidade. O aproveitamento dos
relatos autobiográficos escritos, nessa trajetória, permitiu promover o passado em torno dos

51
acontecimentos individuais e coletivos, e constituir através dessa análise os temas da
atualidade. Os resultados do experimento revelaram que os encontros de Formação
Continuada proporcionaram momentos para a percepção da disciplina de História como meio
facilitador para o entendimento da realidade dos estudantes da EJA.
Em relação aos Eixos Temáticos, consideramos que eles são capazes de auxiliar no
aprimoramento do trabalho com o currículo escolar proposto para o Ensino de História, da EJA,
em Araguaína – TO, isso por permitir uma conexão maior com a realidade dos estudantes e
proporcionar uma alternativa de representação da realidade desse público heterogêneo.
O meio condutor principal que forma a consciência histórica é a vida prática, as
relações traçadas na convivência social. Dessa forma, o que transpassa a sociedade é
importante para o fortalecimento da aprendizagem histórica e, por isso, deve ser aproveitada
com fins metodológicos no cotidiano da sala de aula.

Para a própria metodologia de ensino é saudável essa perspectiva, de modo a


compreender a educação histórica como um processo que não pode ser encarado
dentro da redoma da sala de aula. Os problemas e as potencialidades do ensino-
aprendizagem de história não estão restritos à relação professor-aluno na classe, mas
envolvem o meio em que o aluno e o professor vivem, os conhecimentos e opiniões
que circulam em suas famílias, na igreja ou outras instituições que frequentam e nos
meios de comunicação de massa aos quais tem a acesso (CERRI, 2011, p.54).

A vida prática é sem dúvida influenciada pelos reflexos dos pensamentos históricos
e, nessa perspectiva, o ensino de história não tem como não ser dialógico. Deve ser
fomentado, ainda, a partir dos saberes dos estudantes e valorizado no bojo das vivências
históricas para que estes se vejam como protagonistas e não somente como espectadores.

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52
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53
EDUCAÇÃO PATRIMONIAL NO ENSINO DE HISTÓRIA:
A FEIRA LIVRE COMO ESPAÇO DE APRENDIZAGEM HISTÓRICA

Aletícia Rocha da Silva12;


Marcos Edilson de Araújo Clemente13

Introdução

Nos meus anos de docência foram incontáveis às vezes em que a história local e
regional aparecia entre os assuntos discutidos nas conversas que tive com os colegas nas salas
de professores, no espaço reservado para o planejamento coletivo de aulas na área de
humanas. E Sempre que se faz perguntas como: Qual a importância da história local nas suas
aulas? Como ela é abordada? Junto com a resposta a elas frequentemente é citada a ausência
de história local nos livros didáticos escolhidos para a rede pública. Essa ausência representa
uma das queixas que mais ouvi dos colegas professores de História.
A impressão que tive ao longo dos anos é que, talvez como resultado da nossa
formação acadêmica, ainda se continue a passar a ideia que a escrita é massivamente superior
à oralidade e que só há história se esta estiver escrita e publicada em livros. O que venho
defendendo é que a história local é uma lacuna que deve ser preenchida pelo professor e seus
alunos. Uma prova disto é que, mesmo com as reclamações, os professores são capazes de
citar uma série de ações, projetos, exposições e aulas interessantes com a temática local que
realizaram em suas aulas durante sua docência. O que talvez falte é o reconhecimento que
essas práticas educativas são trabalhos de pesquisa relevantes para a memória social da
comunidade. Sente-se também que se carece da prática de registrar, arquivar na escola e
tornar público em relatórios ou em um blog essa série de ações que os professores realizam
sobre a localidade e que acabam se perdendo entre as peculiaridades da rotina escolar.
Eu não estou excluída de nenhum ponto citado acima. Também já senti e ainda sinto
a carência de livros com história de Colinas do Tocantins e do Estado do Tocantins; também
já realizei inúmeras atividades de pesquisa e produção da história da comunidade que
serviram para uma aula e outra e se perderam para sempre. Uma dessas práticas que realizei,
mas não tive o cuidado de registrar devidamente foram ações de educação patrimonial nas

12
Graduada em História pela UFT. Mestre em Ensino de História pelo PPGEHIST/UFT. Atua como professora
da Educação Básica em Tocantins desde 2009.
13
Graduado em História pela UCSAL. Mestre em História pela UNICAMP. Doutor em História Social pela
UFRJ. Atua como professor no curso de História da UFT/UFNT.

54
aulas de história com alunos moradores de uma cidade ribeirinha no interior do Tocantins,
Itapiratins, na qual trabalhei durante cinco anos.
Naquela ocasião elaborei uma experiência de ensino sobre a relação dos alunos com o
Rio Tocantins, rio que atravessa o estado do Tocantins e tem grande importância para a história
dos estados de Tocantins, Goiás e Maranhão. O rio era a única via de transporte na época da
colonização, além de estar ligado ao ciclo do ouro nos séculos XVII, XVIII e XIX. Em
Itapiratins até os dias atuais o rio representa uma forma de meio de vida para pescadores,
barqueiros e comerciantes, pois até mesmo o lazer da cidade também está relacionado às praias
de água doce que se formam na temporada de vazante e atraem turistas. No dia-a-dia, crianças e
adultos vão até o rio para descanso e refresco nas altas temperaturas tocantinenses, senhoras
ainda lavam roupas nas suas águas e os homens lavam animas e carros. Em duas semanas de
aulas em turmas do Ensino Fundamental e Ensino Médio, os alunos fizeram visita guiada,
fotografaram, fizeram vídeos e apresentaram suas produções e reflexões sobre a relação deles e
da comunidade com o rio. Depois dessa experiência, ficaram claros dois pontos importantes: O
primeiro é que o rio Tocantins é um patrimônio histórico de natureza ambiental da cidade. O
segundo foi que o ensino de história e o patrimônio cultural podem andar juntos.
Assim, mesmo que sem os relatórios ou registros fotográficos adequados, aquela
experiência docente foi praticada levando em conta o ensino de História como um espaço de
construção coletiva e a História como um processo dinâmico e contínuo onde todo mundo é
sujeito da História. Logo, a totalidade dos processos educativos se engajavam com a
valorização dos aspectos culturais locais e por isso, mais uma vez, a história local e regional
aparece como a temática da minha prática docente e direcionaram esta pesquisa-ação,
Nesse cenário a aprovação de mestrados profissionais como o Programa de Mestrado
Profissional em Ensino de História – Profhistória se mostra uma oportunidade magnífica para
professores, pois ele permite refletir, produzir e contribuir com o ensino de História. Eu
ingressei no ProfHistória pela Universidade Federal do Tocantins no ano de 2016 e assim, no
momento de definir a temática a ser desenvolvida na dissertação não havia dúvidas:
patrimônio cultural. Pois era a que me oportunizava reproduzir, registrar e analisar uma
prática de ensino de História que já havia sido trabalhada anos antes, desta vez em um cenário
bastante conhecido das cidades: Uma feira livre.
Lancei mão de duas metodologias que precisamos deixar bem delimitadas neste
trabalho: a primeira foi a pesquisa-ação como método que orientou a pesquisa de mestrado, a
produção e a análise das fontes e a escrita historiográfica. A segunda foi a educação patrimonial
como a metodologia de ensino em sala de aula com a qual elaboramos o plano de aula e

55
inserimos no currículo escolar do 7° ano. A pesquisa-ação permite a reflexão da prática
educacional e consente a participação dos sujeitos envolvidos no ensino, como estudantes,
professores e demais membros da comunidade escolar. Como observa Guido Irinei Engel (2000):

A pesquisa-ação é um tipo de pesquisa participante engajada, em oposição à


pesquisa tradicional, que é considerada como “independente”, “não reativa” e
“objetiva”. Como o próprio nome já diz, a pesquisa-ação procura unir a pesquisa à
ação ou prática, isto é, desenvolver o conhecimento e a compreensão como parte da
prática. É, portanto, uma maneira de se fazer pesquisa em situações em que também
se é uma pessoa da prática que se deseja melhorar a compreensão desta.

A principal característica é que o pesquisador não está ali apenas observando,


coletando dados ou se inserindo como um membro do grupo estudado. Uma pesquisa-ação
implica que o pesquisador ofereça, partindo da elaboração conjunta com o grupo uma ação
que gere impacto na comunidade, ou seja- ela é inovadora, participativa e intervencionista. No
nosso caso, queria-se que a educação patrimonial promovesse o conhecimento sobre a própria
comunidade e que ações como essa possam ser replicadas, de forma que o ensino de História
também se beneficie da ação.
Na obra Metodologia da Pesquisa-Ação, Michel Thiollent (2007) ressalta que a
metodologia proporciona que o pesquisador e os grupos sociais envolvidos concebam meios
de resolver as situações problemáticas enfrentadas pelo grupo. No caso dessa pesquisa, o
problema é o desconhecimento ou mesmo a falta de reconhecimento do patrimônio cultural
local. Ressaltando que o pesquisador também está numa posição de aprendizagem, portanto, a
construção de soluções para o problema deve ser elaborada de forma cooperativa e
participativa, evitando assim, o risco de a ação ser reduzida a um ativismo do pesquisador.
Pois mesmo que o pesquisador intervenha de forma consciente, os grupos participantes são
ativos e não reduzidos a simples cobaias. O autor acrescenta ainda que “outra qualidade da
pesquisa-ação consiste no fato de que as populações não são consideradas como ignorantes e
desinteressadas” (THIOLLENT, 2007). Portanto, a pesquisa-ação é muito frutífera quando
aplicada às pesquisas educacionais, uma vez que buscamos analisar uma prática de ensino e
estabelecer uma relação de mútua aprendizagem e desenvolver uma consciência de
preservação do patrimônio cultural através do ensino de História.
A pesquisa-ação desenvolvida objetiva relacionar uma proposta de ensino de História
Local por meio da educação patrimonial no espaço da feira de livre de Colinas do Tocantins.
Considera-se que o professor de história é um expoente social e que suas ações se inserem
também no contexto das políticas e responsabilidades educacionais do estado ou nação a qual

56
pertence, portanto, a pesquisa se baseia na educação sobre o patrimônio cultural material e
imaterial em Colinas do Tocantins14.
O espaço de memória de um povo tem uma acepção ampla que pode ser concreta,
abstrata, material, imaterial, simbólico ou funcional. Características que encontramos na Feira
Livre da cidade de Colinas do Tocantins. Neste contexto, trabalhamos a Feira Livre Municipal
de Colinas como um patrimônio histórico de Colinas do Tocantins. Pois se trata de um espaço
rico de histórias e experiências individuais e coletivas que podem ser incorporadas ao ensino
de História, proporcionando ao mesmo uma maior riqueza em suas abordagens.

A Feira Livre como Espaço de Aprendizagem Histórica

Ao realizarmos um levantamento bibliográfico buscando traçar um histórico das


feiras livres no mundo e no Brasil, pudemos perceber que o costume de realizar feiras é muito
antigo. Segundo Lenita Maria Rodrigues Calado, no livro Era uma feira aonde a gente ia de
chinelo: Campo Grande e sua Feira Livre Central (2013) pode-se traçar as origens dessas na
antiguidade, onde um tipo de comércio muito parecido com as feiras livres era realizado nas
ruas e templos, portanto ligado às práticas religiosas. Na Idade Média, ocorreu a consolidação
das feiras, pois se relacionavam com o avanço do mercantilismo da Península Itálica, que
fomentou o advento do comércio e o estabelecimento das próprias cidades. A partir dos portos
italianos consolidava-se um comércio terrestre, levando mercadorias orientais por toda a
Europa Ocidental (CALADO: 2013, p.22).
De acordo com a autora Lenita Maria Rodrigues Calado:

Na Idade Média, o que se denominava como feiras eram as grandes reuniões de


comerciantes de várias regiões da Europa, que comercializavam os mais diversos
produtos. Havia também o uso das portas e janelas das casas para realização do
pequeno comércio, e cada rua ou viela se transformava, em alguns dias da semana,
em feira ou mercado (CALADO 2013; 22).

No Brasil, a origem das feiras se deu durante a dominação colonial Portuguesa.


Foram, portanto, baseadas nas feiras europeias. Todavia, acabaram por assumir também a
função de dar amparo à consolidação do controle efetivo da metrópole sobre o território, dos
nativos e dos colonos (CALADO, 2013, 22). Nesse contexto, era uma transformação na
cultura dos nativos, antes completamente baseada nas trocas, chamada de escambo e agora
apresentados ao comércio. Segundo Emerson Trevisan (2008, p.45):

14
O Município de Colinas do Tocantins localiza-se na Mesorregião Ocidental do Tocantins. É a cidade-sede da 5ª
Região Administrativa do Estado. Possui área de 843,846 km². Distância de Palmas, 260 km, de Brasília, 1.110 km.
População estimada em 35.851 habitantes - Fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE 2020.

57
A primeira referência das feiras no Brasil data de 1548, quando o Rei D. João III na
tentativa de evitar que os colonos se dirigissem às aldeias, ordenou que se fizesse
um dia de feira para que os gentios viessem à cidade comerciar seus produtos e
comprar o que necessitassem. Partindo do princípio que os mesmos já estavam
acostumados a reunir seus artigos de troca na praia para a posterior negociação, estas
feiras acabaram por não se realizar. Por este motivo não se realizaram feiras na
colônia durante os séculos XVI e XVII, não sendo registrados qualquer ocorrência
das mesmas nos documentos oficiais ou relatos de viajantes

A partir do século XVIII, com predomínio da atividade açucareira e do latifúndio


monocultor, as feiras surgem como provedoras dos produtos não produzidos no engenho e como
forma de adquirir produtos semiartesanais para as pessoas e famílias pobres das cidades e
populações em torno do Engenho. No decorrer dos séculos XIX, XX, até a atualidade, as feiras
foram se multiplicando pelas cidades. Nesse processo, foram contraindo características
adequadas de acordo com a região em que se estabelecem e de modo a suprir as demandas delas.
Mais que locais de compra e venda, as feiras contêm uma dinâmica que engloba e
expande locais e culturas. Conforme destaca a historiadora Giovanna de Aquino Fonseca
Araújo em sua tese de doutoramento Continuidade e descontinuidade no contexto da
globalização: um estudo de feiras em Portugal e no Brasil (1986-2007), as feiras, desde sua
origem até o momento atual, conservam forte relação econômica, social e cultural com a
cidade que as abriga. A pesquisa de Araújo (2011) foi realizada no Brasil e em Portugal.
Especificamente no Nordeste brasileiro, nas feiras livres de Campina Grande – PB, de
Caruaru – PE e a feira de São Joaquim, localizada na primeira capital brasileira, Salvador –
BA. Em Portugal, foram pesquisadas as feiras da região do Minho: Ponte de Lima, de
Barcelos e Vila do Conde. E, baseando-se nelas, a autora pontua alguns dos aspectos mais
característicos das feiras: A pluralidade dos feirantes e visitantes. É um lugar de aglomeração
das diferenças de origem, de objetivos e de preferências. De acordo com Araújo:

As feiras constituem, na atualidade, espaços de imbricação de diversas


territorialidades, em virtude de sua composição incluir origens múltiplas, que vão
desde as mercadorias expostas, até os sujeitos que nelas transitam. Esta
multiplicidade quanto às origens dos produtos e dos sujeitos enseja o que
denominamos anteriormente de identidades multifacetadas, ou identidades
plurais(...). A multiplicidade dos agentes está presente em todas as feiras
investigadas neste estudo. Em território luso e em solo brasileiro observamos
diversidade na origem (naturalidade e morada) dos que as frequentam. A
constatação desta variedade verifica-se não só nas estatísticas dos dados coletados,
mas principalmente nos aspectos visíveis que giram em torno do ecletismo das
aparências dos sujeitos, na multiplicidade das tonalidades de suas peles, nas falas
que misturam idiomas e sotaques, ou seja, aparências diversas no vestir, no falar e
nas experiências contadas em seus depoimentos, que traduzem a diversidade das
relações humanas (ARAÚJO, 2011, p.262,).

Diante desse contexto de diversidade a autora atribuiu às feiras o título de lugar


“desterritorializado” pois recebem pessoas de todas as regiões que rotineiramente frequentam

58
para vender ou comprar. As feiras também movimentam o turismo das cidades como é o caso
das feiras de Campina Grande e Caruaru que receberam o reconhecimento do IPHAN como
Patrimônio Cultural Imaterial do Brasil e são pontos de visitação bastante procurados pelos
visitantes e assim promovem a sociabilidade em locais cujas características são o fluxo
constante de pessoas, sejam nas feiras diárias ou semanais, seja naquelas com clientela e
feirantes fixos ou que sejam eles itinerantes. Tal fato estabelece as feiras como lugares das
diferenças e dos encontros. Justamente deste ponto de vista, veremos a seguir um relato de
experiência sobre a Feira Livre de Colinas do Tocantins.

Relatos de Experiência: Educação Patrimonial na Feira Livre de Colinas do Tocantins

A atividade de pesquisa foi desenvolvida na instituição de ensino em que leciono: Colégio


João XXIII, em Colinas do Tocantins. A escola oferece Ensino Fundamental e Ensino Médio.
Toda a parte de coleta de dados junto à escola foi realizada durante o ano letivo de
2017. O primeiro encontro com os sujeitos da pesquisa, os alunos da turma de 7º ano, ocorreu
no dia cinco (05) de maio do ano de 2017. Nessa ocasião expliquei os detalhes do trabalho de
pesquisa, bem como o que é um mestrado e de como eles são importantes para o
desenvolvimento do trabalho. Os alunos se mostraram receptivos e curiosos. Também ficaram
bastante felizes ao saber que seriam a única turma com a qual o projeto seria feito. Além das
explanações aplicamos um formulário cujas perguntas permitiram traçar um perfil da turma.
Para que o aluno pudesse participar da pesquisa obtivemos um termo de consentimento dos
pais e responsáveis no qual detalhamos os passos e objetivos do trabalho.
A turma era composta por um total de trinta e cinco alunos matriculados. Sendo eles
dezoito (18) meninas (51%) e dezessete (17) meninos (48.5%). O formulário foi respondido por
31 alunos (88,5%). A partir dos formulários, aplicados com o objetivo de conhecer um pouco
mais sobre esses estudantes soube-se que a faixa etária da turma é de 12 anos de idade. Devido
a esta idade justifica-se o fato de a maioria declarar que não trabalha. Entre os alunos que
responderam que trabalham, atentamos que esses especificaram que ajudam os pais nas tarefas
domésticas e dois declararam que ajudam os pais no estabelecimento comercial da família.
A primeira ação do projeto foi com uma aula para apresentação do tema, que ocorreu
no dia nove de maio de 2017. Esta aula tratava das atividades referentes à etapa de observação
e consistia em explorar os conceitos básicos que cercam a temática de patrimônio histórico
cultural. Iniciamos com uma exposição de imagens e conceitos visando ensinar a noção básica
do que são bens e bem culturais. Organizamos de forma que eles entendessem a partir do

59
particular para o geral. Com isso os estudantes eram incitados a responder quais eram os bens
que tinha importância para eles em particular, depois para a família, para o bairro, para a
cidade. Assim estabeleciam-se bases para que eles pudessem compreender que existem bens
com importância para uma coletividade e são esses os bens culturais.
Nesta apresentação utilizamos imagens e pequenos textos para mostrar que bens
imóveis como prédios, praças, sítios arqueológicos; ou bens móveis como os acervos
museológicos, objetos individuais, coleções bibliográficas, documentos arquivados
constituem a categoria de patrimônio material. Já os bens culturais que se estabelecem na vida
cotidiana das comunidades, tais como os modos de fazer, plantar, colher, transmitir ofícios, as
celebrações, as formas de expressão cênicas e musicais e manifestações populares compõem o
que chamamos de patrimônio imaterial. Com auxílio de slides, exibimos a definição de
patrimônio cultural conforme o Manual de Educação Patrimonial do Programa Mais
Educação, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, ele define que:

O patrimônio cultural é o conjunto de manifestações, realizações e representações de


um povo. Ele está presente em todos os lugares e atividades: nas ruas, em nossas
casas, em nossas danças e músicas, nas artes, nos museus, escolas, igrejas e praças.
Nos nossos modos de fazer, criar e trabalhar. Nos livros que escrevemos, na poesia
que declamamos, nas brincadeiras que fazemos, nos cultos que professamos. Ele faz
parte de nosso cotidiano, forma as identidades e determina os valores de uma
sociedade. É ele que nos faz ser o que somos (IPHAN, 2013, p.03, grifo do
original).

Todavia, entre os discentes, era notória a unidade de opinião que patrimônio tratava
de “coisas antigas”, “coisas do passado”. No dia doze (12) de maio, realizamos a segunda
aula, dando continuidade à apresentação sobre patrimônio cultural material e imaterial. Nessa
aula o foco foi a exposição de imagens da Feira Livre Municipal de Colinas. Os estudantes
eram convidados a expressar o que reconheciam e apreciavam da feira. Dentro do alcance,
tratou-se de aproximar o conceito que os alunos traziam consigo com o conceito de
patrimônio cultural como algo do presente da comunidade e que tem uma relevância atual.
No dia dezesseis (16) de maio de 2017 passamos para a segunda fase da proposta: A
etapa de registro. Utilizando atividade escrita com questões subjetivas, os alunos eram
questionados sobre o tema das aulas-oficinas.
A última questão pedia que os alunos fizessem uma representação da Feira Livre de
Colinas da forma que preferissem. Poderiam escolher entres textos, desenhos, poesia,
maquete. O Aluno Thierry Felipe, que vamos citar o nome para preservar a posse intelectual,
fez esta poesia em formato de cordel:

60
A Feira de Colinas

Aos domingos em colinas


É quando acontece a feira
Apesar de não ser grande
Atende a cidade inteira
Onde muitos compram carne
Para assar na churrasqueira

No vai e vem da feira


O que eu pude perceber
Uns estão para comprar
Outros estão para vender
Tem muito para pechinchar
Outros estão só pra ver

Lá na feira encontramos
Direto do produtor
Frutas de muitas espécies
Coisa de grande valor
Verde, fresquinho da hora
Com proteínas e sabor.

De tudo a gente encontra


Quando a feira está boa
Milho, feijão e farinha.
Carne de vaca e leitoa
Mas a intenção de muitos
É prosear com as pessoas
(Thierry Felipe. Arquivo da autora, 2017)

O aluno que chamaremos de D, preferiu representar a feira por intermédio do desenho.

Figura 2- Desenho Representando


a Feira Livre produzido por aluno.

Fonte: Arquivo da autora, 2017.

61
Observa-se que o aluno D representou várias características da feira em seu desenho.
Podemos ver a representação dos produtos da terra: frutas, legumes e verduras e as barracas
de culinária, ali representada por uma panela e alguns copos. No plano baixo ele representou
as barracas de itens de vestuário que também são encontrados na feira.
A etapa de exploração, conforme demanda a metodologia da educação patrimonial
implica uma visita ao bem cultural. Portanto, organizamos uma aula campo no ambiente da
Feira Livre Municipal de Colinas. Previamente fizemos visitas a feira nas quais convidamos
alguns feirantes para participar da pesquisa e contarem a suas histórias aos alunos. Também
pedimos que eles nos concedessem uma entrevista em um lugar mais calmo, pois realizá-la na
feira era impossível pelo barulho e por atrapalhar as atividades comerciais da banca. A pré-
seleção incluiu um feirante por cada atividade ou ramo de vendas. Mas contamos também
com os laços de afeição que surgiram com as visitas a feira ao longo dos anos ao solicitar a
participação deles neste projeto. Aroldo Dias Lacerda, na obra Patrimônio Cultural em
Oficinas: Atividades em Contextos Escolares (2015), defende que a abordagem desses bens
culturais na escola deve levar em consideração os saberes da vida em curso e o contato direto
com as experiências pessoais dos participantes da comunidade. Para o autor:

As pessoas são as maiores fontes de informações para a compreensão e experiência


desses processos. Sendo assim, a visita a lugares do patrimônio, o contato com
mestres e o diálogo com as comunidades são de extrema valia para o entendimento e
para a promoção de processos educativos relacionados ao patrimônio imaterial
(LACERDA, et al, (2015, p.23).

Nossa proposta de dialogar com a comunidade foi realizada no dia vinte e um (21) de
maio de 2017, uma manhã de domingo, quando realizamos uma visita guiada. A parte inicial
da aula era pautada sobre a história do município. Iniciamos com explicação sobre o processo
de surgimento da cidade, no início dos anos de 1960 e de como era difícil o acesso à compra
de itens básicos de alimentação.Ressaltamos que a feira se encontra no centro da cidade, então
solicitamos que eles observassem a proximidade com a Avenida Bernardo Sayão, que foi o
núcleo de povoamento da cidade. Como explicitado por SILVA E VINHAL (2008. p. 88-89):

A Avenida Bernardo Sayão, na realidade, não se tratava de uma rua de Colinas. Ela
era a própria rodovia Belém – Brasília. E pouco a pouco suas margens foram sendo
ocupadas por vários moradores que ali passaram a desenvolver modestas atividades
comerciais voltadas para o atendimento das mais diversas pessoas que já trafegavam
pela grande estrada em carros, caminhões, ônibus etc. Serviços de todo tipo como
dormitórios, refeições caseiras, borracharias (...) começaram a ter lugar à beira da
rodovia. Foi o rápido crescimento de Colinas que a tornou uma via de comunicação
interna.

62
Na sequência, fomos à barraca de Francisco Dourado, vendedor de temperos e ervas
medicinais. Francisco, o feirante com maior tempo em atividade, narrou o surgimento da feira e
falou com calma dos três diferentes espaços municipais nos quais ela já foi realizada. Seu
Francisco também relatou como participou do processo de criação da cidade de Colinas do
Tocantins. E assim continuamos andando na feira e visitando a banca de cada um dos feirantes
parceiros da pesquisa, ouvindo, fazendo perguntas e anotações. Ao final da visita guiada, nossa
última parada foi nas barracas que vendem comida. Era duplo objetivo nessa área da feira:
primeiro: identificar os alimentos e pratos típicos da culinária local. Segundo: alimentar os
alunos participantes. Pois, o amado e aguardado momento da merenda dessa vez seria ali
mesmo na feira, com alimentos vendidos lá. Assim, proporcionamos aos alunos a vivência do
ambiente da feira, que inclui conversar com os amigos, escolher bem o que comprar, negociar
com o feirante, degustar os alimentos e irem para casa com mais histórias para contar.
A educação patrimonial e a história local podem e devem funcionar de forma
interdisciplinar. E nessa pesquisa contou-se com o apoio do corpo docente, de amigos e
colegas de trabalho no colégio João XXIII. Colegas que apoiaram e incentivaram e que
também cederam espaço das aulas para planejamento da atividade com os alunos e que até
ajudaram a pensar a interdisciplinaridade da ação que estava sendo realizada. Assim, após a
visita guiada os alunos apresentaram seus relatórios na aula de Língua Portuguesa, quando
elaboraram textos do gênero literário relato de viagem.
As entrevistas são um importante instrumento nas pesquisas de História Local e
Regional e podem ser utilizados com sucesso no ensino de história. Em casos como o nosso a
entrevista gera a principal fonte que poderemos ter sobre a construção do espaço da feira e de
como as pessoas vivenciaram esse processo. Para alcançar essas memórias realizamos a
modalidade de entrevista temática, a que melhor se ajustava para os nossos objetivos, uma vez
que não tínhamos como foco as tradições orais ou a história de vida dos personagens que
visitam e trabalham na feira.
Para a realização de entrevistas ficaram definidos os seguintes critérios: os 35 alunos
foram divididos em cinco grupos. Cada grupo desenvolveria uma entrevista com os feirantes
que visitamos na visita guiada. Cada feirante desenvolve atividade distinta na feira. Maria de
Fatima: alimentação; Seu Francisco vende ervas, temperos e grãos; Aparecida do Carmo, é
agricultora e vende seus legumes e verduras; Dona Cleusa, produz peças de artesanato.

63
De volta a sala de aula: concluir e avaliar o processo de aprendizagem

A etapa de apropriação foi finalizada em outubro de 2017. A essa altura a turma teve
uma troca de professor de História e a dinâmica da turma também alterou um pouco. Assim
mudamos a estratégia de apresentação das produções dos alunos. Havíamos pensado em expor
para a escola toda e então alteramos que os alunos exporiam suas descobertas e entrevistas na
sala de aula mesmo.
A socialização das informações processou-se de forma que os grupos de estudantes
se dirigiam à frente da sala e colocavam seus pontos importantes das entrevistas, enquanto
isso, os demais grupos faziam a comparação com o que tinha colhido também. Assim, havia
diálogo e contraposição de informações. Por exemplo: Quando um grupo de alunos declarou
que o feirante, entrevistado por eles, afirmava que havia combinação de preços na Feira Livre
Municipal de Colinas, enquanto o entrevistado de outro grupo afirmava que não, não era um
momento de discutir qual feirante estava falando a verdade e qual estava falando uma mentira.
Mas sim, um momento de perceber que havia peculiaridades que definiam uma fala ou outra.
Dessa forma, pôde-se perceber que os agricultores que são da mesma família, que
partilham o espaço de produção agrícola e instrumentos de trabalho na horta, tendem a
praticar preços semelhantes. Tal postura não é percebida entre artesãos e feirantes do ramo
alimentício que não tem parentesco entre si. Diante disto, pudemos chamar a atenção dos
estudantes para a importância da História em promover a visibilidade de várias vozes e não se
fixar em discursos uníssonos ou de ouvir apenas um grupo.
Para avaliar o aprendizado proporcionado através do contato dos estudantes com os
feirantes fizemos uma entrevista, na qual propomos a seguinte questão aos alunos: Cite três
fatos que você aprendeu sobre a feira, sobre a cidade, produtos e etc.,
Obtivemos as seguintes respostas:

Aprendi que todo lugar tem sua história. Que nem tudo está no livro e que
aprendemos coisas em todo lugar (L.S).
1) preservar o espaço da feira. 2) aprender sobre a história de Colinas. 3) ouvir os
mais velhos (G.R).
Aprendi que a feira já existia há muitos anos atrás. E que ela mudou de lugar 3
vezes. E que muitas das pessoas estão lá por conta dos seus antepassados, por que
eles já participavam da feira antigamente (E.C).
1) aprendi que a feira não é só uma feira e sim uma feira importante; 2) conhecer
pessoas novas; 3) gostos diferentes (L.B).
Aprendi a história da Feira. O que eles vendem lá, (sobre) as pessoas mais antigas e
as famílias ajudam alguns deles (no trabalho) (acréscimo nosso, B. F).
Aprendi o que realmente é um patrimônio. Aprendi mais sobre a feira. Aprendi mais
sobre os feirantes (K.V)
Aprendi que todos os feirantes são amigos. Que eles pagam uma taxa para ficar na
feira. E que lá tem um beiju muito gostoso (J).

64
Pode ser notar que os alunos enumeraram elementos bem distintos. Citaram alguns
fatos históricos, fizeram alusão à percepção que o conhecimento se obtém em diferentes
ambientes, descreveram práticas sociais, sabores como o do beiju, também conhecido por
tapioca na região, aspectos administrativos da feira. Alguns deles citam aprendizado que se
estende para a sua vida social, como o fato de aprender a escutar os mais velhos. O mais
notável é perceberem o espaço da feira como uma parte da comunidade ao qual pertencem.
Um ambiente que conheciam pouco e que agora acrescentaram profundidade ao explorarem
as experiências dos povos com aquele lugar e, consequentemente, se apropriaram de saber
sobre o local e alguns adquiriram laços afetivos com ele. De toda forma, o olhar para a Feira
Livre de Colinas do Tocantins foi modificado durante a experiência.
Para finalizar a avaliação do processo, perguntamos aos alunos o que acharam de
realizar atividades fora do recinto da sala de aula e se isso ocasionou uma nova forma de
observarem os lugares públicos e lugares de convivência da cidade.

Achei muito bom, assim nós aprendemos mais coisas além dos livros. Como a
preservar os bens da cidade (J.)
Eu não vejo lado negativos. Fora do espaço escolar não ficamos presos no livro,
(mudou) nosso pensamento sobre várias coisas e descobrimos a história local.
Trouxe mudanças na forma de ver os espaços públicos, eu aprendi que todo local
tem a sua história (L. S).
Sim, trouxe mudanças na forma de ver os espaços públicos porque antes eu achava
que as pessoas tentavam vender mais que os outros para conseguir mais dinheiro.
Agora eu vejo diferente, que todos são amigos. Sobre as atividades fora da sala de
aula, eu acho muito bom, na minha opinião, para a gente aprender não só na sala de
aula, mas também fora dela. Eu acho que se interagem (com sentido de “se
interessam”) mais pelo assunto e aprendem muito mais (E.T)
Não trouxe mudança na forma de ver os espaços públicos. Acho as atividades fora
do espaço escolar muito boas; porque quando aprendemos histórias sobre patrimônio
apenas em sala fica menos esclarecido do que quando saímos para aprender
materialmente (K.V).
Sim, trouxe mudanças na forma de ver os espaços públicos pois muitas coisas que
eu pensava que era de um jeito era completamente diferente. As atividades fora da
sala aula, acho muito bom, pois são poucas as vezes que a gente faz atividade
práticas (S.O).
Sim, trouxe mudanças na forma de ver os espaços públicos, a história que eles têm é
bem bonita, então aprendi a dar mais valor. Achei muito bom, aprendemos mais
coisas fora da escola (N. C)
Sim a atividade trouxe mudanças na forma de ver os espaços públicos. Esses
espaços públicos são bons porque podem ir até pessoas pobres e tem lugares que
pobres não frequentam. As atividades fora do espaço escolar são ótimas pois a gente
faz outras coisas em vez de escrever (L.A).

Os alunos avaliaram todo o processo positivamente. Seja a visita à feira, as


entrevistas e demais encontros realizados para organização dos trabalhos. E fizeram falas
positivas sobre terem ido além da sala de aula para a exploração de um ambiente que antes
não seria percebido como possível de se obter aprendizado.

65
Assim, concluímos que obtivemos êxito em executar uma metodologia de ensino de
História que se propôs a valorizar a memória do lugar. E, através dela, fortaleceu-se os laços dos
alunos com identidade local, ao permitirem que esses interagissem com as pessoas que
trabalham, vivem e circulam pelos espaços públicos urbanos da cidade de Colinas do Tocantins.

Referências

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Montes Claros. 2009.
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Escolares. Belo Horizonte. Fino Traço, 2015.

66
PARTE 2 –
HISTÓRIA LOCAL, ENSINO DE HISTÓRIA
E APRENDIZAGEM HISTÓRICA

67
A PESQUISA COMO METODOLOGIA DE ENSINO E APRENDIZAGEM
EM HISTÓRIA LOCAL

André Brasil da Silva15

Introdução

Pensar o campo do Ensino de História requer lançar reflexões de âmbito conceitual e


didático sobre as metodologias de como ensinar e, também, aprender História. Desse modo,
considerar que o “modelo tradicional do ensino de história” (CUNHA, 2011, p. 285) foi
completamente superado nas escolas de Educação Básica brasileiras torna-se uma forma de
ignorar as reais necessidades de transformações no ensino de História na contemporaneidade.
No geral, percebe-se a permanência da supervalorização das temáticas eurocêntricas, bem
como a utilização de metodologias centradas no verbalismo e/ou conteudismo, que acabam
por limitar os estudantes a um papel passivo no processo de ensino e aprendizagem, tornando-
os, por assim dizer, em meros receptores de conteúdos “prontos” e “fechados” da História.
Nesse sentido, é importante considerar a própria história do Ensino de História, que
tem a sua origem moderna como disciplina escolar sistematizada no século XIX, atrelada a
um contexto de intenso desenvolvimento científico, de constituição das nações ocidentais e do
sentimento nacional perante os habitantes da nação. Portanto, sob influência de tais
circunstâncias, o ensino de História nasce marcado pela estreita conexão com a formação de
uma identidade nacional.
Segundo Laville (1999, p. 126), o principal objetivo do ensino de História no período
oitocentista era “inculcar nos membros da nação – vistos, então, mais como súditos do que
como cidadãos participantes – o orgulho de a ela pertencerem, respeito por ela e dedicação
para servi-la”. Dessa forma, a disciplina de História era caracterizada essencialmente por
conter conteúdos políticos a serem ministrados por meio da memorização. Segundo André
Cunha (2011, p. 285), esse modo de ensinar História passou a ser denominado de “modelo
tradicional do ensino de história”, caracterizado como:

[...] um ensino baseado em História linear, casual, evolutiva, política, dos


vencedores, dos heróis, cuja marca primordial está na memorização de datas e fatos,
fundamentados na construção de um tempo histórico homogêneo e transmitidos via
exposição oral, para serem reproduzidos pelos alunos através dos “famosos”

15
Graduado em História pela UEMA. Mestre em Ensino de História pelo PPGEHIST/UFT. Atua como professor
de História da rede municipal de ensino de Barra do Corda – MA.

68
questionários, com as respostas fixadas pelo manual do professor.

Maria Schmidt e Isabel Barca (2005) apontam que os novos ventos soprados pela
corrente historiográfica da Nova História influenciaram nas mudanças pelas quais a História
ensinada na escola passou, quando assinala que é “possível compreender que a forma pela
qual se produz o conhecimento histórico hoje não é a mesma dos historiadores do século XIX
e que, portanto, a forma de ensinar história não será a mesma também” (SCHMIDT; BARCA,
2005, p. 305).
Por outro lado, apesar desses avanços, ainda é predominante nesse início de século
XXI o pensamento de que a História possui uma subdivisão entre acadêmica e escolar. De
acordo com essa percepção, a academia dedica suas atenções às questões relacionadas à
metodologia da pesquisa, enquanto que a História na Educação Básica cuida exclusivamente
da metodologia de ensino, sendo a única relação existente entre elas a “transposição didática”
(CHEVALLARD, 1991) do conhecimento produzido pela academia para as escolas, em um
sentido hierárquico do conhecimento histórico.
Entretanto, não foi sempre dessa maneira que a História foi vista pelas instituições e
pela sociedade em geral, sendo relativamente recente o desenvolvimento desse processo de
separação. Jörn Rüsen (2010, p. 24) nos explicita esse contexto da seguinte forma:

Antes que os historiadores viessem a olhar para seu trabalho como uma simples
questão de metodologia de pesquisa e antes que se considerassem “cientistas”, eles
discutiram as regras e os princípios da composição da história como problemas de
ensino e aprendizagem. Ensino e aprendizagem eram considerados no mais amplo
sentido, como o fenômeno e o processo fundamental na cultura humana, não restrito
simplesmente à escola. O conhecido ditado historia vitae magistra (história mestra
da vida), que define a tarefa da historiografia ocidental da antiguidade até as últimas
décadas do século dezoito, indica que a escrita da história era orientada pela moral e
pelos problemas práticos da vida, e não pelos teóricos ou empíricos da cognição
metódica.

Assim, durante séculos a História era essencialmente “unificada” e, tanto a sua


produção historiográfica quanto o seu ensino eram constituídos “a fim de que seus
destinatários aprendessem alguma coisa para a vida” (RÜSEN, 2010, p. 88). Certamente, a
virada nesse cenário se deu quando os historiadores “começaram a perder de vista um
importante princípio, que a história é enraizada nas necessidades sociais para orientar a vida
dentro da estrutura tempo” (RÜSEN, 2010, p. 25). Isso se deu durante o século XIX no
processo de institucionalização da História como uma área da ciência, ao mesmo tempo em
que também foi formalizada como disciplina escolar.
Nessa perspectiva, é pertinente refletirmos alguns aspectos acerca do conceito de
Didática da História, que apresenta uma trajetória controversa dentro da própria Ciência da

69
História. De acordo com Rüsen (2010, p. 23), existe um pensamento comumente ainda
presente difundido a respeito dela, que a delimita como:

[...] uma abordagem formalizada para ensinar história em escolas primárias e


secundárias que representa uma parte importante da transformação de historiadores
em professores de história nestas escolas. É uma disciplina que faz a mediação entre
a história como disciplina acadêmica e o aprendizado histórico e a educação escolar.
Assim, ela não tem nada a ver com o trabalho dos historiadores em sua própria
disciplina. A didática da história, sob essa visão, serve como ferramenta que
transporta conhecimento histórico dos recipientes cheios de pesquisa acadêmica para
as cabeças vazias dos alunos.

Essa noção, considerada como “extremamente enganosa” por esse autor, além de
restringir substancialmente o campo de atuação da Didática da História, a redimensiona para o
âmbito exclusivo das ciências da educação, mais especificamente na área da pedagogia,
excluindo-a de qualquer vínculo com a ciência histórica. Desse modo, simplesmente “ela
reduzia-se à elaboração de métodos para transmissão de um conhecimento que ela mesma não
produzia. O historiador produzia o conhecimento, o didático o transmitia” (SADDI, 2010, p. 70).
É importante salientar que esse entendimento foi forjado durante o processo de
constituição da História como ciência no século XIX, no qual foi promovida uma gradual
separação entre a Ciência da História, encarada como a responsável pela metodologia de
pesquisa e a única produtora de conhecimento histórico, e a Didática da História, que passou a
ser direcionada exclusivamente para o tratamento das questões que envolvem a metodologia
do ensino de História em sala de aula. Antes disso, o cenário era outro como nos revela Rafael
Saddi (2010, p. 67):

Ao contrário da visão predominante ainda hoje, até fins do século XVIII prevaleceu
a noção de que a didática ocupava um papel central na formulação de qualquer
história. (RÜSEN, 2007a). Ensinava-se e escrevia-se história “a fim de que seus
destinatários aprendessem alguma coisa para a vida”. (RÜSEN, 2007a, p. 88).
Mesmo a noção de um “Método” da história era tido como uma questão didática. A
escrita da história era orientada por problemas práticos da vida “e não por problemas
teóricos ou empíricos da cognição metódica”. (RÜSEN, 2007a, p. 88).

Dessa forma, separar o pensamento histórico das questões da vida cotidiana dos
sujeitos históricos significa negar o intrínseco enraizamento da História com as demandas
sociais do tempo presente. Além disso, percebe-se também que a Didática da História
desempenha uma importante função nessa relação entre o conhecimento histórico e a sociedade,
pois, ao contrário da noção limitadora que foi constituída a seu respeito, ela não trata única e
exclusivamente das questões relacionadas ao ensino e aprendizado escolar. O seu campo de
atuação é mais amplo, abrangendo também a análise de “todas as formas do raciocínio e
conhecimento histórico na vida cotidiana, prática” (BAROM; CERRI, 2011, p. 03).

70
Portanto, a Didática da História é compreendida como parte intrínseca da Ciência da
História, desconsiderando qualquer noção que a restrinja como uma didática geral do seu
componente curricular, pois como assevera Saddi (2010), ela “não lida simplesmente com a
educação ou com o ensino, mas com o modo como as representações sobre o passado
produzem compreensões do presente e projeções de futuro. Isso é, a Didática da História lida
com a orientação temporal inerentemente produzida pela História” (SADDI, 2010, p. 75). Por
conseguinte, podemos afirmar também que é função da História, enquanto ciência, analisar e
debater as questões relativas às demandas sociais da vida cotidiana dos sujeitos históricos.
Isso inclui, sobretudo, o campo do Ensino de História, que também se beneficia
qualitativamente dessa concepção de Didática da História, especialmente no sentido de
desenvolvimento de estratégias metodológicas de ensino inovadoras que valorizem a
realidade e os saberes prévios do estudante.
Ao considerar que a História constitui-se em um conhecimento construído a partir da
experiência humana no tempo e que possui também ela mesma a sua própria historicidade,
partilhamos da concepção de Barom e Cerri (2011) quando afirmam que “o motor da
transformação historiográfica é a demanda social. Ou seja, a revisão da historiografia não
começa na academia, mas na sociedade e aí se inclui a escola, como local visível destes
descompassos” (BAROM E CERRI, 2011, p. 02).
As insatisfações em relação a já mencionada forma tradicional de ensinar História –
considerada muitas das vezes como enfadonha, desinteressante e, o mais preocupante,
insignificante para a vida cotidiana das pessoas – não estão restritas apenas aos discentes, mas
fazem parte também da própria redoma dos historiadores, que, cada vez mais, estão
preocupados com os “insucessos escolares no que diz respeito às aprendizagens históricas
significativas para a construção da consciência histórica” (SCHMIDT, 2009, p. 204), e têm se
dedicado nos últimos anos ao desenvolvimento de autorreflexões e a pesquisas no campo do
Ensino de História.
Neste cenário, provavelmente o principal desafio dessa área na contemporaneidade
seja desenvolver metodologias didáticas de aulas que possibilitem aos discentes perceberem-
se como sujeitos históricos, e que a História passe a ter significado em seu dia a dia, pois “o
efeito sobre a vida prática (mediado seja como for) é sempre um fator do processo de
conhecimento histórico, de tipo fundamental, e deve ser considerado parte integrante da
matriz disciplinar da ciência da história” (RÜSEN, 2010, p. 86).

71
A pesquisa histórica como estratégia didática de Ensino de História Local

Um dos caminhos para a superação dos desafios apontados é a implementação dos


procedimentos da pesquisa histórica como metodologia de ensino de História, possibilitando
aos estudantes uma aprendizagem histórica com sentido para sua vida cotidiana. Trata-se de
promover a participação ativa do estudante na construção do conhecimento histórico escolar
(SCHMIDT; GARCIA, 2003), utilizando-se de alguns dos métodos de trabalho do historiador
de maneira adaptada à realidade da Educação Básica. Rüsen (2007, p.104) conceitua a
pesquisa histórica como:

Um processo cognitivo, no qual os dados das fontes são apreendidos e elaborados


para concretizar ou modificar empiricamente perspectivas (teorias) referentes ao
passado humano. A pesquisa se ocupa principalmente da realidade das experiências,
nas quais o passado se manifesta perceptivelmente, ou seja: de “fontes”. [...] A
pesquisa é, por conseguinte, o processo no qual se obtém, dos dados das fontes, o
conhecimento histórico controlável.

A pesquisa histórica é, portanto, uma prática cognitiva que segue um conjunto


sistematizado de regras. Essas regras, basicamente, são determinadas pela concepção teórico-
metodológica adotada na investigação, que, a depender da escolha do pesquisador, serve para
analisar e compreender os fenômenos históricos a partir de um determinado ângulo,
constituindo assim, os diversos campos de investigação historiográfica (Ensino de História,
Cultura, Mentalidades, Economia, dentre outros).
Por conseguinte, tem-se uma enorme variedade de temas possíveis de serem
abordados pela História. Assim, toda essa complexidade que envolve o processo de
construção do conhecimento histórico caracteriza a noção contemporânea de pesquisa
histórica. Nesse sentido, é importante lembrar que ela própria possui uma historicidade e
passa por transformações em função da historiografia em vigência.
Portanto, a visão genérica de pesquisa que é corriqueiramente utilizada nas aulas de
História na Educação Básica – limitadas, na maioria das vezes, a pesquisas superficiais em
textos impressos resumidos, em manuais didáticos ou ainda em portais na internet pelos
estudantes – contrasta-se, veementemente, com a concepção de trabalho didático com a
pesquisa histórica aqui apresentada. A sua utilização como metodologia de ensino de História
consiste, em suma, na incorporação dos procedimentos do método histórico na dinâmica das
aulas. Nessa perspectiva, Schmidt (2017, p. 59) considera que:

Em relação à transposição didática do procedimento histórico, o que se procura é


algo diferente, ou seja, a realização na sala de aula da própria atividade do
Historiador, a articulação entre elementos constitutivos do fazer histórico e do fazer
pedagógico. Assim, o objetivo é fazer com que o conhecimento histórico seja

72
ensinado de tal forma que dê ao aluno condições de participar do processo do fazer,
do construir a História. Que o aluno possa entender que a apropriação do
conhecimento é uma atividade em que se retorna ao próprio processo de elaboração
do conhecimento.

Assim, essa proposta de ensino de História mostra-se como uma alternativa que
busca promover as condições necessárias para que o estudante da Educação Básica possa
vivenciar a prática de algumas das etapas de produção do conhecimento histórico no âmbito
escolar. A respeito disso, Siumara Hoffmann (2008, p. 02) faz a seguinte explanação:

Percebemos que, existem muitas propostas metodológicas ligadas ao ensino de


História, mas queremos nos delimitar em uma específica, que é aquela relacionada a
prática da pesquisa histórica em sala de aula, ou seja, o aluno delineando etapas do
processo de pesquisa histórica, aproximando-se da prática de um historiador, para
poder chegar a algumas considerações sobre o tema em estudo. Neste sentido,
distingui-se o papel e objetivos de um historiador em relação ao dos desempenhados
pelos alunos. O aluno não receberá um 'pacote pronto' de conteúdo a ser transmitido
pelo professor, mas será um agente atuante no processo de produção do
conhecimento.

Dentro dos apontamentos colocados pelas historiadoras Schmidt (2017) e Hoffmann


(2008), destacamos três elementos, inter-relacionados entre si, que julgamos ser fundamentais
na incorporação da pesquisa histórica como estratégia didático-metodológica de ensino de
História: a possibilidade de construção do conhecimento histórico na escola de Educação
Básica; a concepção de ensino e aprendizagem em História que se baseia no papel ativo do
estudante e na função de mediador pelo docente; e a discussão sobre as relações entre a
História acadêmica e escolar.
Em primeiro lugar consideramos que as características da proposição de ensino de
História baseadas na prática da pesquisa histórica possibilitam a produção do conhecimento
histórico no âmbito escolar, que, notadamente, difere do que é elaborado na academia. Tal
afirmação não enseja o estabelecimento de comparações ou hierarquização do conhecimento,
mas, ao contrário, marca a posição específica da escola como produtora de um conhecimento
histórico que é particular – e não uma mera vulgarização didática do conhecimento histórico
acadêmico. Nessa perspectiva, Circe Bittencourt (2017, p. 25) considera necessária a revisão e
o aprofundamento do conceito de conhecimento histórico escolar, no qual, segundo ela:

[...] não pode ser entendido como mera e simples transposição de um conhecimento
maior, proveniente da ciência de referência e que é vulgarizado e simplificado pelo
ensino. As críticas ao conceito de transposição didática, proposta e difundida pela
obra de Chevallard, reiteram as especificidades do conhecimento escolar
(CHERVEL; FORQUIN; MONIOT). O conhecimento histórico escolar é uma forma
de saber que pressupõe um método científico no processo de transposição da ciência
de referência para uma situação de ensino, permeando-se, em sua reelaboração, com
o conhecimento proveniente do “senso comum”, de representações sociais de
professores e alunos e que são redefinidos de forma dinâmica e contínua na sala de
aula. “Nenhum disciplina escolar é uma simples filha da ‘ciência-mãe’”, adverte-nos

73
Henri Moniot, e a história escolar não é apenas uma transposição da história
acadêmica, mas constitui-se por intermédio de um processo no qual interferem o
saber erudito, os valores contemporâneos, as práticas e os problemas sociais.

Além disso, esse pressuposto da originalidade do conhecimento histórico elaborado


na escola também enfatiza a relevância que o papel social do ensino de História na Educação
Básica desempenha para a formação cidadã crítica do discente. Do mesmo modo, criam-se as
condições necessárias para que o estudante se perceba como sujeito histórico atuante em sua
sociedade. Assim, Schmidt e Garcia, (2003, p. 235) afirmam que:

A produção do conhecimento histórico em sala de aula foi pensada e planejada


como metodologia de ensino (ZARAGOZA, 1989). Alunos e professores
desenvolvem na sala de aula, atividades de ensino e aprendizagem sobre os temas
pesquisados, analisando documentos iconográficos e escritos, discutindo e
comparando depoimentos colhidos, buscando articular seus conhecimentos com
informações e dados coletados e também com o conhecimento histórico já
produzido, construindo um certo tipo de conhecimento histórico qualitativamente
diferente, o saber histórico escolar.

Portanto, a construção do conhecimento histórico no âmbito escolar mostra-se


possível a partir da prática da pesquisa histórica, com o desenvolvimento de etapas e da
execução de algumas das técnicas e métodos do trabalho do historiador, no qual o professor
de História deverá selecionar, previamente, em seu planejamento didático, considerando as
especificidades de cada tema abordado. Nesse contexto, tem-se a “compreensão de que a
pesquisa e o ensino são dimensões de um mesmo fazer historiográfico/pedagógico e que
aprender História pressupõe compreender os mecanismos e condições de sua produção,
guardando as especificidades de cada nível de escolarização” (CAIMI, 2008, p. 147).
A incorporação da pesquisa histórica como metodologia de ensino de História nos
permite ainda a discussão sobre um segundo elemento, que é a correspondência dessa
estratégia de ensino com uma teoria de aprendizagem histórica em que o estudante exerce um
papel efetivamente ativo, no qual aprende praticando, caracterizando-se como “um processo
homólogo ao da produção (científica) do conhecimento”, conforme asseveram Schmidt e
Garcia (2003, p. 226).
Assim, considerando que o conhecimento histórico é fruto da experiência e da
interpretação, o seu aprendizado jamais poderá ser limitado a uma mera aquisição de
conteúdo pronto e acabado a ser memorizado pelos sujeitos, pois “a sala de aula não é apenas
um espaço onde se transmite informações, mas onde uma relação de interlocutores constrói
sentidos. Trata-se de um espetáculo impregnado de tensões em que se torna inseparável o
significado da relação teoria e prática, ensino e pesquisa” (SCHMIDT, 2017, p. 57).
Dar condições ao estudante para que possa refletir, conhecer e atuar ativamente no

74
processo de produção do conhecimento histórico escolar, vivenciando a prática dos
procedimentos de investigação histórica, possibilita o desenvolvimento de uma aprendizagem
histórica significativa, com sentido para a vida prática do discente, pois “um bom aprendizado
é sempre uma aprendizagem ativa” (SCHMIDT; GARCIA, 2003, p. 226). Nessa mesma
direção, Hoffmann (2008, p. 02) considera que:

Os conteúdos do ensino de História podem ser 'transmitidos' pelo professor de várias


maneiras, valendo-se de inúmeras estratégias metodológicas e recursos didáticos,
como as novas tecnologias. Contudo, se a postura for de 'transmissão' do
conhecimento histórico dentro de uma perspectiva de 'verdade histórica', toda e
qualquer ação metodológica, inovadora ou conservadora, terá praticamente o mesmo
fim. Cabe ao professor, analisar se os procedimentos metodológicos adotados
condizem com o seu conceito de História e de atuação pedagógica, junto aos seus
alunos.

Conforme já mencionado anteriormente, é importante observar que a metodologia


baseada na pesquisa histórica com fins didáticos implica em uma maneira específica de se
aprender História. Nessa situação, o estudante passa a ter a possibilidade de assimilar a História
de uma forma mais abrangente, no sentido de que, além da construção de seu conhecimento
histórico sobre o tema investigado, ele terá as condições necessárias para o desenvolvimento de
diversas habilidades e competências no campo teórico e metodológico da História. Entretanto,
se faz necessário ressaltar que o processo de aprendizagem histórica também pode ocorrer a
partir dos diversos outros tipos de metodologia de ensino de História, cada qual com as suas
respectivas singularidades e concepções teóricas de como se aprende História.
Do lado docente, a incorporação da pesquisa histórica como estratégia de ensino de
História possibilita um aperfeiçoamento profissional, na medida em que ele passa a refletir
sobre sua prática pedagógica e busca desenvolver as suas competências como pesquisador.
Nesse sentido, o professor de História ocupa a importante função de mediador de todo o
processo de construção do conhecimento histórico escolar. Nela, está incluso o planejamento
e a escolha teórica e metodológica, com as técnicas e instrumentos que, porventura, podem ser
relacionados com o conteúdo trabalhado, além do acompanhamento junto aos discentes com
os devidos apontamentos durante o desenvolvimento das etapas dessa estratégia. Desse modo,
tem-se a possibilidade “de aproximar o professor das formas como são produzidos os saberes,
permitindo que ele se aproprie e/ou construa processos pelos quais esses saberes possam ser
aprendidos” (SCHMIDT; GARCIA, 2003, p. 238).
Por último, mas não menos importante, existe a questão que envolve as
possibilidades de relação dentro da História em seu âmbito acadêmico e escolar. É consenso
geral a afirmação de que esses campos são diferentes pelo fato de possuírem funções e

75
características que lhe são próprias. Porém, longe de serem excludentes entre si, o
desenvolvimento de uma interação entre o ensino de História escolar e universitário mostra-se
tanto profícua quanto necessária. Nesse sentido, Caimi (2008, p. 129-130) afirma que “a
história, como disciplina escolar, ainda que possua especificidades e finalidades que lhes são
próprias, não prescinde de um estreito diálogo com a ciência de referência – no caso a história
acadêmica – e com os princípios, fundamentos e métodos que regem a pesquisa histórica”.
De modo geral, a distinção entre a História que é ensinada na Educação Básica e no
Ensino Superior consiste, primeiramente, na natureza institucional de cada uma, que
apresentam objetivos profissionais e formativos específicos. Por conseguinte, isso impacta
diretamente no perfil sociocultural dos agentes sociais que constituem as suas respectivas
comunidades escolares e acadêmicas (pais, professores, gestores, comunidade externa), em
especial os estudantes, que possuem perspectivas, motivações e interesses formativos
diferenciados. Em segundo lugar, outro fator importante de diferenciação entre a universidade
e a escola é o contexto político, com as suas interferências de ordem ideológica e curricular
através das políticas públicas educacionais instituídas por lei, algo que atinge mais fortemente
esta última. Nessa mesma perspectiva, Bittencourt (2017, p. 20) assinala o seguinte:

Segundo o historiador André Segal, é importante distinguir os objetivos da História


ensinada nos níveis fundamental e médio daqueles pretendidos nos cursos
superiores. Estes últimos visam formar profissionais, no caso historiadores ou
professores de História, enquanto que para os outros níveis do ensino, a História
deve contribuir para a formação do indivíduo comum, que enfrenta um cotidiano
contraditório, de violência, desemprego, greves, congestionamentos, que recebe
informações simultâneas de acontecimentos internacionais, que deve escolher seus
representantes para ocupar os vários cargos da política institucionalizada. Este
indivíduo que vive o presente deve, pelo ensino da História, ter condições de refletir
sobre tais acontecimentos, localizá-los em um tempo conjuntural e estrutural,
estabelecer relações entre os diversos fatos de ordem política, econômica e cultural
[...]

Todavia, é necessário observar que o reconhecimento das especificidades que


constituem a História acadêmica e a escolar não implica a criação de quaisquer tipos de níveis
ou relações hierárquicas entre elas. Assim, não se trata de classificar o conhecimento histórico
construído na academia como superior ao da escola, tampouco estabelecer uma dependência
mecânica deste último em relação ao primeiro. Ao contrário, o que se pretende é o
desenvolvimento de uma relação baseada na troca de experiências e, na medida do possível,
de complementaridade para que o conhecimento histórico gradualmente possa ter uma maior
assimilação pelos sujeitos históricos nas mais diversas dimensões da sociedade. Visto dessa
forma, “o reconhecimento da especificidade de cada uma dessas histórias em cada um destes
lugares pode bem permitir uma comunicação mais fecunda entre elas” (PEREIRA;

76
SEFFNER, 2008, p. 114).
Por meio de um processo de didatização dos procedimentos da pesquisa histórica e
de sua adaptação à realidade cognitiva e sociocultural dos discentes da Educação Básica,
pretende-se desenvolver uma maneira de ensinar História na qual o conhecimento histórico
escolar – construído ativamente pelos discentes com a mediação do professor de História –
possibilite ao discente uma aprendizagem histórica significativa. Nessa perspectiva, Caimi
(2008, p. 143-144) assevera que:

Aprender a historiar ou aprender o ofício dos historiadores não significa almejar que
o estudante se torne um pequeno historiador, até porque as finalidades do trabalho
do historiador, ao produzir conhecimento histórico, são distintas das finalidades do
trabalho do professor ao ensinar história. [...] Assim, ensinar o ofício do historiador
consistiria em construir com os alunos uma bagagem conceitual e metodológica que
lhes permitisse compreender (e utilizar em certo nível de complexidade) os
instrumentos e procedimentos básicos da produção do conhecimento histórico.

De certo, o trabalho didático com a pesquisa histórica na Educação Básica possibilita


ainda ao estudante o desenvolvimento de importantes competências cognitivas da
epistemologia da História, ainda que de forma incipiente, tais como compreensão,
interpretação, argumentação, análise, formulação de hipóteses, crítica documental e
construção narrativa.
O trabalho com o ensino de História Local em articulação com a pesquisa histórica é
proposto aqui devido às possibilidades que são dadas ao estudante para a valorização de seu
cotidiano, com a identificação de si mesmo e com a comunidade na qual está inserido, além
da compreensão crítica de sua realidade. Para Schmidt e Garcia (2003, p. 232), o trabalho
metodológico com temas da História local é:

[...] uma forma de abordar a aprendizagem, a construção e a compreensão do


conhecimento histórico, a partir de proposições que tenham a ver com os interesses
dos alunos, suas aproximações cognitivas e afetivas, sua vivência cultural, com as
possibilidades de desenvolver atividades vinculadas diretamente com a vida
cotidiana, entendida como expressão concreta de problemas mais amplos.

Dessa forma, ao construir conhecimento histórico escolar de temas relacionados à


sua localidade de vivência cotidiana, acredita-se que o discente da Educação Básica passa a
ter condições de se identificar como sujeito histórico que possui um papel dentro da sociedade
através do exercício da cidadania crítica. Do mesmo modo, o estudante pode perceber que a
realidade apresentada à sua frente não é algo natural, pronta e acabada, mas construída
historicamente e passível de transformações pelos sujeitos compreendidos nela que, inclusive,
ele próprio faz parte. Todavia, ainda de acordo com Schmidt e Garcia (2003, p. 231):

É importante observar que uma realidade local não contém, em si mesma, as chaves

77
de sua própria explicação. Ademais, ao se propor o ensino de História Local como
indicador da construção de identidades, não se pode esquecer de que, no processo de
mundialização que se vive é absolutamente indispensável que a construção de
identidades tenha marcos de referência relacionais, os quais devem ser conhecidos e
situados: o local, o regional, o nacional, o latinoamericano, o mundial [...]

Nesse sentido, as peculiaridades que caracterizam a História local, bem como as


ambiguidades existentes em torno de sua discussão teórica, levam-nos a tomar os cuidados
necessários ao utilizarmos esse gênero historiográfico, que possui temática, objetivos e métodos
próprios (DONNER, 2012, p. 223) no processo de ensino e aprendizagem de História.
Na cidade de Barra do Corda16, Estado do Maranhão, podemos encontrar um
exemplo interessante de trabalho com a História Local por meio de um fato histórico de
bastante relevância social na contemporaneidade. Trata-se do Conflito de Alto Alegre, uma
revolta ocorrida em 13 de março de 1901 do povo indígena da etnia Tenetehara-Guajajara
contra os religiosos capuchinhos da missão catequética de São José da Providência, também
chamada de Alto Alegre, localidade pertencente ao município barra-cordense17 àquela época.
Dezenas de pessoas não indígenas foram mortas no confronto, incluindo onze missionários
católicos da Ordem dos Capuchinhos. Por outro lado, durante o processo de repressão oficial,
conduzido pela Polícia Militar do Estado do Maranhão, centenas de indígenas, dentre
crianças, idosos e mulheres, foram assassinados.
No caso específico do Conflito de Alto Alegre, o trabalho com a História Local como
estratégia de ensinar História possibilita ainda outro importante aspecto relacionado ao
processo de produção do conhecimento histórico escolar: dar visibilidade à versão indígena
sobre essa revolta. Desse modo, conforme assinalam Schmidt e Garcia (2003, p. 233),
pesquisas nesse sentido podem “também facilitar a construção de problematizações, a
apreensão de várias histórias lidas a partir de distintos sujeitos históricos, bem como de
histórias silenciadas, histórias que não tiveram acesso à própria História”.
Nesse sentido, salientamos que essa temática local ainda é muito desvalorizada – por
muitas das vezes ignorada – no âmbito do ensino de História nas escolas municipais de Barra
do Corda. Esse cenário acaba por contribuir, mesmo que de forma indireta, para a perpetuação
de uma memória social cristalizada, fundada em uma narrativa não indígena, que condena os
indígenas da etnia Tenetehara-Guajajara ao papel de vilões nessa história.

16
Barra do Corda é um município do Estado do Maranhão, distante 450 km da capital São Luís, que fica
localizado na mesorregião Centro Maranhense, mais especificamente na microrregião do Alto Mearim e Grajaú,
em destaque na figura 3. Sua população é estimada em 88.212 habitantes (IBGE, 2019). De acordo com o Censo
Demográfico do IBGE em 2010, o município possuía 3.432 indígenas das etnias Tenetehara-Guajajara e
Canelas, representando pouco mais de 4% da população total do município.
17
Barra-cordense ou cordino é o gentílico do natural do município de Barra do Corda – MA.

78
Vivência metodológica da pesquisa histórica com os discentes da turma de 7º ano A da
escola Unidade Integrada Enoc Vieira

Tendo em vista tais problemáticas relacionadas ao tema do Conflito de Alto Alegre,


e, considerando os pressupostos teóricos discutidos neste texto quanto à prática da pesquisa
histórica como metodologia de ensino de História Local, desenvolvemos no segundo semestre
letivo de 2018 uma experiência metodológica nesse sentido com os estudantes da turma de 7º
ano A da escola Unidade Integrada Enoc Vieira18, em Barra do Corda.
A turma em questão era constituída no início de 2018 por trinta e seis discentes, dos
quais dezessete aceitaram participar da experiência didática com a pesquisa histórica sobre a
história do Conflito de Alto Alegre. A faixa etária desses estudantes varia entre doze e treze
anos de idade, e a situação econômica das famílias dos discentes participantes mostra-se
preocupante. Das dezessete famílias, oito (47%) possuem renda mensal inferior a um salário
mínimo; quatro (23%) com renda de um salário mínimo; outros quatro (23%) têm renda em
torno de dois salários mínimos; e somente um (6%) dispõe de uma renda financeira superior a
dois salários mínimos. Além disso, o benefício social do programa federal Bolsa Família
atende a família de quatorze (82%) discentes, sendo que em alguns casos essa é a principal
fonte de renda mensal.
Em se tratando do aproveitamento cognitivo e da postura dos estudantes frente às
aulas de História, alguns problemas importantes caracterizavam essa turma. Em suma, são
problemas de natureza disciplinar, cognitiva e de interesse dos discentes, na qual a maioria
deles demonstrou, desde o início do ano letivo de 2018, grandes dificuldades de compreensão
e aprendizagem dos conteúdos históricos trabalhados em sala de aula. Em decorrência disso,
esses estudantes acabavam encarando o conhecimento histórico como algo sem sentido para
suas vidas, além de não se perceberem como sujeitos históricos.
Diante dessas problemáticas, procuramos envolver os discentes de uma maneira ativa
no processo de ensino e aprendizagem histórica por meio da pesquisa histórica como
metodologia de ensino de História Local. Desse modo, o Conflito de Alto Alegre serviu de
conteúdo base para essa investigação histórica, sendo utilizadas algumas das técnicas e
métodos do ofício do historiador, adaptada didaticamente à realidade da Educação Básica.
Durante essa experiência desempenhei a função de professor-pesquisador da turma, mediando
18
A escola pública Unidade Integrada Enoc Vieira, localizada na Rua Rio Purus, N.º 65, bairro Araticum, na
cidade de Barra do Corda, Estado do Maranhão, é uma instituição de ensino pertencente à rede municipal e que
oferta atualmente cursos de Educação Básica, nos níveis Infantil e Fundamental – Anos Iniciais e Anos Finais,
para um total de 604 discentes durante os turnos matutino e vespertino.

79
e orientando didaticamente esses discentes.
Nesse contexto, assimilamos como um dos pilares para a reflexão desse trabalho as
orientações de Schmidt e Garcia (2003, p. 225), que nos apresentam um percurso didático de
como desenvolver essa estratégia de ensino e aprendizagem em História:

Os passos nesta metodologia seriam: o conhecimento sobre o estado atual da questão


ou do discurso existente sobre o tema; a colocação de novas questões a partir de
problemáticas da atualidade, da cultura e dos interesses dos alunos; a formulação de
hipóteses; a análise das fontes disponíveis; o trabalho com as fontes e a formulação
de resultados.

Dessa maneira, visando contribuir para o desenvolvimento de uma aprendizagem


histórica significativa, os estudantes da turma de 7º ano A tiveram a oportunidade de
vivenciar algumas das etapas procedimentais da pesquisa histórica, tais como a realização de
entrevistas de História Oral com sujeitos sociais da cidade de Barra do Corda; análise crítica
de fontes históricas; e construção de narrativas históricas sobre o tema do Conflito de Alto
Alegre. Tomando como base as indicações de Schmidt e Garcia (2003) acima, estabelecemos
as etapas do percurso metodológico de nossa pesquisa conforme exposto no quadro a seguir:

Quadro 1 – Etapas metodológicas da pesquisa


PRODUÇÃO REQUISITADA AOS CARGA
AÇÕES
ESTUDANTES HORÁRIA
Discussão sobre a história do Conflito de Produção textual ou não textual
1. 02h
Alto Alegre (desenhos, músicas, poemas etc.)
Oficina de elaboração do roteiro da Produção de perguntas para a
2. 04h
entrevista de História Oral composição do roteiro
Entrevista de História Oral com um
Registro dos depoimentos dos
3. indígena, uma eclesiástica católica e um 04h
entrevistados, e relato da experiência
civil não indígena
Construção de uma narrativa histórica
Oficina de análise crítica das entrevistas do Conflito de Alto Alegre levando em
4. 06h
de História Oral consideração a interpretação das
entrevistas como fontes históricas
Fonte: Arquivo do pesquisador, 2018.

Durante a realização dessas etapas foi possível perceber mudanças de natureza


cognitiva e comportamental significativa nos discentes que participaram da pesquisa.
Considerando a aprendizagem histórica como “a consciência humana relativa ao tempo,
experimentando o tempo para ser significativa, adquirindo e desenvolvendo a competência
para atribuir significado ao tempo” (SCHMIDT, BARCA E MARTINS, 2011, p. 79) e, em
análise crítica dos dados produzidos pelos estudantes, bem como de suas posturas e
desempenho durante esse período, identificamos que essa estratégia contribuiu para uma

80
aprendizagem histórica significativa sobre o Conflito de Alto Alegre, com problematizações e
considerações acerca das motivações indígenas para essa revolta em 13 de março de 1901.

Considerações finais

Esta pesquisa teve como objetivo analisar as contribuições que a pesquisa histórica
como estratégia de ensino de História Local pode oferecer ao processo de aprendizagem
histórica dos estudantes na Educação Básica. Nesse sentido, enfatiza-se que o foco do
trabalho esteve direcionado para esse público, lançando reflexões sobre as potencialidades do
conhecimento histórico escolar para o desenvolvimento do pensamento crítico e do “sentir-se
sujeito histórico” (BITTENCOURT, 2017, p. 19). Com efeito, buscamos também possibilitar
aos discentes que compreendessem a História como algo inerente ao ser humano, que se faz
presente cotidianamente na dinâmica social, seja na realidade do seu bairro, cidade, estado ou
país e que, além disso, os ajudam na compreensão do mundo que está à sua volta como
resultado da ação dos sujeitos sociais, dentre os quais os próprios estudantes estão incluídos.
Essa experiência proporcionou resultados interessantes, que nos levou a apontar
algumas possibilidades reais de utilização da pesquisa histórica como estratégia didático-
metodológica de ensino de História Local. No âmbito do Ensino de História constatamos que
o processo de aprendizagem histórica foi facilitado devido à participação ativa dos estudantes
nas práticas procedimentais da investigação histórica. Diante disso, possibilitou-se também
aos mesmos dominarem, ainda que de maneira básica, alguns dos métodos e competências
cognitivas que envolvem a História, tais como a análise crítica de fontes históricas,
formulação de hipóteses e a interpretação histórica.
Portanto, a partir da análise dessa pesquisa e dos resultados alcançados, podemos
concluir que a utilização da pesquisa histórica como estratégia didático-metodológica de
ensino de História contribui de maneira efetiva para o desenvolvimento da aprendizagem
histórica do discente da Educação Básica.

Referências

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teoria de Jorn Rüsen. Universidade Estadual de Maringá, 2011.
BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes (org.). O Saber Histórico na Sala de Aula. 12. ed.
São Paulo: Contexto, 2017.
BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais:
81
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BRASIL. Ministério de Estado da Educação. Base Nacional Comum Curricular. 3° versão,
2017. Disponível em: < http://basenacionalcomum.mec.gov.br/a-base >. Acesso em 22 de
abril de 2019.
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metodológica para o ensino de história no ensino médio. SEEP, Curitiba-Paraná, 2008.
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Jorn Rüsen; tradução de Estevão de Rezende Martins. – Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 1ª reimpressão, 2010.
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BITTENCOURT, Circe (org.). O Saber Histórico na Sala de Aula. 12. ed. São Paulo:
Contexto, 2017.

82
APRENDIZAGEM HISTÓRICA E HISTÓRIA LOCAL: UMA EXPERIÊNCIA COM
ALUNOS DO ENSINO FUNDAMENTAL NA CIDADE DE PARAUAPEBAS – PA

Mayara Alves leite19;


Wellington Amarante20

Introdução

Nos últimos tempos as pesquisas voltadas para o ensino de História têm se


multiplicado rapidamente. Fato que pode ser observado pelo amplo número de publicações
acadêmicas na área. Parte significativa desses trabalhos tem se preocupado com a
aprendizagem histórica. Esse conceito tem desfrutado um papel de destaque nos debates e
estudos no campo do ensino de História.
Ao refletirem sobre aprendizagem histórica, as pesquisas voltadas para o ensino de
História têm dado uma especial atenção aos discentes e às suas vivências. Eles são vistos
como detentores de múltiplos saberes, dotados de historicidade e capazes de refletir sobre
suas experiências temporais e utilizá-las em suas vidas práticas.
A aprendizagem histórica é caracterizada pelo alemão Jörn Rüsen como “[...]o
processo mental de construção de sentido sobre a experiência do tempo através da narrativa
histórica, na qual as competências para tal narrativa surgem e se desenvolvem” (RÜSEN,
2010, p.43), ou seja, um movimento em que a o sujeito amplia suas experiências do passado,
dar sentido e em seguida dar significado a elas.
De acordo com Rüsen, no aprendizado histórico ocorre a apropriação da História, ou
seja, um acontecimento do passado “torna-se uma realidade da consciência, torna-se
subjetivo”, sendo ele um desenvolvimento de consciência que ocorre entre dois pontos, “de
um lado, um dado objetivo da mudança temporal do homem e de seu mundo no passado. De
outro, um sujeito determinado, uma autocompreensão e uma orientação de vida no tempo”
(RÜSEN, 2010, p.106).
Peter Lee nomeia essa interpretação e compreensão do passado como literácia
histórica. Segundo o autor, a partir do momento em que o discente consegue significar o

19
Graduada em História pela UFT. Mestre em Ensino de História pelo PPGEHIST/UFT. Atua como professora
da rede estadual do Tocantins.
20
Graduado, mestre e doutor em História pela UNESP/Assis. Atua como professor na UFU.

83
passado obtendo algum conhecimento em torno dele e utilizando esse conhecimento em sua
vida, podemos dizer que esses estudantes são historicamente letrados (LEE, 2008, p.11).
De forma complementar, a história local vem se mostrando uma temática promissora
para a efetivação de um processo de ensino e aprendizagem significativo. Ao ser trabalhado os
aspectos relacionados ao contexto local dos discentes eles poderão compreender melhor os
processos históricos, refletindo historicamente e se percebendo como parte substancial da
história. Quando o docente consegue “cativar seus alunos com assuntos que lhe chamam a
atenção, com temáticas que o fazem refletir e associar o seu dia-a-dia com os conteúdos
escolares”, os assuntos “tornam-se mais compreensíveis. Desta forma, os alunos passam a
gostar de aprender história”. (PAIM & PICOLLI, 2007, p.118)
Nesse sentido a história local pode ser uma aliada no desenvolvimento da
aprendizagem histórica. Pois ao refletir sobre suas vivências, relacionando-as com os eventos
ocorridos em sua comunidade e fora dela, eles estarão instrumentalizados para pensar
criticamente mediante suas ações na sociedade.
De acordo com Maria Auxiliadora Schmidt e Marlene Cainelli esse interesse pela
história local é motivado “[...] pela intenção de recuperar a história das sociedades como um
todo, a história das pessoas comuns” (SCHMIDT e CAINELLI, 2009, p. 137). Para trabalhar
com história local é importante que o docente possibilite aos estudantes atividades
diferenciadas dando ênfase à prática investigativa, para que ele consiga problematizar e
refletir sobre aspectos relacionados à sua localidade e relacioná-los com a realidade mais
distante. Nessa esteira Selva Guimarães Fonseca destaca que

O local e o cotidiano da criança e do jovem constituem e são constitutivos de


importantes dimensões do viver. Podem ser problematizados, tematizados e
explorados no dia a dia da sala de aula, com criatividade, a partir de diferentes
situações, fontes e linguagens (FONSECA, 2009, p. 125).

Essa característica da história local é bastante significativa para o ensino de História,


ao passo que pode proporcionar aos discentes a compreensão do meio em que estão inseridos,
fazendo com que eles se percebam como parte substancial de sua comunidade. De modo que
o uso da história local pode “promover uma reflexão analítica da História, pois proporcionará,
aos estudantes, a compreensão de que o conhecimento histórico é fruto das experiências
humanas”, e com isso “possibilitar o desenvolvimento da aprendizagem histórica” (LEITE,
2020, p. 28).
Acreditamos que a história local pode ser uma importante ferramenta para o
desenvolvimento da aprendizagem histórica. Seu aprimoramento é fundamental para o

84
estudante ao passo que ele consiga promover a aproximação da experiência temporal às suas
experiências particulares.
Esse texto é fruto de dissertação de mestrado defendida no âmbito do Mestrado
Profissional em Ensino de História – ProfHistória. A dissertação buscou compreender a
importância da história local no desenvolvimento da aprendizagem histórica de discentes de
uma turma do 8º ano do ensino fundamental, em Parauapebas, Estado do Pará, no ano de
2018. A investigação foi composta por oficinas com técnicas de entrevista, estudo de texto,
análise de poemas e entrevistas. Para a coleta de dados, utilizamos três questionários com
objetivos distintos. O primeiro, socioeconômico, foi para traçar o perfil da turma; o segundo,
com perguntas abertas, para compreendermos a visão dos discentes sobre aspectos
relacionados à pesquisa; e o terceiro, para avaliarmos os resultados da pesquisa.
O objetivo era analisar como se desenvolve a aprendizagem histórica dos estudantes
a partir da utilização da história local. Nossa proposição era aproximar o ensino de História ao
contexto dos estudantes, pois ao estudar aspectos relacionados à localidade em que estão
inseridos, articulando presente, passado e futuro, eles conseguiriam pensar sua importância
enquanto sujeitos históricos, compreendendo-se como parte substancial para a construção
social de sua comunidade e o fortalecimento de sua identidade local, percebendo-se enquanto
agente transformador de seu grupo.

Relato de experiência

O desenvolvimento da pesquisa ocorreu no segundo semestre de 2018 porque a


temática do projeto precisava estar em consonância com o conteúdo programado para a série
(8º ano). As atividades com os discentes ocorreram em 10 encontros, com o tempo estimado
de 90 a 130 minutos cada, entre os dias 19 de novembro e 14 de dezembro. A pesquisa
desenvolveu-se na escola Municipal de Ensino Fundamental Mário Lago, localizada na
periferia de Parauapebas, no bairro Califórnia, que faz parte do Complexo VS-10 (Vicinal
Secundária 10). Como já mencionado, a investigação foi composta por diversas atividades,
porém, nos atentaremos para o principal instrumento de coleta de dados utilizado, os
questionários. Ao todo foram três, o primeiro, socioeconômico para traçar o perfil da turma,
um segundo com perguntas abertas para analisarmos o conhecimento prévio dos discentes e o
último com perguntas abertas para avaliarmos os resultados da pesquisa.
A turma pesquisada possuía 30 alunos matriculados. O questionário 1, de caráter
socioeconômico, foi respondido por 27 estudantes, sendo 16 meninas (60%) e 11 meninos

85
(40%). A partir do questionário verificou-se que a faixa etária dos alunos estava entre 12 e 16
anos. Todos os estudantes declaram nunca ter trabalhado. A maioria, 17 (63%), se autodeclara
parda, em seguida, vem os que se autodeclaram brancos, seis (22%), e por fim, amarelos,
quatro (15%). Entre as meninas, 11 (68%) delas se autodeclaram pardas, quatro (26%)
brancas e uma (06%) amarela. Já os meninos, cinco (46%) se autodeclaram pardos, quatro
(36%) amarelos e dois (18%) brancos.
Identificamos que 13 (49%) discentes nasceram no estado do Pará, e que os outros
são 12 (44%) do estado do Maranhão e dois (7%) do Tocantins. Entre os paraenses, apenas
dois (16%) são nascidos em Parauapebas. Sendo notável a diversidade regional entre eles. O
questionário 2 foi respondido por 29 discentes. Para fazer o levantamento do conhecimento
prévio dos estudantes foram elaboradas oito questões relacionadas ao ensino de História, a
história local e a influência da História na vida prática dos discentes.
Um dos questionamentos feitos foi “por que estudar História?”. Com isso queríamos
compreender o que os estudantes concebiam como função do ensino de História. A partir dessa
primeira pergunta conseguimos observar distintas respostas, que dividimos em cinco grupos.
No primeiro grupo, formado por mais da metade dos discentes (59%), eles
demostram um entendimento de que a função da história é puramente aprender sobre o
passado. Em suas palavras o estudo da disciplina serve para “entender o passado, e saber mais
ou menos o que aconteceu” (A.G.) 21, para conhecer “[...] coisas que aconteceu antes de você
nascer”, por que precisamos “[...] saber sobre a história do nosso passado ou algo assim”.
O segundo grupo (15%) indica, em suas respostas, uma relação entre o estudo da
História e o tempo presente. Segundo eles estudar História “nos ajuda a compreender melhor
o mundo em que vivemos” (K.A.), para “sabermos mais sobre o mundo em que vivemos, e
aprender sobre nossos antepassados” M.F.).
Um outro grupo (12%) apontou que a razão para estudar História está ligada às
habilidades necessárias a serem adquiridas durante a vida escolar. De acordo com eles
“quando estiver fazendo outra série” vão precisar “saber história e também para aprender”
(P.C.), pois a disciplina irá ajudar quando estiverem “mais avançados” e “porque todos temos
que saber “(K.S.).
O quarto grupo (7%) faz associação da História com acontecimentos grandiosos
praticados por grandes nomes, os ditos “heróis”. Nesse sentido, para eles, a razão de ser da
disciplina é “[...] ensinar atos históricos” sobre pessoas “muito importantes que existiram no

21
Para preservar o anonimato dos discentes eles serão identificados apenas pelas iniciais de seus nomes.

86
passado[...]” (E.M.), ajudando a “[...] compreender o passado e as atitudes das pessoas
importantes que influenciaram nosso futuro”
E por fim o último grupo (7%) sugere que a História tem um caráter generalizante.
Pois o motivo para estuda-la é para “saber mais sobre o nosso país e o mundo” (L.B.), além de
possibilitar que aprendam mais “sobre nossos antepassados e sobre nosso mundo”.
Ao analisar as respostas dos discentes observamos que foram apontadas distintas
funções para a História, tais como: aprender sobre o passado (grupo 1), compreender o
presente (grupo 2), adquirir habilidades esperadas nas séries afins (grupo 3), ajudar na
compreensão de fatos históricos e de sujeitos importantes do passado (grupo 4), aprender a
história do país e do mundo (grupo 5).
Observamos que a concepção da finalidade da História entre os estudantes
pesquisados está diretamente associada à ideia de estudo do passado, evidenciando a
dificuldade que eles têm em relacionar o passado estudado com o presente experienciado. Isso
não significa que eles não possuem suas interpretações históricas, mas que elas precisam ser
aperfeiçoadas. Pois ao longo da vida o sujeito adquire essa interpretação a partir de sua
interação nos diversos espaços. Nesse sentido, cabe ao docente desenvolver metodologias
capazes de desenvolver o saber histórico escolar dos discentes, transformando o
conhecimento acadêmico em conhecimento escolar, ou seja, fazer a ligação entre o fazer
histórico e o fazer pedagógico.
Em algumas respostas notamos que os discentes tentaram fazer uma ligação entre os
tempos históricos, principalmente o grupo dois. Assim concebemos que a relação “[...]entre os
tempos históricos, passado e presente, deve ser desenvolvida de modo que os estudantes
entendam que existe um saber histórico que é desenvolvido a partir da necessidade da
orientação temporal.” (LEITE, 2020, p. 85). E que sejam capazes de compreender e dar
sentido aos processos históricos relacionando-os com suas vivências.
Nas perguntas que se seguiram desse questionário as respostas dos estudantes revelam
um conhecimento histórico adquirido ao longo de suas vidas e que não deve ser ignorado pelo
docente. Todavia ficou claro que os estudantes apresentam dificuldades quando precisam dar
sentido às experiências temporais, interpretá-las e a partir delas, orientar-se no tempo.22
Após a aplicação do questionário 2, foram feitas algumas intervenções voltadas para
o ensino da história local objetivando o desenvolvimento da aprendizagem histórica dos
discentes. Discutimos um texto sobre história local, foram feitas duas oficinas com técnicas de

22
A análise completa do questionário está disponível na dissertação.

87
entrevista (foram planejadas duas entrevistas para compor a pesquisa, uma extra classe, com
um grupo menor de estudantes, e a outra em sala de aula com a presença da turma toda),
analisamos dois poemas sobre Parauapebas, foram feitas duas entrevistas com moradores
mais antigos do município, conduzidas pelos estudantes e sob nossa supervisão, a primeira
ocorreu extraclasse com um número reduzido de discentes, em seguida foi realizada uma roda
de conversa em sala de aula para a socialização da atividade com os estudantes que não
participaram, posteriormente ocorreu a segunda entrevista em sala de aula com a presença de
27 alunos. E por último foi aplicado o questionário 3 para análise dos resultados da pesquisa.
Com objetivo de averiguarmos os frutos das intervenções feitas com os estudantes
durante a pesquisa, o instrumento foi estruturado com seis perguntas abertas sobre o ensino de
História, sua relação com suas vidas práticas e a história local.
O questionário 3 foi iniciado com a pergunta “Você se considera importante para a
História? Justifique sua resposta” iniciamos o questionário 3 com o objetivo de verificar se
houve mudanças na concepção dos discentes sobre sua importância em relação à história.
Essa mesma pergunta foi feita no questionário 2 e as respostas obtidas se polarizaram
em sim e não. A maioria dos discentes (65%) responderam que se consideram importantes
para a História, porém em suas justificativas se direcionaram para a ideia de sujeitos
históricos associados a grandes personagens e seus feitos. Condicionando a noção de
pertencimento à história, a ideia de fazer algo considerado importante para poder “entrar”
para a história no futuro, ou seja, o que definiria ser importante ou não, seria o fato de se
tornar um “presidente”, fazer alguma coisa “relevante”. E a partir daí, ser reconhecido e,
quem sabe, no futuro fazer parte da história. Como aponta o discente B. R., ele é importante
porque “eu ainda posso ser muito importante para o nosso futuro, pois um dia essa nossa
geração vai querer saber sobre mim”, assim como F. S. que em sua justificativa explica que
“vai que no futuro eu possa ser um presidente, uma pessoa importante para a sociedade”.
Nas respostas dos estudantes há indícios de uma ideia da História como uma
disciplina responsável pelo estudo do passado. Que os sujeitos históricos eleitos por eles “são
aqueles responsáveis por eventos grandiosos, na qual, segundo alguns discentes, têm
condições de se tornar relevante para ela, pessoas importantes, como um presidente, ou fazer
algo revolucionário” (LEITE, 2020, p. 94). Os discentes que declararam que não se
consideravam importantes para a história (35%) seguiram essa mesma lógica. De acordo com
suas narrativas, não são importantes para a História porque “[...] não fizeram nada para a
história” (P.S.), “[...] ainda não fiz nada para marcar ou ficar na história, como pessoas
importantes que fizeram a diferença” (K. P.).

88
O que distingue suas respostas, além do não, em comparação aos que responderam
sim, foi a inexistência da ideia de que se fizessem algo considerado grandioso poderiam se
tornar parte da História. Esses discentes não esboçaram a ideia de que poderiam:

Se tornar “personagens importantes” se realizassem algo que os qualificassem como


sujeitos históricos. Esse grupo entende a História como algo à parte de sua vida, e
não percebem que suas escolhas dependem deles próprios, e são elas que os tornarão
sujeitos de sua própria história. (LEITE, 2020, p. 94)

Após as atividades propostas durante a pesquisa identificamos uma mudança na


percepção dos discentes em comparação com as respostas obtidas na mesma pergunta no
questionário 2. No questionário 3 ao se depararem com a pergunta “Você se considera
importante para a História? Justifique sua resposta” não houve a mesma polarização entre sim
e não. Prevaleceu o “sim” como resposta.
De acordo com os estudantes, eles se consideram importantes “pois assim que
nascemos já fazemos parte e começamos nossa história e se as pessoas não existissem a
história não teria importância” (J. N.), “Sim, porque toda pessoa que vive é importante[...]”
(E. A.), e “todo ser humano a partir do momento que passa a existir ele já começa uma
história (a sua própria) e toda história é importante, cada uma com sua importância” (T. T.).
Um dos discentes justificou sua resposta de forma interessante: “Sim, pois pelo que eu
entendi a história acontece quando nós agimos, quando uma história tá acontecendo nos
estamos no ambiente, nós estamos vivendo a história. Então sim, nós somos muito
importantes para a história” (M. E.).
Ao compararmos os questionários 2 e 3 e notamos uma alteração na narrativa de M.
E., com a sinalização de uma aprendizagem significativa em relação à proposta da pesquisa.
Podemos observar no quadro abaixo:

Quadro 1 – Comparação entre respostas obtidas nos questionários 2 e 3

Questionário-2 Questionário-3
6) Você se considera importante para a 1) Você se considera importante para a história? Justifique sua
História? Justifique sua resposta. resposta.

Talvez, acho que sim por que se muda o Sim, pois pelo que eu entendi a história acontece quando nós agimos,
passado o presente fica sem sentido, ou quando uma história tá acontecendo nos estamos no ambiente, nós
seja, eu não iria existir se o passado fosse estamos vivendo a história. Então sim, nós somos muito importantes
outro (M. E.) para a história (M. E.)

Fonte: Elaborado pelos autores, 2018.

Em suas palavras, é notável que o discente consegue perceber que a História é um


produto da ação das pessoas no tempo – passado, presente, futuro – e que é o fato de estarmos

89
atuando em nosso contexto que nos faz pertencer à História, e não os feitos considerados
“importantes”.
Desse modo, como aponta Rüsen, a aprendizagem histórica se torna efetiva quando
desenvolve “[...] a experiência do passado humano, aumento da competência para a
interpretação histórica dessa experiência e reforço da capacidade de inserir e utilizar
interpretações históricas no quadro de orientação da vida prática” (RÜSEN, 2007, p. 110) .
Notamos que após as atividades propostas durante a investigação ocorreu uma
mudança na percepção dos discentes em relação aos questionamentos da pesquisa. As
intervenções incitaram os estudantes a pensarem sobre as problemáticas trabalhadas e
refletirem sobre a função da História e a relação com suas vidas. Sabemos que o aprendizado
não ocorre de forma homogênea, pois cada sujeito carrega consigo uma bagagem resultante
de suas vivências nos diversos espaços sociais. Por isso a importância de trabalhar a história
local, uma vez que ela possibilita aos estudantes reconhecer sua localidade como detentora de
historicidade e que pessoas comuns como eles também fazem parte da História. E assim terem
uma referência para pensar historicamente.
Ao analisar as respostas de M. E., compreendemos que a utilização de diferentes
linguagens e metodologias em sala de aula se mostra importante para o desenvolvimento do
processo de ensino/aprendizagem. Nesse sentido, a história local permite que os discentes
estabeleçam conexões entre a História vivida e a História ensinada, resultando no
desenvolvimento de sua aprendizagem histórica.
A partir do momento que o educando se percebe como agente ativo da História, ele
passa a demonstrar mais interesse pela disciplina. É o caso do estudante M. S. que geralmente
se mantinha disperso durante as aulas, muitas vezes se recusava a desenvolver as atividades
escolares propostas e por isso, sempre era adjetivado por outros professores como um discente
“problema” que “não quer nada”. Quando começaram as intervenções da pesquisa,
inicialmente, M. S. ficou quieto observando sem esboçar vontade de participar. Com o passar
dos dias, ele começou a interagir de forma positiva revelando-se bastante empenhado com as
atividades propostas.
No questionário 2, na pergunta “Você se considera importante para a História?
Justifique sua resposta”, embora M. S. tenha apontado que “sim”, não explicou o porquê. Já
no questionário 3, ao ser interrogado novamente sobre isso, ele elaborou melhor sua arguição
com indicações de que adquiriu um conhecimento em decorrência do que foi trabalhado
durante a pesquisa, pois em sua narrativa afirma que: “Sim a história é importante para todos
nós, não só para prefeitos, reis, heróis e etc.” (M. S.).

90
Nessa perspectiva, entendemos a relevância de um ensino de História que se
aproxime da realidade dos discentes, de modo que as várias vozes dos diversos sujeitos que
fazem parte da história não sejam silenciadas. De acordo com Geraldo Horn e Geyso
Germinari, não podemos limitar os estudantes a um ensino que enfatize apenas “os segmentos
dominantes da sociedade”. O conhecimento histórico escolar “tem o desafio de superar tal
obstáculo, objetivando uma noção mais ampla” garantindo uma proximidade com a realidade
da “maioria dos alunos brasileiros, oriundos de famílias pobres” (HORN & GERMINARI,
2006, p. 124)
Na tentativa de avaliarmos as atividades propostas pela pesquisa fizemos o seguinte
questionamento aos estudantes: “O que você achou da experiência de estudar sobre a história
de Parauapebas através de poemas, cordel e entrevistas?”. Percebemos que as avaliações
foram positivas, de acordo com os discentes chamou mais atenção de todo mundo da sala
porque “[...] foi algo diferente do nosso dia-a-dia, saímos mais da nossa rotina e foi
maravilhoso” (K. A.)”, e “muito legal, pois é uma forma divertida e interessante de aprender a
história local” (M. F.).
Notamos que os discentes caracterizaram as atividades positivamente como
“interessantes”, “muito legal”, “animado” entre outros. As atividades didáticas desenvolvidas
no decorrer da pesquisa chamaram atenção dos discentes por sair da rotina. Sabemos que,
infelizmente, em muitos momentos, é difícil evitar tal situação, principalmente se levarmos
em consideração os problemas enfrentados diariamente nas escolas públicas brasileiras, nas
quais faltam materiais básicos de apoio para o bom desenvolvimento do processo de
ensino/aprendizagem. Mas isso não significa que seja impossível proporcionarmos aulas mais
dinâmicas capazes de despertar o interesse dos discentes.
Nos últimos tempos, estamos presenciando uma renovação acelerada do público
escolar. São jovens cada vez mais conectados com as tecnologias digitais, que são diariamente
bombardeados por novas informações em tempo real. Nesse sentido, os docentes devem se
adaptar às mudanças e às distintas realidades dos estudantes proporcionando-lhes
metodologias capazes de desenvolver seu conhecimento histórico. O ensino de História
precisa ser repensado para que consiga cumprir um de seus principais papéis que é a formação
de sujeitos críticos e ativos na sociedade em que vivem.
Precisamos proporcionar um ensino de História significativo para os discentes, que
estimule a aprendizagem histórica e desperte neles um olhar mais crítico sobre sua realidade.
Isso refletirá em tomadas de decisões conscientes e responsáveis, os tornando capazes de
atuar positivamente em sua comunidade.

91
Considerações finais

Nesse texto buscamos trazer uma discussão sobre a relação entre a aprendizagem
histórica e a história local, e a contribuição dessa conexão para o ensino de História. Tivemos
como base a pesquisa ocorrida em 2018 em que utilizamos a história local como temática para
investigar o desenvolvimento da aprendizagem histórica dos discentes. Tivemos como
hipótese que o ensino da história local pode ser uma ferramenta importante para o
desenvolvimento do aprendizado histórico dos discentes.
Uma das questões norteadoras de nosso trabalho foi a preocupação referente ao
entendimento dos discentes no que diz respeito a relação entre o ensino de História com suas
vidas práticas. E o que fazer para que esses sujeitos compreendessem a existência dessa
relação e seu significado para suas vivências. Nesse sentido procuramos, por meio de diversas
atividades, promover uma reflexão nos discentes sobre o papel deles na História e a
importância de pensar os tempos históricos em consonância com suas vivências. A pesquisa
nos fez perceber o quanto é necessário compreender e valorizar o conhecimento prévio dos
estudantes e suas experiências. Assim, o docente conseguirá elaborar estratégias que atenda às
necessidades dos discentes.
O trabalho com a história local no processo de ensino aprendizagem se mostrou
significativo para o desenvolvimento da aprendizagem histórica, pois permite a aproximação
da realidade dos docentes e discentes que são sujeitos do seu meio e fazem parte das relações
sociais da localidade. A questão não é apenas promover o estudo da história local, visando o
entendimento de aspectos históricos relacionados à localidade e sua ligação com o tempo
presente, mas de proporcionar uma reflexão crítica sobre o contexto dos estudantes fazendo
com que eles se identifiquem como sujeitos históricos capazes de atuarem na sociedade de
forma ativa.
O ensino de História e a aprendizagem histórica devem ser compreendidos como um
“processo de compreensão da história que vai além de um acúmulo de eventos”, e “como um
processo dinâmico e vivo desenvolvendo a compreensão dos alunos sobre os processos
históricos requer uma leitura dos acontecimentos que vão além das técnicas de decorar datas
ou episódios” (CAINELLI & SANTOS, 2014, p. 170), é imprescindível que eles sejam
provocados a refletir sobre os acontecimentos.
Ao longo de nosso trabalho podemos perceber que a história local se mostra
promissora para o desenvolvimento da aprendizagem histórica dos discentes, ao contemplar

92
as particularidades da localidade em que eles estão inseridos sem desassociar dos
acontecimentos nacionais e globais, com isso, propicia aos educandos uma reflexão sobre o
passado e o presente e perspectivas sobre o futuro.
A princípio, a maioria dos discentes demonstraram o pensamento de que a função da
disciplina era aprender sobre o passado, sem relação com o presente, e por conseguinte, com
suas vidas práticas. Além de não se considerarem sujeitos históricos, segundo eles, por não
terem feito nada de “importante” para poder “entrar” para a história. A concepção da
finalidade da História entre os estudantes estava relacionada à noção de estudo do passado,
apartado do presente vivenciado por eles. Mesmo aqueles que sinalizaram a percepção da
relação da História com suas vidas, não evidenciaram o entendimento do papel transformador
que a disciplina pode exercer. Notamos que os discentes apresentavam dificuldade em
significar as experiências temporais, analisá-las e, alicerçados nesse movimento, orientar-se
no tempo.
No decorrer de nossa investigação, percebemos que ao vivenciarem atividades
voltadas para a pesquisa sobre a história do município, os discentes demostraram perceber a
ligação entre passado, presente e futuro, assim como a relação da História com suas vidas.
As reflexões finais dos alunos apontam para a ideia de que pessoas comuns, como
eles, também são importantes e que podem construir suas histórias. A princípio, eles
associavam o conceito de sujeito histórico aos “heróis”, “reis”, governantes etc. E após a
realização das atividades eles apresentaram indícios de que compreenderam que todas as
pessoas são agentes e sujeitos da História.
Conseguimos identificar indícios de mudança na percepção dos estudantes em relação
ao questionário 2. Ao utilizarem os termos “toda pessoa”, “todo ser humano” e “já fazemos
parte” revela um entendimento de que são sujeitos pertencentes à História. E no caso específico
de M. E. observamos uma elaboração de ideia mais complexa, em que ela demostra compreender
que a História é um produto da ação das pessoas no tempo, e o que nos faz pertencer a ela são
nossas vivências. O sujeito “expressou em sua narrativa a relação entre experiência e
interpretação do tempo. Observamos que o sujeito constrói um sentido sobre a experiência
temporal, ou seja, há indícios de uma aprendizagem histórica.” (LEITE, 2020, p.100).
Observamos que para ocorrer uma aprendizagem significativa e capaz de incentivar a
reflexão dos discentes, é fundamental fazer uma ligação com o seu contexto e assim promover
problematizações que os possibilitem compreender a si mesmos e o mundo em que vivem. E a
partir disso instrumentaliza-los a produzir seu próprio conhecimento.

93
O docente deve utilizar distintas fontes de linguagem para que ocorra um ensino
capaz de instrumentalizar o estudante para elaborar seu próprio conhecimento. Não existe
uma receita pronta que indique o caminho para se chegar a um ensino de História de
qualidade, até porque vivemos uma realidade plural e diversa. Nós, educadores, precisamos
levar em consideração o perfil de nosso público para traçar o melhor percurso a ser seguido. O
que está a nosso alcance é refletirmos sobre esses caminhos e escolher o que melhor se adapta
à nossa realidade e cumpra o desafio de educar.
Em suma, entendemos que a utilização da história local se apresenta como uma
ferramenta relevante para o aprimoramento da aprendizagem histórica dos estudantes. Haja
vista que a valorização da realidade dos discentes pode resultar em importantes
problematizações, permitindo que a partir do conhecimento histórico, eles consigam
compreender a si mesmos e o mundo em que vivem.

Referências

CAINELLI, Marlene; SANTOS, Flávio Batista dos. O ensino de História local na formação
da consciência histórica: um estudo com alunos do ensino fundamental. Cadernos de
pesquisa: pensamento educacional. Curitiba. v. 9, n. 21, P.158-174 jan./abr.2014.
FONSECA, Selva Guimarães. Fazer e Ensinar História. Belo Horizonte: Dimensão, 2009.
HORN, Geraldo Balduíno; GERMINARI, Geyso Dongley. História local, arquivos
familiares e o ensino. In: ___. O ensino de história e seu currículo: teoria e método.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2006
PAIM, Elison Antonio; PICOLLI, Vanessa. Ensinar história regional e local no ensino médio:
experiências e desafios. História & Ensino: Londrina, 2007.
LEE, Peter. Educação Histórica, consciência histórica e literacia histórica. In: BARCA, Isabel
(org.) Estudos de consciência histórica na Europa, América, Ásia e África. Braga:
Uminho, 2008.
______. Em direção a um conceito de literacia histórica. Educar em Revista. Curitiba,
Especial, 2006. p. 131-150.
LEITE, Mayara Alves. Aprendizagem histórica e história local: uma experiência com
alunos do 8º ano sobre o ensino da história de Parauapebas – PA. Dissertação (Mestrado
Profissional em ensino de História – PROFHISTORIA) – Universidade Federal do Tocantins-
UFT, Araguaína, 2020.
RÜSEN, Jörn. História viva: teoria da história, formas e funções do conhecimento histórico.
Trad. Estevão de Rezende Martins. Editora Universidade de Brasília, 2010.
________. História Viva: Teoria da História: Formas e Funções do Conhecimento Histórico.
Tradução de Estevão de Rezende Martins. Brasília: Editora da Universidade de Brasília. 2007
SCHMIDT, Maria Auxiliadora e CAINELLI, Marlene. Ensinar História. São Paulo:
Scipione, 2009.

94
CONTAR A HISTÓRIA LOCAL ATRAVÉS DA ROUPA E DA MODA:
UMA PROPOSTA DE ENSINO E DE PESQUISA

João Quintino de Medeiros Filho23

Quando o português chegou


Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!
Fosse uma manhã de sol
O índio teria despido
O português.
(Oswald de Andrade, 1925)

Introdução

O presente tecido de fios-palavras e tramas-ideias decorre da possibilidade de


sistematizar propostas pedagógicas voltadas para o emprego da roupa e da moda no Ensino de
História, em relação aos conhecimentos concernentes aos invólucros vestimentares em tempos
e espaços próximos de nós, especialmente no ensino e na pesquisa da História Local. A
produção deste texto aconteceu logo após à participação no I Webinar História em Diálogo:
Ensino e Pesquisa – evento promovido pela Universidade Federal do Oeste da Bahia –, na
mesa virtual intitulada “Por outras escritas no Ensino de História”, com a fala denominada
“Vestindo/despindo a História: reflexões sobre roupa, moda e ensino”.
O poema modernista de Oswald de Andrade, logo acima, remete ao processo de
conquista da América, mormente à chegada dos conquistadores portugueses onde hoje tem-se
o território brasileiro. Sabemos que a vestimenta europeia foi utilizada pelo conquistador
como uma das estratégias de conquista, no que tange ao processo de ocidentalização
empreendido no Novo Mundo, que nele pretendeu edificar colônias feito apêndices da velha
Europa. Trabalhar, rezar, habitar e vestir como os cristãos europeus eram, decerto, os
comportamentos impingidos pelos colonizadores às populações colonizadas. Os versos da
epígrafe apresentam os dois movimentos – vestir e despir – como gestos de ida e volta,
relacionais e complementares, ou antinômicos e contraditórios, conforme a licença poética
permitiu ao autor e possibilita ao leitor.
Na ocasião supracitada – I Webinar História em Diálogo: Ensino e Pesquisa,

23
Graduado em História pela UFRN. Mestre em História pela UFCG. Atua como professor da UFRN, Campus de Caicó.

95
começou-se por discutir a antinomia vestir/despir como reunião de movimentos que se
relacionam, práticas culturais e ações dotadas de sentido, considerando o ato de vestir como
uma forma de linguagem. Procurou-se um diálogo entre a roupa e a moda com a História
Local, pensando em sua efetiva inserção como temática para os estudos desenvolvidos dentro
e fora da sala de aula. Da discussão dos conceitos indispensáveis para o trabalho com a
História da Roupa e da Moda no ensino, partiu-se para a apresentação das propostas de
atividades para serem implementadas nos níveis Fundamental e Médio da Educação Básica,
conforme mostram-se a seguir.

Conhecendo sobre a roupa e a moda

Pensamos que as práticas de cobrir e decorar o corpo são plenas de significados que
se inter-relacionam com as outras esferas da vida social, como a economia, a política e a
sociedade, carecendo, portanto, de serem estudadas pelos historiadores, podendo integrar
currículos e aparecer como temas de estudo em sala de aula. A preocupação com o vestir tem
longa data na vida da humanidade e se perde no obscuro dos tempos, surgindo nos relatos
bíblicos no momento da expulsão de Adão e Eva do Éden; enquanto as narrativas históricas
vão buscá-la na Pré-História, quando alguns dos primeiros homens das cavernas começaram a
agasalhar-se com as peles dos animais.
O envoltório corporal com o qual o ser humano construiu sonhos e idealizações ao
longo do tempo marcou profundamente as sociedades, ajudando no reconhecimento das
espacialidades e das temporalidades, pelo diálogo mantido entre a sua materialidade e os
sentidos que lhes foram dotados. Então, conforme as palavras impressas no livro do pintor
alemão Carl Köhler,

Para a humanidade, o vestir-se é pleno de um profundo significado, pois o espírito


humano não apenas constrói seu próprio corpo como também cria as roupas que o
vestem, ainda que, na maior parte dos casos, a criação e confecção das roupas fique
a cargo de outros. Homens e mulheres vestem-se de acordo com os preceitos desse
grande desconhecido, o Espírito do Tempo (1993, p. 57-58).

Para estudarmos sobre as questões atinentes à cobertura do corpo com próteses feitas
do produto da tecelagem, podemos começar refletindo sobre a função da roupa em seus
primórdios e para além deles. Afinal, por que o ser humano começou a se vestir? Visava
atender a quais necessidades? O que motivou homens e mulheres de priscas eras a revestirem
seus corpos com segundas peles?
Proteger-se, distinguir-se socialmente e seduzir aparecem nos textos dos

96
pesquisadores de História da Roupa e da Moda como sendo as possíveis motivações para a
invenção da roupa. Dos cuidados com a sobrevivência da espécie aos rituais de conquista e
sedução, passando pelas lutas de classes, lá está a roupa prestando serviços às diversas
experiências humanas, vividas, muitas das vezes, com os seus atores sociais vestidos, seja por
roupas, por adornos ou por pinturas.
A necessidade de oferecer ao corpo uma proteção contra o frio, o vento e os raios
solares está na base de todos os estudos que buscam elucidar os caminhos percorridos pelos
seres nascidos nus, que foram se vestindo e complexificando as formas, os modos e os
significados do vestir ao longo da história. Assim, vestir-se foi um imperativo da vida humana
no planeta, uma das necessidades básicas do homo sapiens para manter-se vivo, compreensão já
refletida pelo historiador português Antônio Henrique de Oliveira Marques, para quem “O
homem precisa, antes de tudo, de se alimentar, de se vestir e de arranjar abrigo” (1981, p. XVI).
Voltemos ao poema de Oswald de Andrade, onde a chuva exigia vestir-se e o sol
sugeria a nudez: a conotação dos versos alude à influência das condições climáticas nas ações
de cobrir e descobrir os corpos. Em verdade, o poema parece parodiar as reais intenções de
um e outro, como disfarces num jogo de espelhos, com a roupa vinculando-se aos interesses
do conquistador, cujo projeto era criar um Novo Mundo derivado do velho, como sua cópia,
com os seus estamentos e os seus lugares marcados.
A historiadora brasileira Mary Del Priore discorre sobre o princípio da atuação da
Igreja Católica na América Portuguesa, quando se associava a nudez à luxúria, sendo preciso
afastar os nativos do pecado vestindo-os. Suas palavras:

Desde o início da colonização lutou-se contra a nudez e aquilo que ela simbolizava.
Os padres jesuítas, por exemplo, mandavam buscar tecidos de algodão, em Portugal,
para vestir as crianças indígenas que frequentavam suas escolas: ‘Mandem pano para
que se vistam’, pedia padre Manoel da Nóbrega em carta aos seus superiores. Aos
olhos dos colonizadores, a nudez do índio era semelhante à dos animais; afinal,
como as bestas, ele não tinha vergonha ou pudor natural (DEL PRIORE, 2011, p.
17).

Discutindo o processo de conquista e colonização da América Espanhola, o


historiador e antropólogo francês Nathan Wachtel revela o claro objetivo de hispanização das
lideranças indígenas, em que “De acordo com essa política, certos membros da nobreza nativa
(conforme a sua posição) adotaram as roupas europeias e alguns símbolos de prestígio da
cultura dominante [...]”, ao mesmo tempo em que se mostrava uma resistência dos índios das
comunidades, que “Continuaram a falar suas línguas nativas e geralmente usavam roupas
tradicionais, às vezes combinadas com o sombrero espanhol (1997, p. 221). Tanto os
espanhóis quanto os indígenas hispanizados serviam de modelos a serem imitados pelos

97
demais, em suas aparências e em seu modo de vida, levando à formação de sociedades
culturalmente mestiças.
Portanto, a discussão levantada pelos versos modernistas é pinça para a eleição de
outro móvel da existência da roupa: o desejo de figuração social ligada ao domínio político.
Das exigências para a manutenção da vida, chega-se à vontade de distinguir-se, quando o
trajar e o enfeitar-se tinham íntima relação com a posição na sociedade, que normatizava
cores, materiais e formas como demarcadores do lugar de cada um na pirâmide social. Do
Crescente Fértil à Mesoamérica, da China à Europa, antigos povos prontificaram-se em
estabelecer sinalizações sociais visíveis nas roupas, nos acessórios, nas arrumações dos
cabelos e nas pinturas corporais, dizendo pelas aparências onde estavam os integrantes
daquelas sociedades e quais os seus limites de atuação. A roupa colaborava com as narrativas
que naturalizavam as desigualdades, servindo, portanto, como estratégia de dominação.
Entretanto, para além dos objetivos relacionados à humanidade, ou às sociedades e aos
grupos, o invólucro com o qual nos protegemos e nos distinguimos pode se fortalecer nas malhas
da aspiração individual, através dos vieses sedutores do amor romântico. A avidez em conquistar
o olhar admirado do outro estaria, então, na base de relevância desses atavios com os quais os
seres humanos ornamentam os seus corpos, levando ao emprego de variadas soluções para a
construção de imagens idealizadas. Desse modo, a roupa prestaria para cobrir supostos defeitos
e exaltar pretensas qualidades, guiando-se conforme os padrões estéticos de cada tempo e lugar.
Em seus estudos, o filósofo francês Gilles Lipovetsky defendeu que a criação e
produção de roupas foi-se organizando sistematicamente como moda para atender aos
quereres particulares de expressão individual, não sendo apenas impulsionada pela
competição entre classes. A conjugação entre mimetismo e individualismo revela-se com
especial fulgor nas questões ligadas ao vestuário, porque “o próprio da moda foi impor uma
regra de conjunto e, simultaneamente, deixar lugar para a manifestação de um gosto pessoal: é
preciso ser como os outros e não inteiramente como eles, é preciso seguir a corrente e
significar um gosto particular” (LIPOVETSKY, 1989, p. 44).
Ao nascer, em meados do século XIV, na Europa, o vestuário diferenciado para os
homens e para as mulheres fez inaugurar a modernidade no âmbito das aparências, o que se
convencionou chamar de moda. Então se formava uma nova sensibilidade coletiva, levando à
procura frenética pelos prazeres mundanos que os valores da vida cavalheiresca pareciam
indicar, quando, de acordo com Lipovetsky, “o amor cortês produziu uma nova relação entre
os sexos, instalou um novo dispositivo de sedução galante que não atuou pouco no processo
de estetização das aparências que é a moda” (1989, p. 65). Logo, desses cruzamentos e de

98
outros mais emerge a moda, sistema de alteração periódica nas formas de vestir, caracterizado
pelo efêmero e pelo cíclico, decorrentes das mudanças de gosto.
O pesquisador francês Daniel Roche também encontra a moda inserida num quadro
de complexidade, tanto em seu surgimento quanto em seu desenvolvimento ao longo dos
séculos, pensando que os olhares lançados sobre ela não podem ser apressados, quando
conceitos preconcebidos encaixam-na nos vieses da futilidade e do supérfluo. Para esse autor,
os intercâmbios da moda com a sociedade são múltiplos e devem ser investigados por
caminhos diversos, encontrados entre as esferas coletiva e individual:

O império da moda estava assente em outras forças, que enfatizavam a lógica da


individualidade, no poder do novo, na combinação da fantasia da roupa, na
estetização e na personalização das aparências, na dinamização da troca. A moda era
estimulada pela competição das classes, mas era também mantida pela ratificação
social do individualismo (ROCHE, 2007, p. 518).

Nas tramas da moda, enquanto os ecos da tradição podem ser ouvidos no âmbito
público, cada vez mais a modernidade se imiscui nos vãos e desvãos das aspirações
individuais, perceptíveis no contexto privado. Assim sendo, para concordar com Daniel
Roche, “em sua diversidade, a roupa criou uma linguagem comum de alto a baixo na
sociedade. Tão desejada quanto necessária, representou um agente de transformação social,
pois carregava consigo uma incitação à mudança” (2007, p. 508).
Como suporte de reflexão sobre o sensível, a roupa presta-se a contribuir com o
entendimento das mudanças nas sociedades, normalmente expressas em termos estéticos através
do que vestimos. Daí a pertinência da compreensão da moda como uma forma de linguagem:

A cultura das aparências é antes de tudo uma ‘ordem’. Para compreendê-la, é


necessário aprender a linguagem que permite a comunicação num domínio estranho
e, portanto, mobilizador do imaginário, em que o espiritual e o material se misturam
com uma força particular. O mental então se torna corporal, o corpo individualizado
exibe os traços fugidios da pessoa, e a roupa revela as correspondências ocultas
entre substância e espírito (ROCHE, 2007, p. 513).

Quem explorou essa possibilidade foi a ensaísta britânica Alison Lurie, que,
inspirada no pensamento sociológico, afirmou que “a moda é uma linguagem de signos, um
sistema não-verbal de comunicação”, a falar sobre “sexo, idade e classe social”, mas ainda a
respeito de “trabalho, origem, personalidade, opiniões, gostos, desejos sexuais e humor”
(1997, p. 19). Sendo assim, o usuário se define e se descreve ao escolher roupas, mesmo que
questões de outra ordem possam interferir na opção, desde o conforto esperado ao valor
financeiro dispendido, passando pelo caráter de durabilidade. Então, conforme o dizer de
Daniel Roche, “As funções social e cultural da roupa só podem ser entendidas em termos de
comunicabilidade. Temos, portanto, de analisar o efeito produzido por aquilo que é visto
99
sobre aquele que vê, como em qualquer ordem de discurso no qual o que vem primeiro não é
o locutor, mas o ouvinte” (2007, p. 513).
A rapidez com que se mudou a aparência humana nos últimos séculos induz a
concordar que “entre os antigos, os gestos comunicavam o pensamento; entre os modernos, a
roupa informava” (ROCHE, 2007, p. 515). A linguagem de sinais vestíveis passou a ser uma
das características mais prementes da vida moderna, movimentando a economia, servindo à
política, influenciando a sociedade, expressando a individualidade. A visibilidade e a
dizibilidade da roupa e da moda são inequívocas.
Os conhecimentos que procuramos trazer a respeito da roupa e da moda têm valia
para a elaboração e a execução de propostas que incluam esses temas e objetos de estudo nas
aulas de História. Pensamos que seja salutar compreender os mecanismos que relacionam as
roupas às mudanças e às permanências, aos episódios e aos processos, à sociedade e ao
indivíduo, o que se mostra possível no ensino, conforme costurou-se no item vindouro.

A roupa, a moda e a História Local

Para trabalhar com a roupa e a moda numa proximidade geográfica e temporal, faz-
se indispensável pensar a respeito do exercício da História Local, vinculando-a a “processos
de identificação, relacionados a um determinado sistema cultural que enfatiza as relações de
vizinhança, contiguidade territorial, proximidade espacial”, mesmo quando os sujeitos
apresentam-se em fragmentação, multiplicidade e instabilidade, na projeção de uma colcha de
retalhos dos processos identitários, segundo pensou Luís Resnik (s. d., p. 3). Buscando
construir narrativas com estilo realista, a opção recai sobre histórias que elegem os indivíduos,
os grupos e as localidades enquanto recortes, ampliando-se o foco para a percepção das
minúcias de uma imagem bem mais ampla. Assim sendo,

O local, alçado em categoria central de análise, pode vir a constituir uma nova
densidade no quadro das interdependências entre agentes e fatores constitutivos de
determinadas experiências históricas então eleitas pela lupa do historiador. Nessa
nova pintura, cada aparente detalhe, insignificante para um olhar apressado ou na
busca exclusiva dos grandes contornos, adquire valor e significado na rede de
relações plurais de seus múltiplos elementos constitutivos (RESNIK, s. d., p. 3).

Sendo território “no qual diferentes assuntos históricos podem ser abordados a partir
das relações cotidianas entre homens de diferentes tempos e lugares construindo diferentes
histórias que se entrecruzam”, como defendem Sandra Regina Oliveira e Ernesta Zamboni
(2008, p. 186), a História Local tem a dar grande contribuição para o enriquecimento e a
dinamização dos currículos. Sobre essa história mais próxima do estudante discorre Marta

100
Margarida de Andrade Lima, cuja assertiva é de que “A história local que compõe os
currículos de história para os anos iniciais, assume contornos diferentes no decorrer do tempo,
mas, há muito, é entendida como uma forma de construção identitária dos sujeitos com os
seus lugares de pertença” (2009, p. 37). Continuando, a referida autora discute que

tomando-se como base a historicidade local define-se como objetivo a valorização


das relações das pessoas com o seu local e com outras pessoas deste local, fazendo
dessas vivências objetos de estudo histórico, sem, no entanto, descuidar das inter-
relações entre as dimensões do espaço geográfico local, regional e nacional,
tampouco fragmentar aspectos indissociáveis das suas construções culturais que só
se tornam referenciais significativos se apreendidos historicamente (LIMA, 2009, p.
38).

A perspectiva de uma investigação historiográfica desenvolvida sob a ótica da


História Local intenta recortar o lugar de estudo como espaço de sociabilidade, em que as
esferas local, regional, nacional e global se interpenetram e complementam, de acordo com o
que diz José Ítalo Bezerra Viana:

É importante destacar que o recorte local na produção do conhecimento histórico


possibilita incluir o estudo dos lugares e sujeitos sejam de forma cultural, política e
socialmente postos à margem e reconhece a relevância do papel de diversas
sociedades na constituição de uma história que se forma, necessariamente, no
entrelaçamento das dimensões: nacional, local e regional. Assim, o compromisso da
história local é com a construção de um universo plural que evidencia a necessidade
do ensino e aprendizagem histórica reconhecedora do valor de todos os sujeitos
sociais, sejam eles o “herói” nacional [...] ou o pipoqueiro da esquina, a lavadeira da
rua em que moramos ou a professora do grupo escolar daquela comunidade rural
onde passamos a infância (2016, p. 24).

É salutar que se diga que as discussões aqui resumidas dizem respeito à História
Local ministrada nas séries iniciais do Ensino Fundamental; porém as reflexões podem ser
estendidas aos outros níveis de ensino, considerando que é sempre possível intercambiar
temas mais abrangentes com processos que levem em conta o critério de proximidade,
bastando que se planeje bem e trabalhe com bom senso. Em todo o trabalho docente, a
adequação deve ser baliza, os objetivos bem definidos, a metodologia alinhada às metas, com
a execução da proposta feita de maneira responsável, coesa e dinâmica.
O olhar sobre a roupa e a moda pode ser construído sob a compreensão da
“teatralização da aparência”, ideia debatida por Daniel Roche (2007, p. 509), que leva em
conta o conceito de representação. Se ao longo da história, homens e mulheres atribuíram
significados ao que vestiam, é possível entender as conexões entre roupa e sociedade,
perscrutá-las, sabê-las. Faz-se necessário atentar que o estudo do tema não pode induzir a uma
apologia da moda ou da beleza, porque todos os passos devem estar orientados pela
criticidade, já que “A aparência podia determinar o ser sem prejuízo; ela liberava tanto quanto

101
oprimia” (ROCHE, 2007, p. 511).
A pertinência em estudar a História Local partindo da roupa e da moda diz respeito
ao fato de que a primeira é o único objeto tido por todas as pessoas, o que iguala todo mundo,
já que, segundo constata a jornalista inglesa Linda Grant, “Nas piores circunstâncias da vida,
se ficamos sem nada, a última coisa que possuímos é a nossa roupa” (2009, p. 15). E
continua: “A sociedade permite que as pessoas morram de fome sem levantar um dedo, pode
morrer-se por falta de cuidados médicos, mas não é permitido andar nu. A nudez pública é
apenas marginalmente mais aceitável do que o tabu do incesto. Até à campa descemos
vestidos” (GRANT, 2009, p. 15).
Quem tem apenas a roupa do corpo pode passar pela história sem deixar pegadas:
cremos firmemente que considerar a roupa como fonte de pesquisa para o estudo da história
de uma localidade concede voz a um número maior de pessoas, torna sujeitos históricos a
muitos indivíduos que, de outra maneira, jamais seriam ouvidos ou teriam valorizadas as suas
vivências particulares. Perceber o modo como cada um se veste, identificando o seu gosto
peculiar, pode ser um caminho para conhecer os gostos coletivos.
Segundo a nossa percepção, um trabalho de pesquisa sobre História Local, partindo
da roupa e da moda, pode obedecer aos passos seguintes:
a) Pesquisa em obras impressas, em sítios virtuais e em museus;
b) Pesquisa em acervos públicos e privados, tanto institucionais, quanto familiares e
individuais;
c) Pesquisa em fontes como: inventários, fotografias, cartas, roupas, diários e
depoimentos;
d) Pesquisa oral com pessoas da família e/ou da comunidade;
e) Elaboração de projeto: possibilidade de articulação com as disciplinas de Artes e de
Língua Portuguesa;
f) Recurso ao desenho, à ilustração, à confecção de miniaturas de roupas para vestir
bonecas (tecido ou papel);
g) Montagem de maquetes com a disposição de bonecas como suportes para as roupas,
acompanhadas de placas informativas;
h) Montagem de painéis ilustrados com desenhos e pinturas;
i) Elaboração de textos com biografias culturais das roupas.

O último item do rol acima trata da grafia de vida de uma peça de roupa, o que,
quando se abre o leque de uma turma inteira, resulta na pluralidade de biografias culturais de

102
peças produzidas a partir da moda ou decorrentes da tradição. Nos inspira o pensamento da
pesquisadora brasileira Rita Morais de Andrade, quando discute o reconhecimento dos objetos
enquanto documentos históricos: “É documento porque informa dados dos processos de
confecção, materiais, técnicas, marcas de corpos, sujeiras, armazenagem, tempo” (2008, p.
17). Sendo suporte físico de informações referentes à sua produção, ao seu uso e à sua
trajetória, a roupa-documento pode contribuir enormemente com a pesquisa, porque é a
perspectiva do pesquisador que a fará desprender o conhecimento que carrega.
Quando a roupa é considerada documento por um pesquisador, o traçar de suas rotas
e conexões dá margem a que se conheça para além da moda e das aparências, podendo-se
desvelar outras relações. Referindo-se ao objeto da cultura material e, em especial, à roupa,
assim Daniel Roche se expressou:

A aquisição e a propriedade dos objetos remetem ao funcionamento dos mecanismos


sociais, revelando importantes alterações no comportamento econômico, mas
também questionam as normas da sociedade, tanto religiosas e morais quanto
políticas. A totalidade das convenções que determinam a aquisição e propriedade da
roupa, seu uso e sua força demonstrativa tem a vantagem de revelar a íntima ligação
entre a cultura material e os imperativos morais e filosóficos, e até mesmo sua
expressão jurídica, como mostra a história das restrições indumentárias e das leis
suntuárias (2007, p. 504-505).

Sendo elucidativa de muitas questões, sabe-se que a biografia de um objeto da


cultura material será sempre parcial, escrita sob certo olhar, mesmo porque a História não
recupera o passado em sua integralidade, como evidência objetiva. Podendo ser qualificada
com vários adjetivos, dependendo da escolha de quem pesquisa, a grafia de vida proposta por
Rita Andrade para o estudo da roupa é a “biografia cultural, procurando investigar a trajetória
do vestido desde sua confecção até que este chegasse ao estado no qual se encontra hoje.
Cultural porque atravessa elementos sociais, econômicos, históricos, subjetivos com o olhar
centrado no objeto circulante” (2008, p. 25-26). A autora diz que “a roupa não tem as mesmas
propriedades que suas representações imagéticas, como a fotografia, por exemplo. A roupa,
elemento da cultura material, tem textura, cheiro, rasgos, manchas e vestígios de corpos que já
a usaram como casca de sonhos, pele de inserção social, do pertencer aos tempos e espaços
que contornam a sua trajetória” (ANDRADE, 2008, p. 27).
O estudo que toma a roupa em seu estatuto documental precisa ater-se à sua
singularidade, em que o sentido físico do têxtil permite identificar marcas e realizar
interpretações, devendo ser investigado tanto quanto o seu sentido cultural. Assim:

Estudar um vestido ou qualquer outro objeto implica necessariamente conhecer e


compreender os materiais de que é feito. Objetos tridimensionais são
originariamente pensados e confeccionados com uma articulação (ou articulações)

103
específica e suas partes podem ser constituídas de uma infinidade de materiais.
Estudar objetos, como as roupas e os tecidos de que são feitas, exige certas
habilidades que diferem do modo de análise de outros tipos de documentos, como os
textuais e iconográficos. Analisar um vestido não é o mesmo que analisar a sua
fotografia, assim como não seria o mesmo analisar a sua descrição. O vestido
enquanto objeto material, enquanto coisa, tem uma série de características que lhe
são próprias, e cuja articulação constitui um artefato singular (ANDRADE, 2008, p.
27, grifo da autora)

Em sua pesquisa, Rita Andrade procurou responder a quatro questões principais,


resultando em etapas a serem cumpridas: “1. Observação das características físicas [...]. 2.
Descrição ou registro [...]. 3. A identificação [...]. 4. Exploração ou especulação do problema
[...]. 5. Pesquisa em outras fontes e programas de pesquisa [...]” (2008, p. 29-30). Passando
por esses pontos, é possível conectar-se sensorialmente com o objeto; registrá-lo por qualquer
meio (escrita, desenho, fotografia); reconhecer os seus materiais e técnicas de confecção;
discutir e questionar o objeto; desenvolver o estudo.
A proposta que fazemos, é seguir o passo-a-passo adiante, com o envolvimento de
todos os estudantes de uma mesma turma:
a) Definição de uma roupa importante para o indivíduo ou para a família (roupas
ritualísticas, de festa, de trabalho, de escola, de esporte e de lazer, por exemplo);
b) Desenho e medição da roupa;
c) Descrição;
d) Identificação dos materiais e do processo de confecção;
e) Identificação dos locais de aquisição dos materiais;
f) Identificação de quem criou/costurou (roupas sob medida);
g) Identificação do local de aquisição (roupas feitas);
h) Trajetória da roupa (confecção, uso específico, reutilização);
i) Memórias da roupa.

O ponto que finaliza a lista tanto pode dizer das lembranças que a roupa hospeda,
quanto das marcas e sinais que traz impressas em seu corpo de tecido. Ao mesmo tempo em
que a roupa se desgasta – ganhando a forma do corpo de quem a vestiu, mais os vestígios de
comida, os respingos de bebida, as nódoas do sumo das frutas –, forma-se nela uma
“memória”, que no “jargão técnico da costura” quer dizer os rasgos, os cheiros, os puimentos
e as manchas que se impregnam em sua superfície tecida e costurada, como bem lembrou o
estudioso britânico Peter Stallybrass (2012, p. 10). Pensando em nossa relação com as roupas,
o autor conduz para além da estética, adentrando no comportamento, a refletir sobre a sua
permanência apesar de inserida num sistema orientado pelo efêmero. Segundo ele,

104
Ao pensar nas roupas como modas passageiras, nós expressamos apenas uma meia-
verdade. Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses corpos sobrevivem.
Elas circulam através de lojas de roupas usadas, de brechós e de bazares de caridade.
Ou são passadas de pai para filho, de irmã para irmã, de irmão para irmão, de
amante para amante, de amigo para amigo (STALLYBRASS, 2012, p. 10-11).

Sendo assim, tomando como certa a afirmação de que “a roupa tende pois a estar
poderosamente associada com a memória ou, para dizer de forma mais forte, a roupa é um
tipo de memória”, esse objeto pode contribuir como vetor da memória individual ou coletiva,
porque se associa a pessoas, a sentimentos, a acontecimentos, a práticas, entre outros
(STALLYBRASS, 2012, p. 14). Daí que o trabalho com a roupa enquanto fonte de pesquisa
encaminha para o registro escrito sobre as memórias intermediadas pela matéria tecida,
costurada e vestida.
No trabalho que realizamos no mestrado, coroou-se todo o processo de buscas,
investigações, cruzamentos e conclusões quando da inclusão de uma roupa entre as fontes de
pesquisa. As dúvidas e as limitações que podíamos ter ao levantarmos o tema através das
outras fontes (iconográficas, impressas e orais) pareciam se dirimir com o reconhecimento de
um objeto da cultura material como documento. Por isso, dissemos:

Agora, o vestido despertava do seu sono de quase sessenta anos para nos contar
sobre as formas, os materiais, os processos e as técnicas de confecção de roupas no
lugar dos sabugienses, durante os idos de 1950. Talvez tivesse mais a dizer que as
demais fontes com as quais contávamos até então e nos ajeitamos para fazer-lhes as
indagações pertinentes. O encontro com esse documento em suporte de tecido, linha,
metal e vidro veio a tornar mais rico o nosso manancial de fontes [...] (MEDEIROS
FILHO, 2014, p. 185-186)

Quando os corpos se mudam para o outro pavimento da vida, a roupas se preservam


e permanecem. Elas sobrevivem aos rituais de passagem e atravessam as várias fases da vida
de uma pessoa, muitas vezes esquecidas em baús, transformadas em novos artefatos, doadas,
vendidas e reutilizadas.
Como prática cultural, o ato de vestir permite aproximações com tempos e espaços
diferentes, sendo salutar o seu estudo em sala-de-aula, de acordo com o que afirmam Cristiana
Andrade e Priscila Ramalho: “Assim, o estudo da História vai além do ato de memorizar nomes
e datas e coloca a turma no lugar de pesquisadores” (maio 2003, p. 63). A partir de
questionamentos do presente, portanto, proporciona-se aos estudantes uma aprendizagem
significativa, rica e viva, em que as vivências de pessoas, famílias e grupos podem se cruzar com
a história da comunidade. Isso acontece porque “essa nova maneira de estudar História muda o
foco dos grandes homens e seus feitos para as pessoas comuns e seu dia-a-dia. Saem de cena os
heróis e entram os costumes da vida real. Investigar o jeito de se vestir é mais uma forma de

105
diminuir a distância em relação ao passado” (ANDRADE; RAMALHO, maio 2003, p. 63).
Os retalhos recolhidos pelo professor/pesquisador e pelos estudantes/pesquisadores terão
serventia para a produção de uma colcha colorida e iluminada pela diversidade dos testemunhos e
das sensibilidades dos muitos atores sociais que se encontram encobertos pelo manto do silêncio.
Contar a História Local através da roupa e da moda é, portanto, possibilitar o direito de fala a
qualquer um, posto que todos passam pela vida vestidos.

Costuras de acabamento

Se investigar a História Local permite costurar outras escritas, por vezes diversas
daquelas que se acham bordadas nos currículos e nos livros didáticos, o professor/pesquisador que
assim o fizer poderá descobrir muito prazer nesse exercício. Existem verdadeiros tesouros
escondidos na vida anônima das pessoas comuns, dispersas pelas comunidades suburbanas e pelas
localidades interioranas do vasto país que habitamos. Por debaixo dos panos, existe muita história
para ser desvelada e contada.
A opção de olhar a história pelo viés proporcionado pela roupa e pela moda pode
mostrar-se surpreendente, principalmente por permitir que se rompa com o prévio conceito de
que esses são temas para o conhecimento das classes abastadas, porque sinônimos do fútil e do
supérfluo. O mais acessível de todos os objetos que possuímos – a roupa –, pode colaborar
grandemente para a democratização do acesso à história, bem como para que se revelem as
tramas que articulam as aparências com a política, a economia, a sociedade e a cultura.
As dificuldades decorrentes dessa escolha certamente serão muitas, derivadas
principalmente do desconhecimento, por se tratar de assunto ainda pouco explorado. Além disso,
averiguar novas possibilidades, seja no ensino ou na pesquisa, exige do professor/pesquisador
maior empenho e muito mais envolvimento e dedicação. No entanto, a satisfação com o resultado
obtido pode ser o troféu sonhado durante toda a fase de planejamento, preparação e execução.
Ao professor/pesquisador que eleger esse rumo, almeja-se muita coragem para o trabalho
duro e incansável; e muita sensibilidade para outorgar ao supostamente descartável o estatuto de
documento histórico. O estudo com a roupa e com a moda o farão ver para muito além das
aparências.
E assim como nossa alma
é a roupa que usamos dentro,
a roupa que nós vestimos
é a nossa alma de fora.
(Luiz Guilherme Piva, 2011)

106
Referências:

ANDRADE, Cristiana; RAMALHO, Priscila. Um guarda-roupa cheio de História. Escola: [s.


l.], p. 62-64. Maio 2003.
ANDRADE, Rita Morais de. Boué Souers RG 7091: a biografia cultural de um vestido. 224 f.
Tese (Doutorado em História), Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2008.
DEL PRIORE, Mary. Histórias íntimas: sexualidade e erotismo na história do Brasil. São
Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2011.
KÖHLER, Carl. História do Vestuário. Tradução de Jefferson Luís Camargo. São Paulo:
Martins Fontes, 1993.
LIMA, Marta Margarida de Andrade. História Local nos livros didáticos de História para os
anos iniciais do Ensino Fundamental. In: OLIVEIRA, Margarida Maria Dias de; OLIVEIRA,
Almir Félix Batista de. Livros didáticos de História: escolhas e utilizações. Natal:
EDUFURN, 2009. p. 33-43.
LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades
modernas. Tradução de Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
LURIE, Alison. A linguagem das roupas. Tradução de Ana Luíza Dantas Borges. Rio de
Janeiro: Rocco, 1997.
MARQUES, Antônio H. de Oliveira. A sociedade medieval portuguesa: aspectos da vida
quotidiana. 4 ed. Lisboa: Sá da Costa, 1981.
MEDEIROS FILHO, João Quintino de. Arremedando Dior: a moda do New Look em São
João do Sabugi – RN (anos 1950). 247 f. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de
Pós-Graduação em História, Universidade Federal de Campina Grande, Campina Grande,
2014.
OLIVEIRA, Sandra Regina F.; ZAMBONI, Ernesta. O estudo do município nas séries
iniciais: refletindo sobre as relações entre história local, história do local e a teoria dos
círculos concêntricos. In: ZAMBONI, Ernesta; ROCHA, Heloísa Helena Pimenta;
GALZERANI, Maria Carolina Bovério; MARTINS, Maria do Carmo; DE ROSSI, Vera
Lúcia Sabongi (orgs.). Memória e História da Escola. Campinas: Mercado de Letras, 2008.
p. 173-187.
RESNIK, Luís. Qual o lugar da História Local? [S. l.], p. 1-5. [S. d.]. Disponível em:
docsity.com/pt/qual-o-lugar-da-historia-local/4732208. Acesso em: 19 ago. 2020.
ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: uma história da indumentária (séculos XVII-
XVIII). Tradução de Assef Kfouri. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2007.
STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memória, dor. Tradução de Tomaz
Tadeu. 4 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2012.
WACHTEL, Nathan. Os índios e a conquista espanhola. In: BETHELL, Leslie (org.).
História da América Latina: a América Latina Colonial. Vol. 1. Tradução de Maria Clara
Cescato. São Paulo: Edusp; Brasília, DF: FUNAG. p. 195-239.

107
NAS AULAS DE CLIO: O ENSINO DE HISTÓRIA E AS REPRESENTAÇÕES
DE CHARGES SOBRE A COVID-19

Eronilda Resende Feitosa24;


Pedro Pio Fontineles Filho25

[...] a imagem é uma espécie de ponte entre a realidade


retratada e outras realidades, e outros assuntos, seja no
passado, seja no presente. E é por isso que ela não se esgota
em si. Por meia dela, a partir dela e tomando-a em
comparação é possível ao historiador e ao professor a análise
de outros temas, em contextos diversos (PAIVA, 2006, p.19).

Introdução

A Pandemia da Covid-19 trouxe inúmeros impactos na vida social, econômica,


política, cultural e educacional em todo o mundo. No tocante à educação formal, entre
suspensão de aulas e fechamento de escolas, houve a saída emergencial do ensino remoto ou
híbrido, o que desnudou a realidade de desigualdades de acesso e de permanência nas aulas,
visto que aspectos foram expostos, como conexão com internet, posse de aparelhos (celulares,
tablets, computadores), alimentação na escola (para muitos discentes a merenda escolar era/é
a única refeição ou complemento). Mesmo diante disso, bem como inúmeros outros
problemas, escolas, professores, alunos e famílias tiveram que se adaptar aos meios digitais.
Nas aulas de História, em nossas tentativas de promover a maior interação com os
alunos, resolvemos trazer a temática da Pandemia para o pensar/ensinar/aprender, a partir da
História da Saúde e das Doenças, tomando a Covid-19 como pretexto para discutir noções de
tempo, espaço, sujeitos históricos, estado, política, sociedade, cultura. Dessa maneira, tomamos
a Pandemia como acontecimento histórico mundial, com ressonâncias diferentes nas distintas
localidades. Assim, a própria história da Pandemia deve ser estudada e debatida nas aulas de
História. Perguntas como: Quando e onde surgiram os primeiros casos da doença? Quando e
onde o primeiro registro de morte pela doença? O que é e quando foi fundada a Organização
Mundial de Saúde – OMS? O que é e quando foi fundado o Sistema Único de Saúde – SUS?
Quando e como as escolas e universidades retomaram suas atividades durante a pandemia? Que
outras doenças, ao longo da história, causaram impactos de grandes proporções?
Os questionamentos são quase inesgotáveis. Neste estudo, a utilização da imagem

24
Graduada em História pela UESPI. Mestranda em Ensino de História pela UESPI. Atua como professora da
rede estadual do Piauí.
25
Graduado em História e Letras pela UESPI. Mestre em História pela UFPI. Doutor em História Social pela
UFC. Atua como professor no curso de História da UESPI.

108
será abordada com ênfase em charges de humor irreverente do meio internético (páginas e
sites que apresentam charges sobre a Covid-19), adotadas para propor embasamento e suporte
nas atividades de leitura e análise dentro das aulas de História, idealizando compreensões
entre o tema das aulas e o cotidiano recente de aulas remotas, a fim de evitar maior prejuízo
no contínuo processo ensino-aprendizagem de História na educação básica e (re)pensar o tão
desejado “novo normal”. Desde o momento em que a Organização Mundial de Saúde – OMS
decretou a pandemia, em 11 de março de 2020, centenas de escolas e universidades foram
fechadas e a “UNESCO recomendou o recurso a plataformas e programas de ensino a
distância, de forma a garantir o ensino remoto e a evitar a descontinuidade da aprendizagem”
(SÁ; et al, 2020, p. 11).
Por esse diapasão, o principal objetivo deste estudo é compreender as representações
da Covid-19 por meio de charges em páginas da internet. Além disso, discutir as
potencialidades dos usos de tais charges nas aulas de história, em especial sobre a História da
Saúde e das Doenças. Ao contemplar aspectos de enfrentamento da Covid-19, atualmente,
percebem-se nas charges as (im)possibilidades de promover dialogicidade por meio do lúdico
e do riso, despertando nos discentes questionamentos e atitudes de enfrentamento às
dificuldades impostas pela doença supracitada. Conforme Minois (2003) e Bergson (1987), o
humor, com sua criticidade, também é um fazer histórico.
Nesse espaço de tempo por várias vezes foi possível um vagar por ruas com pouco
ou nenhum movimento, solidão assoladora para uma atualidade tão frenética. As notícias na
televisão e no rádio quase todas em torno do mesmo assunto. Produtos em escassez ou com
valor majorado nos supermercados. Estabelecimentos de ensino fechados. Espaços de lazer
fechados. Comércio fechado. Pessoas desempregadas. Hospitais superlotados. Famílias
separadas. Vidas perdidas!
Acontecimentos como esses traçam o que o mundo tem vivenciado, em maior ou
menor escala, desde o início do ano de 2020, em decorrência da Pandemia da Covid-19. Para
os historiadores, um dos maiores desafios é saber lidar com as inúmeras expressões e
manifestações que a crise sanitária e epidemiológica criou. As principais categorias de estudo
da História, notadamente o tempo, o espaço e o sujeito, assumiram novos significados. Os
espaços públicos e privados se confundem, pois o home office, por exemplo, uniu o trabalho,
o estudo e o lar. O tempo seja cronológico ou da subjetividade se diluiu ainda mais,
provocando temporalidades múltiplas e singulares. O sujeito, em suas manifestações entre o
individual e o coletivo está imerso naquilo que se pensa no dilema do cuidado próprio e do
outro. Nesse sentido, é papel do historiador refletir sobre tais acontecimentos e, a partir deles,

109
problematizar, no intuito de pensar a realidade e construir o saber histórico e historiográfico.
Ao averiguar subsídios para esse trabalho, foram vistas páginas específicas de sites
de portais sobre Charges como, por exemplo: Portal OitoMeia, Uol, Humorpolítico, além de
materiais sobre a virose citada em sites do governo brasileiro que estão mais atualizadas e por
serem as mais utilizadas em trabalhos com essa temática. Objetivando assim, “um
compreender” das representações sociais históricas da Covid-19 por meio das charges em
2020, e que essas possam fomentar e valorizar os hábitos inseridos na cultura juvenil,
entendendo que as charges não são itens desconhecidos, e podem ser tratadas com humor e
irreverência com o propósito de tornar o estudo possível, mesmo em meio às adversidades
trazidas pelo Coronavírus.
Com a intenção de melhor definir o presente texto, foi relevante uma atenção a
teorias anteriores que comentam um percurso de abordagens e dialogam com a temática,
especificando as (im)possibilidades apresentadas como viés para as análises aqui pretendidas.
O lastro teórico e historiográfico no qual o presente trabalho está inserido remete a algumas
linhas teórico-metodológicas: a) História e Imagens, por tomar as Charges como fonte de
estudo e análises; b) História e Ensino de História, por refletir sobre os usos das Charges
como ferramentas de ensino-aprendizagem e fios para a problematização da História; c)
História e saúde, por abordar a pandemia da Covid-19 como tema capaz de ser trabalhado em
debates de prevenção e esclarecimentos nas aulas de História.

O espaço de sensibilização e de ensino-aprendizagem: charges e sala de aula

Como lembra Manguel (2001), a imagem é uma daquelas coisas da existência


humana que fascina, desperta, escandaliza, (de)forma, aguça sentidos. Complicado será, numa
exposição descritiva, compreender tantos sentimentos. É bem notório que formas, cores e
fortes contrastes intensifiquem sentidos variados dependendo do espaço e da sensibilidade de
cada pessoa.
Assim, na esteira do que defende Peter Burke (2016), as imagens, em sua
pluralidade, são elementos que permitem ao historiador perceber indícios e evidências
históricas. As imagens são produtos de temporalidades e espacialidades em que sujeitos de
grupos sociais diferentes manifestam seus interesses, ideologias, representações e práticas.
Por tal pressuposto, as charges são aqui tomadas como elementos dessa expressão social e
histórica, com possibilidades várias para o ensino de História.
É convincente que o uso da imagem no processo ensino-aprendizagem tenha sua

110
importância e construa um arcabouço de idealizações para corroborar a efetividade qualitativa
desse processo, salientando que em tempos contemporâneos, de intensa criatividade e/ou
(des)informação, o imagético seja abordado como um dos aspectos importantes do ensinar-
aprender. Para essa questão, Crislane Barbosa Azevedo assevera que “o professor necessita
lançar mão de ações que se interligam na prática docente: decidir, prever, selecionar, escolher,
organizar, avaliar, refletir sobre o processo antes, durante e depois da ação concluída”
(AZEVEDO, 2013, p. 06).
As aulas de História com os jovens de Ensino Médio são uma oportunidade, dentro
do planejamento, de perceber que os discentes vêm tentando alcançar o conhecimento, talvez
de uma maneira própria dessa nossa geração, mas não só isso. Eles alimentam sonhos e
objetivos dos mais variados temas e proporções. É visto que uma compreensão das causas e
possíveis consequências sobre muitos assuntos como política, doença-saúde, questões
ambientais, para muitos deles não seja algo tão buscado, devido ao envolvimento com tantos
outros assuntos, como: expectativas de relacionamento amoroso, família, trabalho e diversas
outras questões.
Os discentes, que em dias mais recentes, devido à Pandemia da Covid-19 foram
ainda mais sugados pelos aparelhos digitais, devem ser incentivados a refletir sobre a Cultura
Digital por intermédio do emprego das imagens tão presentes em seus cotidianos, a fim de
sentirem-se motivados a fomentar o sentimento de pertença ao ambiente escolar. Também
possibilitar qual o nível de conhecimento dos discentes sobre contextos de contemporaneidade
e das características sobre a história da Pandemia e suas consequências para o Estado do
Piauí, no caso bem mais prudente que sejam de sua cidade e adjacências. Convém ressaltar
que docentes de outras áreas no ambiente escolar possam ser persuadidos a conectar aos
saberes afins, abordagens sobre esse tema com a utilização das charges como ferramenta
enriquecedora dos seus respectivos conteúdos, promovendo aportes interdisciplinares dentro
do ambiente escolar.
O estudo tem, como público-alvo, as turmas diurnas da Unidade Escolar Paulo
Ferraz, na cidade de Capitão de Campos – PI, única Unidade Escolar de zona urbana que
oferece Ensino Médio e recebe muitos jovens pertencentes de várias localidades daquele
município. Para a construção do presente estudo, foi realizada uma avaliação diagnóstica
sobre o quanto os discentes sabem a respeito do tema, onde encontram as informações para a
escolha das Charges que foram sugeridas sobre o assunto proposto. Para isso, um formulário
Google Forms com algumas questões e também uma entrevista na plataforma do Google Meet
foram aplicados aos discentes.

111
O ensino de História na educação básica “no hoje” clama por mais interatividade e
criatividade. O mesmo pode ser ofertado com humor e criticidade, mesmo perante a todos os
desafios que nos circundam. Refletir histórias com imagens adequadas e portanto, citar a
charge, pode enriquecer de forma mais agradável o ensinar/aprender nessa difícil
temporalidade: o presente e suas nuances.
O uso de imagens, conforme Luciene Lehmkuhl, aponta que “qualquer objeto de
estudo, qualquer temporalidade, qualquer problemática e qualquer período são passiveis de
abordagens por meio de imagens” (LEHMKUHL, 2006, p. 55), porém há que se ponderar
sobre o recorte para que as ideias se conectem e evitem confundir as metas do trabalho
almejado, pois o trabalho atual pode ser desmotivante e clichê por está repleto de comentários
e informações.
Após todos esses procedimentos teórico-metodológicos, elaboramos um Catálogo no
qual estão apresentadas, por meio de imagens e textos, algumas Epidemias e Pandemias
como: Peste Negra, Tifo, Varíola, Cólera, Gripe Espanhola, Tuberculose, HIV-Aids, Gripe
Suína, Covid-19. Nesse Catálogo, há imagens e explicações sobre os contextos históricos,
sociais, políticos, econômicos e culturais de cada doença. Esse produto, então, além de
promover maior conhecimento sobre a História da Saúde e das doenças no Brasil e no mundo,
intenta despertar nos discentes a consciência histórica e a consciência social de direitos e
deveres, no que tange ao acesso e cuidados com a saúde pública e privada.

História, charges e (im)possibilidades na atualidade.

A História e o próprio Ensino de História, não podem ficar alheios aos


acontecimentos em diferentes temporalidades e espacialidades. Tem sido recorrente, nas
diferentes mídias, nas rodas de conversa, no cotidiano, a utilização de expressões como: “não
veja a hora”; “muito tempo”; “pouco tempo”; “novo normal”. Tais expressões indicam as
experimentações dos sujeitos com o tempo e com o espaço. A ideia de “normalidade” remete,
em boa medida, ao desejo de retorno temporal, aquele anterior ao início da Pandemia da
Covid-19. Assim, presente, passado e futuro se cruzam no espaço mesclado de experiências e
de horizontes de expectativa, como propões Koselleck (2006).
No Brasil, o primeiro caso de Covid-19 foi confirmado, pelo Ministério da Saúde, no
dia 26 de fevereiro de 2020. Naquele mesmo dia, o chargista Izânio retratou a “onda”
chegando ao país, enquanto o Presidente surfava despreocupadamente, sem dar a devida
atenção ao perigo que assolaria o Brasil. Desde então, os números só aumentaram de forma

112
assustadora. No momento da finalização deste texto, o país contava com 428.256 óbitos e
15.361.686 casos, segundo informações do Consórcio de Veículos de Imprensa, disponíveis
no Portal G1.Globo, em 12 de maio de 2021.

Charge 01: Coronavírus chega ao Brasil

Fonte: <https://www.oitomeia.com.br/colunas/charge-do-
izanio/2020/02/26/coronavirus-chega-ao-brasil/>

Essa onda só ganhou mais força, sobretudo em razão da cultura negacionista,


promovendo “respostas fragmentadas, em vários países, e a obsessão por ‘balas mágicas’, de
alguns governantes desinformados e oportunistas, interessados em encontrar um paliativo e,
sobretudo, sobreviver politicamente” (CUETO, 2020, p. 248). No Brasil, a hidroxicloroquina
foi, de certa forma, a bala mágica para alguns líderes políticos, inclusive no executivo federal.
No Piauí, quase um mês após a confirmação do primeiro caso no país, havia um certo
pensamento de que a doença não se disseminaria pelos outros estados. O próprio governo
federal, por desconsiderar a gravidade da doença pelo mundo, não tomou providências
antecipadas que pudessem alertar os estados e municípios. Isso, em parte, justificaria o ar de
descrença da chegada do vírus em todo o território nacional. A charge a seguir expressa um
pouco dessa visão de imunidade e resistência.

113
Charge 02: Piauí X Pandemia

Fonte: <https://www.oitomeia.com.br/colunas/charge-
do-izanio/2020/03/18/piaui-x-pandemia/>

No início da Pandemia, era comum considerar que o avanço do vírus era algo muito
distante, que estava somente na Europa e na Ásia. A charge de Izânio, publicada no dia 18 de
março de 2020, representa, em certa medida, a ideia de que a Pandemia não atingiria estados
fora do eixo sul-sudeste. Tal crença pairava no Piauí, retratado como um herói resistente e
intocável pelo coronavírus. No dia em que a charge foi publicada, não havia nenhum caso
confirmado da doença. No dia seguinte, em 19 de março de 2021, a Secretaria de Estado da
Saúde – SESAPI, confirmou a existência de 03 casos. No dia 12 de maio de 2021, conforme
dados da SESAPI, o estado já contabilizava 5.447 óbitos e 254.270 casos confirmados.

Charge 03: Covid-19 Teresina-PI

Fonte: <https://www.oitomeia.com.br/colunas/charge-do-
izanio/2020/04/13/covid-19-teresina-pi/>

114
Na charge do dia 13 de abril de 2020, Izânio demonstra os esforços iniciais dos
poderes públicos municipal e estadual, Teresina e Piauí, nas figuras de Firmino Filho e
Wellington Dias, em conter a Pandemia, que já dava fortes sinais de uma catástrofe na capital.
A imagem chama atenção para a dimensão política, sobretudo lançando a possibilidade de
crítica em relação às ações pouco efetivas para evitar a onda da doença. Nesse sentido, o
historiador deve compreender que

O uso político de imagens não deve ser reduzido a tentativas de manipulação da


opinião pública. Entre a invenção do jornal e a invenção da televisão, caricaturas e
desenhos, por exemplo, ofereceram uma contribuição fundamental ao debate
político, desmistificando o poder e incentivando o envolvimento de pessoas comuns
nos assuntos do Estado (BURKE, 2017, p. 121).

Esse é um dos objetivos das charges: despertar a atenção e o envolvimento de


pessoas que, por razões várias, não têm acesso a informações mais aprofundadas sobre
questões políticas. As charges, como muitas outras modalidades de imagens, “realizaram tais
tarefas mostrando assuntos controversos de uma maneira simples, concreta e notável e
representando os principais atores no palco político como mortais não heroicos e passíveis de
cometer erros” (BURKE, 2017, p. 121).
A política, traduzida por meio das charges, contribui para a compreensão histórico-
social de que a saúde e as doenças são de interesse de diferentes agentes e sujeitos. Isso leva
ao entendimento de que “o sucesso no confronto tem relação com a gravidade da situação
social e sanitária, mas também com a capacidade de os governos mobilizarem comunidades e
instituições de maneira articulada” (PAIVA; TEIXEIRA; PIRES-ALVES, 2020, p. 282).
Em esfera municipal e estadual, coerência e articulação oscilaram, em especial no
que tange aos inúmeros decretos publicados pelo Governo do Estado do Piauí e pelas
prefeituras municipais, que conflitavam em seus protocolos. Isso se tornou muito mais
evidente, quando observadas as atitudes do Governo Federal, que não propôs uma política
coordenada e articulada, que conduzisse estados e municípios no enfrentamento eficaz da
Pandemia.
Por esse viés, a charge é um valioso instrumento para o ensino de História, visto que
apresenta um linguajar imagético mais acessível a um grupo mais amplo de pessoas, de
diferentes segmentos sociais. O tema político, que, em geral, não atrai atenção ou
engajamento da maioria de alunos, e talvez professores, consegue ser mais consumido por
esse público, em decorrência do poder instigante das imagens.
Na charge de Aziz, publicada no dia 13 de fevereiro de 2021, o debate político é
representado, trazendo o poder público federal brasileiro, simbolizando a figura de Jair

115
Bolsonaro, por meio das políticas públicas de auxílio à população.

Charge 04: Mal-auxílio, Bem-auxílio

Fonte: <https://atarde.uol.com.br/charges/2954-aziz->

Na charge acima, está representada a política do poder executivo relativa às ações de


auxílio a milhões de brasileiros que foram impactados pela Pandemia da Covid-19. Os índices
de desemprego aumentaram, visto que diferentes áreas da economia e dos setores produtivos
sofreram cortes em escala mundial. Após pressões dos partidos de oposição, e principalmente
de esquerda, o poder executivo federal concedeu auxílio emergencial em 2020, mas relutou o
quanto pôde em retomar o pagamento do auxílio. Tal relutância é expressa pelo chargista, em
que o poder de decisão questiona se o auxílio é “bem” ou “mal”. Enquanto mais e mais
pessoas morrem não somente pela doença, mas pela fome, o poder executivo federal
desconsidera a gravidade da realidade.
Situação essa que, infelizmente, alcançou muitos dos alunos, sobretudo das redes
públicas estaduais e municipais. Ao levar essa charge para o debate em sala de aula, é
possível despertar no alunado as discussões sobre os conceitos de políticas públicas,
cidadania, direito, dever, assistência social, que são importantes para a construção, inclusive,
da consciência histórico-social. Isso é indispensável no Ensino de História, haja vista que a
consciência histórica é aquilo que “[...] todo agente racional humano adquire e constrói, ao
refletir sobre sua vida concreta e sobre sua posição no processo temporal da existência. Ela
inclui dois elementos constitutivos: o da identidade pessoal e o da compreensão do conjunto
social a que pertence, situados no tempo” (MARTINS, 2019, p. 55).
É nesse limiar entre a memória coletiva e individual que as charges também podem

116
atuar como elemento de aprendizagem e de discussão nas aulas de História. Na constituição
de tais memórias, há inúmeros condicionantes: discursos, conversas, leituras, imagens,
notícias, relatos, sons, cheiros, rituais. Na memória coletiva da maioria dos brasileiros consta
as imagens da transmissão da primeira pessoa a tomar a vacina contra a Covid-19 no Brasil. A
enfermeira Mônica Calazans foi vacinada na cidade de São Paulo, no dia 17 de janeiro de
2021, após o anúncio da autorização, pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária –
ANVISA, para o uso emergencial da vacina CoronaVac, do Instituto Butantan26 e da
SinoVac27.
Nos embates da memória, não se pode esquecer dos impactos dos discursos,
narrativas e informações. Para a História, isso é importante, pois incide sobre os meandros da
“verdade”. No ano de 2020, no que concerne à Pandemia da Covid-19, houve a intensificação
de Fake News e de posturas negacionistas, sobretudo em relação à vacina contra o
coronavírus. Um exemplo disso, dentre muitos, está a fala do Presidente do Brasil, Jair
Bolsonaro, que, em entrevista coletiva do dia 17 de dezembro de 2020, afirmou que “não nos
responsabilizamos por qualquer efeito colateral. Se você virar um jacaré, é problema seu”
(BOLSONARO, 2020), referindo-se às vacinas, particularmente da Pfizer/BioNtec. Esse tipo
de conduta e de discurso, oriundo do maior representante do poder executivo brasileiro, tem
gerado, no seio de parcela significativa da população, desconfiança e descrédito não somente
contra a vacina, mas contra a própria Ciência.
Por esse diapasão, é inerente ao ofício do historiador-professor a discussão sobre a
verdade, consciente de que “o historiador não tem a pretensão de oferecer uma verdade
absoluta, mas trava, a partir de seu trabalho, o compromisso com a verdade” (FERREIRA;
FRANCO, 2013, p. 98). Nesse sentido, o historiador, em especial no que concerne à sala de
aula deve levar o debate sobre a construção, reconstrução e desconstrução da verdade. O
professor de História precisa levar para suas aulas diferentes fontes e documentos, com
diferentes olhares e abordagens, para que os discentes possam compreender as disputas
políticas, econômicas, sociais e culturais acerca da verdade.
Nesse aspecto, a charge de Cazo, compondo a seção “Dúvidas”, representa a
repercussão do falseamento da verdade e como isso gera replicação em uma parcela
significativa da população. Tal disseminação de informações equivocadas promove, em um

26
O Instituto Butantan foi fundado em 23 de fevereiro de 1901, na cidade São Paulo, ligado à Secretaria de
Saúde do Estado de São Paulo. Realiza inúmeras pesquisas biológicas. O instituto produz a maioria das vacinas
fornecidas pelo Ministério da Saúde, no Programa Nacional de Imunização – PNI.
27
A SinoVac Biotech, fundada em 1999, é uma empresa de pesquisa biofarmacêutica, localizada na China, que
produz vacinas contra doenças infecciosas.

117
trágico efeito, a construção e divulgação de Fake News.

Charge 05: Dose, duas doses, dúvidas, jacaré, vacina.

Fonte: <https://www.humorpolitico.com.br/?s=d%C3%BAvidas>

Essa esfera de desconfiança foi fomentada pela falta de concordância e articulação


entre os agentes estaduais e municipais, bem como destes com o poder público federal. O país
tem sofrido com as incertezas, pois “o cenário de indefinição e a falta de sincronia entre os
entes federativos das estatísticas configura um empecilho para dimensionar o tamanho da
pandemia” (OLIVEIRA, 2020, p. 314). Isso contribuiu para disputas judiciais, com uma
“corrida” de decretos e medidas tomadas por grupos sem a devida orientação. A
desinformação, decorrente disso, cria um impacto ainda não vislumbrado ou mensurado.
Nesse sentido, as imagens devem ser problematizadas, pois

O historiador que procura alguma coisa numa imagem vai encontrar o que procura,
mas não vai ver o que talvez exista nela. Para que isso aconteça, é preciso
basicamente esquecer de procurar aquilo que já se conhece. É preciso deixar a
imagem falar, é preciso ter confiança na imagem, entender que ela tem algo a dizer,
sobre a qual não temos a menor ideia, mas é preciso ao mesmo tempo desconfiar da
imagem, porque ela é um artifício, é objeto de manipulação, foi construída,
organizada; jamais se pode tomá-la por transparente. Mas essa dupla atitude, de
confiar e desconfiar, me parece essencial (DUBOIS, 2003, p. 155).

Assim, propiciar atividades nas aulas de História por meio recursos como as charges,
requer que os aspectos sobre a realidade pandêmica na comunidade de docentes e discentes
(re)construam reflexões com maior vigor para com os cuidados que os jovens podem ter em
termos de informação séria e prevenção adequada, pois percebe-se uma espécie de
rechaçamento a fatos importantes sobre o entendimento de causas e reais consequências da
118
comunidade local, assim como em termos nacionais, visto que muitas autoridades políticas e
alguns intelectuais têm simplificado a virose, o que incentiva atitudes negativas especialmente
nos jovens.
Nesse contexto, é evidente que a humanidade caminha para situações semelhantes. O
futuro que se aproxima não estará permeado apenas pelo processo de globalização em si, mas
por fatos como o aumento da população, poluição e outros problemas são advindos do sistema
em que esta se insere no tempo e no espaço. Querer o bem da Raça humana para muitos dos
grandes líderes dessa Era não é meta, pois “a lógica da privatização do conhecimento
legitima-se pela capacidade de venda daquilo que o conhecimento pode gerar em termos de
lucro e de poder” (OLIVEIRA, 2008, Apud SILVA et al, 2006, p. 177).
Pensar um contexto social em que a população tenha acesso a melhores condições de
vida pode ser a grande chave para evitar mais catástrofes no ambiente e, consequentemente,
nos seres vivos, inclusive o próprio humano, participante do conhecimento e muitas vezes,
ciente de suas reais (im)possibilidades na contemporaneidade nesse processo onde “o desafio
de tratar a saúde do indivíduo e não a doença, é decorrente de uma nova forma de interpretar a
realidade” (SILVA et al, 2006, p. 185).
Outro ponto que requer ênfase é, expor esse momento como visto e analisado sob as
perspectivas da História. Admissível é entender essa Pandemia em seus sistemas e
transdisciplinaridades, estabelecendo as causas e as consequências nos ambientes naturais e
sociais. Diário da Pandemia, lançado em 2020, sob a organização de Dominich Miranda de
Sá, Gisele Sanglard et al, pode avivar uma arguição quando aborda relatos cotidianos de
historiadores sobre a pandemia do Corona vírus com olhares que pensam e questionam os
impactos da crise dentro e fora do Brasil com vários temas, como: condição higiênica,
biomedicina, meio ambiente, saúde pública, cuidados e cura, entre outros assuntos urgentes e
caros para o mundo de hoje. Uma sugestiva interpelação de como (re)aprender métodos para
passar pelo sofrimento com expectativas de dias melhores para si e para o planeta Terra. A
pandemia despertou novos procedimentos de todas as áreas do conhecimento científico e a
história, bem como o ensino de história, também teve que se reinventar, sobretudo com novas
propostas pedagógicas, utilizando múltiplas ferramentas e estratégias.
É fundamental lembrar que a utilização de imagens, sobretudo no ensino de História,
pode ser alicerçada em conformidade com a realidade local e temporal da comunidade
escolar, onde as reflexões teóricas devem lançar luzes para refletir sobre as fontes e apontar
percursos metodológicos adequados a um tempo de dificuldades robustecido pela pandemia

119
da Covid-19. Nesse sentido, não se pode falar em metodologia sem, (re)pensar os aspectos da
vivência dos alunos e alunas na escola pública, principalmente.

Considerações finais

Quantos desafios temos pela frente! Histórias? Ensino? Pandemia? Apenas


(im)possibilidades. Ainda há muito para se refletir sobre o envelhecido “novo normal”. No
ensinar História, o docente deve sempre amparar-se em recursos que possam entrelaçar o
conhecimento científico ao cotidiano, tornando-o significativo para os estudantes e porque
não, professores! Nesse sentido, a proposta da charge como instrumento de mediação surge,
uma vez que esta, através de manifestações escritas e visuais, traz representações da realidade
social, tornando-se um recurso instigante, crítico e questionador que, através do humor, lança
ao conhecimento olhares outros aos propósitos de divulgar e ensinar História.
O processo ensino-aprendizagem nas aulas de História nesse “novo normal” devido a
adversidades atuais, impossibilita ainda mais o conhecimento. Contudo, graças aos novos
mecanismos de comunicação digital, a charge (assim como os memes, cartuns, quadrinhos)
possibilita que o conhecimento, de forma dinâmica e conectada, se faça pertencer ao universo
dos discentes.
Por fim, um retorno para ainda assim, encontrar resultados dentro dos infindáveis
desafios. Que experiências podem ser narradas referentes ao ensino de História nesse período
pandêmico? Que sentimentos perpassam às mentes impregnadas do caos advindos com o
surto da letal Covid-19? Nesse momento, respostas distanciam-se ainda dessa hora presente.
Incertezas, informações distorcidas pelas tão comuns redes sociais de cada dia, negação...
Apenas se é pensável de que as (im)possibilidades vem ao encontro do que outrora foi
denominado de ensino regular das aulas normais de um ano letivo. Mas tudo está diferente,
meio fora de lugar, por isso urgentes aprendizagens para docentes e discentes foram impostas
nesse patamar de dor, medo e sofrimento.
É nas reflexões nas aulas de Clio, que o ensino de História pode utilizar a pandemia
como estratégia catalisadora de debates múltiplos sobre não apenas sobre doenças, mas sobre
o Homem e sua relação com o tempo e o espaço. Lancemo-nos nesse ínfimo presente e
façamos das (im)possibilidades o real sentido de ensinar/aprender nesse “novo normal”. São
novos desafios para a História, para a Historiografia e, em especial, para o ensino de História.
A experiência com o uso das charges demonstrou-se frutífera, pois os alunos estão mais
interessados em todos os assuntos das aulas de História, sempre fazendo conexões com suas

120
realidades e vivências.
Tais reflexões e problematizações foram possíveis em decorrência dos debates
promovidos durante as aulas das diferentes disciplinas ministradas no Mestrado Profissional
em Ensino de História, da Universidade Estadual do Piauí – ProfHistória/UESPI. Abriram-se
novos horizontes para a potencialidade de pesquisas oriundas do fazer/aprender história em
sala de aula, sobretudo na Educação Básica.

Referências

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procedimentos teórico-metodológicos. Revista Metáfora Educacional (ISSN 1809-2705) –
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121
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2a-6f9be486e8f9/page/2itOB>

122
BRINQUEDOS E BRINCADEIRAS COMO OBJETO DA APRENDIZAGEM
HISTÓRICA NOS ANOS INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL

Antônio Carlos Macena da Silva28;


Vasni de Almeida29

Introdução

A escolha desse tema como objeto de pesquisa levou em consideração a necessidade


de inovações que o processo de ensino-aprendizagem atual exige. Partimos da premissa, já
consagrada pela historiografia da educação, de que a realidade social muda sempre e a escola
precisa acompanhar essa mudança. Diante desse cenário de mudanças, a educação histórica
tem um papel fundamental, pois ajuda na compreensão da realidade histórica, social e cultural
que cerca a escola. Para isso, entendemos que metodologias de ensino aprendizagem criativas
são, cada vez mais, fundamentais. Assim, a construção do saber histórico necessita ocorrer a
partir da necessidade de se considerar a realidade social como objeto de investigação, para
então definir os rumos de trabalho educacional.
A escolha dessa temática levou em conta, ainda, que o tema brinquedos e brincadeiras é
indicado como proposta de estudo nos PCNs e é conteúdo do livro didático Aprender e Saber
(GRANGEIRO, 2014), do quarto ano da disciplina de História, utilizado na escola pesquisada.
Atentos ao tema, em uma visita a Escola Municipal de Ensino Fundamental
Professor José Flávio Alves de Lima, na cidade de Marabá – PA, realizada para ouvir os
sujeitos do ensino (professora, alunos, coordenadora pedagógica e orientador educacional),
verificamos a seguinte situação/problema: há dificuldades das(os) professoras(es) em ensinar
História nas séries iniciais e dos alunos em aprender. A partir dessa problemática, fizemos a
pergunta: como colaborar para a diminuição das dificuldades do ensino de História nos anos
iniciais, facilitando assim o aprendizado histórico?
Na busca de resposta a essa pergunta, selecionamos uma turma da primeira fase do
Ensino Fundamental da escola e decidimos que seria feita uma sequência didática com tema
gerador Brinquedos e Brincadeiras, considerando, na história, as formas de brincar dos alunos
e de seus pais. A escolha da turma se deu em razão desse conteúdo estar previsto no livro

28
Graduado em Pedagogia pela UFPA e em História pelo UNIASSELVI. Mestre em Ensino de História pelo
PPGEHIST/UFT. Atua na SEDUC-PA, Unidade Regional de Marabá.
29
Graduado em História pelo Centro Universitário Barão de Mauá. Mestre e doutor em História pela
UNESP/Franca. Atua como professor no curso de História da UFT.

123
didático adotado, principalmente, por ter significado e fazer parte dos conhecimentos prévios
dos alunos.
Para o desenvolvimento da pesquisa, apontamos o seguinte objetivo geral: Construir
estratégias didático-pedagógicas, com o tema gerador brinquedos e brincadeiras, através de
uma sequência didática, para auxiliar na diminuição das dificuldades do ensino de História,
facilitando assim o aprendizado histórico. Como objetivos específicos elencamos: contribuir
para a formação da aprendizagem histórica dos alunos; inserir junto com a docente da turma
um trabalho didático-pedagógico interdisciplinar; propiciar uma mudança de atitude da
docente, no sentido de considerar o trabalho pedagógico pela perspectiva da professora e do
aluno; construir uma exposição permanente sobre brinquedos e brincadeiras na escola.
A justificativa para a escolha do tema levou em conta os seguintes desafios: mostrar
que o ensino de história atual exige cativar educandos para a participação ativa no processo de
ensino-aprendizagem; apontar o mundo fora da escola é cada vez mais atraente do que as
atividades escolares; permitir que os docentes que enfrentam grandes dificuldades em
competir com esse mundo possam potencializar suas práxis e que os próprios docentes
possam sair da armadilha do desânimo. A preferência pelo tema levou em conta também que
a aprendizagem deve ser significativa e que os sujeitos escolares não podem ser considerados
meros receptores e reprodutores de conhecimento, mas pesquisadores e produtores desse
conhecimento. A justificativa se ancorou ainda no fato do tema ter um potencial de
atratividade para os alunos, fazendo com que seja uma boa alternativa para responder aos
anseios dos sujeitos da pesquisa. Enfim, buscamos em brinquedos e brincadeiras um tema
significativo às crianças, e um suporte pedagógico importante para a aprendizagem histórica.

Desenvolvimento

Para a reflexão acerca do aprendizado histórico, estivemos atentos à Base Nacional


Curricular Comum (BNCC, 2019), aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs, 2001) e ao
Projeto Político Pedagógico (PPP, 2018), da Escola Municipal de Ensino Fundamental
Professor José Flávio Alves de Lima, na cidade de Marabá – PA. Esses documentos defendem
que a aprendizagem histórica busque a formação de identidades, tanto grupal como individual.
A partir deles, procuramos estabelecer identidades coletivas, quando os alunos compreenderam
as semelhanças dentro do próprio grupo, e individuais, quando eles perceberam diferenças entre
indivíduos dentro do mesmo grupo e que cada um tem uma história.
Para desenvolver a proposta didática, levamos em consideração ainda o que

124
escreveram Gil e Almeida (2012) sobre alguns critérios para a realização de uma pesquisa, a
saber: a) observar: primeira forma de aproximação do aluno com o mundo em que vive, já
que conduz a ideia de investigação; b) conversar, entrevistar: levantar informações acerca de
diferentes aspectos do passado dos mais velhos; c) escutar: aprender com as narrativas dos
outros, pois desenvolve o conceito de alteridade; d) trocar ideias nas rodas de conversa:
possibilita a reflexão e o compartilhamento de experiências entre alunos; e) investigar:
experienciar, inquirir, examinar, já que implica a disposição do aluno para observar, escutar,
planejar, selecionar fontes de informações e construir sínteses; f) sistematizar sintetizando:
favorece a reunião de aprendizagens e a produção de um entendimento próprio do que foi
objeto de estudo, o que investe na construção de uma autonomia intelectual.
Um conjunto de autores, da mesma forma, nos auxiliaram na compreensão e no
tratamento que destinamos ao tema brinquedo e brincadeiras no ensino de História. Entre os
autores que selecionamos estão Pavanelli e Tuma (2018), que nos informaram sobre a ideia de
brinquedos e brincadeiras como possibilidades de caracterizar a história individual do aluno;
Rüsen (2010, 2012), permitiu-nos a compreensão dos encadeamentos históricos e suas
relações como ensino/aprendizagem e busca de sentidos; Schimidt (2011), indicou-nos as
brincadeiras como possibilidades de reinvenção do passado; Schimidt e Cainelli (2009),
ofereceu-nos a dimensão da temporalidade do ato de brincar; por fim, Tuma, Cainelli e
Oliveira (2010), indicou-nos uma proposta de realização de atividades com brinquedos e
brincadeiras com objetivo de aprendizagem histórica.
Tais autores(as) nos apontaram que aprender história requer ações pedagógicas que
proporcionem idas e vindas temporais, a ideia de transformações dos eventos, bem como o
entendimento do antes e depois das histórias estudadas. O ensino de História e sua
aprendizagem necessitam de abordagens que ressignifiquem tanto o saber histórico, como o
método de ensinar história. Ensinar História necessita de fundamentação teórica e metodológica
e aprender História precisa de uma participação ativa, dinâmica e diversificada. Nesse sentido,
Jörn Rüsen (2010) afirma que aprendizagem histórica é “um processo mental de construção de
sentido sobre a experiência do tempo através da narrativa histórica, na qual as competências
para tal narrativa surgem e se desenvolvem” (2010, p.43). Sendo assim, identificar, comparar,
contextualizar, interpretar e analisar os fatos são combustíveis para a orientação e motivação do
aluno na construção do seu pensamento histórico por meio da narrativa.
Entendemos ser necessária uma aprendizagem histórica significativa, que considere
os saberes prévios dos alunos e seus níveis cognitivos. Autores como Lakomy (2008), Matos
(2017), Moreira (1999) e Perrenoud (2000), apontam-nos que a aprendizagem significativa

125
acontece quando partimos daquilo que o aluno já sabe, do que lhe motiva, do que lhe traz
significado e do que já está em sua estrutura cognitiva. Assim brinquedos e brincadeiras têm o
potencial para proporcionar uma aprendizagem significativa aos alunos dos anos iniciais.
Em específico ao tema brinquedos e brincadeiras como tema gerador a aprendizagem
histórica, Pavanelli e Tuma (2018), Spodek e Saracho (1998) e Tuma, Cainelli e Oliveira
(2010) nos mostram que os objetos-brinquedos e brincadeiras são recursos que dão
visibilidade e potencialidade para deslocamentos temporais e a compreensão da dinâmica das
transformações no diálogo com diferentes tempos.
Por envolvermos os alunos diretamente, como sujeitos ativos e pesquisadores,
utilizamos a metodologia da pesquisa-ação. A pesquisa-ação, de acordo com Barbier (2004),
ocorre quando o pesquisador tem papel essencialmente ativo, visando a mudança de uma dada
realidade, oportuniza que ele interceda partindo de um problema real, de forma que analisa e
evidencia seu objeto de pesquisa e também mobiliza os participantes à ação coletiva.
Entendemos que brinquedos e brincadeiras têm potencialidade histórica nos anos
iniciais do ensino fundamental, pois fazem parte do cotidiano dos alunos, constituindo-se
assim, em fontes e objetos de pesquisa a partir do que é real e significativo ao aluno. O ato de
brincar e seus brinquedo podem, assim, contribuir para uma aprendizagem histórica
significativa.
O que seria uma aprendizagem histórica significativa? Segundo Lakomy (2008),
aprender seria a capacidade que uma pessoa tem de realizar algo que anteriormente não
realizava, que dura toda a vida da pessoa, trata-se de um feito em que um sujeito traz para si
próprio um novo comportamento, onde as novas informações se transformam em hábitos e
atitudes. Já a aprendizagem significativa “ocorre quando uma nova informação se relaciona
com outra de maneira não arbitrária com os conhecimentos preexistentes do indivíduo
interagindo de forma significativa, provocando mudanças em suas estruturas cognitivas”.
(2008, p.129).
Portanto, a aprendizagem significativa se baseia naquilo que é de interesse do aluno,
mas vai além disso – ela se fundamenta nos mecanismos cognitivos preestabelecidos que os
estudantes já têm. Ocorre, assim, uma junção com o novo saber, produzindo novas
aprendizagens. Assim, para este estudo, consideramos o interesse do aluno por brinquedos e
brincadeiras, tema interessante e significativo aos alunos dos anos iniciais.
As ações pedagógicas realizadas se ancoraram na concepção de que aprender história
é levar o aluno à formação do aprender a pensar historicamente e não meros depósitos de
conteúdos. Nossa ação em sala de aula, junto aos alunos, ocorreu a partir da compreensão de

126
que aprender história deve proporcionar aos alunos “deslocamentos temporais [que] auxiliam
na identificação das permanências e rupturas em uma análise comparativa”. (TUMA,
CAINELLI E OLIVEIRA, 2010, p.360). Salas de aula devem ser encaradas como espaços
capazes de propiciar análises e compreensões das transformações diversas ocorridas na
sociedade, assim como em grupos, ou mesmo individuais.
A história é viva e dinâmica e não uma coleção de dados e fatos, assim, nas ações
didático-pedagógicas que realizamos, procuramos respeitar esse dinamismo e vivacidade.
Nessa perspectiva, com o trabalho pedagógico com brinquedos e brincadeiras à aprendizagem
histórica, buscamos algo que é significativo ao aluno, vivo e dinâmico e faz parte do seu
cotidiano. Pois

A significação do conhecimento histórico é fundamental para a compreensão do


presente e da própria identidade. A partir dessa lógica, o docente historiador seria
capaz de se orientar no tempo, organizar suas ações e lutas no presente e a partir
disso substanciar sua própria prática enquanto professor, de maneira a dar sentido
para que os alunos possam consumir os saberes históricos com vistas a uma nova
postura frente a sua vida e a orientação temporal. (MATOS, 2017, p. 2019).

O recorte anterior nos mostra o caráter formativo para a vida prática, com relevância
nas questões sociais e pessoais, na qual exista compreensão mais abrangente e específica da
vida. O que nos faz pensar que brinquedos e brincadeiras é uma boa escolha para o ensino de
história nos anos iniciais.
O pensar historicamente não é construído simplesmente se informando, é buscar
sentidos e construir identidades, pois passamos por mudanças como seres históricos que
somos. Para Rüsen (2012), os homens, ao viverem em sociedade “precisam entender a si
mesmos, seu mundo, e os outros homens com quem precisa conviver” (2012, p.13). Assim, o
passado não é a busca pelo tempo perdido, mas a razão de viver, a procura da felicidade, e
sendo a História uma ciência para se entender a realidade, compete a ela lembrar o passado.
Para Rüsen (2010), a inter-relações com o passado, presente e futuro, conferir identidade é
uma forma de orientar as pessoas em seu agir, o que trará o sentido da experiência do tempo.
Partindo dessa concepção sobre aprendizagem histórica, e da relevância do tema gerador
brinquedos e brincadeiras, realizamos as atividades da sequência didática.
Amparados nesses referencias teóricos e métodos, lançamo-nos a colocar em prática
a sequência didática proposta. Para tanto, foram precisos quinze encontros, sendo os dois
primeiros para o levantamento da problemática de pesquisa. Nos outros treze foram realizadas
as atividades da sequência didática.
Procuramos considerar o que o PPP da escola (2018) diz sobre a visão educativa da

127
escola acerca de levar em conta a realidade dos alunos, de trata-lo como sujeito ativo,
participativo e crítico. Como orienta o PPP, partimos do que os alunos já sabiam, a partir daí
promovemos situações de interação, para eles problematizarem, experimentarem e
pesquisarem. Nesse ponto, merece destaque a atividade com os dois questionários.
Trabalhamos um questionário com doze perguntas, onde os pais narrariam um pouco sobre
seus brinquedos e brincadeiras: onde brincavam, com quem brincavam, que horas brincavam,
até que idade brincou, se construiu brinquedo. A ideia foi fazer a exploração histórica desse
questionário com atividades orais e escritas. Depois reelaboramos o tempo verbal e fizemos o
mesmo questionário para os alunos responderem. Exploramos historicamente o questionário
com debates, elaborando listas, produzindo textos, fazendo comparações, identificando e
pensando acerca das mudanças, permanências, continuidades e rupturas. Tudo isso realizado
na sequência didática utilizada.
A sequência didática foi organizada em encontros, nos quais foram desenvolvidas:
conversas com os alunos sobre seus brinquedos e brincadeiras e sobre o que já sabiam acerca
das brincadeiras e brinquedos de seus pais; apresentação de brinquedos e brincadeiras da
época de seus pais em imagens e vídeos; entrega de questionário aos alunos, para que os pais
respondessem, explicação de como seria respondido o questionário e tirar dúvidas;
recebimento do questionários e conversas breves sobre como eles foram respondidos; roda de
conversa com dois adultos sobre seus brinquedos e brincadeiras da época de suas infâncias;
devolução dos questionários às crianças para que eles escolhessem um brinquedo ou
brincadeira para pesquisar no laboratório de informática, com auxílio do pesquisador e da
professora e orientação para continuar a pesquisa em casa com os pais; socialização da
pesquisa da aula anterior; respostas a outro questionário, agora sobre os brinquedos e
brincadeiras dos próprios alunos; explorar os dois questionários questão por questão, focando
nas mudanças e semelhanças, continuidades e rupturas; produção de um texto coletivo, tendo
o pesquisador como escriba.
A partir das exposições dos alunos nos encontros, foi produzido um texto coletivo,
com os seguintes destaques: como era, como é, o que levou as mudanças. A turma foi ainda
dividida em grupos para pesquisarem no laboratório de informática sobre tecnologia,
industrialização, violência, trânsito, trabalho e relações familiares, a fim de proporcionar aos
alunos compreensões e reflexões acerca de alguns motivos que levaram as mudanças nos
brinquedos e brincadeiras. Para socializar a pesquisa realizada pelos grupos foi solicitado a
apresentação de dois brinquedos, o primeiro, um brinquedo da época dos pais das crianças,
feito por ambos, o segundo, um brinquedo atual da criança, e fazer comparações entre eles;

128
montagem do local para exposição dos brinquedos; apresentação feita pelos alunos para a
comunidade escolar, em um mural com fotos que mostrava o antes e o depois, e em uma mesa
com brinquedos atuais e da época de seus pais.
No decorrer de algumas aulas realizamos algumas brincadeiras relatadas pelos pais
nos questionários a eles aplicados, com o intuito de trazer ludicidade as atividades e,
principalmente, explorar historicamente essas brincadeiras e comparando-as com as dos
alunos. O desenvolvimento das atividades foi registrado por meio de fotografias, gravações e
o caderno de registro. As informações adquiridas por meio dos registros serviram como base à
análise do uso de brinquedos e brincadeiras como tema gerador à aprendizagem histórica.
Ao comparamos imagens das duas épocas e as analisar historicamente, ao
produzirmos três listas (o que não tem mais, o que mudou e o que permaneceu), ao fazermos
os alunos pesquisarem através dos questionários, entrevistas e pesquisas no laboratório de
informática, assim como a reprodução das brincadeiras da época de seus pais, fazendo
comparações com as dos alunos e a atividade em que eles trouxeram brinquedos da época de
seus pais feitos por eles e compararam com os atuais, buscamos colocar em evidência uma
história temática e não cronológica, colocamos as pessoas comuns como sujeitos históricos e
fugimos da memorização de datas e fatos.
Portanto, através dos questionários, da comparação de imagens destacando o antes e
o depois, da produção de listas, tratamos brinquedos e brincadeiras como objeto para a
aprendizagem histórica, e possibilitamos o deslocamento temporal do ir e vir, onde foi
possível compreender a expressão da história da cultura, hábitos de vida, formas de pensar,
sentimentos e linguagem, maneiras de brincar e interagir. Caracterizando-se em existência
viva de um passado no presente. No processo de ensino-aprendizagem de história, brinquedos
e brincadeiras são os motores para se vivenciar (aprender sentindo) o passado.
Na última atividade, como culminância do estudo, escolhemos quatro crianças para
montarmos, na sala de leitura, um espaço para expor os brinquedos que eles trouxeram.
Organizamos de forma que o visitante poderia ver os antes e o depois. Além dos brinquedos
em sua forma de objetos, colocamos fotos. Na parte dos brinquedos atuais, ficaram apenas
fotos, pois não seria viável às crianças deixarem seus brinquedos. Em seguida passamos nas
salas convidando outros alunos para uma visitação. Nesse momento, alguns alunos
participantes da pesquisa explicavam sobre a amostra. A foto abaixo mostra esse momento, o
qual foi a última atividade da pesquisa com os alunos.

129
Fonte: arquivo do autor

Antes da apresentação ao púbico, os estudantes que falariam foram orientados por


meio de um roteiro. Eles falaram sobre o que estava fisicamente representado na amostra, mas
também dando o teor histórico. Veja abaixo a fala de uma aluna:

Boa tarde, sou a Joana30, da turma do quarto ano, esse trabalho aqui (mostrando para
o título) é aprendendo história com brinquedos e brincadeiras. Aqui (apontando para
a mesa) tem esses brinquedos, que são da época dos nossos pais, eles faziam os
próprios brinquedos, os pais deles também faziam para eles. Esses outros brinquedos
aqui, são os atuais, são comprados, são feitos pelas fábricas. Isso mudou porque as
fábricas aumentaram e os pais preferem comprar os brinquedos para os filhos. Aqui
(apontando para o painel) desse lado tem fotos de brinquedos e brincadeiras antigas,
do outro, de brinquedos e brincadeiras atuais. (Falou os nomes dos brinquedos e das
brincadeiras) no tempo dos meus pais, as crianças brincavam mais na rua, hoje
brincam mais dentro de casa. Porque os pais têm medo da violência e do trânsito.
(Caderno de campo, 2018).

Contribuições do trabalho para o ensino de história

Na realização das atividades propostas na sequencia didática destacamos a relação


entre a aprendizagem histórica através de brinquedos e brincadeiras e anos iniciais. Sempre
lembrando o que diz Spodek e Saracho que “o papel chave dos professores nela é modificar a
brincadeira natural espontânea das crianças para que ela adquira um valor pedagógico, ao
mesmo tempo em que mantém suas qualidades lúdicas” (1998, p.215).
Schimdt e Cainelli (2009) consideram a aprendizagem histórica como processo no
qual, a informação é transformada em conhecimento. Que para um ensino de História
satisfatório, há a necessidade da problematização das fontes, dado que o aluno precisa ser
instigado a construir um saber histórico significativo. Portanto, sem a problematização das
fontes é mais provável que, numa tentativa de produzir conhecimento histórico, o professor
apenas produza informações que não leve o aluno a problematizar e a fazer correlações entre

30
Nome fictício.

130
passado e presente, algo essencial no processo de ensino-aprendizagem de história.
Sendo assim, nesse trabalho com a temática brinquedos e brincadeiras, os alunos não
foram simplesmente informados sobre como eram as brincadeiras e brinquedos de seus pais,
eles realizaram comparações, investigações, análises e reflexões para compreenderem as
mudanças e permanências, continuidades e rupturas, tanto nas brincadeiras e brinquedos,
como nas relações na sociedade que levaram as tais mudanças.
Portanto, nessa linha de pensamento, foi-nos possível caracterizar brinquedos e
brincadeiras, como fonte que em si mesma, que segundo Schimidt e Cainelli (2009, p. 121)
“não exprime nada em particular, mas possui algum significado”. Tal significado cabe ao
professor problematizá-lo e encontrar a melhor forma de estudá-lo.
Assim, ao trabalharmos com objeto-brinquedo, tendo como objetivo a aprendizagem
histórica, buscamos colocar em evidência uma fonte que possui múltiplas significâncias para
o aluno. Na concepção de que aprendizagem histórica é aprender a pensar historicamente, que
é o que Perrenoud (2000) chama de cabeças bem-feitas em vez de cabeças cheias, buscamos
produzir saberes que vão além da compreensão de que conhecimento histórico é apenas uma
linearidade, cujas pessoas são apenas aquelas consideradas ilustres, nem a simples
memorização de datas.
A sequência didática aplicada se apresentou como grande possibilidade de estratégia
para o ensino de História em sala de aula, para além do livro didático, lousa e aulas
expositivas. Segundo Pavanelli e Tuma, brinquedos e brincadeiras [...] “possibilitam
deslocamentos temporais, e a noção de irreversibilidade dos eventos, no reconhecimento do
antes e depois das circunstâncias” (2018 , p.02).
Segundo Schimidt (2011, p. 89), “se é importante tomar o passado como objeto do
ensino e da aprendizagem histórica, é mais importante ainda reinventar as formas de ir ao
passado”. Sendo assim, compreendemos que alunos, ao pesquisarem sobre como os seus pais
brincavam, descobriram uma forma diferente de ir ao passado, em oposição a tradicional
forma da instrução. Pesquisar sobre brinquedos e brincadeiras do passado permitiu ao aluno
entender a mudança social e cultural, a entender porque no passado havia poucos brinquedos,
quando comparado aos dias atuais. Compreenderam que no passado não muito distante, era
mais valorizado o processo de construção dos brinquedos, em que o produto final pronto e
acabado não era o mais importante, mas sim o processo de construção. Entenderam que a rua
era o principal espaço de brincar, onde havia mais socialização. As mudanças processadas na
forma de brincar possuem potencial histórico na metodologia didático-pedagógica.
No estudo, propusemos uma aprendizagem para além da sala de aula e aulas

131
expositivas, procurando mostrar o aluno em atividade. Dessa forma, os alunos pesquisaram
também no laboratório de informática e com seus pais sobre brinquedos e brincadeiras da
época de seus pais e acerca de tecnologia, industrialização, violência, trânsito, trabalho e
relações familiares, com o intuito de fazê-los pensar sobre o que levou as mudanças nas
relações do brincar. Nessa atividade os alunos foram divididos em grupos. Um grupo para
cada tema. Assim, eles realizaram a pesquisa e depois socializaram.
Resumidamente, a socialização do que pesquisaram mostrou que os alunos
destacaram que a tecnologia digital avançou muito da época de seus pais para cá e que esses
aparelhos chamam mais a atenção que outros tipos de brinquedos e brincadeiras, levando as
crianças a se exercitarem menos. Apontaram que os brinquedos industrializados atualmente
são de mais fácil acesso e que as crianças de hoje constroem poucos brinquedos, pois já que
os comprar é mais fácil. Disseram que as crianças brincam menos na rua por causa do
aumento do trânsito de veículos e da violência, como sequestros de crianças. Uma criança
acrescentou que a mãe falou para não falar com estranhos na rua. Afirmaram que hoje em dia
os pais têm pouco tempo por causa do trabalho e que muitas vezes preferem ficar no celular a
brincar com eles. Portanto, os alunos compreenderam que existem vários elementos, e não um
somente, que levaram as mudanças nos brinquedos e brincadeiras, quando comparadas as
duas épocas.
Desse modo, como propõem Gil e Almeida (2012), os alunos observaram,
conversaram, entrevistaram, trocaram ideias, experimentaram, selecionaram fontes de
informações, e sintetizaram. As fontes de informações contidas nos questionários, na pesquisa
no laboratório, nos diálogos em sala, na roda de conversa, na conversa com os pais, nos
vídeos, nas imagens, na produção e comparação de brinquedos, na reprodução de brincadeiras
antigas, puderam proporcionar aos alunos registros, analises e reflexões para pensarem
historicamente.
Pavanelli e Tuma (2018) apontam a potencialidade do objeto-brinquedo como recurso
pedagógico que potencializa o diálogo entre as crianças e diversos espaços e tempos – presente,
passado e futuro. Para as autoras, brinquedos e brincadeiras abrem possibilidades dos
deslocamentos temporais e a reflexão sobre o antes e o depois. Assim, procuramos partir do
presente, fazendo um diálogo com o passado, como propuseram as autoras, quando fizemos a
comparação dos brinquedos e brincadeiras atuais com os da época dos pais das crianças.
Este trabalho considerou o que diz a BNCC (2019) sobre os cinco processos que
devem acontecer na relação de ensino-aprendizagem de História. A identificação, que é o
processo de reconhecimento de uma questão ou objeto a ser estudado, o estudante precisa ser

132
conduzido a partir de criação de perguntas. Já na comparação, no processo de conhecer o
outro, percebendo suas semelhanças e diferenças, os alunos devem saber comparar, o que
pode facilitar uma melhor compreensão dos fenômenos, dos processos históricos e das fontes
documentais. A contextualização é o processo de localizar momentos e lugares específicos em
que determinados fatos históricos ocorreram no momento de atribuir sentidos e significados.
Quanto à interpretação, que é o processo de posicionar-se criticamente sobre o conteúdo
estudado em sala de aula, devem ocorrer interpretações variadas sobre um mesmo objeto, o
que pode tornar mais claras e explícitas as relações sujeito/objeto e, ao mesmo tempo,
estimulam a identificação das hipóteses levantadas. Por fim, na análise, a BNCC chama a
atenção para a necessidade de problematizar a própria escrita da História, considerando as
pressões e restrições de que ela também é fruto, da mesma forma como as outras produções da
sociedade em que vivemos.
Assim como propõe a BNCC (2019), no processo de ensino-aprendizagem, durante a
realização da sequência didática, levamos o aluno a identificar uma questão ou um objeto,
comparar fontes diferentes, contextualizar os fatos históricos, interpretar fontes e objetos, e
analisar fontes e contextos. Desse feito, como orienta o documento, propusemos atividades
que levaram os alunos a questionar e analisar suas vivências, de seus pais e compará-las
historicamente, em um movimento de ir e vir. Onde além de compreenderem as mudanças,
permanências e continuidades e rupturas sobre brinquedos e brincadeiras, puderam entender
as razões dessas, como o avanço da tecnologia, o crescimento da industrialização, a expansão
da urbanização, o aumento da violência, a elevação do trânsito de veículos, as mudanças nas
relações de trabalho e transformações nas relações familiares.

Considerações finais

O enfoque principal da pesquisa foi analisar o uso de brinquedos e brincadeiras como


tema gerador à aprendizagem histórica, buscando dá significado ao processo de ensino-
aprendizagem de história, no qual o conhecimento tenha sentido à realidade social do aluno.
As crianças foram envolvidas em diferentes atividades de pesquisa. Buscamos agir a partir do
princípio de que os alunos são capazes de produzirem seus próprios saberes, isso feito com
orientação. Por isso, houve diálogos, pesquisas, troca de informações com diferentes atores,
professor com aluno, aluno com os pais, aluno com aluno.
No transcorrer das atividades, a intenção sempre foi fazê-los pensar historicamente e
não passar apenas informações. Acreditamos que nosso trabalho atingiu o objetivo proposto,

133
pois, de alguma forma, se materializou, pois os alunos foram capazes de compreenderem, a
nível do quarto ano, as mudanças e permanências, continuidades e rupturas quando
pesquisaram sobre brinquedos e brincadeiras da época de seus pais e da atualidade. Como
respondeu uma aluna ao ser feita a seguinte interrogação à turma: será que as coisas sempre
foram do jeito que está? – “não, quando meu pai era criança não existia celular”.
Diante da necessidade de se fugir de um ensino de história exclusivamente
expositivo e memorativo, com foco na lousa e no livro didático, realizamos um caminho com
base em uma perspectiva de que o processo de ensino-aprendizagem realizado através de um
tema gerador, como brinquedos e brincadeiras, torna as aulas mais atrativas, contribuindo para
uma participação dos discentes mais efetiva.
Com a pesquisa, realizada em uma escola pública de Marabá – PA, esperamos que
possa propiciar resultados significativos para as escolas de primeira fase do Ensino
Fundamental. A pesquisa nos fez verificar algumas possibilidades reais do tema gerador
brinquedos e brincadeiras à aprendizagem histórica, no que tange a utilização desse tema
como um parceiro do professor e de alunos no processo de ensino-aprendizagem. A
potencialidade do tema em questão foi indicada na medida em que o conhecimento histórico
foi facilitado e a participação dos alunos foi ativa.
Não estamos nos referindo a um domínio amplo do conhecimento histórico, mas de
certas compreensões de mudanças e permanências, continuidades e rupturas que os alunos
adquiriram acerca de brinquedos e brincadeiras desde a época dos seus pais até a atualidade,
assim como as relações na sociedade que levaram a essas mudanças.
A perspectiva de se aprender a partir de algo do seu cotidiano, pesquisar fatos da
história da vida dos pais, proporcionou, no processo de ensino-aprendizagem, a curiosidade de
alguns sujeitos escolares aqui retratados. A aplicação da experiência com brinquedos e
brincadeiras permitiu aos alunos se sentirem motivados a pesquisar, participar das outras
atividades, ou seja, aprender. O que pretendíamos com temática usada de forma planejada,
sob orientação e supervisão, uma vez que a pesquisa-ação exige a participação e intervenção
do pesquisador, mostrou ser possível de ser aplicada em outras turmas dessa fase de ensino.
Com a utilização de brinquedos e brincadeiras à aprendizagem histórica, foi-nos
permitido entrar no universo do aluno, o mundo do brincar, que lhe é pertinente. Dessa forma, nas
atividades propostas procuramos desenvolver nos alunos a capacidade de observar, identificar,
registrar, comparar, refletir e analisar, assim como desenvolver sua capacidade crítica.
Durante a pesquisa, problematizamos como o professor pode usar brinquedos e
brincadeiras no processo de ensino-aprendizagem histórica, explorando como objeto de

134
estudo e por vezes como técnica de ensino, mas sempre em uma perspectiva do saber
histórico. A dinâmica didático-pedagógica seria a de transformar os brinquedos e as
brincadeiras em fontes e recursos para se construir conhecimento histórico. Por isso, existia
necessidade da problematização. Pois um brinquedo ou uma brincadeira por si só não causa
aprendizagem histórica. Foi necessário mobilizar o aluno a realizar as perguntas com o intuito
histórico, de fazê-lo pensar historicamente através dos brinquedos e brincadeiras.
Acreditamos que a problemática da pesquisa, que foi a de contribuir para diminuir a
dificuldade da professora ensinar História e dos alunos em aprender, disposta no objetivo
geral, foi alcançada. Ao levamos em conta as considerações iniciais da professora e tendo ela
mesmo apontado que suas aulas são baseadas em aulas expositivas e centradas muito no livro
didático, realizamos atividades com a participação efetiva da professora para além dessas
técnicas de ensino, o que proporcionou a ela pensar alternativas para as dificuldades que ela
apontou no início da pesquisa. Procuramos mostrar que uma práxis docente e significativa,
que motiva o aluno pode ser feita através de estratégias pedagógicas simples, e não
necessariamente de algo extraordinário.
Portanto, buscamos, com a pesquisa, contribuir com reflexões que possam auxiliar os
professores dos anos iniciais a utilizarem o tema gerador brinquedos no processo de ensino-
aprendizagem de História. Entendemos que tal tema, além de possuir potencial à
aprendizagem histórica, contém características lúdicas, tão importantes nos anos iniciais.
Vale destacar aqui também, a importância do ProfHistória para a formação docente
do pesquisador, no qual realizar uma pesquisa com foco nos problemas práticos dos sujeitos
da escola, com foco diretamente no ensino, permitiu ao pesquisador, como professor da
educação básica, assumir uma postura que vai além de um aplicador de teorias pensadas por
terceiros, e sim de um professor pesquisador, algo ainda carente na educação básica. A
formação como professor pesquisador traz à tona a necessidade de um trabalho com foco na
investigação, na curiosidade de fazer perguntas e buscar respondê-las, de levantar questões
problemas e procurar alternativas para resolvê-las. Nessa perspectiva, o ProfHistória contribui
significativamente para a formação do professor pesquisador e do pesquisador professor.

135
Referências

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BNCC: Base Nacional Comum Curricular. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.
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ALVES DE LIMA. Projeto Político Pedagógico. Marabá, 2018.
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SPODEK, Bernard; SARACHO, Oliveira N.; DORNELLES, Claudia Oliveira. (Trad.).
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Os deslocamentos temporais e a aprendizagem da história nos anos iniciais do ensino
fundamental. Cad. Cedes, Campinas, vol. 30, n 82, p. 355-367, 2010.

136
DIMENSÕES FORMATIVAS E APRENDIZAGEM RECONSTRUTIVA
DO CONHECIMENTO: UMA PROPOSTA METODOLÓGICA PARA FORMAÇÃO
DE PROFESSORES DE HISTÓRIA

Dimas José Batista31;


João Paulo Mendes Maciel32

Introdução

Este texto traça discussão acerca de uma proposta metodológica de formação para
professores de História, tendo como referência básica suas experiências de trabalho e
formação, associadas a estudos sistematizados de autores engajados nesse processo. Traz
como elementos estruturais o exercício permanente da pesquisa como princípio educativo e o
esforço de elaboração.
Originalmente compôs um capítulo propositivo da dissertação de Mestrado em Ensino
de História, da Universidade Federal do Tocantins, cujo tema discutiu as histórias de vida e
formação de professores de História: narrativas de si e repercussões sobre a prática docente.
Desencadeou assim, esforços no sentido de compreender as repercussões desse processo
formativo sobre a prática docente, buscando com isso perceber a existência do professor imerso
num contexto histórico, com histórias de vida repletas de experiências, as quais passaram a ser
entendidas como ambiente propício para o desenvolvimento de sua própria formação.
Os objetivos que delinearam o trabalho de dissertação procuraram conhecer as
narrativas das histórias de vida e formação de professores de História do Ensino Fundamental,
assim como identificar as experiências evidenciadas nessas narrativas de histórias de vida e
formação, e ainda, analisar as narrativas dessas experiências de vida e formação dessas
professoras e a repercussão disso na sua prática docente.
Os sujeitos dessa pesquisa foram cinco professoras de História efetivadas na Rede
Pública Municipal de Imperatriz – MA, com diversidade de tempo de experiência na
docência, escolas, idades e turnos. As experiências foram pesquisadas através de narrativas
individuais escritas e posteriormente, roda de conversa.

31
Graduado e Mestre em História pela UNESP/Franca. Doutor em História Social pela USP. Atua como
professor no curso de História da UFT/UFNT.
32
Graduado em História pela UEMA. Mestre em Ensino de História pelo PPGEHIST/UFT. Atua como professor
nas redes estadual e municipal na cidade de Imperatriz -– MA.

137
Aspectos estruturais da proposta metodológica

A gestão da formação pessoal constitui aqui a centralidade desta proposta


metodológica, buscando reunir através de apoios teóricos e experienciais os fundamentos de
sua sustentação. É delineada na perspectiva da formação do sujeito ao longo da vida, na sua
contínua história, progressiva e inacabada, buscando abrir possibilidades num permanente
devir, construindo, reconstruindo condições metodológicas favoráveis ao profissional docente.
A perspectiva é que ele vá se descobrindo como parte ativa da estrutura sócio-histórico-
educacional na qual é elemento presente e fundamental, apercebendo-se de que maneira sua
atuação se desenvolve, se como agente de reprodução das estruturas existentes ou, propulsor
de reflexão, problematizando e até reconstruindo a partir do seu lugar de ação, firmando-se
como ser histórico.
Cabe frisar que essa discussão sugestiva, apresentando o professor como sujeito de
sua própria formação, não exime em nada a responsabilidade diretiva e o papel das
instituições, do Estado sobre sua obrigação de investir na formação dos professores. Ao
contrário, o que se espera é que quanto mais houver fascínio particular sobre o
aprofundamento do conhecimento como processo de formação, haverá por consequência,
maiores condições para mobilização e cobrança aos poderes instituídos para que cumpram o
que lhe é dever.
As concepções teóricas associadas a essa proposta defendem que o processo de
formação intelectual do professor pode conduzir a certo nível de emancipação, da percepção
de si enquanto sujeito construtor de sua própria história. Tais pensamentos estão radicados nas
obras de Pedro Demo, Marie-Christine Josso e sustentado ainda na pedagogia de Paulo Freire.
Esses autores defendem que o professor deve ter uma sólida e permanente formação. Nota-se
nesses teóricos um contundente esforço para resgatar o papel primordial do professor no seu
oficio de cuidar da aprendizagem, sua e de seu alunado, num desejo de ultrapassar os limites
formatados em parâmetros estabelecidos por objetividades históricas, abrindo caminho em
direção à autonomização.
Para Pedro Demo (2001) a emancipação e a autonomização é o processo de tomada de
consciência do sujeito. Nas palavras do autor a emancipação é “o processo histórico de
conquista e exercício da qualidade de ator consciente e produtivo. Trata-se da formação do
sujeito capaz de se definir e de ocupar espaço próprio, recusando ser reduzido a objeto”. (p. 78).
Esse percurso não vem de fora para dentro, não é algo dado, imposto como regra a
ser cumprida na atividade laboral, esse esforço de passagem de ser instrumental para um ser

138
pensante no âmbito da sua existência acontece progressivamente de dentro para fora, como
aprendizagem reconstrutiva33. E isso se dará com base em um questionamento crítico,
reconhecendo-se como integrante de um quadro histórico construído, ao mesmo tempo
esforçando-se para romper com os limites derivados dessa condição.
É, portanto, nesse ambiente arraigado em estruturas pouco favoráveis a mudanças,
repleto de adversidades que se encontra a escola, o professor e sua prática docente. É nesse
espaço de conflitos, disputas que acontece a educação real, aquela da qual faz parte
efetivamente o professor, o aluno, a escola, a família, enfim, é aqui o lugar que a educação e o
professor se fazem concretos.
Desse lugar de vivências e construção de experiências do cotidiano escolar e da
prática do professor que se busca, doravante, estabelecer delineamento dessa proposta para
formação do professor de História. Tendo esse contexto como pano de fundo, esse
pensamento que eleva o professor, não apenas como um instrumento para reprodução, um
copista de produções alheias, preestabelecidas a serviço de um sistema fechado, mas, antes,
que permita a discussão de um caminho metodológico que ofereça possibilidades desse
professor se construir num processo de formação com vistas à reflexão, tendo uma postura
crítica em favor da construção de sua autonomia e paralelamente a construção do aluno na
condição de sujeito.
Há, por sua vez, na ação do professor de História, pela própria particularidade que
compreende atualmente o lugar social do ensino da disciplina, uma inclinação para o
engajamento relativo a muitas questões de que trata o processo de ensino dessa matéria, como
ambiente de essencialidade crítica. Essa posição de quem procura olhar para a sociedade de
forma questionadora, vai encontrando cada vez mais um trabalho cheio de desafios em
relação ao ensino de História, tendo em vista o caráter de presentismo que influencia
sobremaneira as relações sociais incluídas nesse caminho.
Essa presentificação do tempo manifestada em diversas ações humanas, por um lado
pode embaraçar o trabalho do professor de História, pois sua ação parte da base de conceitos
como de tempo, memória, passado, historicidade dos sujeitos e etc. que se contrapõem, por
outro, a essa lógica, para emitir análise sustentada nos processos históricos. Essa condição,
por sua vez, exige esforço de desvelamento desse imediatismo obscurantista presente no
mundo contemporâneo.
Em discussão sobre o que precisa saber o professor de História no seu processo de

33
Esse conceito terá maior esclarecimento no tópico: aprendizagem reconstrutiva do professor.

139
ensino, Caimi (2015) discute a centralidade do papel desenvolvido pelo professor como
mediador decisivo na materialização das finalidades educativas dessa disciplina. Para tanto,
relaciona três dimensões de saberes a serem mobilizados pelo professor na docência da
disciplina História. Assim, seria a correlação entre o conhecimento acerca da epistemologia da
própria História, a historiografia e ainda o conhecimento acerca do processo de saberes para
ensinar incluindo aí elementos sobre a docência, o currículo, a didática e a cultura escolar, bem
como conhecimentos relacionados ao processo de aprendizagem histórica do aluno.
Esses três elementos estão, de acordo com o que ressalta a autora, na discussão como
pressuposto básico para o ensino da disciplina de História. Dito de outra maneira, diz-se que
para ensinar História o pressuposto básico é compreender sobre ensinar, sobre o objeto
disciplinar e ainda sobre o processo de aprendizagem voltado para a formação do pensamento
histórico, não bastando, pois, conhecer conteúdos históricos ou pedagógicos separadamente
(p. 107, 111 – 112).

Aprendizagem reconstrutiva do professor

O professor é compreendido aqui como pilar essencial de convergência para a


melhoria do desenvolvimento educacional do aluno, tendo no esforço de aprendizagem
reconstrutiva fator preponderante nesse processo.
Reconstruir, nesse sentido, seria, objetivamente, aprofundar exercício de um
questionamento reconstrutivo das realidades estabelecidas, empenhando-se, ao mesmo tempo,
num processo analítico de desconstrução, procurando desvendar fenômenos para além da
superficialidade e consecutivamente exercitando reconstrução com estilo próprio, manejando
conhecimento feito à mão, incluindo-se como sujeito pensante no processo, não mais focado
exclusivamente na lógica única da reprodução, mas de fato numa reconstrução do
conhecimento, desempenhando isso de maneira contínua.
Aprendizagem reconstrutiva, assume assim, como sendo uma permanente capacidade
de aprender do professor, colocando como pauta de reflexão, suas experiências de vida e
formação, sua prática docente, suas relações sociais, enfim, os desafios sócio-histórico-
culturais-educacionais presentes no exercício da profissão, confrontando com outras
realidades, como também com os ideais educacionais presentes nos debates, nas rodas de
conversas, nos sonhos aspirados, nas teorias, chegando enfim as suas conclusões temporárias.
Reconstruir, não assume assim caráter de reciprocidade única com a reprodução pura e
ingênua, mas com a ideia de questionamento, reflexão, análise, emitindo no itinerário de

140
desconstrução o processo de reconstrução do conhecimento, do que já é dado como sabido,
com traços de interpretação inovadores porque tem algo novo, pessoal na trama da
elaboração. “Reconstruir a realidade significa partir dela, e a aprendizagem reconstrutiva é
aquela que parte do que já sabemos”. (DEMO, 2000, p. 54).
Encarnar, pois, o exemplo do processo permanente de aprendizagem reconstrutiva
constitui-se assim um caminho acessível para que o professor, paulatinamente possa constituir
problematizações das próprias práticas instrucionistas, tão presentes no meio educacional.
Iniciado nesse caminho, mesmo que lentamente, vai se construindo certo nível de rompimento
consciente com essas práticas que reduzem, tanto o professor, quanto seu aluno a meros meios
de reprodução de conteúdos embutidos em parâmetros estabelecidos e arraigados na
manutenção das estruturas sociais.
A feição de permanência que assume a construção dessa proposição dirige-se aos
estudos realizados por Marie-Christine Josso, também desenvolvidos nessa ótica do professor
como construtor de história própria. Suas pesquisas, com extensas experiências no campo da
formação, apoiam-se, entre outras, nas experiências formadoras, isto é, aquelas experiências
consideradas por seus narradores como sendo significativas para suas aprendizagens e
constituição evolutiva de si mesmo no seu ambiente humano e natural. Essas experiências em
relação ao questionamento reconstrutivo do professor contribuem e orientam a construção da
reflexão pela via da narrativa, falada e escrita de história de vida, sobre o curso e as condições
de sua formação, observando no trajeto as subjetividades que integraram e integram as
atitudes, pensamentos, os saberes presentes na prática docente.
Falar, registrar por escrito, sobretudo seguindo as normas formais de elaboração
escrita das próprias experiências, das motivações que lhe estimularam a ser professor de
História, aspectos positivos, negativos da profissão, lembranças mais fortes do percurso
estudantil, os diferentes ambientes formativos pelos quais fizeram parte desse trajeto, imagens
consideradas boas e ruins de professores, a passagem pelo curso de formação básica da
Licenciatura em História, a relação da prática docente com o aprendizado na preparação
universitária, enfim e de maneira geral, associando tudo isso mais à prática docente com seus
desafios diários, pode vir a reforçar, pois, as qualidades pessoais, à medida que essas
experiências vão sendo contadas a si mesmo, apoderando-se, a seu tempo, de sua própria
existência e conhecimento de si como ser construtor de história.
Nessa trajetória de olhar para si como sujeito que tem uma história particular imersa
num contexto amplo de outras histórias e que nesse processo também faz história e ainda, que
exerce uma profissão que ensina História, convém realçar o que aborda Schmidt e Garcia

141
(2003) ao discutir sobre o trabalho histórico na sala de aula, enfatizando que tanto o
conhecimento quanto a prática de investigação compõem estreita ligação com a construção do
pensamento histórico, intermediado pelo professor junto aos alunos. Inclui-se ainda nesse
percurso alicerçado pelo conhecimento e investigação a ideia de reconstrução que nesse caso
afina-se quase que como exigência do registro historiográfico.
Nesse percurso em que se soma esforço contínuo em desvelamento das velhas
estruturas da História objetiva referenciadas por fatos, nomes, datas, etc., que sustentaram o
ensino da disciplina por longo tempo e, por isso mesmo ainda exerce forte influência sobre
sua matriz curricular, vão emergindo sinais em novas propostas e em ações de professores que
indicam em direção a mudanças na promoção de reflexão do pensamento histórico de
professores, incluindo questões inseridas na atualidade.
Ensinar e aprender pela pesquisa nesse sentido apoia-se num tripé formado pelas
experiências formadoras, uma base teórica e a reconstrução do conhecimento; cada um com
substancial relevância na sua particularidade, contudo, indissociáveis no curso do
reconhecimento de si mesmo como sujeito num processo de uma tomada de consciência
avivando o aspirado caminho da emancipação.

O processo do caminhar para si apresenta-se, assim, como um projeto a ser


construído no decorrer de uma vida, cuja atualização consciente passa, em primeiro
lugar, pelo projeto de conhecimento daquilo que somos, pensamos, fazemos,
valorizamos e desejamos na nossa relação conosco, com os outros e com o ambiente
humano e natural. (JOSSO, 2004, p. 59).

As experiências formadoras, no contexto das histórias de vida desse modo, permitem


a elaboração de uma auto-orientação, isto é, o sujeito inicia reflexão sobre si mesmo
dinamizada por meio das diferentes experiências que, de forma deliberada ou não, criam
condições e possibilidades, influenciam as iniciativas, tangíveis ou intangíveis em direção a
uma tomada de consciência. Essas iniciativas elaboradas pelas narrativas autobiográficas das
histórias de vida e formação, de natureza reconstrutiva, oportunizam o professor, ao ponderar
sobre sua existência, pouco a pouco se tornando autor, à proporção que vai refletindo sobre
suas práticas, saberes e experiências em geral, inclusive de formação, no contexto da sua
temporalidade, sob um olhar retrospectivo e prospectivo dos ideais do sujeito.

É no decurso desta situação, em que o presente é articulado com o passado e com o


futuro que começa, de fato, a elaborar-se um projeto de si por um sujeito que orienta
a continuação de sua história com uma consciência reforçada dos seus recursos e
fragilidades, das suas valorizações e representações, das suas expectativas, dos seus
desejos e projetos. (JOSSO, 2004, p. 60, 61)).

Embora a construção de narrativas autobiográficas, tendo as experiências contidas

142
nas histórias de vida como referência, se sobressaia no processo de elaboração reconstrutiva,
começando pelas iniciativas particulares da dinâmica própria de cada sujeito, inerente à sua
trajetória de vida e maneira de ver e estar no mundo, sua presença e afinco intrínsecos ao
encadeamento de sua dimensão formativa, não exonera a participação de outrem, do coletivo,
principalmente dos pares na profissão. O que se espera é que a atitude de encarar com
insistência, de forma sistemática e consecutiva o desafio reconstrutivo da aprendizagem,
empreendendo com dedicação esforços em vistas ao ideal de emancipação, sirvam como
sustentáculo pessoal, e que possa sempre incluir a visão e entendimento de outras pessoas,
grupos na intenção de construir juntos confrontos de interpretações e perspectivas,
valorizando cada vez mais as relações de alteridade nos temas socializados.
Tanto Demo, quanto Josso apontam para importância dessa relação da associação do
trabalho pessoal ao coletivo. Que a singularidade desse esforço reflexivo sobre si mesmo
incluído em ambiente comum, agregando nessa situação algum apoio teórico, pode contribuir
no empenho reconstrutivo, englobando principalmente a prática docente como ponto crítico
para uma problematização, incorporada à iniciativas de trabalho grupal, podendo daí emergir
composição de ideias arrojadas oriundas da discussão do coletivo, mas com o posicionamento
fundamentado de cada um dos envolvidos.
Ou seja, deve-se, assumir o devido cuidado, no sentido de atentar para o fato de que
um trabalho coletivo é concebido a partir da contribuição de cada um dos membros do grupo,
de forma sistemática e fundamentada, caso contrário o que poderia ser um excelente ambiente
de reflexão coletiva, exercício democrático, análise de práticas, pontos de vistas, reconstrução
de saberes, poderá servir apenas de refúgio para ocultar certa apatia pedagógica que teima em
prosseguir no ambiente escolar.
Essa cautela deve ser ponderada, tendo em vista o que comumente se nota na rotina
escolar, onde os trabalhos de grupo, sejam entre alunos ou até nas ações de gestão de aspecto
democrático, que adotando o esforço coletivo como modo de encaminhamento das propostas
educativas da escola, tende na ocorrência de reuniões, às vezes enfadonhas, maçantes,
desconexas, a gerar pouca produtividade, constituindo-se a partir de conversas grupais sem
conexão, com pouco ou nenhum fundamento científico. “Decisivo é o projeto coletivo,
expressamente coletivo, como soma articulada de todos os envolvidos na escola, em particular
do corpo de professores e pedagogos” [...]. (DEMO, 2001, p. 36).
Sobre essa necessidade de sustentar o trabalho, a reflexão pessoal e coletiva como
ambiente estruturante nessa expectativa de formação, Josso (2004) realça a importância dessa
relação, onde o que é particular, fruto de uma introspecção, passa a ser confrontado com a

143
diferença contida no olhar do outro, gerando debate, crescimento pessoal e coletivo, brotando
desenvolvimento “[...] no confronto com o olhar de outrem, jogando com os efeitos de
contraste que essa confrontação gera.” (p. 61).
A consistência do enunciado acerca da aprendizagem reconstrutiva, desse modo,
configurada a partir de iniciativa pessoal, mas sem perder de vista o todo, o coletivo,
apoiando-se nas narrativas das experiências de vida e formação, nutrindo-se pelo
questionamento de caráter reconstrutivo e fundamentando-se em teorias correlatas, situa-se na
confluência entre os ideais educacionais que figuram com mais vigor no horizonte de
expectativas que circula nos debates firmados na construção da emancipação e, o exercício
objetivo do fazer pedagógico do professor, procedendo como caminho possível de ser traçado
em vista a uma formação contextualizada e sugestionada pela efetiva participação dos sujeitos
nela envolvidos.
É nesse entendimento de que a expressão individual, alimentada pela perseverança
deve andar indissociavelmente com as manifestações do coletivo, que se insere a Roda de
Conversas, um espaço apropriado para a socialização de experiências e traçar expectativas e
visão de mundo. Ambiente onde as reflexões pessoais serão postas em discussão no confronto
com outras opiniões e visões de mundo, numa busca conjunta, a partir da colocação em
comum de experiências, de alternativas possíveis para o enfrentamento dos desafios da prática
docente. Assim, essa proposição metodológica condiz com o que se vem discutindo,
referenciado pelo que se busca de maior valor proveniente da educação e do professor, que é
valorizar o ser humano para além dos parâmetros mercadológicos.

Elaboração como exercício reconstrutivo e formativo

A elaboração própria como registro escrito sistemático da análise de experiências,


diálogos, leituras, práticas, enfim, de uma visão de mundo, que nasce na relação interior e
exterior, urge como uma alternativa possível para engrenar a prática docente ao contínuo
processo de formação na perspectiva da autonomia. Esse exercício acolhe em si, indícios de
hábitos permeados por constantes reformulações, os quais combinam como um bom caminho
para a práxis educativa.
A insistência é que a pesquisa e a elaboração integre essa discussão entre os desafios
educacionais favoráveis e passe a constar como instigação normal e corriqueira na formação
dos professores, oportunizando uma escalada por esse meio, superando cada vez mais os
limites presentes nessa atividade. O exercício da elaboração pessoal e coletiva, cada uma
assumindo seu devido lugar no jeito reconstrutivo, munidos de certo grau de autonomia,

144
atitude crítica-analítica para além das superficialidades, passa a ser assim, o que se espera da
natureza educativa do professor.
Ao se apresentar a pesquisa como sendo um jeito, dotado de possibilidades para a
formação, indica-se, por conseguinte, que tal proposição não requer do professor que realize
operações científicas, sofisticadas, de alta complexidade, já de cara, seguindo ao nível da
academia, para poder incluir-se nesse processo de elaboração reconstrutiva. Não, embora se
busque caminhar cada vez mais para o aprimoramento das pesquisas, seguindo normas cultas,
essas podem ganhar, inicialmente, um caráter propedêutico, assumida como princípio
educativo, atentando, contudo, crescentemente para o devido cuidado metodológico para não
cair no risco de banalização da expressão da pesquisa, usada com frequência no ambiente
escolar. Uma produção projetada nessa direção, de pensar de forma sistemática o ambiente em
que o indivíduo se encontra, procurando perceber com maior nitidez o movimento da
engrenagem social, a qual está inserido, já faz parte de um esforço ativo considerável rumo a
elaboração reconstrutiva.
A pesquisa como princípio educativo, pois pode ser percebida como parte dos
processos nascidos com objetivos de reconstruir o conhecimento, saberes já ordenados,
sobretudo, aqueles que abarcam a complexa prática cotidiana vivida pelo professor. Uma
exemplificação disso pode vir pela relação do docente com os conteúdos, com o currículo,
com o processo de ensinar, a verificação da aprendizagem entre os alunos, relação com as
famílias, etc., ingredientes que integram o trabalho pedagógico do professor e exige uma
constante tomada de atitudes.
Repensar esses conhecimentos, experiências, sua e/ou de outrem, dando-lhe seu
toque pessoal, refazendo-os a fim de confrontar com outras realidades, associa-se ao que se
está indicando como pesquisa em nível inicial, impactando desse modo, a ordenação das
velhas práticas instrucionistas de transcrição. Seguindo nesse caminho, com insistência e
persistência, o professor passa a aprimorar em si mesmo, atitude de aprender pela pesquisa e
elaboração própria, sobrepondo iniciativa e curiosidade ativa de quem procura ler o mundo à
sua volta, enfrentando a acomodação reprodutivista.
O questionamento reconstrutivo sobre um determinado assunto a ser pesquisado e
elaborado, encontra-se no cerne desse processo, como sendo o procedimento metodológico
diferencial que identifica o caráter de um pesquisador nas condições aqui discutidas, seja em
qualquer estágio de experiência. O que vai diferenciando os níveis desse exercício será o grau
de complexidade e sofisticação de cada um, contudo, o eixo de sustentação deve ser mantido,
no sentido de buscar sempre problematizar principalmente o que é tido como dado,

145
naturalizado no contexto de sua vivência.
Compreende-se que o encaminhamento dessa proposta reveste-se de grandes
desafios, considerando que a estrutura do sistema educacional está concebida de maneira a
blindar padrões estabelecidos de ciência, metodologia em contraposição à diversidade da
realidade vivida e a alternativa de conceber o professor não apenas como agente de
transmissão, mas como sujeito que problematiza e constrói conhecimento.
Por esse ângulo, o professor ao internalizar que deve assumir postura de
questionamento reconstrutivo e procura fazer isso progressivamente no percurso de seu
trabalho, começa descortinar suas metodologias, suas relações, sua postura profissional, etc.,
tido por vezes, como padrão, procurando analisar com certa sagacidade esses modelos,
problematizando visões pré-definidas dominantes no metier da História ensinada, inclusive
fazendo-se a si próprio, suas experiências como fontes.
Nesse caminho de revisão da forma de exercer a profissão, aderindo ao exercício do
questionamento reconstrutivo pela via do exercício da elaboração, entende-se que o caráter
dissimulado contido em aparência de neutralidade e objetividade da História como verdade
inconteste vai se restringindo e elucidando-se frente ao olhar do professor.
Ao se procurar aliar essa relação de produção do conhecimento histórico e seu
ensino, associando o professor como historiador reciprocamente, soma-se força nesse
processo, pois sendo o historiador-professor quem dá vida aos fatos, ao seu objeto de estudo,
de acordo com suas experiências formadoras, de modo consequente, aproxima-se cada vez
mais a relação entre fazer, escrever e ensinar História. O que pode, a partir daí, derivar
discussão de certa visão passiva e despolitizada contida na História, fraturando ideias
predominantes sobre profissionais que se formam com a incumbência de assumir papel
somente de professor vulgarizador de conhecimentos alheios, desconsiderando a necessidade
de aprofundamento e reflexão histórica.
Nessa linha de pensamento, Fenelon (2008) desenvolve argumento sobre como tem
ocorrido à lógica do sistema educacional, destacando a História enquanto parte das ciências
humanas instituída, a priori, como instrumentos de reprodução ideológica de sistemas. Tem-se
percebido nesse percurso, como exemplo, a redução de carga horária, a presença de uma
história tida como oficial ou mesmo a dissolução da disciplina em outras como Estudos
Sociais, Educação Moral e Cívica e Organização Social e Política do Brasil, no intento de,
dissolver, por um lado a especificidade da disciplina, fortalecendo, por outro, arranjos
adequados à prática educativa direcionadas à repetição, reprodução em direção a uma
compreensão de nacionalidade uniforme. Na expressão da autora:

146
Não tenho dúvida de que para fazer avançar qualquer proposta concreta como
professores de História [...], temos de assumir a responsabilidade social e política
com o momento vivido. Para isso seria necessário antes de mais nada romper com
uma maneira tradicional de conceber conhecimento, sua produção e sua transmissão.
Isto significa, para mim, em primeiro lugar, o posicionamento no presente, para
sermos coerentes com a postura de ‘sujeitos da História’. (FENELON, 2008, p. 23 e
24).

É, pois, partindo da realidade complexa e concreta da atuação do professor, aqui


particularmente, de História, que essa proposta de formação, assentada na pesquisa e
elaboração, ajusta-se, no entendimento de que essa venha abrir caminho possível para
fortalecer sua formação ao longo da vida. O propósito é que na medida em que o sujeito vá
exercitando elaboração, começando a partir de situações mais simples em direção ao
complexo, apoiando-se em autores e respaldando-se em sua realidade concreta, incluindo-se
como parte desse processo, vai também ampliando sua visão de mundo e se encontrando
historicamente.
A escolha desse caminho ampara-se, além dos fundamentos já apresentados com
base nos autores, nas narrativas escritas e faladas, realizadas com as professoras participantes
da pesquisa para dissertação de Mestrado. Seus relatos de vida e experiências, juntamente
com os fundamentos teóricos dispostos, abrem assim curso para um campo de
possibilidades34, estabelecendo o que pode acontecer a partir do que é desejado e alicerçado
em atitudes que se encaminhem para o possível.
Há, pois, uma relação objetiva da prática, da experiência, dos dados, dos textos, da
vivência explícita do professor, com as subjetividades também presentes na forma como
selecionam e relatam as experiências, na maneira como reagem aos desafios constantes, como
se percebem enquanto professores, etc. Ainda, como lidam com a influência de teorias
relacionadas ao seu trabalho, à sua relação com o processo de aprendizagem histórica dos
alunos, entre outros. Essa relação vai definindo assim um potencial horizonte de
expectativas35 que pode estimular o processo formativo do professor no seu campo de

34
O campo de possibilidades é discutido por Portelli em “A Filosofia e os fatos”, salientando que a
representatividade social ocorre tanto relacionado à dimensão objetiva quanto na subjetiva, destacando que essa
é compreendida, não tanto pela reconstrução da experiência concreta, mas pelo delineamento da esfera da
experiência imaginável. “Não tanto o que acontece materialmente com as pessoas, mas o que sabem ou
imaginam que possa suceder. E é o complexo horizonte das possibilidades o que constrói o âmbito de uma
subjetividade socialmente compartilhada.” (PORTELLI, 1996, p.07, 08). No plano subjetivo, a
representatividade de cinco professoras de História, suas histórias de vida, formação, experiências de docência,
realidade escolar, desafios da profissão, se amplia, no campo das possibilidades, para toda a categoria,
considerando que as condições gerais disponíveis para o exercício do trabalho são semelhantes. Da mesma
forma, as iniciativas de formação possíveis para umas, abre-se, nesse entendimento, para todos.
35
Em Koselleck o futuro é tratado como um horizonte de expectativas e o passado como espaço de experiências,
mas tanto o futuro quanto o passado são inscritos em atos do presente. A expressão horizonte de expectativa ou
expectativa de futuro carrega em si a interpretação de que cada presente reconstrói e ressignifica, tanto o futuro

147
possibilidades.
Em torno dessa ideia vai se decifrando certa consciência na percepção de que a
História está submetida ao fazer humano e cada um é afetado diretamente pela história que vai
construindo, sendo essa contagiada pela claridade do futuro esperado. (MACIEL e
NOGUEIRA, 2017, p. 33). Evidentemente um passo fundamental será o empreendimento de
cada um, assimilando assim que a possibilidade de escolha exige empenho pela mudança,
dependendo, por isso do engajamento, do propósito a que se dispõe cada sujeito sobre a
construção de sua própria perspectiva profissional.
Num plano de objetividade estatística pode-se imaginar que esse é um processo lento
e dificultoso a se alcançar uma quantidade volumosa de professores, mesmo se pensando em
nível de um município, ou até indagar-se se o número de cinco professoras engajadas nas
narrativas para esse trabalho é suficiente para estimar um resultado significativo perante a
categoria. Por outro lado, num plano subjetivo, a possibilidade integrada ao horizonte de
expectativa, parte da premissa de que dentro das mesmas circunstâncias de trabalho,
considerando a História como disciplina comum, o mesmo recorte temporal que exerce a
docência, com desafios próprios desse tempo, o que é possível para um professor torna-se
também para outros incluídos nesse mesmo contexto.
Há, assim, nas relações das subjetividades uma abertura para a possibilidade, que
pode vir a converter-se em fato, derivando-se de um processo de experiências pessoais e
sociais que podem ser reconstruídas significativamente. Desse modo, as diversidades de
experiências comuns correlacionadas com as particularidades de cada professor constituem
esse campo de possibilidades compartilhadas. “Qualquer sujeito percebe estas possibilidades à
sua maneira, e se orienta de modo diferente em relação a elas. [...] Essas diferenças indicam
[...] que cada fragmento (cada pessoa) é diferente dos outros, mesmo tendo muitas coisas em
comum.” (PORTELLI, 1996, p. 9, - grifo nosso).
A iniciativa nessa proposição de formação, sem ignorar quaisquer outras realizações
de cunho institucional, é do professor e, nesse sentido, a atitude de empreendimento nessa
perspectiva da elaboração própria abrindo campo para a reflexão acerca da realidade
vivenciada encontra apoio no Plano Decenal de Educação do município de Imperatriz. Tal
plano discute no eixo gestão e valorização dos profissionais de educação, a formação
permanente como parte essencial da estratégia de melhoria da educação. O texto chama a
atenção para a importância de que sejam elaboradas políticas de valorização para que os

quanto o passado, entrelaçando as duas dimensões temporais na dimensão do presente. (MACIEL e


NOGUEIRA, 2017, p. 33).

148
professores possam vislumbrar crescimento profissional e continuidade de seu processo de
formação. Reforça ainda como necessário para essa estratégia, a reflexão sobre a prática
educacional, inclusive enfatizando a importância dessa formação por área de atuação.
(IMPERATRIZ, 2014 – 2023, p. 60 e 63).
O reconhecimento enfim, além dos ganhos intelectuais, enriquecimento histórico-
cultural, poderá recair sobre as condições gerais de trabalho e salariais do professor, tendo em
vista que o plano reconhece que essas circunstâncias influenciam fundamentalmente no
resultado dos trabalhos e que é preciso que haja investimentos financeiros nesse aspecto.
Como incentivo financeiro ainda, a gestão municipal pode atrelar esse processo de reflexão
envolvendo pesquisa e elaboração, partindo das experiências, como elemento de avaliação de
desempenho profissional, que é também discutida no plano como caminho para melhor
qualificação da educação.
Por exemplo, a Secretaria pode estabelecer critérios de melhoria salarial para os
professores com publicação em periódicos específicos e qualificados, ou, de outra forma,
pode compensar em tempo de hora/aula professores que produzem sistematicamente e se
disponha a socialização com outros, no sentido de compartilhar experiências, como será
exposto a seguir no item, roda de conversas. O reconhecimento revestido no salário pode vir
também em forma de incentivo à pesquisa e elaboração com valor percentual previamente
indicado, a exemplo de como já ocorre com o incentivo de sala de aula ao professor em
efetivo exercício.
Além do Plano Municipal de Educação (PME) que direciona para essa valorização, a
Lei 1601/2015, que trata do Plano de Cargos Carreira e Salários (PCCS) dos servidores da
Rede Pública Municipal de Ensino de Imperatriz, contém dentre seus objetivos a valorização
dos trabalhadores da educação através da formação continuada, qualificação do conhecimento
e remuneração digna como elementos de uma das estratégias para a melhoria da qualidade dos
serviços prestados à população. Nesse documento a avaliação do desempenho profissional
associa-se ao caminho da formação permanente reforçando que esse processo “deve ser um
momento de formação, em que o servidor tenha a oportunidade de analisar a sua prática,
percebendo seus pontos positivos e visualizando caminhos para a superação de suas
dificuldades, possibilitando dessa forma seu crescimento profissional”. (IMPERATRIZ, Lei
1601/2015, art. 14, inciso III, § 1º).
A proposta ora discutida, fundamenta-se tanto na dimensão teórica, experiencial,
quanto por outro lado, encontra respaldo na intencionalidade textual dos próprios documentos
oficiais do município, aproximando o que está sendo proposto para formação permanente para

149
professores da área de História às intenções contidas nos documentos.

Roda de conversa como espaço de socialização de experiências

Apresenta-se a roda de conversas nesse espaço, apresentando-a como parte


constitutiva da proposta metodológica em discussão, buscando inserir sua ambiência como
lugar propício à interlocução dos sujeitos envolvidos no processo de formação na perspectiva
reconstrutiva do conhecimento. A roda de conversas, nessa perspectiva, é vista como lugar
para a expressão baseada no diálogo, no pensamento sistematizado, na reflexão sobre
situações concretas vivenciadas em sala de aula, tendo como referência principal para as
discussões junto aos pares, a elaboração previamente realizada.
Esse espaço de conversas sugere ser um lugar de reflexão e problematização dos
fazeres e saberes docentes na construção de possibilidade que vise o envolvimento dos agentes
na revisitação de conceitos, práticas e, consequentemente, colocando-as na perspectiva da
reconstrução. Por isso esse ambiente, uma vez instituído com efetiva participação, apresenta-se
como elemento instigador de novas descobertas e aprendizagens dos participantes, na interação
entre si, com abordagens de temas comuns relativos à prática docente.
Por esse caminho passa similarmente ao apontado na iniciativa de elaboração, o
processo de desenvolvimento da autonomia do professor, que gradualmente vai pontuando
seus limites, desafios, angústias, etc. e confrontando com a elaboração sistemática em torno
dos temas abordados, ampliando com isso, o entendimento da historicidade dos problemas ao
seu envolto. O sentido, pois, dessa discussão em grupo com próxima afinidade vai para além
da simples troca de experiências, do espaço para o desabafo acerca dos contratempos
vivenciados, o encontro festivo, os quais já teriam em si um bom argumento, mas quer, para
além disso, encontrar concordância, somar esforços de caráter coletivo como iniciativa que
possa ser socializada e problematizada continuamente entre colegas de uma mesma função e
área do conhecimento, encontrando nesse processo motivação para a investigação e
problematização dos desafios encontrados, insistindo assim num repensar contínuo da prática.
A roda de conversas, portanto, deve promover o engrandecimento profissional dos
professores através da socialização e discussão das experiências particulares, bem como o
aprofundamento de temáticas que dizem respeito ao trabalho do professor de História, como o
ensino da História, aprendizagem em história, história da disciplina, a discussão sobre autonomia
do professore assim por diante, de acordo com aquilo que for mais requisitado pelo grupo. A
roda, na sua abrangência, cumpre um papel importante de motivar o processo de ensino,
formação, pesquisa, elaboração e consequentemente de retorno à socialização desses passos.

150
Interessante atentar para o fato de que esse exercício pode ser realizado com todos os
professores da área, devidamente organizados para tal finalidade, assim como pode ser
efetivado também apenas com parte desses, sendo assim a partir de dois, três, quatro, colegas,
enfim, que assumam o desafio de produzir na perspectiva da reconstrução e posteriormente
partilhar em caráter coletivo, ou mesmo aqueles que acenam para a participação somente
através da partilha oral de suas experiências, sem uma sistematização um pouco mais rigorosa
como a que se exige na produção de um texto. O importante nisso, resguardado os devidos
graus de profundidade de leitura e compreensão dos problemas levantados, é o
compartilhamento, a discussão, e o aprendizado extraído desse momento possibilitado pela
roda de conversas.
Assim, portanto, as rodas podem seguir uma calendarização de encontros presenciais,
com acordos previamente estabelecidos entre professor, escola e Secretaria de Educação,
procurando entendimentos possíveis na gestão para acomodar os dias e horários dentro do
calendário de trabalho dos professores, compreendendo essa iniciativa como sendo uma
atividade relevante no contexto do trabalho pedagógico e, portanto, com a devida atenção para
não sobrecarregar ainda mais a vida profissional do professor, mas podem também,
associadas a essa iniciativa, fazer uso das plataformas virtuais disponíveis e acessíveis,
mantendo-se com isso uma constância na interatividade do grupo, o que é bastante
conveniente no sentido de manter frequente vigor entre os envolvidos nesse desafio.
Imbernón (2011), embora não fale propriamente sobre essa metodologia, discute
nessa perspectiva, a ideia do professor exercitar a capacidade de interação com o resto do
grupo, com os iguais e até com a comunidade que envolve a educação. Essa capacidade
reflexiva em grupo enfatiza o autor, tem a ver com o desenvolvimento de estratégia coletiva
para formulação de ações sobre o ensino que possam enfrentar as divergências, dúvidas e
incertezas da complexidade do mundo atual. Nesse sentido, o espaço da roda de conversa,
compreendida também como espaço fecundo de formação, tendo a prática como ponto de
partida, assume um papel que transcende a mera atualização pedagógica, insistindo para que
esse ambiente favoreça de maneira ativa, a participação reflexiva, estabelecendo passos a
caminho de uma autonomia profissional que possa também ser compartilhada e somada com a
diversidade de experiências. Isso, como já mencionado, exige vigilância pessoal em vista a
mudanças de atitudes e posicionamentos nas relações com a profissão. (p. 15 e 16).
As diversas situações de ensino e aprendizagem, como realidade concreta de um
contexto educacional, determinado e específico, coeso com os conhecimentos profissionais
relativos a especificidade da disciplina, abrem possibilidades para ir delineando a conversão

151
das teorias em conhecimento experimentado ou, pelo avesso, a problematização dos pontos
críticos da ação prática com fundamentos nas teorias, impulsionando progressivamente o
processo formativo dos professores.
A partir da predisposição para uma revisão crítica da própria prática e formação, o autor
sugere alguns pilares para uma formação permanente, que para cá, adequa-se à roda de conversa:

Aprender continuamente de forma colaborativa, participativa, [...]; ligar


conhecimento derivados da socialização comum com novas informações em um
processo coerente [...]; aprender mediante a reflexão individual e coletiva e a
resolução de situações problemáticas da prática. [...] Compartilhar problemas,
fracassos e sucessos com os colegas. (IMBERNÓN, 2011, p. 73).

Ademais, a experiência da roda de conversa na realização deste trabalho 36, manifesta


a vitalidade presente nessa proposta de trabalho, tendo em vista a expressividade das
narrativas das professoras participantes, em falas repletas de virtudes construídas na
experiência particular da cada uma delas, que encontra ecos na oportunidade da socialização.
Por isso, a experiência da roda de conversas entre profissionais com histórias de vida e
formação diferentes e que por isso constrói experiências também particulares, mas que no
conjunto do trabalho, pela sua natureza educativa e social, depara-se com, situações
pedagógicas comuns e semelhantes, encontra amparo na roda com colegas que partilham
dessas convivências.
Por esta experiência, em particular, observou-se uma visível diferença entre o início
e encerramento da socialização. Os sorrisos afirmativos, a suavidade na relação e a própria
confirmação da importância de compartilhar com as colegas temas comuns do trabalho,
aponta essa metodologia como apropriada para a reflexão profissional, a partir da prática.

Considerações finais

Considerando o fluxo contínuo e de certa rotina concentrada principalmente na


prática vivenciada pelo professor, ao mesmo tempo a condição de permanente construção
deste agente profissional, essa proposta de formação ganha significado reconstrutivo tomada
assim a partir das experiências e assumindo esse ambiente específico de trabalho como ponto
assimilador.
O locus do trabalho do professor de História emerge como oportunidade de
problematização dessa realidade habitual, apontando caminhos para mudanças amparadas em
estudos, orientações, discussões, podendo abrir novos horizontes perceptíveis para o ensino de

36
Este trabalho é a parte propositiva de uma pesquisa de dissertação de Mestrado, realizada em 2018.

152
História.
Tendo em conta também que essa proposta, embora aponte para novas possibilidades
e ressignificação da relação do professor de História com sua prática e formação permanente,
não está consumado, mas se constitui como alternativa em direção a esse campo de mudanças
cada vez mais exigente na vida do professor.
Desta forma, é possível dizer que, ao longo da pesquisa realizada por ocasião da
conclusão do Mestrado em Ensino de História, houve significativo avanço na percepção
crítica sobre o caminho histórico constituído no ensino da História, ampliando e abrindo para
novos olhares sobre esse processo e, de forma geral, como ele se dá nos dias atuais a partir
das narrativas das professoras pesquisadas.
A base metodológica dessa proposta tem na sua essência o princípio da pesquisa e
elaboração como base para uma aprendizagem reconstrutiva do conhecimento, partindo do
registro da realidade vivenciada, dos dilemas presentes na rotina diária. O empenho pessoal e
o exercício da elaboração com mão própria tornam-se fundamentais para esse desafio que
pode começar com abordagem de aspectos mais simples, do dia-a-dia, aproximando-se cada
vez mais da complexidade da realidade, tendo na sua própria história de vida referência para a
pesquisa.

153
REFERÊNCIAS

CAIMI, Flávia Eolisa. O que precisa saber um professor de História? História & Ensino,
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IMPERATRIZ – MA. Prefeitura Municipal. Lei nº 1601/2015, de 23 de Junho de 2015, dispõe
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154
PARTE 3 –
GÊNERO, SEXUALIDADE E EDUCAÇÃO

155
AS IMAGENS DAS MULHERES NO LIVRO DIDÁTICO
DA EJA COMO METODOLOGIA DE ENSINO DE HISTÓRIA

Jucileide da Silva Almeida37;


Vera Lúcia Caixeta38

Introdução

Inúmeros são os desafios enfrentados na contemporaneidade pelos professores de


história na Educação Básica (Fundamental e Médio), em especial, na Educação de Jovens e
Adultos – EJA. Como professora de história do Ensino Médio, trabalhando com turmas da
EJA I e EJA II do Ensino Médio, compartilho das reflexões de Marcos Silva (2015, p.139-
161), Entre o espelho e a janela, quando ele afirma que a história é sequestrada aos alunos da
Educação Básica. No artigo, ao assinalar os traços da história ensinada, ele aponta para uma
narrativa retrospectiva do que se convencionou chamar de “História da Humanidade”, com
claro apagamento dos narradores, sugerindo que a história é contada por si própria e sem
disputas. Em seguida, ele mostra os desdobramentos desse reducionismo, que passam por
exclusões muito claras, como a supressão de mulheres da história e de todos os que não são
identificados como importantes. Assim, além do silenciamento sobre os diferentes sujeitos e
dos conflitos sociais, há uma seleção de temáticas desconectadas da realidade do aluno.
As inquietações sobre o ensino de história também estão presentes no artigo Desafios
do ensino de história (2008), de Marieta de Moraes Ferreira e Renato Franco, que, ao
apresentarem os percalços da disciplina, focaram na produção de material didático e na
formação do professor de história. Assim, todo debate sobre a produção de livro didático,
segundo os autores, envolve a variável econômica e o controle da história a ser contada. Entre
os desafios da produção do livro didático, eles ressaltaram o que e como ensinar, como
estender aos livros didáticos as constantes reinterpretações do passado, feitas pelos
historiadores acadêmicos, como apresentar o constante diálogo entre passado e presente,
inerente a qualquer reflexão historiográfica, compatibilizando uma visão crítica do passado
com a necessidade de síntese, clareza e objetividade, que as obras didáticas almejam. Enfim,
eles concluem que não é possível pensar o livro didático separado da formação continuada do

37
Graduada em Pedagogia e História pela UEMA. Mestre em Ensino de História pelo PPGEHIST/UFT. Atua
como professora da rede estadual do Maranhão.
38
Graduada em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Patos de Minas. Mestre em História
pela UNB. Doutora em História Social pela UFRJ. Atua como professora no curso de História da UFT/UFNT.

156
professor de história.
Ora, se a aprendizagem histórica na pluralidade das suas temporalidades, sujeitos e
temáticas está sendo negado aos/ás estudantes do Ensino Básico, e pelo visto, também não se
pode almejar a existência de um “livro didático ideal”, o caminho proposto, nessa pesquisa,
passa pela tentativa de recuperação das motivações dos/as estudantes da EJA. 39 No intuito de
alcançarmos esse objetivo, defendemos ser possível levá-los a desenvolver uma reflexão
crítica, no constante diálogo entre passado e presente, na perspectiva da história das mulheres,
colocando-os como sujeitos da história.40 Nesse processo de construção da autonomia dos
sujeitos socias, defendemos que as narrativas dos estudantes da EJA sobre suas experiências e
os seus olhares sobre a presença das mulheres no livro didático foram importantes
instrumentos metodológicos utilizados nas aulas de história.
Esta pesquisa se justifica por ressaltar a relevância do sujeito na história. Ao colocar
as narrativas dos/as estudantes no centro da investigação histórica, eles percebem que não há
neutralidade na produção do conhecimento, também não é possível apagar os narradores e
que, portanto, a narrativa histórica é construída com base em problematizações e
posicionamentos muito claros. Desse modo, não dá para ficar alheio frente às imagens e ao
texto histórico presente no livro didático, porque todo conhecimento envolve recortes,
disputas e posicionamentos dos autores.
Essas disputas estão bem presentes na contemporaneidade, principalmente quando
observamos o espaço de luta da disciplina de história. Há pressões por parte daqueles que se
sentem excluídos, como homens e mulheres em suas distinções de raça/etnia, idade, classe e
religião. Há disputas entre aqueles que querem ver suas trajetórias incluídas e daqueles que
querem manter sua hegemonia. E ainda daqueles que querem apagar ou reescrever o passado
para servir aos interesses do presente.
Assim, pesquisas como a nossa contribuem para fazer avançar as reflexões sobre as
questões femininas. Desse modo, é imperativo pensar que a construção de um imaginário
social, no caso específico, sobre as mulheres, é constantemente alimentada por imagens
presentes nos livros didáticos. Ora, sabe-se que gênero, na condição de categoria de análise,
ajuda a perceber os significados, os símbolos e as diferenças construídas histórica e
3
Aprendizagem histórica é um processo de fatos colocados conscientemente entre dois polos, ou seja, por um
lado, um pretexto objetivo das mudanças que as pessoas e seu mundo sofreram em tempos passados e, por outro,
o ser subjetivo e a compreensão de si mesmo assim como a sua orientação no tempo (RÜSEN, 2011, p.82).
4
De acordo com Daniela Auad, o gênero é um conjunto de ideias e representações sobre o masculino e o
feminino que cria uma determinada percepção sobre o sexo anatômico. E, então, ter pênis ou ter vagina, ser
menina, homem, mulher ou menino determina quais serão as informações utilizadas para organizar os sujeitos
em desigual (e irreal!) escala de valores. Ver: AUAD, Daniela. Educar meninas e meninos: relações de gênero
na escola. São Paulo: Contexto, 2016. p.21.

157
culturalmente para cada um dos sexos. Nesse sentido, as imagens femininas presentes no livro
didático de história de forma estereotipada contribuem para consolidar as hierarquias entre
homens e mulheres, além de fortalecer a manutenção de uma sociedade patriarcal.
Com o intuito de ampliar essas discussões no espaço escolar, apontamos
possibilidades do ensino de história das mulheres a partir da experiência dos/as estudantes da
Educação de Jovens e Adultos. Desse modo, articulamos as experiências e os saberes dos/as
estudantes na interpretação das imagens das mulheres no livro didático de história da EJA.
Como o passado das mulheres é apresentado nos livros didáticos e como os/as estudantes
percebem essas representações? Foram alguns dos questionamentos que trabalhamos nas
oficinas de interpretação de imagens.

Representações das mulheres

Certamente que a história das mulheres aparece atrelada às lutas feministas, “foram as
feministas que fizeram a história das mulheres, antes mesmo dos historiadores” (DEL
PRIORE, 2003, 220). Essa, história das mulheres, aparece a partir de 1970, mas ainda fica
relegada a segundo plano, “um trabalho de mulheres, tolerado ou marginalizado”, como
sublinha Del Priore (2003, p.221):

Evocando a subjetividade do privado, a história oral ajudou a restituir-lhe a


dimensão política, dando significação política aos discursos pessoais das mulheres.
A oralidade permitiu, assim, resgatar a identidade e a vida daquelas que vivem no
anonimato: donas de casa, solteironas, viúvas, empregadas, trabalhadoras, ou
miseráveis (DEL PRIORE, 2003. p.229).

A mulher não é apenas um complemento da história geral, ela é história também. De


acordo com Michele Perrot (2007, p.20), para o “advento de uma história das mulheres”, são
levados em conta fatores científicos, sociológicos e políticos. Nas relações de poder, o centro
de dominação é o corpo, em que, já na infância, com base na família, são delimitados espaços
ditos masculinos e femininos, impostas fronteiras reguladas pelo sexo, logo, para a criança,
ainda em formação, é definido que cores são adequadas, pelo fato de ser homem ou mulher, a
maneira de se comportar, os primeiros brinquedos. É também em torno desse corpo em que
“há tantos segredos” e é aí que “violência, medo, desejo, tudo isso se mistura, e o encontro
com diversas realidades incita a criar estratégias que serão as da dominação” (DEL PRIORE,
2003, p.230).
Tedeschi (2012, p.56) ressalta que as representações construídas em relação às
mulheres no passado delimitaram lugares para elas ainda presentes no imaginário de muitos:

158
“os discursos e saberes acabaram por naturalizar o papel e as funções do feminino”, passando
a “demarcar uma série de atribuições (...), docilidade, cuidado dos filhos, emotividade, (...)
características calcadas na ideia de uma boa mãe”.
As representações sociais não são neutras, assim, as diversas representações do
feminino não foram edificadas por considerar as qualidades e capacidades das mulheres, mas
para naturalizar as características desejadas de mãe, educadora, cuidadora do lar, submissa,
etc, “por razões que surgiram dentro de um sistema cultural ideológico” (TEDESCHI, 2012,
p.105). O conceito de representações sociais surge justamente de “uma crítica aos modelos
que reduziam a participação do sujeito, tanto na produção autônoma da história quanto da
consideração de sua capacidade criativa através de função simbólica complexa” (SOUZA
FILHO, 2004, p.110). Lahlou (2014, p.106 -107), aparando-se em Moscovici, postula que:

Toda representação é composta de figuras e de expressões socializadas.


Conjuntamente, uma representação social é a organização de imagens e linguagem,
porque ela realça e simboliza atos e situações que se tornam comuns.
Encarada de um modo passivo, ela é apreendida a título de reflexo, na consciência
individual ou coletiva, de um objeto, de um feixe de ideias que lhe são exteriores.
/.../. É neste sentido que nos referimos frequentemente à representação (imagem) do
espaço, da cidade, da mulher, da criança, da ciência, do cientista e daí por diante. A
bem dizer, devemos encará-la de um modo ativo, pois seu papel é modelar o que é
dado do exterior, na medida em que os indivíduos e os grupos se relacionam, de
preferência com os objetos, os atos e as situações constituídos por (e no decurso de)
uma infinidade de interações sociais.

As representações sociais são reiteradamente repetidas a ponto de serem


naturalizadas. Concordamos com Piscitelli (2002, p.8), quando assinala que, mudando a
maneira como as mulheres são percebidas, seria possível mudar o espaço social a elas
atribuído. Nesse sentido, os estudos feministas, ao privilegiarem discussões sobre a “categoria
de gênero, em detrimento de mulheres”, tratam de “propor a desconstrução da generalização
mulheres, que remete a uma entidade social branca e de classe média, para considerar as
multiplicidades e, sobretudo, para pensar as diferenças sexuais como construções sociais e
culturais” (RAGO, 1995, p.88). Gênero e sexo não são sinônimos, pois, enquanto as
diferenças sexuais são físicas, as diferenças de gênero são socialmente construídas. De acordo
com Strey (2013, p. 158), o gênero depende de “como a sociedade vê a relação que
transforma um macho em um homem e uma fêmea em uma mulher, cada cultura tem imagens
prevalecentes do que homens e mulheres devem ser”.
Para Jean Scott (1995), o gênero como categoria de análise nasceu da necessidade de
desnaturalizar as desigualdades entre homem e mulher e relacioná-las com a questão do
poder. Assim, segundo ela: “(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais
baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar
159
significado às relações de poder”. Tendo como referência essa definição, a autora elenca os
símbolos culturais que remetem a representações simbólicas como as figuras de Eva e Maria.
Conceitos normativos da religião, da política, da educação, da ciência, definindo o masculino
e o feminino, “o significado de homem e mulher”, o que Scott pontua como “uma forma de
clarificar e especificar como se deve pensar o efeito do gênero nas relações sociais e
institucionais”. Já sua segunda proposição articula a questão de poder, gênero é “recorrente”
na significação do poder, ou seja, é um espaço importante para entendermos a organização da
vida social (SCOTT, 1995, p. 86-88). Essas posições de sujeito são pautadas principalmente
pelas relações de poder.

As imagens femininas no ensino de História

A sala de aula é compreendida como espaço apropriado para uso de novas


metodologias, principalmente porque as imagens nos são apresentadas diuturnamente e,
portanto, há a necessidade de transformá-las em fontes. O trabalho proposto também
questiona a posição de professor/a detentor/a do conhecimento e de aluno/a ouvinte. Nesse
sentido, a educação precisa ser mais democrática, principalmente porque as experiências dos
jovens e adultos devem ser exploradas, expostas, valorizadas e significadas no espaço escolar,
além de possibilitar a ampliação do diálogo, entre a escola e vida prática.
Os livros didáticos aumentaram o número de imagens, buscando tornar o material
mais rico e expressivo para os alunos/as; as imagens chamam atenção e fixam com mais
rapidez do que um texto, embora imagem e texto se complementam, assim a imagem faz parte
de um enredo. Todavia, mesmo quando as imagens trazem em seu espaço de apresentação
explicações, é salutar que não se esgote seu estudo por elucidações que se apresentam de
antemão. De acordo com Trevisan (2011), as obras figurativas são imbricadas de várias
possibilidades de interpretações e representações. “A maneira como vemos as coisas é afetada
pelo que sabemos e pelo que acreditamos” (BERGER, 1999).
A metodologia da análise das imagens foi compreendida como “letramento visual”.
Os livros didáticos apresentam um significativo número de imagens que, muitas vezes,
passam despercebidas das discussões em sala, ou seja, são pouco problematizadas, pois a
leitura das imagens ainda se mantém distante do trabalho de muitos professores. 41 Portanto, é

41
MUAZE, Mariana A. Ferreira. Ensino de História e imagem: Territórios possíveis. In: ROCHA, Helenice.
MAGALHÃES, Marcelo e GOTIJO, Rebeca (Orgs.). O ensino de história em questão: cultura histórica, usos
do passado. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2015; BURKE, Peter. Testemunha Ocular: história e imagem. São
Paulo: EDUSC, 2004; LEITE, Miriam Moreira. Retratos de Família: leitura da fotografia histórica. 3. ed. –

160
preciso que os/as estudantes percebam que muitas características consideradas “naturalmente”
femininas ou masculinas, propagadas pelas imagens, correspondem às relações de poder de
uma dada sociedade, no tempo.
Lúcia Santaella (2012, p.6) defende o trabalho com imagens em sala, como parte da
alfabetização visual, para tal, ela sublinha como as imagens são apresentadas, seu contexto de
referência, a importância de conhecer os significados guardados nas imagens e as convenções
culturais da época. Ademais, “foi o livro um dos primeiros meios a dar acolhida aos
intercâmbios entre palavra e imagem”, apresentando, de um lado, “uma função cognitiva,
explicativa, técnica, pragmática, enfim, racional”, e de outro, uma “função imaginária –
função mágica, simbólica, enigmática, sugestiva” (SANTAELLA, 2012, p.63). Nesse sentido,
cabe uma orientação do professor para direcionar o trabalho em sala de aula ampliando as
percepções dos/as estudantes.
De certo, é preciso explorar o grande potencial interpretativo contido na fonte
imagética, como assinala Muaze (2015). Essa maneira de abordar torna mais significativo o
conteúdo para os/as estudantes, posto que a imagem fica mais facilmente gravada na
memória, o que complementa e facilita a leitura e a compreensão de um texto, quiçá
ultrapassá-lo.
A necessidade de interpretarmos as imagens parte da riqueza de informações que
podemos obter delas. Rossi (2009) chama de Relação Imagem-mundo quando o aluno
percebe a imagem como uma representação do mundo. A autora diz ser possível dividi-la em
três tipos. Uma em que o artista não tem nenhuma autonomia para interferir nessa realidade e
apresenta a imagem como ela aparece a ele, aproveitando as oportunidades colocadas pelo
acaso. Noutro tipo, o artista tem autonomia de montar ou escolher uma cena, mas o que ele
mostra ainda faz parte da realidade. Num terceiro tipo, o mundo ainda é o ponto de partida, só
que não mais o mundo exterior, mas o mundo interior do artista; ele coloca na imagem o que
percebe em consonância com seu mundo interior, e “seus sentimentos e humores determinam
os atributos da imagem e, portanto, a sua qualidade” (ROSSI, 2009 p.44).
Assim, a análise da relação imagem-artista – a responsabilidade fica em entender o
que o artista quis dizer com determinada obra – resulta da interpretação que ele faz de um
determinado sentimento. “O aluno passa a valorizar a expressividade que o artista consegue
impingir à obra como um todo. (...) uma imagem triste não é mais julgada como ruim, pois o

São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. MAUAD, Ana Maria. Através da imagem: fotografia e
história interfaces. Tempo. Rio de Janeiro, v. 1, n.2, 1996, p. 73-98. MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. Fontes
visuais, cultura visual, história visual. Balanço provisório, propostas cautelares. In: Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 23, n. 45, jul. 2003. Entre outros.

161
importante é a expressão pessoal (intencional) do seu autor” (ROSSI, 2009, p.48). Já na
relação imagem-leitor, há “consciência da atribuição de sentidos pelo aluno”. O trabalho do
artista tem várias implicações e cabe ao leitor perceber isso, e essa etapa depende da
habilidade cognitiva do aluno, e esse “aluno adquire consciência de sua atividade
interpretativa, (...) passa a assumir um papel ativo na construção dos significados da imagem”
(ROSSI, 2009, p.53-54).

Análise das imagens como metodologia de ensino

Um ensino de História através das imagens contribui para a formação de sujeitos


críticos e autônomos. Como destacam os PCNs (BRASIL, 1998c, p.37 e 38), eles “aprendem
regras sociais, costumes, agregam valores, projetam o futuro e questionam o tempo”. Pois
contam, refletem, analisam, observam, questionam. As experiências de jovens e adultos da EJA
são valorizadas no contexto da sala de aula e aproximam o/a estudante de uma educação que
faça sentido para sua vida prática. Ademais, o diálogo entre o presente e o passado pode
contribuir para a ampliação da consciência histórica.42 Para essa etapa, propusemos um
conjunto de questionamentos, Apêndice I e II, que pudessem orientar a observação das imagens.
Guiamo-nos para sua formulação à maneira como Maria Helena Rossi (2009, p.38) discute a
imagem (relação imagem-mundo, relação imagem-artista e relação imagem-leitor), embora não
tenha seguido à risca essas determinações, foi com base nelas que realizamos a oficina.
Nossa pesquisa teve itinerário rico em discussões e momentos de aprendizagem. Para
estimular uma discussão em sala foi aplicado uma dinâmica em que os/as estudantes
apresentassem três características que atribuem a homem e mulher, a partir delas foram feitas
rodas de conversa em sala de aula, em que eles discutiram essas questões como beleza,
trabalho, força, coragem. Nessas falas chegou-se a ideia dos espaços “ditos femininos”, das
implicações que essas delimitações tinham para a vida de ambos, o questionamento sobre
quem seria responsável por delimitar espaços e funções associadas ao sexo.
Na aula seguinte partimos para a investigação das imagens no Livro Didático de
História da EJA. Para o andamento da proposta, foram trabalhadas duas oficinas sobre
imagens. Na primeira, seguiu-se o roteiro 1, Apêndice I, que teve por objetivo investigar
como o livro didático representa imageticamente a mulher e como ela é percebida pelos/as

42
Percebemos consciência histórica na perspectiva de Jörn Rüsen, que afirma será suma das operações mentais
com as quais os homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si mesmos, de
forma tal que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no tempo (RÜSEN, Jörn, Razão Histórica:
teoria da história: os fundamentos da ciência histórica. Tradução de Estevão de Rezende Martins. - Brasília:
Editora da UnB. 2001 p.57).

162
estudantes.

A partir daí foram estimulados, a partir de questionamentos específicos a observar


atentamente como essas mulheres apareciam nessas imagens. Embora os livros tenham feito
modificações no sentido de dar visibilidade as chamadas minorias, ainda assim: “O livro
didático sequer considera a mulher fora do seu espaço privado, ou seja, como alguém que
participe do espaço público, do espaço da produção e do poder” (MARQUES, 2007, p.209).
Segundo Marques (2007, p. 213) é desconsiderada a relação espaço-tempo quanto à maneira
como a mulher é apresentada frente às relações familiares, sequer a “emergência dos
movimentos de mulheres em luta por melhores condições de igualdade e de dignidade,
escamoteando as lutas sociais por qualificação por detrás da naturalização, da (a) historicidade
e da conciliação”.
Na sequência foi pedido aos alunos/as que escolhessem uma imagem que desse conta
das questões de gênero, raça e classe social. Eles ressaltaram que as mulheres estão
representadas negativamente em se comparando com os homens, principalmente quando são
mulheres negras. Eles descreveram as imagens, mas a maioria não percebe a associação
dessas com os textos em que elas aparecem, ou porque realmente não há relação ou porque
têm dificuldade de relacionar ou ainda porque não tiveram curiosidade de ler o texto, os
chamados “escapes43”. Muitas imagens não contemplam nenhum texto. Elas aparecem apenas

43
Escapes - “são formas-de-fazer-o-que-efetivamente-não-é-feito. Assim, acatar determinada proposta de
trabalho, cumprindo de modo formal o que foi solicitado (como, por exemplo, a escrita de um texto), pode não
necessariamente significar fazer o trabalho” (COLLELO, 2012.p.221). Segundo essa autora, nem sempre os/as
alunos/as entendem o que é pedido, podem se desviar do objetivo, ou ainda se omitir na hora de fazer a tarefa,
mesmo entendendo do que se trata.

163
para chamar atenção para a página do livro, para cumprir um trabalho gráfico. Para Marques
(2007, p.211):

Não se pode esquecer que a questão da mulher (...) no livro didático deve ser
associada à própria concepção de família como instituição fundamental, também
sem contradições em sua organização modelar, na nossa sociedade harmônica.
A família protege o indivíduo e expressa os papéis bem definidos de seus membros
nessa microssociedade fundada na conciliação.

Ao observar atentamente as imagens, as mulheres são apresentadas apenas como


decoração, raramente são problematizadas. Embora as imagens estejam apresentando a mulher
trabalhando no espaço privado, não é apontado texto que estimule a discussão sobre a posição
de mulher trabalhadora na sociedade, sendo um trabalho sem mérito, subestimado, mesmo que
importante para o sustento e a sobrevivência da família, ele chega a ser invisível. Ou seja, há
uma desvalorização do trabalho feminino, considerando que “(...) A ideologia dominante
caracteriza a experiência feminina no mundo do trabalho como menos importante e de menor
valor que a masculina” (PINSKY, 2013, p.503). De acordo com Rago (2017), é uma visão
direcionada em apagar a imagem da mulher trabalhadora e estimular a da dona de casa.
Os/as estudantes identificam que as mulheres ainda aparecem pouco nas imagens e
quando ocorre, são destacadas como frágeis e submissas. Eles/as percebem que hoje as
mulheres estão mais atuantes, mas que as imagens ainda se prendem a uma concepção
tradicional das mulheres e da família. Embora a maioria perceba as mudanças ocorridas ao
longo do tempo com relação a inserção social das mulheres no espaço público sua visibilidade
no livro didático ainda é precária.
De certo, os/as estudantes percebem e defendem as conquistas dos direitos femininos
ao longo do tempo, no entanto, ainda existe a necessidade de mudanças, principalmente
relacionadas a cor/raça e ao gênero. Enfim, as mulheres não brancas estão em situação de
precariedade econômica e social. Toda uma discussão sobre a questão do racismo estrutural
foi realizada. As questões de gênero e raça apareceram de forma muito imbrincada.
As desigualdades de gênero e de raça parecem visíveis nas imagens dos livros e
também nas percepções dos/as estudantes. Ainda existe uma dificuldade em afirmar que as
mulheres exercem as mesmas atividades que os homens e que muitas mulheres sustentam
seus lares. Evidências como as colocadas por Fonseca (2017, p.517) ainda se fazem presentes:

Ironicamente, apesar de ser evidente que em muitos casos a mulher trazia o sustento
principal da casa, o trabalho feminino continuava a ser apresentado pelos advogados
e até pelas mulheres como um mero suplemento à renda masculina. Sem ser
encarado como profissão, seu trabalho em muitos casos nem nome merecia. Era
ocultado, minimizado em conceitos gerais como serviços domésticos e trabalho
honesto.

164
Os/as estudantes foram indagados se já haviam trabalhado sobre questões de gênero
na escola e eles foram unânimes em dizer que esse é o primeiro momento de eles e elas
falando sobre isso. Pontuam assim outra necessidade, que é discutir sobre a mulher, discutir
sobre as relações de gênero, raça e classe social no espaço escolar. Pontos que, segundo os
temas transversais44, são para se trabalhar em sala de aula, tem-se que:

A história das mulheres, suas lutas pela conquista de direitos e as enormes


diferenças que podem ser encontradas ainda hoje nas diversas partes do globo,
constitui tema de estudo, tanto em História quanto em Geografia e mesmo em
Matemática, ao utilizar dados para análise dos avanços progressivos do movimento
de mulheres ao longo do tempo. Esses avanços se referem principalmente à maior
participação das mulheres na esfera pública em todos os aspectos: na política, na
cultura, no trabalho remunerado e outros (BRASIL, 1998a, 323).

Na segunda parte da oficina, foi apresentado o roteiro II, Apêndice II, para que os
estudantes pudessem relacionar imagem-mundo e problematizassem a posição da mulher
como representada e suas interpretações.

44
Por serem questões sociais, os Temas Transversais têm natureza diferente das áreas convencionais. Tratam de
processos que estão sendo intensamente vividos pela sociedade, pelas comunidades, pelas famílias, pelos alunos
e educadores em seu cotidiano. São debatidos em diferentes espaços sociais, em busca de soluções e de
alternativas, confrontando posicionamentos diversos tanto em relação à intervenção no âmbito social mais amplo
quanto à atuação pessoal. São questões urgentes que interrogam sobre a vida humana, sobre a realidade que está
sendo construída e que demandam transformações macrossociais e também de atitudes pessoais, exigindo,
portanto, ensino e aprendizagem de conteúdos relativos a essas duas dimensões. (BRASIL, 1998b, p. 26).

165
A casa e a rua
Imagem 1 Imagem 2

Nessa segunda etapa da oficina os/as estudantes selecionaram imagens de Jean-


Baptiste Debret. A opção pelas imagens foi por ambas apresentarem autoria e período de
produção. Os/as estudantes foram convidados a trabalhar em duplas para discutir as questões
considerando os dois ambientes, a casa e a rua – “Um jantar brasileiro” e “Os refrescos do
Largo do Palácio”. Durante o período de transição do Brasil colonial para o imperial, espaço
destacado nas imagens, a pintura tinha intenções de revelar uma civilização sem muitos
conflitos sociais e raciais, a harmonia famíliar como base para a organização social
hegemônica patriarcal, a exemplo do homem que cuida da mulher, filhos e agregados. Havia
“necessidade de construir uma imagem do país que afastasse seu caráter marcadamente
colonial, atrasado, inculto e primitivo” (LOURO, 2017, p. 443).
Inicialmente, eles/as apresentaram uma descrição geral das imagens, destacaram a
diferença na maneira como homens e mulheres são representados – “as mulheres de vestidos
longos e os homens de chapéu”. Ademais, observaram que existiam vários grupos em situação
de subalternidade, como as mulheres, os negros e as crianças. No entanto, apesar de destacar o
negro, eles/as remetem mais ao masculino, não fazendo uma distinção entre mulher negra e
branca, apresentadas nas imagens, como se não houvesse diferença, sendo ambas tratadas
como inferiores aos homens. Eles/as destacaram que a mulher está exercendo um trabalho
mais leve pelo ato de servir e o homem, um trabalho mais pesado.
Nesse mesmo sentido, eles/elas compreenderam que na imagem 2 (espaço privado –
casa) aparece uma mulher submissa. A imagem de dona de casa está em segundo plano, como
se cuidar e administrar uma casa, uma família não fosse trabalho. “Invisíveis, repetitivas,
exaustivas, improdutivas e nada criativas são os adjetivos que melhor capturam a natureza das
tarefas domésticas” (DAVIS, 2016, p.225). Desse modo, as mulheres não são valorizadas nesse

166
espaço eles/as ressaltaram que, infelizmente, ainda temos muitas questões que perduram, e a
imagem da mulher que cuida do lar e que não tem emprego fora ainda é vista como, a da mulher
não faz nada, que não trabalha, é só dona de casa. Segundo Davis (2016, p.228):

Nas sociedades capitalistas (...) o trabalho doméstico, orientado pela ideia de servir e
realizado pelas donas de casa, que raramente produzem algo tangível com seu
trabalho, diminui o prestígio social das mulheres em geral. No fim das contas, a
dona de casa, de acordo com a ideologia burguesa, é simplesmente a serva de seu
marido para a vida toda.

Os/as estudantes ressaltam que as mulheres vêm conquistando cada vez mais espaço,
no entanto suas responsabilidades com o lar continuam exigindo dedicação, ficando atrelada
ao trabalho em casa e fora de casa, ou seja, elas têm mais obrigações que os homens e ainda
assim esses aparecem como superiores. Ademais, alguns/mas estudantes destacaram a
“obrigação” das mulheres de cuidarem da casa. Parece que há a naturalização da mulher como
única responsável.
Os/as estudantes apontam também a questão do servir, de explorado e explorador,
destacando que são frutos de relações sociais naturalizadas. Eles/as percebem a exploração
como uma injustiça social. No entanto, há uma desvantagem nessa relação ainda maior
quando se trata de homens e mulheres negros/as, e quando é uma mulher negra, a questão é
mais perversa, condições essas fruto de uma herança escravocrata. Sergei Soares (2014)
salienta que:

O racismo, seus efeitos e mecanismos de reprodução têm impactado de modo


expressivo e perverso a sociedade brasileira. As mazelas da escravidão se
disseminaram, criaram raízes e se transmutaram a ponto de funcionar como meio
eficiente de segregação em tempos de liberdade, alimentado e disfarçado pelo mito
da democracia racial, (...) os indicadores sociais ainda refletem uma sociedade que,
por tanto tempo, negligenciou e ainda subestima o racismo como estruturante das
desigualdades sociais brasileiras (SOARES, 2014, p.11).

Desse modo, o que se percebe no geral, é que com o estímulo para relatar e analisar
as fontes visuais a partir das concepções de classe, raça e gênero, os/as estudantes vão dando
conta das mudanças e das permanências. Enfim, ao serem estimulados a descrever as imagens
e colocar em diálogo o passado e o presente, pôde-se perceber que, além do estímulo e
motivação nas aulas, eles/as têm uma percepção das conquistas realizadas e das enormes
barreiras enfrentadas no presente. Infelizmente ainda existem muitos obstáculos,
principalmente quando consideramos os fatores destacados anteriormente, como as questões
de classe, gênero e etnia.

167
Considerações finais

Com este trabalho, procuramos apontar possibilidades de discussão da temática


feminina a partir das experiências dos/das estudantes da Educação de Jovens e Adultos de
Imperatriz – MA. A partir das representações dos/ estudantes sobre o feminino e o masculino,
possibilitando uma reflexão de como esses papéis são naturalizados pela maneira como somos
constituídos, além de estimular espaços de interpretação de imagens, tendo como recorte as
imagens de mulheres do livro didático de história da EJA. De certo, o trabalho com imagens
amplia a participação dos/as estudantes nas atividades, na observação, na resolução de
questões, nas reflexões e indignações que suscitam discussões e troca de conhecimento.
Significativamente, eles/elas se percebem em algumas dessas situações e articulam o passado
com as problemáticas atuais, sinalizando a importância de refletir e questionar
posicionamento que persistem, manifestando o desejo de mudanças efetivas nas relações de
gênero, raça e classe. Ademais, a reflexão coletiva é mais rica e ultrapassa os muros da escola.
O ProfHistória provoca a possibilidade de diálogo entre a teoria e a prática, pois
estimula um trabalho mais dinâmico entre professores e alunos/as, instiga ações que se
encontravam adormecidas, devido a correria do dia-a-dia da sala de aula, ressaltando a
importância de valorização das experiências dos/as estudantes no contexto da sala de aula,
assim aproxima o/a estudante de uma educação que faça sentido para sua vida prática.

168
Referências

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170
(DES)CONSTRUINDO SABERES, (RE)INVENTANDO PRÁTICAS:
UMA PROPOSTA DE SEQUÊNCIA DIDÁTICA PARA O ENSINO
DE HISTÓRIA EM GÊNEROS E SEXUALIDADES

Diego Gomes Souza45

Introdução

A diversidade sexual e de gênero não costuma ser um tema comumente contemplado


nas pesquisas da área do ensino de História, tampouco é constituinte de conteúdos
convencionais do currículo da história escolar. Analisando a trajetória do ensino de História
no Brasil (BITTENCOURT, 2009; GUIMARÃES, 2012), é possível observar que essa
temática teve pouco acolhimento em termos de elaboração curricular. Além disso, convém
destacar que o conhecimento escolar se encontra hegemonicamente estruturado e instituído
nos sistemas de ensino, no Brasil e em diversas partes do mundo, sob a lógica da organização
disciplinar dos saberes. Segundo Lopes e Macedo (2011), essa predominância histórica da
disciplinaridade se explica por ela ser entendida como uma “instituição social necessária”.
Observa-se, nesse sentido, que a diversidade sexual e de gênero se apresenta como
um tópico curricular46 não disciplinar no campo dos saberes históricos escolares. Com essa
afirmação não estamos supondo que a não disciplinaridade represente uma característica
intrínseca do tema ou que ela corresponda, em uma abordagem essencialista, a uma
classificação a priori do problema. O que queremos indicar, na verdade, é o caráter
historicamente não disciplinar da temática, uma vez que, nas condições objetivas em que o
conhecimento histórico escolar se apresenta disciplinarizado, as questões de gêneros e
sexualidades na perspectiva da diversidade não se encontram organicamente integradas aos
currículos da disciplina, seja na forma de objetos de saber ou como referenciais teóricos de
análise dos conteúdos.
Tendo em vista essa conjuntura, e enquanto professoras/es do ensino básico

45
Graduado em História pela UFF. Mestre em Ensino de História pela UFF. Atua como professor de História
nas redes municipais de educação de Queimados e Rio Bonito (RJ).
46
Em seus estudos sobre os padrões de estabilidade e de mudança das disciplinas escolares, Ivor Goodson
(1997), recorrendo à obra de John Meyer, fala da distinção entre categorias institucionais e organizacionais
envolvidas nos processos de mobilização de recursos sociais para a realização de determinadas carreiras e
missões (individuais e coletivas). Enquanto as categorias organizacionais corresponderiam a estruturas concretas
como as escolas e as salas de aula, as categorias institucionais integrariam uma ideologia cultural representada
pelos níveis de ensino, modalidades de escola, funções pedagógicas e tópicos curriculares (como a redação, a
Primeira Guerra Mundial, a álgebra etc.).

171
mobilizadas/os em construir uma educação para a diversidade e em integrar os conhecimentos
sobre gêneros e sexualidades ao ensino de História, uma série de questões permanecem sem
respostas: o que fazer até que essas condições estruturais relativas a questões curriculares e
disciplinares sejam alteradas? Quais rumos alternativos tomar? Quais metodologias seguir?
Quais materiais didáticos utilizar? Quais atividades propor aos/às alunos/as?

Uma sequência didática sobre gêneros e sexualidades no ensino de História

Considerando a necessidade e os desafios de promover a inclusão da diversidade


sexual e de gênero nas aulas de história da educação básica, realizamos uma experiência
pedagógica em torno dessa temática com duas turmas de nono ano de uma escola pública
durante os meses de agosto e setembro de 2019.47 Em termos metodológicos, decidimos
adotar a sequência didática como um instrumento de mediação do conteúdo abordado por
acreditarmos em sua potencialidade de propiciar, como sugere Helenice Rocha (2015), a
preservação da visibilidade do todo na abordagem dos conteúdos, a organização de estratégias
didáticas alternadas entre professoras/es e estudantes e a manutenção da questão orientadora
durante a realização de cada experiência educativa.
Segue, abaixo, a exposição detalhada e analítica dos cinco encontros que
constituíram a sequência didática em questão: o desenvolvimento das aulas, as atividades e
dinâmicas, os procedimentos e as intervenções realizadas.48

47
Essa experiência integrou o produto pedagógico desenvolvido durante nosso mestrado no ProfHistória/UFF,
que teve como objetivo principal a inclusão do tema da diversidade sexual e de gênero nas aulas de história da
educação básica. O caráter fundamentalmente propositivo da pesquisa compreendeu a elaboração de aulas nas
mais diversas modalidades metodológicas (história temática, ensino cronológico e pedagogia de projetos) que
lançaram mão de um amplo conjunto de atividades e práticas pedagógicas (sequências didáticas, dinâmicas
espaciais, leitura e debate de textos, jogos educativos, utilização de material audiovisual, trabalho em equipe,
pesquisas, seminários, aulas expositivas etc.) com o intuito de tensionar o currículo de história, combatendo a
heteronormatividade e integrando a diversidade sexual e de gênero como um objeto de saber da disciplina.
48
Em razão da especificidade das atividades e dos conteúdos a serem abordados, foi preciso reservar momentos
particulares para a realização dessa experiência. Assim, a estratégia adotada para conciliar as atividades da
pedagogia de projetos com o desenvolvimento regular das aulas de história foi a de dividir os encontros semanais
entre essas duas frentes de trabalho. Tínhamos quatro tempos semanais (com média unitária de cinquenta
minutos) com cada uma das turmas participantes, sendo dois às terças-feiras e outros dois às quintas-feiras.
Dessa forma, enquanto um dos dias era reservado às aulas mais convencionais referentes ao currículo mínimo da
disciplina, o outro ficava destinado ao trabalho com o projeto.

172
Fazendo a norma falar de si: a dinâmica “O que é privilégio?”

A dinâmica “O que é privilégio?”49 foi escolhida como atividade inaugural da


sequência didática. Tal dinâmica tem por objetivo promover o entendimento dos efeitos
sociais dos privilégios e das opressões sociais a partir da movimentação espacial das/os
alunas/os em função de respostas dadas a questões que envolvem diversos marcadores sociais
da diferença (raça, classe, gênero e orientação sexual).
A escolha dessa dinâmica como o primeiro passo na abordagem da temática em
questão foi a necessidade de inserir a diversidade sexual e de gênero em um conjunto mais
amplo de problemas relativo à produção das diferenças, das identidades culturais e dos
diversos eixos de opressão. Raça, classe, gênero, sexualidade e demais marcadores sociais da
diferença guardam as suas particularidades, mas integram processos que apresentam
aproximações em termos de normatização e subordinação. Além disso, as opressões baseadas
nesses múltiplos marcadores identitários não ocorrem de forma isolada e desconectada. Os
estudos interseccionais têm demonstrado as diversas conexões e cruzamentos entre essas
opressões. Kimberlé Crenshaw (2002) defende, por exemplo, que a análise interseccional
apresenta a vantagem de demonstrar os efeitos dinâmicos e estruturais da interação entre
diferentes tipos de sistemas discriminatórios responsáveis por sustentar desigualdades sociais.
Nesse sentido, o imperativo de promover uma abordagem mais holística do problema das
opressões se tornou um fator fundamental para iniciar o trabalho com a sequência didática.
A primeira medida tomada, após deslocar a turma para a quadra da escola, foi a de
solicitar a todos/as os/as participantes que se posicionassem, um/a ao lado do/a outro/a, na
linha central. Essa disposição inicial representava a igualdade formal responsável por
determinar juridicamente o direito a não discriminação por conta de classe, raça, gênero,
sexualidade, religião etc. Contudo, o objetivo da dinâmica era o de demonstrar como essa
igualdade formal encontra uma série de dificuldades de se concretizar em razão de condições
sociais historicamente determinadas, que estabelecem vantagens e desvantagens entre os
indivíduos de acordo com marcações sociais e pertencimentos identitários específicos.
Assim, dispostas/os nesse marco inicial, as/os estudantes foram instruídas/os a se
mover pelas linhas paralelas traçadas no chão de acordo com as reações que iam surgindo a
partir de afirmações feitas pelo professor: reação afirmativa, passo para a frente; reação

49
Um exemplo de execução dessa dinâmica pode ser encontrado em um vídeo produzido pela empresa norte-
americana de notícias BuzzFeed. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=hD5f8GuNuGQ&t=37s>.
Acesso em: 8 jun. 2017.

173
negativa, passo para trás. Os passos à frente representavam privilégios, enquanto os passos
para trás diziam respeito às mais distintas opressões. Nesse sentido, foram feitas diversas
declarações relativas a privilégios sociais relacionados a gênero, classe social (ou renda), raça
e orientação sexual.50 Conforme as sentenças iam sendo proferidas, os/as estudantes iam se
deslocando ao longo do espaço delimitado, cada um/a deles/as estabelecendo as suas próprias
trajetórias de privilégios e, consequentemente, também de opressões.
Ao término da atividade, foi possível observar que a posição final das/os estudantes
era completamente diferente daquela inicial que representava a igualdade formal entre as/os
cidadãs/ãos. Nesse momento, foi pedido para que os/as alunos/as permanecessem em seus
lugares, mas olhassem o seu entorno e relatassem o que viam. Como esperado, a posição
diferenciada entre as/os colegas, percebida pela observação de quem estava mais atrás e mais
à frente, foi a característica mais comentada da experiência.
A segunda etapa da dinâmica consistiu em promover uma roda de debate sobre a
atividade realizada, relacionando-a a experiências pessoais de vida por meio da leitura de um
texto sobre a temática da atividade.51 Sentadas/os em círculo no chão da quadra, começamos a
leitura desse texto, que trazia uma relação de diversos privilégios classificados de acordo com
alguma marcação social: privilégios masculinos, privilégios brancos e privilégios
heterossexuais.
Nesse momento, conforme a lista de privilégios ia sendo lida e comentada, o mais
interessante foi observar a profusão de relatos pessoais e familiares que iam se sucedendo e
acumulando ao longo do debate: sobre mães que viam contestada a sua maternidade por conta
da cor de pele das/os filhas/os; de mulheres agredidas e assediadas cotidianamente; sobre o
tratamento diferenciado reservado a pessoas negras em diversas situações; das inúmeras
perseguições por seguranças em lojas e shoppings; da falta de representatividade negra nos
mais diferentes espaços; da repressão à sexualidade feminina etc. É a crueza e a gravidade de
muitos desses relatos que fazem com que o/a professor/a que esteja à frente desse tipo de
atividade aja com o máximo de sensibilidade e cuidado no encaminhamento da discussão e no

50
Seguem alguns exemplos de afirmações utilizadas nessa atividade: “O bairro em que moro dispõe de
saneamento básico”; “Minha família possui casa própria, carro particular e plano de saúde”; “Não tenho meu
caráter julgado por conta da roupa que visto”; “Meu único medo ao sair à noite é o de ser assaltada/o”; “A minha
cor nunca é a primeira coisa que as pessoas notam em mim”; “Jamais fui seguido/a em shoppings ou lojas por
seguranças do local”; “Os/as boneco/as na minha infância tinham a minha cor de pele”; “Ando
despreocupadamente de mãos dadas na rua com meu/minha namorado/a”.
51
O texto escolhido para essa etapa da dinâmica foi uma adaptação do artigo “Reconheça os seus privilégios
para poder mudar o mundo”, de Lola Aronovich, blogueira feminista e professora de Literatura da Universidade
Federal do Ceará (UFC). Disponível em: <http://escrevalolaescreva.blogspot.com/2013/09/reconheca-seus-
privilegios-pra-poder.html>. Acesso em: 14 ago. 2019.

174
tratamento das reações que possam surgir durante a dinâmica.
Propor um debate que mobilize noções de privilégios masculinos, heterossexuais e
brancos possibilita jogar luz sobre a naturalização de certas identidades tidas como
referenciais de normalidade e que ocupam o topo de uma estrutura de hierarquizações
identitárias. Esse movimento propicia a desnaturalização dessa conformação, evidenciando
um longo histórico de construção social responsável pela estruturação desse sistema
normativo. Essa atividade torna possível, assim, “fazer a norma falar de si”, como propõe
Fernando Seffner (2013), enfraquecendo o poder de estruturas que produzem e perpetuam
opressões de diversos tipos.

A aula-oficina “Mosaicos identitários”

Para dar prosseguimento à sequência didática, procuramos seguir a mesma lógica da


dinâmica anterior: fornecer um quadro geral que permitisse uma introdução mais adequada à
temática da diversidade sexual e de gênero. Se na primeira atividade o foco recaiu sobre os
temas dos privilégios e das opressões, dando maior visibilidade às identidades normativas e
seu papel silenciado na reprodução das desigualdades, na experiência pedagógica seguinte foi
a própria noção de identidade, ou melhor, das identidades que ocupou o centro das reflexões.
Nessa atividade, optamos por aliar uma abordagem mais expositiva no início da aula
com a produção, por parte dos/as alunos/as, de algum material que sintetizasse as reflexões
feitas até aquele momento. Dada essa dimensão propositiva da dinâmica, consideramos que
esse trabalho se aproxima da ideia de aula-oficina proposta por Isabel Barca (2004). Dessa
maneira, na parte expositiva da aula, contamos com o auxílio de um projetor para exibir uma
apresentação de slides com uma série de subtemas relativos à questão das identidades
culturais: o conceito de identidade (individual e social), a noção de minorias, a distinção entre
preconceito e discriminação etc.
Essa primeira etapa se concentrou de forma mais detida em dois aspectos relativos às
identidades culturais que consideramos importantes de serem frisados para o posterior
trabalho com a temática da diversidade sexual e de gênero. O primeiro deles se refere a
determinadas características básicas dos processos de identificação na contemporaneidade ou
modernidade tardia, como, por exemplo, o caráter descentrado, deslocado e sem fixidez das
identidades culturais. Essa constatação está alinhada com determinadas análises feitas no
âmbito dos Estudos Culturais, especialmente aquelas desenvolvidas por Stuart Hall. Em
contraposição às elaborações feitas em torno do sujeito sociológico e do sujeito iluminista, o

175
autor afirma que o sujeito pós-moderno é “conceptualizado como não tendo uma identidade
fixa, essencial ou permanente” (HALL, 2006, p. 12-13).
O segundo aspecto que fizemos questão de salientar está ligado à profunda relação
que as atitudes preconceituosas e os comportamentos discriminatórios mantêm com o
fenômeno de construção das identidades culturais. Pode-se admitir, de alguma maneira, que a
multiplicidade de discriminações sociais corresponde à pluralidade das próprias identidades
culturais. Contudo, esse processo de construção social das discriminações está mediado por
mecanismos de normatização e produção das diferenças (no sentido da criação de
desigualdades). Cada identidade normativa, referencial e privilegiada colide, assim, com uma
ou várias identidades não normativas, “diferentes”, “desviantes” e oprimidas.
A etapa seguinte da atividade foi destinada à construção por parte das/os alunas/os de
algum tipo de material que concentrasse as reflexões feitas durante o período expositivo da
aula sobre as questões relacionadas às identidades culturais. Assim, pensamos em realizar um
tipo de experiência na qual as/os estudantes pudessem aliar a sua realidade mais imediata e as
suas vivências pessoais (os seus saberes prévios) com as reflexões teóricas feitas. A ideia era
a de que eles/as mesmos/as reconhecessem a multiplicidade de suas identidades individuais e
expusessem isso em algum suporte físico. O dodecaedro, uma figura geométrica que possui
doze faces, nos pareceu servir bem a esse propósito, pois favorecia uma aproximação, mesmo
que metafórica, com o caráter múltiplo das identidades culturais que afetam a forma como as
pessoas se percebem e se representam.
A proposta feita às/aos estudantes foi a de pensarem sobre as suas identidades de
modo a reconhecerem as suas maneiras de se relacionar com múltiplas formas de
pertencimento: classe social, raça, religião, naturalidade, local de moradia, sexo, identidade de
gênero, orientação sexual, idade etc. Conforme fossem chegando a determinadas conclusões,
elas/es deveriam usar as faces do dodecaedro para expressar as múltiplas faces de suas
próprias identidades, construindo, assim, verdadeiros mosaicos identitários.
Como forma de concluir essa aula-oficina, foi sugerido que, uma vez finalizados, os
dodecaedros que representavam cada mosaico identitário fossem reunidos em um único painel
que expressasse a “geometria identitária” das turmas participantes. Dessa forma, uma
característica fundamental da produção identitária estaria evidenciada, a saber, a alteridade –
o “Outro” e a sua inescapável relação com a produção das identidades e das diferenças.
Um princípio muito caro às pesquisas sobre a história escolar é o reconhecimento de
que ela não se limita a transmitir conhecimentos produzidos fora da escola, mas é responsável
pela criação de saberes originais próprios da cultura escolar. Nesse sentido, acreditamos que

176
essa experiência didática corrobora a tese da especificidade epistemológica desse tipo de
conhecimento (MONTEIRO, 2007), evidenciando a complexidade de sua produção e o
protagonismo dos/as agentes envolvidos nesse processo.

“Eu tô te explicando pra te confundir/Eu tô te confundindo pra te esclarecer” 52: as


dimensões da sexualidade humana

Considerando a complexidade do tópico da sexualidade humana, nos dispusemos a


preparar uma dinâmica em que fosse possível esclarecer três de suas dimensões básicas que,
se não compreendidas em suas especificidades, podem dificultar enormemente o
encaminhamento dos debates sobre essa temática. Referimo-nos às dimensões do sexo
biológico, da identidade de gênero e da orientação sexual. Boa parte dos desentendimentos e
incompreensões observados no debate público acerca da sexualidade advém da indistinção
que se faz entre as características e atributos dessas diferentes dimensões e das relações
cruzadas entre elas.
Tendo em conta esse contexto, a dinâmica planejada envolveu a realização de três
atividades consecutivas na mesma aula, cada uma delas referente a uma das dimensões da
sexualidade citadas acima. A primeira atividade desenvolvida recebeu o nome “Que corpo é
esse?” e tratou especificamente da dimensão do sexo biológico. Na concepção dessa
dinâmica, foi preciso levar em consideração a advertência de que o termo sexo é polissêmico
e pode estar relacionado a três noções elementares – sexo biológico, sexo cultural e ato sexual
–, sendo que “todos eles estão intimamente imbricados à corporeidade humana e suas marcas
identitárias, ainda que possam ser dissociados entre si” (WOLFF; SALDANHA, 2015, p. 38).
Essa atividade exigiu a preparação de dois tipos de materiais didáticos.
Primeiramente, foi preciso providenciar a impressão de duas silhuetas de corpos humanos:
uma que desse a impressão de representar o corpo feminino e outra, o corpo masculino. Essas
silhuetas foram coladas em papéis pardos e afixadas em uma parede. Também foi necessária a
impressão de uma série de características fisiológicas que foram depois recortadas e coladas
em pequenos pedaços de cartolina, de forma a constituir um conjunto amplo de pequenos
cartões representando atributos corporais, biológicos ou hormonais relativos à sexualidade.
De posse desse material, cada um dos/as alunos/as recebeu um desses cartões com
características sexuais do corpo humano e foi convocado/a a fixá-lo na silhueta que julgasse a

52
Verso retirado da canção “Tô”, composta por Tom Zé e Elton Medeiros para o álbum “Estudando o samba”
(1976).

177
detentora “natural” ou mais adequada da característica escolhida.
Ao final da atividade, com as figuras dos corpos masculino e feminino devidamente
“paramentadas” com as suas características sexuais, realizamos um debate sobre os modos com
que os corpos humanos são classificados socialmente e as tensões que essas representações
geram em seu confronto com concepções de caráter mais biológico sobre o que seria o corpo de
um macho e de uma fêmea da espécie humana. Realizamos, ainda, a análise de uma ausência
significativa nessa atividade que foi a do corpo e da identidade intersexuais: afinal, é mesmo
binária a experiência humana quando o assunto é sexo biológico?
A atividade realizada logo em seguida recebeu o nome de “Propaganda é a alma do
negócio” e teve como material de reflexão peças publicitárias de diferentes épocas e lugares,
mas que apresentavam um ponto de ligação: as representações de gênero que construíam e
faziam circular socialmente. Para essa atividade foi necessário fazer impressões coloridas das
propagandas selecionadas e colá-las em cartões de cartolina. Além disso, em uma folha de
papel pardo, foram separadas duas seções nas quais se liam os termos “Homem” e “Mulher”.
A dinâmica foi pensada para ocorrer em três etapas sucessivas. Na primeira delas, a
turma foi dividida em vários grupos, cada um deles ficando responsável por escolher uma
peça publicitária. A partir da análise da propaganda – de seu conteúdo textual, das formas
imagéticas de reprodução de figuras masculinas e femininas, do apelo comercial relacionado a
essas formas etc. – e do debate gerado no grupo, seus/suas integrantes foram orientados a
sintetizar as formas de representação de homens e mulheres nesses materiais comerciais por
meio de palavras-chave escritas em pequenos recortes de papel.
Concluída essa fase de sintetização das representações de gênero em palavras que
simbolizavam modos de ser de homens e mulheres em campanhas publicitárias, cada grupo
afixou, na seção correspondente ao gênero abordado na campanha (homem ou mulher), o
cartão com a propaganda seguido das palavras-chave produzidas.
Uma vez montado todo o painel, com as propagandas devidamente alocadas por
gênero e com as palavras-chave produzidas pelos grupos, foi realizado um debate geral não
sobre a categoria teórica “gênero” como instrumento de análise da diferenciação sexual, mas
sobre as impressões surgidas da análise das formas com que mulheres e homens são
retratadas/os em campanhas publicitárias. Afinal de contas, seriam as mulheres natural e
biologicamente “submissas”, “frágeis” e “fracas”? E os homens, por sua vez, nasceriam
predispostos a ser provedores, a acumular riqueza e a ostentar sua prosperidade? Seriam eles
naturalmente condicionados à expressão de sua força, virilidade e coragem? Ou caberia
indagar sobre a forma como essas características são produzidas socialmente ao longo da

178
história, dos lugares e das mais diferentes culturas e vão sendo internalizadas pelos indivíduos
por meio de um longo e complexo processo de socialização, tão sofisticado e efetivo, que faz
com que tais atributos sejam percebidos como instintivos e naturais? Essa discussão entre
natureza e cultura, entre o que seria inato ou socialmente construído mobilizou diversas
intervenções e questionamentos das turmas durante essa atividade.
A última dinâmica dessa aula foi construída em torno da dimensão da orientação
sexual e das dúvidas que marcam o debate público em relação a esse aspecto específico da
sexualidade humana.53 Foram confeccionadas tarjas de cartolina com as expressões
“Concordo”, “Discordo” e “Tenho dúvidas” que acabaram fixadas em espaços justapostos em
uma das paredes da sala. Foi pedido para que todas/os ficassem em pé para ouvir
determinadas afirmações (intencionalmente preconceituosas) que foram feitas pelo professor.
Conforme as afirmações iam sendo proferidas, todos/as deveriam pensar rapidamente e se
posicionar no espaço relativo a sua resposta.
Uma vez posicionadas/os, foi solicitado que integrantes de cada seção dessem
depoimentos justificando o seu deslocamento para a resposta escolhida. Conforme os
depoimentos iam sendo dados, os debates iam avançando, esclarecimentos iam sendo feitos e
muitos/as participantes iam de alguma forma inferindo o objetivo da dinâmica de desconstruir
determinadas opiniões discriminatórias muito presentes no senso comum quando está em jogo
qualquer tipo de temática que envolva a questão da orientação sexual, especialmente aquelas
relativas às identidades não heteronormativas, como as homossexualidades masculinas, as
lesbianidades e as bissexualidades.
O conceito de heteronormatividade (BERLANT; WARNER, 1998) foi central nessa
altura da experiência. A conscientização de que as identidades sexuais são múltiplas e de que
apenas algumas delas são consideradas “normais” (enquanto outras são classificadas como
“anormais”) só é possível pela adoção de uma “analítica da normalização” (MISKOLCI,
2009) que permita não só trazer à tona, como também submeter ao exame crítico, os
processos de subordinação, marginalização e opressão aos quais são expostas as pessoas que
transgridem a chamada cisheteronorma. E para isso é preciso enxergar a heterossexualidade
como uma condição privilegiada, referencial e normativa, de onde as demais identidades,
comportamentos, vivências e expressões sexuais humanas são analisadas, julgadas, nomeadas,

53
Essa dinâmica foi adaptada de uma proposta de atividade feita em material educativo produzido pelas
Organizações Não Governamentais (ONGs) ECOS e CORSA por solicitação da Fundação para o
Desenvolvimento da Educação (FDE) da Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Nesse material, a
atividade em questão intitula-se “É ou não é?” e tem por objetivo debater e problematizar preconceitos e
comportamentos discriminatórios relativos à diversidade sexual (JESUS, 2008).

179
classificadas e enquadradas em lugares subalternizados.
No decorrer dessas atividades, a utilização do conceito de gênero em sua perspectiva
relacional e como constituinte de relações de poder (RUBIN, 1993; SCOTT, 1995) foi
decisiva como instrumental teórico e analítico para afastar quaisquer concepções
naturalizantes das identidades de gênero que tendem a associá-las a uma espécie de conjunto
de atributos com os quais os indivíduos seriam equipados desde o nascimento. A exposição da
pluralidade das identidades sexuais e de gênero foi, assim, facilitada por essa análise
relacional e política, o que, de nosso ponto de vista, favoreceu uma compreensão das diversas
expressões identitárias não subordinadas à cisheteronormatividade (homossexualidades,
bissexualidades, transgeneridades, travestilidades) como formas legítimas de expressão da
sexualidade humana e da identidade de gênero, devendo ter seus direitos à diferença e a não
discriminação socialmente reconhecidos e legalmente garantidos.

Violência LGBTfóbica: reconhecer, prevenir e combater

Considerando a conjuntura de violência LGBTfóbica no país, 54 elaboramos uma


dinâmica, desenvolvida em três etapas, destinada a relacionar os fenômenos da estereotipação,
da discriminação e da violência contra pessoas LGBT. 55 A primeira fase da atividade se
desenvolveu da seguinte forma: na parede frontal da sala foram afixadas duas tarjas referentes
a identidades sexuais distintas: “Heterossexual” e “Homossexual”. A opção por essas
identidades específicas se deu por julgarmos que elas favoreciam um movimento de
comparação mais simples de ser percebido pelos/as alunos/as.
Foi produzido de antemão um conjunto de etiquetas com diversas características
pessoais. Algumas delas correspondiam a atributos considerados positivos socialmente,
enquanto outras representavam aspectos tidos, em geral, como negativos (chegando até, em
alguns casos, a ter um teor ofensivo). Essas etiquetas foram distribuídas às/aos alunas/os com
o seguinte comando: “leiam a característica e colem-na abaixo da identidade sexual que vocês
consideram a mais adequada para receber esse atributo”.
Aos poucos, as/os estudantes começaram a se levantar e a colar as etiquetas.

54
Segundo o relatório anual do Grupo Gay da Bahia (GGB), “a cada 26 horas um LGBT+ é assassinado ou se
suicida vítima da LGBTfobia, o que confirma o Brasil como campeão mundial de crimes contra as minorias
sexuais” (OLIVEIRA; MOTT, 2020, p. 13).
55
A produção dessa dinâmica deveu-se, mais uma vez, à adaptação de sugestões de atividades do material
supracitado produzido pelas organizações ECOS e CORSA. Dessa vez, foi feita a associação de atividades de
duas dinâmicas distintas: “Desconstruindo Estereótipos”, que objetiva promover a reflexão sobre atitudes e
valores relativos à hétero e à homossexualidade, e “Violência no ambiente escolar”, destinada à discussão de
diferentes formas de violência verificadas no cotidiano de estudantes LGBT (JESUS, 2008).

180
Presumimos que o resultado da atividade seria o de que as características mais positivas
ficariam do lado da heterossexualidade enquanto as negativas seriam relacionadas à
homossexualidade, de forma que a estereotipação de certas identidades sexuais e de gênero
ficasse exposta. No entanto, notamos que muitas/os das/os participantes se sentiram
constrangidas/os em associar características negativas à determinada identidade sexual
(notadamente a homossexual). Diante desse fato, foi dada mais uma orientação de última hora
com vistas a contornar o problema e a atingir o objetivo proposto: que eles/as levassem em
conta, na determinação de onde colar a etiqueta, não necessariamente o que eles/as próprios/as
achavam, mas o senso comum acerca dessa classificação.
Diante desse novo comando, a turma pareceu se animar e todas/os começaram a se
encaminhar com mais disposição à tarefa da classificação. Certos/as estudantes optavam por
colar as etiquetas do lado representado pelo cartão “Heterossexual”, outros/as preferiam fixar
a característica recebida na parte nomeada com a tarja “Homossexual”.
Tudo parecia resolvido e o objetivo previamente estipulado para a atividade estava
sendo alcançado. Contudo, foi nesse momento que o mais inusitado e interessante da
experiência aconteceu. A parede na qual a atividade estava sendo realizada favorecia a divisão
dos espaços reservados a cada identidade sexual, já que havia uma divisória que foi usada
para separar as duas seções. Notamos que, gradualmente, certas/os estudantes foram colando
as etiquetas exatamente na linha divisória entre as duas identidades sexuais. Essa atitude
acabou sendo seguida por vários/as outros/as alunos/as que resolveram não determinar um
lado para pregar as suas etiquetas.
Esse comportamento inesperado (e aparentemente incongruente) poderia ser
classificado, de uma perspectiva mais conservadora e formal, como inadequado e
contraproducente em relação aos objetivos traçados inicialmente para a dinâmica. No entanto,
essa atitude das/os alunas/os revela o quanto a transgressão pode ser considerada uma dimensão
integrante dos processos de ensinar e aprender. Como nos ensina Bell Hooks (2017), a sala de
aula permanece sendo um espaço que comporta possibilidades radicais de (inter)ação. Essa
potência transgressora das práticas educativas deve ser considerada, portanto, uma das
condições de uma educação como prática de liberdade: uma pedagogia capaz de respeitar no ser
humano a sua “ontológica vocação de ser sujeito” (FREIRE, 1967, p. 36).
Diante da atitude inesperada e beneficamente desordenadora dos/as estudantes, o
caráter do debate posterior à experiência foi sensivelmente reorientado: ao invés de focar na
estereotipação em si, a questão da resistência a esse tipo de mecanismo social de classificação
tomou a centralidade da discussão.

181
Ao encerrar essa primeira etapa da aula, passamos à fase seguinte que consistiu em
uma reflexão abrangente sobre a violência. Foram entregues às/aos estudantes pequenos
pedaços de papel nos quais elas/eles deveriam escrever o que vinha à cabeça quando falamos
em agressão. Poderia ser uma palavra-chave, uma sentença ou mesmo um pequeno parágrafo
sobre o tema. Conforme os escritos iam sendo feitos, foi solicitado que esses materiais fossem
colados com fita adesiva em uma das paredes da sala, para que se pudesse ter uma visão geral
das noções relatadas pela turma.
Algumas das ideias mais citadas giravam em torno de palavras como “morte”, “dor”,
“futilidade”, “ferimentos”, “tristeza”, “desumanidade”. No entanto, notamos que a maioria
das representações abordadas focaram muito mais em um tipo específico de violência: a
física, resultante de agressões, brigas, lesões corporais e até de homicídios. O objetivo do
debate feito logo após a avaliação das ideias expressas nos escritos foi o de propor uma visão
ampliada e diversificada da violência, de forma a destacar comportamentos que, por vezes,
passam despercebidos como modos de coerção, agressão ou hostilidade. As violências
simbólica, verbal e institucional foram apresentadas com o objetivo de despertar uma
percepção maior sobre o repertório de atos e comportamentos que podem ser considerados tão
violentos quanto as agressões físicas que acontecem dentro e fora do espaço escolar.
Como proposta de encerramento da aula, foi exibido um vídeo que focava
exclusivamente na questão da violência LGBTfóbica.56 O propósito dessa apresentação era o
de transitar de uma ideia genérica sobre violência para os tipos específicos de violência
praticados contra a população LGBT (lesbofobia, bifobia, transfobia), colocando no centro do
debate a noção de homofobia enquanto guardiã das fronteiras sexuais e de gênero
(BORRILLO, 2000). No audiovisual exibido, indivíduos que se identificam de diversas
formas do ponto de vista dos gêneros e das sexualidades relatam episódios de violência que
sofreram. Além disso, estatísticas e pesquisas sobre homofobia e transfobia são apresentadas e
é feito também um debate sobre a criminalização da homofobia.

Linha do tempo do movimento LGBT: uma história de lutas por direitos humanos

A linha do tempo é um recurso didático extremamente utilizado nas aulas de história


não só para localizar cronologicamente determinado conjunto de eventos, mas também para

56
O vídeo “Por que criminalizar a homofobia (E se fosse com você?)” foi retirado do canal do YouTube “Põe na
Roda” que se dedica à produção e divulgação de materiais audiovisuais sobre o universo LGBT, incluindo pautas
relativas à LGBTfobia, políticas públicas, projetos de conscientização etc. Disponível em: <https://www.youtube
.com/watch?v=KXYtmju2mkw&t=19s>. Acesso em: 12 out. 2019.

182
promover a aprendizagem da noção de tempo histórico entre as/os estudantes (MIRANDA,
2012). Cientes das críticas que o uso convencional desse instrumento recebe, decidimos
insistir no potencial da linha do tempo no trabalho com o tema da diversidade sexual e de
gênero por duas razões principais. Primeiramente, porque se tratava de utilizar um dos
recursos mais tradicionais do ensino de História (amplamente empregado no estudo de
conteúdos mais tradicionais da disciplina) para tratar de uma temática não disciplinar. Em
segundo lugar, a ideia era a de, para usar a famosa expressão de Walter Benjamin (1985),
“escovar a história a contrapelo”, ou seja, contrastar a narrativa histórica escolar mais habitual
com processos e fatos históricos relacionados à luta política dos movimentos LGBT, dando
visibilidade a sujeitos e grupos sociais geralmente marginalizados na vulgata 57 escolar.
Para essa aula, o trabalho de seleção dos eventos históricos considerados mais
relevantes na trajetória política dos movimentos LGBT, e também de confecção do material
utilizado, coube ao próprio docente. Foram selecionados tanto acontecimentos relativos ao
contexto internacional quanto ao nacional, em um recorte cronológico que ia dos anos 1960
até os dias atuais. Para cada fato, foram produzidos três cartões: um com uma imagem
representativa do evento, outro contendo um texto com dados históricos básicos e mais um
representando a data de cada acontecimento.
Todo esse material foi distribuído às/aos estudantes que se sentaram em círculo na
sala para a realização da dinâmica. O objetivo era o de que, em ordem cronológica, cada
evento fosse identificado, analisado e debatido, sendo, ao final, devidamente alocado no
quadro onde a linha do tempo seria construída. Para facilitar o andamento da atividade, os
cartões com as imagens dos eventos receberam, em seu verso, uma numeração de 1 a 12.
Obedecendo a essa sequência, cada acontecimento ia sendo abordado nas seguintes etapas: 1.
Exibição da imagem correspondente para toda a turma seguida da exposição das impressões
sobre o que se via, de que se tratava, se alguém adivinhava que evento era aquele, sua época,
relevância histórica etc.; 2. Leitura do cartão que continha um resumo sobre o acontecimento,
com informações históricas importantes: local, data, participantes, relevância etc.; 3. Colagem
dos itens de cada evento na linha do tempo montada no quadro: imagem, resumo textual e data.
Conforme a linha do tempo ia sendo construída, foi possível observar o nível de
envolvimento que os/as estudantes tinham com o tema, especialmente em relação a quais

57
O conceito de vulgata relacionado à cultura escolar é proposto por André Chervel (1990, p.203): “Em cada
época, o ensino dispensado pelos professores é, grosso modo, idêntico, para a mesma disciplina e para o mesmo
nível. Todos os manuais ou quase todos dizem então a mesma coisa, ou quase isso. Os conceitos ensinados, a
tecnologia adotada, a coleção de rubricas e capítulos, a organização do corpus de conhecimentos, mesmo os
exemplos utilizados ou os tipos de exercícios praticados são idênticos, com variações aproximadas”.

183
eventos em particular eles/as tinham mais conhecimento e informações e quais desconheciam
completamente. Ficou evidente que os fatos mais recentes, com ampla divulgação da
imprensa e dos meios de comunicação (com destaque especial para as redes sociais), eram
aqueles com os quais se observava maior familiaridade: a Parada do Orgulho LGBT, a
legalização do casamento homoafetivo, as recentes decisões judiciais sobre o uso do nome
social, a criminalização da homofobia etc. Já os fatos mais distanciados temporalmente
pareciam ter ares de novidade, despertando a curiosidade conforme iam sendo apresentados.
Assim, eventos como a Revolta de Stonewall (1968), a retirada da homossexualidade
da lista de doenças mentais (1973) pela American Psychiatric Association (APA), a fundação
do Grupo SOMOS (1978) – primeira organização de afirmação homossexual do Brasil – e a
circulação de seu jornal o “Lampião da Esquina” (1978-1981), o trabalho pioneiro de outras
instituições brasileiras do movimento LGBT – como o Grupo Gay da Bahia (GGB), fundado
em 1980, e a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Travestis, Transexuais e
Intersexos (ABGLT), criada em 1995 – e as políticas públicas voltadas às minorias sexuais e
de gênero – como o programa Brasil sem Homofobia, lançado em 2004 – funcionaram como
marcos para a análise histórica a partir de uma perspectiva preocupada com a diversidade
sexual e de gênero.
Ao final desse exercício, diante da linha do tempo completamente montada e
organizada, foi realizado um rápido debate sobre a escrita da história e os meios pelos quais
determinados temas ganham destaque e ascendem ao status de objeto historiográfico enquanto
outros seguem invisibilizados e desconhecidos pela maior parte das pessoas que, de alguma
forma, se interessam pelos estudos históricos. A grande questão, no final das contas, era
discutir se a perspectiva de história adotada na escola deveria incluir esses sujeitos e suas
trajetórias coletivas nos processos estudados nesse espaço tão relevante e socialmente
estratégico não só na produção de conhecimentos e na formação de sujeitos, como também na
garantia de uma série de direitos civis, políticos e sociais.

Considerações finais

Gêneros e sexualidades não costumam ser temáticas exploradas nas investigações do


campo do ensino de História, nem mesmo constituem-se como conteúdos tradicionais do
currículo da história escolar. Essa ausência, por si só, já representa um obstáculo significativo
no trabalho com esses temas no ensino básico, pois demanda uma grande mobilização por
parte de professoras/es que se dispõem a investir em atividades relacionadas a esse assunto.

184
A experiência com a sequência didática aqui apresentada produziu algumas
evidências de como essa metodologia de trabalho pode proporcionar a integração dessas
temáticas ao currículo de história. Uma das mais importantes se refere ao fato de que, durante
todo um bimestre do ano letivo de 2019, o tema da diversidade sexual e de gênero passou a
estar continuamente presente nas aulas de história de duas turmas de 9º ano do Ensino
Fundamental. Por meio de atividades diversas, saberes e assuntos relativos às questões de
gêneros, sexualidades, diversidade, diferenças, cidadania, direitos humanos e LGBTfobia
foram abordados com profundidade teórica e prática. Mesmo diante de todas as dificuldades,
desafios e imprevistos com os quais tivemos de lidar nesse processo, o domínio do ensino de
História se viu, em alguma medida, ocupado pela temática da diversidade sexual e de gênero.
Esperamos, por fim, que esse trabalho tenha cumprido o seu principal objetivo, qual
seja, o de demonstrar que o tema da diversidade sexual e de gênero tem a mesma legitimidade
que tantos outros conteúdos e objetos de saber de estar presente nos currículos de história da
educação básica. Entendendo a proposta de produto pedagógico como um meio de
compartilhamento de boas práticas e de saberes docentes, desejamos que o presente trabalho
possa inspirar e estimular cada vez mais colegas que conosco compartilham o ofício de
ensinar História na educação básica a fazer dela um saber/fazer cada vez mais sintonizado
com uma educação para a diversidade sexual e de gênero. Afinal, é impossível construir uma
educação verdadeiramente cidadã e democrática sem pôr em prática uma aprendizagem
pelas/para/com as diferenças.

Referências

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185
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categorias do debate contemporâneo. Retratos da Escola, v. 9, p. 29-46, 2015.

186
PODE FALAR DE GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA?
DISCUSSÕES ANALÍTICAS E EMPÍRICAS A PARTIR DOS CARTAZES
DO PROJETO “GÊNERO E DIVERSIDADE NA ESCOLA”

Robson Ferreira Fernandes58

Introdução

A partir das experiências de uma prática pedagógica na Educação Básica, objetivo


problematizar, neste artigo, a possibilidade legal e empírica de trabalhar em sala de aula e no
ensino de História as questões de gênero e sexualidades que afetam as subjetividades e o
currículo da escola, bem como, a necessidade de construção de espaços de formação
pedagógica para que temas como os da diversidade de gênero e sexualidades possam ser
abordados sem polêmica. Nesse sentido, direciono esse artigo a todos os professores e
professoras que, se vêem agindo sob práticas de silenciamento das diferenças – em destaque
as de gênero e sexualidades – que são conduzidas pelos padrões de normalidade.
O artigo está organizado em dois blocos: o primeiro apresenta as discussões teóricas
das questões de gênero e sexualidades, bem como a legislação vigente da Educação no Brasil
e, no segundo, a narrativa do projeto “Gênero e Diversidade na Escola”, realizado na Escola
de Educação Básica Coronel Antônio Lehmkuhl (EEBCAL) – Águas Mornas - Santa
Catarina, entre os anos de 2015 e 2016.

Ensino, Gênero e Diversidade e os Marcos Legais da Educação no Brasil

Esta análise fundamenta-se na importância de se discutir os temas de gênero e


diversidade na escola, especialmente nas aulas de História. Quando pensamos em processos
educativos logo nos remetemos à escola. Portanto, processos educativos vão além da esfera
escolar e sempre estiveram presentes na história da humanidade. Esses processos podem ser
entendidos como formas pelas quais as gerações mais jovens eram inseridas na cultura do
meio em que nasceram ou a passagem dos conhecimentos relacionados à sobrevivência do
grupo para aqueles que vão integrando-se à vida social com participação mais ativa
(MANACORDA, 1992). Ou seja, o alerta na história está marcado pelo caráter social da

58
Graduado em História pelo UNIASSELVI. Mestre em Ensino de História pela UFSC. Atua como professora
na rede estadual da Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina.

187
educação, vinculado diretamente ao contexto que a cerca. A partir dessa discussão,
Manacorda (1992, p. 6) informa que:

Portanto, o discurso pedagógico é sempre social, no sentido de que tende, de um


lado, a considerar como sujeitos da educação as várias figuras dos educandos, pelo
menos nas duas determinações opostas de usuários e de produtores, e, de outro lado,
a investigar a posição dos agentes da educação nas várias sociedades da história.
Além disso, é também um discurso político, que reflete as resistências
conservadoras e as pressões inovadoras presentes no fato educativo e, afinal, a
relação dominantes-dominados.

Com isso, pretendo ter em vista a relevância da questão social e histórica, quando
todos os aspectos que se movimentam nos processos educativos, de modo a atender a
educação como uma esfera viva e dinâmica das relações humanas.
A sociedade está em constante mudança e as pessoas variando seus interesses e
desejos, alterando práticas cotidianas e a forma como se percebem e como veem os outros.
Durante muito tempo prevaleceu, na maior parte das sociedades, a ideia de que as diferenças
entre homens e mulheres eram naturais e definidas por diferenças biológicas. As mulheres
teriam nascido com uma aptidão maior para o cuidado com o lar e os filhos, enquanto os
homens tinham maior facilidade para trabalhar fora, fazer maior esforço físico e assumir
cargos de chefia, entre muitas outras atividades que marcaram as distinções entre os sexos.
Esse mesmo discurso era, notadamente, utilizado para justificar a subordinação feminina e as
relações desiguais entre homens e mulheres. Na divisão binária, a Escola é uma Instituição
que transforma crianças em meninos e meninas; quando a professora faz uma fila para
meninos e outra para meninas; quando na Educação Física, o professor atribui o esporte do
futebol para os meninos e o vôlei para as meninas; quando os comentários de professores
durante as aulas subordinam o gênero feminino do masculino; quando aplicam regras e
condutas mais ríspidas para os meninos e mais sensíveis e delicadas para as meninas; quando
os mundos azul e rosa pertencem, respectivamente, aos meninos e meninas; etc. Essas são
formas violentas educacionais e coercitivas, a priori, dos desejos e destinos das crianças e
jovens. A normatização dos papéis de gênero violenta corpos e cria julgamentos que retira os
mesmos de um lugar, que no contexto social não era de seu pertencimento. Foucault, um
grande filósofo francês do século XX, dizia, no seu livro Vigiar e Punir (1987, p. 153):

A disciplina ‘fabrica’ indivíduos: ela é a técnica específica de poder que toma os


indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício.
Não é um poder triunfante (...); é um poder modesto, desconfiado, que funciona a
modo de uma economia calculada, mas permanente. Humildes modalidades,
procedimentos menores, se os compararmos aos rituais majestosos da soberania ou
aos grandes aparelhos de Estado.

188
Percebe-se que os marcos legais que regem a Educação Básica, sutilmente moldam
ou colocam em formas as crianças e jovens, num processo que é construído lentamente por
vários setores que influenciam as demandas da Educação, ora por naturalidade, ora por
interesses econômicos. A desconfiança daquilo que é legitimado como “natural”, entendemos
que precisa ser contestado e criticado como viés para uma formação humana integral. O
campo educacional marca um elo de manifestações subjetivas no decorrer das vivências na
esfera escolar e que possibilitam a reflexão crítica das formas de ser e estar na Escola. Diante
do quadro dos marcos legais da educação no Brasil que regem os debates das relações de
gênero nas aulas de História no Ensino Básico podemos apresentar a Constituição Federal
(1988), que em seu Art. 3º define, entre os objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil, a promoção "do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade
e quaisquer outras formas de discriminação". Já o Art. 5º traz a conhecida afirmação de que
"todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza" e afirma expressamente
a igualdade entre homens e mulheres como preceito constitucional.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) reproduz e amplia, em seu
Art. 3°, os princípios que devem basear o ensino: “I – igualdade de condições para o acesso e
permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o
pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; IV -
respeito à liberdade e apreço à tolerância”. O Plano Nacional de Educação 2014-2024 (2014)
define entre suas diretrizes a "superação das desigualdades educacionais, com ênfase na
promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação" e a "promoção
dos princípios do respeito aos direitos humanos, à diversidade e à sustentabilidade
socioambiental”. Nas metas, encontram-se, dentre as estratégias, a necessidade de fortalecer o
acompanhamento e o monitoramento do acesso, da permanência e do aproveitamento escolar
em situações de discriminação, preconceitos e violências na escola e o desenvolvimento de
políticas de prevenção à evasão motivada por preconceito ou quaisquer formas de
discriminação, criando rede de proteção contra formas associadas de exclusão.
O que mudou no Plano Nacional de Educação? Onde era mencionado “São diretrizes
do PNE a superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade
racial, regional, de gênero e de orientação sexual” passou a ser "erradicação de todas as
formas de discriminação". A Base Nacional Comum Curricular (2017) e o Plano Nacional de
Educação (2014) retiraram os termos “gênero” e “orientação sexual”, e as mesmas
contemplam a noção de múltiplo, diverso, respeito, alteridade; mas também não impedem a
abordagem em sala.

189
As Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação Básica (2013) apontam a
necessidade de trabalhar questões ligadas a gênero e sexualidade desde a educação infantil até
o ensino médio. Indicam para tanto uma abordagem focada não na padronização de
comportamentos ou na reprodução de modelos pré-definidos, mas, ao contrário, na reflexão
crítica, na autonomia dos sujeitos, na liberdade de acesso à informação e ao conhecimento, no
reconhecimento das diferenças, na promoção dos direitos e no enfrentamento a toda forma de
discriminação e violência. Acerca da atualização das Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio (2018), no capítulo que fala sobre os sistemas de ensino e da proposta
pedagógica, a mesma afirma em seu art. 17, inciso II c, “realização de ações fundamentadas
nos direitos humanos e nos princípios éticos, de convivência e participação democrática
visando a construir uma sociedade livre de preconceitos, discriminações e das diversas formas
de violências.” Afirma também no art. 27, inciso XV, a “promoção dos direitos humanos
mediante a discussão de temas relativos à raça e etnia, religião, gênero, identidade de gênero e
orientação sexual, [...] bem como práticas que contribuam para a igualdade e para o
enfrentamento de preconceitos, discriminação e violência sob todas as formas”.
Os Parâmetros Curriculares Nacionais (1997) estão organizados em Áreas e em
Temas Transversais. Há um caderno específico para cada tema, dentre eles, um de Orientação
Sexual. O documento é importante para garantir o trabalho com a temática de gênero na
Educação Básica. Esse documento é um referencial teórico para o planejamento de
professoras/es. Com ele, profissionais da educação podem sentir-se amparados a trabalhar
questões como homofobia na escola, visto que a homossexualidade faz parte da orientação
sexual.
A Base Nacional Comum Curricular (2018, p. 9-10) nas suas competências gerais,
enfatiza a importância do/a estudante ser preenchido/a pôr noções de respeito e tolerância no
percurso da Educação Básica:

7. [...] defender ideias, pontos de vista e decisões comuns que respeitem e


promovam os direitos humanos, a consciência socioambiental e o consumo
responsável em âmbito local, regional e global, com posicionamento ético em
relação ao cuidado de si mesmo, dos outros e do planeta. 8. Conhecer-se [...],
compreendendo-se na diversidade humana e reconhecendo suas emoções e as dos
outros, com autocrítica e capacidade para lidar com elas. 9. Exercitar a empatia, o
diálogo, a resolução de conflitos e a cooperação, fazendo-se respeitar e promovendo
o respeito ao outro e aos direitos humanos, com acolhimento e valorização da
diversidade de indivíduos e de grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e
potencialidades, sem preconceitos de qualquer natureza.

No capítulo sobre “As juventudes e o Ensino Médio” (BASE NACIONAL COMUM


CURRICULAR, 2018, p. 467), considera-se que há muitas juventudes implica organizar uma

190
escola que acolha as diversidades, promovendo, de modo intencional e permanente, o respeito
à pessoa humana e aos seus direitos:

A escola que acolhe as juventudes deve ser um espaço que permita aos estudantes: -
compreender que a sociedade é formada por pessoas que pertencem a grupos étnico-
raciais distintos, que possuem cultura e história próprias, igualmente valiosas, e que
em conjunto constroem, na nação brasileira, sua história; - promover o diálogo, o
entendimento e a solução não violenta de conflitos, possibilitando a manifestação de
opiniões e pontos de vista diferentes, divergentes ou opostos; - combater
estereótipos, discriminações de qualquer natureza e violações de direitos de pessoas
ou grupos sociais, favorecendo o convívio com a diferença [...].

A Proposta Curricular de Santa Catarina (2014) teve todo seu conteúdo revisado
para atender e estar de acordo com a valorização da diversidade na escola, bem como o
respeito às diferenças. Possibilita alcançar a formação humana integral, esse documento tem
como um dos princípios formativos a diversidade. A palavra “Gênero” aparece explicitamente
em vários momentos no documento (2014, p.57):

Nessa Atualização da Proposta Curricular de Santa Catarina, e considerando as


Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação e Direitos Humanos, estão em
discussão: a educação para as relações de gênero; a educação para a diversidade
sexual (orientação sexual e identidade de gênero) [...].

O Currículo Base da Educação Infantil e do Ensino Fundamental do Território


Catarinense (2019, p.35), no item 1.2 que elenca a Educação para as relações étnico-raciais,
determina que a diversidade é um elemento fundante da atualização curricular e “é
fundamental, desse modo, a inclusão, nos componentes curriculares, dos movimentos de
direitos humanos, das comunidades tradicionais urbanas e rurais, das relações de gênero e da
diversidade sexual”.
Portanto, os marcos legais que regem a educação no Brasil e em Santa Catarina, abrem
espaços para conscientizar, sensibilizar e informar alunas/os, professoras/es, funcionárias/os, mães
e pais sobre a necessidade urgente do trabalho com questões de gênero e diversidade na escola.
Desse modo, o ensino poderá contribuir com a formação humana integral, princípio essencial do
percurso formativo na Educação Básica. O estímulo ao debate e a reflexão sobre questões de
gênero e diversidade na escola contribuem para a desmistificação de tabus e senso comum sobre
gênero e sexualidades. Diminuir as situações de preconceito e injustiça no ambiente escolar e
trabalhar com temas transversais e que estão contidos nos marcos legais do país.
Contudo, abrir discussões acerca do projeto “Gênero e Diversidade na Escola”,
ocorrido na EEBCAL e vinculado ao Projeto Papo Sério, do NIGS – UFSC. A aproximação
dos(as) alunos(as) com a discussão de gênero, com a mobilização de saberes entre os(as)
professores(as), o apoio institucional dos(as) gestores(as) e comunidade escolar para o debate,

191
consta um significativo avanço e demonstração de que a partir de uma experiência é possível
cruzar e transversalizar os componentes curriculares. Além disso, o projeto propiciou aos
estudantes o domínio do conhecimento básico sobre instrumentos de coleta e análise de
dados; a organização de grupo de estudos sobre a temática de gênero na escola; o
reconhecimento nacional e da comunidade geral sobre a importância do projeto desenvolvido
na escola; o reconhecimento de novas práticas pedagógicas para combater qualquer forma de
violência e preconceito no ambiente escolar.
Deste modo, como escola, instituição que contribui com a socialização e de educação
formal das crianças e jovens, é necessário que todos que trabalham para, com e na escola
tenham um conhecimento profundo de suas práticas. Para Belloni (2007, p.62):

A socialização das novas gerações constitui um dos elementos mais importantes da


reprodução social, não apenas cultural, mas econômica e política. A sociedade
reproduz suas estruturas simbólicas por meio de um processo extremamente
complexo de transmissão da cultura: conhecimentos, técnicas, valores, símbolos,
representações, normas e papéis sociais são apresentados como saberes
imprescindíveis, imagens identitárias atraentes e modelos inelutáveis de
comportamento.

A escola, portanto, não é neutra. As subjetividades que lá estão são preenchidas por
experiências sociais, pessoais, culturais, políticas etc. É importante ressaltar que esses sujeitos
têm pontos de vista convergentes e divergentes, se apoiam em ideologias e teorias que
corroboram suas vivências; e o ensino, enquanto conhecimento formal sistematizado na
escola, passa a ter um caráter científico e democrático.

O projeto “Gênero e Diversidade na Escola” realizado na Escola de Educação Básica


Coronel Antônio Lehmkuhl (2015-2016)

A Escola de Educação Básica Coronel Antônio Lehmkuhl (EEBCAL), gestada pela


Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina, localizada no município de Águas
Mornas – SC, cidade com forte influência de imigração alemã, que conserva o viés religioso
católico e protestante, e tem como atividade econômica predominante a agricultura, e muitos
alunos e alunas trabalham na lavoura com a agricultura familiar.
Os temas de gênero e sexualidades sempre se inserem no planejamento anual do
Professor-Pesquisador que escreve, no componente curricular de História da Educação
Básica. Essa escrita tem como base o projeto “Gênero e Diversidade na Escola,” e o eixo do
Concurso de Cartazes do NIGS59, onde o Professor em foco participou do concurso de

59
Projeto de extensão da Universidade Federal de Santa Catarina, que é uma das mais importantes atividades
realizadas pelo Núcleo de Identidades e Subjetividades (NIGS) no campo da Educação, articulando gênero,

192
cartazes nos editais do Projeto do Papo Sério nos anos de 2014 e 2015, e em 2016 com o
edital próprio da EEBCAL.
Com os Projetos intitulados “Direitos Humanos, vulnerabilidade e
interseccionalidade: propostas de reflexões práticas à estudantes do Ensino Médio” com o
Ensino Médio, e “Expressão de Gênero da infância à juventude e Faces da Homofobia” com o
9º ano do Ensino Fundamental – Anos Finais, perpassou o objetivo de trazer o debate para
toda comunidade escolar a pensar as questões de preconceitos e discriminações relacionadas
ao sexo, raça, gênero, entre outras.
Os métodos para a realização foram oficinas de conscientização e sensibilização que
contribuíram para a identificação dos/as alunos/as com relação às intersecções, a
transversalidade de preconceitos pontuados nos grupos que se encontram em maior situação
de vulnerabilidade, tais quais as Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais 60. Em
seguida, os/as alunos/as dos nonos anos 01 e 02 (Ensino Fundamental – Anos Finais),
Primeira, Segunda e Terceira série (Ensino Médio), produziram cartazes sobre a temática do
Concurso de Cartazes: Trans-Lesbo-Homofobia e Heterossexismo nas Escolas, promovido
pelo Núcleo de Identidades de Gênero e Subjetividades – Projeto de Extensão “Papo
Sério”/UFSC.
No ano de 2015, as alunas e alunos foram convidados/as a pensarem sobre o conceito
de Interseccionalidade, a partir de uma análise teórica para perceberem como os marcadores
que atravessam os corpos não podem ser pensados isoladamente. Por interseccionalidade
(CRENSHAW, 2002, p.177) entende-se “uma conceituação do problema que busca capturar
as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da

sexualidades, diversidade e direitos humanos. Possuía três eixos de atuação distintos: as oficinas temáticas, o
concurso de cartazes e organização de eventos acadêmicos (seminários, intervenções, mesas redondas, debates).
Seu tempo de duração ocorreu entre 2007 e 2015. O primeiro concurso de cartazes ocorreu em 2009.
60
Conforme a cartilha “Materiais de apoio ao trabalho sobre sexualidades em sala de aula”, do Núcleo de
Identidades e Subjetividades da Universidade Federal de Santa Catarina, no seu glossário consta: Lésbica: pessoa
do sexo/gênero feminino que tem desejos, práticas sexuais e/ou relacionamento afetivo-sexual com outras
pessoas do sexo/gênero feminino; Gay: pessoa do sexo/gênero masculino que tem desejos, práticas sexuais e/ou
relacionamento afetivo-sexual com outras pessoas do sexo/gênero masculino; Bissexual: pessoa que tem desejos,
práticas sexuais e/ou relacionamento afetivo-sexual com pessoas de mesmo sexo/gênero que o dela e com
pessoas de sexo/gênero diferentes; Travesti: conforme a definição adotada pela Conferência Nacional LGBT
2008, travesti é uma pessoa que nasce do sexo masculino ou feminino, mas que tem sua identidade de gênero
oposta ao sexo biológico, assumindo papéis de gênero diferentes daquele imposto pela sociedade. Muitas
travestis modificam seus corpos através de hormonoterapias, aplicações de silicone e/ou cirurgias plásticas,
porém vale ressaltar que isso não é regra para todas/os; Transexual: pessoa que possui uma identidade de gênero
diferente do sexo designado no nascimento. Homens e mulheres transexuais podem manifestar (ou não) o desejo
de se submeterem a intervenções médico-cirúrgicas para realizarem a adequação dos seus atributos físicos de
nascença (inclusive genitais) à sua identidade de gênero constituída. No caso de uma pessoa designada ao
nascimento como homem e que se identifica como mulher, falamos de “trans-mulher”; no caso de uma pessoa
designada ao nascimento como mulher e que se identifica como homem, falamos “trans-homem”.

193
subordinação, [...] trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que
fluem ao longo de tais eixos [...]”.

Imagem 1 - Cartaz (Acervo pessoal do autor) Imagem 2 - Cartaz (Acervo pessoal do autor)

Com isso, pretendeu fazê-los voltarem seus olhares para outras formas de
preconceito e discriminação, além das citadas anteriormente, tais como: racismo,
capacitismo61, xenofobia, preconceitos de classe, de religião, gordofobia, entre outros. As
frases de efeito nos cartazes, tais quais: “Sou negro, cadeirante e homossexual, mas tenho um
coração igual ao seu!”, “Viva a Diversidade”, “Favela Gay” e “Minha sexualidade não é pro
seu prazer” justifica algumas temáticas debatidas nas oficinas e nas provocações que se
instalaram na esfera escolar.
A interseccionalidade, ferramenta teórica que nos permite pensar na articulação de
várias categorias para entender um fenômeno discriminatório, traz como exemplo, a análise
das reflexões dos cartazes, bem como a ideia de uma mulher lésbica negra, a partir de uma
perspectiva interseccional, articulará as categorias de gênero, raça, orientação sexual para
explicar o fenômeno. Esse cenário pode provocar diversas formas de preconceito,
discriminação que culmina em várias formas de violências. Por isso, para compreender as
identidades sob perspectiva feminista, é importante pensar que raça não se distancia de
gênero, e nem de classe etc; Djamila Ribeiro (2018, p. 47) fala que:

O movimento feminista precisa ser interseccional, dar voz e representação às


especificidades existentes no ser mulher. Se o objetivo é a luta por uma sociedade
sem hierarquia de gênero, existindo mulheres que, para além da opressão de gênero,
sofrem outras opressões, como racismo, lesbofobia, transmisoginia, torna-se urgente
incluir e pensar as intersecções como prioridade de ação, e não mais como assuntos
secundários.

61
O conceito está associado com a produção de poder e se relaciona com a temática do corpo por uma ideia de
padrão corporal perfeita; também sugere um afastamento da capacidade e da aptidão dos seres humanos, em
virtude da sua condição de deficiência. Acessar o link: https://azmina.com.br/colunas/o-que-e-capacitismo/

194
A ideia de violência, popularizada no senso comum, é abordada teoricamente pelo
conceito de violências, no plural. Os estudos sobre o tema desmistificam a concepção de
violência como agressão física, passando a analisá-la como um conjunto de fatores sociais que
montam um ambiente violento. Nesse contexto, podemos identificar diversas formas de
violências interligadas: a violência verbal, a violência física, a violência simbólica e a
violência econômica. Cada qual com suas sutilezas, todas criam feridas, que às vezes, não se
curam. Quando pensamos essas violências contra grupos subalternos – definidos como grupos
que não preenchem modelos dominantes -, é necessário observar a interseccionalidade de
categorias que atuam simultaneamente no processo de discriminação. A violência de gênero,
por exemplo, que diz respeito às relações de poder hierárquicas entre homens e mulheres, não
pode ser pensada sem que se articulem conjuntamente as categorias raça/etnia, classe social e
orientação sexual. Acerca da violência e gênero, Velázquez (2000, p. 12) diz que:

Las definiciones de violencia deben ser útiles para describir las formas de violencia
que habitualmente nos encontramos: maltrato físico, abuso emocional, incesto,
violación. El reconocimiento de la existencia de estas manifestaciones violentas
permitirá organizar conocimientos y prácticas sociales para comprender y apoyar a
las víctimas. Pero una definición de violencia de género y por qué se ejerce
mayoritariamente sobre las mujeres. La violencia entonces, es inseparable de la
noción de género porque se basa y se ejerce en y por la diferencia social y subjetiva
entre los sexos.

A oficina pré elaboração dos cartazes permitiu que os/as estudantes pudessem
também refletir sobre a importância de uma educação com uma perspectiva de respeito aos
Direitos Humanos. Foi apresentado o conceito/definição de vulnerabilidade, bem como foram
pontuados os grupos históricos que se encontram em maior situação de vulnerabilidade e a
quais riscos estão expostos. As mulheres estão vulneráveis ao machismo, sexismo e
misoginia; homossexuais à homofobia; lésbicas à lesbofobia; travestis, transgêneros e
transexuais à transfobia; negras/os ao racismo; populações indígenas ao etnocentrismo. Além
disso, foram citadas minorias étnicas, religiosas e culturais, bem como exclusões por conta da
aparência física e idade. As conversas também se instalaram na situação de imigrantes e
refugiados remetendo à presença de haitianos, comum na região. Também foram citadas
como grupos em situação mais vulnerável as populações quilombolas e ribeirinhas.
Sobre interseccionalidade e violências, foram usados vários exemplos práticos para
que as/os alunas/os pudessem identificar os cruzamentos e a transversalidade de preconceitos
a que uma mesma pessoa possa estar submetida. Por meio do exemplo de uma mulher, negra,
gorda e lésbica, as/os alunas/os foram instigadas/os a identificar os preconceitos a que essa
pessoa está vulnerável, bem como os marcadores sociais da diferença. Não foi difícil eles e

195
elas identificarem o racismo, a lesbofobia e a gordofobia. Entretanto, tiveram dificuldades em
mencionar o machismo e o sexismo. Talvez tal fato se tenha dado ainda pela confusão que se
faz entre orientação sexual e identidade de gênero, ou não querer mencionar. Como se uma
mulher lésbica não pudesse sofrer com o machismo ou com o sexismo. Os/as estudantes
assistiram ao clipe do rapper Rico Dalasan, “Aceite-C”. Chama atenção por pertencer à
periferia, ser negro e gay. Suas músicas são usadas como instrumento de militância e quebra
de padrões: gay cantando hip-hop, estilo majoritariamente machista.

Imagem 3 - Cartaz (Acervo pessoal do autor) Imagem 4 - Cartaz (Acervo pessoal do autor)

Uma grande ameaça aos Estudos de Gênero se instalou com maior propriedade no
governo de Bolsonaro, chamada de Ideologia de Gênero. Frases que serviram de deboche para
fundamentar esse discurso saíram de vários protagonistas defensores da “família tradicional
brasileira”, dos fundamentalismos religiosos, especialmente dos evangélicos, e uma delas, no
dia 02 de janeiro de 2019, quando Damares62 fala: “Atenção! Atenção! É uma nova era no
Brasil: menino veste azul e menina veste rosa”. Essa premissa dita um novo mecanismo de
poder e organização política de um governo de direita que atenta contra a ciência. Porém, o
que ela quer com essa afirmação? Questionar os estudos feministas e abraça o patriarcado
desmerecendo a ciência.
É importante diante dos estudos de gênero e do ensino de História, trazer a reflexão
sobre gênero enquanto uma categoria útil de análise histórica. Scot (1990, p. 88) irá definir
gênero em subconjuntos e interrelacionado, de duas formas:

(1) o gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças


percebidas entre os sexos e (2) o gênero é uma forma primária de dar significado às
relações de poder. As mudanças na organização das relações sociais correspondem

62
Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo Jair Bolsonaro. Acessar o link do youtube
para ouvir a frase dita por Damares: https://youtu.be/q6X3-nXjmv4

196
sempre a mudanças nas relações do poder, mas a mudança não é unidirecional.

A palavra “gênero” é uma categoria de análise dos Estudos Feministas que tem sido
utilizada para pensar a construção social das diferenças entre homens e mulheres, conforme
explica a historiadora Joan W. Scott (1990). Até recentemente, o senso comum considerava
que os comportamentos, ações e espaços na sociedade destinados de maneira diferente para
homens e mulheres se davam pela diferença biológica dos corpos. Os estudos feministas e de
gênero passaram a questionar essa origem biológica e a explicação causal para
comportamentos e condutas de mulheres e homens em diferentes sociedades.
É comum pensarmos que aprendemos na nossa educação e socialização que há no
mundo dois tipos de pessoas totalmente diferentes: homens e mulheres. Essa construção
social de divisão binária entre os sexos começa desde muito cedo, antes mesmo do
nascimento. Azul para meninos, rosa para meninas; carrinhos para eles, bonecas para elas.
Dessa forma, as diversas instituições sociais, como as escolas, as igrejas, a família e a mídia,
vão transformando crianças em meninos e meninas, alinhando o gênero ao sexo biológico
com o qual as pessoas nascem.
Crescemos aprendendo pelo cinema, pela literatura e pela televisão que as mulheres só
são felizes se casarem, se tiverem filhos/as e que devem ficar apenas em casa. Já os homens
têm que garantir o sustento da família e circular pelos espaços públicos. Eles têm de ser mais
agressivos, enquanto que elas devem ser mais compassivas. Louro (1997, p. 41) afirma que:

Homens e mulheres certamente não são construídos apenas através de mecanismos


de repressão ou censura, eles e elas se fazem, também, através de práticas e relações
que instituem gestos, modos de ser e de estar no mundo, formas de falar e de agir,
condutas e posturas apropriadas (e, usualmente, diversas). Os gêneros se produzem,
portanto, nas e pelas relações de poder.

O binarismo de gênero intenta naturalizar questões que são da ordem do cultural,


sendo, portanto, mutáveis. Gênero como categoria de análise histórica ajuda a perceber o
quanto, em diferentes culturas e momentos históricos, as formas de se lidar com a sexualidade
e com as diferenças biológicas se deram de maneira singular.
Assim, na luta por um mundo com mais igualdade, é de suma importância que se
respeite os diferentes modos de ser e estar no mundo, de modo que as pessoas possam
expressar o gênero da maneira como se sentem confortáveis e não por uma imposição sobre
seus corpos.
O Ensino Fundamental – Anos Finais, através das turmas dos nonos anos (91 e 92),
iniciaram as reflexões sobre as relações de gênero e sexualidades entrando no projeto no ano
de 2015. As reflexões desenvolvidas pelos(as) alunos(as), buscaram compreender a

197
diversidade de experiências, culturas, formas associativas e dinâmicas, que aos quais, para
além desses sujeitos, uma humanização crítica e respeitosa possa florescer nas terras de Águas
Mornas – Santa Catarina, no coração de jovens impulsionados pelo sentimento de mudança e
transformação de seu meio social.
No ano de 2015, além da continuidade dos estudos de Gênero e Sexualidades no
Ensino Médio, amplia-se o espaço de divulgação e participação do Concurso de Cartazes para
o Ensino Fundamental Anos Finais, especificamente para as turmas dos 9ºs anos 01
(matutino) e 02 (vespertino), (aproximadamente 25 alunos(as) em cada turma) da EEBCAL.
O desafio inicial e que foi fruto das socializações no decorrer dos encontros, se
apresentou com as contestações que emergem a partir das violências, como a lesbofobia,
transfobia e homofobia63. Uma das atividades consistia na dinâmica da caixa “Pergunte Aí”,
que foi um objeto de certificação de incertezas, descrenças e objeções anônimas que os/as
estudantes puderam depositar as suas dúvidas e perguntas. Perguntas como: Homofobia é a
mesma coisa do que Bullying? Por que alguns homens que se sentem mulher, usam roupas
femininas e outros usam roupas de homens mesmos? Por que as pessoas acham que
homossexualidade é doença, sendo que é dessa forma que elas são felizes? Por que as pessoas
têm tanto preconceito? Se você fosse pai e tivesse um filho gay, como você reagiria?,
mostraram o interesse e a falta de conhecimento dos temas em discussão.

Imagem 6 - Cartaz (Acervo pessoal do autor) Imagem 7 - Cartaz (Acervo pessoal do autor)

As violências, plurais e que se manifestam empiricamente, referem-se a agressões e


atos violentos que impõem o exercício de um grupo social sobre outro, sendo expressivo de

63
Conforme a cartilha “Materiais de apoio ao trabalho sobre sexualidades em sala de aula”, do Núcleo de
Identidades e Subjetividades da Universidade Federal de Santa Catarina, no seu glossário consta: Homofobia:
atitude preconceituosa que hierarquiza as pessoas em função da sua orientação sexual. O termo é usado para se
referir às atitudes e condutas de desprezo, discriminação e ódio às pessoas não heterossexuais e, em particular, a
gays. Lesbofobia: é a forma de discriminação dupla que articula a intolerância, desprezo, discriminação por
causa da orientação sexual, com subordinação ao gênero. Transfobia: despreza às pessoas travestis e transexuais.

198
uma relação de dominação, por exemplo, homens sobre mulheres, ricos sobre pobres, nativos
contra estrangeiros e migrantes, heterossexuais contra homossexuais etc. Esses atos requerem
a aprovação social que justifica a conduta violenta como instrumento para a subordinação ou
a exclusão do grupo discriminado, fazendo com que a violência represente uma ameaça
constante contra determinado grupo. A LGBTfobia é tratamento mais cruel e que anula, torna
invisível, exclui as pessoas de suas identidades.
O projeto realizado em 2016, agora sem vinculação direta com o “Projeto Papo
Sério” – NIGS/UFSC, pois o mesmo recebe cortes financeiros, deu a oportunidade para a
EEBCAL andar com os seus próprios pés. O I Concurso de Cartazes sobre Trans-Lesbo-
Homofobia e Heterossexismo humanizou os/as estudantes do Ensino Fundamental – Anos
Finais e Ensino Médio da Escola de Educação Básica Coronel Antônio Lehmkuhl.
Proporcionar conhecimentos científicos da diversidade sexual e de gênero ainda é um
grande impasse, ou tabu para alguns/mas, diante da sociedade que se apresenta com resquícios
do patriarcado. Mas o tema está no cotidiano, na sala de aula, nas rodas de conversas, nas
famílias e, especialmente, em um dos ambientes que unem os mais diversos posicionamentos
e personalidades, que é a escola. Para enfatizar a discussão e expandir o conhecimento as/os
estudantes sobre o tema, oI Concurso de Cartazes sobre Trans-Lesbo-
Homofobia e Heterossexismo, trazendo como lema “Escola é lugar de respeito às diferenças
e construção da igualdade”, foi cunhada uma abordagem teórico-metodológica de forma
interdisciplinar através de oficinas e roda de debates em ambiente escolar.
O Concurso, nos mesmos moldes do Concurso de Cartazes do Projeto Papo Sério,
fomentou a criação artística de cartazes sobre às questões que discorrem acerca do combate às
violências e discriminações LGBTfóbicas em ambiente escolar. Nos cartazes, as temáticas
foram diversas: discriminação, responsabilidade da escola, padrões de vida criados pela
sociedade, reivindicações do movimento LGBTQ+, adoção por casais homossexuais, entre
outras questões, ficaram registradas nas imagens que dizem tudo sobre respeito, amor,
igualdade e cidadania.
A defesa da responsabilidade da escola diante dos temas em discussão, e
especialmente da EEBCAL que mantém seu compromisso como Instituição Escolar
Construtora da Igualdade de Gênero, traduz uma realidade que não dá mais de se ausentar:
uma sala de aula não é só composta por português e matemática; existem muitas coisas além
dessas disciplinas no seu interior. É urgente construir um panorama de respeito e tolerância
para que os diversos marcadores sociais dos/as estudantes não sejam possibilidades para as
exclusões desses sujeitos da escola. Há um mecanismo na escola que expulsa mais um grupo

199
do que o outro. A escola ainda é segregadora. Devemos implementar e acreditar que um
mundo mais justo, igualitário e que respeite as diferenças seja possível com a contribuição da
educação. Fazer da escola um lugar em que aqueles e aquelas por anos invisibilizadas/os
sejam reconhecidas/os, valorizadas/os e respeitadas/os. A Diversidade e as Diferenças vivem
e habitam a escola. Professores/as não podem ser negligentes; devem educar para a
valorização da diversidade e o respeito às diferenças. Louro (1997, p.57) diz que:

Diferenças, distinções, desigualdades... A escola entende disso. Na verdade, a escola


produz isso. Desde seus inícios, a instituição escolar exerceu uma ação disjuntiva.
Ela se incumbiu de separar os sujeitos – tornando aqueles que nela entravam
distintos dos outros, os que a ela não tinham acesso. Ela dividiu também,
internamente, os que lá estavam, através de múltiplos mecanismos de classificação,
ordenamento, hierarquização. A escola que nos foi legada pela sociedade ocidental
moderna, começou por separar adultos de crianças, católicos de protestantes. Ela
também se fez diferente para os ricos e para os pobres e ela imediatamente separou
os meninos das meninas.

Assim como os processos sociais são históricos, construir compreensões sobre a


História também o é, e isso significa discutir sobre sua relatividade conforme os períodos
pelos quais passa. Nos últimos anos, por exemplo, ensinar História se tornou uma resposta a
demandas e desafios que envolviam uma renovação do olhar sobre a prática do ensino, bem
como da prática enquanto produção de saber histórico. Diante das novas produções de saberes
no Ensino de História, Bittencourt (2011, p. 95) argumenta que:

As análises sobre a história do ensino de História e constituição da memória social


têm sido problematizadas a partir das lutas dos movimentos sociais que, dentre
outras reivindicações, exigem os estudos sobre novos sujeitos relegados e omitidos
pela história acadêmica e escolar.

Os chamados problemas de gênero (sexualidade, diversidade, violência de gênero,


homo/lesbo/transfobia, direitos das mulheres, pertença histórica) se tornaram pauta necessária
dentro e fora das salas de aula e em muitos casos dentro ou fora da História enquanto
disciplina. Considerando os problemas de gênero como sendo também o conjunto de
discursos disseminados (parlamentares, mídia, profissionais liberais, empresários, legislações)
e que trazem em seu bojo o conservadorismo, a misoginia, a homofobia, sem esquecer de
relacioná-los a vida social mais ampla de um país que possui altos índices de violência contra
mulheres e LGBTQI+ como o Brasil, as reflexões propostas buscam compreender a
diversidade de experiências, culturas, identidades que contribuem para uma humanização
crítica e respeitosa na consciência de jovens impulsionados pelo sentimento de mudança e
revolução social.
As desigualdades sociais advindas da construção social da diferença entre o que é
considerado “masculino” e o que é “feminino” geram múltiplas violências e opressões. As
200
desigualdades são aprendidas dentro e fora da escola, porém dentro da escola essas
desigualdades se reproduzem.
O momento é de quebra de paradigmas com intervenções na escola, de revisão de
nossos conceitos. O debate é pertinente ainda em tempos de conservadorismo radical.
Esclarecer, conscientizar e relacionar o assunto com as práticas cotidianas é entender os
corpos que transitam pela escola e que formam a sociedade.

Referências

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Caderno Perspectiva, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 41-56, jan./jun. 2007.
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Bairros e Claudia de Lima Costa. Disponível em <www.wuceh.addr.cin/wcar_docs/crenshaw
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estruturalista. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
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RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo: Companhia das
Letras, 2018.

201
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VELÁZQUEZ, Susana. Violencia de Género, violencias cotidianas. Ponencia. Programa de
Actualización sobre violencia de gênero. Associación de Psicólogos de Buenos Aires, 2000.

202
A OFICINA: UMA METODOLOGIA PARA O ENSINO DE HISTÓRIA,
UM DEBATE SOBRE AS RELAÇÕES DE GÊNERO POR MEIO DAS IMAGENS
DO LIVRO DIDÁTICO

Dimas José Batista64;


João Cândido Carvalho Marinho65

Introdução

Há, na atualidade, uma crescente preocupação com o aperfeiçoamento de


metodologias de ensino. A literatura especializada tem destacado que, em uma sociedade
permeada pela tecnologia e pela profusão de informação, é necessário construir estratégias
que permitam às pessoas tirar o maior proveito desses recursos. E, no campo da educação,
isso se tornou uma forma de atingir resultados positivos nos processos de ensino-
aprendizagem, especialmente, na educação básica.
Neste artigo, abordamos alguns aspectos da oficina como ferramenta didático-
pedagógica elaborada para compreender e aperfeiçoar as práticas em sala de aula. Aplicamos
a metodologia em uma turma de 1º ano do ensino médio do Centro de Ensino Graça Aranha,
escola da rede estadual de educação do estado do Maranhão, localizada na cidade de
Imperatriz. Apresentamos aqui parte dos resultados da pesquisa de mestrado em que, por meio
das oficinas, propusemos algumas discussões acerca das relações de gênero e poder
estabelecidas historicamente no seio da família brasileira. Essa proposta inclui-se no conjunto
de pesquisas que visam melhorar as práticas de ensino na educação básica desenvolvidas pelo
Programa de Pós-graduação em Ensino de História - PPGHIST da Universidade Federal do
Tocantins - UFT.
Em princípio, para o aprofundamento da discussão apresentamos um panorama geral do
ensino de História ofertado no Brasil e uma análise das perspectivas metodológicas que passaram
a ser utilizadas recentemente na disciplina. Nesse contexto de inovações, as oficinas em que são
feitas análises de imagens se constituem como um dos instrumentos que permitem aos/às
estudantes protagonizar de modo ativo e efetivo no processo de aprendizagem em sala de aula.
Por fim, sugerimos que essa metodologia didático-pedagógica pode ser utilizada por

64
Graduado e Mestre em História pela UNESP/Franca. Doutor em História Social pela USP. Atua como
professor no curso de História da UFT/UFNT.
65
Graduado em História pela UEMA. Bacharel em Direito pela UFMA. Mestre em Ensino de História pelo
PPGEHIST/UFT. Atua como professor de História na rede estadual de ensino em Imperatriz - MA.

203
professores/as do ensino fundamental e médio, nas mais diversas partes do país. Nossa
proposta é fugir do modelo tradicional66 e propor ações interdisciplinares que utilizam
materiais disponíveis para os/as estudantes, como o próprio livro didático, como apoio para as
discussões que, nesse caso, versaram sobre relações de gênero. Aplicada em uma turma de 1º
ano, tal metodologia se mostrou eficaz, tendo em vista as aprendizagens construídas durante o
processo, o que justifica a possibilidade de sua aplicação em outras instituições de ensino.

O Ensino de História no século XXI: outros métodos e abordagens

Ensinar História para os/as jovens do século XXI que vivem imersos em tecnologias,
tem se tornado uma tarefa difícil. Na sociedade do conhecimento, inúmeras informações são
lançadas a todo instante, o que leva a uma dificuldade de filtrar aquilo que é mais importante.
Além disso, a vida moderna provocou uma alteração na percepção do tempo e na
possibilidade de entender o presente através da análise do passado. Nessa geração, prevalece
uma espécie de imediatismo, em que o presente, aparentemente, tem pouca relação com o
passado.
Diante desse quadro, esse componente curricular precisa se mostrar atraente para
os/as jovens que passaram a ter dificuldade de concentração em atividades que exigem foco.
Por essa razão, o tipo de educação que Paulo Freire (1987) chamou de “bancário” se mostra
ineficaz, pois somente o professor usa a palavra e conceitos são lançados aos/às estudantes
que recebem e memorizam as informações, como se fossem recipientes.
Tradicionalmente, esse modelo vinha sendo ofertado nas diversas instituições de
ensino no Brasil, sendo ainda muito presente na atualidade. Esse tipo de ensino que, no caso
da História, é realizado através da mera exposição de fatos históricos, sem questionamentos,
se mostra defasado no tempo presente. Desse modo, é necessário criar meios para a promoção
do debate, em sala de aula. Acerca dessa questão, Paulo Freire comenta que

a narração, de que o educador é o sujeito, conduz os educandos à memorização


mecânica do conteúdo narrado. Mais ainda, a narração os transforma em ‘vasilhas’,
em recipientes a serem ‘enchidos’ pelo educador. Quanto mais vai enchendo os
recipientes com seus ‘depósitos’, tanto melhor educador será. Quanto mais se
deixarem totalmente ‘encher’ tanto melhores educandos serão (FREIRE, 1987,
p.33).

Nadai (1993, p. 143), pensando na perspectiva do ensino tradicionalmente ofertado

66
Entendemos como modelo tradicional, aquele que Paulo Freire (1987) chamou de “bancário”. Nele, somente o
professor usa a palavra e conceitos são lançados aos/às estudantes que recebem e memorizam as informações.
No caso do ensino de História, é realizado por meio da mera exposição de fatos históricos, sem questionamentos.

204
no país, evidencia uma espécie de esgotamento desse paradigma e a necessidade de buscar a
superação das teorias e práticas habitualmente usadas. Como forma de enfretamento a essa
problemática, sugerimos a realização de oficinas em que os/as estudantes são protagonistas no
processo de aprendizagem, não apenas meros/as espectadores/as.
Essas ações fogem do modelo “bancário” em que o/a professor/a é o detentor do
conhecimento a ser apenas absorvido pelos/as ouvintes, e promovem uma aproximação dos/as
estudantes com a realidade em que estão inseridos. Nesse sentido, a realização dessas oficinas
que utilizam imagens, seja do livro didático ou de outras fontes, para o debate sobre os
momentos históricos, se firmam como possibilidades para repensar o ensino de História na
educação básica.
Essas metodologias estão ganhando espaço nas escolas. No entanto, apesar de todas
as discussões, sua inserção ainda encontra certa dificuldade. Os/as professores/as em
exercício, na maioria das vezes, por conta de uma formação tradicional, não as utilizam em
seu cotidiano. Na contramão desse pensamento, a escola onde este trabalho foi realizado
indica em seu PPP – Projeto Político Pedagógico (MARANHÃO, 2016, p.11) a necessidade
de ações que desenvolvam a criticidade. Para tanto, recomenda a aplicação de métodos que
visam a autonomia dos/as estudantes.

O Centro de Ensino Graça Aranha tem como função social criar relações positivas e
democráticas entre os sujeitos envolvidos no processo educativo. Busca instigar o
aluno a pensar de forma crítica, fazendo da escola um espaço de cidadania, que
prioriza a formação integral e o sucesso dos alunos.

Na concepção de educação contida no PPP da escola (MARANHÃO, 2016, p. 11),


“o professor deve ser o mediador do processo pedagógico, utilizando os mais diversos
instrumentos didáticos, de modo que os objetivos traçados sejam alcançados ao final de cada
etapa de trabalho”. Essa postura que, na prática, vem sendo adotada aos poucos, se consolida
em um estilo de educação que tenta fugir do modelo há tempos questionado por Paulo Freire.
A escola adota uma Pedagogia Histórico-Crítica (SAVIANI, 2007) e propõe um
trabalho pedagógico estruturado no método dialético que se desenvolve em quatro etapas:
problematização, instrumentalização, catarse e síntese, tendo a prática social como ponto de
partida e chegada. O objetivo da instituição é promover ações em que as informações se
transformem em conhecimento.

Esta teoria evidencia um método diferenciado de trabalho, especificando-se por


passos que são imprescindíveis para o desenvolvimento do educando. O método de
ensino visa estimular a atividade e a iniciativa do professor; favorecer o diálogo dos
alunos entre si e com o professor, mas sem deixar de valorizar o diálogo com a
cultura acumulada historicamente; leva em conta os interesses dos alunos, os ritmos
de aprendizagem e o desenvolvimento psicológico, mas sem perder de vista a

205
sistematização lógica dos conhecimentos, sua ordenação e gradação para efeitos do
processo de transmissão-assimilação dos conteúdos cognitivos (PETENUCCI, 2008,
p. 13).

A opção por um método crítico que acolhe diferentes formas de pensamento tem por
objetivo a formação de indivíduos que se percebem como agentes transformadores da
sociedade. Desse modo, o método dialético se ajusta como uma possibilidade de abordagem
que pode ser adotada para a aprendizagem em História e para os demais componentes
curriculares. Essa perspectiva visa a construção de diálogos e fortalece o protagonismo e o
senso crítico.
Do mesmo modo, para efetivação dessa perspectiva, o PPP da escola
(MARANHÃO, 2016, p. 12) estimula a realização de atividades interdisciplinares. O texto
afirma que “a interdisciplinaridade está intimamente relacionada a uma abordagem
metodológica que proporciona maior articulação e reflexão entre as disciplinas”. Por isso e
também por entender que ações conjuntas são mais eficazes, que essa proposta incentiva o
diálogo entre as várias áreas de conhecimento.
Em meio a todas essas possibilidades de debate, utilizamos as leituras de imagens
para potencializar as discussões em sala de aula. A intenção é utilizá-las como elo entre as
disciplinas, tendo em vista que a efetivação da interdisciplinaridade se dá por meio da prática
estabelecida pelos/as próprios/as professores/as, como bem explica Pombo (2006, p. 225) que
diz que “a interdisciplinaridade existe sobretudo como prática. Ela traduz-se na realização de
diferentes tipos de experiências interdisciplinares de investigação (pura e aplicada)”. Nesse
sentido, é necessário utilizar meios próprios para a implementação de uma proposta que
considera tal teoria, já que não há que se falar em receitas prontas.
Nos debates, os/as estudantes são convidados/as a pesquisar e a discutir sobre as
imagens, pensando sempre na realidade social, a partir de diversas perspectivas como, por
exemplo, as relações de gênero. Tais recursos são de extrema importância para a construção
do conhecimento, pois além de servirem como fonte histórica, exercem a função de prender a
atenção dos/as educandos/as. Haja vista que trabalham com o campo visual, as imagens
despertam o interesse e possibilitam uma aprendizagem consistente.
No que tange às questões de gênero, cabe ressaltar a emergência e a difícil trajetória
que levou a implementação dessa abordagem, a partir das duas últimas décadas do século XX,
como observam Soihet e Pedro (2007, p. 284) quando afirmam que “a fertilidade dos dias
atuais contrasta, [...] com a trajetória difícil que a categoria de análise ‘gênero’ enfrentou no
campo historiográfico”. Diferentemente do sistema tradicional em que prevalecem fatos

206
históricos que ressaltam somente questões políticas e econômicas, temáticas como essa fogem
desse sistema e indica mudanças de perspectivas para o ensino de História.
Para esta pesquisa, tendo o gênero como categoria de análise, propomos abordar
algumas dimensões dos poderes que se firmaram na história da família brasileira e os múltiplos
fatores que contribuíram para a transformação dessa instituição social ao longo do tempo. Para
alcançar tal objetivo, nos fundamentamos em Joan Scott (1995), para quem gênero é um
conjunto de propriedades atribuídas social e culturalmente aos indivíduos e o primeiro elemento
que os hierarquizam, sendo a família o espaço em que se iniciam essas construções.
De modo geral, a partir das imagens, é possível alargar o campo de visão dos/as
envolvidos/as no processo, para as questões de gênero, pois essas perpassam pela história da
humanidade e, consequentemente, pelas observações dos artistas. Certamente, em diversas
obras, é possível perceber, em seus detalhes, a questão do poder que se estabelece nos
diversos contextos. Em suma, as imagens são importantes meios para analisar os processos
históricos e as relações constituídas a partir do gênero dos indivíduos

A análise de imagens no ensino de História

O poeta Ferreira Gullar, em entrevista, disse que “a arte existe porque a vida não
basta” (TRIGO, 2010). Para o escritor maranhense, a arte possibilita a descoberta, a invenção
da vida. Ela é necessidade humana de exprimir maneiras de ver o mundo, os sentimentos e as
emoções. Através de pinturas, esculturas, músicas, danças, arquitetura e, mais recentemente,
pelas fotografias e por meio do cinema, os indivíduos vêm apresentando modos de ver a
realidade que ultrapassam a barreira do previsível.
Pensando nessa perspectiva, essa metodologia didático-pedagógica, na qual optamos
por trabalhar, especificamente, com imagens estáticas como pinturas, fotografias e esculturas,
parte da concepção de que a arte possui historicidade, pois suas provocações que mexem com
a subjetividade das pessoas, fazem parte de contextos determinados. Pelo fato de estar
diretamente ligada a um modo específico de perceber o mundo, ela está inserida no momento
histórico em que foi concebida. Desse modo, se fortalece como um importante meio de
conhecer a realidade de uma época. Coli afirma que

a arte constrói, com elementos extraídos do mundo sensível, um outro mundo,


fecundo em ambiguidades. Na obra há uma organização astuciosa de um conjunto
complexo de relações, um mundo único feito a partir do nosso [...] capaz de atingir e
enriquecer nossa sensibilidade (COLI, 1995, p.111).

Sendo assim, podemos afirmar que as manifestações artísticas estão inseridas em um

207
espaço, pois extraem do mundo sensível os elementos necessários para a sua construção, e em
um tempo histórico, pois os espaços se transformam com as passagens do tempo e as imagens
representam essas mudanças. Uma pintura ou uma fotografia, por exemplo, só ocorrem por
conta da reunião de diversos aspectos, o artista exprime sua percepção a partir de elementos
do seu entorno.
Quando uma obra se materializa, já passou pelo pensamento do artista. É esse
aspecto que interessa ao estudo da História que, resguardada a questão da subjetividade
inerente às artes, pode utilizar suas especificidades, no que se refere aos aspectos sociais
contidos nelas para análise dos acontecimentos do passado. Dessa maneira, elas se constituem
excelentes recursos para pesquisa em História.
A arte pode e deve ser entendida como fonte histórica e, consequentemente, um meio
para reflexão nas aulas de História, na educação básica. No entanto, Peter Burke, no livro
“Testemunha Ocular” (2004), questiona a “invisibilidade do visual”, refletindo que
alguns/mas historiadores/as ainda não consideram as evidências das imagens com bastante
seriedade. Para o autor, os/as estudiosos/as da História preferem utilizar textos escritos como
indício, sendo poucos os que se debruçam sobre as fontes visuais.
Na obra, o autor defende as fontes iconográficas como testemunhas da história, assim
como são os textos escritos. Elas podem dar pistas sobre os indivíduos, os locais, os fatos em
que foram inseridas. Por outro lado, ele também adverte para a questão das intencionalidades,
afinal uma obra é carregada da subjetividade do artista, portanto é a sua interpretação da
realidade. Uma obra possui um jogo de cores e ângulos que podem ser pensados para
provocar sensações no expectador. Além disso, uma obra pode ser fruto de encomenda, ou
seja, pode apresentar uma realidade manipulada. O processo de interpretação das imagens
deve levar em consideração todos esses aspectos.
A arte, enquanto modo de questionar a realidade, parece ser fácil de ser conceituada,
mas apresentar uma definição para ela não é uma tarefa fácil, pois são inúmeras as
concepções. Isso se torna algo ainda mais complexo, pelo fato de que tal conceito depende da
subjetividade de cada um – o que é arte para alguns, pode não ser para outros. Para Coli
(1995, p. 109), “a arte tem [...] uma função que poderíamos chamar de conhecimento, de
‘aprendizagem’. Seu domínio é o do não-racional, do indizível, da sensibilidade: domínio sem
fronteiras nítidas”. Para o autor, a arte foge do que é racional, diferentemente do mundo da
ciência e da lógica
Diante de seu caráter abrangente, a arte pode ser pensada de várias maneiras. Na
perspectiva tradicional, devido a herança acadêmica, ela se configura como uma

208
representação do mundo. Por meio dela, o artista, utilizando diversos materiais, apresenta uma
forma de ver um objeto ou um acontecimento que está ausente naquele espaço. Logo, a obra
se constitui como uma cópia da realidade.
A obra “Um funcionário brasileiro a passeio com sua família”, do artista francês Jean
Baptiste Debret (Figura 1), pode ser apontada como um exemplo. Nela, fica evidente a
existência de uma espécie de hierarquia na sociedade colonial brasileira, tanto nos aspectos de
gênero, como de raça. Tal obra, que pode ser entendida como clássica, pois é uma
aproximação da realidade, é um excelente exemplo de como a sociedade da época era
organizada e pode ser utilizada como um meio de entendimento daquele momento histórico.

Figura 1: “Um funcionário brasileiro a passeio com sua família” de Jean


Baptiste Debret

Fonte: ARAÚJO, Silvia Maria de; BRIDI, Maria Aparecida; MOTIM,


Benilde Lenzi. Sociologia: volume único. 2. ed. São Paulo: Scipione,
2016.

Conforme assinalado, as produções artísticas, como a pintura de Debret, propiciam


respostas mais rápidas às indagações dos/as estudantes que são, muitas vezes, mais claras que
aquelas contidas no texto escrito. O historiador francês Roger Chartier (2002, p. 20) explica
que “a representação faz ver uma ausência, o que supõe uma distinção clara entre o que
representa e o que é representado; de outro, é a apresentação de uma presença, a apresentação
pública de uma coisa ou de uma pessoa”. Para ele, as narrativas históricas não mostram os
acontecimentos em si, elas são construídas a partir da apresentação de elementos que, de
modo ficcional, trazem uma ideia de como os fatos ocorreram. As obras de arte podem ser
pensadas nessa mesma perspectiva.
Nesse sentido, as imagens, sejam elas pinturas, esculturas, fotografias etc., dão pistas
sobre os tempos históricos, tendo em vista que apresentam algo que não está presente no

209
momento. Por exteriorizar um modo de ver o mundo e para mostrar as vivências de
determinada época, as imagens se encaixam nesse conceito na medida em que deixam, para
posteridade, formas de representação.
Por seu aspecto visual, as imagens produzem no imaginário popular noções claras de
uma época. A opção por apresentar a imagem da família colonial de uma forma específica fez
com que Debet fixasse no imaginário popular como eram as relações de gênero nas famílias
daquela época. Do mesmo modo, a ausência de outros tipos construiu, no presente, a noção de
que não haviam outras possibilidades, gerando uma espécie de noção ficcional sobre o
passado.
Por todas essas questões, a imagem pode ser entendida como uma relevante fonte
histórica. Essa percepção é relativamente recente, pois tradicionalmente a historiografia
tem dado preferência às fontes escritas em detrimento às orais e imagéticas. Ressaltamos
que os textos escritos, assim como as obras de arte, também são representações, e as
imagens podem ser tanto um complemento, como um objeto que fala por si sobre os
acontecimentos.
Da mesma forma que as imagens são interessantes como fonte históricas, elas podem
ser utilizadas como recuso didático nas aulas de História. Em sala de aula, elas podem e
devem ser importantes aliadas no processo de construção do conhecimento. Cabe ressaltar,
mais uma vez, que a geração de estudantes com a qual os/as professores/as estão lidando no
século XXI, vive exposta a estímulos visuais, de forma que o texto escrito e a oralidade nem
sempre dão conta de mobilizar o imaginário dos/as jovens.
É importante mencionar ainda que a excessiva exposição a estímulos visuais pode ter
efeitos negativos. A vida urbana é repleta de imagens, as redes sociais, os jogos de celulares
etc. Pelo fato de que tudo acontece de modo rápido e intenso, essas alterações na percepção
vêm provocando dificuldades de concentração. Os/as jovens de hoje não param para observar
os detalhes presentes em uma obra de arte, tão pouco os detalhes históricos contidos nela,
portanto precisam ser estimulados/as.

Nosso universo visual é [...] sintetizador: o impacto dos cartazes publicitários, o


sentido único e indiscutível dos sinais de trânsito, a solicitação frenética das imagens
da televisão exige uma leitura rápida: somos treinados para apreender, de um só
golpe, o sentido de cada mensagem enviada. Perdemos o hábito do olhar que analisa,
perscruta, observa. Enumerar o que vemos numa pintura é menos simples do que
parece. Em todo caso, esse treino modesto permite descobrir muitas coisas
importantes que não surgiam à primeira vista (COLI, 1995, p. 122).

Por essa razão, fazer leituras de imagens se torna um desafio. Além disso, nas salas
de aula prevalece o uso da escrita e da oralidade. Os/as próprios/as professores/as não

210
entendem a análise das imagens como um exercício para o desenvolvimento da imaginação e
para a reflexão sobre a história. Muitas vezes, nas aulas, preferem explicar todo o conteúdo,
com base no que está escrito no livro, sem fazer qualquer referência às imagens. Essa
dificuldade se estende também para as outras linguagens artísticas, como o cinema, por
exemplo.
Outro fator a ser destacado, sobre a minimização da importância da imagem, é o fato
de que nos livros didáticos, elas aparecem apenas como ilustração do fato histórico. Como foi
dito, há ainda, na cultura escolar, um apego pela escrita e pela oralidade, logo a centralidade
da leitura de imagens não ocorre em muitos livros. Desse modo, as pinturas, esculturas e
fotografias não são tratadas como fonte e atividades de leitura, propriamente dita, acontecem
em poucos momentos.
Essa proposta pedagógica sugere que seja feito um caminho contrário. As imagens
podem e devem servir como objeto a ser apreciado em sala. Desse modo, entendemos que a
discussão pode começar por elas, passando, assim, pelo texto escrito e em momentos que o
texto escrito é tomado como prioritário, elas podem ir além da simples ilustração e servir de
instrumento para a mobilização do debate.

As oficinas: uma metodologia didático-pedagógica

A partir da discussão sobre a necessidade de adequação dos métodos de ensino,


observando a importância da interdisciplinaridade, as diretrizes da proposta pedagógica da
escola e pensando na relevância das discussões de gênero, sugerimos uma metodologia
didático-pedagógica que considera todos esses aspectos. A proposta tem a intenção de facilitar
o trabalho dos/as professores/as de História, na medida em que apresenta um conjunto de
procedimentos considerados eficazes.
Escolhemos as oficinas pela necessidade de pensar métodos em que fossem
realizadas algumas atividades práticas. Para Paviani e Fontana (2009, p.77) a “oficina é uma
forma de construir conhecimento, com ênfase na ação, sem perder de vista, porém, a base
teórica”. Ao fazer as leituras das imagens, buscando perceber suas especificidades, os/as
estudantes puderam interpretar, analisar e criticar, situação diferente das aulas meramente
expositivas. Para as autoras,

a metodologia da oficina muda o foco tradicional da aprendizagem (cognição),


passando a incorporar a ação e a reflexão. Em outras palavras, numa oficina ocorrem
apropriação, construção e produção de conhecimentos teóricos e práticos, de forma
ativa e reflexiva (PAVIANI E FONTANA, 2009, p.77).

211
As oficinas têm a finalidade de levar todos/as os/as participantes a realizarem
atividades e, ao mesmo tempo, refletir sobre elas. Nessa construção coletiva de saberes, o/a
professor/a tem a tarefa de planejar as ações e “oportunizar o que os participantes necessitam
saber, sendo, portanto, uma abordagem centrada no aprendiz e na aprendizagem e não no
professor” (PAVIANI; FONTANA, 2009, p.79). Sendo assim, fica apenas com a função de
mediador/a do processo.
Sugerimos, desse modo, uma metodologia didático-pedagógica que indica a
realização de oficinas com leituras de imagens. Para tanto, consideramos os resultados da
aplicação dessa metodologia em uma escola de ensino médio. Trazer atividades que já foram
testadas e que obtiveram bons resultados tem sua importância pelo fato de que o planejamento
é uma das mais difíceis fases no processo de ensino. Em algumas situações, a realização dessa
etapa é até suprimida, pois demanda tempo e diálogo, principalmente no caso de atividades
interdisciplinares. Dessa maneira, o roteiro apresentado a seguir pode servir de inspiração
para aulas em outras instituições de ensino.

Realizando as oficinas: a experiência com a turma de 1º ano do CE Graça Aranha

Apresentamos neste espaço, uma parte do produto da pesquisa 67: uma metodologia
didático-pedagógica que pode servir de base para trabalhar as relações de gênero, em uma
perspectiva histórica, no 1º ano do ensino médio. A proposição de um conjunto de
procedimentos como este tem a intenção de facilitar a prática de professores/as de História, na
medida em que oferece técnicas já experimentadas e consideradas eficazes. O passo a passo que
será apresentado a seguir é uma sugestão, podendo ser adaptado de acordo com as
especificidades de cada sala de aula ou servir de inspiração para outras discussões sobre gênero.

67
Na pesquisa foram realizadas em cinco oficinas. Por uma questão de adequação, neste artigo, apresentamos
apenas duas.

212
Oficina 1: As relações de poder na história da família brasileira

Esta oficina possibilita questionar e discutir as relações de poder na história da


família brasileira e a sua persistência na atualidade. A existência de diferentes níveis de poder
é uma realidade nos diversos âmbitos da sociedade e a família, enquanto instituição social,
não é diferente. Esse fato fica evidente em imagens que refletem o pensamento de uma época
histórica e na atualidade.

Tema As relações de poder na história da família brasileira


Objetivo(s)  Discutir as relações de poder estabelecidas na família brasileira.
 Analisar como as relações de poder são percebidas no tempo presente.
Materiais  Data show (opcional), livro didático, folha de redação
Avaliação  Participação nas atividades
 Produção textual
Duração  100 min.

Procedimentos:

1. Discutir o conceito de poder e como são estabelecidas as relações que, historicamente,


vem hierarquizando os indivíduos nas famílias. Pensar como tais relações se
configuram na atualidade.
2. Apresentar a imagem “Cena da família de Adolfo Augusto Pinto”, do pintor e
desenhista José Ferraz de Almeida Junior (Figura 2), e pedir que escrevam em uma
folha de redação as impressões sobre a pintura. Essa atividade será um instrumento de
avaliação da aprendizagem.
3. Para direcionar a produção textual, podem ser feitos os seguintes apontamentos:
 Descreva como os personagens estão posicionados no ambiente, pensando nas
intencionalidades do artista.
 Qual papel social você atribui a cada um dos personagens retratados?
 Você identifica relações de dominação nessa família. Justifique a sua resposta.
 Comente as diferenças entre as ações desempenhadas por homens e mulheres
retratados na tela.

213
Figura 2 – “Cena da família de Adolfo Augusto Pinto” de José Ferraz de
Almeida Júnior

Fonte: ARAÚJO, Silvia Maria de; BRIDI, Maria Aparecida; MOTIM,


Benilde Lenzi. Sociologia: volume único. 2. ed. São Paulo: Scipione, 2016.

Oficina 2: A família patriarcal brasileira

Nesta oficina, os/as estudantes entram em contato com um importante conceito no


estudo da família brasileira: o patriarcado. A família patriarcal foi, pelo menos teoricamente,
predominante no período colonial e imperial no Brasil, mas até a atualidade, muitas das suas
características ainda estão presentes em nossa sociedade, pelo menos nas atitudes e no modo
de pensar a realidade. Essa predominância pode ser questionada através de algumas imagens.
Outro elemento importante a ser percebido, nessa oficina, é a presença de níveis de hierarquia
na sociedade brasileira, resultantes da classe, gênero e raça/etnia.
Em se tratando de História temática, os marcadores tradicionais deixam de ser
importantes. No caso da abordagem usada nas oficinas, o eixo “relações de gênero e poder na
família” assume o protagonismo no processo. No entanto, sugerimos que sejam discutidos os
marcos tradicionais e, pelo menos, as principais características dos três períodos da História
do Brasil, já que são feitas referências a eles. Outra observação importante a ser destacada é a
relação com o tempo presente, pois a reflexão sobre o que mudou ou permaneceu na
atualidade é um interessante exercício.

214
Tema A família patriarcal brasileira
Objetivo(s)  Refletir sobre a formação e a constituição da família patriarcal no Brasil Colonial e
Imperial.
Materiais  Data show (opcional), Livro didático
Avaliação  Participação nas atividades
Duração  100 min.

Procedimentos:

1. Apresentar a obra “Um funcionário brasileiro a passeio com sua família”, do artista
francês Jean Baptiste Debret (Figura 1), e pedir que respondam às seguintes perguntas:
• Como você observa, com base na imagem, a existência de uma hierarquia na família
patriarcal brasileira?
• Por que o artista colocou as pessoas em uma espécie de fila? Que ideia quis passar?
• Por que a mulher e as crianças se encontram logo atrás do homem?
• O escravo, mesmo fazendo parte do gênero masculino, encontra-se logo atrás. Por quê?
2. Por meio da imagem, discutir o conceito de família patriarcal e extensa e também
aspectos da interseccionalidade de gênero.

Considerações finais

Durante muito tempo, foi recorrente na historiografia temáticas relacionadas à


política e à economia. Por essa razão, questões de gênero não eram observadas e pesquisadas.
O ensino de História, de certo modo, seguiu os mesmos direcionamentos. Pelo menos até as
três últimas décadas, temáticas que fugiam da lógica tradicional não eram discutidas em sala
de aula. Somado a isso, havia a prevalência de aulas expositivas e pouco reflexivas.
Na atualidade, diante das transformações decorrentes das novas abordagens, essa
situação vem se transformando. A inserção de temáticas como as relações de gênero vem
trazendo novas perspectivas para pesquisa em História. Da mesma forma, o ensino de História
vem abraçando essas temáticas, embora haja uma luta política que tenta impedir a sua
efetivação.
Este trabalho levou em consideração todas essas questões e, com isso, discutimos
possibilidades de incorporação do marcador gênero nas aulas de História, a partir de
metodologias em que o/a estudante é o/a protagonista no processo de aprendizagem. Através
de oficinas, algumas imagens de livros didáticos foram analisadas, tendo as relações de
gênero e poder na história da família brasileira como referência.

215
Por utilizar métodos simples e materiais disponíveis, como o livro didático, a
proposta pode ser aplicada em qualquer instituição de ensino. Embora os livros disponíveis
não tenham as mesmas gravuras, outras podem ser utilizadas, seguindo critérios de análise,
como por exemplo, a disposição dos personagens no ambiente e as suas expressões, as
intencionalidades e o tempo histórico em que a obra foi elaborada, trazendo sempre para a
discussão aspectos das relações de gênero.
Para os professores-pesquisadores, o processo de elaboração e aplicação da pesquisa
foi extremamente enriquecedor. Foi interessante refletir sobre a própria prática pedagógica,
entender os elementos usados no dia a dia e potencializar esses recursos, sabendo dos seus
limites e das novas possibilidades. Foi importante, também, perceber como o ensino pode ser
um elemento de transformação social. Após esse trabalho, certamente as aulas, de um modo
geral, foram aperfeiçoadas, uma evidência da importância dos mestrados profissionais.

Referências

BURKE, Peter. Testemunha Ocular. Bauru, SP: EDUSC, 2004.


CHARTIER, Roger. A História Cultural entre práticas e representações. 2. Ed. Rio de
Janeiro: Difel, 2002
COLI, Jorge. O que é arte. São Paulo: Brasiliense, 2007.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 11. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
MARANHÃO. Governo do estado. Projeto Político Pedagógico - Centro de Ensino Graça
Aranha. Imperatriz, 2016.
NADAI, Elza. O Ensino de História no Brasil: Trajetória e Perspectiva. Revista Brasileira de
História, n. 25/6. São Paulo: ANPUH, 1993.
PAVIANI, Neires Maria Soldatelli; FONTANA, Niura Maria. Oficinas pedagógicas: relato de
uma experiência. Conjectura, v. 14, n. 2, maio/ago., 2009. Disponível em: http://www.ucs.br/
etc/revistas/index.php/conjectura/article/view/16. Acesso em: 07 jan. 2019.
POMBO, Olga. Práticas Interdisciplinares. Sociologias, Rio Grande do Sul: Porto Alegre,
Ano 08, nº 15, jan./jun. 2006, p. 208-249.
SAVIANI, Demerval. Escola e Democracia. 39. ed. Campinas: Autores Associados, 2007.
SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação &
Realidade, Porto Alegre, UFRGS/FACED, v. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. de 1995. Disponível
em: https://archive.org/stream/scott_gender#page/n8/mode/1up. Acesso em: 05 abr. 2019.
SOIHET, Rachel; PEDRO, Joana Maria. A emergência da pesquisa da história das mulheres e
das relações de gênero. Revista Brasileira de História, v. 27, n. 54, p. 281-300, 2007.
TRIGO, Luciano. Entrevista ‘A arte existe porque a vida não basta', diz Ferreira Gullar.
Disponível em: http://g1.globo.com/pop-arte/flip/noticia/2010/08/arte-existe-porque-vida-nao
-basta-diz-ferreira-gullar.html.

216
PARTE 4 –
ENSINO DE HISTÓRIA E EDUCAÇÃO
PARA RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS

217
LUGARES OUTROS E SABERES OUTROS:
A PRODUÇÃO DE SABERES PARA/NA ESCOLA

Tecia Goulart de Souza68;


Elison Antonio Paim69

Introdução

Este artigo é composto pelas narrativas advindas das experiências com os/as
estudantes de duas turmas de sétimo ano do PAAE – Programa de Avanço das Aprendizagens
Escolares70 do Centro de Ensino Fundamental Miguel Arcanjo, em São Sebastião – Distrito
Federal. Trabalharam, Sherwin Morris71 e Professora Tecia, sob orientação do professor Dr.
Elison Antonio Paim, no segundo semestre de 2019. As atividades relatadas aqui são resultado
de um conjunto de atividades realizadas para construção da dissertação Educação para as
relações étnico-raciais no Centro de Ensino Fundamental Miguel Arcanjo – São Sebastião –
Distrito Federal: diálogos dentro e fora da escola realizada no Mestrado Profissional em
Ensino de História – Profhistória da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC.
A pesquisa versou sobre a construção de uma proposta de práticas pedagógicas no
Centro de Ensino Fundamental Miguel Arcanjo, que se situa em São Sebastião no Distrito
Federal, sobretudo na disciplina Parte Diversificada - PD e sua relação com a Educação para
as Relações Étnico-raciais, em consonância com a Lei 10.639/2003 e as Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-raciais para o Ensino de História
e Cultura Afro-brasileira e Africana. Esse estudo foi possível com a participação de
professores e professoras que atuam na referida disciplina, como sujeitos/as da pesquisa.
Esses/as professores/as contribuíram com a pesquisa, ao compartilharem experiências e

68
Graduada em Estudos Sociais pela União Pioneira de Integração Social. Mestre em Ensino de História pela
UFSC. Atua como professora na rede estadual da Secretaria de Educação do Distrito Federal.
69
Graduado em História pela UFSM. Mestre em História pela PUC-SP. Doutor em Educação pela UNICAMP.
PhD em Ensino de História da África pelo Instituto Superior de Ciências da Educação de Huíla (Angola). Atua
como professor da UFSC.
70
Estas são turmas compostas por estudantes com idade entre treze e quinze anos e o número de alunos/as por
turma não pode ultrapassar trinta, segundo a proposta do programa, que tem sido atendida pela escola. O
programa propõe o desenvolvimento de ações afirmativas e diferenciadas aos estudantes das turmas de correção
que se encontram em defasagem idade-ano, na perspectiva de garantir seus direitos de aprendizagem e sua
inclusão no fluxo educacional regular. Evidenciar esses direitos é uma prioridade desta Secretaria de Estado de
Educação do Distrito Federal, também estabelecida no Plano Distrital de Educação (PDE). (DISTRITO
FEDERAL, 2016).
71
Sherwin Morris é ativista cultural, um dos integrantes do Instituto Cultural Congo Nya, nascido na Guiana
Inglesa, morador de São Sebastião desde 2002.

218
memórias em torno de suas práticas docentes. As experiências e rememorações estão narradas
em forma de mônadas, de acordo com a perspectiva do filósofo berlinense, Walter Benjamin.
A partir do entendimento de como a disciplina PD funciona, há uma parte propositiva que é
interação com sujeitos/as atuantes na comunidade de São Sebastião, sujeitos/as outros/as que
contribuíram com saberes outros que permitem a efetivação de uma proposta decolonial de
currículo para PD em favor da possibilidade de se contar histórias outras, como nos provoca
os/as pensadores/as decoloniais.
Nas oficinas antirracismo, Sherwin compartilhou seus saberes em torno das relações
étnico-raciais, além dos seus conhecimentos sobre Áfricas. Demonstramos aos/as estudantes o
quanto eram importantes para este trabalho, que é uma oportunidade de transformação de
pensamento e comportamento, eles/as demonstraram, com raras exceções, interesse em fazer
essa troca de aprendizagens e experiências.
Nas próximas páginas, narramos como aconteceram as oficinas no CEF Miguel
Arcanjo, um percurso que fizemos entre setembro e dezembro de 2019. Com encontros
semanais, salvo algumas semanas que não pudemos realizar as oficinas em função da
organização do calendário pedagógico da escola.

Que comecem os trabalhos!

Como cantou Dona Ivone Lara, chegamos à escola, pisando naquele chão
devagarinho, em dois de setembro e estivemos com os sétimos anos I e H. A primeira turma
foi o sétimo I, com vinte estudantes presentes nesse dia. Os/as meninos/as ficaram bastante
acanhados/as com a presença de Sherwin, que se apresentou e falou sobre a atuação do
Instituto Congo Nya em São Sebastião. Ele dialogou com a turma, deixando-os/as à vontade
para perguntarem o que quisessem, inclusive sobre ele.
O clima foi ficando mais descontraído e surgiram algumas perguntas, entre elas, uma
sobre o tipo de música que ele gosta e ele respondeu, aproveitando para falar sobre sua origem
afro-americana e sobre a influência dos povos negros na musicalidade no Brasil e em outros
países da América. Teve um estudante, o Erick, que pediu para que ele cantasse uma música
do gênero musical que Sherwin disse gostar, o reggae, mas ainda não foi dessa vez. Ficou a
promessa. Outro estudante, o Samuel, perguntou se ele já sofreu racismo e Sherwin
respondeu, mais uma vez, fazendo dessa resposta uma oportunidade de ensinar algo sobre as
relações étnico-raciais. Nesse momento, falou que a primeira vez que viu alguém ser ofendido
por causa de sua cor, em nível violento, foi assim que chegou ao Brasil. Ele contou que nunca

219
havia ouvido um ser humano chamar o outro de macaco. O sinal para o término da aula tocou
e o garoto que pediu que ele cantasse saiu reclamando por não ter dado tempo.
Já com o sétimo H, Shervin não falou de sua origem, Guiana Inglesa, logo na
apresentação, mas falou de seu trabalho e porque que estava ali conosco. Destacou que já
passou por outras escolas de São Sebastião e que, geralmente, se fala em cultura negra, raça e
racismo quando chega novembro, por conta do Dia Nacional da Consciência Negra 72 e que ele
acredita ser importante falarmos desses assuntos durante o ano inteiro.
Quando abriu espaço para os/as estudantes participarem com perguntas, a primeira
foi sobre o país onde nasceu. Ele devolveu a pergunta, na tentativa de que o estudante que o
questionou, o Jonathan, e quem mais ficou encabulado/a com seu sotaque, dessem palpites
sobre qual seria seu país de origem. Eles/as riram, como quem constatassem que ele não é
brasileiro, mas não soubessem dizer de onde poderia ser. O próprio Jonathan soltou o palpite
de que o sotaque seria francês. Sherwin sorriu e contou um pouco de sua trajetória de vida e
sobre a Guiana Inglesa: localização e extensão geográfica, história de colonização e ocupação
populacional.
Quando Shervin perguntou quem se reconhecia como negro/a, a turma inteira
levantou a mão. Ele e eu demonstramos surpresa com a resposta coletiva. Já sentimos nessa
resposta, a reverberação dos momentos de conversa que tínhamos com essas turmas desde
junho de 2019, quando nos preparávamos para as oficinas. Essa situação nos mostra a
importância da representatividade e de iniciativas de positivação da identidade negra.
Lembramos, com esse episódio, do que aprendemos com a pedagoga brasileira
Nilma Lino Gomes (2012) sobre positivação da identidade negra e como esses/as
adolescentes precisam ter acesso a referências negras, sejam na música, na literatura e nas
diversas profissões e a partir delas, terem orgulho em se identificar como negros/as e
vergonha em reproduzir discursos e piadas racistas ou sequer rirem dessas piadas. Insistimos
no tópico piadas em virtude da recorrência das mesmas no espaço escolar.
Saímos desse encontro, refletindo e conversando sobre o alcance que teriam nossos
discursos e como é importante que existam momentos como o que tínhamos vivido.
Momentos em que os/as estudantes foram estimulados a pensar e a se expressar, ainda que
fossem dúvidas ou questionamentos sobre nossas propostas, a problematizar e ficar inquietos

72
Vinte de novembro é o Dia Nacional da Consciência Negra, instituído em dez de novembro de 2011 pela Lei
12.519, no governo de Dilma Rousseff. O texto da lei diz: “É instituído o Dia Nacional de Zumbi e da
Consciência Negra, a ser comemorada, anualmente, no dia 20 de novembro, data do falecimento do líder negro
Zumbi dos Palmares”. (BRASIL, 2011). Vale lembrar o 20 de novembro já deveria fazer parte do calendário
escolar como Dia Nacional da Consciência Negra desde a aprovação da Lei 10.639 em 2003.

220
nos mais diferentes níveis, tanto no pessoal, quanto no familiar e comunitário.

Deixa o menino jogar

Voltamos à escola em dezesseis de setembro, para encontrar com as mesmas duas


turmas, sétimos H e I. Por uma questão de logística espacial e de tempo, reunimos os/as
estudantes das duas turmas em uma mesma sala, para mostrar vídeos73 produzidos pelo
Sherwin e o Instituto Congo Nya. Eles/as assistiram aos vídeos, reconheceram lugares e
pessoas da cidade e comentavam entre eles/as.
Depois da exibição dos vídeos, Sherwin falou sobre a câmera filmadora que utilizaria
com eles/as nos encontros seguintes e deixou que cada um/uma pegasse e olhasse o
equipamento pelo tempo que desejasse, para irem se familiarizando. A câmera passou de mão
em mão e alguns/mas olhavam com mais curiosidade e faziam brincadeiras enquanto
outros/as mal a seguravam, por medo de deixar cair.
Depois que todos/as manusearam a câmera, Sherwin propôs que respondessem
perguntas que foram anotadas nos cadernos pelos/as estudantes durante as oficinas anteriores.
Essas perguntas foram inspiradas na unidade didática intitulada “Preconceito e discriminação
em sala de aula: conscientização e valorização da diversidade a partir do ensino de história”
elaborada pela professora Solanja do Nascimento sob orientação do professor Dr. Wander de
Lara Proença, Universidade Estadual de Londrina74. As perguntas dissertavam sobre a
convivência com pessoas diferentes. O estudante, Kalil, fazia as perguntas e as respostas eram
dadas, espontaneamente, por colegas da turma. Seguem as perguntas que direcionaram o
diálogo:

Quem são as pessoas que vocês buscam para conviver no dia a dia?
São aquelas que mais parecem com vocês?
Aquelas que pensam, agem e gostam das mesmas coisas?
É mais fácil conviver com os iguais? Por quê?
Qual o problema em conviver com os diferentes?
Vocês concordam que as diferenças afastam as pessoas?
Concordam que é legal ser diferente? Por quê?
(NASCIMENTO, 2016, p. 13).

Enquanto isso, havia um estudante filmando as respostas e as intervenções do

73
Os vídeos trabalhados nas oficinas estão disponíveis em: Menino de rua – Oficina de filmagem e edição de
vídeo https://www.youtube.com/watch?v=p1lepxfn-sa; e Projeto Mais Educação https://www.youtube.com/watc
h?v=tervtrd_htu
74
O trabalho de Solanja Nascimento é produto do Projeto de Intervenção Pedagógica como estratégia de ação a
ser utilizada pela professora PDE durante a Implementação do Projeto na Escola, como requisito ao Programa de
Desenvolvimento Educacional – PDE 2016/2017, do Estado do Paraná. Disponível em: http://www.
diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/cadernospde/pdebusca/producoes_pde/2016/2016_pdp_hist_uel_solanjadonas
cimento.pdf Acesso em: 19 de novembro de 2019.

221
Sherwin, as minhas e às falas dos/as estudantes também. O manuseio da câmera foi revezado
entre os/as estudantes Cauã e Maria Eduarda. Esse foi um importante exercício de
familiarização dos/as meninos/as com a câmera e com o Sherwin, afinal foi de suma
relevância que os/as estudantes ficassem mais à vontade para produzir o material que
pensamos para esse trabalho75. O vídeo foi usado como material de apoio em futuras oficinas.

“Não me chame de neguim!”

No dia vinte e três de setembro, fui mais cedo para escola, meia hora antes do horário
de entrada para organizar a sala de maneira que favorecesse a troca de experiências entre os/as
estudantes e nós que levamos as propostas de diálogo. O espaço físico das salas de aula do
CEF Miguel Arcanjo não permite que coloquemos as mesas e cadeiras em círculo, mas como
essas turmas PAAE são menores, consegui montar um semicírculo que coubessem todos os
estudantes. Penso que, a partir de agora, sempre organizarei a sala dessa maneira, afinal
sentimos que os efeitos esperados por nós foram alcançados, pudemos olhar uns/umas nos
olhos dos/as outros/as, tendo um ambiente que favoreceu as relações dialógicas e trocas
significativas.
Vale registrar que nessa data em questão, o DF estava passando por um período de
mais de cem dias sem chuva, como de costume para essa época do ano e nós educadores/as e
estudantes sentíamos muito cansaço nessa ocasião. Nós adultos/as temos dificuldades em lidar
com as tarefas diárias e penso que para adolescentes seja ainda mais difícil, desta feita são
mais frequentes os pedidos para saírem da sala para beber água, apesar de terem o hábito de
andar com seus copos e garrafinhas de uso pessoal, alguns/as estudantes demonstram total
desânimo em estar em sala, por muitas vezes ficam cabisbaixos/as e reclamam de dor de
cabeça e mal estar, chegando ao extremo de terem de sair de sala com o nariz sangrando em
função da baixíssima umidade relativa do ar.
Nesse dia, refleti bastante sobre como nós professores reclamamos do desinteresse
dos/as alunos/as, mas não consideramos as condições em que estamos trabalhando e que
eles/as estão diretamente envolvidos nessas condições, sejam elas climáticas, de estrutura
física e geográfica, social e até política e econômica. No calor e seca absurdos, muitos
percorrem grandes distâncias, muitas vezes andando, até chegar à escola, às 13h da tarde,
auge do calor diário. Para esse momento do trabalho, ouvimos a música de Gabriel O

75
Sherwin editou um vídeo com duração de vinte minutos com cenas das oficinas. A ideia inicial era de fazer o
trabalho de edição com a participação dos/as estudantes, mas por uma questão de logística e tempo, a
participação deles/as se limitou às filmagens.

222
Pensador Racismo é burrice, nesse momento foi entregue para cada um/uma cópia impressa
com a letra da música.
Depois de escutarmos a música, pedimos a eles que destacassem o verso ou versos
que mais lhes chamou a atenção. Enquanto eles/as se manifestavam, a estudante Maria
Eduarda filmava as participações. Deixamos que eles/as falassem, sem uma ordem
estabelecida, por exemplo, pela disposição em que estavam sentados/as. Propusemos que
falassem, quem tivesse interesse e vontade de participar.
Kalil foi o primeiro a se manifestar e disse que a frase que chamou sua atenção
foi a que diz que “Branco no Brasil é difícil, porque no Brasil somos todos mestiços.”
Marcos, que estava sentado ao lado de Kalil, logo se pronunciou também e deu destaque
para os versos “Não seja um ignorante, não se importe com a origem ou a cor do seu
semelhante”.
Destaco que Marcos é o aluno que sempre era chamado por vários colegas da turma
de “neguim” e já demonstrou não gostar de ser chamado assim. Usei o pronome no masculino
intencionalmente, pois nunca presenciei uma menina o chamando dessa maneira. Nos
encontros anteriores a esse, desde que tenho ido à escola para fins desta pesquisa, o Marcos
estava ausente e essa foi a primeira vez que ele participou de um momento de reflexão sobre
relações étnico-raciais. Mesmo na sua ausência os colegas reconheceram que o
comportamento deles estava em desacordo com o que vínhamos falando a respeito das
diferenças em nosso convívio diário, seja em sala de aula ou fora dela.
A estudante Jucileia, que em momento anterior nos contou que se incomoda com o
fato das irmãs a chamarem de macaca, por ela ser a única negra entre elas, disse que revidava
com outras ofensas e nos disse, ainda, que achava normal essas “implicâncias” entre irmãs. A
estudante trouxe como parte da música que chamou sua atenção o verso que diz: “E de pai pra
filho o racismo passa, em forma de piadas que teriam bem mais graça se não fossem o retrato
da nossa ignorância, transmitindo a discriminação desde a infância, e o que as crianças
aprendem brincando.” A escolha de Jucileia me remeteu logo às marcas de racismo nas
relações que se dão no seio de sua família notadamente inter-racial que ela havia relatado dias
antes de ouvirmos esta canção.
Jonathan é um dos estudantes mais participativos e costuma expor suas opiniões com
mais desenvoltura. Dessa vez, ele escolheu os versos que mais lhe chamou atenção e quis
explicar o porquê da escolha, ele também gostou do verso que diz que “branco no Brasil é
difícil...”, falou sobre as múltiplas possibilidades culturais que percebe na comunidade de São
Sebastião e na escola, além de dizer acreditar que seja assim também em outros lugares do país.

223
Sherwin e eu também fizemos intervenções, principalmente quando deixamos a
turma livre para manifestações e o silêncio era a resposta. Sherwin destacou como versos que
chamaram sua atenção os que dizem: “Essa gente do Brasil é muito burra e não enxerga um
palmo à sua frente.” O educador provocou os/as estudantes a pensarem sobre o fato de um
brasileiro estar afirmando isso e fez conexão com as experiências de racismo que sofreu
depois de chegar no Brasil.

“Que tranças lindas!”

No dia 30 de setembro o encontro com o sétimo I começou sem a presença de


Sherwin, que precisou chegar um pouco depois. Os textos motivadores para esse encontro
foram um texto de Djamila Ribeiro filósofa, feminista negra e escritora brasileira, já
mencionado aqui, postado em vinte e cinco de julho desse ano, em sua página do Instagran,
sobre a zagueira da seleção francesa na ocasião da Copa do Mundo de Futebol Feminino,
Wendie Renard e as ofensas sofridas pela jogadora em redes sociais por “humoristas”
brasileiros sob o pretexto de que seu cabelo mereceria destaque nas redes sociais em forma de
piadas. Segue o texto, que foi lido coletivamente:

Quantas de nós já fomos Wendie Renard?76

A zagueira da França Wendie Renard foi vítima de piadas racistas por conta dos
seus cabelos. Ela tem 28 anos, já venceu 11 campeonatos franceses, 4 Champions
League, recebe o terceiro maior salário do futebol feminino, mas foi reduzida "à
preta do cabelo duro e feio". Uma atleta excelente, mas que vira piada. Por isso
tenho zero tolerância com "humoristas" que fazem isso. Só a gente sabe como é ser
alvo desse tipo de comentário. Quantas mulheres negras se violentam para atender a
imposição de padrão estético? Quantas feridas causadas no couro cabeludo e na
autoestima? Quantas violências no cotidiano escolar? Desde "não vou dançar com a
neguinha do cabelo duro" a "por que você não alisa seu cabelo?" Só a gente sabe. Só
as mulheres dos cabelos crespos, que não fazem cachos, sabem. Só as dos "cabelos
sem definição", sabem. Por que Wendie deve atender a um padrão, mesmo aquele
estabelecido dentro da comunidade, como se não fôssemos diversas? Por que você
se incomoda com o modo pelo qual a jogadora se apresenta? O que isso interfere na
sua vida? "Ah mas eu acho feio". Problema seu e de seus gostos condicionados.
Até quando vamos reduzir mulheres, sobretudo negras, às suas aparências? Sugiro
leitura de "Racismo Recreativo", de @ajmoreirabh [Adilson José Moreira].
Wendie Renard tem nome e sobrenome, parafraseando Lélia Gonzalez, para que o
racista não coloque o nome que quiser. (RIBEIRO, 2019).

Nesse dia também foi compartilhado o videoclipe da canção Todo dia dos artistas
Rashid e Dada Yute, a letra desse rap trata do cotidiano do povo preto na sociedade brasileira
e o genocídio da juventude negra, trazendo exemplos de fatos recentes de mortes violentas de
76
Disponível em: https://www.instagram.com/p/BzGHFJMgoKO/?igshid=1umiy99b8sgqb Acesso em: 10 de
agosto de 2019.

224
jovens negros, como foi o caso do assassinato de Pedro Henrique, de vinte e cinco anos, pelo
segurança do hipermercado Extra, no Rio de Janeiro em fevereiro de 2019, além de referência
ao movimento Mães de Maio77.
Antes da leitura do texto, apresentei a autora Djamila Ribeiro, mostrei fotos dela no
perfil da mesma rede social na qual o texto foi publicado e percebi alguns comentários
elogiosos, entre as meninas, à beleza da filósofa brasileira e admiração delas por suas tranças.
Perguntei se eles/as se lembravam da referida Copa do Mundo de Futebol Feminino,
dos jogos do Brasil, como as jogadoras do Brasil se saíram na competição e quem foi a
seleção campeã, toda essa conversa na tentativa de fazer com que houvesse um clima de
interação e o texto fizesse sentido no contexto daquele momento do jogo da França e das
repercussões em torno da estética da jogadora Wendie Renard.
Ficaram atentos/as à leitura e dessa vez não provoquei tanto a participação deles/as,
pois senti que eles/as estavam preocupados/as com a apresentação de trabalhos avaliativos
para o fechamento do bimestre. Me pediram, inclusive, que pudessem fazer os últimos
acertos em seus cartazes que seriam apresentados nos últimos horários e não fiz objeção a
isso, até porque tenho dito que esses momentos em que estamos partilhando experiências
por quarenta e cinco minutos a cada semana é uma oportunidade de ajudarmo-nos uns aos
outros.
Logo em seguida à leitura do texto e algumas reflexões sobre a imposição de padrões
estéticos, principalmente voltados às mulheres e, sobretudo, às mulheres negras, assistimos ao
clipe da canção de Rashid e Dada Yute que traz uma abordagem mais voltada ao universo dos
homens negros periféricos.
Logo depois Sherwin chegou, se inteirou sobre o que estávamos debatendo, fez
interferências sobre seus próprios cabelos, trançados em dreadlocks, afirmando haver
possibilidades outras de estética que neguem o atendimento a um padrão estético
embranquecedor. Na sequência quis compartilhar conosco um vídeo curto de uma reportagem da
TV Brasil sobre uma pesquisa acerca das contribuições de homens e mulheres negros/as para a
humanidade78. Os poucos exemplos da peça televisiva já despertou curiosidade nos meninos/as,

77
Maio de 2006 foi marcado por um das sequências mais aterrorizantes no processo de segregação social
brasileiro. No dia 13 daquele mês, integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) iniciaram uma série de
ataques a unidades e viaturas da Polícia Militar de São Paulo como resposta à transferência de algumas das
lideranças da facção para presídios fora da capital. Nos dias seguintes, de um lado via-se uma população
assustada, sem transporte público e com medo de sair às ruas. O revide da polícia, à sombra das autoridades
instituídas, foi uma carnificina. Ao final, 505 pessoas, todas moradores de bairros periféricos, estavam mortas.
(Entrevista de Débora Maria da Silva, criadora do movimento Mães de maio, ao jornalista Isaías Dalle, da
Fundação Perseu Abramo, publicada na Revista Reconexão Periferias em abril de 2019).
78
Inteligência Negra: Suas invenções (celular), descobertas e contribuições à cultura, ao mundo! Vídeo que traz

225
quando perceberam que elementos do cotidiano deles foram invenções de pessoas negras.

O sinal não comunicou o fim da “aula”

Sete de outubro foi dia de “aula” dentro da oficina79, aula sobre Áfricas e o professor
foi o Sherwin, que nos trouxe uma apresentação sobre a África e nos ensinou muito sobre esse
continente, desde a quantidade de países, a localização geográfica, os interesses dos
colonizadores, a pluralidade étnica e cultural, as construções antigas e cenas atuais de cidades
como Nairóbi, Cidade do Cabo e Adis Abeba.

Nesse dia eu optei por ficar mais em silêncio, apenas observando e registrando
algumas imagens do Sherwin e dos/as estudantes. Antes de mostrar a tela com o mapa do
continente, Sherwin perguntou se nós sabíamos quantos países tem na África e os/as
meninos/as começaram a responder com números aleatórios e ele dando dicas se estavam
chegando perto do número correto. Foi um momento de descontração tanto para ele quanto
para os/as meninos/as.

O sinal para o término da aula tocou e ninguém se levantou, mesmo com o professor
falando, como é costume deles/as (geralmente eles/as não querem saber do que o professor
está falando, o toque do sinal é como se fosse uma ordem para se levantarem e saírem da sala
para a próxima aula, de outra disciplina). Dessa vez esperaram o Sherwin concluir sua fala e
liberá-los/as para saírem.

Quem foi Zumbi? Onde fica Palmares?

Retornamos à escola no dia 21, com a ideia de gravarmos uma encenação onde os/as
meninos/as representariam Zumbi dos Palmares. Antes de apresentarmos para a turma o texto
proposto, retirado do site A cor da Cultura80, buscamos contextualizar a vida desse
personagem histórico e sondar o que os/as estudantes já sabiam sobre ele.

uma matéria da TV Brasil a qual apresenta algumas invenções de pessoas negras, entre elas, o celular, o carrinho
de bebê, o semáfaro, o interruptor de lâmpadas, entre outras invenções que estão no livro Gênios da
Humanidade: ciência, tecnologia, inovação africana e afrodescendente de Alexandra Baldeh Loras e Carlos
Eduardo Dias Machado, também mostrado na mesma matéria. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=QBpLXRv1LiQ> Acesso em 28 de set. 2019.
79
Repare que não chamo os encontros semanais de aulas, mas de oficinas. Concordo com o educador português
erradicado no Brasil, José Pacheco quando afirma que “dar aulas em pleno século XXI é um escândalo”.
80
Texto retirado do site A cor da cultura. Disponível em:
<http://antigo.acordacultura.org.br/herois/episodio/zumbidospalmares>. Acesso em: 10 de out. de 2019.

226
Sherwin e eu falamos sobre Zumbi e Sherwin nos trouxe a narrativa de sua ida ao
Quilombo dos Palmares, descrevendo o espaço físico e contando com entusiasmo sua
experiência na Serra da Barriga, em Alagoas. Nesse momento fiz a gravação de sua fala que
segue transcrita:

Visitei Alagoas há dois anos e foi muito interessante. Chegando no local... primeiro,
o local é alto, muito alto, onde tá o acampamento, certo? Onde fica Palmares
mesmo. É uma caminhada bem interessante. Eu fiquei imaginando no tempo de
chuva. Eles mesmos falaram que no tempo de chuva tem gente que cai! Tem que
colocar uma corda descendo pra galera segurar pra subir, porque tem lugares que é
bem íngreme e embaixo tem uma entrada com uma placa de bem-vindos e uma
praça e lá embaixo tem uma cidade com pessoas morando, tem lojas, bares e faz
parte desta mesma área que é do quilombo. Mas os acontecimentos das batalhas
foram lá em cima, onde todo mundo sobe pra ver onde as coisas ainda são
preservadas. E o interessante é que lá notei a presença indígena e de pessoas não-
indígenas e não-negras, mas que também fez ativismo no processo de busca por
liberdade e estavam lá. É muito interessante lá em cima! É grande, o espaço. Tem
pessoas que ficam como cuidadoras e tem pequenos museus, cabanas feitas de palha,
com histórias contadas nas paredes. É onde se pode ver estátua simbolizando Ganga
Zumba e Zumbi pequeno ao lado dele. Porque a gente só ouve falar de Zumbi,
Zumbi, Zumbi... aí você pensa que Palmares é Zumbi, mas não, tem muita gente que
veio antes dele, porque este negócio começou muito tempo antes, quando ele fugiu
pra lá, Palmares já existia. Então, é muito interessante esta história das pessoas que
estavam lá antes nas batalhas. É muito importante que a gente também fale desta
história, porque a história do povo negro no Brasil não pode ficar no nome de uma
só pessoa, é impossível. Então, voltando à experiência da Serra da Barriga, eu estive
no final do ano, pra fazer uma palestra na Universidade de Alagoas e falei pras
pessoa na universidade que a única coisa que queria fazer antes de ir embora era
visitar o Quilombo dos Palmares e foi uma longa viagem! É uma caminhada danada,
nós fomos e eu gostaria até de voltar lá em Vinte de Novembro. Dizem que é um
espetáculo nesta data, que é quando a galera sobe mesmo, os terreiros, todo mundo
de branco, de vestidos, capoeira em peso, coisa pra arrepiar a gente. Me senti muito
fortificado ao ir àquele lugar! E estes locais, eu creio que acontece com a gente se
[estamos] ligados na situação ou se a gente esta um pouquinho mais interiorizado
com a gente mesmo, você sente coisas no local. Quando eu falo sente, você sente
mesmo, coisas no local! E você percebe algo e não foi a primeira vez que senti.
Aconteceu a mesma coisa quando estive no Maranhão, em um local chamado
Reviver, uma espécie de Pelourinho. Lá eu deitei na praça e apaguei e tive
experiências que não foram só de sonhos! Neste lugar a sensação foi diferente de
Palmares, foi pesado. No quilombo senti alívio, a sensação de orgulho, e senti uma
coisa que fala pra você que vale a pena lutar. Perceber a inteligência de escolha do
lugar, pensando nas batalhas, pensando em resistir. Tudo isso foi genial. Eram
verdadeiros gênios! Fiquei surpreso com a quantidade de brancos que moram lá
embaixo. Fiquei me perguntando onde estão os descendentes do povo que lutou
aqui. Encontrei muitos bares, muitas pessoas bebendo, mas não percebi a história do
povo negro ali embaixo, só lá em cima. (Sherwin Morris, 2019).

Despois de Sherwin narrar sua experiência rememorada, entregamos o texto


impresso a cada um/uma dos/as estudantes, para que levassem consigo, lessem e pudessem
estar familiarizados/as com o material no próximo encontro, que seria na segunda-feira
seguinte. A ideia era que cada estudante tivesse uma fala do referido texto e Zumbi dos
Palmares fosse representado por diferentes pessoas que fossem voluntárias a falarem o trecho
escolhido por eles/as. Segue o texto, com adaptações em relação ao original que foi entregue

227
aos/às estudantes:

Encenação – ZUMBI DOS PALMARES


Fonte: A cor da cultura com adaptações.

CENA 1
Zumbi paira por sobre uma foto da Serra da Barriga, em Alagoas, num céu
carregado de chuvas e trovoadas.
Zumbi:
Eu vivi no tempo da escravidão, mas conheci a liberdade no quilombo. Eu vi o caos
da cidade grande e o poder de organização do meu povo.
CENA 2
Zumbi:
Nosso quilombo começou pequeno. Eram uns poucos negros em busca de liberdade
na época da fundação. Disso eu sei sem ter visto. Me contaram. Quando eu nasci,
nosso mocambo era apenas um dos muitos que formavam Palmares. Chegamos a ser
30 mil. A maioria era negra, mas tinha também mestiços e índios. Nossa força de
trabalho e poder de organização permitiram até que Palmares estabelecesse
comércio com as cidades próximas.
Zumbi:
Ainda criança, fui arrancado daqui e levado para ser criado por um padre branco.
Recebi, no batismo, o nome de Francisco. Aprendi como um colonizador pensa...
Zumbi:
... E assim que eu aprendi, fugi e voltei para Palmares.
Zumbi:
Fui acolhido pela família de Ganga Zumba, o rei. Os colonizadores e exploradores
sempre tentavam invadir nosso território. Em 120 anos, foram 66 combates.
Zumbi:
Graças às nossas habilidades, resistimos por muito tempo. Nossos inimigos
propuseram um acordo, com o qual eu não concordei. Mas Ganga Zumba, que era
rei, achou que eles iam cumprir o prometido. Não cumpriram e Ganga deixou
Palmares. Eu virei rei e a luta continuou.
Zumbi:
Usaram faca e arma de fogo para me matar. Fui decapitado em 20 de novembro de
1695. Palmares resistiu por mais de 30 anos antes de sucumbir. Me chamaram de
Francisco, mas eu sou mesmo é Zumbi. Zumbi dos Palmares. Sou um cidadão negro
brasileiro.
CENA 3
Narrador:
Ninguém sabe qual era o rosto de Zumbi, mas todos sabem que sua capacidade de
resistência atravessou os séculos.
“É chegada a hora de tirar nossa nação das trevas da injustiça racial”, disse Zumbi.
E eu digo: sou...nome do narrador. Sou um cidadão negro brasileiro.

Eles/as representam Zumbi

No dia vinte e nove de outubro, estivemos com o sétimo ano I e logo na chegada
pedimos para que os/as estudantes pegassem os textos que foram entregues na semana
anterior. Havia dezessete alunos/as presentes e uns dez estavam sem o texto impresso, mas
logo imprimi a quantidade que faltava e todos/as puderam acompanhar a leitura para depois
escolherem uma fala.
228
Antes de começarmos a leitura, colocamos uma música para tocar com a finalidade
de entramos no clima para as escolhas das falas. Notei que eles/as demonstram gostar das
músicas que temos levado até o momento e dessa vez escolhemos uma banda de Brasília,
Natiruts, que gravou uma música com o título Palmares, em 2017.
Logo depois de ouvirmos a música, propusemos a leitura coletiva e dissemos a
eles/as que podiam escolher uma fala para representarem Zumbi. De início poucos/as se
animaram. Apenas três deram resposta imediata e manifestaram interesse em uma fala
específica que logo foi sinalizada no texto de cada um/a para identificarmos em todos os
textos e facilitar os ensaios.
Beatriz, Franciele e Jonathan foram logo escolhendo suas falas e Sherwin e eu
incentivando a participação dos/as demais. Dentro de uns vinte minutos, meia hora tínhamos
mais nove participantes, além dos/as três citados/as: Vitor, Rebeca, Alisson, Luan, Flamisson,
Jeferson, Ricardo, Guilherme e Flávio, este pegou para si a incumbência de filmar, inclusive
os ensaios.

O que faremos no dia 20 de novembro, professora?

Voltamos à escola no dia onze de novembro e, com o intervalo de tempo sem


encontros, em função dos jogos interclasses, os/as alunos/as não estavam com o mesmo
interesse em encenar o texto que começamos a ler coletivamente, semanas antes. Tentamos
convencê-los/as, mas não insistimos muito, pois não vimos sentido em fazermos uma
atividade em que o interesse seja só de quem a propõe.
Por outro lado, havia uma sutil cobrança por parte deles/as de que fizéssemos algo
para celebrarmos o Dia Nacional da Consciência Negra, mesmo que essa ação não estivesse
em nossos planos, pois nosso discurso era justamente o de não trabalharmos pontualmente em
prol da data, mesmo reconhecendo a importância e significado da mesma. Diante da
manifestação do desejo dos/as estudantes pela celebração e do desinteresse deles/as pelo texto
a ser interpretado e filmado, achamos por bem entrarmos em sintonia. Chegamos ao consenso
de cantarmos alguma das músicas que passamos durante o semestre e escolhemos Palmares, a
última que escutamos em sala.
Os/as meninos/as gostaram da ideia e começamos os ensaios. Ensaiamos e produzimos
cartazes com dizeres de músicas e frases com conteúdos da luta antirracista e autoafirmação
de pertencimento à identidade negra. A estudante Jucileia nos surpreendeu com seu talento
nas artes visuais, nem mesmo o professor de artes dessas turmas sabia desse talento e se

229
admirou ao ver os cartazes produzidos por ela.
O interessante de trabalhar com essa produção mais manual, conversando com os/as
estudantes, foi poder perceber como aconteceram algumas apropriações de saberes. Uma
estudante, a Vitória, me interpelou: “professora, sabe o que eu estava pensando? Por que
fazemos esses trabalhos sobre consciência negra só uma vez por ano e não o ano inteiro?”
Para mim, essa indagação da Vitória foi a mais genuína demonstração de como educar para as
relações étnico-raciais é importante para a formação desses/as jovens.
Também refletimos como esses momentos mais leves, fora de sala de aula, com
conversas descontraídas, são oportunidades de apropriações e trocas de saberes e mesmo de
avaliações, me lembrei muito de como o notável educador brasileiro, Paulo Freire, nos
orientou no sentido de uma educação libertadora, que tem como referência a realidade dos/as
educandos/as e a relação dos educadores/as com os temas contextualizados na realidade das
comunidades em que ensinam e aprendem e não apenas se transferem saberes. Nos remeteu
ao diálogo com o pensamento de Freire, pois para ele:

É por esta ética inseparável da prática educativa, não importa se trabalhamos com
crianças, jovens ou com adultos, que devemos lutar. E a melhor maneira de por ela
lutar é vivê-la em nossa prática, é testemunhá-la, vivaz, aos educandos em nossas
relações com eles. Na maneira como lidamos com os conteúdos que ensinamos, no
modo como citamos autores de cuja obra discordamos ou com cuja obra
concordamos. (FREIRE, 1996, p. 10).

O anseio por uma sociedade com menos preconceitos e estereótipos culturais e


liberta do velho mito da democracia racial81 poderá ser constituído com a Educação para as
Relações Étnico-raciais, a partir de uma história contada por outros/as locutores/as. Não mais
pelos livros didáticos que colaboram com a permanência de estereótipos que apesar de
ultrapassados, se fazem ainda presentes e passam despercebidos pelos/as mais “distraídos/as”;
não mais por trabalhos “artísticos” orientados por professores e professoras desatentos/as à
representatividade negra, que no Dia da Consciência Negra, expõem esse sujeito, o negro,
acorrentado e em situações de exploração do seu corpo, como Debret 82 o representou no
Século XIX.

81
Conceito proferido no Século XX, pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, o qual dizia haver no Brasil uma
miscigenação harmoniosa entre as três raças que supostamente compunham a formação da sociedade brasileira:
negra, indígena e branca e para o sociólogo, entre estas raças não havia discriminação.
82
Jean-Baptiste Debret (Paris, França 1768 - idem 1848). Pintor, desenhista, gravador, professor, decorador,
cenógrafo. Frequentou a Academia de Belas Artes, em Paris, entre 1785 e 1789. Após a queda do imperador e
com a morte de seu único filho, Debret decidiu integrar a Missão Artística Francesa, que veio ao Brasil em 1816.
Instala-se no Rio de Janeiro e, a partir de 1817. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/
pessoa18749/jean-baptiste-debret Acesso em: 20 de abr. 2020.

230
Celebramos com música e chuva!

No dia Vinte de Novembro cheguei à escola faltando uns quarenta minutos para o
último horário e fui interpelada pelo professor Pedro – professor de história dos nonos anos –
me dizendo que queria levar os/as alunos/as dele para verem a apresentação. Eu disse que
podia. Quando outro professor, o Daniel, de educação física, viu o movimento no pátio,
também chegou para ver. Os/as meninos/as do sétimo ano logo reclamaram da plateia e eu
disse a eles para ficarem tranquilos/as, que aquelas pessoas estavam ali para prestigiar a
apresentação e logo eles/as desconsideraram a vergonha que sentiram no início e cantaram
animados/as o reggae.
Virou uma festa! Enquanto eu preparava os/as estudantes para cantarem, o
coordenador, Adalex, trouxe uma caixa de som maior do que a que usamos nos encontros em
sala de aula e um microfone. Eu não esperava por isso e fez toda a diferença. Antes e depois
da apresentação da música, Adalex ficou cantando raps também dos Racionais MCs, os/as
meninos/as ficaram muito animados/as em ver o coordenador se divertindo daquele jeito e
enquanto ele cantava, eles/as acompanhavam dançando e, quem sabia, cantava junto.
Vários/as deles/as pegaram seus celulares e filmavam aquela cena.
Lembro que nessa tarde, ao sair de casa, vi o céu da cidade como eu nunca vi antes
ou nunca me atentei para aquele tom, um preto azulado de nuvens densas. E bem na hora
deles/as cantarem caiu uma chuva daquelas, que só quem é do cerrado sabe o valor que tem,
se alegra e até comemora. A festa estava completa. Foi de alegrar o coração ver aqueles/as
que são os/as estudantes mais desacreditados/as da escola, os que recebem mais comentários
maldosos na sala dos/as professores/as, sendo admirados/as e se admirando. Saí da escola
com a sensação de que é possível praticar uma educação transformadora, antirracista,
engajada e afetiva.

231
Referências

DISTRITO FEDERAL, Programa para avanço das aprendizagens escolares – PAAE para
estudantes do Ensino Fundamental da Rede Pública de Ensino do Distrito federal em
defasagem idade – ano, 2016.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 1996.
GABRIEL O PENSADOR. Gabriel O Pensador - Racismo é Burrice, 2016. (4m 52s).
Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=c4lbIDBWr3g.> Acesso em: 02 jul. 2020.
GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currículos.
Currículo sem Fronteiras, v.12, n.1, pp. 98-109, jan.- abr., 2012.
NATIRUTS, Natiruts – Palmares, 2017 (5m 12s). Disponível em: <https://www.youtube
.com/watch?v=ZcXTJhliAgY.: Acesso em: 02 jul. 2020.
RASHID OFICIAL. Rashid - Dada Yute - Todo Dia, 2019. (5m 07s). Disponível em: https://
www.youtube.com/watch?v=UmMJWsuQayA. Acesso em: 02 jul. 2020.

232
O PROJETO BATUQUE, INTERDISCIPLINARIDADE E ENSINO ANTIRRACISTA
NO COLÉGIO ESTADUAL DE CRISTALÂNDIA – TO

Elyneide Campos de Souza Ribeiro83;


Martha Victor Vieira84

Introdução

O currículo de História assim como todo o currículo escolar oficial não pode ser
entendido apenas como uma lista de conteúdos a serem ensinados e aprendidos em séries ou
ciclos específicos. O currículo traz em si uma intencionalidade educacional que procura
definir o ser humano desejável para um determinado tipo de sociedade. O currículo escolar
oficial do Brasil contemporâneo está voltado para uma concepção do mundo ocidental e
firmado num ideal de identidade nacional que foi proposto a partir do século XIX e que
marginaliza alguns grupos étnicos que fazem parte da sociedade brasileira. Com base nessa
consideração, essa dissertação de mestrado busca analisar o impacto da aprovação da Lei 10.
639/2003 e seus desdobramentos nos diversos espaços de aprendizagem, especialmente o
espaço escolar. Analisa ainda as ações do Projeto Batuque que é desenvolvido no Colégio
Estadual de Cristalândia – TO, considerando as contribuições que essas ações valorativas
trazem para as relações étnicas raciais no ambiente escolar e na comunidade em geral.
Visando atender as disposições da Lei 10.639/2003, que torna obrigatória o ensino
sobre História e Cultura afro-brasileira, no Colégio Estadual de Cristalândia-TO, foi criado
em 2006, o Projeto Batuque, de autoria da professora de História Elizabeth Aires Leite. Esse
Projeto tem contribuído para a construção de uma identidade negra positiva através de
estratégias de ensino interdisciplinares que levam os alunos a refletirem sobre atitudes que
possam produzir ou reproduzir o preconceito racial.
A palavra batuque que titula o projeto de aprendizagem – Projeto Batuque – em
linhas gerais, refere-se as expressões culturais de danças e percussões acompanhados de
cantorias e o termo teria derivação do termo africano “bater”, talvez “batchuque” ou
“baçuque”, com possibilidade de ser originário do Congo ou Angola. (SALLES, 2003, apud
COELHO & DINIZ, 2017, p. 140)
O Projeto Batuque, ao que tudo indica, nasceu, antes de qualquer coisa, de uma
83
Graduada em História pela UFT. Mestre em Ensino de História pelo PPGEHIST/UFT.
84
Graduada e Mestre em História pela UNESP/Franca. Doutora em História Social pela UFRJ. Atua como
professora no curso de História da UFT/UFNT.

233
inquietação pessoal, a partir de observações de comportamentos e relações com um forte
caráter racista, preconceituoso e discriminatório, não somente entre os alunos, mas nas várias
relações interpessoais existentes no ambiente escolar.
O surgimento da Lei 10.639/2003 apenas serviu como suporte legal para buscar
alternativas de práticas pedagógicas que pudessem discutir a condição do negro no Brasil, a
partir de uma perspectiva crítica que procura “incorporar ao currículo, estratégias de
desconstrução das narrativas e das identidades nacionais, étnicas e raciais que têm sido
desenvolvidas nos campos teóricos do pós-estruturalismo, dos Estudos Culturais e dos
Estudos Pós-coloniais” (SILVA, 2014, p.102).
A escolha da turma com a qual seria desenvolvido o projeto ocorreu em função do
conteúdo que integrava o currículo para a série em questão, conforme afirma uma das
professoras entrevistadas, que diz:

O conteúdo da disciplina de História “casa” com a temática do projeto. Aí eles não


vão ter perda de conteúdo, porque o conteúdo “casa” com a temática do projeto e
vão ver os conteúdos de forma diferenciada, muito mais agradável, muito mais
atrativa. (Professora de História, informação verbal) 85

Como se pode observar, esse é um dos maiores desafios para a implementação da


referida Lei: incluir no currículo a temática da História da África com garantias de que os
alunos não tenham “prejuízo” de conteúdos para prosseguir com seus estudos.
O que o Projeto propõe é fazer uma releitura ou uma revisão da História dos povos
africanos e afro-brasileiros, a partir do incentivo pela realização de pesquisas bibliográficas
que contestam as abordagens pejorativas sobre os africanos e afro-brasileiros, especialmente,
aquelas apresentadas pelo livro didático. Dessa forma, o objetivo é não restringir o ensino
dessa temática usando apenas o material didático disponível na Unidade Escolar. Como
afirma a professora Elizabeth Aires Leite, na justificava do Projeto Batuque:

A pouca importância dada ao tema: História e Cultura Afro-Brasileira e Africana


pela escola pública, o desconhecimento por parte dos alunos e alunas da real história
dos africanos e afro-descendentes no Brasil, a preocupação com a abordagem
pejorativa que muitos livros didáticos ainda fazem sobre o(a) negro(a) desde o
período colonial, bem como a insistente presença do preconceito e da discriminação
racial na escola e na comunidade, são fatores que justificam o presente projeto.
(LEITE, 2004, p.4).

Nas primeiras aulas que tratam da temática em questão há uma preocupação com
alguns termos ou conceitos que merecem melhores esclarecimentos tais como: preconceito

85
Informação fornecida pela professora de História durante entrevista como parte da pesquisa: O Currículo de
História e a Lei 10.639/2003: as ações afirmativas do “Projeto Batuque” do Colégio Estadual de Cristalândia -
TO.

234
racial, discriminação racial, raça, racismo, negro e negritude, porque é muito comum existir
uma confusão entre eles, sobretudo, entre, racismo, preconceito e discriminação racial.
Tendo o cuidado de abordar um espaço temporal mais amplo sobre a História e
Cultura da África dos Afro-Brasileiros, ajustado às demais atividades desenvolvidas no
Projeto Batuque, alguns recortes foram realizados, tais como: África, o berço da humanidade:
da pré-história ao século XXI; Tráfico de escravos africanos para o Brasil – Escravidão lá e
aqui; Campanha Abolicionista e as Leis; A situação da população negra hoje no Brasil; A
influência cultural africana no Brasil e a história do Movimento Negro brasileiro. Esses
recortes geram os temas que os alunos, em grupo, pesquisarão e socializarão em forma de
painel e outros recursos que julgarem necessário.
Os professores também utilizam filmes e documentários relacionados à temática. Os
conteúdos desses filmes servem de base para discutir racismo, preconceito racial, escravidão,
conflitos étnicos, migração forçada, cobaias humanas, trabalhos humanitários entre outros. Na
tabela abaixo, elencamos alguns filmes que são usados no projeto.
Para realizar a análise dos filmes e desenvolver outras atividades no projeto, a
professora da disciplina de Artes foi incluída no Projeto, sendo a mesma responsável por
algumas ações desenvolvidas, como pesquisas sobre as máscaras africanas. O envolvimento
da disciplina de Artes atende os Parâmetros Curriculares Nacionais, Ensino Médio, que
apresenta uma nova reorganização curricular em áreas de conhecimento, com o objetivo de
facilitar o desenvolvimento dos conteúdos, numa perspectiva de interdisciplinaridade e
contextualização. A interdisciplinaridade na perspectiva escolar, de acordo com os PCNs
(1999) tem a intenção de: “utilizar os conhecimentos de várias disciplinas para resolver um
problema concreto ou compreender um determinado fenômeno sob diferentes pontos de
vista.” (BRASIL, 1999, p. 36).
Os Parâmetros afirmam ainda que a interdisciplinaridade e a contextualização são
recursos complementares para ampliar as inúmeras possibilidades de interação entre
disciplinas e entre áreas nas quais disciplinas venham a ser agrupadas. Segundo esse
documento, os alunos, além de saber produzir e apreciar trabalhos de linguagens artísticas,
devem aprender a

[...] a valorizar a produção artística dos múltiplos grupos sociais, em tempo e


espaço diferenciados, com respeito e atenção referentes às suas qualidades
específicas enquanto manifestação, gerando tanto a fruição/apreciação quanto o
cuidado com a preservação destas manifestações artísticas e estéticas. (PCN, 1999,
p. 179, grifo nosso)

Ademais, a inclusão da disciplina de Artes condiz com a Lei 10639/2003 no Art. 26-

235
A, § 2º, que determina que: “Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira
serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação
Artística e de Literatura e História Brasileira.” (BRASIL, 2003).
Tendo por base esses dois marcos legais, acreditamos que as fronteiras da produção
artística se ampliam “para além do recorte da cultura ocidental, branca, dominante e machista,
coibindo desta forma as abordagens etnocêntricas e desestabilizando os conceitos e pré-
conceitos.” (SILVA, 2008, p.30).
No Projeto Batuque, a disciplina de Artes incentiva os alunos a conhecerem as
máscaras africanas pelo fato de essas representarem uma diversidade de manifestações
culturais para muitos povos daquele continente. Tais máscaras são usadas em rituais de
iniciação ou passagem, cerimônias religiosas, funerais, entre outros eventos de vital
importância para aquelas sociedades.
Após se apropriarem de tais conhecimentos, cada aluno é estimulado a confeccionar
sua própria máscara, com a utilização de materiais diversos, que ficam a critério dos alunos. O
encerramento dessa atividade é através de um baile de máscara, realizado no espaço escolar,
para que sejam expostos os trabalhos produzidos. Esse encerramento também é um momento
de confraternização dos alunos e professores.
Ainda dentro do campo das artes, os alunos participam da oficina de percussão
ministrada pelo músico percussionista Carlinhos Mattos. Nessa atividade, os estudantes
confeccionam alguns instrumentos de percussão utilizando materiais recicláveis, tais como:
garrafas pet, latinhas de alumínio, grãos, cabaças, miçangas entre outros.
Alguns instrumentos da fanfarra escolar, juntamente com os instrumentos
confeccionados, são utilizados nas aulas de percussão no momento em que os estudantes
conhecem toques, batidas e os ritmos de algumas músicas selecionadas para o momento. Os
alunos têm oportunidade de experimentar vários instrumentos, buscando aquele com que mais
se identificam à medida que os ensaios acontecem.
As aulas de percussão, dentro da proposta de valorização da cultura africana e afro-
brasileira, permitem que os alunos percebam que, para os africanos, a música e a dança
possuem uma ligação com o mundo religioso, pois, através delas, se comunicavam com o
mundo espiritual. O termo batuque, genericamente aplicado aos ritmos e danças africanas,
tem uma forte ligação com a religiosidade desses povos.
Outra atividade do Projeto é a oficina de bonecas de pano, na qual os próprios alunos
confeccionam bonecas negras, encarregando-se do enchimento, acabamento como olhos, boca
e cabelo, e as roupas, deixando sua criatividade registrada nas peças produzidas.

236
Por meio dessa atividade, os alunos são levados a conhecer um pouco sobre a
representatividade e a simbologia que as bonecas de pano têm para os africanos e afro-
brasileiros. Segundo Roselne Santarosa (2012, p. 23)

o estudo da boneca de pano ganha relevância no sentido de que ela pode servir às
explicações da vida cotidiana, às transformações e conflitos vivenciados pelo
humano, além de revelar o papel atribuído à mulher na sociedade.

As bonecas de pano, ao longo do tempo, serviram como ícones religiosos ou mágicos


por muitos povos, especialmente os africanos passando a servir como objeto de decoração, na
função de bibelôs, atuando também em contextos educacionais, chegando ao que mais
conhecemos hoje que é uso nas brincadeiras infantis.
Mas como afirma Santarosa (2012, p. 23), o estudo da boneca de pano é “justificado
também pelos afetos que tal objeto é capaz de produzir na vida das pessoas que as têm como
elemento constituinte de suas biografias”, ou seja, para muitas pessoas a boneca de pano
representa afeto porque eram confeccionadas por mães, tias ou avós para serem presenteadas,
transformando-se num objeto carregado de carinho e amor.
As bonecas Abayomi são bonecas negras feitas de retalhos, que ficaram famosas nas
mãos da artesã Lena Martins, moradora do Rio de Janeiro, a partir de 1987. Para alguns
estudiosos, essas bonecas tiveram sua origem nos navios negreiros, onde as mães
provavelmente rasgavam suas vestes e construíram pequenas bonecas somente com nós que
lembravam o corpo humano. (Silva, 2008, p. 33).
Portanto, a boneca negra, especialmente a boneca de pano, tem um significado
político para os afro-brasileiros porque, como afirma Amanda Beatriz, uma blogueira negra, o
ato de presentear uma criança negra com uma boneca negra não se limita apenas em oferecer
um brinquedo, porque a relação de afeto que a criança constrói com esse objeto reproduz suas
características físicas, permitindo que a autoestima dessa criança se eleve e com isso ela passa
a encorajar um olhar de reconhecimento da sua própria identidade. Nas palavras dessa
blogueira: “A pessoa não só aprende a se aceitar negra, mas também aprende a se sentir bem
sendo negra” (AMANDA BEATRIZ, 2014)
Além dessas ações envolvendo a educação artística, o Projeto busca fazer uma
aproximação entre o ensino superior e básico, promovendo palestras no Colégio de Cristalândia
com professores que fazem parte da Universidade Federal do Tocantins, sendo oferecidas duas
palestras anuais aos alunos que fazem parte das atividades do Projeto Batuque.
Os alunos do Projeto Batuque também participam de uma aula temática sobre as
teorias raciais com a professora de História e a professora de Biologia. Nessa aula, procura-se

237
esclarecer a historicidade das narrativas, que falam da superioridade da “raça” branca.
A professora de Biologia busca explicar que a pigmentação da pele é definida pela
produção de melanina, ou seja, se as células da pele tiverem genes que ordenem a produção
de melanina, a pele será pigmentada. Os genes que carregam essa "ordem" são chamados de
dominantes e os que não carregam ordem nenhuma são chamados de recessivos. A professora
esclarece que é muito difícil (quase impossível) alguém ter alguma característica determinada
só por genes dominantes ou só por recessivos - normalmente é uma mistura dos dois.
Para complementar as informações da área biológica, a professora de História
explica que as teorias raciais deram “status” científico às desigualdades entre os seres
humanos, justificando a suposta superioridade do branco em relação ao negro.
Após serem realizadas as oficinas, palestras e aulas com os educandos, é feita uma
atividade festiva para marcar o encerramento do Projeto. O dia 20 de novembro, definido pela
Lei 10.639/2003 como Dia Nacional da Consciência Negra, é a data escolhida para o
encerramento do Projeto Batuque. Há uma mobilização de boa parte dos funcionários da
unidade escolar, em torno das atividades planejadas para o encerramento. Os alunos, divididos
em equipe, são responsáveis pela preparação do ambiente, pelas apresentações musicais e
danças. Há exposição das bonecas de pano confeccionadas pelos alunos e de fotografias das
etapas anteriores do projeto para que a comunidade presente possa conhecer um pouco dessas
atividades. Mas a grande estrela da noite é a feijoada servida aos participantes.
Tais atividades, narradas de forma genérica, são apenas uma amostragem do
desenvolvimento do Projeto Batuque, porque a programação final depende muito das etapas e
procedimentos realizados nos anos anteriores, como também dos recursos financeiros
disponíveis para essa finalidade. Esses elementos favorecem que o encerramento, a cada ano,
seja único, agregando dança, poesia, teatro, desfiles, música entre outras.
A escolha do dia 20 de novembro para o encerramento do Projeto vem ao encontro da
proposta do Movimento Negro, que considera a comemoração dessa data importante para se
lembrar do apreço pela cultura afro-brasileira. Como afirma Marieta de Moraes Ferreira (2011, p.
8), a “comemoração é a cerimônia destinada a trazer de volta a lembrança de pessoas ou eventos,
algo que indica a ideia de ligação entre os homens, fundada sobre a memória”. Por essa razão,
“comemorar não é um ato sem maiores implicações, pois envolve escolhas e projetos” que atuam
tanto no sentido “de reforçar concepções e valores, promover o consenso, a harmonia entre os
grupos ou atores sociais, mas podem também desencadear conflitos ou tensões”.
O Projeto Batuque ao realizar atividades sobre a história e a cultura africana com os
alunos e comemorar o dia 20 de novembro no Colégio Estadual de Cristalândia – TO tem

238
procurado romper com uma educação eurocêntrica, criando novas práticas e novos saberes,
que promovam a reeducação racial contribuindo para a implementação, dinamização e
propagação da Lei 10.639/2003 e suas diretrizes no espaço escolar e na comunidade em geral.

A recepção dos estudantes em relação ao projeto batuque

Segundo Alberti (2015), o trabalho de produção de fontes orais pode ser dividido em
três momentos: a preparação das entrevistas (inclui o projeto de pesquisa e elaboração dos
roteiros das entrevistas), realização das entrevistas e seu tratamento. Em seguida, deve-se
fazer a interpretação e análise das entrevistas, a fim de “analisar as condições de sua
produção, para utilizá-las com pleno conhecimento de causa” (IBID, p. 184).
A partir desse entendimento, escolhemos a entrevista como uma metodologia da
pesquisa empírica na tentativa de verificar a percepção que os/as alunos/as e os/as
professores/as têm a respeito de temas como identidade negra, preconceito e discriminação
racial, racismo e o entendimento que os mesmos têm sobre a História da África e dos
Afrodescendentes. Pretendíamos ainda analisar a expectativa desses atores sobre o Projeto
Batuque e sobre as diversas atividades desenvolvidas ao longo do ano letivo.
Para realizarmos essa pesquisa foram selecionados trinta e dois alunos, sendo 04 da
primeira série, 16 da segunda série e 12 da terceira série do Ensino Médio. Selecionamos os
alunos da segunda série porque são diretamente responsáveis pelo desenvolvimento do
Projeto Batuque e os da terceira série por terem a vivência do mesmo. Já os alunos da
primeira série foram escolhidos por não ter envolvimento direto como o Projeto, o que
possibilita que se observe o impacto que essas ações podem ter sobre os alunos como um todo
do Colégio Estadual de Cristalândia. Foram entrevistadas também quatro professoras
(História, Biologia, Arte e Geografia) e a orientadora educacional da escola.
Os alunos entrevistados estão na faixa etária de 15 a 19 anos, moram com os pais em
casa própria e tem renda familiar acima de dois salários mínimos. Quanto à religião, observa-
se que a maioria é católica, seguido dos evangélicos, mas tem também alunos espíritas e sem
religião. Não temos alunos de religiões de matriz africana. A respeito da cor/raça assim se
declararam: 10 brancos, 12 pardos, 08 pretos, 01 amarelo e 01 indígena.
Nas entrevistas feitas com os alunos pertencentes a primeira série do Ensino Médio
foi possível observar que eles têm conhecimento sobre o Projeto a partir de algumas
atividades em que são convidados a participar. Essas atividades geralmente se limitam a
responder questionários sobre seu pertencimento racial e sobre sua percepção a respeito do

239
preconceito, discriminação racial e racismo no ambiente escolar. Como afirma uma das alunas
entrevistadas da primeira série, “deveria ter mais atividades para chamar atenção dos outros
alunos da escola, porque tem muitos estudantes que não conhecem ou não sabem o que é o
Projeto Batuque” (D. C. B, informação verbal).86
Por outro lado, para os alunos que participaram do Projeto, ou seja, os alunos da
terceira série do Ensino Médio, os conhecimentos adquiridos, através das atividades
desenvolvidas ao longo do ano letivo, têm contribuído para que revejam algumas concepções
que possuíam sobre a História da África e, especialmente, sobre a História dos africanos e
afro-brasileiros.
Com base nas entrevistas feitas com os alunos do Projeto Batuque, pode-se inferir
que os mesmos se apropriaram do discurso da identidade nacional, que fala que no Brasil
houve uma mestiçagem racial. Essas narrativas que circulam sobre mestiçagem racial foram
incorporadas por muitos intelectuais e pelos discursos políticos oficiais, bem como por grande
parte das manifestações artísticas nacionais a partir da década de 1930. A apropriação desse
discurso pelos alunos do Colégio Estadual de Cristalândia demonstra a forma como as
representações contribuem para a construção das identidades dos sujeitos.
Até recentemente, os currículos escolares oficiais que circularam, ao definir os
conteúdos que deveriam ser trabalhados, selecionavam àqueles tidos como relevantes e dignos de
serem estudados pelos alunos, com base nas narrativas que foram construídas pelos intelectuais
que se apropriaram do discurso sobre a formação mestiça da identidade nacional brasileira. Esse
discurso, que foi sistematizado e veiculado, sobretudo após a criação do IHGB (Instituto Histórico
e Geográfico Brasileiro), geralmente, representavam os povos africanos e afrodescendentes como
agentes inferiores, passivos ou meros coadjuvantes no processo histórico.
Na nossa pesquisa, observamos que alguns alunos entendem o tema da “identidade
negra” como uma autoproteção, uma defesa de interesses e uma reversão da opressão,
portanto, um ato político. Contudo, existem aqueles que não estão preocupados com a
dimensão política da afirmação da “identidade negra” e não se sentem prejudicados com a
reprodução de narrativas e atitudes discriminatórias sobre os africanos e afrodescendentes. A
posição desses alunos é de aderirem ao discurso hegemônico, negando suas raízes identitárias,
alisando o cabelo, declarando-se “morenos”, etc.
Portanto, a presença nas entrevistas desse discurso que remonta a uma narrativa da

86
Informação fornecida pela aluna da primeira série do Ensino Médio durante entrevista como parte da
pesquisa: O Currículo de História e a Lei 10.639/2003: as ações afirmativas do “Projeto Batuque” do Colégio
Estadual de Cristalândia – TO.

240
identidade nacional, que marginaliza ou diminui o papel do negro na sociedade brasileira,
demonstra a necessidade então de se difundir por meio de práticas pedagógicas, novas
representações que ressaltem e valorizem a identidade negra positiva, destacando o papel do
negro na sociedade brasileira.
A ideia de construir uma sociedade que valorize a identidade africana e sua
importância cultural, contudo, ainda não foi devidamente apropriada pelos alunos da educação
básica. Tanto que quando questionamos o entendimento que o/a aluno/a tinha sobre
identidade negra, a pergunta gerava certo espanto, a ponto de alguns entrevistados/as pedirem
um tempo para pensarem a respeito. Alguns afirmam que ainda não tem uma opinião formada
sobre o tema abordado. “Não tenho opinião formada sobre identidade negra. Nunca pensei
nesse assunto. Nem tinha ouvi falar ainda.” (V. A. L., informação verbal) 87 . A aluna (A. C.
O. M., informação verbal),88 já deu a seguinte resposta a respeito do seu entendimento sobre
identidade negra: “é importante que a pessoa negra, em primeiro lugar se aceite como ela é.
Não deve se importar com qualquer tipo de piada e preconceitos que vem de outras pessoas.”
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (2004, p, 16) apontam que a
escola precisa desconstruir algumas visões equivocadas e generalizantes sobre as
representações dos negros que circulam na sociedade. Em relação a essa generalização,
encontramos uma reflexão interessante, no que tange à identidade negra, na fala do/da
aluno/aluna, que afirma:

Eu não tenho muito entendimento não. Eu acho que vai da pessoa porque se a
pessoa se acha negra vai da consciência dela. Porque tem pessoas negras, mas não
se consideram negras, querem ser brancas e tem preconceito com ela mesmo. Já
tem outras pessoas brancas que elas adotam o hábito delas ser negros por causa
das pessoas e dos seus atos. (J. J. S., informação verbal). 89

Essa fala é uma pequena demonstração da complexidade que envolve o processo de


construção da identidade negra no Brasil. Identidade essa, negada pela sociedade brasileira
por meio de “políticas que visavam ao branqueamento da população pela eliminação
simbólica e material da presença dos negros” (DCNs, 2004, p. 16). Dessa forma, podemos
verificar que a construção da identidade negra deve ser pensada como um processo amplo e

87
Informação fornecida pelo aluno da segunda série do Ensino Médio durante entrevista como parte da
pesquisa: O Currículo de História e a Lei 10.639/2003: as ações afirmativas do “Projeto Batuque” do Colégio
Estadual de Cristalândia –TO.
88
Idem.
89
Informação fornecida pela aluna da segunda série do Ensino Médio durante entrevista como parte da pesquisa:
O Currículo de História e a Lei 10.639/2003: as ações afirmativas do “Projeto Batuque” do Colégio Estadual de
Cristalândia – TO.

241
complexo em que as dimensões pessoais e sociais não podem ser separadas, pois estão
interligadas e se constroem na vida social.
No que se refere à visão dos alunos sobre a África e os afrodescendentes ficou
evidente nas suas falas que ainda prevalece a ideia de um continente marcado pela miséria,
guerras étnicas, doenças, fome, falência econômica e sofrimento, ou seja, são imagens e
informações que dominam os meios de comunicação, as revistas e os livros didáticos que
contribuem para a formação de um imaginário deturpado, preconceituoso e discriminatório
sobre o continente africano.
Transcrevendo a fala de duas alunas é fácil notar que o desconhecimento é geral e
muitas vezes o termo África é usado como referência a um país ou um lugar qualquer
homogêneo como podemos observar na fala da aluna: “A África é um país de muitas doenças,
muita pobreza. As pessoas sofrem muito. Tem muita fome, miséria tanta coisa que eu acho
que as pessoas sofrem bastante“. (J. J. S.)
A aluna reconhece ter pouco conhecimento sobre a História da África, mas prevalece
a concepção de inferioridade e miséria a ponto de se surpreender ao saber que o continente
africano tem muitas riquezas minerais inclusive diamante como podemos conferir:

Não conheço muito, mas o que eu conheço é que eles cultuam muitos Deuses. Eles
sofreram muito com preconceito por causa da cor da pele. Eles são muito pobres e
sofrem muito com isso. As pessoas dizem que na África é só pobreza, mas lá tem até
diamante. Então eles são um povo rico que nem no Brasil, mas as pessoas de lá são
pobres. (R. R. P., informação verbal).90

As respostas das duas entrevistadas confirmam a afirmação de Selma Pantoja (2004)


quando diz que: “com relação ao continente africano, a desinformação é completa e o silêncio
perturbador” gerando assim distorções, simplificações, homogeneização e generalizações de
sua História e de suas populações.
Já entre os/as alunos/as da terceira série do Ensino Médio que participaram do
Projeto é possível perceber uma interpretação um pouco diferente sobre o continente africano,
ganhando destaque as belezas naturais e a diversidade cultural. Porém, ainda permanece uma
visão da África muito distante de nós brasileiros, como nos revela os próximos relatos. Uma
das alunas afirma que

Antes do Projeto eu tinha a mentalidade de que África era um lugar muito difícil, de
muita miséria, muita dificuldade, muitas epidemias. Então com o Projeto a gente viu
que além de tudo isso, África é um continente lindo de belezas naturais riquíssimas,
biodiversidade muito grande. Cultura e tradições maravilhosas, coisas que a gente

90
Informação fornecida pela aluna da segunda série do Ensino Médio durante entrevista como parte da pesquisa:
O Currículo de História e a Lei 10.639/2003: as ações afirmativas do “Projeto Batuque” do Colégio Estadual de
Cristalândia – TO.

242
não tinha ideia de que poderia acontecer. África em si é um lugar maravilhoso. Eu
acho que as coisas ruins que aconteceram e acontece até hoje ou podem acontecer
ainda, devido a pobreza econômico, principalmente não interfere no que ela é
realmente. (S. H. K, informação verbal)91

Na fala seguinte é possível perceber também uma valorização da diversidade e da


riqueza do continente africano que o ensino de História pode proporcionar ao afirmar que

Depois que eu fiz o Projeto Batuque minha visão sobre a África mudou bastante,
porque geralmente a gente tem a visão de que África é um país e na verdade África
é um continente, um continente muito grande, muito rico. Acho que não tem como a
gente falar uma palavra resumidamente sobre África, porque a África abrange
muita coisa, muita coisa mesmo. Quando eu falo sobre África, na verdade eu não
vejo mais aquela visão ruim que as pessoas falam de pobreza, de miséria. Quando
eu falo sobre África na verdade eu já me encanto porque pra mim é um dos
continentes mais ricos e a História me faz admirar muito. (T. R. C. S., informação
verbal).92

É notório que o continente africano ainda é muito desconhecido pelos alunos em


grande parte porque o conhecimento construído nas escolas tem como referência africana
apenas o período da escravidão que, para Pantoja (2004, p. 18), “é um pequeno espaço, de um
pouco mais de três séculos, na história milenar de um continente”. No entanto, percebemos
entre os alunos do Projeto um grande interesse em compreender as implicações, causas e
efeitos do processo de escravidão no Brasil que deixou como herança o racismo, o
preconceito e a discriminação racial. Ademais, conhecer a História e Cultura da África “é
fator fundamental para se compreender historicamente a população negra brasileira e a
formação do nosso país” (PANTOJA, 2004, p.19) porque aquelas pessoas que atravessaram
oceanos trouxeram com elas ideias, modos de pensar e estar no mundo.
Notamos também em alguns relatos a expectativa desses alunos/alunas que estão
participando ou como alguns dizem, vivendo o que o Projeto propõe. O primeiro relato diz que:

Eu espero conhecer mais sobre a cultura dos povos africanos, entender suas
crenças, como esse povo vivia e ampliar minha visão sobre tudo o que envolve o
negro na sociedade deixando de lado qualquer olhar preconceituoso que exista.
Mesmo sabendo que o racismo não vai acabar espero que ele diminua aqui no
colégio e em nossa sociedade. (A.C.M.O., informação verbal) 93

O Projeto Batuque representa uma oportunidade para conhecer o continente africano,


especialmente suas belezas e riquezas naturais. Conhecer também sobre nossos antepassados

91
Informação fornecida pela aluna da terceira série do Ensino Médio a cerca de seu conhecimento sobre a África
durante entrevista que compõem a pesquisa: O Currículo de História e a Lei 10.639/2003: as ações afirmativas
do “Projeto Batuque” do Colégio Estadual de Cristalândia – TO.
92
Idem.
93
Informação fornecida pela aluna da segunda série do Ensino Médio a respeito de sua expectativa sobre o
Projeto Batuque durante entrevista que compõem a pesquisa: O Currículo de História e a Lei 10.639/2003: as
ações afirmativas do “Projeto Batuque” do Colégio Estadual de Cristalândia – TO

243
como afirma a aluna (R. R. P., informação verbal)94.

Eu quero entender mais sobre a História da África pra quando as pessoas me


perguntarem, o que eu acho de bonito na África eu poder falar o que aprendi sobre
a África. Falar que participei desse projeto e poder dizer que conheço um pouco da
história dos meus antepassados.

Em outros alunos foi possível observar um desejo de mudança a respeito de seu


entendimento sobre a cultura africana, a partir dos conhecimentos que esperam adquirir com
as atividades do Projeto. É o que relata a aluna (R. M. F. A., informação verbal)95

Mudança porque eu entrei pra mudar. Eu acho que se a gente faz o projeto, a gente
entra de uma forma, pensa de uma forma sobre o racismo, mas no decorrer do ano
podemos aprender mais coisas sobre negro, sobre racismo. Também espero que
mude as nossas ideias e nossos comportamentos.

É recorrente nas falas o reconhecimento da existência do racismo, do preconceito e


da discriminação racial não apenas praticado pelos outros, mas por parte deles próprios como
afirma esse/essa aluno/aluna:

Eu espero aprender a respeitar mais porque todo mundo tem um pouco de racismo
dentro de si. Sei que não vai acabar totalmente o racismo com as pessoas negras,
mas espero aprender muito com o Projeto porque é pra isso que acontece o projeto
todo o ano. O Projeto é pra tentar mudar um pouco a cabeça de todo mundo.
Aprender um pouco mais sobre a cultura Negra, entender o porquê de algumas
coisas. Saber realmente a respeitar as diferenças. (M. G. C., informação verbal) 96

Portanto, fica evidente nas entrevistas que esses alunos/alunas têm muita curiosidade
em conhecer a História e a Cultura da África para entender os conflitos raciais presenciados e
vivenciados, por muitos deles, no ambiente escolar e na sociedade em geral. Nesse sentido,
evidencia-se que as atividades do Projeto Batuque se apresentam como uma possibilidade
para que esses alunos possam desconstruir um imaginário social preconceituoso sobre a
História e a Cultura da África e dos afros-descendentes.
Para os alunos que vivenciaram essa experiência (terceira série do Ensino Médio),
ficaram muitas lições, que segundo eles estão provocando mudanças de comportamento no
ambiente escolar e na convivência familiar, como se pode notar no seguinte relato:

O Projeto Batuque trouxe muito pra mim, porque nós sabíamos um pouco sobre
África, mas não profundamente e, nós aprofundamos tudo sobre a África. O Projeto
Batuque aprimorou meus conhecimentos da África. Pude entender melhor o lado
bom das coisas. Trouxe muitas coisas boas para mim. A experiência ajudou a me
conscientizar sobre as formas de racismo no ambiente escolar. O intuito dele
mesmo é conscientizar as pessoas e para mim serviu para que eu levasse essa

94
Idem.
95
Idem.
96
Informação fornecida pela aluna da terceira série do Ensino Médio a respeito de sua experiência sobre o
Projeto Batuque durante entrevista que compõem a pesquisa: O Currículo de História e a Lei 10.639/2003: as
ações afirmativas do “Projeto Batuque” do Colégio Estadual de Cristalândia – TO.

244
experiência para outras pessoas. Levar para as pessoas um pouco de
conscientização sobre o racismo. (J. M. S., informação verbal) 97

Devido ao tempo de execução das diversas atividades do Projeto não é possível haver
um aprofundamento sobre a História da África. Há, no entanto, o cuidado de levar aos/as
alunos/as uma História da África mais global deixando de referir-se a África apenas a partir
do tráfico. Fato que pode ter levado a aluna imaginar que seria possível esse aprofundamento
de “tudo sobre a África”.
Para a aluna (J. R. L. L., informação verbal)98 a maior contribuição do Projeto foi
entender suas origens e assim aceitar alguns aspectos físicos que não se enquadram nos
padrões de beleza da sociedade.

O Projeto Batuque contribuiu muito pra mim, pro meu conhecimento meu
crescimento de explicar, mostrar pra gente o que realmente é a cultura negra, a
cultura africana, mostrar o que os negros passaram pra chegar até aqui, aquela
luta toda. Mostrar também para a gente se aceitar do jeito que a gente é não querer
se adequar aos padrões da sociedade. Aquela cor que tem que ser, que é bonito se
for daquele jeito. Não se aceitar do jeito que a gente é. Eu aprendi muito isso no
Projeto Batuque: aceitar. E uma coisa que eu vou levar porque mesmo se uma
pessoa diz que branco daquele jeito é bonito, que o cabelo daquele jeito é bonito,
que o olho daquele jeito é bonito você deve se aceitar. Primeiro você se aceita pra
depois você poder formar uma opinião sobre alguma coisa. O que mais aprendi foi
me aceitar. (J. R. L. L., informação verbal).

A religiosidade dos africanos, na maioria das vezes, está associada à ideia de algo
ruim, perigoso, demoníaco, mas o Projeto traz outra concepção aos estudantes como podemos
observar:

O Projeto Batuque mudou minha ideia de África, ele me fez entender que aquela
questão que a gente via como um lugar de pobreza, de doença não é assim. Tem
pobreza, doenças, mas possui também coisas boas e uma cultura diversa. Criou-se a
ideia que a religião africana era tudo macumba e errado, mas não é assim. Como a
gente acredita em um Deus eles irão acreditar nos Deuses dele. O projeto me
ensinou a respeitar isso. Conhecer é a melhor forma para se respeitar as ideias
diferentes da nossa, mas não quer dizer que é errado. (V. A. G., informação verbal).

Reduzir o continente africano a um país é uma concepção que parece já está


cristalizada entre os alunos e o Projeto trouxe essa discussão para sala de aula, levando os
alunos a perceberem tamanho equivoco observado na fala seguinte.

Aprendi que você não é obrigado a amar a pessoa negra, mas você é obrigado a
tolerar e respeitar. Jamais desrespeitar ou descriminar as pessoas, principalmente
por sua cor da pele. O Projeto Batuque me ensinou muito sobre isso. Aprendi que a
África é um continente e não um país. Para mim essa foi a maior descoberta porque
sempre coloquei na minha cabeça que a África era um país e não um continente. (S.

97
Idem
98
Informação fornecida pela aluna da terceira série do Ensino Médio a respeito de sua experiência sobre o
Projeto Batuque durante entrevista que compõem a pesquisa: O Currículo de História e a Lei 10.639/2003: as
ações afirmativas do “Projeto Batuque” do Colégio Estadual de Cristalândia – TO.

245
O. F. S., informação verbal)99

Como pudemos observar o acesso às informações sobre a História da África pode


possibilitar uma revisão na postura dos estudantes e produzir uma atitude mais crítica em
relação às representações que circulam na sociedade. Por essa razão, como argumenta Silva
(2014, p. 102), o enfrentamento do racismo, da desigualdade e da discriminação racial, a
partir do contexto escolar, pode suscitar uma mudança no currículo que não se limite ao
simples acréscimo de informações superficiais sobre outras culturas e identidades ou celebrar
a diferença e a diversidade, mas que questione como essas diferenças são construídas.

Considerações finais

A escola, considerada como uma instituição onde aprendemos e compartilhamos não


só conteúdos e saberes escolares, mas também, valores, crenças e hábitos, assim como
preconceitos raciais, de gênero, de classe entre outros, deve assumir a função de valorizar as
identidades e as diferenças por meio de um currículo multicultural.
Entre as diferentes abordagens que o multiculturalismo pode assumir, Santos e Lopes
(2012, p. 36-37) apontam quatro entendimentos distintos para o emprego desse conceito no
campo do currículo. O primeiro seria “a ideia de que uma cultura dominante assimila uma
outra minoritária, que se encontra em desigualdade de condições e com escassas
oportunidades no sistema social e educativo.” O segundo “emprega-se no sentido de que esse
tipo de educação pode se constituir em um instrumento para reduzir os preconceitos de uma
sociedade onde existam minorias étnicas.” O terceiro seria “como um programa diferenciado,
no qual os diversos setores culturais de uma sociedade encontrem ambientes educativos
apropriados a cada um” e por último, “como uma visão não etnocêntrica da cultural que
abarca diferentes matrizes do pluralismo cultural.”
Trazemos para a proposta do Projeto Batuque o conceito de multiculturalismo porque
ele se aproxima dos seus objetivos, na medida em que considera a educação como instrumento
para reduzir os preconceitos raciais presentes em nossa sociedade e no ambiente escolar.
Conhecer o afro-brasileiro e as várias manifestações culturais de nossa sociedade faz-
se necessário antes de qualquer coisa conhecer a África, suas raízes culturais, as sociedades
“nas quais viviam as pessoas que foram trazidas para a América como escravos, suas crenças
e tradições” (SOUZA, 2004, p. 41).
As atividades do Projeto Batuque, ao trabalhar a História e a cultura africana, podem

246
incentivar alunos e professores a questionar o currículo oficial de História e contribuir para a
desconstrução de um dos mitos presentes nas narrativas existentes sobre a construção da
nação brasileira, que fez circular o discurso da democracia racial e reproduz as discriminações
seculares, que contribuem para a exclusão e dificuldade de acesso aos direitos por parte dos
cidadãos negros no Brasil.

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248
Sobre os Autores(as)

Aletícia Rocha da Silva


Graduada em História pela UFT. Mestre em Ensino de História pelo PPGEHIST/UFT. Atua
como professora da Educação Básica em Tocantins desde 2009.
André Brasil da Silva
Graduado em História pela UEMA. Mestre em Ensino de História pelo PPGEHIST/UFT.
Atua como professor de História da rede municipal de ensino de Barra do Corda – MA.
Antonio Carlos Macena da Silva
Graduado em Pedagogia pela UFPA e em História pelo UNIASSELVI. Mestre em Ensino de
História pelo PPGEHIST/UFT. Atua na SEDUC-PA, Unidade Regional de Marabá.
Diego Gomes Souza
Graduado em História pela UFF. Mestre em Ensino de História pela UFF. Atua como
professor de História nas redes municipais de educação de Queimados e Rio Bonito (RJ).
Dimas José Batista
Graduado e Mestre em História pela UNESP/Franca. Doutor em História Social pela USP.
Atua como professor no curso de História da UFT/UFNT.
Elison Antonio Paim
Graduado em História pela UFSM. Mestre em História pela PUC-SP. Doutor em Educação
pela UNICAMP. PhD em Ensino de História da África pelo Instituto Superior de Ciências da
Educação de Huíla (Angola). Atua como professor da UFSC.
Elyneide Campos de Souza
Graduada em História pela UFT. Mestre em Ensino de História pelo PPGEHIST/UFT.
Eronilda Resende Feitosa
Graduada em História pela UESPI. Mestranda em Ensino de História pela UESPI. Atua como
professora da rede estadual do Piauí.
João Cândido Carvalho Marinho
Graduado em História pela UEMA. Bacharel em Direito pela UFMA. Mestre em Ensino de
História pelo PPGEHIST/UFT. Atua como professor de História na rede estadual de ensino
em Imperatriz - MA.
João Paulo Santana Maciel
Graduado em História pela UEMA. Mestre em Ensino de História pelo PPGEHIST/UFT.
Atua como professor nas redes estadual e municipal na cidade de Imperatriz - MA.
João Quintino de Medeiros Filho
Graduado em História pela UFRN. Mestre em História pela UFCG. Atua como professor da
UFRN, Campus de Caicó.
Jorge Luis de Medeiros Bezerra
Graduado em História pela UFT. Mestre em Ensino de História pelo PPGEHIST/UFT. Atua
como professor do IFTO.
Jucileide da Silva Almeida
Graduada em Pedagogia e História pela UEMA. Mestre em Ensino de História pelo
PPGEHIST/UFT. Atua como professora da rede estadual do Maranhão.

249
Laila Cristine Ribeiro da Silva
Graduada em História pela UFT. Bacharel em Direito pela Faculdade Católica D. Orione.
Mestre em Ensino de História pelo PPGEHIST/UFT.
Marcos Edilson de Araújo Clemente
Graduado em História pela UCSAL. Mestre em História pela UNICAMP. Doutor em História
Social pela UFRJ. Atua como professor no curso de História da UFT/UFNT.
Mariseti Cristina Soares Lunckes
Graduada em Estudos Sociais e em História pela UNISINOS. Mestre em História pela
UNISINOS Doutora em História Social pela UFRJ. Professora aposentada da UFT.
Martha Victor Vieira
Graduada e Mestre em História pela UNESP/Franca. Doutora em História Social pela UFRJ.
Atua como professora no curso de História da UFT/UFNT.
Mayara Alves Leite
Graduada em História pela UFT. Mestre em Ensino de História pelo PPGEHIST/UFT. Atua
como professora da rede estadual do Tocantins.
Pedro Pio Fontineles Filho
Graduado em História e Letras pela UESPI. Mestre em História pela UFPI. Doutor em
História Social pela UFC. Atua como professor no curso de História da UESPI.
Robson Ferreira Fernandes
Graduado em História pelo UNIASSELVI. Mestre em Ensino de História pela UFSC. Atua
como professora na rede estadual da Secretaria de Educação do Estado de Santa Catarina.
Tecia Goulart de Souza
Graduada em Estudos Sociais pela União Pioneira de Integração Social. Mestre em Ensino de
História pela UFSC. Atua como professora na rede estadual da Secretaria de Educação do
Distrito Federal.
Vagner José de Moraes Medeiros
Graduado em História pela UERJ. Mestre em Ensino de História pela UFF. Atua como
professor na rede municipal de ensino da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.
Vasni de Almeida
Graduado em História pelo Centro Universitário Barão de Mauá. Mestre e doutor em História
pela UNESP/Franca. Atua como professor no curso de História da UFT.
Vera Lúcia Caixeta
Graduada em História pela Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Patos de Minas.
Mestre em História pela UNB. Doutora em História Social pela UFRJ. Atua como professora
no curso de História da UFT/UFNT.
Wellington Amarante
Graduado, mestre e doutor em História pela UNESP/Assis. Atua como professor na UFU.

250
ISBN: xxxxxxxxxxxxx

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