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Aspectos Antropológicos e

Sociológicos da Educação

2014
Editorial
Comitê Editorial
Magda Maria Ventura Gomes da Silva
Lucia Ferreira Sasse
Marina Caprio

Autor do Original
Fernando de Figueiredo Balieiro

© UniSEB © Editora Universidade Estácio de Sá


Todos os direitos desta edição reservados à UniSEB e Editora Universidade Estácio de Sá.
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio eletrônico, e mecânico, fotográico e gravação ou
qualquer outro, sem a permissão expressa do UniSEB e Editora Universidade Estácio de Sá. A violação dos direitos autorais é
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dos Direitos Autorais – arts. 122, 123, 124 e 126).
Aspectos Antropológicos e
Sociológicos da Educação
Capítulo 1: Introdução à Aspectos

ri o Sociológicos e Antropológicos da Educação .......... 9


Objetivos da aprendizagem .............................................. 9

Você se lembra?...................................................................... 9
1.1 O homem como ser social................................................... 10
1.2 Iniciando nossa incursão pela antropologia ............................. 23
Su

1.3 Cultura: um conceito fundamental. .............................................. 41


Atividades................................................................................................ 53
Reflexão ...................................................................................................... 54
Leituras Recomendadas ................................................................................. 55
Referências bibliográficas ................................................................................. 55
No próximo capítulo ............................................................................................ 58
Capítulo 2: Os Clássicos da Sociologia e a Educação ........................................ 59
Objetivos da aprendizagem ...................................................................................... 59
Você se lembra?.......................................................................................................... 59
2.1 Émile Durkheim: elementos centrais da sociologia dos “fatos sociais” ............... 61
2.2 Karl Marx e a sociologia dos conflitos sociais ...................................................... 65
2.3 Max Weber e a sociologia compreensiva................................................................ 75
Atividades ...................................................................................................................... 83
Reflexão ......................................................................................................................... 84
Leituras recomendadas .................................................................................................. 84
Referências bibliográficas ............................................................................................ 84
No próximo capítulo.................................................................................................... 86
Capítulo 3: A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas ........................... 87
Objetivos da sua aprendizagem .............................................................................. 87
Você se lembra? ................................................................................................... 87
3.1 O Pensamento de Pierre Bourdieu ............................................................ 89
3.2 Como Pierre Bourdieu enxerga a sociedade? ........................................ 94
3.3 Gosto de classe e estilo de vida ......................................................... 94
3.4 O papel do Estado .......................................................................... 96
3.5 Bourdieu e a Educação. ............................................................ 97
3.6 Michel Foucault e a construção do sujeito .......................... 100
3.7 Foucault: as tecnologias do poder (saber poder) ............ 107
3.8 Ética e estética de si (o saber fazer) ....................................................................... 113
3.9 Foucault e a Educação ........................................................................................... 114
Atividades ..................................................................................................................... 118
Reflexão ........................................................................................................................ 119
Leituras recomendadas.................................................................................................. 119
Referências bibliográficas ............................................................................................. 119
No próximo capítulo ..................................................................................................... 121
Capítulo 4: Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade .... 123
Objetivos da aprendizagem ........................................................................................... 123
Você se lembra? ............................................................................................................ 123
4.1 Desigualdades socioeconômicas e diferenças sociais: cuidados conceituais ........ 124
4.2 As diversas formas de desigualdades socioeconômicas......................................... 124
4.3 As desigualdades sociais no Brasil ........................................................................ 128
4.4 As desigualdades educacionais .............................................................................. 130
4.5 Estado, educação e cidadania ................................................................................. 132
4.6 Globalização: um conceito atual? .......................................................................... 135
4.7 Quais as características da globalização? .............................................................. 136
4.8 As contradições da globalização ............................................................................ 137
4.9 Globalização e mídia.............................................................................................. 139
4.10 Os meios de comunicação de massa e a educação no Brasil ............................... 140
4.11 Qual o papel da educação na sociedade da informação? ..................................... 142
4.12 Acerca do analfabetismo funcional e da exclusão digital .................................... 143
4.13 EAD e rede eletrônica .......................................................................................... 144
4.14 EAD: a fundamentação histórica de uma nova relação de aprendizagem ........... 145
4.15 O EAD surge no Brasil ........................................................................................ 147
4.16 EAD e os usuários da Internet .......................................................................... 148
4.17 Os anos 2000 e a tecnologia por trás do EAD ..................................................... 149
4.18 Usuários on-line versus usuários off-line ............................................................ 151
4.19 Os sujeitos e as malhas do digital ........................................................................ 153
4.20 Aluno e professor: sujeitos de um discurso nas malhas do digital....................... 154
Atividades ..................................................................................................................... 157
Reflexão ........................................................................................................................ 157
Leituras Recomendadas ................................................................................................ 158
Referências bibliográficas ............................................................................................. 158
No próximo capítulo ..................................................................................................... 159
Capítulo 5: Educação e Diversidade Cultural .......................................................... 161
Objetivos da sua aprendizagem .................................................................................... 161
Você se lembra? ............................................................................................................ 161
5.1 Educação, cultura e socialização............................................................................ 162
Atividades ..................................................................................................................... 175
Reflexão ........................................................................................................................ 175
Leituras Recomendadas ................................................................................................ 176
Referências Bibliográficas ............................................................................................ 176
ã o Prezados(as) alunos(as)
Nesta disciplina, abordaremos os as-

aç pectos antropológicos e sociológicos da


educação. Focaremos os aspectos fundamentais
ent
dessas duas ciências sociais, a Antropologia e a
Sociologia, abordando temas como: o homem enquan-
to ser social, o conceito de cultura, a socialização, as
res

relações entre sociedade e escola, a escola como instância


disciplinadora e normativa, a reprodução das desigualdades
Ap

na escola, a escola na sociedade de informação, dentre outros.


Como se vê são assuntos complexos que exigem relexão apro-
fundada. Para tanto, vamos adentrar as relexões sobre o surgimen-
to das duas ciências, suas grandes questões e seus maiores expoen-
tes clássicos e contemporâneos para, em seguida, relacionarmos as
relexões próprias da Sociologia e Antropologia com a Educação.

Bons estudos!

Prof. Dr. Fernando de Figueiredo Balieiro


Introdução à Aspectos
Sociológicos e
Antropológicos da Educação
1 No primeiro capítulo, apresentaremos os
aspectos fundamentais das disciplinas de So-
lo
ciologia e Antropologia, campos do saber que não
envolvem apenas conhecimentos especíicos, mas que
ít u

propiciam um alargamento dos horizontes de pensamen-


to, possibilitando ao aluno rever muitas das ideias que traz
Cap

em sua experiência.
As disciplinas de Antropologia e Sociologia vêm, então, em
seu auxílio na sua caminhada intelectual, apresentando diferen-
tes visões sobre a realidade humana enquanto grupo que produz o
que chamamos de “cultura” – esta que se manifesta socialmente. É
importante entender o que é exatamente este animal social que é o ser
humano. Será que você já reletiu verdadeira e profundamente sobre
quem é o ser humano – na verdade, quem somos nós?

Objetivos da aprendizagem
• Compreender o contexto de surgimento das disciplinas de Sociologia
e Antropologia;
• Reletir sobre a dimensão social do ser humano;
• Identiicar os aspectos fundamentais da perspectiva positivista;
• Compreender o desenvolvimento da Antropologia enquanto ciência;
• Deinir o conceito antropológico de cultura;
• Compreender o que é etnocentrismo;
• Aprender as diferenças iniciais de objeto entre a ciência socioló-
gica e a antropológica.

Você se lembra?
Qual foi a última vez que ouviu falar sobre ciências sociais? O
que você achou que as deiniu? Neste capítulo, vamos aden-
trar duas das ciências sociais, a Antropologia e a Sociolo-
gia e, então, você verá como são duas ciências que se
debruçam sobre o caráter social do ser humano, mas
com focos e metodologias distintas.
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

1.1 O homem como ser social


Todo ser humano vive em sociedade. Assim,
pode-se dizer que todo homem é um ser social.
Conexão:
Para entender o que é Sociologia, precisamos Dica de filme:
compreender quem é o ser humano e por Procure assistir o filme O
que é necessária uma ciência para estudá-lo enigma de Kaspar Hauser, de
1976, no qual o cineasta alemão
em sociedade. O homem não é apenas um Werner Herzog trata exatamente
conjunto de componentes físicos e orgâni- desse tema.

cos, ele é também um ser que pensa, sente,


relaciona-se com outros homens, modiica a
natureza à sua volta e cria coisas novas. Para atuar
no mundo em que vive, o homem precisa passar por um aprendizado que
lhe permita ter um comportamento adequado à convivência com outros
seres iguais a ele. O homem eventualmente criado longe do convívio so-
cial é incapaz de se humanizar, deixando apenas alorar suas característi-
cas instintivas, assemelhando-se aos animais.
Mas o que diferencia o homem dos animais? O homem é o único
animal que não age apenas por instinto, porque ele passa por um processo
de aprendizado, de socialização e porque precisa da linguagem para se co-
municar com seus semelhantes. A socialização é, então, um processo que
dá o caráter humano ao homem, diferenciando-o do animal. A educação
(formal e informal) é fundamental para
a socialização do ser humano.
Quando socializado, o A educação formal
é aquela em que o aprendiza-
ser humano age socialmen- do depende da instituição escolar. A
te, ou seja, suas ações, educação informal, por sua vez, é aquela
seus sentimentos e pensa- em que o indivíduo desenvolve o aprendiza-
do fora da escola, em família, com amigos, nas
mentos estão diretamen-
igrejas etc.
te ligados a outros seres
humanos: é na convivên-
cia (boa ou ruim) com o
outro que ele aprende a
ser homem. A socialização
é, então, esse aprendizado. É
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pela socialização que o ser huma-


no aprende a cultura de sua época, de seu
lugar.

10
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

O tema especíico da cultura será visto mais para a frente. Por en-
quanto, o que importa, para se entender o que é Sociologia, é saber que a
cultura é o conjunto de valores, hábitos, costumes e normas que organi-
zam a vida em sociedade. O homem adequado ao seu meio social é aquele
que foi socializado, ou seja, aprendeu como agir socialmente.
Veja como o ser humano se transforma em ser social:
SER HUMANO

SER SOCIAL
EDUCAÇÃO
APRENDIZAGEM
CULTURA
SOCIALIZAÇÃO
LINGUAGEM

A Sociologia chama de socialização o processo pelo qual o indiví-


duo assimila os valores, as normas e as expectativas sociais de um
grupo ou de uma sociedade. Esse processo, responsável pela trans-
missão da cultura, é contínuo e se inicia na família, quando se reali-
za a chamada socialização primária. Depois é assumido pela escola,
pelo grupo de referência e pelas diferentes formas de treinamento e
ajuste a que o indivíduo se submete no decorrer de sua existência
e que caracterizam a socialização secundária” (COSTA, Cristina.
Sociologia. Introdução à ciência da sociedade. São Paulo: Editora
Moderna, 1997, s/p.).
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Até aqui, vimos como se dá o processo de socialização dos seres hu-


manos. Agora, vamos ver como entender esse processo pela Sociologia?

1.1.1 A Sociologia é uma ciência social


As formas de organização social do ser humano são objeto de estu-
do da Sociologia.
Você achou estranho chamar de “objeto” de estudo? Mas é esse o
termo que as ciências usam: o que elas estudam convencionou-se chamar
de “objeto de estudo”, que é o alvo para o qual se direciona o estudo.
A Sociologia é uma das três ciências sociais básicas, que são: a an-
tropologia, a sociologia e a ciência política.

11
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Resumidamente, podemos dizer que a antropologia estuda mais


especiicamente as diferentes culturas no mundo (diferenças de costumes
e valores de um lugar para outro, de um grupo para outro). A ciência po-
lítica estuda as relações de poder que se estabelecem na sociedade (sejam
nas relações cotidianas, como os poderes, entre homens e mulheres, pa-
trões e empregados, pais e ilhos, ou, no nível governamental, como nos
cargos políticos). A Sociologia estuda as relações sociais que os homens
estabelecem com outros homens por meio das instituições sociais (escola,
família, Estado, igreja, sindicato, empresa etc.).
Até hoje ainda existem pessoas que perguntam se é possível fazer
ciência da sociedade ou se a Sociologia é mesmo uma ciência. Esta des-
coniança é perfeitamente compreensível, na medida em que sabemos o
que é que está por trás das concepções que essas pessoas têm de ciência
e de cientista: maçãs caindo das árvores e provando a força da gravidade;
cientistas malucos que transferem líquidos coloridos de um vidro ao outro
provocando fumaças; lunetas gigantes para conhecer os mistérios do céu;
equações matemáticas monstruosas que fundem a cabeça de qualquer
mortal; corpos humanos e animais dissecados; ratinhos de laboratório etc.
Mas, quando conhecemos a história da ciência em geral e das ciên-
cias sociais em particular, tudo começa a icar mais claro, um pouco mais
perto do real.

1.1.2 Breve história da ciência


A ciência – ou scientia – é conhecimento, saber sistematizado que
busca leis universais e cuja legitimidade baseia-se na comprovação empí-
rica: “é preciso ver para crer”, é preciso comprovar que a realidade é real.
Esta visão de ciência, que está na base de nossa cultura e que sustenta os
nossos valores, começou a ser formulada no século XVI, quando a per-
cepção do mundo mudou signiicativamente. Nos séculos XVI e XVII, a
perspectiva medieval de ciência, que se baseava na razão e na fé, mudou
radicalmente, e o mundo, a partir de estudos da física e da astronomia,
começou a ser compreendido como uma máquina. Copérnico, Galileu,
Bacon, Descartes e Newton são os grandes cientistas dos séculos XVI e
XVII, conhecidos como a Idade da Revolução Cientíica.
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Nicolau Copérnico (Itália) modiica a noção do mundo quando


contraria a concepção geocêntrica da Igreja para defender sua concepção
heliocêntrica, na qual a Terra não é o centro do universo. Galileu Galilei

12
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

(Itália), que inventou o telescópio, foi pioneiro na abordagem empírica


e no uso da descrição matemática da natureza e tornou-se referência nas
teorias cientíicas até hoje. Francis Bacon (Inglaterra) foi o primeiro a for-
mular uma teoria clara do método indutivo, ou seja, realizar experimentos
e extrair deles conclusões gerais. Isaac Newton (Inglaterra) forneceu uma
consistente teoria matemática, hoje conhecida como cálculo diferencial,
para descrever o movimento dos corpos. Foi Newton quem inspirou sua
teoria na famosa queda da maçã.
René Descartes (França) é considerado o fundador da ilosoia mo-
derna, com a qual pretendia criar uma nova ciência que fosse capaz de
distinguir a verdade do erro em todos os campos do saber: a ciência é o
conhecimento certo, é a verdade.
Descartes, para quem ciência era sinônimo de matemática, inluen-
ciou de forma marcante todos os ramos da ciência moderna, por isso
merece destaque. É graças a ele que hoje as pessoas estão convencidas
de que o método cientíico é o único meio válido para se compreender
o universo. Tomando a dúvida como ponto fundamental de seu método,
chamado de cartesiano, e duvidando de tudo, Descartes chegou à famosa
airmação Cogito, ergo sum: “Penso, logo existo”.
Assim, concluiu que o pensamento é a essência da natureza humana
e que, portanto, tudo o que o ser humano pensa, intui (intuição) e deduz
(dedução) é verdadeiro. Sua maior contribuição à ciência é seu método
analítico, que consiste em decompor pensamentos e problemas em partes
e organizá-los em uma ordem lógica.
AFP / ROGER_VIOLLET

Embora inegavelmente im-


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portante para o pensamento cien-


tífico até hoje, o cartesianismo
de Descartes foi responsável pela
fragmentação do pensamento em
geral e das disciplinas acadêmicas
e também por alimentar a crença
reducionista da ciência: todos os
aspectos dos fenômenos comple-
xos podem ser compreendidos
quando reduzidos às suas partes.

René Descartes

13
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

O cogito cartesiano, como passou a ser chamado, fundou o dualismo que


separa a mente da matéria, a natureza dos seres humanos, o mundo físico
do mundo social e espiritual.
A atitude das pessoas em relação ao meio ambiente, à cultura e ao
ser humano em geral sofreu consideráveis transformações a partir de Des-
cartes. Sua concepção mecanicista, que tinha o universo como um sistema
mecânico, tornava homem e máquina uma mesma coisa. A ideia de tratar
os organismos vivos – homens e animais – como nada mais do que má-
quinas teve consequências adversas tanto para as ciências humanas como
para as ciências biológicas. Este reducionismo é evidente na medicina, por
exemplo, em que a adesão ao modelo cartesiano tem impedido os médicos
de compreenderem muitas doenças, na medida em que entendem o corpo
humano por partes, e não pelo todo. A medicina holística tem, nos últimos
anos, procurado romper com esta compreensão mecanicista do corpo huma-
no, propondo uma nova compreensão do corpo humano e de sua saúde.
O paradigma mecanicista sustentou a ciência clássica do século
XVI até o início do século XX, quando novas maneiras de compreender
o conhecimento cientíico começaram a marcar presença e ser aceitas. O
dualismo cartesiano foi uma das premissas mais importantes desse para-
digma, mostrando que toda a história do conhecimento cientíico é a his-
tória da busca de uma verdade universal.

1.1.3 As revoluções e as novas formas de organização


social
O inal do século XVIII e o início do século XIX são marcados por
dois acontecimentos históricos da maior importância: a Revolução Francesa
e a chamada Revolução Industrial, que coincidiram com a desagregação da
sociedade feudal e com a consolidação do capitalismo. Estes acontecimen-
tos históricos geraram problemas sociais que os pensadores da época não
conseguiram explicar. Assim, o social e a sociedade começaram a requerer
um olhar próprio, uma ciência própria que até então não existia.

Cada uma das proposições


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que servem de base para a conclu-


Modelo, padrão são. Ponto de que se parte para armar
um raciocínio.

14
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

A Revolução Francesa foi responsável por inigualáveis transforma-


ções sociais e políticas, que ocorreram graças à proclamação de valores
como liberdade e igualdade e por uma, até então, inédita valorização do
indivíduo como cidadão. O que hoje consideramos comum, como a demo-
cracia e o Estado de Direito, também nasceu nesse período.
Foi com a Revolução Francesa que as pessoas passaram a ser vistas
não apenas como portadoras de deveres, mas também de direitos. Elabo-
rou-se, então, a Declaração Universal dos Direitos dos Homens.
A Revolução Industrial, que se iniciou na Inglaterra e rapidamente
se disseminou pela Europa e pelos Estados Unidos, não foi caracterizada
somente pelas inovações técnicas a partir da máquina a vapor e pela in-
dustrialização crescente, mas também por um conjunto de mudanças so-
ciais e econômicas importantes, como a consequente migração do campo
para as cidades, o crescimento da urbanização e um admirável aumento da
população.
A Revolução Industrial foi um marco para a vida moderna porque
se trata, na verdade, de uma revolução cientíico-tecnológica que mudou
a organização social deinitivamente. Num prazo relativamente curto,
de cerca de 100 anos, a Europa de sítios, rendeiros e artesãos passou a
ser uma Europa de cidades e indústrias. Com a indústria, a produção
começa a ser feita num ritmo acelerado e o crescimento urbano passa a
ser signiicativo, separando os espaços rurais dos espaços urbanos. Com
as indústrias e essa nova forma de produção, a economia também mu-
dou, deixando de ser agrária para ser industrial. Além disso, expandiu-
-se o comércio internacional em busca de matérias-primas e de escoamen-
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to das mercadorias produzidas.


As principais mudanças ocorridas na sociedade em função da Revo-
lução Industrial podem ser assim sintetizadas:
– grande concentração humana nas cidades inglesas, uma vez
que os camponeses saíram do campo em busca de nova vida
nas cidades que surgiam em função das indústrias: há intensa
migração do campo para a cidade;
– substituição progressiva do trabalho humano por máquinas;
– divisão do trabalho em partes especializadas e necessidade
de coordenação: o aumento da produtividade se originou da
organização do trabalho, e não do aumento das habilidades
individuais;

15
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

– mudanças culturais no trabalho: os novos trabalhadores das


indústrias ainda estavam acostumados com o trabalho agrícola
e o artesanato. Os industriais tiveram de impor uma disciplina
desconhecida por esses trabalhadores, os quais tiveram que se
submeter ao controle externo, exercido por capatazes;
– produção de bens em grande quantidade: as máquinas au-
mentaram o ritmo da produção e a quantidade de bens pro-
duzidos, além de possibilitarem a homogeneização (todos
os bens saem iguais das máquinas, diferentemente dos bens
feitos artesanalmente);
– surgimento de novos papéis sociais: começa a se deinir um
contorno distinto para o capitalista (o empresário é dono das
empresas e das máquinas, compra o trabalho dos outros) e
para o operário (o trabalhador não possui nada além de sua
força de trabalho e precisa vendê-la para se sustentar).
Vamos continuar entendendo o contexto histórico que propiciou o
surgimento da Sociologia?
Nessa mesma época da Revolução Industrial (séc. XIX), houve um
processo de revitalização da universidade, que se tornou, deinitivamente,
o lugar do saber por excelência. Com isso, coniguraram-se a disciplinari-
zação e a proissionalização do conhecimento. Como as ciências naturais
nunca precisaram deste espaço institucionalizado para desenvolver seus
trabalhos, pois sempre tiveram apoio dos governos, as transformações que
aconteceram com a universidade foram fundamentais para abrir espaço às
ciências humanas e marcar distinções entre ciências naturais e humanas.
As mudanças provocadas pelas duas grandes revoluções europeias, a
expansão do capitalismo (e, com ele, os interesses antagônicos) e a revitali-
zação da universidade nos séculos XVIII e XIX – período conhecido como
Iluminismo –, podem ser consideradas o cenário que contextualiza as ori-
gens das ciências sociais que surgem, exatamente, nesse período marcado
por essas transformações do meio social. De posse dessas informações so-
bre a contextualização histórica do surgimento da Sociologia, podemos se-
guir adiante para compreendermos algumas das características dessa ciência
e o processo do seu desenvolvimento e consolidação como uma das formas
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de compreensão da relação do homem com o seu meio social.

Antagônico: oposto, contrário

16
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

1.1.4 O surgimento e o desenvolvimento da Sociologia


A Sociologia é uma ciência e seu surgimento e consolidação como
tal, juntamente com suas especiicidades e seus métodos próprios de in-
vestigação, diferenciam-na dos saberes do senso comum, proferidos por
nós quando analisamos nossos comportamentos e experiências interpes-
soais. Entendemos como senso comum ou conhecimento espontâneo o
conhecimento que se acumula no nosso cotidiano (cheio de certezas e
explicações imediatas) e que é transmitido de geração a geração por meio
de nossos hábitos, costumes e tradições. Dessa maneira, acabamos repro-
duzindo ideias que não são nossas, mas que são assimiladas e tomadas por
nós como verdadeiras, por isso temos sempre uma opinião a respeito de
assuntos que muitas vezes nem conhecemos.
O homem sempre se preocupou em compreender a si mesmo e o
universo, mas foi somente no século XVIII, com uma série de eventos
que ocorreram na Europa e transformaram profundamente as estruturas
da sociedade, suprimindo os pilares do velho regime feudal, incluindo o
movimento intelectual do Iluminismo na França, que a “ciência” pôde se
impor como uma maneira de pensar o mundo isenta dos pressupostos de-
terminantes da religião e da tradição. Neste período, ocorreu também uma
profunda valorização do homem, voltada para a crença na razão humana e
nos seus poderes.
Mais tarde, já no século XIX (1801-1900), com a Revolução Fran-
cesa, o pensamento sistemático sobre
o mundo social foi acelerado,
assim como a necessidade dos O senso comum
e a ciência são duas formas
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homens de compreender os de conhecermos e explicarmos a


inúmeros problemas so- realidade. Enquanto o senso comum
ciais decorrentes do pro- caracteriza-se pelo conhecimento que
adquirimos em nosso cotidiano e que pode ser
cesso de industrialização.
verdadeiro ou não, a ciência busca entender as
Sendo assim, podemos razões e o porquê do acontecimento de determi-
dizer que a Sociologia nados fenômenos. A Sociologia é uma ciência;
surgiu sob as condições portanto, difere do senso comum.

das mudanças que deriva-


vam principalmente do declí-
nio do feudalismo, do fortaleci-
mento do comércio e do surgimento
de novos papéis sociais/especialização.

17
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Enim, com a consolidação do sistema ca-


Conexão:
pitalista de produção, surgia uma nova Você já assistiu ao filme A
mentalidade, em que a razão e o saber se lenda do cavaleiro sem cabeça?
Nele, você poderá observar as
voltavam para o mundo terreno. inúmeras dificuldades da ciência em ser
As ciências existentes não apre- aceita como uma forma de conhecimento
da realidade, como um campo de pes-
sentavam explicações convincentes nem quisa e produção de conhecimento.
mesmo o instrumental necessário para
a compreensão de todas estas mudanças.
Necessitava-se, então, de uma nova ciência
(utilizando o mesmo referencial das ciências
naturais) para tentar fazer isso.
Vamos entender, então, a que se propõe a Sociologia e o históri-
co do seu desenvolvimento?
Turner (2003, p. 14), airma que o objetivo da Sociologia é tornar
as compreensões cotidianas mais sistemáticas e precisas, pois essas
percepções vão além de nossas experiências pessoais. A Sociologia
busca compreender todos os símbolos culturais que os seres humanos
usam e criam para interagir com a sociedade e organizá-la. “É o estudo
dos fenômenos sociais, da interação e da organização social.” De for-
ma diferente do que as outras disciplinas fazem, ao estudar os aspectos
sociais da vida do homem, a Sociologia estuda o fato social em sua
totalidade, ou seja, a visão sistêmica do pesquisador deve lhe dar con-
dições de perceber que cada ação social não está isolada na sociedade,
mas sim que faz parte de um todo interligado, interferindo e sofrendo
interferências.
Para o sociólogo, o fato social é estudado não porque é econômi-
co, jurídico, político, educacional ou religioso, mas porque é “social”
e inclui tudo isso independentemente da especiicidade de cada um. O
pressuposto básico de uma análise sociológica é que a vida dos seres
humanos é composta por várias dimensões que se desenvolvem com o
processo de interação social. Justamente estas interações sociais são o
objeto central de estudo da sociologia. (DIAS, 2005).
No período do surgimento da Sociologia, a visão mecani-
cista/cartesiana do mundo no século XVIII se estabelecia firme-
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mente, assim foi inevitável que a física se tornasse, naturalmen-


te, a base de todas as outras ciências, inclusive da Sociologia.
Dessa forma, na tentativa de compreender as condições das mudanças
que ocorriam nas sociedades europeias e de conhecer suas prováveis con-
18
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

sequências, era premente que surgisse


uma ciência da sociedade, a qual foi O nome Sociolo-
gia foi proposto por Auguste
proclamada como “física social”.
Comte, em substituição ao termo Física
O nascimento da Socio- Social, acreditando ser possível submeter a
logia é atribuído tanto a Saint- ciência da sociedade aos mesmos pressupostos
metodológicos advindos das ciências naturais.
Simon (1760-1825) quanto a Acreditava também que descobrir as leis da organiza-
Augusto Comte (1798-1857), ção da sociedade poderia significar a reconstrução de
uma estrutura social mais humana. Seu pensamento
ambos franceses, que procura- enfatizava a sociedade europeia como exemplo de
vam uma “física social” com evolução, defendendo a proposta da ordem e do
progresso em oposição aos conflitos sociais
métodos baseados nas ciências presentes neste contexto (influência do
naturais, de forma a encontrar leis positivismo).
universais que regessem os fenô-
menos sociais. O conhecimento destas
leis permitiria, segundo Comte, controlar o
destino do mundo – daí sua famosa fórmula Prévoir pour pouvoir (prever
para poder), que relete, na verdade, o pensamento positivista que atribui
à ciência a capacidade de prever e de controlar a ação. A Sociologia nasce
com o positivismo. Mas o que é isso, exatamente? REPRODUÇÃO
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Augusto Comte

19
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

1.1.5 O positivismo
O positivismo pode ser considerado o berço que embala a Socio-
logia há mais de um século, desde o seu nascimento. Assim, conhecer a
história da Sociologia exige um conhecimento básico do positivismo, so-
bretudo por ele ser considerado um conjunto de pensamentos e ações que
formam o sistema de vida típico do século XIX, mais do que apenas uma
doutrina.
Os positivistas eram pensadores conservadores que se preocupa-
vam com a ordem, a estabilidade e a coesão social e consideravam que
a sociedade moderna era dominada pela desordem, pela anarquia. Eles
enfatizavam a importância da disciplina, da autoridade, da hierarquia, da
tradição e dos valores morais para a conservação da vida social. A inluên-
cia da doutrina positivista icou marcada na bandeira do Brasil pelo lema
“Ordem e progresso”.
Diante das transformações sociais que ocorriam no século XIX, eles
viam a necessidade de criar uma ciência que resgatasse os princípios con-
servadores, e não uma que objetivasse mudanças. Augusto Comte dividia
hierarquicamente a ilosoia positiva em cinco ciências: astronomia, físi-
ca, química, isiologia e física social.
O “físico social” deveria, para Comte, buscar constantemente as leis
universais imutáveis nos fenômenos sociais, à semelhança do que ocorria
na física. Todos os fenômenos estudados deverim ser observados, experi-
mentados, comparados e classiicados, para serem considerados verdadei-
ros e cientíicos.
As características mais importantes do positivismo são:
– empirismo: submissão da imaginação à observação, à experi-
mentação e à comparação;
– classiicação dos fenômenos sociais da maneira como é feita
com os fenômenos naturais;
– a ciência tem como função principal a capacidade de prever;

Emprirismo: doutrina filosófica que encara a experiência


sensível como a única fonte fidedigna de conhecimento. O filósofo
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empirista baseia-se na observação e na experimentação para decidir o


que é verdadeiro. Chega a conclusões através do emprego do método
indutivo, baseado no que observou.

20
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

– o espírito humano deve investigar sobre o que é possível co-


nhecer, eliminando a busca das causas;
– o conhecimento cientíico positivo deve buscar a certeza, a
precisão e a ordem;
– valorização das especializações e horror ao ecletismo.

Como podemos perceber, a Sociologia surgiu como uma ciência


social que tinha as ciências naturais como modelo, e os princípios do
positivismo eram a maior representação disso. No esforço de organizar
e estabilizar a nova ordem social que surgia, parecia que, quanto mais
exata, positiva e neutra fosse a ciência,
melhor seria. De
Pense: pode uma ciên- um modo geral,
podemos dizer que as ciên-
cia exata e neutra entender cias humanas se diferenciam das
e explicar a sociedade e ciências naturais pelo fato de o homem
os homens nas relações ser, ao mesmo tempo, sujeito e objeto da
investigação. Quando estudamos a sociedade,
sociais? o comportamento social e as várias formas de
Embora não seja interação social, somos, ao mesmo tempo, os in-
desejável traçar linhas vestigadores da realidade social e os membros
que compõem esta mesma realidade.
precisas que dividam a
Sociologia em outras áreas
de estudo, ela é uma ciência
que precisa de métodos pró-
prios, na medida em que o seu obje-
to de estudo, ao contrário dos objetos da física,
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está em constante transformação.

As ciências sociais diferem das ciências naturais em dois aspectos


essenciais:
1) consideram que as sociedades são criadas e recriadas pelas ações
humanas o tempo todo;
2) entende que a sociedade é historicamente construída.

Ecletismo: diferentes gêneros ou opiniões. Método que reú-


ne teses e sistemas diversos. Método filosófico dos que não seguem
sistema algum, escolhendo de cada um a parte que lhes parece mais
próxima da verdade.

21
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

As formas de organização social que existem hoje não foram sem-


pre assim, pois a sociedade não é estática.
Pense, por exemplo, na estrutura familiar do século XIX e na dos
dias de hoje. Com o passar do tempo, de forma geral, as mulheres con-
quistaram o direito de trabalhar fora e de não mais desempenhar apenas o
papel de mãe e de esposa dependente do marido. Elas se casam mais tarde
ou nem se casam e muitas optam por não ter ilhos. Elas, hoje, podem
escolher o marido e não mais esperar um casamento arranjado pelos pais.
Também não é necessário que as uniões sejam legalizadas no casamento
civil ou que todos os casamentos sejam feitos com cerimônias religiosas.
É muito comum que casamentos infelizes sejam desfeitos, e a mulher se-
parada não gera mais tantos comentários perante a sociedade. O modelo
de família nuclear clássico composto pelo pai, pela mãe e pelos ilhos
não é mais o modelo predominante. Hoje, é comum escutarmos casos de
crianças que vivem um pouco na casa do pai e um pouco na casa da mãe.
Os pais separados formam outras famílias. Os casamentos de homossexu-
ais começam a ser legalizados em alguns países; em outros lugares, nem
mesmo chegaram a ser condenados ou proibidos. Casais de homossexuais
adotam crianças e formam uma família.
Você está percebendo como as sociedades mudam sua forma de se
organizar, seus valores e mesmo suas normas?
A sociedade é construída e modiicada pelos seres humanos diaria-
mente. Assim, o ser humano e a sociedade são “objetos” de estudo em
mutação. Com o passar do tempo, foi-se percebendo que, para estudar as
sociedades, não era suiciente tratá-las como se fossem coisas.
Imagine o seguinte: você deixa quatro cadeiras na sala de sua casa
e viaja por dois anos. Quando você chega de volta e abre a porta da sala, o
que você vê? As quatro cadeiras exatamente no mesmo lugar em que você
as deixou. Claro que isso vai ocorrer se ninguém entrar na sua casa, se não
acontecer nenhum terremoto ou outros fatores externos. Agora, imagine uma
sala com quatro pessoas e você faz o mesmo procedimento: sai para viajar
por dois anos. Quando você volta, o que terá acontecido? As pessoas estarão
no mesmo lugar, sem mudar nada, nem fazer nada, como se fossem cadeiras?
Claro que não, pois as pessoas não são coisas, são seres sociais que transfor-
mam seu ambiente enquanto estabelecem relações sociais entre si.

Estática: imóvel, parada

22
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

Então, a Sociologia, que nasce no século XIX para entender as novas


características da sociedade depois das Revoluções Industrial e Francesa,
não poderia continuar sempre entendendo os homens como coisa, assim
como a química entende os componentes da matéria. Além de seu objeto
estar sempre mudando, a Sociologia tem outra característica que a diferen-
cia das ciências naturais e exatas: o pesquisador (cientista social) é também
objeto de estudo da sua ciência. Ao mesmo tempo em que o sociólogo ob-
serva um fenômeno social, procurando compreendê-lo, ele está sofrendo
inluências da sociedade. Ele não é neutro diante de seus estudos, por mais
que procure ser objetivo, ou seja, ir direto ao ponto central da questão, sem
rodeios ou inluências de sentimentos pessoais. Quando se airma que o
cientista social deve ser objetivo, isso signiica que, mesmo sendo humana-
mente possível, ele não deve se deixar inluenciar por suas próprias crenças
e valores. Mas isso é muito difícil, se não impossível. Por exemplo, se o so-
ciólogo tem preconceitos em relação aos negros, ica maior o desaio, para
ele, de desenvolver um estudo “neutro” sobre o racismo. Se o sociólogo
acha que a homossexualidade é uma aberração da humanidade, ica mais
difícil para ele ser “objetivo” num estudo sobre esse tema.

O caminho que liga ser humano e sociedade é um caminho de


mão dupla: ambos relacionam-se, complentam-se,
formam-se e tranformam-se.

HOMEM SOCIEDADE
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1.2 Iniciando nossa incursão pela antropologia


1.2.1 Começo
Efetivamente, o desenvolvimento da antropologia enquanto dis-
ciplina acadêmica foi um processo gradual relacionado a personagens e
condições particulares. Uma destas circunstâncias diz respeito à coleta
de artefatos e informações sobre os então chamados “povos primitivos”
e a organização de coleções etnográicas em museus nacionais da Euro-
pa e Estados Unidos no século XIX. Os objetos e dados coletados por
viajantes, missionários e funcionários dos Impérios Coloniais na África
23
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

e América eram classiicados e catalogados por eruditos que se tornaram


reconhecidos como especialistas em “sociedades primitivas”. A primeira
geração de antropólogos estava, assim, vinculada aos museus e atrelada
aos seus gabinetes, de onde formulavam suas teorias e grandes generali-
zações sobre povos remotos, com os quais, salvo raras exceções, efetiva-
mente nunca tinham tido contato, mas dispunham de informações compi-
ladas por terceiros.
A marca deste período formador da antropologia é o predomínio do
paradigma evolucionista. O evolucionismo pressupunha a existência de
uma história universal e linear rumo ao progresso, porém, os diferentes
grupos humanos se encontravam em fases desiguais de desenvolvimento. A
sociedade ocidental europeia encarnava o nível mais adiantado de progresso
alcançado pela humanidade, enquanto os demais povos, do Oriente, África,
América e Austrália, ainda estavam nos estágios inferiores da evolução. O
que estes teóricos concebiam ser “a civilização” – e que correspondia evi-
dentemente à sua própria sociedade – ostentava a forma mais complexa de
cultura e organização social conhecida, marcada, entre outros traços, pela
presença do pensamento cientíico, da propriedade privada, do governo,
da religiao monoteísta e do casamento monogâmico. Por outro lado, o que
identiicava os povos chamados de selvagens ou primitivos, segundo os
evolucionistas, era justamente a ausência dos predicados previamente cita-
dos: sem escrita, sem Estado, sem economia de mercado, sem ciência, e daí
por diante. Vivenciando uma condição de atraso, tais povos apresentariam
conigurações mais simples de parentesco, tecnologia e crenças. Suas leis
consuetudinárias1, comunismo, economia não-monetária, magia, organiza-
ção clânica e linhagens representavam as formas elementares das institui-
ções humanas. No comentário perspicaz de Joannes Fabian, era como se
europeus e “primitivos” compartilhassem o mesmo espaço, porém, não o
mesmo tempo; as sociedades encontravam-se justapostas no espaço, mas
não eram coevas, ou seja, não viviam o mesmo momento da história huma-
na. Os evolucionistas olhavam para os africanos, ameríndios2 e indianos, e
viam neles o passado da humanidade (Fabian, 1983).
Dentre os mais notórios representantes da antropologia evolucionista,
estão os britânicos Edward B. Tylor (1832-1917) e James Frazer (1854-
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1941), e o norte-americano Henry Morgan (1818-1881). Instituições como o

1 Leis consuetudinárias: leis impostas pela tradição, pelo costume, não escritas. Clãs e linhagens: são formas de
agrupamento social encontradas nas sociedades “tribais”.
2 Ameríndio: termo que designa o índio das Américas.

24
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

direito, o parentesco, a magia e a religião iguravam entre os temas que mais


despertavam o interesse destes teóricos. Extraídos de seu contexto social de
origem e uso, os elementos e características de cada uma destas instituições
eram separados e classiicados dos mais simples aos mais complexos, sendo
então dispostos em uma escala evolutiva. Crenças mágico-religiosas, técni-
cas, instrumentos e formas de organização social eram associados a estágios
inferiores ou superiores da evolução da humanidade. Segundo a teoria de
Morgan, por exemplo, todos os grupos humanos poderiam caber em uma
linha imaginária do tempo que partia da condição de selvageria, passava pela
de barbárie e atingia a civilização (ERIKSEN;NIELSEN, 2007).
Evidentemente, ao postular a irracionalidade e inferioridade das
manifestações culturais dos povos do Novo Mundo, os evolucionistas
não trouxeram análises muito satisfatórias sobre o funcionamento e o
signiicado de suas instituições, como por exemplo, a magia. Entretanto,
ainda assim contribuíram decisivamente para que a humanidade dos po-
vos selvagens deixasse de ser colocada em dúvida, demonstraram que tais
homens não viviam segundo leis da natureza, mas obedeciam às normas
de sua organização social, reconheceram a legitimidade da cultura destes
povos e impuseram a relevância cientí-
ica de seu estudo.
Conexão:
Apesar de suas ambi- Uma das obras mais represen-
ções pouco modestas – nada tativas da obsessão evolucionista com a
elaboração de grandes compêndios de costu-
menos do que inventariar mes “exóticos” é a monumental obra de 12 volumes
a diversidade dos costu- de James G. Frazer, O Ramo Dourado (1890), que na
época, foi, inclusive, responsável por levar a antropologia
mes sociais e escalonar para um público mais amplo. A ela, Eriksen e Nielsen assim
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as sociedades humanas, se referem: “The Golden Bough é uma extensa investigação


comparativa da história do mito, da religião e de outras ‘cren-
por exemplo – e dos seus ças exóticas’, com exemplos tirados de todas as partes do
resultados pouco expres- mundo. Como muitos evolucionistas, Frazer acreditava num
modelo de evolução cultural em três etapas: um estágio
sivos no tocante a um
‘mágico’ é seguido por um estágio ‘religioso’ que dá
verdadeiro entendimento lugar a um estágio ‘cientíico’” (Eriksen e Nielsen,
da realidade vivenciada pe- 2007, 38).

los nativos, os evolucionistas


lançaram as bases da nova discipli-
na. Contudo, é por meio das inovações
teórico-metodológicas lançadas nas primeiras décadas do século XX que
a antropologia transmuta-se em ciência social moderna.
O rompimento deinitivo com a abordagem evolucionista é manifes-
to através de duas operações essenciais. Por um lado, perde centralidade a
25
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

dicotomia civilização/barbárie. Parece claramente insatisfatória a atitude


de eleger a civilização ocidental como medida e modelo de desenvol-
vimento a partir do qual todas as outras formas de sociedade devem ser
avaliadas e rotuladas. Por outro lado, deixa de igurar como obrigatória
a análise diacrônica da cultura, ou seja, os fenômenos culturais não mais
precisam ser situados no eixo da história para terem suas características
reconhecidas e apreciadas. O costume nativo passa a interessar não mais
como exemplar de uma etapa da evolução social, nem como prova da
irracionalidade de grupos humanos mais atrasados, mas sim como um
elemento que ao lado de outros, constitui parte de uma cultura ou organi-
zação social, e é esta totalidade que cumpre estudar e reconstituir.
Por outro lado, emerge também uma nova atitude com relação à prá-
tica de investigação, fruto de uma preocupação com as condições de coleta
do dado etnográico, com a origem dos relatos e a construção da base em-
pírica da relexão antropológica. Passa a haver um interesse pela realização
de pesquisa de primeira mão e pelo testemunho direto da vida nativa.
Tais mudanças têm alguns marcos. Em 1898, é organizada a famosa
Expedição Cambridge ao Estreito de Torres que possibilitou a realização
de pesquisa de campo entre os povos melanésios das ilhas entre a Austrá-
lia e a Nova Guiné. Coordenada pelo zoólogo A. C. Haddon, entre seus
membros estavam: o psicólogo W. H. R. Rivers e o médico C. G. Selig-
man (STOCKING, 1992). O historiador George Stocking refere-se a estes
pesquisadores com formação proissional em outras áreas, mas pioneiros
nos estudos etnográicos, de “geração intermediária”.
Neste momento, já se estabelece um rigor metodológico na compilação
de dados etnográicos e inicia-se a tendência do mesmo proissional assumir
tanto a tarefa de investigação quanto de análise da vida nativa. Até então, as
coisas funcionavam de outro modo, como bem explica Godfrey Lienhardt:

Nos primeiros dias da Antropologia, as qualidades de um estudioso


que se empenha em coligir boas informações e as qualidades que
levam à uniicação e síntese dessas informações raramente se reu-
niam na mesma pessoa (LIENHARDT, 1965, p 35).
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Dito de outra forma, as iguras do pesquisador e do teórico, que


no evolucionismo permaneciam apartadas, começam a ser uniicadas
(CLIFFORD, 2008). Este movimento se concretiza de forma lapidar no
trabalho de Bronislaw Malinowiski (1884-1942), o polonês que veio para
26
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

Londres estudar com Seligman, na London School of Economics, em


busca da oportunidade de realizar trabalho de campo em regiões remotas
do mundo. Em 1922, ele publica Os Argonautas do Pacíico Ocidental,
monograia que é fruto do seu trabalho de campo nas Ilhas Trobriand no
continente australiano, entre 1915 e 1918.
São bem famosos e amplamente citados os trechos da introdução do
livro quando Malinowiski aproxima o leitor da singularidade da experi-
ência etnográica, relatando sua chegada à aldeia e seu primeiro encontro
com os trobriandeses. Assim inicia ele:
“Imagine o leitor que, de repente, desembarca sozinho numa praia
tropical, perto de uma aldeia nativa, rodeado pelo seu material, enquanto a
lancha ou pequena baleeira que o trouxe navega até desaparecer de vista”.
E depois segue:

Imagine, agora, o leitor, entrando pela primeira vez na aldeia, sozinho


ou na companhia do seu cicerone branco. Alguns nativos juntam-se em
seu redor, especialmente se pressentirem que há tabaco. Outros, mais
distintos e idosos, mantêm-se sentados onde estão. O seu companheiro
branco tem a sua forma habitual de lidar com os nativos e não compre-
ende, nem parece querer compreender, a maneira como você enquanto
Etnógrafo, os terá de abordar” (MALINOWISKI, 1984, p.19-20).
WWW.VANDERBILT.EDU
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Bronislaw Malinowski com os Trobriandeses.

O trabalho desenvolvido por Malinowiski converte-se no modelo


de pesquisa etnográica por excelência. Ele se desloca para a aldeia para
viver entre os nativos, participar de seu cotidiano, acompanhar cerimônias
rituais e transações econômicas, observar a conduta dos indivíduos e a
27
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

realidade concreta da “tribo”. Ou seja, ele oferece uma receita metódica:


primeiro a observação e o registro detalhado dos fatos etnográicos, e de-
pois, a elaboração dos dados, com o antropólogo escrevendo o que teste-
munhou, analisando as instituições e o comportamento dos nativos.

1.2.2 Método
A centralidade do método etnográico para a antropologia tende a
ser tão pronunciada que chega a constituir parte do que tradicionalmente
deine a disciplina. Como vimos, a pesquisa de campo intensiva nasce
com a moderna antropologia e torna-se uma exigência tanto para a con-
fecção de monograias sobre os povos “exóticos” quanto para a legitima-
ção do saber produzido sobre o outro. Mas, em que consiste tal método?
Teria esse método sofrido transformações desde que foi instituído?
Em primeiro lugar, a ideia de pesquisa de campo implica que o pes-
quisador se desloque para o lugar que lhe propiciará o contato direto com
seu objeto de estudo, ou seja, ele vai a campo e lá permanece o intervalo
de tempo necessário para testemunhar os fatos que deseja interpretar ou
analisar. Tradicionalmente, o “campo” do antropólogo era uma “aldeia”,
em geral na África, América ou em uma ilha do Pacíico. Hoje, o lócus da
investigação etnográica pode ser uma empresa, um hospital ou mesmo um
arquivo. O campo se refere ao lugar ou cenário onde o antropólogo procede
às suas observações. Em segundo, as notórias palavras de advertência de
Clifford Geertz: “Os antropólogos estudam nas aldeias e não as aldeias”.
Esta distinção é cabal porque o que interessa é o que o pesquisador
procura, para quais fatos dirige seu olhar investigativo, que perguntas faz
e que teoria lhe guia. Com efeito, o próprio modo como os antropólogos
tendem a falar contribui para certa confusão, eles dizem “Evans-Pritchard
estudou os Nuer”, o que signiica que Evans-Pritchard realizou pesquisa
de campo na aldeia dos Nuer e escreveu sobre sua economia, parentesco
e até sobre a geograia da aldeia. Mas, é fato também, que o modelo das
monograias clássicas pretendia abarcar boa parte dos (se não todos os)
aspectos da vida social de um povo ou da totalidade de uma cultura, abor-
dando sua economia, relações de parentesco, sistema mágico-religioso,
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poder político. Ao deixar pouca coisa de fora (incluindo até o ambiente


físico, o clima), parecia que era um trabalho sobre a comunidade toda.
Mas, o modelo de estudos seguido se explica por um conjunto de razões.
Primeiramente, pelo fato de que no caso das chamadas “sociedades pri-
28
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

mitivas” e dos “grupos ameríndios”, os diferentes planos da vida social se


articulam ou sobrepõem o que, por exemplo, exige que ao discutir cheia
indígena fale-se também em relações de descendência, ainal, estamos
diante de sociedades que não trazem a marca do processo de racionali-
zação e autonomização das esferas da vida próprio da modernidade, nos
termos de Max Weber. Também faz sentido discorrer sobre clima, vege-
tação e topograia uma vez que nestas formações sociais a agricultura e o
calendário de festas encontram-se associados e por sua vez dependem das
variações climáticas e demais fenômenos naturais, em suma. Em segun-
do lugar, o fato de os antropólogos estarem lidando com sociedades de
pequena escala era algo que favorecia a pretensão de estudá-las em sua
totalidade. Por último, a antropologia demonstraria ter uma vocação para
a abordagem holística da realidade.
Em campo, a técnica privilegiada pelo etnógrafo é a “observação
participante”, que prevê o convívio do pesquisador com a comunidade
perscrutada. A proposta é interagir com as
pessoas e procurar imergir no cotidiano
Conexão:
do grupo social, inclusive através da Outras técnicas também muito
participação em suas atividades e acionadas na pesquisa de campo são
o estudo de caso e a história de vida. Esta
eventos. Não somente conversar última modalidade, como a própria terminolo-
com as pessoas, fazer perguntas gia sugere, centra-se na reconstrução da traje-
tória de vida de uma pessoa, geralmente a partir
e entrevistas, mas viver a rotina
de sua narrativa, mas também de documentos e
do grupo implica o engajamen- registros. Já o estudo de caso propicia a análise
to em atividades como a caça, a focalizada de um assunto e a abordagem
intensiva de uma realidade particular. O pro-
pesca, os rituais, as celebrações, pósito é aprofundar uma situação social,
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as refeições. Durante sua estadia em discutindo suas várias dimensões


e implicações.
campo, o etnógrafo escuta, observa,
colhe dados, presta atenção aos detalhes e
anota. Suas anotações constarão de um caderno
de campo.
Na produção das monograias clássicas – obras como Os Nuer de
Evans-Pritchard e Andaman Islanders de Radcliffe-Brown – o esquema
seguido era mais ou menos o mesmo. O antropólogo se deslocava para
uma região distante do seu mundo familiar para viver junto a grupo social
exótico durante o intervalo de um a dois anos. Ele devia aprender a língua
nativa, evitando o uso de intérpretes, mas costumava também se servir de
alguns informantes preferenciais. Ao estabelecer relações concretas com
os indivíduos, esperava-se que o antropólogo, distanciando-se tanto quan-
29
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

to possível dos valores de sua própria sociedade, fosse capaz de tornar in-
teligíveis as instituições e os costumes das chamadas sociedades primiti-
vas, oferecendo uma descrição genuína da cultura nativa em seus próprios
termos, e procurando mesmo capturar o ponto de vista nativo. Finalmente,
as etnograias, então produzidas, eram, como já foi mencionado, estudos
abrangentes que buscavam dar conta de todas as dimensões de uma socie-
dade desde o parentesco até a economia.
Predominou ainda nas monograias clássicas a perspectiva sincrôni-
ca, ou seja, a análise da sociedade no tempo presente. A proposta destes
trabalhos era oferecer um retrato da sociedade, um relato dos vários as-
pectos da vida social real de um grupo no momento em que transcorriam
e eram observados pelo antropólogo. Artifícios como o uso do presente
do indicativo e a eliminação da perspectiva histórica congelam a ação,
suspendem o tempo e criam a ilusão de que o objeto da descrição é con-
temporâneo ao leitor. Esta convenção narrativa icou conhecida como
“presente etnográico”.
O autor de algumas das etnograias mais admiráveis da Antropolo-
gia Social Britânica, Sir. Edward E. Evans-Pritchard, teceu alguns comen-
tários valiosos acerca do trabalho de campo a partir de relexões sobre sua
experiência pessoal. Evans-Pritchard insiste na importância de distinguir
entre as ideias preconcebidas dos leigos a respeito das sociedades primiti-
vas, as quais costumam ser desinformadas e preconceituosas, e, portanto,
devem ser sim descartadas, e as ideias que o antropólogo leva para campo,
as quais são fruto do seu conhecimento cientíico e treinamento teórico.
Ou seja, para ele é crucial que, como ocorre com qualquer outro pesqui-
sador, o antropólogo inicie sua investigação orientado por um interesse
teórico e que colha dados para testar hipóteses previamente formuladas a
respeito da realidade estudada.
Em contrapartida, ele ressalta que o encontro com a sociedade pes-
quisada é sempre decisivo e pode redirecionar a abordagem para assuntos
nem de longe suspeitados antes da incursão ao campo. Sua opinião, bom
base em seu próprio caso, é que o antropólogo deve se deixar conduzir
pelo que encontra em campo. Assim, Evans-Pritchard confessa:
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Eu não tinha interesse por bruxaria quando fui para o país zande,
mas os Azande tinham; e assim tive de me deixar guiar por eles.
Não me interessava particularmente por vacas quando fui aos

30
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

Nuer, mas os Nuer, sim; e assim tive aos poucos, querendo ou não,
que me tornar um especialista em gado (EVANS-PRITCHARD,
2005, 204-205).

1.2.3 Alteridade e etnocentrismo


Falar em alteridade é falar sobre a condição de ser do “outro” e,
portanto, é algo que diz respeito ao jogo identidade/diferença. Sistemas
de alteridade articulam a oposição “nós”/”eles” segundo uma gradação da
diferença e podem conceber “outros” próximos (o vizinho), distantes (o
estrangeiro; o primitivo) e absolutos (a natureza, os mortos). Do ponto de
vista humanista, por exemplo, os animais encarnariam a alteridade máxima.
No panorama das ciências sociais, a antropologia é a discipli-
na que institui a alteridade como seu objeto de estudo. Consiste em um
saber que se arvora a competência de revelar a verdade do “outro”, de
tornar uma outra realidade inteligível,
de traduzir a diferença em termos
Conexão:
familiares ou interpretar uma Mesmo atualmente, com as mu-
visão de mundo diferente. danças no regime de alteridade com o qual
a antropologia trabalha, Mariza Peirano defende
Em outros termos a tarefa que a noção permanece central à disciplina. Hoje,
da antropologia já foi dei- deixou de prevalecer entre as antropologias metropolita-
nas a exigência de que o antropólogo viaje ao além-mar para
nida de diversas maneiras um encontro com uma “alteridade radical”. Também, no caso
– tradução, interpretação, da tradição brasileira, deu-se a inclusão de objetos de estudo
decodiicação, represen- mais “próximos”, além da consagrada preferência pela população
indígena – representação máxima da diferença por aqui. Contu-
tação – mas o problema do, mesmo na chamada “antropologia feita em casa”, trata-se
de investigar um “outro”, ainda que próximo, e a questão da
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da alteridade se manteve.
construção da distância, ainda que mínima, permanece
É significativo que central. Assim, Peirano observa que a alteridade mu-
as próprias condições que dou de dimensão, mas não foi eliminada porque
é um aspecto fundante da disciplina, sem o
permitiram o florescimento qual ela não pode se reconhecer
da antropologia, no século XIX, (Peirano, 1999).
envolvam um ambiente intelectu-
al em que a noção de alteridade ganhava
proeminência, ainal o contexto era o de confronto com o exotismo dos
povos do além-mar – contatados alguns séculos antes. A construção do
imaginário europeu sobre o “outro” se forjou ao longo de séculos de nar-
rativas de viajantes e conquistadores em um extenso período que cobre os
descobrimentos, a conquista da América, o estabelecimento dos Impérios
Coloniais, a organização do empreendimento missionário. Mas qual era a
31
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

imagem dos povos do Novo Mundo que prevalecia na época? Eles eram
representados ora como seres irracionais, infantis e tolos, ora como mons-
tros, seres bestiais e perigosos. O ponto de partida era sempre o contraste
com a civilização europeia, o que determinou que os chamados “primiti-
vos” fossem encarados tanto pela ótica da falta: sem roupa, sem escrita e
sem Estado, quanto pela ótica do desregramento: sexualidade desviante,
canibalismo, crueldade.
Segundo Rapport e Overing, o Ocidente adotou um sistema de alte-
ridade pautado pelo princípio da exclusão. Neste sistema, os processos de
construção da diferença e de caracterização do estranho como monstruoso
implicam na instituição de fronteiras rígidas entre o “nós” e o “eles”, eli-
minando a possibilidade da interação. No discurso dos conquistadores, a
imagem que surge dos povos do Novo Mundo corresponde a uma perfeita
inversão daquilo que os europeus julgam ser a sua própria sociedade. O
selvagem aparece então como a antítese do civilizado o que assegura
que a diferença seja percebida como absoluta. A distância construída é
tão abissal que sugere a negação da humanidade do “outro”. Assim, o
esquema colonial de processamento da alteridade não somente reduziu a
diferença ao exotismo, como promoveu a neutralização de sua potência,
tratando de rebaixá-la para reairmar a superioridade europeia (RAPPORT
E OVERING, 2000).
Contudo, a exclusão e a inferiorização não consistem nas únicas
formas de apreensão da alteridade. Rapport e Overing sugerem que há
também um regime inclusivo da alteridade característico dos índios da
Amazônia. No sistema indígena, o estranho e o desconhecido não deixam
de ser encarados como monstros em potencial (o diferente pode sempre
representar um perigo), no entanto tal sistema enfrenta o problema da
neutralização dos poderes do “outro” prescrevendo como solução a assi-
milação destes poderes, o que no caso de alguns povos implica na prática
do canibalismo ritual. A estratégia para lidar com os perigos da alteridade
consiste na absorção dos poderes do “outro” através da antropofagia – no
exemplo dos guerreiros Tupinambás, isto se dava através da ingestão de
um pedaço do corpo do inimigo (RAPPORT e OVERING, 2000).
Resta pouca dúvida que apesar de se orientarem por princípios opos-
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tos – inclusão versus exclusão –, os dois modelos de enfrentamento da alte-


ridade expostos aqui embutem preconceitos etnocêntricos. Tanto europeus
como indígenas situam suas respectivas sociedades no centro do universo,
identiicando-se como os legítimos humanos e colocando a humanidade do
32
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

“outro” em questão ou percebendo-o como uma criatura monstruosa, um ser


desprezível ou um perigo. E, de fato, não poderia ser de outro modo se acei-
tamos a premissa de Claude Levi-Strauss de que o etnocentrismo é um traço
universal, igualmente compartilhado por todas as culturas. Nenhuma atitude
seria mais característica do gênero humano do que a do grupo que duvida da
humanidade alheia. Nas palavras de Levi-Strauss:

Nas Grandes Antilhas alguns anos após a descoberta da América,


enquanto os espanhóis enviavam comissões de investigação para
indagar se os indígenas possuíam ou não alma, estes últimos dedi-
cavam-se a afogar os brancos feitos prisioneiros para veriicarem
através de uma vigilância prolongada se o cadáver daqueles estava
ou não sujeito à putrefação (LEVI-STRAUSS, 1976, p 60).

Os membros de uma determinada sociedade naturalmente consi-


deram os seus próprios valores, costumes e crenças como os mais corre-
tos e tendem a tomá-los como parâmetro quando são confrontados com
um modo de vida ou uma ideologia diferente. Ou seja, o etnocentrismo
corresponde à avaliação culturalmente centrada que cada grupo faz do
outro. A construção ou representação etnocêntrica do “outro” pode tan-
to rebaixá-lo ao nível dos animais, quanto elevá-lo ao nível dos deuses;
pode tanto negar-lhe atributos humanos de valor, evocando sentimentos
de desprezo e rejeição, como pode imputar ao “outro”, poderes mágicos,
prescrevendo atitudes de medo ou reverência com relação a ele.
Em resumo, se a antropologia nasceu com a promessa de capturar a
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alteridade e torná-la acessível a um “nós” europeu, ocidental, a corrente


evolucionista fez isso sem se livrar do esquema intelectual etnocêntrico
dominante em sua época, continuando a enquadrar a diferença a partir do
princípio da exclusão. De fato, embora o conjunto disforme de exotismo
encontrado no além-mar passasse a ser catalogado e organizado em tribos,
costumes, estágios evolutivos, níveis tecnológicos e até em culturas, o
evolucionismo manteve o rebaixamento da diferença; o “outro” continuou
reduzido a um estatuto inferior.
Porém, logo se tornou evidente que a viabilidade do projeto an-
tropológico de conhecer a alteridade dependia de dois procedimentos
metodológicos essenciais: a objetividade do olhar do etnógrafo e o distan-
ciamento deste com relação aos valores de sua própria sociedade. Estas
duas operações são consideradas etapas básicas para a antropologia se
33
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

libertar da armadilha do etnocentrismo. A disciplina passa a perseguir este


empreendimento, tornando-se neste sentido bem sucedida, por meio do
desenvolvimento do funcionalismo britânico e do culturalismo america-
no, abordados a seguir.
No âmbito do culturalismo, ainda foi forjado um dos antídotos mais
eicazes contra o etnocentrismo (assim como contra racismos e provin-
cianismos ains), tratava-se da atitude de rejeitar o julgamento de outra
cultura com base nos valores da nossa própria. O relativismo cultural pre-
conizou que todas as culturas deveriam ser consideradas igualmente váli-
das e compreendidas em seus próprios termos, já que são os preconceitos
derivados do apego às convenções culturais às quais estamos familiariza-
dos que nos impede de considerar aceitável o comportamento do outro.
Do mesmo modo que nós tendemos a aprovar nossas próprias normas de
conduta, as quais nos parecem absolutamente naturais, qualquer povo se
reconhece em sua cultura, a qual se apresenta como bastante satisfatória
para aqueles que a vivem. Inexiste assim medida absoluta para informar
julgamentos, os valores são relativos e, portanto, a avaliação do costume
do outro com base no que julgamos bom e aceitável representa um obstá-
culo ao conhecimento verdadeiramente antropológico.

1.2.4 Antropologia social britânica


Na Inglaterra, a antropologia se desenvolveu em torno do estudo da
chamada sociedade “primitiva”, deinindo-se enquanto antropologia social.
Seus pais fundadores, Bronislaw Malinowski – já mencionado por conta de
seu pioneirismo no método da observação participante – e Alfred Reginald
Radcliffe-Brown (1881-1955) partiram de uma orientação funcionalista co-
mum, porém, lançaram programas acentuadamente distintos para a disciplina.
A doutrina funcionalista foi em grande medida uma reação ao
evolucionismo. A aposta na análise sincrônica dos eventos sociais se
opunha claramente ao privilégio que as teorias evolucionistas conferiam
ao eixo temporal, sobretudo, atestava a rejeição à história conjetural e às
especulações quanto ao desenvolvimento das sociedades – recursos estes
largamente utilizados nos grandes esquemas evolutivos propostos. Outro
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recurso contestado pelos funcionalistas era a teoria das sobrevivências.


Através dela, os evolucionistas articulavam passado e presente, defenden-
do que certos costumes herdados perdem o signiicado com o tempo e as
mudanças, mas persistem nas sociedades como meros resíduos da histó-
34
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

ria, permanecem como sobrevivências do período em que tiveram alguma


utilidade, sendo estas sobrevivências referenciadas como evidência do
processo evolutivo. A objeção dos funcionalistas com relação à teoria das
sobrevivências é patente, e um efeito direto da proposição central desta
corrente de que tudo no sistema social tem uma funcionalidade. Costu-
mes, instituições, comportamentos não existem ao acaso, nem podem ser
considerados sobras da evolução, se eles continuam em funcionamento na
estrutura social é porque têm um sentido, desempenham uma função den-
tro dela (DA MATTA, 1981; ERIKSEN ; NIELSEN, 2007).
Com efeito, a preferência pelos estudos sincrônicos e a inspiração
no modelo das ciências naturais são aspectos marcantes do funcionalismo
que foram compartilhados por Malinowski e Radcliffe-Brown. Os dois
antropólogos se valiam de analogias com processos biológicos. A socie-
dade podia então ser comparada a um organismo vivo, a um sistema inte-
grado e em equilíbrio em que cada parte funciona para manter este estado
de estabilidade, contribui para sua continuidade. Malinowski aposta que
cada costume desempenha uma determinada função na totalidade social
e dedica-se então a responder para que servem as instituições culturais
dos “selvagens”. Já para Radcliffe-Brown, o objetivo é determinar as leis
estruturais da sociedade. Outro aspecto fundamental é que, enquanto o
programa de Radcliffe-Brown confere primazia ao conceito de estrutura
social (obliterando a questão da ação social), a abordagem de Malino-
wiski se abre para a agência dos indivíduos.
De acordo com a corrente estrutural-funcionalista proposta por
Radcliffe-Brown, a antropologia tem como objeto de investigação as re-
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lações de associação estabelecidas entre os seres humanos, as relações de


pessoa a pessoa, como aquelas entre pais e ilhos. É da observação direta
desta realidade concreta que o antropólogo parte para poder alcançar as
formas gerais, estruturais destas conexões e assim descrever a estrutura
social em operação. Ou seja, o objetivo é identiicar as regularidades a im
de atingir um modelo formal, e assim, as ações observadas só interessam
na medida em que permitem derivar a ocorrência de uma forma geral de
interação que se reproduz independentemente dos sujeitos envolvidos. Na
explicação do próprio Radcliffe-Brown, temos que:

As relações reais de Pedro, João e Antonio, ou o comportamento de


Juca e Zeca podem ser anotados no nosso caderninho de notas e servir
de exemplos para a nossa descrição geral. Mas o que necessitamos
35
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

para ins cientíicos é de uma descrição da forma da estrutura. Por


exemplo, se numa tribo australiana eu observo, em certo número de
casos, o comportamento, uma com as outras, de pessoas que se acham
na relação de irmão da mãe e ilho da irmã, é a im de poder registrar
o mais precisamente possível a forma geral ou normal dessas relações,
abstração feita das variações de casos particulares, se bem que levando
em conta essas variações (RADCLIFFE-BROWN, 1970, p 160-161).

A estrutura social consiste, então, nesta coniguração de tipo mais


estável e constante baseada nas redes de relações sociais de determinada
espécie e instituições sociais existentes. Nas comunidades chamadas tri-
bais, por exemplo, as relações de parentesco permeiam todas as esferas da
vida social e, portanto, constituem uma parte fundamental de sua estrutu-
ra social. Interessado em instituições do mesmo tipo, características por
responder pelo funcionamento, integração e continuidade das estruturas
sociais, Radcliffe-Brown dedicou-se ao estudo de fenômenos como as
sanções sociais e o direito primitivo.
Quanto a Malinowski, é lugar comum na disciplina contrastar den-
tro de sua produção a pobreza das proposições teóricas à riqueza das ob-
servações etnográicas. Uma das grandes censuras dirigidas ao antropólo-
go refere-se à tendência de explicar os costumes dos nativos em função de
sua utilidade prática e do atendimento às supostas necessidades de ordem
orgânica. Assim, perde-se todo um campo para a aplicação da interpre-
tação antropológica, e não podemos suspeitar o que se ganha, a partir de
conclusões decepcionantes como a que segue:

Para ser franco, eu diria que os conteúdos simbólico, representativo


ou cerimonial do casamento têm, para o etnólogo, uma importân-
cia secundária... A verdadeira essência do ato do casamento é que,
graças a uma cerimônia muito simples ou muito complicada, ele dá
uma expressão pública, coletivamente reconhecida, ao fato de que
dois indivíduos entram no estado matrimonial (MALINOWSKI
apud LEVI-STRAUSS, 1973, p 28).
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Mas a pergunta que ica é: “Por que então ir às tribos longínquas?”


ironiza Levi-Strauss.
Por outro lado, a produção etnográica malinowskiana é primorosa.
Os Argonautas do Pacíico Ocidental apresentam um relato detalhado do
36
kula, a cerimônia ritual de troca de presentes dos trobriandeses que en-
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

volve expedições comerciais de diferentes grupos e em que basicamente


circulam braceletes e colares de conchas com grande valor simbólico. O
etnógrafo aborda os vários aspectos destas transações, desde seu caráter
comercial, político, mágico, até a questão do prestígio em jogo. A preser-
vação do termo trobriandês kula denota a preocupação do autor em ser
iel a uma categoria nativa que não possuía equivalente entre as noções
ocidentais (PEIRANO, 1995).
Ao investigar a organização do trabalho e a troca primitiva, Malino-
wiski insistiu na racionalidade da conduta dos trobriandeses. Ele prestou
atenção ao comportamento dos indivíduos, ao que move a ação social,
muito mais do que às relações ou princípios das instituições descritas.
Em sua etnograia, podemos visualizar indivíduos de carne e osso
fazendo cálculos para agir, guiados por seus interesses pessoais, tomando
decisões racionais, falando uma coisa e agindo de modo contrário, deba-
tendo-se com suas paixões e ambições. Por conta destas características de
Os Argonautas, seu autor às vezes é acusado de se prender às motivações
individuais e de pender para explicações psicológicas da conduta cultural.
Apesar de sua rica descrição das instituições sociais trobriandesas, o que
prevaleceria na análise não seria o peso da tradição, mas a força da ação
individual motivada por interesses utilitários (LANNA, 1987). Inversa-
mente, para outros comentadores, é este foco no ator social que responde
por grande parte do fascínio exercido pela obra.

1.2.5 Antropologia cultural


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Nos Estados Unidos, foi o imigrante e judeu alemão Franz Boas


(1858-1942) quem inaugurou a moderna tradição de estudos antropológi-
cos, conhecida como culturalismo americano. Também um dos pioneiros
na condução de pesquisa de campo entre “povos primitivos”, ele reali-
zou expedições para estudar os esquimós da Terra de Bafin e os índios
Kwakiutl da costa de Vancouver. Boas iniciou sua carreira contrapondo-se
à orientação evolucionista dominante na antropologia norte-americana do
inal do século XIX. Foi responsável por elaborar críticas deinitivas tanto
à ideia de evolução social unilinear, quanto à crença de que existiriam di-
ferenças inatas entre a mentalidade de civilizados e a de primitivos, desa-
iando a premissa da inferioridade destes últimos. Coerente com este posi-
cionamento, ao longo da vida, ele também promoveu um ferrenho ataque

37
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

ao conceito de raça, engajando-se em debate públicos contra o racismo e a


favor da igualdade entre os povos.
Além da insatisfação com a classiicação do mundo em povos mais
ou menos evoluídos, em primitivos e civilizados, Boas rejeitava a busca
por leis universais de desenvolvimento social e a derivação de grandes
generalizações a partir da comparação de fatos etnográicos similares, po-
rém, subtraídos de seus contextos sociais. Sua atenção não se voltava para
a elaboração de esquemas gerais, mas ao contrário, para a investigação
das qualidades do particular, para o estudo do caso individual, o que o tor-
na um adepto do individualismo metodológico. Deste modo, interessava-
lhe compreender como uma cultura, reunindo um estoque especial de ele-
mentos, conferia ao todo um signiicado e uma orientação próprios. Seu
problema era saber de que forma a ação de fatores geográicos e processos
históricos podia inluenciar na formação do caráter especíico de determi-
nada coniguração cultural.

Fotograia bem conhecida em que Boas estaria ilustrando o movimento de uma dança que
ele observou em campo.

Um artigo de Boas de 1887, compilado por George Stocking, ilus-


tra uma de suas divergências com os evolucionistas. Nele, Boas discute
os critérios usados para organizar as coleções etnológicas em museus e
critica o sistema adotado pelo curador de etnologia do Museu Nacional
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de Washington, Otis T. Mason, porque, primeiro, divide as invenções hu-


manas como se fossem espécimes biológicos com base em sua aparência
externa. Em segundo, por ser uma classiicação centrada nos objetos e
suas similaridades, o que não esclarece a respeito do estilo de cada grupo.
38
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

O objetivo na forma de arranjo de Mason, ao mostrar diferentes exem-


plares de um tipo de artefato, por exemplo, armas (um conjunto de arcos,
lanças e facas) é sugerir que, porque tiveram causas comuns, invenções
semelhantes podem ser encontradas entre povos muito distantes e podem
ser entendidas sem a necessidade de referência à sua conjuntura “tribal”.
Boas julga que esse procedimento classiicatório é arbitrário e não serve
aos objetivos de uma coleção etnológica, principalmente porque não pro-
picia o entendimento do signiicado, uso e inalidade do objeto dentro do
seu contexto de origem, nem esclarece acerca de suas relações com outros
elementos da cultura em questão. Assim airma ele:

Não podemos compreender o signiicado de um artefato singular se


o consideramos fora do seu ambiente, fora do contexto das outras
invenções do povo a que pertence e fora do contexto dos outros
fenômenos que afetam esse povo e suas produções. Uma coleção
de instrumentos usados para o mesmo im ou feitos do mesmo ma-
terial ensina apenas que o homem em diferentes regiões da Terra
tem feito invenções semelhantes. Por outro lado, uma coleção que
representa a vida de uma tribo permite compreender muito melhor o
espécime singular (STOCKING, 2004, p 87).

A objeção de Boas é com a forma de classiicação museológica sem


potencial explicativo, que não permite a identiicação das características
que compõem o estilo de cada grupo e não favorece a apreensão da cul-
tura como um todo. Seu ponto de vista ica ainda mais claro quando ele
discute o exemplo hipotético de uma disposição de artefatos que combi-
nasse uma coleção de instrumentos como lautas e tambores indígenas e
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instrumentos musicais de uma orquestra moderna. O que tal coleção reve-


laria além do fato de que os povos se servem de meios similares para fazer
música? Segundo ele, não é feita nenhuma contribuição para a questão
principal: as características da música de cada cultura. Nada é dito acerca
dos diferentes estilos musicais que enim é o que determina a produção
dos instrumentos dentro de cada grupo.
Como consequência, para Boas, “a tribo” – ou seja, o conjunto – e
não o objeto – o elemento – deveria ser o critério para a organização das
coleções etnológicas, mesmo porque é só dentro de seu contexto cultural
que um objeto deixa entrever os sentidos que tem para o grupo e pode
receber uma classiicação adequada. Extraído o contexto, algo se perde.

39
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

O chocalho, por exemplo, não resulta simplesmente da idéia de


produzir barulho, nem dos métodos tecnológico aplicados para
atingir esse objetivo. Além disso, resulta de concepções religiosas,
pois qualquer barulho pode ser empregado para invocar ou afastar
os espíritos; o pode resultar do prazer que as crianças sentem com
barulhos de qualquer tipo; sua forma pode ser característica da arte
do povo (STOCKING, 2004, p 90).

Na verdade, ao discorrer sobre como deveria ser o tratamento da


cultura material de um povo pelos museus etnológicos, defendendo a in-
tegração do elemento em seu conjunto cultural particular, o texto em tela
apresenta, como bem observa Stocking, um dos pilares da antropologia
boasiana: a ideia de que cada cultura é uma totalidade que integra e confe-
re signiicado às suas partes.
O argumento de que cada fenômeno cultural corresponde a uma
combinação de elementos segundo uma lógica e uma história próprias e
que, portanto, deve ser estudado individualmente, tornou-se dominante na
tradição americana. Este postulado está na raiz da rejeição dos antropólogos
boasianos ao método comparativo – tendência que radica em outro texto
seminal de Boas, “As limitações do método comparativo” (1895), também
escrito para refutar a forma arbitrária dos evolucionistas compararem traços
de culturas diferentes e a partir disso tecerem generalizações impróprias.
Na trilha do mestre, os alunos de Boas assumiram que a cada povo
corresponde uma cultura com peril particular, ou seja, cada grupo se
destaca por um conjunto de costumes, tradições e instituições. Neste
sentido, merece destaque o trabalho da sucessora de Boas na cátedra de
antropologia da Universidade de Columbia, Ruth Benedict (1887-1948).
Para Benedict, cada cultura escolhe apenas uma pequena porção de traços
do grande arco de costumes e comportamentos humanos possíveis. Esta
combinação original responde pela feição característica que cada conigu-
ração cultural possui, em outros termos, conforma o “espírito” ou “ethos”
de um povo, espécie de “personalidade coletiva” responsável por moldar
uniformemente as emoções dos indivíduos. Cada cultura dá forma aos
seus variados elementos segundo um padrão, uma coniguração. Em cada
uma, as instituições e normas de conduta tendem a uma direção, orientan-
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do seus membros a um determinado temperamento.

40
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

1.3 Cultura: um conceito fundamental.


1.3.1 Natureza e Cultura
Há vários caminhos possíveis para iniciarmos uma relexão sobre as
relações entre natureza e cultura. Uma das vias privilegiadas pela antro-
pologia tem sido a discussão sobre as origens da cultura. Os antropólogos
têm oferecido diferentes explicações para o fenômeno do surgimento da
cultura, para o processo em que o homem se diferencia dos outros prima-
tas. Esta é uma matéria que não tem sido disciplinada pelo consenso.
Uma das conjecturas mais célebres e controvertidas é a formulada
pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss. Segundo ele, a passagem
da natureza para a cultura se dá com o estabelecimento da primeira regra,
da primeira convenção. Uma vez que a natureza corresponde ao reino do
instinto, do universal, do indiscriminado, do comportamento não regrado,
é somente quando o homem institui a primeira convenção que estamos
diante de um fato cultural. A norma por excelência que de acordo com a
tese do autor marca o surgimento da cultura é a proibição do incesto. Con-
siderando que somente o homem disciplina suas uniões matrimoniais e
todos os grupos humanos costumam interditar relações sexuais com deter-
minada categoria de mulheres, o autor conclui que a proibição do incesto
corresponde à norma mais universalmente prescrita, ou seja, trata-se de
uma imposição cultural que devido à sua abrangência quase se transverte
em um comportamento constante, é quase um dado da natureza. Situada
no limiar entre a esfera do universal, portanto, do natural, e o âmbito da
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cultura, ou seja, do ordenamento, do regramento, tal convenção respon-


deria, para Levi-Strauss, pela passagem do estado natural para o humano.
Ademais, impedidos de desposarem suas parentes próximas, os homens
são obrigados a trocarem mulheres, e esta troca recíproca responde pela
gênese da socialidade humana (LEVI-STRAUSS, 1982).
Leslie White (1900-1975), por sua vez, trabalha com a hipótese de
que a origem da diferenciação dos homens com relação aos animais está
na capacidade mental de simbolização. É bem conhecida a airmação dele
de que o homem é o único animal capaz de apreciar a diferença entre
água destilada e água benta. Com efeito, a faculdade de gerar símbolos,
de compreender signiicados atribuídos a objetos, é uma faculdade preci-
puamente humana. O uso de símbolos deine o homem enquanto um ser
cultural (LARAIA, 1996; SAHLINS, 2003).
41
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Outra teoria, hoje completamente desacreditada, admitia, como


explica Roque de Barros Laraia, a ocorrência de “um verdadeiro salto da
natureza para a humanidade”. A ideia é que em determinado momento o
aparelho biológico humano sofreu alterações deinitivas que permitiram
o surgimento repentino da cultura. Conhecida como “teoria do ponto
crítico”, esta hipótese considera que foi somente quando se completou a
evolução orgânica do homem, a partir de uma mudança genética extraor-
dinária é que teve início o desenvolvimento cultural do homem. Todavia,
a natureza não opera por saltos. As grandes mudanças na trajetória evolu-
tiva do homem não ocorreram de repente, mas dependeram de um período
de transição que remete a milhões de anos (LARAIA, 1996).
Os achados da paleontologia3 indicam sim que a aquisição de
capacidades culturais esteve associada ao desenvolvimento do cérebro
humano, porém, ao contrário do que se imaginava, a cultura não teve de
esperar que a caixa craniana do homem atingisse a dimensão atual para
surgir. Com efeito, a evolução dos hominídeos dependeu de uma sequên-
cia longa e complexa de transformações anatômicas como o bipedismo, a
postura ereta, a habilidade manual, a diminuição dos caninos e o aumento
do volume cerebral. O aperfeiçoamento destes processos – e dentre eles,
a complexiicação da organização nervosa, tem a maior importância –
culmina com a aparição do Homo sapiens. A cultura, no entanto, não fez
sua estreia na história da evolução do gê-
nero Homo somente nesta reta inal,
vindo apenas para ornamentar a Conexão:
Aqui, faz-se necessário atentar
existência do novo personagem para algumas categorias taxonômicas. Os
humano. Formas elementares hominídeos correspondem à grande família dentro
da qual se situam os gêneros Homo (que inclui o Homo
de atividade cultural, como sapiens) e Australopithecus (já extinto) e cuja principal ca-
a confecção de utensílios racterística comum é a capacidade de andar sobre dois pés. A
família Hominidae (dos hominídeos), ao lado da família Pongidae
de pedra, já teriam sido (gorilas, chimpanzés, orangotango e gibão), ajudam a constituir
identiicadas entre alguns a ordem mais geral dos primatas. O Australopithecus corresponde
a um ancestral já extinto do homem que integra a família dos ho-
Australopithecus – um
minídeos. Espécie de semi-homens, eles combinam um sistema
tipo primitivo e extinto locomotor bípede semelhante ao humano com uma capacidade
de hominídeo que é an- craniana pequena mais próxima da dos símios. O Homo
sapiens corresponde ao homem moderno. A espécie
terior ao desenvolvimento
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Homo Sapiens faz parte do gênero Homo dentro da


da espécie Homo Sapiens. A família dos hominídeos e integra a ordem mais
abrangente dos primatas.
capacidade craniana do Austra-

3 Paleontologia humana: estudo da evolução do homem através da análise dos fósseis.

42
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

lopithecus corresponde a 1/3 da ostentada pelo homem moderno, mas ele


já fazia uso de ferramentas rudimentares e praticava a caça esporádica de
pequenos animais, o que aponta que ocorreu uma superposição entre o
crescimento do sistema nervoso central humano e o desenvolvimento da
cultura humana (LARAIA, 1996; GEERTZ, p 1989).
Clifford Geertz (1926-2006) é um dos antropólogos que defendem
que na história da carreira do homem de primata a hominídeo evoluído, a
cultura não foi algo acrescentado apenas quando já havia se encerrado o
processo de evolução anatômica e neurológica do homem, mas, de fato,
correspondeu a uma atividade iniciada antes do surgimento do Homo
sapiens, depreendendo-se disso que ela participou do processo de consti-
tuição deste homem. A cultura não somente constitui uma faculdade ad-
quirida pelo gênero humano, os homens também podem ser considerados
o produto da cultura.

O aperfeiçoamento das ferramentas, a adoção da caça organizada e


as práticas de reunião, o início da verdadeira organização familiar,
a descoberta do fogo e, o mais importante, embora seja ainda muito
difícil identiicá-la em detalhe, o apoio cada vez maior sobre os sis-
temas de símbolos signiicantes (linguagem, arte, mito, ritual) para
a orientação, a comunicação e o autocontrole, tudo isso criou para o
homem um novo ambiente ao qual ele foi obrigado a adaptar-se. À
medida que a cultura, num passo a passo ininitesimal, acumulou-se
e se desenvolveu, foi concedida uma vantagem seletiva àqueles in-
divíduos da população mais capazes de levar vantagem – o caçador
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mais capaz, o colhedor mais persistente, o melhor ferramenteiro, o


líder de mais recursos – até que o que havia sido o Australopiteco
proto-humano, de cérebro pequeno, tornou-se o Homo sapiens, de
cérebro grande, totalmente humano (GEERTZ, 1989, p 59-60).

Segundo Geertz, então, o início da vida cultural não desempenhou


um papel coadjuvante na história evolutiva do homem, mas sim ajudou a
orientá-la ao fornecer ao homem sistemas de crenças, símbolos, regras e
instituições para organizar sua existência, controlar seu comportamento
e dirigir suas ações. Por conta disso, ele contesta a visão prevalecente de
que é necessário decompor as camadas culturais, encaradas enquanto me-
ras exterioridades, a im de se chegar à essência humana, e reivindica que
a cultura exerça seu impacto também no conceito de homem.
43
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Lucy: reconstituição a partir de um fóssil feminino de Australopiteco.


A objeção de Geertz se dirige à noção iluminista de “natureza hu-
mana” ou à suposição de que uma deinição verdadeira do homem deve se
ater ao que ele tem de mais natural, universal e genérico, pois os atributos
culturais, as peculiaridades, os traços diferenciais encontrados não repre-
sentariam nada além de ornamentos que colorem ou falseiam uma base
comum estável e constante. Dentro desta lógica, o que deine o homem é
uma essência uniforme, o que compõe a natureza humana é aquilo que se
apresenta constante em todos os grupos humanos, as manifestações mais
gerais e os comportamentos universalmente compartilhados. Por outro
lado, tudo o que é passageiro, variável, peculiar e acidental na existência
humana é descartado. Ou seja, a diversidade cultural, a pluralidade de
crenças e valores, os diferentes costumes e instituições não contam quan-
do se trata de deinir a natureza humana.
Em oposição a esta perspectiva e à tese de que os aspectos mais gerais
da existência humana ou um suposto “denominador comum da humanida-
de” seriam mais instrutivos acerca do que é ser humano do que os aspectos
peculiares de cada povo, os conteúdos circunstanciais de cada cultura, o
antropólogo americano faz a seguinte airmação provocadora: “Um dos fa-
tos mais signiicativos a nosso respeito pode ser, inalmente, que todos nós
começamos com o equipamento natural para viver milhares de espécies de
vidas, mas terminamos por viver apenas uma espécie” (Geertz, 1989, p 57).
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Ora, é o contexto cultural que responde por esta restrição do poten-


cial humano para realizar qualquer coisa, para vivenciar qualquer expe-
riência. Nascemos sim com aptidão para todo tipo de aprendizado, para
uma ininidade de atuações, mas acabamos “programados” para viver um
44
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

tipo único de existência e acabamos por investi-la de signiicados muito


particulares. Deste modo, o fato irrefutável de que o homem empirica-
mente observável é o indivíduo desta ou daquela cultura especíica, que
fala uma língua particular, age segundo instruções aprendidas, enxerga o
mundo segundo um enquadramento determinado e segue regras e tradi-
ções herdadas não deveria ser considerado o fator mais relevante na com-
posição de uma imagem mais exata do homem?
Evidentemente, Geertz responde airmativamente a esta indagação
que ele mesmo propõe e, para sustentar seu argumento, ele se vale da
constatação de que a cultura deve ser compreendida simultaneamente
como uma característica da espécie humana e como um dos fatores que
ajudou a modelar o homem enquanto espécie. Se o desenvolvimento
cultural acompanhou os desenvolvimentos biológico e psicológico dos
homens, deixa de fazer sentido a busca obstinada pelo que há debaixo da
camada cultural com o propósito de revelar o verdadeiro homem; deixa
de ser pertinente apostar que na composição da natureza humana detém
precedência as supostas “regularidades estruturais”, os invariantes da con-
duta, as “necessidades básicas”, os “fundamentos biológicos” e outras no-
ções do gênero. Em outros termos, se a cultura operou como uma condi-
ção essencial para a existência humana, o conjunto de padrões de conduta,
convenções, mecanismos de controle e signiicados compartilhados não
pode mais ser ignorado quando a questão for decidir quais fatores reletem
a essência desta existência.
Em contraste com outros autores que deram muita importância à
tarefa de separar o que no comportamento humano é inato e o que é cultu-
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

ralmente condicionado, Geertz observa que enquanto algumas atividades,


como, por exemplo, aprender a respirar, são claramente intrínsecas e ou-
tras, como a preferência de uma sociedade pelo mercado livre e não pela
estatização da economia, não admitem discussão acerca da não interferên-
cia de qualquer base genética em sua determinação; grande parte do com-
portamento humano complexo envolve uma interação entre habilidades
congênitas e socialmente aprendidas. Do ponto de vista do autor, é sempre
vã a preocupação com as fronteiras vacilantes entre formas inatas e re-
gradas de ação, uma vez que o interesse antropológico incide não sobre o
que o homem é intrinsecamente capaz de fazer, segundo seu equipamento
somático, mas o que ele efetivamente faz, e, o que ele faz é controlado
pela cultura, organizado por uma etiqueta, dirigido por um sistema de sig-
niicados particular. Assim:
45
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Ser humano não é apenas respirar; é controlar a sua respiração pelas


técnicas do ioga, de forma a ouvir literalmente, na inspiração e na
expiração, a voz de Deus pronunciar o seu próprio nome – ‘hu Allah’.
Não é apenas falar, é emitir as palavras e frases apropriadas, nas situ-
ações sociais apropriadas, no tom de voz apropriado e com a direção
evasiva apropriada. Não é apenas comer: é preferir certos alimentos,
cozidos de certas maneiras, e seguir uma etiqueta rígida à mesa ao
consumi-los. Não é apenas sentir, mas sentir certas emoções muito
distintamente javanesas (e certamente intraduzíveis) – ‘paciência’,
‘desprendimento’, ‘resignação’, ‘respeito’ (GEERTZ, 1989, p 65).

Um tipo particular de homem (um xavante, um judeu, um esquimó)


diz mais acerca da realidade de ser homem e, portanto, de sua propalada
natureza do que a busca por propriedades presumidamente genéricas e
comuns a todos os homens.

1.3.2 O cultural e o biológico


No esforço de construção de um campo autônomo de estudos, um
dos principais embates travados pela antropologia foi contra o determi-
nismo biológico. A suposição de que as origens profundas de toda con-
duta humana remontam à biologia e à psicologia individuais foi desde
cedo confrontada pela evidência de que os fenômenos coletivos, os fatos
sócio-culturais possuem uma lógica e uma dinâmica próprias e, portanto,
devem ser objeto de estudo das ciências sociais. A constatação de que os
diferentes grupos humanos oferecem respostas muito variadas às neces-
sidades congênitas e limitações orgânicas já deveria ser considerada uma
prova de que a cultura não se resume a um epifenômeno4 da biologia, mas
se prestarmos atenção à diversidade de signiicados associados àquilo que
costuma ser encarado como “fenômenos da vida” (nascimento, reprodu-
ção, morte), torna-se ainda mais clara a primazia de uma racionalidade
simbólica, arbitrária, sobre uma razão utilitária dependente dos eventos e
imperativos da biologia. Ainal, como reduzir a mero efeito da atividade
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reprodutiva (ou necessidade de perpetuação da espécie) toda a riqueza


de normas, categorias e símbolos que envolvem os sistemas de parentes-

4 Epifenômeno: fenômeno que é um mero acessório, um efeito fenômeno que se toma principalmente em consideração.

46
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

co, as trocas matrimoniais, os rituais de casamento, regras de iliação e


descendência adotados pelos grupos sociais. De qualquer forma, pode-se
também questionar a suposta evidência, transparência e supremacia dos
fatos biológicos, considerando que interpretações fornecidas pela ciência
biológica podem não fazer sentido em outros contextos culturais onde
prevalecem outras teorias sobre os chamados “eventos naturais”, como
sugere, de maneira veemente, o seguinte relato de Laraia:

(...) os índios Jê, do Brasil, correlacionam a relação sexual com a


concepção mas acreditam que só uma cópula é insuiciente para for-
mar um novo ser. É necessário que o homem e a mulher tenham vá-
rias relações para que a criança seja totalmente formada e torne-se
apta para o nascimento. O recém-nascido pertencerá tanto à família
do pai como à da mãe. E se ocorrer que a mulher tenha, em um dado
período que antecede ao nascimento, relações sexuais com outros
homens, todos estes serão considerados pais da criança e agirão so-
cialmente como tal (LARAIA, 1996, p 93).

De forma análoga, se adotada a perspectiva de que os fatores bioló-


gicos correspondem à dimensão explicativa mais importante do compor-
tamento humano, restará muita coisa sem ser explicada! Tal visão redu-
cionista da ação social encontra um dos seus limites na constatação de que
mesmo uma realidade biológica universalmente reconhecida como, por
exemplo, o dimorismo sexual, não pode ser arrolada como a causa das
diferenças de comportamento observadas entre homens e mulheres. Aqui-
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

lo que é associado a cada um dos gêneros varia enormemente através das


sociedades e da história. Atividades que há bem pouco tempo, entre nós,
ainda eram associadas apenas aos homens, como a guerra, por exemplo,
já era, em Israel, algo que envolvia também a atuação das mulheres. A
propalada desigualdade no tocante à força física também não está na base
das tarefas atribuídas distintamente a homens e mulheres, uma vez que em
diversas sociedades indígenas cabem a elas atividades que não demandam
pouco esforço como o cultivo de roças domésticas e o transporte de água
para as aldeias, além das obrigações ordinárias como o preparo das refei-
ções, o cuidado com as crianças, o artesanato, e, tudo isso, às vezes, im-
plica em uma sobrecarga de trabalho superior ao executado pelos homens.
De fato o que é decisivo na divisão sexual do trabalho não parece repou-
sar nas diferenças de constituição física dos sexos, mas no simbolismo
47
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

atrelado às diferentes tarefas. As sociedades tendem a associar, de modo


tão marcante, certas atividades a categorias femininas ou masculinas que
chegam ao ponto de “feminilizar” ou “masculinizar”, conforme o caso,
os indivíduos que não se revelam aptos a dedicarem-se à atividade cor-
respondente ao seu sexo ou que “escolhem” se dedicar às tarefas do sexo
oposto. Neste sentido, é bastante ilustrativo o caso dos guaiaqui analisado
por Pierre Clastres:

Quase não é necessário sublinhar que o arco, arma única dos caça-
dores, é um instrumento exclusivamente masculino e que o cesto,
coisa das mulheres, só é utilizado por elas: os homens caçam, as
mulheres carregam. A pedagogia dos guaiaqui se estabelece princi-
palmente nessa grande divisão de papéis.(...)
ALOISIO CABALZAR/ISA | HTTP://PIBMIRIM.SOCIOAMBIENTAL.ORG
SERGIO BLOCH | HTTP://PIBMIRIM.SOCIOAMBIENTAL.ORG

Menino Waimiri-atroari com seu arco em miniatura e Índia hupda do Médio Tiquié

Se um indivíduo não consegue mais realizar-se como caçador, ele


deixa ao mesmo tempo de ser um homem: passando do arco para
o cesto, metaforicamente ele se torna uma mulher. Com efeito, a
conjunção do homem e do arco não se pode romper sem transfor-
mar-se na sua inversa e complementar: aquela da mulher e do cerco
(CLASTRES, 1990, p 74 e 76).
A literatura antropológica registra que determinadas sociedades re-
conhecem a existência de um terceiro sexo, batizado pelos etnógrafos de
berdache, em que homem assume o papel e o status feminino comportan-
do-se como uma mulher sem ser homossexual (Rodrigues, 1980).
Assim, longe de apenas responder a presumidas necessidades bási-
cas subjacentes ou atender a ins instrumentais, a cultura é um fenômeno
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singular que organiza o mundo em que homens concretos vão viver, inclu-
sive deinindo o que será considerado necessário, prioritário e supérluo
por estes homens. Atribui signiicados muito diversos às suas práticas, por
exemplo, tomando o caso da nutrição, é a ordem cultural que estabelece
48
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

como e do que os homens vão se nutrir, institui os limites entre a gula e a


alimentação saudável, discerne entre alimentos bons e os que devem ser
evitados, determina tabus5 alimentares, cria categorias como comida de
pobre e comida de rico que expressam a desigualdade no consumo de ali-
mentos conforme a classe social; a comida converte-se em signo de status
social (CANESQUI, 2007).
As variadas formas de modelação e intervenção que os homens im-
põem aos seus corpos constituem outro indicativo de como os próprios in-
divíduos contrariam o conhecido preconceito de que “biologia é destino”.
Neste campo, todo um leque de técnicas é acionado pelas mais diferentes
culturas e podemos mencionar desde as perfurações labiais e auriculares
dos ameríndios às distensões de pescoços e lábios de certas etnias afri-
canas; das mutilações genitais femininas entre os somalis à circuncisão
masculina dos judeus; das escariicações de certos povos indígenas às
cirurgias estéticas dos ocidentais; das cirurgias de correção de genitália
ambígua dos intersexos às cirurgias de mudança de sexo dos transsexuais.
Com efeito, não seria demais airmar que os homens frequentemente tes-
tam os limites de sua biologia a im de adequar os seus corpos a exigências
rituais, critérios de identiicação grupal, ideais coletivos de beleza, norma-
tizações de gênero, recomendações biomédicas, entre outros estímulos ou
obrigações ditados pela cultura. O corpo é sempre culturalmente concebi-
do, culturalmente marcado. Toda cultura cria simbolicamente a natureza,
organiza as fronteiras entre o biológico e o social, classiica e hierarquiza
seres e fenômenos, cria e determina certos usos sociais do corpo.

1.3.3 Análise cultural


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A tradição antropológica norte-americana é a que mais se ocupou


da análise da cultura. Entre as mais eminentes abordagens desenvolvidas,
aquela que provavelmente segue sendo a mais inluente nos dias de hoje é
a corrente interpretativa fundada por Clifford Geertz.
A proposta da antropologia de Geertz é interpretar as culturas,
compreender o signiicado dos fenômenos culturais. Em contraste com as
linhas teóricas centradas na busca das leis que regem tais fenômenos ou
nos códigos através dos quais eles se organizam, Geertz busca ter acesso
5 O tabu é uma interdição. Diz respeito à proibição de uma conduta que, se violada, acarreta danos ou punição
para o transgressor. Por exemplo, entre muitos grupos, o contato do homem com o sangue menstrual é tabu
porque acarreta poluição. Caso um caçador tenha contato com este sangue ele poder perder sua habilidade pra
caçar.no que se toma principalmente em consideração.

49
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

à signiicação dos eventos, ações e processos transcorridos no âmbito da


cultura. Para ele, o antropólogo investiga o que as pessoas dizem e o que
elas fazem, mas seu interesse principal deve incidir sobre o signiicado
do discurso e da ação, assim como sobre as próprias explicações que os
nativos oferecem da sua conduta. Assim, do seu ponto de vista, o trabalho
etnográico – que, aliás, é o que para ele deine o fazer antropológico –
não envolve simplesmente o registro da cultura, mas já é em si um esforço
interpretativo, consistindo de uma leitura em segunda mão, por sobre os
ombros dos nativos – os quais, segundo Geertz, são os únicos que podem
fazer a leitura em primeira mão de sua própria cultura. A etnograia é en-
carada menos como o resultado da observação e coleta de dados e mais
como uma atividade descritiva e interpretativa. Assim, airma Geertz:

O ponto a enfocar agora é somente que a etnograia é uma descrição


densa. O que o etnógrafo enfrenta, de fato – a não ser quando (como
deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais automati-
zadas de coletar dados – é uma multiplicidade de estruturas con-
ceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas
às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inex-
plícitas, e que ele tem que, de alguma forma, primeiro apreender e
depois apresentar. E isso é verdade em todos os níveis de atividade
do seu trabalho de campo, mesmo o mais rotineiro: entrevistar in-
formantes, observar rituais, deduzir os termos de parentesco, traçar
as linhas de propriedade, fazer o censo doméstico... escrever seu
diário. Fazer a etnograia é como tentar ler (no sentido de ‘construir
uma leitura de’) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elip-
ses, incoerências, emendas suspeitas e comentários tendenciosos,
escrito não com os sinais convencionais do som, mas com exemplos
transitórios de comportamento modelado (GEERTZ, 1989, p 20).

Concepções como as delineadas acima de que culturas são como


manuscritos, como textos, de que etnograias correspondem a descrições
densas e de que a antropologia é uma atividade essencialmente interpre-
tativa deram grande notoriedade ao antropólogo norte-americano forma-
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do em Harvard, mas que desenvolveu grande parte de sua bem sucedida


carreira no Instituto de Estudos Avançados de Princeton. Por décadas, as
ideias de Geertz têm inluenciado antropólogos do mundo inteiro, inclusi-

50
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

ve do Brasil, e estiveram na origem de movimentos com o da antropologia


pós-moderna que sacudiu o campo nos anos 1980.
O estilo de análise cultural proposto pelo autor encontra-se ilustrado
de maneira exemplar no texto: “Um jogo absorvente: notas sobre a briga
de galos balinesa” (1972). Neste trabalho, um jogo popular entre os ha-
bitantes da ilha de Bali observado na época em que Geertz e sua esposa,
Hildred, realizaram pesquisa de campo na Indonésia – a briga de galos – é
tomado pelo antropólogo como uma experiência que diz algo sobre a vida
dos balineses. Segundo ele, como ocorre com outros eventos similares, a
tourada para os espanhóis, por exemplo, o jogo em tela contém uma rele-
xão, uma airmativa sobre a cultura balinesa e é seu sentido que ele bus-
cará interpretar. A proposta assim é oferecer uma leitura da briga de galos,
uma leitura de segunda mão como Geertz faz questão de reiterar, com o
propósito de compreender o signiicado desta experiência no universo da
cultura balinesa (Geertz, 1989).
Geertz começa tecendo comentários sobre a ligação entre balineses
e galos. Ele observou que os homens – e aqui se trata unicamente do sexo
masculino, visto que as mulheres estão excluídas da participação nos
jogos – despendem um tempo enorme preparando seus galos. A identii-
cação psicológica dos homens balineses com seus galos parece intrigante
em um primeiro momento, uma vez que a população em Bali costumam
ser avessos à criação de animais e expressa uma grande repulsa à animali-
dade e às manifestações consideradas bestiais. Prevalece uma lagrante re-
provação social a todo comportamento que se assemelha ao dos animais,
que exprime ferocidade, brutalidade. Todavia, na rinha, a ação sangrenta,
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

a violência e o poder destrutivo dos animais são apreciados. Segundo


Geertz, isto ocorre porque “É apenas na aparência que os galos brigam
ali – são os homens que se defrontam”. Os homens são representados por
seus galos, e estes, por sua vez, são o símbolo da masculinidade, em Bali.
Durante os embates, a intimidade entre bichos e homens atinge seu máxi-
mo, e os proprietários se empenham sobremaneira para que seus galos não
saiam derrotados, como ilustra o relato a seguir:

Durante esse intervalo, que dura cerca de dois minutos, o treinador


do galo ferido trabalha freneticamente com ele, como um segundo
lida com um boxeur atingido entre os assaltos, para deixá-lo em
forma numa última e desesperada tentativa de vitória. Ele sopra no
seu bico, colocando toda a cabeça da ave em sua boca, sugando e

51
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

soprando, afofa-o, cobre seus ferimentos com vários tipos de remé-


dios e em geral tenta tudo que pode para despertar o mínimo de âni-
mo que ainda resta no animal. Quando é forçado a repô-lo na rinha,
ele está ensopado de sangue, mas, como acontece nos campeonatos
de boxe, um bom treinador vale seu peso em ouro. Alguns deles po-
dem fazer com que os mortos andem, praticamente, ou pelo menos
o bastante para o segundo e último assalto (GEERTZ, 1989, p 289).

Prosseguindo em sua descrição da briga de galos, Geertz explica


o papel das apostas. O sistema de regras reconstituído pelo antropólogo
é um tanto complicado, mas interessa aqui reter que existem jogos cujas
apostas envolvem pequenas somas de dinheiro e aqueles com somas ele-
vadas. Somente neste último caso, o jogo é considerado “absorvente” e,
portanto, os balineses se esforçam para criar embates em que as apostas
centrais sejam altas, que os confrontos se desenrolem entre galos equiva-
lentes na força para assegurar resultados mais emocionantes.
O aspecto fundamental que Geertz faz questão de ressaltar é que
apostas com mais dinheiro são mais interessantes, porém, não pelo acrés-
cimo de lucro material, mas porque na vitória ou na derrota, o que está em
jogo é mais do que dinheiro, envolve o prestígio social dos apostadores.
O dinheiro importa não pela quantia em si que se vai ganhar ou perder,
mas porque dependendo do valor, a importância de ganhar aumenta, é um
orgulho maior para o vencedor. Nestes casos, o dinheiro opera como um
símbolo e ica evidente que os grandes confrontos desaiam a honra e o
respeito dos jogadores. O desaio, no entanto, é momentâneo e não produz
resultados concretos porque o prestígio de ninguém na rígida hierarquia
social balinesa pode ser alterado pelo resultado de uma briga de galos. O
status é colocado em jogo simbolicamente pelos embates; ele é airmado
ou insultado, mas apenas “de brincadeira”. Nas palavras do autor:

Os homens prosseguem humilhando alegoricamente a um e outro


e sendo humilhados alegoricamente por um ou outro, dia após dia,
regozijando-se tranquilamente com a experiência quando triunfam,
esmagados um tanto mais abertamente se não o conseguiram. Mas
não se modiica realmente o status de ninguém. Não se pode ascen-
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der na escala de status pelo fato de vencer brigas de galos: como


indivíduo, você não pode ascender nessa escala de maneira alguma.
E também não pode descer por esse meio (GEERTZ, 1989, p 310).

52
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

Esta é a interpretação central que Geertz propõe acerca do signiicado


da briga de galos. Trata-se de “uma dramatização das preocupações de sta-
tus” presentes na sociedade balinesa. A hierarquia de prestígio social vivida
no cotidiano é celebrada através dos embates. A experiência de rivalidades
da aldeia e dos grupos de parentesco está incorporada na briga de galos de
uma forma simbólica (não como ela se dá na realidade do dia a dia).
Em regra, um jogador sente-se obrigado a apostar no galo do pro-
prietário que pertence ao seu grupo de parentesco. De fato, nos grandes
jogos “absorventes”, ele quase nunca aposta contra o galo e assim expres-
sa o apoio aos seus parentes. Seguindo o mesmo princípio, se o grupo de
parentesco de um homem não está diretamente envolvido no embate, ele
irá apostar no galo dos grupos que são considerados aliados do seu. Quan-
do a briga envolve galos de estrangeiros, todos apoiarão o galo da aldeia.
Ao apresentar a briga de galos como um drama, uma icção, “uma
leitura balinesa da experiência balinesa, uma história sobre eles que eles
contam a si mesmos”, Geertz está aplicando sua proposta de tomar os fe-
nômenos da cultura como textos. A briga de galos inscreve o signiicado
da experiência de status em Bali, ela é um comentário sobre o que signi-
ica a hierarquia de prestígio nesta sociedade. Assim, ao analisar a cultura
sob este prisma, Geertz espera ter demonstrado que “as sociedades, como
as vidas, contêm suas próprias interpretações. É preciso apenas descobrir
o acesso a elas” (Geertz, 1989, p 321).
Martins Fontes, 1982.

Atividades
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

01. O que faz do homem um “ser social”?

02. Qual a importância da Revolução Francesa e da Revolução Industrial


para o surgimento da Sociologia?

53
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

03. Deina a perspectiva positivista.

04. Disserte sobre o princípio da antropologia, seu contexto e a perspec-


tiva evolucionista.

05. Deina alteridade e etnocentrismo.

06. Disserte sobre a deinição antropológica de cultura.

Reflexão
De acordo com Charles Wright Mills (1918-1962), a Sociologia ser-
ve para que o indivíduo desenvolva uma imaginação sociológica. Mas o
que é isso, ainal? Seria a capacidade do indivíduo de perceber aquilo que
ocorre no cotidiano dele e de seus contemporâneos e de relacionar essas
ocorrências com questões mais amplas com o que ocorre na sociedade.
Por exemplo: o desemprego pode ser uma questão pessoal ou uma ques-
tão da própria estruturação da sociedade; a guerra atinge indivíduos
pessoalmente, mas é uma questão mais ampla, envolve países, questões
econômicas, políticas etc. É a relação do individual com o social que nós
chamamos de imaginação sociológica; é também fazer a ponte entre o que
acontece no seu cotidiano e as questões mais amplas que te envolvem. O
indivíduo só pode compreender sua própria experiência e avaliar o seu
próprio destino localizando-se dentro do seu período histórico. Ele só
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pode conhecer as suas possibilidades na vida tornando-se cônscio das


possibilidades de todas as pessoas nas mesmas circunstâncias. A imagi-
nação os permite compreender a história e a biograia e as relações entre
ambas, dentro da sociedade (Charles Wright Mills)
54
Introdução à Aspectos Sociológicos e Antropológicos da Educação – Capítulo 1

Leituras Recomendadas
Para uma relexão mais abrangente sobre o conceito antropológico
de cultura, consulte o texto de Roberto DaMatta Você tem cultura?, aces-
sível em: <http://naui.ufsc.br/iles/2010/09/DAMATTA_voce_tem_cul-
tura.pdf>. Para um aprofundamento em sociologia, ler MARTINS, C. B.
O que é sociologia? Coleção Primeiros Passos. Rio de Janeiro: Brasilien-
se, 1988 e ARON, R. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo:

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57
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

No próximo capítulo
No próximo capítulo veremos aspectos fundamentais da obra de
três sociólogos clássicos - Karl Marx, Émile Durkheim e Max Weber - e
discutiremos elementos voltados à educação presentes nas teorias de
cada um.
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Os Clássicos da
Sociologia e a Educação
Neste capítulo, teremos como foco os

2 clássicos da sociologia, Karl Marx, Max


Weber e Émile Durkheim. Serão abordados os
lo
aspectos fundamentais de suas obras, bem como
suas principais contribuições à área da Educação.
ít u

Objetivos da aprendizagem
Cap

• Identiicar o pensamento dos pensadores clássicos da so-


ciologia;
• Compreender os aspectos fundamentais da sociologia explica-
tiva de Émile Durkheim;
• Apreender a teoria e conceitos da sociologia compreensiva webe-
riana;
• Entender os aspectos principais da sociologia do conlito de Karl
Marx;
• Reletir sobre as contribuições de cada autor sobre a área da Edu-
cação, articulada à estrutura teórico-conceitual de cada autor.

Você se lembra?
Nas suas aulas de História e nas leituras que já realizou, você tomou co-
nhecimento acerca do fato de que o século XIX apontou a consolidação
do sistema capitalista na Europa e que este momento histórico forneceu
muitos elementos para o surgimento da sociologia como uma nova ci-
ência.
Isso ocorreu porque, nesse contexto, apresentou-se um quadro de
transformações, marcado por mudanças políticas e econômicas, a
emergência da burguesia, o enfraquecimento do poder da Igreja,
o fortalecimento do Estado Moderno, a eclosão da razão em
oposição à fé, o desenvolvimento tecnológico, a industrializa-
ção, a urbanização acelerada, a intensiicação da exploração
do trabalho em busca de maior produtividade, o trabalho
assalariado e uma maior e intensa divisão do trabalho.
Essas são as principais características do quadro
geral sobre o qual pensadores do século XIX se
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

debruçaram, na tentativa de explicar essa nova realidade social. Veremos


como cada um dos autores interpretou a seu modo a nova sociedade, bem
como analisaremos a visão de cada autor sobre a educação, compreendida
e explicada como um fenômeno social.
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60
Os Clássicos da Sociologia e a Educação – Capítulo 2

2.1 Émile Durkheim: elementos centrais da


sociologia dos “fatos sociais”
O sociólogo francês Émile Durkheim (1858-1917) foi o maior su-
cessor de Augusto Comte e da sociologia positivista. Ele se preocupava
em conferir à Sociologia status de ciência independente. Seu livro As re-
gras do método sociológico, de 1895, deu uma contribuição à Sociologia
ao indicar como deveria se dar a abordagem dos problemas sociais, esta-
belecendo as regras a serem seguidas na análise de tais problemas. Sua
metodologia foi utilizada no estudo sobre o suicídio, publicado em 1897,
em que, em vez de especular sobre as causas do suicídio (eliminando a
pesquisa histórica), planejou o esquema de pesquisa, coletou os dados
necessários sobre as pessoas que se suicidaram e, a partir desses dados,
construiu sua teoria do suicídio.
REPRODUÇÃO
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Émile Durkheim

Durkheim defendia a ideia de que os fatos sociais deveriam ser tra-


tados como “coisas”, no sentido de serem individualizados e observáveis.
Durkheim distinguiu três características dos fatos sociais:

61
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

1. Coerção social: os fatos exercem uma força sobre os indivídu-


os, levando-os a confrontarem-se com as regras da sociedade em
que vivem, tanto que os indivíduos sofrem sanções ou punições
quando se rebelam contra essas regras.
2. Exterioridade aos indivíduos: os fatos sociais independem das
vontades individuais ou da adesão consciente a eles. As regras
sociais de conduta, as leis e os costumes já existem quando o su-
jeito nasce e são impostos a ele pela educação.
3. Generalidade: é social todo fato que é geral, ou seja, que se
repete em todos os indivíduos ou na maioria deles. As formas de
habitação, de comunicação, os sentimentos e a moral são alguns
exemplos. A generalidade do fato social garante sua normalida-
de, ou seja, sua aceitação pela coletividade.
Para Durkheim, assim como para os positivistas, o cientista social deve
guardar certa distância em relação ao seu objeto de estudo, resguardando a
objetividade de sua análise. Para isso, o sociólogo deve deixar de lado suas pré-
-noções, isto é, seus valores e sentimentos pessoais. Assim, Durkheim
diria, por exemplo, que, ao estudar uma briga entre gangues, o sociólogo
não deve se envolver nem permitir que seus valores interiram na objetivi-
dade de sua análise.
A sociologia durkheimiana pauta-se prioritariamente em pesquisas
quantitativas, ou seja, que medem e quantiicam dados. Ela usa, portanto,
estatísticas, equações matemáticas, gráicos e tabelas para apresentar os
resultados de pesquisa.

2.1.1 Solidariedade social


A teoria de Durkheim mostra
que este autor defendia uma visão Durkheim entende a solidariedade como a
otimista da nascente sociedade forma consensual de relações entre indivíduo
e sociedade. Portanto, solidariedade significa
industrial e, para descrever esta reciprocidade, interdependência entre partes
nova sociedade, lança mão do envolvidas numa relação social.
conceito de solidariedade.
Durkheim estabelece uma
distinção entre solidariedade me-
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cânica e solidariedade orgânica,


airmando que a primeira diz respeito às
sociedades mais simples (tribais, feudal), em
que a divisão do trabalho é pouco desenvolvida. Nesse tipo de sociedade,
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Os Clássicos da Sociologia e a Educação – Capítulo 2

as pessoas se unem por meio da crença, dos laços religiosos, das tradições
etc. Na segunda, por sua vez, os laços de interdependência são decorrentes
das diferentes funções e especializações que cada indivíduo, em sua ca-
tegoria (econômica, proissional, religiosa, familiar etc.), desempenha na
relação com os demais.
Quando a sociedade se encontra em estado de solidariedade, os
órgãos solidários estão em contato entre si, percebendo a necessidade da
interdependência. As trocas se fazem sem diiculdade, levando à regulari-
zação da sociedade, ao equilíbrio social. Dessa forma, a divisão do traba-
lho deve produzir a solidariedade entre os indivíduos e segmentos. Se não
o faz, é porque as relações dos órgãos sociais não estão regulamentadas
– estão em estado de anomia.
Quando uma sociedade não se encontra em estado de solidariedade, tende a
encontrar-se em estado de anomia social.

A anomia descreve a ideia de um desregramento fundamental das


relações entre o indivíduo e a sociedade, marcadas por relações de anta-
gonismo, por exemplo: egoísmo ou individualismo exacerbado, compor-
tamentos pautados no livre-arbítrio, e não em normas de comportamento
e conduta socialmente arbitradas, expressão de ações individuais não mais
reguladas por normas claras e coercitivas, mas pela vontade de indivíduos
isolados ou subgrupos sociais.
Em caso de anomia, as relações entre os órgãos sociais passam
a ser raras, não se repetindo o bastante para se regularizarem, levando a
uma ausência de inter-relações sociais. Daí a importância que Durkheim
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atribui à divisão social do trabalho, que faz com que os indivíduos/traba-


lhadores possam se sentir colaboradores entre si. O trabalho aparece, des-
se modo, em Durkheim, como fonte de solidariedade e cooperação, capaz
de garantir a harmonia social.

2.1.2 Para conhecer um pouco mais: Durkheim e a


Educação
Ao mesmo tempo que as instituições se impõem a nós, aderimos a
elas; elas comandam e nós as queremos; elas nos constrangem e nós
encontramos vantagens em seu funcionamento e no próprio cons-
trangimento (...) talvez não existam práticas coletivas que deixem
de exercer sobre nós esta ação dupla, a qual, além do mais, não é
contraditória senão na aparência (DURKHEIM, 1982).
63
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Admitindo o capitalismo como uma sociedade harmônica e ordena-


da, Durkheim salientava a necessidade de a sociologia apontar soluções
para os problemas sociais que pudessem causar a desordem, levando a so-
ciedade a um possível estado de anomia (estado de ausência de normas).
Caberia à sociologia, então, restaurar a normalidade, por meio de técnicas
de controle social e manutenção da ordem vigente.
A educação é, neste sentido, uma instituição social que se relaciona
com todas as demais práticas da vida social e é também um dos elementos
fundamentais para assegurar à sociedade a manutenção das regras impos-
tas, a adequação e a formatação dos indivíduos a um padrão socialmente
imposto e previamente deinido, refreando as paixões humanas frente a
um poder moral que os indivíduos respeitem. Os ins da educação variam
de acordo com os estados sociais e estão relacionados com as necessida-
des de um determinado tempo e lugar. “É a coletividade que impõem os
ins da ação educativa” (TURA, 2002, p. 51).
As práticas pedagógicas são determinadas por uma estrutura social
e, por isso, seu desenvolvimento evolutivo ocorre de acordo com as ne-
cessidades do organismo social. Sendo assim, qualquer sistema educativo
é um produto histórico vinculado às necessidades reguladoras de cada pe-
ríodo e impõem aos indivíduos padrões e regras coerentes em relação ao
conjunto de atividades e instituições da sociedade.
Qualquer mudança que ocorra no campo da educação ocorre de
maneira articulada a outras manifestações estruturais da sociedade. Desta-
cando o papel do professor neste processo:

O professor é um transmissor de saberes (...) valorizados e essen-


ciais à continuidade societária. É um agente da formação integral
dos alunos e, por isso, tendo o domínio das disposições pessoais
para corresponder às exigências de seu tempo, podendo criar condi-
ções para as mudanças sociais que se izerem necessárias. Esta é a
importante função social do mestre, de contribuição essencial para a
formação de futuros cidadãos (TURA, 2002, p. 51).

A educação tinha, para Durkheim, um papel de destaque. Ele acre-


ditava ter essa instituição funções sociais muito importantes na construção
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dos valores da cidadania e do nacionalismo, do apego à coletividade, da


sensibilidade para os problemas sociais e para combater o individualismo
na formação de uma consciência coletiva representativa das necessidades
sociais.
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Os Clássicos da Sociologia e a Educação – Capítulo 2

2.2 Karl Marx e a sociologia dos conflitos sociais


Vimos até agora como a Sociologia nasceu positivista e conserva-
dora, pregando a necessidade de a ciência social colaborar para a manu-
tenção da ordem (Comte e Durkheim), e vimos também como ela reorga-
nizou os fatos sociais à luz da história e da subjetividade (Weber). Agora,
vamos ver como a Sociologia pode ser também uma teoria do conlito e
da mudança da ordem.
Falaremos um pouco de outro clássico, também alemão, chamado
Karl Marx (1818-1883), que fundou o marxismo enquanto movimento
político e social a favor dos operários (chamados de proletariado). Ele
tinha ideias revolucionárias e contrárias ao positivismo. Questionou a tese
da neutralidade e objetividade do cientista social.
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Karl Marx

O pensamento marxiano é um dos mais difíceis e complexos, pois


Marx produziu muito. Suas ideias se desdobraram em várias correntes e
são usadas em várias áreas (política, econômica, ilosóica, sociológica,
geográica, histórica, jurídica, psicológica).

Que é próprio de Karl Marx. O pensamento de Marx é marxia-


no; o que outros pensaram e disseram a partir de Marx é marxista.

65
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Seu objetivo principal era entender o capitalismo sob a ótica da


economia, da ilosoia e da sociologia. Além de ter a ambição de construir
uma sociologia do conlito radicalmente oposta ao positivismo de Comte
e ao funcionalismo de Durkheim, visava a criar uma ciência que pudesse
ser usada na prática para revolucionar a ordem social vigente. Sua princi-
pal obra é O capital, dividida em volumes, todos publicados em 1867.
Marx, dialogando sempre com vários economistas, sociólogos e
ilósofos, examinou a fundo o funcionamento do capitalismo desde sua
origem até o im do século XIX e desenvolveu propostas para eliminar
esse sistema, que ele considerava cruel pela exploração dos trabalhado-
res. Desenvolveu conceitos muito importantes até os dias de hoje para a
Sociologia, como alienação, classe social, valor, mercadoria, mais-valia,
modo de produção, dentre outros. Veremos alguns desses conceitos com
mais detalhes nos capítulos seguintes dessa apostila.
Marx mostrou que, na sociedade capitalista de classes (donos do
capital de um lado e operários de outro), o Estado representa a classe dos
capitalistas, que é a classe dominante, a qual age conforme seus interes-
ses. Para ele, toda a história da humanidade é a história da luta entre as
classes sociais distintas. Ele dizia que essa luta de classes é o verdadeiro
motor da história.
Para Marx, a produção é a raiz de toda a estrutura social, pois é na
produção de bens que os homens travam relações sociais que condicio-
nam todo o resto da sociedade. Segundo ele, são as relações sociais de
produção que deinem a sociedade de classes. A produção na sociedade
capitalista só se realiza porque capitalistas e trabalhadores formam uma
relação.
Essa relação, por sua vez, é uma relação de exploração, pois o ca-
pitalista sempre paga menos do que deveria pagar aos seus trabalhadores.
Marx dizia que, no capitalismo, a força de trabalho se torna uma merca-
doria como qualquer outra, algo útil que se pode comprar e vender (por
meio do salário). No entanto, no cálculo do salário, o capitalista desconta
a mais-valia.

O que é mais-valia?
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É um conceito desenvolvido por Marx que signiica, de forma simplii-


cada, uma parte do salário devido que não é paga ao trabalhador. Isso ocorre
porque o capitalista paga menos em relação às horas efetivamente trabalha-
das ou porque obtém maior rendimento com as máquinas em menos tempo.
66
Os Clássicos da Sociologia e a Educação – Capítulo 2

Assim, o operário produz mais mercadorias, que geram um valor maior do


que lhe foi pago na forma de salário. Isso é mais-valia: um valor exceden-
te produzido pelos operários e não pago pelos capitalistas.
Por exemplo: um operário trabalha 8 horas por dia produzindo sa-
patos. Ele consegue produzir 1 par de sapatos por hora, 8 pares por dia.
Mas, ao inal do dia, ele receberá, em forma de salário, como se tivesse
trabalhado 6 horas, ou seja, receberá pela produção de 6 pares de sapatos.
Os 2 pares de sapatos restantes são a produção excedente que ele entrega
de graça ao dono da empresa. Isso é um tipo de mais-valia.
Com a expropriação da mais-valia do trabalho operário (obtida, por-
tanto, na produção) e com a apropriação do lucro que deriva da venda das
mercadorias (obtido no mercado), o capitalista enriquece, enquanto seus
trabalhadores continuam pobres.
Marx acreditava que as condições de trabalho nas indústrias do
capitalismo, que alorava com a Revolução Industrial, eram tão terríveis
para os trabalhadores assalariados que estes iriam tomar consciência e
iriam impulsionar um movimento revolucionário em favor da construção
de uma sociedade primeiramente socialista (um estágio transitório) e, pos-
teriormente, comunista (um estágio inal, que seria permanente).
As ideias de Marx marcaram de maneira deinitiva o pensamento
cientíico e a ação política de sua época e das épocas posteriores. Seu ideal
comunista é o ideal de uma sociedade sem classes sociais e sem proprie-
dade privada (terras, máquinas, indústrias que pertencem aos capitalistas).
Sua abordagem sociológica é a do conlito, da dinâmica histórica,
da relação entre consciência e realidade concreta, das práticas revolucio-
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nárias dos seres humanos. O que Marx queria era ver o ser humano livre
das amarras do capital, emancipado e liberto, podendo ser autônomo.
Você se identiicou com alguma dessas abordagens em especial?
Não há uma mais correta ou menos correta que a outra. São apenas pontos
de vista diferentes lançados para os mesmos fenômenos sociais.

2.2.1 Marx e o conceito de ideologia


Para Marx, a ideologia (ou ideologias, como veremos a seguir) é
resultado da luta de classes, contradição intrínseca ao modo de produção,
em nosso caso o capitalista. Seu objetivo é, segundo o pensador, “ca-
mular”, “disfarçar” a contradição social (lembra-se de Francis Bacon e
dos “ídolos do fórum”?). Marx chamou este efeito da ideologia de “falsa
consciência” ou inversão, já que ele inverte o real, criando uma concep-
67
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

ção equivocada de como se produzem as ideias! Veremos com mais deta-


lhes este processo. Vamos lá?
Em sua obra A ideologia alemã, Marx elabora seu conceito de ide-
ologia, conceito este que seria (e será) retomado por diversas correntes
ilosóicas, sociológicas, econômicas, políticas e antropológicas. Já na
introdução desse escrito o pensador procura diferenciar as concepções
idealista e materialista, em um claro posicionamento pela segunda. Criti-
ca principalmente o idealismo hegeliano e seus herdeiros, idealismo que,
modestamente, podemos explicar como uma razão subjetiva, que concebe
“modalidades de conhecimento que são universais, isto é, válidos para
todos os seres humanos em todos os tempos e lugares” (CHAUI, 1995).
O próprio Marx questiona: “A nenhum desses ilósofos ocorreu
perguntar qual era a conexão entre a ilosoia alemã e a realidade alemã, a
conexão entre a sua crítica e o seu próprio meio material” (MARX, 1993).
O pensador evidencia sua primeira posição diante do conceito de ideolo-
gia, em que airma que a história da natureza e a história dos homens não
podem ser separadas, pois se condicionam “reciprocamente”. Segundo
Marx, seu objetivo é analisar a história dos homens, já que as ciências
naturais se ocuparam da história da natureza, e, para isso, o conceito de
ideologia é fundamental já que “quase toda a ideologia se reduz ou a uma
concepção distorcida desta história ou a uma abstração completa dela. A
própria ideologia não é senão um dos aspectos desta história” (1993).
Para Marx, a ideologia é, então, um conceito crítico, diferente da
terminologia criada por de Tracy (ciência
precisa, empírica). Ideologia é a cons-
ciência deformada da realidade, Marx procurava
entender a complexidade
uma ilusão ou falsa consciência, a da sociedade capitalista do século
realidade é invertida e as ideias XIX, industrializada e urbana. As lutas
surgem como o verdadeiro mo- de classes entre trabalhadores e detentores
dos meios de produção ocorrem não somente
tor da vida real. na prática cotidiana, mas também (e fundamen-
Isso signiica dizer que a talmente) pela dominação das ideias, ou seja,
ideologia “disfarça” a realida- aqueles que detêm os meios de produção
são os mesmos que dominam a produção e
de, mostra-nos alguns sentidos
distribuição das ideias.
e deixa obscuros outros. Isso
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ocorre segundo interesses que


nem sempre são conscientes ou vo-
luntários.

68
Os Clássicos da Sociologia e a Educação – Capítulo 2

(...) em toda ideologia, os homens e suas relações aparecem inverti-


dos como numa câmara escura, tal fenômeno decorre de seu proces-
so histórico de vida, do mesmo modo por que a inversão dos objetos
na retina decorre de seu processo de vida diretamente físico (1993)
Com isso, Marx deine a relação entre ideologia e vida material
dizendo que não partimos daquilo que os homens dizem ou representam
para, só posteriormente, chegarmos ao homem e às suas condições mate-
riais de existência. A ideologia, pelo contrário, é um relexo do processo
de vida real dos homens. Religião, moral e metafísica não são autônomas
ou universais – como pretendiam os ideólogos –, mas são construções his-
tóricas, sociais, culturais, ou seja, são construções ideológicas, ou melhor,
formas ideológicas, com as quais os “indivíduos tomam consciência da
vida real” (LÖWY, 1995).
Daí Marx airmar que “Não é a consciência que determina a vida,
mas a vida que determina a consciência” (1993). Podemos exempliicar o
que esse pensador quis dizer pensando nos movimentos literários e nas
suas transformações. O Humanismo e Classicismo, por exemplo, só foram
possíveis devido às transformações políticas e econômicas ocorridas no
século XV: a expansão marítima permitiu ao homem uma nova perspec-
tiva de mundo, as relações comerciais se alteraram, o lucro passou a fazer
parte da vida comercial e o homem começou a ganhar centralidade nas
explicações sobre o mundo. A estrutura social se transformou e uma nova
realidade surgiu, ascendendo uma nova, digamos assim, camada social, a
burguesia. Dela faziam parte pessoas que, sem nobreza de sangue, acu-
mularam riquezas por meio de atividades mercantis. Sendo assim, essa
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burguesia necessitava legitimar-se enquanto “classe”, ou seja, precisava


lutar pelo poder político, já que possuía o econômico, e para isso investiu
em produção cultural, privilégio que antes pertencia somente à Igreja. Por
isso mesmo, os artistas inanciados pela burguesia, que queriam se air-
mar e se sobrepor ao poder da Igreja, buscaram na Antiguidade Clássica
seu modelo de pensamento: antropocêntrico, contrapondo-se ao modelo
teocêntrico da Idade Média.
Vale dizer, então, que as condições materiais de vida (o comércio, as
grandes navegações, a necessidade política e econômica de uma classe que
surgia) condicionaram as formas de pensamento de uma época (o Huma-

69
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

nismo e o Classicismo na literatura, por exemplo): “A produção de ideias,


de representações, da consciência está, de início, diretamente entrelaçada
com a atividade material e com o intercâmbio material dos homens, como
a linguagem da vida real” (1993).
É a ideologia que nos “apresenta” a realida- Conexão:
de. Não podemos apreendê-la senão por ela, essa Para conhecer outras
obras de Caravaggio, acesse
imagem invertida, inversa do que ela é: uma os links <http://www.eyegate.
falsa imagem que produz uma falsa consciên- com/showgal.php?id=33> e <http://
cia a respeito das próprias ideias e das relações www.wga.hu/index1.html>.

concretamente estabelecidas. Os burgueses dos


séculos XV e XVI, por exemplo, não explicitam
que, ao inanciar obras artísticas que colocam o
homem como centro da explicação para as coisas do
mundo, eles estão, na verdade, querendo minar o poder político da Igreja e
tomar o seu lugar como origem dos saberes e das decisões políticas e eco-
nômicas. As imagens, que até então eram “chapadas”, ganham contorno e
perspectiva, as iguras humanas aparecem cada vez mais “humanizadas”.
E a ideologia não nos revela que isso ocorre para que a ideia de divindade
seja suprimida, já que mesmo as iguras bíblicas aparecem-nos com as-
pectos intrinsecamente humanos; basta admirarmos uma pintura de Cara-
vaggio.
O próprio pintor fazia questão de buscar nas ruas seus modelos, en-
tre pessoas comuns, mendigos, prostitutas e bêbados.
WIKIMEDIA
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Incredulidade de São Tomé, por Caravaggio, 1601

70
Os Clássicos da Sociologia e a Educação – Capítulo 2

Sobre o conceito de ideologia marxista, podemos concluir que ele re-


presenta a tentativa de demonstrar como a ideologia burguesa se apresenta
como uma espécie de véu na sociedade capitalista, tentando encobrir as
relações de exploração da força de trabalho. É como demonstrar que tra-
balhamos horas a io não para comprar o carro dos sonhos, mas sim para
enriquecer o dono da indústria de automóveis ou dizer que nos embeleza-
mos não para realmente icarmos bonitas, mas porque esse padrão de beleza
pressupõe o consumo de cosméticos que enriquecem seus produtores.
As ideias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das
relações materiais dominantes, as relações materiais dominantes
concebidas como ideias; portanto, a expressão das relações que tor-
nam uma classe dominante; portanto, as ideias de sua dominação.
Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem, entre
outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida
em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma
época histórica, é evidente que o façam em toda sua extensão e,
consequentemente, entre outras coisas, dominem também como
pensadores, como produtores de ideias; que regulem a produção e
a distribuição das ideias de seu tempo e que suas ideias sejam, por
isso mesmo, as ideias dominantes da época (1993)

2.2.2 Ideologia e herança marxista


WIKIMEDIA
Marx “inaugurou” uma rede de
concepções sobre o que é ideologia.
Rede que, apesar de algumas diferen-
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ças, tem em Marx sua fonte de refe-


rência teórica. Lenin também, assim
como Marx, entende ideologia como
concepção, imagem da realidade social
ou política, porém “passa a designar
simplesmente qualquer doutrina sobre
a realidade social que tenha vínculo
com uma posição de classe” (LÖWY,
1995) como ideologia. Poderíamos
dizer, não sem gerar controvérsias, que
Lenin inverte a relação estabelecida
por Marx entre produção material e
ideologia. Marx não vê a possibilidade Vladimir Ilitch Lenin

71
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

de a ideologia condicionar a organização da produção; Lenin estabelece


a ideia de que é possível transformar a realidade por meio das ideias. Por
isso, admite que a ideologia é uma concepção da realidade social que está
atrelada aos interesses das classes sociais. Sendo assim, não podemos
falar de uma única ideologia, e sim de pelo menos duas: a da burguesia e
a do proletariado. Para Lenin, a luta de classes deveria acontecer também
no plano das ideias, em que fosse sobreposta a ideologia proletária sobre
a ideologia burguesa. O próprio Marx explicaria a posição de Lenin: líder
político de uma massa camponesa despolitizada, era preciso legitimar
seus atos políticos por meio das ideias, já que as condições materiais de
produção não permitiriam a implantação do socialismo na Rússia czarista.
Outro pensador que se apropriou, em parte, da concepção marxista
de ideologia foi Mannhein, para quem a “ideologia é o conjunto das con-
cepções, ideias, representações, teorias que se orientam para estabiliza-
ção, ou legitimação, ou reprodução, da ordem estabelecida” (1995). Para
ele a ideologia tem o papel de conservar a ordem estabelecida.

2.2.3 Marx e a educação.


Pode-se dizer que Marx, junto com os pensadores marxistas, conso-
lidaram o que se denominou de materialismo histórico, segundo o qual há
determinância dos meios de produção em relação às outras dimensões da
sociedade. São as relações do âmbito de produção que constituem a ideo-
logia da sociedade e não o contrário. Desta forma:

A produção de ideias, de representações e da consciência está em


primeiro lugar direta e intimamente ligada à atividade material e ao
comércio material dos homens; é a linguagem da vida real. As re-
presentações, o pensamento, o intercâmbio intelectual dos homens
surgem aqui como emanação direta de seu comportamento material
(MARX, ENGELS apud BITTAR, FERREIRA JR., 2008, p. 636).

Como já vimos, estamos diante de uma teoria sociológica que se


foca no conlito que, por sua vez, tem origem na dimensão produtiva.
Vimos que a exploração e a mais-valia são aspectos fundamentais no
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âmbito de produção fabril, constituindo uma relação de exploração entre


capitalista e trabalhador. No entanto, a explicação marxiana sobre a esfera
do trabalho se deine também por outra dimensão: a alienação. A aliena-
ção do trabalho se dá com a separação entre produto e trabalho, derivada
72
Os Clássicos da Sociologia e a Educação – Capítulo 2

da emergência da propriedade privada e da divisão social do trabalho,


ambas resultantes da formação da sociedade capitalista. A partir de então,
enquanto alguns controlam os meios de produção, outros nada mais têm
de fazer para garantir sua subsistência material do que vender sua força de
trabalho como mercadoria.
Neste sentido, o produto inal realizado pelo trabalhador não mais
lhe pertence, ou seja, o resultado do trabalho ica nas mãos do capitalista.
Além disto, há o estranhamento que se realiza durante a atividade produ-
tiva, na medida em que o sistema fabril fez com que o trabalhador não
participasse mais do processo global do que produz. É essencial sublinhar
que a alienação, ou o estranhamento, é resultado da relação de subordina-
ção a outrem. Em síntese, o produto e a atividade do trabalho pertencem a
outro homem que não é o trabalhador, e sim ao proprietário dos meios de
produção, o capitalista. Esta é a contradição, contida no âmbito da produ-
ção, que funda as bases do capitalismo e que se relete na organização da
sociedade como um todo, tanto em seus aspectos culturais, como na esfera
da política.
Segundo o pensamento marxiano, o trabalho alienado faz romper a
capacidade criativa, essencialmente humana, que se realiza por meio do
trabalho. Para Marx é na atividade criativa do trabalho que o homem se dis-
tingue dos animais. É a partir de uma relação dialética com a natureza que
ele desempenha uma característica fundamental de sua espécie: a capacida-
de teleológica, ou seja, de criar algo novo, projetado e calcado na realidade
material existente. Se o trabalho tem uma dimensão humanizadora, com o
advento do capitalismo ele perde esta função, reduzindo-se a uma atividade
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repetitiva e enfadonha. O trabalhador, neste novo contexto, perde a noção


totalizadora do aspecto criativo com a alienação do trabalho.
Karl Marx vê neste aspecto uma contradição essencial do capitalis-
mo que acabaria por propulsionar a classe trabalhadora em oposição a este
modo de produção e em direção à construção de uma ordem social, na qual
não haveria a dominação de uma classe sobre outra, bem como haveria
espaço para o trabalho criativo e para o desenvolvimento das capacidades
humanas de forma ampliada. Em vez de valorizar uma sociedade na qual os
homens se resumissem a funções repetitivas tendo em vista apenas a repro-
dução do capital, Marx antevê a possibilidade de uma sociedade na qual os
homens desempenhariam funções muito distintas, considerando a compre-
ensão global da sociedade e as amplas dimensões de sua humanidade.
Como compreender a educação na teoria marxiana?
73
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

O teórico alemão não centrou suas análises na área de educação, bem


como não dispôs de obras sobre o tema, ao contrário de Durkheim, no en-
tanto deixou algumas relexões sobre o tema disponíveis em sua obra.
Crítico a visões idealistas, Marx não pensava a educação como uma
esfera que deveria ser centrada apenas em relexões humanísticas abstra-
tas e deixaria de fora os aspectos materiais e produtivos. Crítico a visões
românticas, ou seja, a visões que privilegiassem o passado idealizado,
não propunha a volta a um período prévio à Revolução Industrial, antes
buscava a universalização dos ganhos da humanidade com os progressos
tecnológicos e a possibilidade de democratização dos meios de produção,
com isso valorizava a combinação da formação intelectual e física com o
trabalho produtivo:

Para Marx e Engels, não é possível falar de educação sem referir-


se à realidade socioeconômica e à luta de classes que a caracteriza
e sustenta. Desse modo, a educação perde todo o aspecto idealista
e neutro, bem como rejeita toda reminiscência romântica anti-
industrial. Esse modelo interpretativo introduziu duas propostas
consideradas revolucionárias: a) a referência ao trabalho produtivo,
que se punha em contraste com toda uma tradição educativa intelec-
tualista e espiritualista; b) a airmação de uma constante relação en-
tre educação e sociedade (BITTAR, FERREIRA JR., 2008, p. 640).

Na visão marxiana, há um conteúdo utópico inerente à perspectiva


de transformação social para uma ordem pós-capitalista, marcada pela
socialização dos meios de produção e, com ela, o im da exploração do
homem pelo homem e da alienação do trabalho. Em síntese:

Marx e Engels não pensaram na libertação de uma determinada clas-


se social, mas de todas. Projetaram a utopia de um mundo baseado na
igualdade e no qual não haveria uma classe explorada, submetida ao
trabalho manual; mas, ao contrário, uma sociedade na qual todos pu-
dessem aperfeiçoar-se no campo em que lhes aprouvesse, não tendo,
por isto, uma esfera de atividade exclusiva, mas onde fosse possível
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“fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde,
pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isto a meu
bel-prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador
ou crítico” (BITTAR, FERREIRA JR., 2008, p. 639).
74
Os Clássicos da Sociologia e a Educação – Capítulo 2

Na compreensão dos autores de educação, portanto, tais questões


se faziam presente, ou seja, consideram-se como “princípios que guiam a
antropologia e também a pedagogia de Marx: a) o papel central e dialético
do trabalho; b) a ideia de homem omnilateral (na qual harmoniza ‘tempo
de trabalho’ e ‘tempo livre’)”, em oposição à ideia de um homem unilate-
ral, reiterado no âmbito produtivo capitalista, no qual há intensa divisão
social do trabalho e o trabalhador é alienado e impedido de desempenhar
seu pleno desenvolvimento:

as perspectivas de desenvolvimento do homem omnilateral efeti-


vam-se, precisamente, sobre a base do trabalho, isto é, na possibili-
dade da abolição da exploração do trabalho, da divisão do trabalho
e da sociedade de classes e do im da divisão do homem, dado que
isso acontece unicamente quando se apresenta como divisão entre
trabalho manual e trabalho intelectual, já que o último necessita de
tempo livre para o seu pleno desenvolvimento, ou seja, de “ócio
produtivo”, como diriam os gregos da Antiguidade Clássica. Pois,
as duas imagens do homem dividido, cada uma delas unilateral,
são essencialmente a do trabalhador manual e a do intelectual, tais
como gerados pela divisão social do trabalho no âmbito da socieda-
de capitalista (BITTAR, FERREIRA JR., 2008, p. 642-643).

Neste sentido, é possível compreender como o autor pensa a edu-


cação baseada no princípio da plena realização humana. Trata-se de uma
proposta educacional humanista, considerando tanto o desenvolvimento
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do corpo e da técnica quanto do espírito, ou seja, do âmbito das ideias.


A educação nessas bases só seria possível em uma sociedade na qual os
meios de produção fossem socializados. Assim, compreendemos que uma
visão marxiana de educação está além da pura e simples democratização
da educação, mas de uma visão mais abrangente, vinculada à centralidade
da esfera do trabalho em sua teoria e à ideia de realização humana.

2.3 Max Weber e a sociologia compreensiva


Enquanto na França sedimentou-se o pensamento social positivista,
na Alemanha outras correntes ilosóicas inluenciaram a Sociologia.

75
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

A Alemanha se uniica e se organiza como Estado nacional mais


tardiamente que o conjunto das nações europeias, o que atrasou seu
ingresso na corrida industrial e imperialista da segunda metade do
século XIX. Esse descompasso em relação às grandes potências vizi-
nhas fez elevar no país o interesse pela história como ciência da inte-
gração, da memória e do nacionalismo. Por tudo isso, o pensamento
alemão se volta para a diversidade, enquanto o francês e o inglês,
para a universalidade. (COSTA, Cristina. Sociologia. Introdução à
ciência da sociedade. São Paulo: Editora Moderna, 1997, p. 70).
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Max Weber

Max Weber (1864-1920) foi o grande sistematizador da sociologia


alemã. A posição positivista anula a importância dos processos históricos
particulares, valorizando apenas a lei da evolução, a generalização e a
comparação entre formações sociais. Weber, no entanto, se opõe a essa
concepção e entende que a pesquisa histórica – ausente no positivismo – é
essencial para a compreensão das sociedades.
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A pesquisa histórica, feita com a coleta de documentos, permite o


entendimento das diferenças sociais. Portanto, o caráter particular de cada
formação histórica deve ser respeitado. Assim, Weber introduz na Socio-
logia a busca de evidências por meio do conhecimento histórico. Weber,
76
Os Clássicos da Sociologia e a Educação – Capítulo 2

entretanto, não achava que uma sucessão de fatos históricos izesse senti-
do por si mesma. Ele propunha o método compreensivo para o estudo dos
fenômenos sociais. Mas em que consiste esse método?
O método compreensivo consiste num esforço interpretativo do
passado e de sua repercussão nas características peculiares das sociedades
contemporâneas. Para decodiicar o mundo social, Weber propõe que se
compreenda a ação dos seres humanos do ponto de vista do sentido e dos
valores, e não apenas a partir das causas e pressões exteriores. A essa ação
humana ele chamou de ação social.
Ação social é a conduta humana dotada de sentido. Assim, o homem
passou a ter, na sociologia de Weber, uma importância enquanto sujeito
que atribui sentido aos fatos. É o homem que dá sentido à sua ação social,
estabelecendo a conexão entre o motivo da ação, a ação propriamente dita
e seus efeitos. Por estudar as ações sociais, a sociologia weberiana chama
os homens de atores sociais.
Mas, se cada indivíduo atribui um sentido às ações, como é que elas
podem ser sociais?
O caráter social da ação individual decorre da interdependência dos
indivíduos. Um ator age sempre em função de sua motivação e da cons-
ciência de agir em relação a outros atores, embora não consiga controlar
todos os efeitos de sua ação. O cientista social deve captar os sentidos e os
motivos produzidos pelos diversos atores sociais nas sociedades.
Weber distingue ação social de relação social: para haver relação so-
cial, é preciso que o sentido seja compartilhado. Vamos ver um exemplo?
Um sujeito que pede uma informação na rua a outro pedestre realiza
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uma ação social: ele tem um motivo e age em relação a outro indivíduo,
mas tal motivo não é compartilhado. Ambos os pedestres não chegam a
travar uma relação social.
Numa sala de aula, onde o objetivo da ação dos vários sujeitos é
compartilhado (todos estão ali para aprender), estabelece-se uma relação
social dos alunos entre si e dos alunos com o professor.
Weber argumentava que os fatos sociais não são coisas e que a
neutralidade do sociólogo é impossível. O cientista social parte de uma
preocupação com signiicado subjetivo, pessoal. Sua meta é compreender,
buscar nexos causais que deem sentido à ação social.
A obra mais conhecida de Max Weber é A ética protestante e o espí-
rito do capitalismo, em que analisa o papel do protestantismo (da religião)
na formação do comportamento típico do capitalismo ocidental moderno.
77
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Weber descobre, nesse estudo, que valores do protestantismo como dis-


ciplina, poupança, austeridade, vocação, dever e a propensão ao trabalho
atuavam de maneira decisiva sobre os indivíduos, formando uma mentali-
dade – ou uma ética – propícia ao capitalismo.
Weber também se destacou pelo estudo das formas de dominação e
da burocracia, como partes da racionalização do mundo moderno.
A sociologia weberiana pauta-se em pesquisas de cunho mais quali-
tativo, uma vez que dependem da interpretação subjetiva e da compreen-
são dos fatos sociais.
De forma amplamente distinta do pensamento durkheiminiano que
se desenvolveu dentro da tradição positivista, Max Weber desenvolveu
seu pensamento em outra tradição, inluenciado pela ilosoia neokantia-
na. A sociologia weberiana parte do pressuposto, inluenciado pela ilo-
soia de Kant, de que o real é ininito e inesgotável. Nesta perspectiva, o
ponto de partida de uma pesquisa sempre representa uma visão parcial da
realidade. Os fenômenos sociais são estudados a partir de uma perspectiva
construída pelo pesquisador no momento em que escolhe seu “objeto”.
Max Weber fala em “objetividade” das ciências sociais, usando as-
pas, demonstrando que o cientista é fruto de seu tempo e, portanto, parte
de determinados valores para iniciar uma pesquisa. Em outros termos,
Weber salienta os critérios subjetivos do cientista como parte da pesquisa,
posto que este opera escolhas ao restringir o foco de sua pesquisa, suas
questões e hipóteses que guiarão seu trabalho. No entanto, isso não sig-
niica que a pesquisa não chegará a resultados universalmente válidos, na
medida em que a pesquisa deve estar sob controle de métodos que com-
provem as relações estabelecidas durante seu desenvolvimento.
Dois aspectos são fundamentais, portanto, na perspectiva weberia-
na: o pressuposto da parcialidade original na pesquisa e, em seguida, do
necessário distanciamento, por parte do pesquisador, “do próprio interesse
para encontrar uma resposta universalmente válida a uma questão inspira-
da pelas paixões do homem histórico” (ARON, 1997, p. 456). Nas pala-
vras do sociólogo brasileiro Gabriel Cohn:

A atitude do conhecedor cientíico é por excelência, não indiferente:


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não se trata de reproduzir em ideias uma ordem objetiva já dada,


mas de atribuir uma ordem a aspectos selecionados daquilo que se
apresenta à experiência como uma multiplicidade ininita de fenô-
menos. É claro que isso envolve uma postura ativa do pesquisador,
78
Os Clássicos da Sociologia e a Educação – Capítulo 2

que não é concebido como um metódico registrador de “dados”,


mas tampouco é mero veículo para a introdução de tais ou quais
‘visões de mundo’ nos resultados da pesquisa (COHN, 1997, p.22).

Considerar a subjetividade do pesquisador, vinculada aos valores


e questões de seu tempo, sua postura ativa no processo de pesquisa e a
busca por respostas metologicamente amparadas, signiica compreender
as ciências sociais a partir de um modelo muito distante das ciências na-
turais que buscam a sistematização progressiva de seu objeto de estudos a
partir de leis gerais. Para as ciências sociais, na visão de Weber, “à medida
que a história avança e renova os sistemas de valor e os monumentos do
espírito, o historiador e o sociólogo espontaneamente formulam novas
questões sobre os fatos, presentes ou passados” (ARON, 1997, p. 451).
Neste sentido, Max Weber considera que as ciências sociais têm o “dom
da eterna juventude”.
Em uma perspectiva que não busca a sistematização de leis ge-
rais, posto que considera que o real é ininito e inesgotável, trata-se de
estabelecer meios para a compreensão das forças de ação social, objeto
privilegiado da sociologia de Max Weber. Gabriel Cohn (1997) ressalta a
importância de um recurso metodológico weberiano básico para a análise
histórico-social: o “tipo ideal”: “trata-se de um recurso metodológico para
ensejar a orientação do cientista no interior da inesgotável variedade de
fenômenos observáveis na vida social. Consiste em enfatizar determina-
dos traços da realidade (...)” (p. 08).
Julien Freund o deine como “um conjunto de conceitos que o
especialista das ciências humanas constrói unicamente para os ins da
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

pesquisa”, na medida em que “nenhum conceito é capaz de reproduzir


integralmente a diversidade intensiva de um fenômeno particular” (1987,
p. 48). Para Weber, os fenômenos sociais não são alcançáveis em sua “rea-
lidade”, posto que se caracterizariam por ampla heterogeneidade, portanto
nenhum empreendimento explicativo pode dar conta de sua totalidade.
Constrói-se um “tipo ideal” para dar conta de estabelecer relações causais
explicativas e tornar o mundo social compreensivo, assim deve-se elimi-
nar o que pode ser desprezado e acentuar determinados traços para tais
ins. Em termos gerais, “esta noção pode tomar o sentido de um conjunto
de traços comuns (tipo médio), mas também o de uma estilização que
põe em evidência os elementos característicos, distintivos ou ‘típicos’”
(FREUND, 1987, p. 49).
79
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Como exemplos de “tipos ideais” weberianos, é possível citar “o


calvinista”, ou o “burocrata”, duas iguras centrais em suas análises sobre
a modernidade. Embora o “tipo” do calvinista não represente todos os
comportamentos de qualquer calvinista da época abordada ou o “buro-
crata” descrito por Weber não dá conta da variedade de condutas relativas
às distintas personalidades de cada burocrata, a construção ideal-típica de
ambos torna compreensível aspectos fundamentais presentes nestes mo-
delos. “Tipo ideal”, portanto, nada tem a ver com o “dever ser” ou com
qualquer horizonte utópico, mas sim com uma construção, um recurso
metodológico que visa, antes de tudo, dar conta de explicar determinados
fenômenos sociais. Para a discussão de dois “tipos ideais” weberianos,
adentramos a relexão da racionalização e da burocracia.

2.3.1 Racionalização e burocracia


Weber airma que o traço característico do mundo em que vivemos é
a racionalização, visto que a sociedade moderna tende à organização e à
dessacralização da vida, ou o que Weber cha-
ma de “desencantamento do mundo”.
Os progressos da ciência e
da técnica fazem com que os
homens deixem de acreditar
nos poderes mágicos, havendo A racionalização do mundo não significa seu
progresso moral, já que a racionalização tem a
uma perda do sentido sagrado
ver com a organização social exterior, especial-
da vida. O real torna-se can- mente por meio da burocracia, e não com a vida
sativo e utilitário, marcado íntima e racional do homem.
por um vazio que os homens
buscam preencher com agitação
e artifícios diversos.
Face ao ceticismo tedioso, os
homens tentam “mobiliar sua alma com
uma confusão de religiosidade, estetismo, mora-
lismo e cientiicismo”. Contudo, aponta que a racionalização e a intelec-
tualização não solapam com o irracional, pois este tem origem em nossa
vida afetiva, fazendo-nos permanecer presos às paixões e necessidades.
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Max Weber aponta que o processo de racionalização envolve


seis elementos:
1. Desencanto e intelectualização do mundo.
2. Surgimento de um etos de realização secular impessoal.
80
Os Clássicos da Sociologia e a Educação – Capítulo 2

3. Crescente importância do conhecimento técnico especializado.


4. Objetivação e despersonalização do direito, da economia e da
organização política do Estado, recrudescimento da regulari-
dade e da calculabilidade nesses
domínios.
5. Progressivo desenvolvi-
mento dos meios tec-
nicamente racionais A racionalização baseia-se no elogio da
razão absoluta, capaz de engendrar um mun-
de controle sobre do sem significado, sem liberdade, dominado
o homem e a natu- por poderosas burocracias e pela “jaula de ferro”
reza. da economia capitalista.
6. Tendência ao deslo-
camento da orienta-
ção tradicional para a
ação puramente racio-
nal e instrumental.
Atentemos para o fato de que a ca-
tegoria burocracia assume signiicativa importância na obra de Weber.
Segundo este autor, esta é uma das categorias centrais da ciência social
moderna. Refere-se àquela administração em que o poder de decisão está
numa função, e não no indivíduo que a desempenha.
Segundo Weber, a organização burocrática afasta-se da sociedade
(tanto da classe dominante quanto das massas). Organiza-se num sistema
institucional particular, em que se desenvolve um procedimento formal,
um etos e uma ideologia, tornando-se uma espécie de “subcultura”.
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A organização burocrática mostrou-se, para Weber, mais eficiente, rápida e com-


petente que outras formas de administração, o que explica a expansão da administração
burocrática em todos os campos da vida social.

2.3.2 Max Weber e a educação


Vimos que Weber interpreta como uma das características cen-
trais da modernidade a racionalização de todas as esferas sociais, o
que só foi possível com a formação de técnicos, funcionários espe-
cializados, disciplina e hierarquização. Para tanto, tornou-se funda-
mental estabelecer mecanismos de seleção e diferenciação a partir
de certificados, tornando a qualificação um aspecto fundamental.
81
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

De acordo com Weber: “o aperfeiçoamento dos diplomas, o clamor pela


criação de atestados de formação em todas as áreas, em geral, servem à
constituição de uma camada privilegiada dos escritórios públicos e priva-
dos” (WEBER apud MELO JUNIOR, 2010, p. 158).
Deste ponto de vista, a educação torna-se um foco importante de
discussão na teoria weberiana, posto que é elemento central em um dos
aspectos fundamentais da modernidade, a constituição de uma ordem bu-
rocrática:
Em Weber, a burocracia adquire status de promotora da eiciência
na gestão do ambiente público, mas ao mesmo tempo serve como
legitimadora de castas sociais e hierárquicas dentro de empresas e
repartições sejam elas governamentais ou privadas. Nesses casos,
a burocracia funciona como a forma de dominação racional legal
mais eicaz e duradoura (MELO JUNIOR, 2010, p. 158).

Ao contrário de nossa deinição corrente, para Weber a burocracia é


descritiva de uma ordem social calcada na eiciência, por meio da especiali-
zação, hierarquização, dentre outras características que fundamentam a em-
presa moderna pública ou privada. A educação escolar, portanto, pode ser
pensada como pré-requisito fundamental das sociedades modernas que se
fundamentam, na visão do autor, na dominação racional legal. Em síntese:

Com o advento do capitalismo e sua burocratização, o ensino e a


educação especializada adquirem papel importante na formação de
quadros técnicos gabaritados para exercerem as funções que lhes
são destinadas. Para além do aumento de competência proissional,
a aquisição de diplomas de cursos superiores, técnicos e outros ser-
ve como forma de separação e classiicação hierárquica dentro de
setores públicos e privados (MELO JUNIOR, 2010, p. 158).

A ordem moderna, portanto, traz ao lado da democratização e do


questionamento de privilégios a formação de uma nova forma de estratii-
cação na sociedade colocada em títulos acadêmicos:

Para Weber, a busca pela qualiicação proissional e a consequente


“disputa” por títulos acadêmicos serviria, entre outras, como passa-
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porte para a entrada em círculos sociais mais respeitáveis. Quanto


maior o grau de preparo proissional mais possibilidades de se obter
remuneração salarial mais elevada, bem como aposentadoria asse-
gurada (MELO JUNIOR, 2010, p. 158).

82
Os Clássicos da Sociologia e a Educação – Capítulo 2

Outro aspecto fundamental na análise de Weber sobre a educação


superior de seu período é a tendência à “submissão do sujeito à máquina
burocrática”. Enquanto pensador liberal, Weber criticava a dominação
burocrática que prevalecia no ensino superior alemão à época. Assu-
mindo uma posição crítica, Weber argumentava que “na Alemanha, os
princípios pedagógicos focavam-se em formações educacionais buro-
cráticas, gerando e fortalecendo, dessa forma, todo um sistema de or-
ganização social e política centrado na burocracia estamental” (MELO
JUNIOR, 2010, p. 162).

Atividades
01. Assista ao ilme A testemunha e analise as diferenças de duas reali-
dades sociais, marcadas (uma) pela solidariedade mecânica e (outra) pela
solidariedade orgânica.

02. Deina de forma sintética o que é ideologia.


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03. Disserte sobre o processo de racionalização vivenciado pelas socieda-


des modernas.

04. Compare as três teorias sociais sobre educação, a de Marx, a de We-


ber e a de Durkheim.

83
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Reflexão
Quando as bases da vida em sociedade se modiicaram radicalmente
na Europa, emergiu a preocupação com a vida social, expressa por meio
de teorias sociológicas que procuravam compreender o quadro de pro-
fundas crises e transformações advindas do capitalismo, consolidado no
século XIX.
Como a religião já não era suiciente para dar as explicações que a
nova realidade social, política, cultural e econômica exigia, o pensamento
social passou a ganhar proeminência e destaque.
No campo das ideias, a pesquisa cientíica e as descobertas tecno-
lógicas tornavam-se uma meta cultural e social da maior importância. O
individualismo emergia como valor essencial da identidade humana, tra-
zendo junto de si a competição no mundo do trabalho.
Os principais representantes do conhecimento sociológico desta
época foram Karl Marx, Max Weber e Émile Durkheim, autores até hoje
estudados e conhecidos como os representantes da sociologia clássica.
Por meio de diferentes abordagens, esses autores nos permitem interpre-
tar a realidade social, a partir de temáticas que, embora tenham nascido
na transição para o mundo moderno, e se consolidaram no século XIX,
perpassaram o século XX e continuam se colocando como essenciais no
século XXI, contexto em que vivemos os relexos e as intensiicações do
que signiicou e permaneceu existindo como sociedades complexas pro-
duzidas pelo advento do capitalismo.

Leituras recomendadas
Para um aprofundamento na obra dos clássicos da sociologia, leia
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia? São Paulo: Brasiliense, 1980;
FREUND, Julien, Sociologia de Max Weber. 4ª ed. Rio de Janeiro: Fo-
rense, 1987; e RODRIGUES, José Albertino. Introdução. In: Durkheim
(org. Rodrigues, José Albertino). São Paulo, 2ª ed. Ática, 1981: p. 39-70.

Referências bibliográficas
Proibida a reprodução – © UniSEB

ARON, R. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins


Fontes, 1982.

84
Os Clássicos da Sociologia e a Educação – Capítulo 2

______. As etapas do pensamento sociológico. São Paulo: Martins


Fontes, 1995.

BERGER, Peter e BERGER, Brigitte “Socialização: como ser um


membro da sociedade” In: FORACCHI, M. e MARTINS, J. S. Socio-
logia e sociedade. Rio de Janeiro: Livros técnicos e cientíicos, 1977.

BOTTOMORE, T.B. Introdução à sociologia. Rio de Janeiro: LTC, 1987.

CHAUÍ, Marilena O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 1980.

COHN, Gabriel. Weber-Sociologia. São Paulo: Ática, 1986 (Coleção


Grandes Cientistas Sociais).

______. Introdução. In: Weber, Coleção Grandes Cientistas Sociais.


São Paulo: Ática, 1997, p. 7-34.

COSTA, Cristina. Sociologia: introdução à ciência da sociedade. São


Paulo: Editora Moderna, 1977.

DIAS, Reinaldo. Introdução à Sociologia. São Paulo: Pearson Prenti-


ce Hall, 2005.

DURKHEIM, Emile “Objetividade e identidade na análise da vida so-


cial” In: FORACCHI, M.A. e MARTINS, J.S. Sociologia e sociedade,
São Paulo: Livros Técnicos e Cientíicos Editora, 1977.
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______. Grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática, 1995.

FERREIRA JR., A.; BITTAR, M. A Educação em uma perspectiva


marxista: uma abordagem baseada em Marx e Gramsci. Interface - Co-
munic., Saúde, Educ., v.12, n.26, p.635-46, jul./set. 2008.

FREUND, Julien, Sociologia de Max Weber. 4ª ed. Rio de Janeiro:


Forense, 1987.

LAKATOS, Eva Maria e MARCONI, M. A. Sociologia geral. São


Paulo: Atlas, 1999.
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Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

MARTINS, C. B. O que é sociologia? Coleção Primeiros passos. Rio


de Janeiro: Brasiliense, 1988.

______. O que é sociologia? São Paulo: Brasiliense, 1994.

MARX, K; ENGELS, F. Grandes cientistas sociais. São Paulo: Ática,


1994.

MELO JÚNIOR, João Alfredo Costa de Campos. Burocracia e Educa-


ção: uma análise a partir de Max Weber. Pensamento plural (UFPEL),
v. 6, p. 147-164, 2010.

MILLS, Wright. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar Edi-


tores, 1972.

PLATÃO. O mito da caverna. A República. Porto Alegre: L&PM,


2008.

TURNER, J. Sociologia: conceitos e aplicações. São Paulo: Makron


Books, 2003.

VILA NOVA, Sebastião. Introdução à sociologia. São Paulo: Atlas, 1995.

No próximo capítulo
No próximo capítulo reletiremos sobre abordagens mais contempo-
râneas da sociologia, relacionando-as com a àrea da educação.
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86
A Educação e as Teorias
Sociais Contemporâneas
3 Muitas vezes agimos tão “naturalmente” que
não nos damos conta de que incorporamos dis-
lo
posições sociais em nossa forma de agir e pensar.
Pouco atentamos que a forma como somos é fruto de
ít u

um processo de socialização desde a infância, por meio


do qual uma série de heranças vão repercutir em nossas
Cap

posições sociais, nossos gostos e mesmo em nosso desempe-


nho escolar e proissional. Pouco damos conta também de que
seguimos normas sociais, que existem mecanismos sociais cuja
função é controlar nossas ações de tal maneira que não possamos
perceber que nossas práticas são determinadas por um conjunto de
interesses sociais, políticos, econômicos, religiosos, históricos etc.
Vamos, neste capítulo, discutir tais questões colocados na abordagem
de dois autores centrais da sociologia contemporânea: Pierre Bourdieu
e Michel Foucault. Nosso objetivo é compreender os principais aspectos
de sua obra, bem como suas análises sobre a área de educação.

Objetivos da sua aprendizagem


• Compreender os aspectos teórico-conceituais fundamentais da obra
de Pierre Bourdieu;
• Entender a teoria da reprodução do autor em sua abordagem da edu-
cação escolar;
• Reletir sobre os elementos centrais da obra de Michel Foucault;
• Analisar como alguns de seus conceitos e estudos permitem uma
relexão aprofundada sobre aspectos fundamentais da educação mo-
derna.

Você se lembra?
Nos capítulos anteriores, abordamos as relexões sobre a
socialização, conceito fundamental que versa sobre o ser
humano enquanto “ser social”. A obra durkheiminiana,
fruto de relexões fundadoras do pensador clássico da
sociologia, considera um aspecto fundamental da
relação entre sociedade e indivíduos: a coerção
social, por meio da qual a coletividade se impõe a suas partes. Voltaremos a
este tema reconigurados na obra de dois autores contemporâneos também
franceses.
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

3.1 O Pensamento de Pierre Bourdieu


Veremos, agora, dois grandes pensadores contemporâneos que po-
dem ser de suma importância para reletirmos sobre os processos de socia-
lização, principalmente na sociedade contemporânea, marcada por inúme-
ras transformações. Falamos anteriormente sobre o papel da família, mas
e o restante da sociedade? Como somos inluenciados? Como absorvemos
as regras sociais? A cultura? Como futuros proissionais, conhecer as
ideias de Pierre Bourdieu permitirá uma relexão sobre a sociedade em
que vivemos e sobre como nos inserimos na estrutura social e contribu-
ímos para sua perpetuação. Isso porque Bourdieu pensou no homem e
nas estratégias que ele utiliza para se distinguir; mais do que isso, pensou
nos sujeitos de seu tempo, inseridos em uma sociedade na qual o capital
exerce hegemonia sobre esse sujeito, mas foi além da ideia de que existe
somente um capital, e veremos por quê.
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Pierre Bourdieu

Alguns conceitos são essenciais para que possamos compreender o


pensamento de Pierre Bourdieu. A complexidade de sua análise pede que
sejamos minimamente didáticos. Por isso, veremos agora dois de seus
principais conceitos: habitus e campo.
89
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

3.1.1 Habitus
Você já se perguntou sobre algumas de suas ações mais simples?
Como dormir, ou escovar os dentes, por exemplo? Na linguagem do senso
comum chamamos essas ações de “hábito”. Geralmente estão ligadas a
coisas que fazemos mecanicamente, sem pensar. E tomar banho? Parece
algo tão natural, não é mesmo? É como se o incômodo provocado pela
sujeira pedisse que nos banhássemos!

Pierre Bourdieu é considerado um dos maiores pensadores da contemporaneidade,


seus conceitos e teorias ultrapassaram a filosofia e estenderam-se principalmente para a
sociologia, antropologia, educação, psicologia etc. É reconhecido internacionalmente, possui
uma vasta e complexa obra, seus conceitos são elaborados e de grande profundidade
teórica.
Muito do vocabulário teórico de Bourdieu faz parte da prática daqueles que traba-
lham com questões sociais (como habitus, estilo de vida, campo, violência simbólica). Bour-
dieu foi um pensador do nosso tempo, teorizou e elaborou análises sobre a nossa realidade
social: urbana, midiática, informativa, simbólica, distintiva.

Mas todas essas ações não são naturais, elas são resultado de um
processo de socialização. Internalizamos essas práticas a ponto de “natu-
ralizá-las”, de confundirmos ações sociais com “instinto” ou “determina-
ções biológicas”. Até poucos séculos atrás, acreditava-se, por exemplo,
que as camadas de sujeira nos protegiam das doenças!
Pensando em como os processos de socialização são apreendidos
pelos homens, ou seja, como aquilo que é constituído social e historica-
mente nos parece algo “natural”, é que Pierre Bourdieu elabora o conceito
de habitus. Este conceito permite compreender como interiorizamos e
exterioridade social e como exteriorizamos nossas interioridades, como a
sociedade se deposita nos indivíduos e se transforma em disposições du-
ráveis que exprimem as necessidades objetivas deles. São como estruturas
formadas para pensarmos, sentirmos e agirmos. Seriam, comparativamen-
te, as práticas sociais duradouras, que chamamos de tradição, costumes.
A conceituação de Bourdieu faz do habitus um operador prático
para que possamos entender o princípio uniicador que rege os grupos
sociais, e que gera as práticas socialmente reconhecidas, estas que encon-
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tram limites nas condições das quais elas são produto. Esses limites não
são necessariamente econômicos – apesar de o capital inanceiro ser um
dos condicionantes.

90
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

Não é propriamente um baixo ou alto salário que comanda as prá-


ticas objetivamente ajustadas a esses meios, mas o gosto, gosto
modesto ou gosto de luxo, que é a transcrição durável delas nas ten-
dências e que encontra nesses meios as condições de sua realização.
Isso se torna evidente em todos os casos onde, em seguida a uma
mudança de posição social, as condições nas quais o habitus foi
produzido não coincidem com as condições nas quais ele funciona e
onde podemos, portanto, apreender um efeito autônomo do habitus,
e através dele, das condições (passadas) de sua produção. (BOUR-
DIEU, 1983)

A ideia de habitus, como o social incorporado, uma natureza


socialmente construída que é capaz de impulsionar a ação social em
estratégias inconscientes, é de extrema importância para entendermos
aspectos dos processos de socialização. Por se confundir com a ordem
natural, o habitus levanta a questão do que é propriamente natural e
aquilo que é artiicial (sociocultural), é nessa interrogação que surge a
tensão entre o corpo natural e o corpo transformado – pela cosmética, o
vestuário, a máscara, os gestos e as ações. Não para resolver, mas para
esclarecer é que a noção de habitus é útil,
já que ele é o “social escrito no corpo,
Podemos perceber
no indivíduo biológico” (BOUR- no conceito de habitus sua
DIEU,1988) e que é esse social relação com o materialismo histórico,
em que diferentes condições materiais de
registrado no indivíduo que faz existência imprimem aos indivíduos, perten-
com que as ações sociais sejam centes aos diferentes grupos sociais, por elas
determinados, um conjunto de práticas e representa-
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orquestradas sem a necessida- ções mais ou menos recorrentes. Contudo, podemos


de da batuta de um maestro. observar que não há uma relação direta, unívoca,
entre condições específicas e as práticas delas recor-
rentes. As condições materiais de existência não
Essa “dinâmica” do ha- são o único determinante do habitus, segundo
bitus faz com que ele penetre Bourdieu.

“numa situação, em costumes e em


instituições humanas” (1988) dando
dimensão à regularidade e reproduzindo
regras, não escritas, que atendem às exigências do jogo social e fazem dos
indivíduos sujeitos sociais. Resumindo: o conceito de habitus ajuda-nos a
compreender como ocorre o processo de socialização.

91
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

3.1.2 Campo
Já vimos que todos nós pertencemos a grupos sociais – a mais de
um, inclusive – mas já repararam que nos comportamos de maneira muito
diferente em cada um deles? Utilizamos maneiras diferentes de falar, agir,
até mesmo de demonstrar nossos sentimentos. As relações sociais se ade-
quam ao grupo social, é como se cada grupo tivesse suas próprias regras,
sua própria lógica, e, então, temos de “jogar conforme as regras” daquele
jogo, no trabalho, na família, entre os amigos da escola, entre os amigos
da igreja, com os vizinhos etc. Foi justamente percebendo que os grupos
sociais possuem características especíicas que Bourdieu elaborou um outro
conceito que permite compreendermos os processo de socialização, mais do
que isso, possibilita a veriicação de que tal processo ocorre de diferentes
maneiras em diferentes grupos sociais, o que o teórico chamou de campo.
O campo é, para Bourdieu, um espaço social estruturado em que
ocorre uma disputa (um jogo) de forças entre dominantes e dominados,
em uma relação de desigualdade. Essa luta entre os indivíduos pertencen-
tes a um determinado campo se orienta na intenção de conservar ou de
transformar a posição no interior desse mesmo campo, posição que indica
a força que cada indivíduo possui.
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O conceito de campo põe em prática a ideia de que os grupos sociais


funcionam como uma espécie de microcosmo, com leis próprias, sem no
entanto deixar de pertencer a uma posição no que Bourdieu chama de
mundo global. Não é possível compreender um determinado campo se os
92
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

fatores externos não forem levados em consideração, assim como a rela-


ção que esse campo estabelece com outros campos (o campo jornalístico
com o campo político, por exemplo). Vale dizer que a luta no interior do
campo não é puramente econômica (pelo maior salário), é também pela
posição de poder e força dentro desse campo, possui um peso econômico,
mas também um peso simbólico e as relações de força são medidas por
esses dois fatores.
As posições no interior de um determinado campo possuem pesos
relativos ao espaço que ocupa o próprio campo na sociedade, se sua posi-
ção permite ditar ou não a lei: “um espaço – o que eu chamaria de campo
– no interior do qual há uma luta pela imposição da deinição do jogo e
dos trunfos necessários para dominar nesse jogo” (BOURDIEU, 1990).
A ideia de campo permite compreendermos como se dão as relações
sociais, ou seja, como o processo de socialização se completa a partir do
momento que internalizamos “as regras do jogo”.
Autor de uma soisticada teoria dos campos de produção simbólica,
Pierre Bourdieu (1930-2002) buscou mostrar, ao longo de sua trajetória
intelectual, que as relações de força entre os atores sociais apresentam-se
sempre na forma transigurada de relações de sentido. A violência sim-
bólica, um dos temas centrais de sua obra, não é tratada como um mero
instrumento a serviço da classe dominante, mas como poder que se exerce
também através do jogo entre os atores sociais.
O campo da produção sociológica de Bourdieu é amplo: arte, ci-
ências, moda, literatura, economia, ilosoia etc. Essa intensa produção
sociológica o leva a fundar a revista Actes de la Recherche en Sciences
Sociais (1975), que atualiza o estilo das publicações cientíicas pela intro-
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dução de fotograias, de encartes e da maquete.


Bourdieu elegeu como horizonte de preocupações teóricas a tarefa de
desvendar os mecanismos da reprodução social que legitimam as diversas
formas de dominação. Para viabilizar o encaminhamento dessa discussão,
desenvolve conceitos especíicos, tais como campo social e habitus, que se-
rão abordados mais adiante. Bourdieu redimensiona o peso dos fatores eco-
nômicos para a explicação dos conlitos entre as classes sociais, trazendo à
cena também as questões não materiais, ou seja, simbólicas.
A partir da ideia de violência simbólica, o sociólogo enfatiza que a
produção simbólica na vida social não é arbitrária, sublinhando seu caráter
efetivamente legitimador das forças dominantes, expressando-se por meio
delas os gostos de classe e os estilos de vida, e gerando a distinção social.
93
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

É possível dizer que a problemática teórica dos escritos do sociólo-


go francês esteja assentada na mediação entre atores sociais e sociedade.
Bourdieu propõe o conhecimento praxiológico, gênero de conhecimento
que busca a articulação dialética entre ator social e estrutura social, tal
como analisaremos a seguir.

3.2 Como Pierre Bourdieu enxerga a sociedade?


Bourdieu busca compreender os elementos que envolvem a distri-
buição desigual de oportunidades entre os indivíduos e atenta, por exem-
plo, para o sistema escolar enquanto mecanismo de distinção social e de
reprodução da hierarquia social. É o próprio fundamento da sociedade
meritocrática que ele critica, já que os indivíduos partem de condições de
existência desiguais, sendo o sistema de ensino considerado a ponta de
lança dessa ideologia. Para o sociólogo, “mesmo quando repousa na força
nua e crua, a das armas ou a do dinheiro, a dominação possui sempre uma
dimensão simbólica” (BOURDIEU, 2001, p. 209), uma dimensão que não
conseguimos enxergar, mas que é atuante e decisiva.

3.3 Gosto de classe e estilo de vida


Bourdieu desenvolve uma análise, em A distinção (1979), voltada
para a identiicação das correspondências entre práticas culturais e classes
sociais, assim como para a compreensão do princípio que legitima a hie-
rarquia aí inscrita.
A esse respeito, duas importantes ideias que compõem o pensamen-
to de Bourdieu, através das quais é possível veriicar essas correspondên-
cias são “gosto de classe” e “estilo de vida”. Essas ideias nos serão impor-
tantes na medida em que atuam como peças-chave para a compreensão
da violência simbólica que recai sobre todos os indivíduos, ainda que de
formas distintas e em diferentes intensidades.
O “gosto” é deinido por Bourdieu como sendo a propensão e a
aptidão à apropriação (material ou simbólica) de uma determinada ca-
tegoria de objetos ou práticas classiicadas e classiicadoras. O conjunto
dos gostos compõe determinado estilo de vida. Por exemplo, a visão de
mundo de um marceneiro, seu modo de gerir seu orçamento, seu tempo,
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o uso que faz da linguagem, a escolha de suas indumentárias estão pre-


sentes em sua ética e em sua estética de trabalho impecável, que prevê o
cuidado, o esmero, o “bem-acabado”, que o leva a mensurar a beleza de
seus produtos pela paciência e cuidado que exigiram quando de sua fatura
94
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

(BOURDIEU, 1994). Esse conjunto de práticas e Conexão:


comportamentos que conigura suas preferên- Texto sobre Pierre
Bourdieu:
cias e suas possibilidades de escolha expressa http://www.espacoacademico.
um determinado estilo de vida. O gosto é uma com.br/010/10bourdieu02.htm
manifestação do estilo de vida.
Os gostos obedecem a uma certa tendên-
cia: os objetos raros, que constituem um luxo
inacessível ou uma fantasia para os ocupantes de
uma classe social menos favorecida tornam-se comuns pela massiicação,
essa dinâmica da sociedade capitalista, que faz com que mercadorias an-
tes tidas como raras e com alto custo se tornem cada vez mais acessíveis,
ao passo que presenciamos o surgimento de novos consumos, mais raros
e mais distintivos, responsáveis pela atualização do distanciamento entre
as classes sociais, reavivando a barreira simbólica (invisível e intranspo-
nível) que as separa.
Até pouco tempo, a posse de um celular era fator de distinção entre
as classes, pois se tratava de uma mercadoria rara e cara. A produção em
massa de celulares concorreu para a sua popularização, ao passo que ou-
tros produtos se tornaram portadores de novas distinções, como é o caso
da TV de plasma, cuja tendência é também se popularizar, dando lugar a
um outro artigo, e assim por diante.
Os diferentes estilos de vida demarcam oposições entre as classes
sociais, que se exprimem através das preferências, seja em matéria de
pintura, cinema, teatro, seja com relação à mobília, à vestimenta, ao uso
da linguagem etc. O estilo de vida das classes populares encerra sempre
o reconhecimento tácito e explícito dos valores dominantes, deinindo-se
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pela privação, pela ausência dos consumos de luxo (quadros, concer-


tos, cruzeiros, exposições de arte, antiguidades etc), que na verdade são
substituídos por versões que denunciam o desapossamento (é o caso, por
exemplo, da aquisição da imitação do couro, de produtos já massiicados,
de réplicas etc).
Segundo Bourdieu, a oposição entre champanhe e uísque condensa
o que separa a burguesia tradicional da nova burguesia. Da mesma forma,
o universo da música, da pintura, da literatura oferece uma dimensão sim-
bólica prolíica no que se refere às possibilidades de distinção social. Os
atores se diferenciam de acordo com o consumo de bens que orienta esti-
los de vida especíicos, sendo o conlito social multidimensional, manifes-
tando-se na escolha proissional, nas formas legítimas de apropriação das
95
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

obras de arte, na maneira de fruir o lazer, e em outras incontáveis sutilezas


que passam despercebidas pela imponência com que o conlito de classes
materialmente se exprime.
Através do uso da noção de violência simbólica, Bourdieu busca
desvendar o mecanismo que faz com que os indivíduos vejam como
“naturais” as representações ou as ideias sociais dominantes. A violência
simbólica é desenvolvida pelas instituições e pelos atores que as animam
e sobre as quais se apoia o exercício da autoridade.
É conveniente destacar que a teoria da simbolização em Bourdieu
apreende o mundo social enquanto locus privilegiado de atribuição de
sentido à existência (reconhecimento, consideração) e aponta para uma
relação, aí subjacente, entre este sentido e a distribuição desigual de capi-
tal simbólico. Segundo suas palavras, “dentre todas as distribuições, uma
das mais desiguais e, em todo caso, a mais cruel, é decerto a repartição
do capital simbólico, ou seja, da importância social e das razões de viver”
(Idem, Ibid., p. 294), sendo o capital simbólico deinido como o produto
da transiguração de uma relação de força em relação de sentido.

Um dos principais alvos da crítica de Bourdieu, nos seus últimos anos de vida,
foi a atuação dos meios de comunicação, que estariam, segundo ele, cada vez mais sub-
metidos a uma lógica comercial inimiga da palavra e dos significados reais da vida. Bourdieu
foi um crítico feroz do tipo de cultura produzido pelas mídias contemporâneas.

Os conlitos simbólicos entre as classes sociais se mostram não atra-


vés das diferenças materiais que as caracterizam (excesso ou falta de po-
der aquisitivo), mas através do modo como o dinheiro é utilizado, estando
enraizados nas desigualdades sociais.

3.4 O papel do Estado


Ao voltar-se para o estudo do papel do Estado (tendo em vista as
sociedades diferenciadas), Bourdieu evidencia sua atuação no recrudesci-
mento da incorporação “automática” das estruturas sociais, já que ele está
apto a inculcar (de modo universal e nos limites previstos por uma juris-
dição territorial) um “conformismo moral e lógico”. Segundo o sociólogo,
o Estado contribui, de modo determinante, para a produção e reprodução
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dos instrumentos de construção da realidade social, impondo princípios


que são a base para classiicação (sexo, idade, “competência” etc), basea-
do na imposição de clivagens em categorias sociais (ativos/inativos etc),
que se coniguram como reiicadas e naturalizadas.
96
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

A construção do Estado se faz pari passu à construção do que se po-


deria chamar de transcendental histórico comum, que se inscreve a todos os
“sujeitos”, durante um longo processo de incorporação. Assim, “mediante
o enquadramento imposto às práticas, o Estado institui e inculca formas
simbólicas comuns de pensamento, contextos sociais de percepção, do
entendimento ou da memória, formas estatais de classiicação, ou melhor,
esquemas práticos de percepção, apreciação e ação” (BOURDIEU, 2001, p.
213), orquestrando, então, um consenso acerca de um conjunto de evidên-
cias partilhadas, passíveis de darem forma ao senso comum.
Um outro ponto importante está relacionado ao retraimento do Es-
tado. Segundo Bourdieu, o Estado está se retirando de um certo número
de setores da vida social que eram de sua responsabilidade: a habitação
pública, a escola pública, os hospitais públicos etc. Trata-se de um Estado
desinteressado pelas questões públicas, esvaziado de seu sentido político
e submisso aos valores da economia.

3.5 Bourdieu e a Educação.


É muito possível que você já tenha ouvido a expressão: “se você
quiser ser alguém na vida, estude!” A expressão relete a crença de que o
desempenho proissional está vinculado ao desempenho escolar, ou seja,
quanto mais você se esforçar para adquirir conhecimentos na escola, mais
chances você terá de conquistar um padrão de vida privilegiado. A escola
seria, nesta visão, a porta de entrada para a ascensão social. As desvan-
tagens econômicas poderiam ser revertidas com o esforço individual do
aluno. Pierre Bourdieu é um dos críticos desta visão difundida no senso
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comum. A questão não é exatamente duvidar da possibilidade de ascensão


social de um indivíduo que se esforçou para obter os melhores desem-
penhos escolares, muito menos questionar a importância das políticas
educacionais no combate às desigualdades. O ponto central para Bourdieu
é a compreensão da escola como uma instância reprodutora das desigual-
dades sociais. Em síntese, Bourdieu apresenta uma visão:

crítica às concepções da escola como instância democratizadora e


difusora de uma cultura universal e racional, e sua airmação do ca-
ráter de classe inscrito em suas formas de recrutamento do público,
em seu funcionamento pedagógico e em seus efeitos sobre o destino
social e proissional dos egressos (NOGUEIRA, 2004, p. 58).

97
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Bourdieu é um estudioso que se devotou ao tema da educação sob o


prisma sociológico e baseado em pesquisas quantitativas de amplo escopo
sobre o sistema escolar francês chegou a conclusões que correlacionam
o sucesso e destino escolar dos alunos não a seu esforço pessoal ou inte-
ligência e capacidade singular de raciocínio, mas sim à herança familiar.
Neste sentido, a escola é uma reprodutora das desigualdades que advém
das heranças familiares de seus alunos. Para chegar a tal explicação, o so-
ciólogo francês diferencia os alunos em termos de habitus:

cada indivíduo é caracterizado, pelo autor, em termos de uma ba-


gagem socialmente herdada. Essa bagagem inclui, por um lado,
certos componentes objetivos, externos ao indivíduo, e que podem
ser postos a serviço do sucesso escolar. Fazem parte dessa primeira
categoria, o capital econômico, tomado em termos dos bens e servi-
ços a que ele dá acesso, o capital social, deinido como o conjunto
de relacionamentos sociais inluentes mantidos pela família, além
do capital cultural institucionalizado, formado por títulos escolares.
Por outro lado, o patrimônio transmitido pela família inclui também
certos componentes que passam a fazer parte da própria subjetivi-
dade do indivíduo, sobretudo, o capital cultural em seu estado “in-
corporado” (NOGUEIRA, 2004, p. 59-60).

Como vimos anteriormente, a teoria de Bourdieu se preocupa com a


reprodução da desigualdade para além dos aspectos meramente econômi-
cos. Quando o autor relete sobre o sistema escolar, ele pensa na centrali-
dade, por exemplo, do capital cultural dos alunos, de acordo com a classe
social à qual pertence, ou seja, o aluno traz determinada “cultura geral”,
domínio da língua culta, o “bom gosto” instituído (em forma de arte, la-
zer, vestuário, etc.) que serão cobrados na escola:

a posse do capital cultural favoreceria o desempenho escolar na


medida em que facilitaria a aprendizagem dos conteúdos e dos có-
digos (intelectuais, linguísticos, disciplinares) que a escola veicula
e sanciona. Os esquemas mentais (as maneiras de pensar o mundo),
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a relação com o saber, as referências culturais, os conhecimentos


considerados legítimos (a “cultura culta” ou a “alta cultura”) e o
domínio maior ou menor da língua culta, trazidos de casa por certas
crianças , facilitariam o aprendizado escolar tendo em vista que
98
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

funcionariam como elementos de preparação e de rentabilização


da ação pedagógica, possibilitando o desencadeamento de relações
íntimas entre o mundo familiar e a cultura escolar. A educação
escolar, no caso das crianças oriundas de meios culturalmente fa-
vorecidos, seria uma espécie de continuação da educação familiar,
enquanto para as outras crianças signiicaria algo estranho, distante,
ou mesmo ameaçador (NOGUEIRA, 2004, p. 60-61).

Seguindo o argumento do autor, a avaliação escolar não se res-


tringe apenas à veriicação de aprendizagens, mas é também um “ver-
dadeiro julgamento cultural, estético e, até mesmo, moral dos alunos”
(NOGUEIRA, 2004, p. 61). Cobra-se do aluno determinado estilo de fa-
lar, escrever e até de se portar na escola, sendo que tais estilos correspon-
dem à cultura legítima, qual seja, a das classes dominantes. Além disso,
passa-se como invisível que a obtenção de determinados predicados como
a disciplina, o capital cultural, a presença de pais com conhecimento
prévio do sistema escolar, suas relações com o prestígio social e retorno
inanceiro têm impacto decisivo na trajetória escolar dos alunos. Sobre
tais aspectos, Maria Alice Nogueira nota a respeito da visão de Bourdieu:

dentre todas as estratégias educativas, a mais importante (e a mais


dissimulada) é a transmissão doméstica do capital cultural que de-
pende de um investimento em tempo e em transmissão cultural e
que assegura o mais alto rendimento em termos de resultado esco-
lar. Nesse ponto, o autor polemiza com os economistas que costu-
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mam acreditar que o mais importante dos investimentos educativos


é aquele direto de recursos monetários na escolarização dos ilhos
(NOGUEIRA, 2004, p. 69).

O capital econômico e social atua como auxiliar na obtenção de


capital cultural, permitindo o acesso a bens culturais mais caros, viagens,
estudo de línguas etc. O maior investimento na educação se dá quando há
percepção do vínculo entre êxito escolar e perspectiva de êxito social, ou
seja, quando se percebe como factível o retorno provável do certiicado
escolar no mercado de trabalho e/ou matrimonial. Neste caso, “as elites
econômicas, por exemplo, não precisam investir tão pesadamente na es-
colarização dos seus ilhos quanto certas frações das classes médias [..]”
(NOGUEIRA, 2004, p. 64).
99
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Pierre Bourdieu ainda nota, contrastando com as percepções difun-


didas no senso comum, que um diploma não garante sucesso no mercado
de trabalho, onde o capital econômico e social têm um peso signiicativo:

com base na constatação estatística que, com um mesmo diploma,


jovens com origem social mais elevada tendem a obter, no mercado
de trabalho, um rendimento maior de seus certiicados escolares do
que seus colegas pertencentes a meios sociais mais desfavorecidos,
Bourdieu formulou o que chamou de “lei do rendimento diferen-
cial do diploma” (BOURDIEU, 1979). Segundo o autor, o valor
de um título escolar dependeria também, em parte, da capacidade
diferenciada que cada grupo social e, dentro dele, que cada indiví-
duo possui de tirar proveito desse título. Os detentores do capital
econômico e social podem, por exemplo, maximizar os benefícios
potenciais de um diploma com a criação de condições mais favorá-
veis à sua utilização. Esse é o caso de certos ilhos proissionais li-
berais (advogados, médicos, dentistas etc.) que, ao se formarem nas
mesmas proissões dos pais, recebem não apenas um escritório ou
consultório montado ou uma carteira de clientes, mas também toda
uma rede de contatos proissionais, sem falar da eventual herança
de um capital simbólico associado a um sobrenome (NOGUEIRA,
2004, p. 67).

Pierre Bourdieu desmistiica, portanto, uma visão romântica da


escola, demonstrando seus mecanismos de reprodução da desigualdade.
Portanto, pensar na democratização da sociedade e no combate à desi-
gualdades exige uma relexão profunda. Bourdieu, de fato, questiona os
pressupostos meritocráticos da escola e da sociedade, demonstrando como
a herança familiar constitui um aspecto fundamental na compreensão do
desempenho escolar e da inserção e sucesso no mercado de trabalho.

3.6 Michel Foucault e a construção do sujeito


A densidade da obra de Foucault faz da tarefa de falar sobre seu
pensamento uma empreita difícil, justamente porque muito já foi escrito
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sobre ele e sobre seu pensamento, muitas controvérsias já foram criadas


e desfeitas, outras permanecem. Essa era a prática desse pensador que,
apesar de não ser adepto a classiicações, por sua veia marxista, levava a
cabo a ilosoia da práxis. Fazia questão de debater em público todas as
100
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

suas ideias, fato que o fez deixar em testamento a proibição de publicarem


qualquer escrito inédito após a sua morte, nos deixando “órfãos” da Histó-
ria da sexualidade IV.
Sua ilosoia elabora uma crítica ao indivíduo, dono de seu saber e de
seu fazer, questiona a ideia de verdade única e acabada. Coloca-nos no dor-
so do tigre, nas tramas da história e das condições de produção. Na teia dos
dizeres construídos sobre o homem. Questionando as práticas que permitem
”deinir o que são as coisas e situar o uso das palavras” (apud, 1969).
Foucault questiona também o poder e suas formas de sujeição: certa-
mente você já viu em algum lugar a frase “Sorria, você está sendo ilmado”.
O controle está por toda parte e, às vezes, nem nos damos conta. Esse poder
“invisível” é temática da análise foucaultiana. Quantas vezes não nos pega-
mos (principalmente as mulheres) olhando para o espelho e desejando umas
gordurinhas a menos?! Pautamo-nos naquilo que dizem que “é bom para a
saúde”. E os modelos do que é ser homem e do que é ser mulher, o que pode-
mos e não podemos fazer ou desejar? Foucault também se debruça sobre essa
construção da subjetividade em sua terceira época, pouco antes de morrer.
Michel Foucault foi um dos primeiros intelectuais a morrer vitimado por aquela
que seria considerada uma das piores doenças do século XX, a aids. Forma, ao lado de
nomes como Louis Althusser, Pierre Bourdieu, Jean Paul Sartre, Edgard Morin entre outros,
o grupo dos pensadores franceses mais significativos na história do pensamento contempo-
râneo, os escritos foucaultianos ultrapassaram o campo da filosofia e influenciaram as mais
diversas áreas do conhecimento como a sociologia, a antropologia, a linguística, a psica-
nálise, a história, a educação, o direito etc. Filho do cirurgião e professor de anatomia Paul
Foucault, mostrou interesse pela filosofia ainda na juventude, contrariando a tradição familiar
voltada para a medicina. Grande leitor, percorreu um caminho interessante: Hegel, Marx,
Nietzsche, Freud, entre outros.
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101
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Foucault era um ativista político, mas não fazia de sua obra intelec-
tual um panleto partidário, suas discussões ultrapassam o imediatismo
histórico e abrem discussões profundas sobre o sujeito, o poder, a lingua-
gem, o saber.
Por ser um pensador da segunda metade do século XX, conheceu
a ascensão da mídia televisiva e a hegemonia da indústria cultural, por
isso era um homem de seu tempo, midiático, existem diversas entrevistas
e debates gravados em que o pensador aparece expondo e discutindo as
questões de seu tempo, entre elas, a doença que o aligia, tão contempo-
rânea quanto ele, a aids. Foucault foi, admiravelmente, um pensador da
práxis política e ilosóica. Sua vasta produção teórica e política impede
uma sistematização de seu pensamento, por isso, via de regra, o caminho
escolhido é o cronológico, que coincide com suas abordagens temáticas.
Sendo assim, dividimos sua obra em três épocas: arqueologia do saber,
genealogia do poder e ética e estética de si.
Em comum, estes três períodos possuem a preocupação com o
sujeito e sua relação com o saber, o poder e a verdade – as três formas
primordiais de controle social –, por isso, são classiicadas também como:
saber saber, saber poder e saber fazer. Devemos lembrar que essa é uma
opção para classiicar o pensamento foucaultiano, não é a única, e nem
poderia ser diante de uma obra tão complexa, “encaixar” sua obra em
classiicações estanques seria negar sua abrangência, suas idas e vindas,
suas reformulações.
O grande legado de Foucault foi pensar o homem como sujeito e ob-
jeto do conhecimento, por isso não há como negar a herança iluminista de
sua ilosoia – apesar de reformulá-la. O homem é um produto do próprio
homem, de sua prática discursiva e das intervenções de poder e controle
social. O homem é efeito de sentido. Seu trabalho é investigar como os
sentidos sobre esse homem foram produzidos com a intenção de dominá-lo,
controlar suas práticas e pensamentos, para isso deine seu método: o
arqueológico. Em Arqueologia do saber explica suas considerações me-
todológicas e traça um caminho teórico que irá segui-lo em seus escritos
sobre os saberes que falam sobre o homem (ilosoia, história, medicina,
psiquiatria, direito etc). Por esse fato, Foucault não se atém a uma ciência
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especíica, dialoga com as diversas áreas do conhecimento, com os diver-


sos saberes.

102
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

3.6.3 Arqueologia: o saber saber


Esta é a chamada primeira época do
pensamento foucaultiano, sua preocu- Os textos de
pação está centrada no discurso, em Foucault que pertencem
compreender como são produzi- a esse primeiro momento são:
História da loucura (1961), em que
dos, como circulam e como pro- utiliza pela primeira vez o termo arqueologia;
duzem saberes. Ou seja, quais As palavras e as coisas (1966), livro que tem
os efeitos dos saberes e sua como subtítulo Uma arqueologia das ciências
humanas – obra muito badalada na década de
constituição histórica e como 1960, apesar de ser um dos textos de mais difí-
estes são capazes de controlar e cil compreensão de Foucault; A arqueologia
determinar as práticas sociais. do saber (1969), livro no qual sistematiza
O método arqueológico é seu método de análise teórica, entre
outros.
definido por Foucault como uma
forma de análise que não seria pro-
priamente histórica e nem epistemológi-
ca, deine-se como uma descrição do arquivo. Sendo que, por arquivo,
entende-se o conjunto de discursos efetivamente pronunciados: “jogos de
regras que determinam numa cultura o aparecimento e o desaparecimento
dos enunciados, sua permanência e sua extinção, sua existência paradoxal
de acontecimentos e coisas”. (FOUCAULT, 1968)
O arquivo é tudo o que pode (ou não) ser dito em um dado mo-
mento, faz surgir um sistema de regras que permite o aparecimento e
a transformações de enunciados (dizeres), o arquivo é esse sistema de
enunciados que não pode, certamente, ser apreendido em sua totalidade.
Os dizeres compõem um conjunto de textos concretamente produzidos
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em um período histórico, esse fato Foucault chamou de acontecimento


discursivo, e sua investigação está pautada na análise da exterioridade,
ou seja, o que tornou possível a irrupção, a emergência de determinados
enunciados e não outros, quais condições histórica, econômicas, políticas
etc. permitiram, por exemplo, a incursão da literatura médica no discurso
sobre a loucura. Além disso, seu método pretende investigar o acúmulo
dos saberes, ou melhor, por que certos enunciados são conservados e ou-
tros relegados ao esquecimento.
A arqueologia traz consigo o sentido de escavação do passado.
Foucault determina dois sentidos: o que se refere ao tema da origem, a
busca pelo “começo”, ou melhor, pelas transformações dos saberes; e o
que está relacionado à escavação propriamente dita, mas esta última não
quer dizer a busca por algo secreto, escondido, o que o pensador pretende
103
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

é dar visibilidade ao que já está dito e se encontra invisível por alocar-se


na superfície dos discursos.
O método arqueológico elaborado por Foucault, possibilita “analisar
as redes de relações entre o discurso e outros domínios (instituições, acon-
tecimentos políticos, práticas e processos econômicos)” (GREGOLIN,
2004). É assim que em História da loucura especiica que os hospícios
surgem com a sociedade capitalista que prende seus loucos e os ociosos,
já que estes não “eram capazes de trabalhar” (FOUCAULT, 1971). Em
uma sociedade que valoriza o lucro e a obtenção de riquezas através do
trabalho, loucos são aqueles que não se dispõem a tal atividade produtiva,
Foucault revela que a loucura e os saberes construídos sobre ela são estra-
tégias de controle social e econômico.

O que a arqueologia quer revelar é o nível singular em que a histó-


ria pode dar lugar a tipos deinidos de discursos que têm, eles pró-
prios, seu tipo de historicidade q eu estão relacionados com todo um
conjunto de historicidades diversas (1969).

Sendo assim, a arqueologia constitui-se, segundo o próprio ilósofo,


como uma teoria para uma história do saber empírico, já que essas ciên-
cias têm grande profusão na sociedade e na história dos homens.
Ao se interrogar sobre como os discursos e práticas se relacionam,
surgem e se transformam, Foucault pretende, na verdade, questionar a
cultura e a sociedade sobre o nascimento de sua história, impondo a esta
os limites da própria cultura, das condições de produção, “vai em busca
da estruturação dos saberes, das epistemes que funcionam como o solo de
possibilidade para os saberes que coexistem em um certo momento histó-
rico” (2004)
Segundo Foucault, sua arqueologia não Conexão:
é uma história do conhecimento, e sim dos http://www.unicamp.
br/~aulas/: site que permite
movimentos de uma experiência. A história acesso à revista Aulas, que
da loucura é a história da experiência da dedica seu primeiro número
loucura, das noções, instituições, concei- inteiramente ao pensamento de
Foucault.
tos e práticas fundados nessa experiência,
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que se constitui além do próprio saber sobre


ela. Em seu livro sobre a história da loucura, o
autor reconstitui o arquivo de enunciados efetivamente
pronunciados sobre o que é a loucura, o que é ser louco, concluindo que
104
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

as práticas discursivas da atualidade (psicologia, psiquiatria, psicanálise,


arte) narram o louco não mais como o desatinado, o insensato e sim como
o alienado.

Enquanto outrora, na experiência clássica, ele era logo designado,


sem outro discurso, por sua presença apenas na partilha visível –
luminosa e noturna – entre o ser e o não ser, ei-lo agora portador
de uma linguagem e envolvido numa linguagem nunca esgotada,
sempre retomada, e remetido a si mesmo pelo jogo de seus contrá-
rios, uma linguagem onde o homem aparece na loucura como sendo
outro que não ele próprio (...) ele é o alienado na forma moderna da
doença. (FOUCAULT, 2002)

Foucault é um teórico de enfrentamentos, coloca frente a frente os


discursos e as prática sociais, práticas estas, como sabemos, condiciona-
das por interesses políticos e econômicos (aí ele revela sua vertente ma-
terialista) que pretendem, por esta razão, controlar as ações dos sujeitos.
O pensamento do autor está fundamentado na ideia de que o surgimento
da sociedade capitalista é concomitante à propagação das técnicas de con-
trole social que ultrapassam o poder do Estado: a medicina, por exemplo,
que “medicaliza” a loucura e conina os loucos em asilos e hospícios.
A arqueologia de Foucault pretende elucidar o fato de que as ciên-
cias humanas se constituem pela articulação com um conjunto de discur-
sos que possibilitaram sua insurgência. Sua temática “é a autotematização
do homem, enquanto objeto e sujeito da ciência, no contexto da histori-
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cização da cultura ocidental (...) as condições epistemológicas propícias


para que o homem se torne objeto de estudos” (GREGOLIN, 2004).
O homem é o centro da experiência da modernidade, os discursos
cientíicos e artísticos têm o homem como elemento central de seus saberes.
O saber sobre o homem não é um privilégio das ciências humanas: “o modo
de ser do homem com o qual as ciências humanas se ocupam diz respeito
à maneira como ele se representa, tomando em consideração sua natureza
biológica, social e histórica” (PINHEIRO; LIMA;RIOS, 2006).
Foucault busca a reconstituição do arquivo de uma época, que pos-
sui, segundo ele, uma lógica própria, que foge à ideia de continuidade
histórica tradicional – aquela da linha do tempo dos acontecimentos his-
tóricos – e faz emergir as brechas e a descontinuidade (ideia cara à teoria
foucaultiana). Entende o próprio homem como um acontecimento, ou
105
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

seja, como um produto de discursos e saberes. O homem é uma invenção


moderna, que surgiu da possibilidade dada pela vida, pelo trabalho e pela
linguagem, pertencente a um tempo inito que faz surgir um homem igual-
mente inito.

Em certo sentido, o homem é dominado pelo trabalho, pela vida


e pela linguagem: sua existência concreta neles encontra suas de-
terminações; só se pode ter acesso a ele através de suas palavras,
de seu organismo, dos objetos que ele fabrica – como se eles pri-
meiramente (e somente eles talvez) detivessem a verdade; e ele
próprio, desde que pensa, só se desvela a seus próprios olhos sob a
forma de um ser que, numa espessura necessariamente subjacente,
numa irredutível anterioridade, é já um ser vivo, um instrumento
de produção, um veículo para palavras que lhe preexistem. Todos
esses conteúdos que seu saber lhe revela exteriores a ele e mais ve-
lhos que seu nascimento antecipam-no, vergam-no com toda a sua
solidez e o atravessam como se ele não fosse nada mais do que um
objeto da natureza ou um rosto que deve desvanecer-se na história.
A initude do homem se anuncia (...) sabe-se que o homem é inito,
como se conhecem a anatomia do cérebro, o mecanismo dos custos
de produção ou o sistema da conjugação indo-europeia. (FOU-
CAULT, 1992)

Foucault desconstrói a ideia de causalidade da história tradicional,


mostrando ser possível haver ruptura entre duas epistemes, entre dois pen-
samentos, deixando de lado a ideia de continuidade histórica como uma
linha sem falhas ou interrupções.
Em Arqueologia do saber, Foucault explicita sua metodologia, re-
toma questões abordadas em escritos anteriores e sistematiza sua teoria
arqueológica. Como ponto nevrálgico de sua tória está a ideia de discur-
so – objetivo maior de seu método. “(...) deinir não os pensamentos, as
representações, as imagens, os temas, as obsessões que se ocultam ou se
manifestam nos discursos, mas os próprios discursos, enquanto práticas
que obedecem a regras” (apud, 2004).
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E essas regras obedecem uma lógica que ultrapassa a linearidade da


grande história. Foucault quer investigar como certos discursos puderam
surgir e, para isso, cria uma série de conceitos que são fundamentais para
o entendimento de suas análises. Vale dizer que a arqueologia do saber
106
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

entende os fenômenos e sua origem como particularidades, acontecimen-


tos descontínuos, e não como uma evolução de fatos que possuem uma
origem determinada que continua em um progresso ininterrupto.
Então as palavras têm poder? Os discursos são capazes de controlar
os sujeitos? É justamente isso que o teórico pretende mostrar! Os saberes
que chamamos de ciência – por exemplo – que tomamos como verdade
muitas vezes inquestionável, são também maneiras de controlar as ações
dos indivíduos, fazendo-os agir conforme determinam estes conhecimen-
tos. Quantas vezes você já ouviu a frase “é cientiicamente comprovado”
para convencê-lo de que aquela ideia ou ação é a mais válida?

3.7 Foucault: as tecnologias do poder (saber poder)


Você se lembra que, anteriomente, dissemos que Michel Foucault
pode ser compreendido a partir de suas três
épocas? Vimos inicialmente a “primeira
época”. Então, nos debruçaremos
agora sobre as segunda e terceira As duas obras mais signifi-
cativas desse período são Vigiar e
épocas do pensamento foucaul- punir e Microfísica do poder. Nessa
tiano, que estão ligadas ao seu fase, Foucault mergulha mais a fundo na
conceito de genealogia, que constituição do sujeito e investiga a origem de
controle sobre os sujeitos.
relaciona as técnicas de poder
e sua apropriação dos saberes
para o efetivo controle dos
sujeitos.
A temática do poder é
trabalhada com ainco e o autor
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revela que vivemos em uma socieda-


de disciplinar que elabora técnicas sutis de
controle, presentes comumente em instituições que não são, diretamente,
controladas pelo Estado, como a escola, a fábrica e a prisão. A contempo-
raneidade de seu pensamento está na derrubada dos muros da década de
sessenta, que via nos “aparelhos ideológicos do Estado” a única e possível
forma de controle sobre os sujeitos.
Em seus escritos, há também a concepção de que as transformações
tecnológicas implicam em transformações dos saberes. Vale dizer que,
para Foucault, o poder não é apresentado somente como uma forma ne-
gativa de controle, ele aponta também sua positividade – veremos essas
ideias a seguir.
107
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Outro conceito importante para o pensamento foucaultiano é o de


genealogia. Que tem relação direta com o de arqueologia. Para ele, o
historiador deve ser um genealogista, manter seu compromisso com a des-
continuidade e com a elisão do sujeito. O genealogista não deve procurar
a verdade oculta nos documentos – esta não existe –, mas deve apontar as
determinações daquele documento, ou seja, quais condições materiais o
izeram surgir, condições estas que são ordenadas e delimitadas pela expe-
riência do poder e dos saberes.
Como genealogista, Foucault indica a época clássica como origem
desse poder “tecnológico”, “sutil”. “As ‘Luzes’ que descobriram as li-
berdades inventaram também as disciplinas” (FOUCAULT, 2000). Seu
trabalho revela que a disciplinaridade é um conjunto de técnicas de sub-
jetivação, o sujeito fabricado pelo Renascimento e pela Modernidade foi
determinado por contingências – acontecimentos –, e não por um progres-
so histórico como queria a história tradicional.
As transformações do século XVIII que instauraram um novo re-
gime, o Estado de governo, criaram também novas instâncias de poderes
e saberes. O Antigo Regime conhecia um poder pastoral exercido pelo
soberano, e as relações resultantes dessa estrutura aniquilavam a individu-
alidade, esta só aparecia em sujeitos próximos ao soberano, os indivíduos
afastados das frações superiores de poder não possuíam sua individualida-
de marcada. Já nesse novo Estado o poder se distribui e todos os sujeitos
se individualizam, são nominados, e o controle deixa de ser exercido pelo
poder do soberano e passa a se instaurar na normalização (leis, costumes
etc), as classiicações cumprem o papel controlador – normalidade e anor-
malidade – e a disciplina passa a enquadrar os indivíduos e a comandar
suas ações, porém esse controle é exercido, principalmente, pelo próprio
sujeito, e dispositivos e tecnologias são criados para ensinar-nos a calcular
o que podemos e como devemos agir.
Num sistema de disciplina, a criança é mais individualizada que
o adulto, o doente o é antes do homem são, o louco e delinqüente
mais que o normal e o não delinquente. É em direção aos primeiros,
em todo caso, que se voltam em nossa civilização todos os meca-
nismos individualizantes; e quando se quer individualizar o adulto
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são, normal e legalista, agora é sempre perguntando-lhe o que ainda


há nele de criança, que loucura secreta o habita, que crime funda-
mental ele quis cometer. Todas as ciências, análises ou práticas com
radical “psico”, têm seu lugar nessa troca histórica dos processos de
indivudualização. (FOUCAULT, 2000)
108
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

A Revolução do século XVIII mudou também a maneira de punir os


corpos – portanto, o modo da dor e do sofrimento recaírem sobre eles – o
Antigo Regime visava despertar o gosto pelo sangue, exibir a dor, provo-
car sofrimento e adiar a morte; o instrumento de execução revolucionário
era mais rápido e sem a dramatização intensa dos rituais medievais: a gui-
lhotina livrava o corpo do sofrimento em vão.

Um exército inteiro de técnicos veio substituir o carrasco, anato-


mista imediato do sofrimento: os guardas, os médicos, os capelães,
os psiquiatras, os psicólogos, os educadores, (…) garantem que o
corpo e a dor não são objetos últimos de sua ação punitiva. (FOU-
CAULT, 1998)

A penalidade passa a ser incorpórea, o espetáculo é suprimido e a


dor anulada, já que o objetivo era atingir a vida e o que ela signiicava:
liberdade.

Quase sem tocar o corpo, a guilhotina suprime a vida, tal como a


prisão suprime a liberdade, ou a multa tira os bens. Ela aplica a lei
não tanto a um corpo real e susceptível de dor quanto a um sujeito
jurídico detentor entre outros direitos, do de existir (1998).

Se a dor persistir, por um momento que seja, ela será a consequ-


ência mínima de um objetivo maior que é o da privação da liberdade; o
corpo deve ser tocado na menor proporção possível “e para atingir nele
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algo que não é o corpo propriamente” (1998). Constrói-se, então, um su-


jeito disciplinado, cujo corpo é objeto das tecnologias disciplinares, mas
também não é totalmente passivo, como desejavam os contemporâneos
de Foucault, esse sujeito é capaz de pensar e representar, de dar sentido
ao que pensa (o de liberdade, o de sanidade, por exemplo). Vale dizer
que a disciplina não se identiica com uma instituição em particular,
é, antes de tudo, uma modalidade de exercício de poder. A experiência
disciplinar funciona como uma espécie de “pano de fundo” que impõe
sobre o corpo códigos e padrões de interdição e de permissão, que são
sutilmente transformadas em saberes (medicina, direito, pedagogia, his-
tória etc).

109
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

(...) o corpo também está diretamente mergulhado num campo


político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas
o investem, o marcam, o dirigem, o suplicam, sujeitam-no a tra-
balhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investi-
mento político do corpo está ligado, segundo relações complexas
e recíprocas, à sua utilização econômica; é numa boa proporção,
como força de produção que o corpo é investido por relações de
poder e de dominação; mas em compensação sua constituição
como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema
de sujeição onde a necessidade é também um instrumento político
cuidadosamente organizado, calculado e utilizado; o corpo só se
torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo sub-
misso. Essa sujeição não é obtida só pelos instrumentos da violên-
cia ou da ideologia; pode muito bem ser direta, física, usar a força
contra força, agir sobre elementos materiais sem no entanto ser
violenta; pode ser calculada, organizada, tecnicamente pensada,
pode ser sutil, não fazer uso de armas nem do terror, e no entanto
continuar a ser de ordem física. Quer dizer que pode haver um
“saber” do corpo que não é exatamente a ciência de seu funciona-
mento, e um controle de suas forças que é mais a capacidade de
vencê-las: esse saber e esse controle constituem o que se poderia
chamar a tecnologia política do corpo. Essa tecnologia é difusa,
claro, raramente formulada em discursos contínuos e sistemáticos;
compõem-se muitas vezes de peças ou de pedaços; utiliza um
material e processos sem relação entre si (...) Além disso, seria
impossível localizá-la, quer num tipo deinido de instituição, quer
num aparelho do Estado” (2000).

O corpo é, para Foucault, o lugar no qual se inscrevem as leis sociais


por meio das práticas e discursos. Por isso, a investigação a propósito do
controle que se impõe sobre esse corpo é fundamental para a compreensão
dos saberes e poderes presentes em nossa sociedade.
Compreender, por exemplo, que os ideais de beleza veiculados
pela televisão, pelo cinema, pelas revistas transformam o nosso corpo
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em matéria-prima da mercadoria vendida pelo discurso midiático alia-


do ao grande capital e à lógica de um sistema que entende os sujeitos
como indivíduos, os indivíduos como consumidores e os consumidores
como coisas; resultado de práticas individuais, ou individualizadas, de
110
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

embelezamento e cuidados de si que são, na realidade, a perpetuação da


versão da mídia de um corpo construído, glamurizado, assujeitado pelo
discurso da beleza perene, discurso, que em sua opacidade, não revela
a condição carcerária desse sujeito diante da ideologia e de seu meio de
produção mais eicaz – a mídia. O que os discursos não revelam é que
a beleza é uma mercadoria que permite produzir outras tantas mercado-
rias; que o nosso corpo é controlado pelo processo de produção, que se
instala em discursos dispersos, aparentemente não controladores, mas
capazes de arquitetar corpos dóceis e disciplinados para o consumo.
Como já apontado anteriormente, não devemos entender que os
dispositivos de controle as tecnologias e os saberes provindos desses
sistemas são intencionais, estão “a serviço do mal”. A disciplinaridade
garante, segundo Foucault, a produtividade, ou seja, permite que fabri-
quemos coisas. As disciplinas regulam os costumes, os hábitos e nossas
práticas produtivas. Ela interpenetra nosso cotidiano e é garantida pelas
instituições. A escola, por exemplo, estrutura o espaço social e oferece
“explicações” lógicas para as práticas disciplinares: “é preciso estudar
para vencer na vida”, por exemplo.
Essa genealogia de um poder que se articula ao discurso é peça
fundamental, segundo Foucault, para entendermos a sociedade do
controle em que estamos inseridos e na qual nos fazemos sujeitos. O
discurso da democracia está articulado à tecnologias de controle muito
soisticadas, como a mídia e o lazer – como no exemplo que vimos sobre
a beleza.
Segundo Foucault (2000) o sistema de controle e vigilância ideal é
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o panóptico. Arquitetura em que os indivíduos ocupam células distribuí-


das circularmente em torno de um edifício-observatório central “a plena
luz e o olhar de um vigia captam melhor que a sombra, que inalmente
protegia. A visibilidade é uma armadilha”, nos vemos sujeitos à visibi-
lidade, nos sentimos vigiados a todo o tempo. A Internet, hoje, é um es-
paço de visibilidade “invisível” de controle, somos vistos e não vemos,
vigiados e não sabemos por quem. Essa vigilância anônima faz com que
o indivíduo exerça um controle sobre si mesmo, independente de saber
se, naquele momento, está sendo vigiado ou não.

111
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Mecanismos como o panóptico, como a disciplina, fazem Fou-


cault airmar que o poder soberano do Estado de governo se torna
efetivo quando apoiado sobre o que ele chamou de uma microfísica
do poder, ou seja, em um poder pulverizado em práticas individuais,
subjetivadas, de controle, que se dão em instâncias não controladas
diretamente pelo Estado.

O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque
provém de todos os lugares. E “o” poder, no que tem de permanen-
te, de repetitivo, de inerte, de autorreprodutor, é apenas efeito de
conjunto, esboçado a partir de todas essas mobilidades, encadea-
mento que se apóia em cada uma delas e, em troca, procura ixá-las
(...) o poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma
certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma
situação estratégica complexa numa sociedade determinada. (FOU-
CAULT, 1999)

O poder, para Foucault, é uma relação, e não uma coisa. Os meca-


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nismos disciplinares são internalizados, é o que o autor chama de biopo-


der, um poder que controla a vida social por dentro e que se revela nos
discursos elaborados sobre o corpo, mais especiicamente sobre a sexuali-
dade, como veremos no tópico a seguir.
112
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

3.8 Ética e estética de si (o saber fazer)


Provavelmente você já se olhou no espelho e se perguntou: “eu sou
bonito(a)?”, sem contar nos inindáveis questionamentos que fazemos so-
bre o nosso corpo, nossa sexualidade e sen-
timentos. Boa parte dessas perguntas
– e das respostas que encontramos
também – são motivadas pelos
modelos de sujeito que inter-
nalizamos: como eu devo ser A ideia de biopoder é fundamental para
compreendermos essa terceira época do pen-
e me comportar?
samento foucaultiano, explicitado principalmente
A preocupação maior nos três volumes publicados de História da se-
de Foucault é com a produ- xualidade e em a Hermenêutica do sujeito.
ção desse sujeito, é pensar
como ele é constituído pri-
meiro pelo saber que o torna
um sujeito objetivado pela ciên-
cia – contraponto entre razão/loucura/
normalidade, sanidade/doença/anormalidade –,
em seguida pelo poder que o produz em práticas divisoras – disciplina – e,
então, por “ele mesmo”, que sofre um processo de subjetivação a partir da
elaboração das técnicas de si – temos aí a interiorização do controle.
O objetivo desse teórico é determinar, ou melhor, explicitar os dis-
cursos e os procedimentos existentes na sociedade para a constituição
da identidade a partir do cuidado de si, ou do que Foucault chamou de
técnicas de si, buscar a genealogia da subjetividade e das formas de “go-
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vernamentalidade”, reconstituir a história da subjetividade estudando as


relações do sujeito consigo mesmo (não mais com a ciência ou com o po-
der). Esse processo de subjetivação é o da criação de modos de existência,
de estilos de vida, de um controle que se instala internamente.

Meu objetivo, depois de vinte e cinco anos, é esboçar uma história


das diferentes maneiras nas quais os homens, em nossa cultura,
elaboram um saber sobre eles mesmos: a economia, a biologia, a
psiquiatria, a medicina e a criminologia. O essencial não é tomar
esse saber e nele acreditar piamente, mas analisar essas pretensas
ciências como outros tantos “jogos de verdade”, que são colocadas
como técnicas especíicas dos quais os homens se utilizam para
compreenderem aquilo que são. (FOUCAULT, 1994)
113
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Em História da sexualidade, Foucault contrapõe-se à tese de que


a sociedade atual possui um discurso repressivo sobre o sexo e a sexu-
alidade, segundo o autor, o ocidente, ao contrário de reprimir, difunde o
discursos sobre o sexo em tecnologias do corpo, práticas disciplinares,
transformando a sexualidade no mecanismo mais relevante para a difusão
do biopoder.
É claro que, nesse caso, a psicanálise não poderia deixar de ser alvo
do pensamento foucaultiano, à medida que o divã toma o lugar do confes-
sionário.

Todo o discurso sobre o sexo se torna, portanto, objeto privilegiado


de um poder encarregado de administrá-lo em nome da limitação
dos nascimentos, do controle da sexualidade das crianças e dos ado-
lescentes, da psiquiatrização dos prazeres perversos. A socialização
das condutas procriadoras traduz um melhor controle, um maior
domínio do poder sobre a população (DOSSE, 2007).

O discurso sobre a virgindade, por exemplo, surge como mecanis-


mo de governamentalidade, de biopoder, corroborando a continuidade
da herança burguesa, ilhos bastardos diluiriam a riqueza, colocariam em
questão a hereditariedade dos bens. Garantir que os ilhos fossem somente
legítimos não colocaria em risco a fortuna, mas “dizer” isso não seria éti-
co, mais singular é fazer com que os próprios sujeitos se controlem.
Em seus escritos inais, temos um Foucault preocupado com a gene-
alogia do sujeito moderno, com as formas de subjetivação desse sujeito e
sua relação com a verdade. Essa concepção o faz airmar que a sexualida-
de é uma grande fonte produtiva para a sociedade e para o próprio sujeito,
pois gera a necessidade de criar uma vida cultural que conduza nossas
escolhas sexuais, cita como exemplo o homossexualismo – não viveu para
ver a criação do modo de vida gay (roupas, séries de TV, hotéis etc).
Em seus últimos escritos, o autor nos mostra que somos controla-
dos “por dentro”, que o poder se instala também em nosso corpo e nossa
mente.
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3.9 Foucault e a Educação


Michel Foucault, diferentemente de Bourdieu, não foi um teórico que
se debruçou sobre a área de educação. No entanto, sua obra permite abor-
darmos aspectos fundamentais desta área, em especial no que tange à sua
114
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

relexão sobre as tecnologias de poder nas sociedades modernas. A analítica


do poder foucaultiana permite-nos compreender as relações intraescolares
como saturadas de poder. É possível pensar, com base na contribuição de
Foucault, a respeito de como os educandos se tornam alvo do saber e poder
disciplinar, conformando-se em corpos dóceis e em subjetividades passíveis
de serem tornadas úteis à sociabilidade moderna capitalista.
Um dos temas centrais da obra de Michel Foucault é o disciplina-
mento dos corpos enquanto estratégia de poder própria do desenvolvi-
mento de soisticadas tecnologias de poder com a emergência de certas
instituições modernas como a escola, o hospital, a prisão, os hospícios e
a fábrica. Um aspecto fundamental destas instituições era sua disposição
arquitetônica, marcada pela visibilidade exaustiva que garantiria que os
corpos estariam continuamente sob a mira de um olhar. Foucault analisa
um dispositivo arquitetural deinido pelo jurista do século XVIII Jeremy
Bentham, denominado de pan-ótico. Trata-se de um modelo de vigilância
que se caracterizava pelo controle da disposição dos corpos dentro das
instituições, conforme a seguir:

na periferia, uma construção em anel, no centro, uma torre; esta pos-


sui grandes janelas que se abrem para a parte interior do anel. A cons-
trução periférica é dividida em celas, cada uma ocupando toda a lar-
gura da construção. Estas celas têm duas janelas: uma abrindo-se para
o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, dando para o
exterior, permite que a luz atravesse a cela de um lado a outro. Basta
então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancaiar um
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louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante. De-


vido ao efeito de contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se
na luminosidade, as pequenas silhuetas prisioneiras nas celas da pe-
riferia. Em suma, inverte-se o princípio da masmorra: a luz e o olhar
captam melhor que o escuro que, no fundo, protegia (1979, p. 210).

No modelo do pan-ótico, descritivo da vigilância nas prisões, o ins-


petor ou o supervisor pode acompanhar todos os movimentos dos internos
da instituição, criando a percepção da vigilância contínua. Ao mesmo
tempo, os internos não têm o controle visual do inspetor e, desta forma,
não sabem quando estão sendo observados ou não. Trata-se de um poder
individualizado e ininitesimal, ou seja, ele consegue alcançar os movi-
mentos dos internos ao nível do detalhe.
115
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

No que tange ao espaço escolar, o poder disciplinar permite que


os alunos possam ser vistos e disciplinados exaustivamente. A partir da
disposição arquitetônica e da disposição dos inspetores, forma-se um
continuum de visibilidade no qual os alunos estão sob a mira do olhar
disciplinar. Foucault debruçava-se sobre as instituições disciplinares que
se consolidaram no século XVIII nas sociedades ocidentais, permitindo
o controle dos corpos a im de torná-los úteis à nova ordem econômica e
social. Hoje em dia, com o aparato tecnológico disponível, como câmeras
espalhadas pela escola, há uma soisticação do poder disciplinar. O aluno,
não sabendo quando está sendo vigiado ou não, buscará um comporta-
mento exemplar.
Nesse modelo disciplinar, produz-se a sensação dos internos de vi-
gilância contínua que, por sua vez, produz a internalização da disciplina.
Em outras palavras, os próprios sujeitos tendem a corrigir seu comporta-
mento, ou melhor, moldá-lo segundo as expectativas da instituição, evi-
tando serem penalizados. O tipo de poder em questão não é negativo, ou
seja, punitivo ou repressor, mas mais soisticado, por isso positivo, pois se
pauta na criação de condutas. Para Foucault:

o poder deixa de ser percebido, segundo uma representação jurídi-


ca, como negatividade, como aquilo que reprime, como força que
se exerce de cima para baixo, do Estado sobre a sociedade, para ser
percebido como rede de relações que capturam os corpos, produzem
os gestos, permeiam as instituições e constituem as subjetividades.
Trata-se de uma outra concepção do poder – visto como positivo e
produtivo (...) (FUNARI; RAGO, 2008, p. 18).

Leia o trecho do texto de Jardim (2006, p. 106) para a com-


preensão do poder disciplinar no espaço escolar.
Segundo Foucault, são quatro os tipos de ordenação disciplinar
dos indivíduos: celular, orgânica, genética e combinatória:

• Celular, ou a arte das distribuições, é o jogo da repartição


espacial. Inicia-se com a repartição dos indivíduos no es-
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paço, assumindo cada um o seu lugar e, em cada lugar, um


indivíduo. Dividir e repartir para melhor vigiar o compor-
tamento de cada um, criando espaços úteis. Na escola, os

116
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

indivíduos se deinem pelo lugar que ocupam, pela


posição nas ilas, nas séries. Os lugares tornam possível o
controle simultâneo de todos os “sujeitos”. A escola possi-
bilita a saída de uma confusa massa de indivíduos para uma
organizada multiplicidade orgânica.
• Orgânica: imposição de regras e de rigor nas atividades e
nos horários. Cada gesto do corpo tem que ter uma inalida-
de produtiva. Na escola, o tempo é usado para a intensiica-
ção e condensação de atividades rumo à aprendizagem. O
corpo é treinado e codiicado para que, em seus movimen-
tos, seja útil em seus mínimos detalhes.
• Genética: cada indivíduo em seu tempo especíico é classi-
icado por sua qualidade de produção, servindo de elemento
diferencial a sua capacidade de produtividade na aprendiza-
gem. Isso ica claro na escola, quando o indivíduo aproveita
o seu tempo, tanto na escola, quanto fora dela e demonstra
isso nas avaliações ou em sua competência numa rápida re-
solução dos exercícios, o que posteriormente o diferenciará
dos outros por sua graduação ou série. Tal situação corres-
ponde ao poder de domínio sobre o tempo e sua utilização.
• Combinatória: depois de estipulado o lugar do corpo, sua
regularidade num determinado tempo e espaço, torna-se
necessário ajustá-lo para compor forças com outros corpos
destinados a uma melhor operacionalização e funcionalis-
mo. Nas escolas, as atividades passam a ser melhor desen-
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volvidas quando são observadas por alunos mais velhos ou


mais qualiicados segundo a ótica institucional-educacional.
Os alunos deverão apreender os códigos para uma boa con-
duta e para uma proveitosa aprendizagem, respondendo às
técnicas de sujeição aplicadas pela escola e corroboradas
subjetivamente pelos alunos “mais bem qualiicados para a
tarefa”

Normalmente, pensamos a escola como uma instituição libertadora,


marcada pela missão de transmitir o conhecimento aos alunos e formar
cidadãos. Em outros termos, vemos nela o avesso do que poderia se carac-
terizar como um poder investido no controle dos alunos. No entanto, com
117
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

um olhar atento aos mecanismos disciplinares da escola, percebemos que


desde a arquitetura, os saberes pedagógicos e até à disposição dos funcio-
nários, há um complexo controle que visa à disciplina:

A ordenação por ileiras, no século XVIII, começa a deinir a grande


forma de repartição dos indivíduos na ordem escolar: ilas de alunos
na sala, nos corredores, nos pátios; colocação atribuída a cada um
em relação a cada tarefa e cada prova; colocação que ele obtém de
semana em semana, de mês em mês, de ano em ano; alinhamento
das classes de idade umas depois das outras; sucessão dos assuntos
ensinados, das questões tratadas segundo uma ordem de diiculda-
de crescente. E nesse conjunto de alinhamentos obrigatórios, cada
aluno segundo sua idade, seus desempenhos, seu comportamento,
ocupa ora uma ila, ora outra; ele se desloca o tempo todo numa
série de casas; umas ideais, que marcam uma hierarquia do saber ou
das capacidades, outras devendo traduzir materialmente no espaço
da classe ou do colégio essa repartição de valores ou dos méritos.
Movimento perpétuo onde os indivíduos substituem uns aos ou-
tros, num espaço escondido por intervalos alinhados (FOUCAULT,
1987, p. 134).

Atividades
01. Deina o conceito de habitus em Bourdieu.

02. “O poder está em toda parte; não porque englobe tudo, e sim porque
provém de todos os lugares. [...] o poder não é uma instituição e nem uma
estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam dotados: é o nome
dado a uma situação estratégica complexa numa sociedade determinada”
(FOUCAULT, 1999).

Analise e explique a airmação anterior tendo por base o pensamen-


to de Foucault sobre o poder e a disciplina.
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03. Enumere os aspectos essenciais da teoria bourdieusiana sobre a edu-


cação.

118
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

Reflexão
Esse capítulo nos fez pensar no processo de socialização. Foi possí-
vel relacionar o tema a um ponto-chave: entender que a sociedade se for-
ma e se organiza em todas as instâncias e que o processo de socialização
é a internalização de regras e condutas sociais, para que possamos repro-
duzir “naturalmente” aquilo que é social e histórico. Bourdieu nos ajudou
com os conceitos de habitus e campo, Foucault com a sua relexão sobre
o sujeito e o saber poder. Vimos, embasados nesses dois autores, como a
educação escolar é veículo fundamental da socialização. De um lado, ins-
tância reprodutora das desigualdades, de outro, espaço caracterizado pela
disciplinarização e normalização.

Leituras recomendadas
Para um aprofundamento sobre a abordagem de Pierre Bourdieu
sobre a educação, leia: NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, C. M. M.
Bourdieu & a Educação. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. Para
aprofundamento das relexões de Michel Foucault, leia GREGOLIN, M. R.
V. Foucault e os domínios da linguagem. Nessa obra, a autora recupera os
principais conceitos elaborados por Michel Foucault e sua discussão sobre
as formas de controle, principalmente o controle efetivo dos discursos.

Referências bibliográficas
BOURDIEU. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1999.

______ . Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.


EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.

BOURDIEU, P. “Gostos de classe e estilos de Vida”. In. Sociologia,


Renato Ortiz (org.). São Paulo: Ática, 1983.

DOSSE, Fraçois. História do estruturalismo (volumes I e II). Bauru,


SP: Edusc, 2007.

FOUCAULT, M. História da loucura na Idade Clássica. São Paulo:


Perspectiva, 1978.

119
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

______. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

______. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense, 1987.

______. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.

______. História da sexualidade – A vontade de saber. Vol. I, Rio de


Janeiro: Graal, 1999.

______. História da sexualidade – O uso dos prazeres. Vol. II Rio de


Janeiro: Graal, 1998.

______. História da sexualidade – O cuidado de si. Vol. III Rio de


Janeiro: Graal, 1999.

FUNARI, P. P. A.; RAGO, L. M. Antigos e modernos: cidadania e


poder médico em questão. In: Margareth Rago; Pedro Paulo A. Fu-
nari. (Org.). Subjetividades antigas e modernas. 1 ed. São Paulo:
Annablume, 2008.

GALEANO, A. Castro, G. e Silva, J (orgs.). Complexidade à lor da


pele: ensaios sobre ciência, cultura e comunicação. São Paulo: Cortez;
2003.

GREGOLIN, M. R. V. Foucault e os domínios da linguagem: discur-


so, poder, subjetividade. São Carlos: Claraluz, 2004.

GREGOLIN, M. R. V. Foucault e Pêcheux na análise do discurso:


diálogos e duelos. São Carlos: Claraluz, 2004.

JARDIM, Alex Fabiano Correia. Michel Foucault e a educação: o in-


vestimento político no corpo. Unimontes Cientíica, v. 08, p. 103-117,
2007.
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NOGUEIRA, Maria Alice; NOGUEIRA, C. M. M. . Bourdieu & a


Educação. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004. 152p.

120
A Educação e as Teorias Sociais Contemporâneas – Capítulo 3

PERROT, Michele. “Os Atores”. In: História da vida privada: da


Revolução Francesa à Primeira Guerra. Volume 4; São Paulo: Cia das
Letras, 1991.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem da desigualda-


de. Disponível em: <ile:///C|/site/livros_gratis/origem_desigualdades.
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MORIN, E. As grandes questões do nosso tempo. Lisboa: Editorial


Notícias, 1997.

______. Sociologia. Sintra, Portugal: Publicações Europa-América:,


1989

______. “A indústria cultural”. In: Sociologia e sociedade. Org. Ma-


rialice Mencarini Foracchi e José de Souza Martins; Rio de Janeiro:
LTC; 1984

No próximo capítulo
No próximo capítulo discutiremos aspectos mais elementares sobre
a desigualdade educacional no Brasil e a problemática educação na socie-
dade globalizada.
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121
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Minhas anotações:
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122
Educação,
Globalização e
Desigualdades na
Contemporaneidade
4 Neste capítulo, perpassaremos as desigualdades
lo
na contemporaneidade, repensando suas relações
com o processo de globalização. Abordaremos os
ít u

aspectos contraditórios que demarcam o processo de


globalização e seus impactos na realidade socioeconômica,
Cap

dando atenção para o caso brasileiro. Antes, adentraremos


alguns elementos essenciais das desigualdades educacionais.

Objetivos da aprendizagem
• Reletir sobre as desigualdades socioeconômicas e educacionais
no Brasil;
• Identiicar as diversas interpretações do fenômeno da globalização;
• Compreender as relações entre globalização e mídia;
• Entender o impacto dos meios de comunicação de massa na educação.

Você se lembra?
Vemos em nosso dia a dia uma gritante desigualdade social. A escola,
como espaço social, relete a sociedade em que vivemos. Tendo em vista
o processo de globalização e a posição do Brasil como um país periférico,
buscaremos envolver as relações da escola com as desigualdades.
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

4.1 Desigualdades socioeconômicas e diferenças


sociais: cuidados conceituais
Não precisamos fazer nenhum esforço para constatarmos a existên-
cia de uma enraizada desigualdade socioeconômica em nossa sociedade.
Basta darmos uma volta pela cidade para percebermos as diversas formas
– de sutis a escancaradas – que dão tom às relações socioeconômicas
que caracterizam a sociabilidade no mundo capitalista. Mas como se ex-
primem essas desigualdades? Em termos de possibilidades de aquisição
material, asseguradas pela ocupação proissional e pela origem social, que
se reletem nas oportunidades de estudo e de fruição de bens simbólicos.
Quando pensamos em termos de escolhas religiosas, de gênero (masculi-
no e feminino), etnia, geração etc., devemos mobilizar um outro conceito:
o de diferença.
Diferença e desigualdade não são palavras sinônimas. O termo desi-
gualdade é, muitas vezes, investido de uma carga valorativa que deve ser
problematizada. Em outros termos, muitas vezes, quando empregamos a
palavra desigual, construímos uma relação que subentende uma dicoto-
mia, uma antinomia em que uma coisa é “melhor” do que outra. Desigual,
em muitos casos, supõe uma relação de superioridade e inferioridade.
Por outro lado, quando falamos em diferença, ao invés de desigualdade,
deixamos de lado a carga valorativa e estabelecemos uma outra relação,
desinvestida de um julgamento prévio em termos de “melhor” e “pior”,
“inferior” e “superior”. O diferente não é desigual.

4.2 As diversas formas de desigualdades


socioeconômicas
A existência de desigualdades socioeconômicas está vinculada ao
modo especíico como cada sociedade está organizada. Podemos destacar
três formas clássicas de organização social que implicam formas de socia-
bilidade e de desigualdade distintas. São:
• o sistema de castas;
• os estamentos;
• as classes sociais.
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4.2.1 O sistema de castas


O sistema de castas caracteriza muitas formações sociais. No mun-
do antigo, a China e a Grécia estavam organizadas segundo esse sistema.
124
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

Talvez o exemplo mais conhecido seja o da Índia, em que a organização


está fundamentada na hereditariedade e nas proissões. Hoje em dia, o
sistema de castas hindu convive com a existência de classes sociais, per-
fazendo uma organização híbrida. No entanto, vale chamarmos a atenção
para as quatro castas que compõem a estrutura social na Índia:
• brâmanes (casta sacerdotal, superior às demais);
• xátrias (casta formada por encarregados pela administração
pública);
• viaxás (casta dos comerciantes, artesãos e camponeses);
• sudras (casta inferior, composta por aqueles que desempenham
trabalhos manuais, considerados servis).

No sistema de castas não há mobilidade social, não podendo haver


contato físico entre membros de castas diferentes. Entretanto, nenhum sis-
tema é totalmente rígido. Os costumes, ritos e crenças dos brâmanes são
adotados pelas castas inferiores e, embora seja proibida, a imitação faz
com que emerja uma certa homogeneidade de costumes entre as castas.
Casamentos entre membros de castas diferentes também podem aconte-
cer, mostrando não haver total ausência de lexibilidade no sistema.
Com o advento da industrialização e da urbanização, implicado na
ideia de “ocidentalização” do mundo, o sistema de castas está gradativa-
mente se arrefecendo, o que não signiica dizer que as normas e costumes
característicos desse sistema inlexível tenham desaparecido do cotidiano
das pessoas.

4.2.2 Os estamentos
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Os estamentos, também chamados de estados, são outro exemplo de


estratiicação social. O exemplo emblemático de sociedade fundamentada
nesse sistema é o feudal. Também a França de ins do século XVIII, na
iminência da Revolução, estava dividida em estamentos: nobreza, clero e
o chamado terceiro estado (comerciantes, industriais, camponeses, traba-
lhadores urbanos etc.).
Em linhas gerais, o que caracteriza um estamento é a existência de
um conjunto de direitos e deveres, privilégios e obrigações não neces-
sariamente outorgados, mas publicamente reconhecidos, reproduzidos e
sustentados pelas autoridades oiciais.
A possibilidade de mobilidade de um estamento para outro existia,
mas não era recorrente. Alguns indivíduos chegavam a obter títulos de
125
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

nobreza, mas o que deinia o prestígio era a posse de terra. Por exemplo,
no feudalismo, aqueles que não possuíam terra eram econômica e politi-
camente dependentes, além de socialmente inferiores.
A dinâmica dos estamentos está fundamentada em uma relação de
reciprocidade. Pensemos novamente na sociedade feudal: havia sempre um
conjunto de obrigações dos servos para com os senhores (trabalho) e vice-
versa (proteção), a despeito da intransponível barreira que os separava.

Hoje em dia, a palavra estamento é utilizada para fazer menção a


uma determinada categoria ou atividade proissional, por exemplo, o “es-
tamento militar”. A utilização da referida expressão denota a permanência de
traços das formações sociais divididas em estamentos. Assim, na sociedade
atual, classiicar determinada categoria como um estamento é sublinhar que ela
está fundamentada em um código de honra e obediência, em regras precisas
e rígidas.

4.2.3 As classes sociais


As classes sociais são a expressão do modo como as desigualdades
estão estruturadas na sociedade capitalista.
O primeiro estudioso a conferir preponderância analítica às classes
sociais foi Karl Marx. No capitalismo, as relações entre as classes sociais
são regidas pelas relações entre capital e trabalho assalariado, em que a
propriedade privada é o fundamento e o bem maior a ser preservado. As-
sim, no capitalismo, os diferentes grupos sociais estão situados no contex-
to das classes sociais e, por conseguinte, na divisão social do trabalho e na
produção e reprodução da vida social.
Os estudos empreendidos por Marx acerca do capitalismo não dão
conta de sua diversidade e amplitude. Isso porque o teórico recortou seu
objeto de investigação, privilegiando apenas a dimensão fabril e as rela-
ções classistas a ela condizentes, no caso a burguesia e o proletariado. Por
certo que a sociedade capitalista é muito mais plural e diversiicada, não
se reduzindo ao par antitético cristalizado na dualidade burguês x proletá-
rio. Por exemplo, a teoria de Marx não dá conta da explicação da existên-
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cia do setor terciário, posto que sua análise está voltada para a ediicação
de uma teoria do valor.
É necessário analisar a constituição histórica das classes sociais, o
modo como elas se relacionam e como atuam no processo de produção
126
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

da vida material e social. Falar em desigualdades socioeconômicas, nesse


registro das classes, é levar em consideração aspectos fundamentais de
nosso cotidiano, observáveis e práticos. Para constatá-las, basta olharmos
ao nosso redor: de um lado, veremos indivíduos dirigindo seus carros
importados e, de outro, a maioria da população andando de ônibus, trens,
bicicleta e mesmo a pé.
Já Weber dá uma outra deinição ao conceito de classe social. Para ele,
classe é todo grupo de pessoas que se encontram em uma situação de classe
semelhante, ou seja, têm os mesmos acessos e possibilidades de aquisição
material e posição social. Até o século XV, as explicações para a existência
das desigualdades socioeconômicas giravam em torno de uma “herança
natural”: os indivíduos nascem diferentes e, portanto, devem assumir essa
condição. Assim, havia um direito desigual para os desiguais: os nobres
contavam com o respaldo de uma legislação que lhes deinia os direitos e
deveres e era aplicável somente a eles. Os demais membros possuíam outra
legislação – elaborada pela nobreza –, que explicitava seus parcos direitos.
A partir do século XVI, com uma série de modiicações estruturais
nas nações europeias, começaram a adquirir relevância os questionamen-
tos acerca dos porquês da existência das desigualdades entre os homens,
e muitas foram as tentativas de explicação da origem das desigualdades.
Hobbes (1588-1679) airmava que os homens são naturalmente iguais;
Locke (1632-1704) defendia a existência de uma diferença natural entre
os homens; Rousseau (1712-1778) airmava que as desigualdades entre
os homens não são de caráter natural, mas oriundas da convivência dos
indivíduos em sociedade.
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JEAN-PHILIPPE KSIAZEK / AFP

Figura 1 – Escola

127
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Os direitos políticos, civis e sociais oriundos do ideário burguês uni-


versalista, gestado durante a Revolução Francesa, não atingiram a maior
parte da população. A igualdade que prevê que “todos devem ser iguais
perante a lei” buscou atribuir aos desiguais uma igualdade de direitos.
Mas não parece contraditória a airmação de uma igualdade de direitos
em uma sociedade fundamentada justamente na desigualdade socioeco-
nômica? Nos dias de hoje, assistimos cada vez mais à transformação dos
direitos em privilégios. A educação, um direito, é transformada em um
privilégio, e assim por diante.
Com o crescimento da produção e do comércio na Inglaterra do
século XVIII, houve uma grande demanda por mão de obra, e a pobreza
e a miséria passaram a ser relacionadas à preguiça e à indolência dos indi-
víduos, à indisposição ao trabalho, uma vez que havia muita oportunidade
de emprego. Opera-se, assim, uma vantajosa (para o sistema vigente) in-
versão, em que as grandes massas, como forma de não aceitação da pecha
de indolente, submetiam-se às precárias condições de trabalho.
A teoria de Malthus (1776-1834) reiterava tal mecanismo perverso:
a população cresce em progressão geométrica, enquanto os meios de sub-
sistência em progressão aritmética. Assim sendo, a pobreza era atribuída ao
número de ilhos que uma determinada família sem posses apresentava.
Ao invés de questionar a concentração de riqueza, a teoria malthu-
siana procura inverter a equação e culpabilizar o indivíduo. Ainda hoje
presenciamos remanescentes dessa linha de pensamento, apregoando o
casamento tardio, a vasectomia (mesmo forçada) como formas de restrin-
gir o número de ilhos para as famílias pobres e, assim, impedir a difusão
da miséria.
Nas sociedades anteriores à capitalista, os indivíduos nasciam desi-
guais e assim viviam. No capitalismo, a desigualdade existe desde o nas-
cimento, mas há um discurso que airma que todos são iguais perante a lei
e, mais ainda, que o trabalhador pode prosperar e enriquecer. A igualdade
formal (perante a lei) corresponde a uma desigualdade de fato, que se re-
produz cotidianamente na sociedade capitalista.

4.3 As desigualdades sociais no Brasil


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Nosso legado colonial denuncia o quão antiga é a existência das


desigualdades socioeconômicas no Brasil. Os primeiros contatos dos por-
tugueses com os autóctones estiveram fundamentados na construção de
uma relação em que a diferença entre as etnias fora logo apreendida em
128
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

termos de superioridade (portugueses) e inferioridade (diversas culturas


indígenas). A própria existência, nos dias atuais, da tutela indígena ilustra
bem o quanto estão enraizados os resquícios dessa relação.
O processo de colonização, no Brasil, que tinha no trabalho es-
cravo fonte de lucro primordial, é um outro exemplo de que o “nosso
passado nos condena”. A compreensão das formas veladas de desigual-
dade, ainda persistentes, podem ser mais bem investigadas à luz da
história brasileira.
Com as transformações ocorridas desde a belle époque tropical
(inal do século XIX) até meados do século XX, a sociedade brasileira
caminha rumo à industrialização e à urbanização. A cidade torna-se
polo de atração de um signiicativo contingente populacional, que con-
tribui para o esvaziamento das áreas rurais e para a crescente proleta-
rização dos centros urbanos, para a formação dos subúrbios e das peri-
ferias. Essa massa de indivíduos destituídos de possibilidades efetivas
de colocação proissional evidencia o modo pelo
qual o capitalismo, em seu processo de desen-
volvimento e consolidação, cria as desi- Leia o texto:
gualdades, que se cristalizam sob a forma MISKOLCI, Richard.
Diferença e desigualdade
de pobreza e miséria e, socialmente, sob na Primeira República. Rev.
a forma de exclusão, marginalização so- Sociol. Polit. [online]. 2004, n.
23, p. 189-191. Link de acesso:
cial, formas precárias de existência (saú- <http://www.scielo.br/scielo.ph
de, habitação, educação). E quais seriam p?pid=S010444782004000
200020&script=sci_art-
as possibilidades de transformação dessa text>.
realidade social?
Uma mudança signiicativa desse quadro
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deveria ser iniciada através do investimento público em um amplo


programa de educação básica. Em todos os países em que grande parte
da população vive em condições dignas, as políticas e medidas gover-
namentais têm como ito a extensão da educação básica para a maioria
das crianças.
A Coreia do Sul é um exemplo de que investimentos maciços e
duradouros em educação básica, em educação proissionalizante para
adultos e em saúde e saneamento concorrem para a modiicação efetiva do
panorama calamitoso gerado pelo capitalismo.
Em contraposição, o Brasil gasta muito em projetos sociais, porém
obtém resultados desvantajosos, pois os gastos com a burocracia e os des-
vios consomem grande parte dos recursos.
129
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

4.4 As desigualdades educacionais


As desigualdades educacionais estão diretamente relacionadas a
outros tipos de desigualdades, alimentando-as e formando com elas um
verdadeiro círculo vicioso. Um exemplo concreto dessa situação é o
analfabetismo. O indivíduo é analfabeto porque não teve oportunidade
de estudar, e a pobreza é um óbice à alfabetização. De acordo com To-
mazi (1997), os analfabetos situam-se em uma posição subalterna, pois
a nossa sociedade é toda voltada para pessoas que sabem ler e escrever,
por menor que seja esse conhecimento. Necessitar de auxílio para ler uma
placa indicativa, para saber sobre uma notícia de jornal exposta na banca
ou mesmo para ler uma carta recebida de parentes é sempre uma situação
desconfortável e acompanhada da pergunta: “Você não sabe ler?”. A vida
de um analfabeto é marcada pelas inúmeras situações de exclusão, margi-
nalização e desconforto.
O surgimento do sistema escolar fundamental brasileiro, no início do
século XX, estava atrelado à necessidade de atender aos ilhos das classes
dominantes e médias, portanto já era desigual. Os ilhos dos trabalhadores
quase sempre eram excluídos, tendo acesso apenas às escolas dominicais
(Igreja) e às que existiam no interior das fábricas. É indispensável dizer que,
no Brasil, as desigualdades educacionais sempre foram gritantes, principal-
mente se pensadas em termos das possibilidades de acesso à escola.
Em ins do século XIX e início do XX, devido às reivindicações dos
trabalhadores e à demanda por mão de obra mais qualiicada, inicia-se o
processo de generalização do Ensino Fundamental, atendendo aos ilhos
das classes trabalhadoras, mas já deixando evidente a qualidade inferior, se
comparado ao ensino oferecido às classes dominantes e médias. Essa desi-
gualdade de Ensino Fundamental se deixa reletir no ensino secundário (atual
Ensino Médio), já que o ensino transmitido aos ilhos dos trabalhadores tem
por objetivo prepará-los para o trabalho industrial, enquanto o ensino ofereci-
do aos ilhos da classe dominante tem o intuito de qualiicá-los para o Ensino
Superior e para a ocupação de cargos burocráticos e administrativos.
Os trabalhadores reivindicaram um sistema de ensino igual para
todos, em termos de carga horária, currículo etc; de modo que a realidade
pudesse corresponder ao discurso liberal, ou pelo menos se aproximar dele.
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No entanto, o ensino é altamente seletivo, sendo caracterizado por inúmeras


formas de desigualdade, assegurando a manutenção da ordem vigente.
Não há dúvidas de que as desigualdades no desempenho escolar
estão diretamente relacionadas às condições sociais e econômicas ou,
130
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

em outros termos, às desigualdades sociais em que vivem os diferentes


alunos. Além disso, é indispensável considerar outros fatores que inluen-
ciam o acesso à escola e a garantia de um ensino sólido, tais como:
• a localização das escolas;
• a precariedade dos equipamentos e instalações;
• o nível dos professores.
Em linhas gerais, a estrutura pedagógica de muitas escolas cria
sistemas de exclusão. É necessário questionarmos a atuação das es-
colas como “centros de assistência social”, em que a frequência está
muitas vezes associada à possibilidade de os alunos se alimentarem
(através da merenda) do que ao próprio aprendizado. A escola se torna,
muitas vezes, um espaço voltado para o abrandamento das desigualda-
des socioeconômicas, aparando arestas que não condizem necessaria-
mente com sua missão.
MR_FUNKENSTIEN / DREAMSTIME.COM

As possibilidades de aprimo-
ramento do ensino no Brasil estão
associadas à modiicação das condi-
ções de seu desenvolvimento, tendo
em vista suas múltiplas dimensões.
É necessário que o educador busque
proporcionar ao aluno uma ponte
entre o ambiente escolar e seu uni-
verso social e cultural, já que há
entre os dois universos uma aparente
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

descontinuidade, o que, em muitos


casos, culmina na desmotivação e na
evasão escolar.

Não há como deixar de mencionar as grandes diferenças entre o


ensino público e o particular. Nesse registro, a educação, um direito,
torna-se um privilégio, e a proliferação de instituições particulares de en-
sino é sintomática desse descompasso entre o discurso liberal e a prática.
Enquanto ao ensino público faltam investimentos mínimos para assegu-
rar aos professores condições dignas de trabalho e aos alunos falta um
ensino de qualidade, as escolas particulares cobram altas mensalidades e
recebem auxílios governamentais, podendo, assim, contar com um quadro
docente bem remunerado e oferecer um ensino de melhor qualidade. O
131
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

aumento do número de instituições particulares de ensino coincide com o


sucateamento das escolas públicas.
Uma outra desigualdade a ser pontuada refere-se ao período em
que as aulas são assistidas. O período noturno é mais deiciente que o
diurno, principalmente porque ele se torna a única opção para os alu-
nos que trabalham o dia todo. Um outro exemplo importante de desi-
gualdade, pensando especiicamente no ensino básico, diz respeito ao
contraponto entre as escolas nas zonas urbanas e rurais. Em geral, as
escolas nas áreas rurais são multisseriadas e as aulas são ministradas
por um só professor. Assim, os alunos de 1ª a 4ª séries, de diferentes
idades e em condições pedagógicas variadas, dividem a mesma sala,
sendo praticamente impossível ao professor dar conta das insuiciên-
cias de cada aluno. Os professores, muitas vezes sem nenhuma habi-
litação, ensinam ao aluno o mínimo necessário, indo pouco além da
alfabetização.

4.5 Estado, educação e cidadania


A questão dos direitos humanos e da cidadania foi pensada e desen-
volvida em diferentes sociedades e em diversos momentos da história do
Ocidente. O exercício dos direitos e uma educação de qualidade sempre
foram, no Brasil, muito restritos para a maior parte da população, apesar
de estarem presentes em nossa Constituição.
Os brasileiros acostumaram-se a viver sem direitos. É muito comum
icarmos chocados quando cai um avião, quando há um terremoto, enim,
quando há uma tragédia em que milhares de pessoas perdem suas vidas.
Entretanto, nosso país é cenário de uma guerra interminável contra a vida.
Para falarmos apenas das crianças, ocorrem milhares de mortes todos os
anos, e grande parte da população é indiferente a tal situação.
Desde a Independência do Brasil (1822) até o início da República
(1889), não houve mudanças signiicativas do ponto de vista dos direitos.
Tanto é que a escravidão continuou até o inal desse período. Na Consti-
tuição de 1824, alguns artigos faziam menção aos direitos dos cidadãos,
tais como o direito de ir e vir, a igualdade perante a lei, o direito de
exercer cargos públicos, políticos e militares, o direito de propriedade, a
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inviolabilidade de domicílio e das correspondências, a liberdade religio-


sa, a necessidade de um mandato judicial para haver prisão (exceto em
lagrantes). Como se vê, os direitos civis clássicos estavam presentes, o
que não quer dizer que fossem aplicados à maior parte da população. No
132
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

Brasil, os direitos do cidadão só existiam efetivamente no papel, pois já se


anunciava uma ideia ainda hoje muito atual: “para os amigos, o espírito da
lei; para os inimigos, o rigor da lei”. Ou seja, na maioria dos casos, a lei
era aplicada a favor daqueles que estavam no poder.
Com a proclamação da República, é elaborada uma nova Constitui-
ção, a de 1891. A escravidão é extinta e o modo de produção capitalista
adquire força. Com a reestruturação da sociedade e do Estado, pode-
ríamos pensar que os direitos civis e políticos pudessem ser exercidos
pela maioria da população. O Estado republicano, apesar da ausência do
imperador, continuava nas mãos de uma elite agrária, contando também
com representantes da burguesia industrial emergente, que buscava ter
respeitados os seus direitos de cidadãos. Os direitos civis continuavam os
mesmos, tendo sido apenas incluídos o direito de livre manifestação do
pensamento por parte da imprensa
e o habeas corpus. Na prática,
a questão social sempre foi Em se tratando da educa-
considerada, no Brasil, um ção, 85% da população brasileira,
em 1890, era analfabeta. Podemos,
caso de polícia, o que tem então, perceber que a educação elementar,
uma relação direta com as durante todo esse período, nunca foi uma
recorrentes manifestações prioridade e tampouco tinha-se a pretensão de
estender o ensino elementar à população em
dos trabalhadores para fa- geral. Passados 30 anos, a situação conti-
zerem valer seus direitos. nuou inalterada: 76% de analfabetos.
Nos anos 1930, entra
em vigor a legislação tra-
balhista, que estabeleceu alte-
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

rações nas condições de trabalho,


tendo em vista a “proteção social” do trabalha-
dor. Essa legislação, em vigor até hoje (apenas com pequenas alterações),
propugnava:
• proibição de diferenças salariais para um mesmo trabalho por
motivo de idade, sexo, nacionalidade ou estado civil;
• salário-mínimo capaz de satisfazer às necessidades normais do
trabalhador;
• jornada de trabalho de oito horas diárias;
• proibição de trabalho a menores de 14 anos.
• repouso semanal de um dia;
• férias anuais remuneradas;
• indenização ao trabalhador dispensado sem justa causa;
133
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

• assistência médica e sanitária ao trabalhador e à gestante;


• reconhecimento das convenções coletivas de trabalho.

Os direitos trabalhistas passam a vigorar, sendo função do Estado


assegurar sua vigência. A educação foi repensada e algumas alterações fo-
ram feitas durante o governo Vargas, embora sem se dar conta da extinção
do modelo classista e excludente que vigora até os dias atuais. A estrutura
educacional, na prática, produz e reproduz a força e o trabalho para o setor
industrial, bem como concorre para a manutenção da sociedade de clas-
ses, fazendo com que cada classe continue em seu lugar.
A Constituição de 1967, oriunda do golpe de 1964, foi escrita pelos
militares, tendo deixado no limbo os direitos do cidadão. A educação,
durante esse período, era vista pela ótica do poder econômico, e a polí-
tica educacional brasileira icou nas mãos de burocratas e “técnicos em
educação”, tendo sido desenvolvida uma política para beneiciar o ensino
privado e para a privatização do ensino no Brasil.
A luta pelos direitos civis, políticos e sociais, durante o regime
militar, e mesmo depois dele, deu-se em diferentes níveis e intensidades,
como, por exemplo, a Campanha da Anistia (aos condenados pela ditadu-
ra); a Campanha das Diretas já (em que se lutava pela eleição direta para
presidente da República); a Campanha pela Constituinte (em que se bus-
cava a promulgação de uma Constituição isenta dos autoritarismos e das
arbitrariedades da legislação vigente durante o período militar).
Em 1988 é promulgada uma nova Constituição, a chamada “Consti-
tuição Cidadã”, em que eram restabelecidos os direitos dos cidadãos, tais
como o direito de greve, de livre associação, a liberdade de pensamento
etc. Mas a existência dessa nova ordem constitucional não assegura, na
prática, a vigência desses direitos. Os direitos dos cidadãos brasileiros es-
tão muito bem deinidos na Constituição de 1988, porém as forças conser-
vadoras do Congresso, do Judiciário e do Executivo procuram fazer com
que esses direitos não sejam postos em prática, tornando-se muitas vezes
letra-morta.
Proibida a reprodução – © UniSEB

134
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

4.6 Globalização: um conceito atual?


Norbert Elias mostra que a vida em grupo é uma prerrogativa da
existência humana. As pessoas sempre viveram em grupos, que Elias de-
nominou de “unidades de sobrevivência”. Algumas das funções desempe-
nhadas pelos grupos estavam voltadas exclusivamente para a manutenção
de sua integridade, por exemplo:
• a necessidade de providenciar alimentos e outros meios de sub-
sistência;
• o controle da violência (interno e externo).
E o que a antiga existência desses grupos denominados de “unida-
des de sobrevivência” tem a ver com a globalização?
Durante o processo de desenvolvimento humano, as unidades de
sobrevivência foram se tornando cada vez maiores, tanto em termos popu-
lacionais quanto geográicos. Vejam alguns exemplos:
• Após o colapso de cada um dos grandes impérios do Mundo
Antigo, aquele que os sucedia conseguia integrar uma área
geográica maior do que a de seu precedente. Trata-se de um
movimento expansivo.
• O processo de formação dos Estados-nações caracteriza-se pela
tendência generalizante, na história mundial, para o surgimen-
to de unidades de sobrevivência maiores, que incorporam um
maior número de pessoas e um território mais amplo.

Com o passar do tempo, essas sociedades começaram a mobilizar


recursos militares e econômicos necessários para derrotar as invasões pe-
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

riódicas por parte de populações migrantes.


Consoante à tendência para a formação de unidades de sobrevivên-
cia maiores, nota-se o uso persistente da violência no interior e entre as
unidades de sobrevivência.
Há duas formas distintas quanto à utilização da violência:
• Dentro das unidades de sobrevivência: há um controle dos im-
pulsos violentos, oriundo do fato de as pessoas serem forçadas
a viver em paz umas com as outras.
• Entre as unidades de sobrevivência: há a persistência de uma
violência relativamente descontrolada.
Elias analisa inúmeros exemplos de lutas hegemônicas entre as so-
ciedades desde a Antiguidade Clássica até os dias atuais. O equilíbrio de
poder entre os Estados é tal que cada um deles é tão dependente dos ou-
135
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

tros que enxerga em seu oponente uma ameaça à sua distribuição interna
de poder, de independência e até uma possibilidade de extinção física.
Tal como mostramos até aqui, conclui-se que a globalização pare-
ce novidade, mas não é. Até mesmo Marx fazia referência às formas de
expansão do capitalismo, ao mercado mundial e às transformações da
grande indústria e dos monopólios, sublinhando o papel da burguesia no
sentido de promover a internacionalização da produção e do consumo. O
modo de produção capitalista requer dimensões mundiais para viabilizar
sua produção e reprodução material e intelectual (SANTOS, 2001).

4.7 Quais as características da globalização?


A ideia que vem com a globalização recente é a do surgimento de
uma “aldeia global”, que sugere a formação de uma comunidade mundial
interligada graças às realizações e possibilidades de comunicação enceta-
das pelos avanços tecnológicos.
Em um curto período de tem-
po, as províncias, nações, regi-
No mundo atual, as fronteiras
ões e culturas passam a ser entre os grupos opostos de poder
atravessadas e articuladas não são mais simplesmente geográicas.
pelos sistemas de informa- Após os anos de 1980, surge um novo
ção e comunicação, agili- emprego para a palavra globalização. Não é
mais possível pensar no globo terrestre como
zados pelas descobertas de um aglomerado de Estados-nações em suas
um mundo eletrônico. relações de interdependência. Vejamos
N a a ld e ia globa l, agora as características da globalização
na sociedade contemporânea.
além de mercadorias con-
vencionais, “empacotam-se”
e vendem-se informações. Essas
são fabricadas como mercadorias e co-
mercializadas em escala mundial. As informações, os entretenimentos e as
ideias são produzidas, comercializadas e consumidas como mercadorias.
Trata-se da fabricação de imagens, do mundo enquanto um calei-
doscópio de imagens, da dissolução de fronteiras, da agilização dos mer-
cados e do consumismo. É o redimensionamento de tempos e espaços.
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Criou-se um ambiente intelectual propício para conferir ares de


novidade a acontecimentos e tendências que constituem a repetição,
sob nova roupagem, de fenômenos às vezes bastante antigos. De
um ponto de vista histórico, “globalização” é a palavra da moda

136
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

para um processo que remonta, em última análise, à expansão da


civilização europeia a partir do inal do século XV (BATISTA JÚ-
NIOR, 1997, p. 6).

A globalização é o momento que assiste à tecniicação das relações


sociais, em todos os níveis. A globalização é marcada pela racionalidade
funcional, a serviço do processo de valorização do dinheiro.
Características da globalização:
• O inglês se ediica como língua universal, ele é o jargão da glo-
balização.
• Produtividade, lucratividade e consumismo
• Desenvolvimento de técnicas de produção de realidades virtu-
ais, telecomunicações
• O inglês começou a mundializar-se como idioma do imperia-
lismo britânico (séculos XIX e XX). Em seguida, com o im
das duas Guerras Mundiais, o inglês difundiu-se como idioma
oicial do imperialismo norte--americano.

Eis o contexto em que as pessoas, as ideias e os produtos passam a


se inscrever em uma dinâmica caracterizada pela desterritorialização. No
mesmo curso da modernização do mundo, simultaneamente à globaliza-
ção do capitalismo, intensiica-se a generalização do pensamento pragmá-
tico e tecnocrático.

4.8 As contradições da globalização


A globalização está relacionada à ideia de modernização e ociden-
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talização do mundo, que passou a ser o emblema do desenvolvimento, do


crescimento, do progresso.
Se, por um lado, a globalização gera um processo de homogeneiza-
ção, padronizando elementos produtivos e culturais, por outro, emerge um
universo de diferenciações, tensões e conlitos sociais. As mesmas forças
que produzem a globalização, propiciando novas articulações e associa-
ções em nível internacional, provocam formas opostas e fragmentadas.
Globalização e regionalização, fragmentação e unidade, inclusão e exclu-
são são polos antagônicos inter-relacionados de forma dialética, ou seja,
são forças opostas que estão em constante interação (SANTOS, 2001).
O capitalismo é um sistema polarizador, pois, contraditoriamente,
o aumento constante de riquezas tem sido concentrado num número cada
vez menor de “pessoas”. Imensas riquezas são geradas, consoante à expan-
137
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

são da pobreza da maior parte da população mundial. Ulrich Beck (1998)


analisa os conceitos de globalização e de localismo, considerando-os duas
faces da mesma moeda. Os dois conceitos expressam uma nova polarização
e estratiicação social em nível internacional: ricos globalizados e pobres
localizados. A desigualdade social e a existência de enormes contingentes
populacionais que estão à margem do processo de desenvolvimento mul-
tiplicam e aprofundam os conlitos sociais e a deterioração da qualidade
de vida na maioria das regiões do planeta. Por conseguinte, o problema da
exclusão social torna-se hoje uma questão fundamental, que requer muito
mais soluções estruturais do que reformas paliativas (SANTOS, 2001).
MOISÉS

Noções como metrópole e colônia, império e imperialismo, interde-


pendência e dependência, central e periférico, urbano e agrário, moderno
e arcaico, primeiro e terceiro mundo expressam o vaivém do processo
histórico-social de ocidentalização e modernização do mundo.
A modernização do mundo implica a difusão e sedimentação dos
padrões e valores socioculturais predominantes na Europa e nos Estados
Unidos. Ela traz a ideia de que o capitalismo é um processo civilizató-
rio não só superior, mas inexorável. O capitalismo desenvolve-se pelos
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quatro cantos do mundo, generalizando padrões, valores e instituições


ocidentais.
Essa modernização traz implícito o ideário democrático da proce-
dência da liberdade econômica em face da política. Na economia, consoli-
138
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

da-se o neoliberalismo, fazendo com que as forças de mercado capitalista


se espraiem globalmente. Enquanto o liberalismo fundamentava-se no
princípio da soberania nacional, ou ao menos tomava-o como parâmetro,
o neoliberalismo passa por cima de tal princípio, deslocando as possibili-
dades de soberania para as organizações, corporações e outras entidades
de âmbito global.
Os princípios envolvidos no mercado generalizam-se, tornando-se
padrão para os mais diversos grupos, as mais diversas formas de organiza-
ção da vida e do trabalho, independentemente das culturas.
Ainda que os processos de globalização desenvolvam-se simulta-
neamente e reciprocamente pelo mundo afora, também produzem desen-
volvimentos desiguais, desencontros. No mesmo curso de integração e
homogeneização, desenvolve-se a fragmentação e a contradição.
O mesmo vasto processo de globalização do mundo é um vasto pro-
cesso de pluralização dos mundos. O que cria a ilusão de homogeneização
e integração é o fato indiscutível da ocidentalização e do capitalismo.

4.9 Globalização e mídia


O signo, por excelência, da modernização é a comunicação, a proli-
feração e a generalização dos meios impressos e eletrônicos de comunica-
ção, articulados em teias multimídia e alcançando todo o mundo.
Os meios de comunicação de massa, graças à tecnologia, rompem
ou ultrapassam fronteiras culturais, idiomas, religiões, regimes políticos,
diversidades e desigualdades socioculturais.
O satélite passa a ser usado como o mais importante instrumento
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

mundial de propaganda na disputa pelos corações e mentes. No âmbito


da aldeia global, prevalece a mídia eletrônica,
poderoso instrumento de comunicação,
informação, compreensão, explica- Conexão:
MANCEBO, Deise. Globaliza-
ção e imaginação sobre o mundo. ção, cultura e subjetividade: discussão
O computador consolida-se como a partir dos meio de comunicação de mas-
aliado e algoz na prática do en- sa. Psic.: Teor. e Pesq. [online]. 2002, v.18, n.
3 [citado 2010-05-04], p. 289-295 . Disponível
sino – ao mesmo tempo em que em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
ele que se torna um eicaz recurso arttext&pid=S0102-37722002000300008&lng=
pt&nrm=iso>..
pedagógico, a inesgotabilidade de
informações e sua heterogeneidade
concorrem para a difusão de dados
inconsistentes.
139
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

McLuhan viu a tecnologia como uma extensão do homem. Para o autor,


da mesma forma que a roda é a extensão do pé, o telescópio, uma extensão do
olho, a rede de comunicações é uma extensão do sistema nervoso. A televisão
tornou-se nossos olhos e o telefone, a nossa boca e os nossos ouvidos.
A intensiicação do ritmo da produção de mercadorias e o volume das
informações produzidas fazem com que haja uma modiicação na percepção
do homem acerca da passagem do tempo. Temos a sensação de uma acele-
ração do ritmo da vida e a conversão dos cidadãos em meros consumidores
(todos se igualam através da possibilidade de aquisição de mercadorias).
O poder dos meios de comunicação ica evidente na seguinte frase,
dita pelo poeta francês Charles Baudelaire: “Qualquer pessoa pode go-
vernar uma grande nação assim que obtém o controle do telégrafo e da
imprensa nacional”.
A globalização cria a ilusão da universalização das condições e
possibilidades do mercado e da democracia, do capital, da cidadania. Os
direitos são, na prática, privilégios.
Há sempre alguma manipulação, mais ou menos decisiva, no modo
como a mídia registra, seleciona, interpreta e difunde o que será divulga-
do, deixando evidente que os censores da atualidade são os redatores.

4.10 Os meios de comunicação de massa e a


educação no Brasil
Nos dias atuais, a informação e o saber estão pulverizados em várias
linguagens e disseminados em inúmeros veículos e instituições produ-
toras de bens simbólicos. Desde a década de 1920, o rádio, o cinema, as
revistas, e, mais recentemente, a TV, a Internet, os outdoors são veículos
transmissores de informação.
As formas de utilização das mensagens transmitidas por esses veículos
de massa são heterogêneas e circunstanciais, estando estritamente inluen-
ciadas pela trajetória de cada um e pela apropriação de um capital cultural
oriundo da família e das instituições educativas pelas quais passaram ao longo
da vida. Assim, o modo como os indivíduos interiorizam esse saber e essas
informações é singular, oriundo sobretudo da trajetória anterior de cada um.
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Desde a era Vargas, nas décadas de 1930 e 1940, seguida pela lide-
rança política de Juscelino, nos anos 1950, o Brasil assiste a um alto volu-
me de investimento na infraestrutura da informação e do lazer, período de
surgimento de um mercado ávido por produtos culturais.
140
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

O imaginário iccional das mídias há muito tem colonizado nossos


espíritos. Edgar Morin fala que primeiro passamos por um processo de
colonização geográica, que foi sucedido por uma forma mais sutil de co-
lonização, a saber, a da alma.
A heterogeneidade de acesso aos meios educativos legítimos é fato,
e suas implicações são sobremaneira complexas para o campo da educa-
ção formal e informal.
Entre os quase 90% que possuem TV, a ação pedagógico-informa-
tiva das novelas, seriados, shows de variedade e ilmes parece estar mais
presente do que a ação escolar. Ao possibilitar o acesso a comportamentos
e tipos (modelos) de conduta, iccionais ou não, essa programação, ao
mesmo tempo em que integra todos em um ideal de civilização (capita-
lista, hedonista, consumista), possibilita a uma multidão o acesso a um
código de conduta que até pouco tempo era restrito aos segmentos privi-
legiados.
Vale chamar a atenção para proliferação de programas religiosos e
de variedades, que se propõem educativos.
O signiicativo público televisivo engrossa os índices de audiência
e obtém, a preços módicos, uma educação que se sustenta nos pilares da
emoção, da diversão e do entretenimento.
Ciente da possibilidade de abrangência, com baixos custos, as rá-
dios permitem a comunicação, universalizam seu acesso e criam uma
tradição enquanto veículo de “educação a distância”.
O cinema se aigura como um veículo de entretenimento dos segmen-
tos mais favorecidos. Por outro lado, o crescimento das locações e lança-
mentos de DVDs expressam que o consumo cinematográico ampliou o uso
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

doméstico da TV, conquistando os segmentos menos privilegiados.


O preço dos leitores de DVDs teve uma queda de mais de 50%,
aumentando, assim, a possibilidade de uma parcela cada vez maior da po-
pulação ter acesso a um eletrodoméstico midiático.
A TV se apresentou, desde o seu surgimento, como um empre-
endimento de grande valor pedagógico. Quando surgiu, na década de
1950, herdeira de uma estética literária do teatro e do cinema, a TV
estava atrelada ao ideal de cultura das elites. A partir dos anos 1960, a
telenovela, devedora dos folhetins melodramáticos de origem europeia
e das radionovelas latinas, erige-se sob o estigma de ter apelo popular
e baixa qualidade.

141
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

O rádio cumpre sua função de favorecer o acesso de uma população


marginalizada do processo escolar.
Embora cultivado e consagrado pelos setores mais escolarizados,
o livro um produto da cultura de massa, há muito tenta se popularizar. O
brasileiro tem acesso a 1,8 livro por ano. Na França, 7; nos EUA, 5,1.

4.11 Qual o papel da educação na sociedade da


informação?
Muitos educadores, perplexos diante das rápidas mudanças na so-
ciedade, na tecnologia e na economia, questionam-se sobre o futuro de
sua proissão e sobre as possibilidades de utilização dessas novas lingua-
gens, oriundas do avanço tecnológico dos meios de comunicação.
As consequências do surgimento das novas tecnologias, centradas
na comunicação de massa, na difusão do conhecimento, ainda não se i-
zeram sentir plenamente no ensino, tal como previa McLuhan já em 1969,
pelo menos na maioria das nações, mas o ensino a distância, sobretudo o
fundamentado na Internet, parece ser a grande novidade educacional neste
início de novo milênio.
A educação opera, tradicionalmente, com a linguagem escrita e a nossa
cultura atual dominante vive impregnada por uma nova linguagem, a da te-
levisão e a da informática, particularmente a linguagem da Internet. Nesse
sentido, a cultura impressa começa a ser complementada com o uso intensivo
da Internet, como é o caso, por exemplo, da educação a distância, que tem na
Internet ferramenta indispensável. O ensino a distância nos possibilita vislum-
brar o desenvolvimento e as potencialidades da cultura digital.
Os sistemas educacionais estão cada vez mais lançando mão da
comunicação audiovisual e da informática como ferramentas pedagó-
gicas eicazes e complementares no processo de ensino. Por certo que
os recursos tradicionais não foram substituídos, tampouco considerados
obsoletos, mas os novos recursos advindos dos avanços tecnológicos
mostraram-se complementos eicazes para o processo de ensino, princi-
palmente das crianças e dos jovens. Os que defendem a informatização
da educação sustentam que a função da escola será, cada vez mais, a de
Proibida a reprodução – © UniSEB

ensinar a pensar criticamente, com o auxílio desses novos recursos tec-


nológicos. Para isso é preciso dominar mais metodologias e linguagens,
inclusive a linguagem eletrônica.

142
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

4.12 Acerca do analfabetismo funcional e da


exclusão digital
Em 1950, quando as emissões de rádio estavam praticamente gene-
ralizadas em todo o território nacional, quando o cinema levava multidões
às salas de projeção e a difusão televisiva dava seus primeiros passos,
metade da população era ainda analfabeta.
No inal do século XIX, os EUA e a França contavam apenas com
14 e 18% de analfabetos, respectivamente. O Brasil, ao contrário, apre-
sentava um percentual de 84%. A região urbana, ainda hoje, conta com
15% de analfabetos, e a rural, com quase 30%.
Segue abaixo trecho da notícia extraída do jornal O Estado de S.
Paulo:
A taxa de analfabetismo de pessoas de mais de 15 anos caiu de
11,8% em 2002 para 10,9% em 2005, e a redução deveu-se inteira-
mente à demograia. O ritmo de queda da taxa de analfabetismo, que
foi de 0,5 ponto porcentual ao ano entre 1992 e 2002, caiu para 0,3
de 2002 a 2005. Em termos absolutos, havia 14,8 milhões de analfa-
betos em 2002, e em 2005 esse número tinha caído apenas para 14,6
milhões.
Esses resultados, revelados pela Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios de 2005 (Pnad), estão deixando perplexo o governo,
que gastou, entre 2003 e meados de 2005, um total de R$ 330 milhões
para alfabetizar 3,4 milhões de adultos, por meio do programa Brasil
Alfabetizado. Uma possível explicação para aqueles números, que
está sendo estudada pelo Ministério da Educação, é a de que o Brasil
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

Alfabetizado esteja atingindo basicamente analfabetos funcionais, que


não dominam satisfatoriamente a língua escrita, mas não os analfa-
betos absolutos, que de fato não sabem ler e escrever. Os números da
Pnad referem-se ao analfabetismo absoluto. Os meios de comunicação
difundem uma educação apartada dos eixos tradicionais, possibili-
tando um aprendizado e uma circulação do saber fora da escola (O
Estado de S. Paulo, 17 de setembro de 2006).
Considerando a notícia anterior, podemos dizer que o baixo índice
de analfabetismo não deve ser motivo de comemoração, justamente por-
que a referida pesquisa não considerou a taxa de analfabetos funcionais,
que é alarmante.

143
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

DYNAMIC GRAPHICS / JUPITERIMAGES / AFP

O Brasil constrói uma história cultural a partir de outras inluências:


antes mesmo que a escola se universalizasse, antes que o saber formal se
tornasse referência educativa para grande parte da população, antes que a
língua escrita estivesse generalizada por todo o território nacional, o rá-
dio, a TV e o cinema já eram velhos conhecidos da população.

4.13 EAD e rede eletrônica


Nossa página inicial, tema do trabalho que se segue, é o ensino a distância,
que usa como principal ferramenta a Internet. Essa nova isicalidade na relação
professor-aluno constrói também novos sentidos, porém esses não estão livres
dos sentidos já dados – do já dito – por uma rede de iliações que estão coloca-
das sobre o que é ser aluno e o que é ser professor, assim como sobre o que é o
ensino a distância, modalidade que também já conhece uma historicidade e pos-
sui sentidos constituídos antes de se apropriar desse novo suporte – a Internet.
Segundo um discurso já consolidado pelas instituições de ensino e pelo
aparelho educacional do Estado, o ensino a distância (EAD) foi criado com
o objetivo de desenvolver o processo de ensino e aprendizagem através do
uso das tecnologias da informação e assim fornecer um aprendizado de qua-
lidade para aquelas pessoas que não teriam acesso à educação tradicional.
Consiste também no fato de que qualquer interessado em um assunto tem a
chance de obter conhecimento dele autonomamente. Baseado nisso, as ideias
Proibida a reprodução – © UniSEB

que dão suporte ao EAD começaram a surgir e foram rapidamente testadas,


absorvidas e desenvolveram-se como nova ferramenta para a educação.

144
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

É claro que, inicialmente, o processo de aprendizagem é recíproco e


tanto os usuários deste sistema quanto aqueles que o criaram podem trocar
muitas informações e, com isso, aprender e aperfeiçoar o sistema.
4.14 EAD: a fundamentação histórica de uma
nova relação de aprendizagem
4.14.1 O início do EAD no Reino Unido
A ideia inicial começou por volta de 1926, na Inglaterra, quando o
educador e historiador J. C. Stobart, enquanto trabalhava na rádio BBC,
apresentou um projeto que explicava como funcionaria uma “universida-
de sem io” (uma universidade que não necessitaria de um “io” ligando o
aluno à instituição, onde não fossem necessárias aulas presencias). Inicial-
mente, tal projeto consistia em transmitir informações sobre um assunto
e permitir que, assim, os ouvintes pudessem adquirir conhecimento sem
depender do sistema tradicional de educação da época.
Depois disso, a ideia foi sendo estudada e desenvolvida até os anos
1960, quando vários projetos envolvendo o assunto começaram a surgir e
a ser aplicados, momento em que o nome “teleuniversidade” foi primeira-
mente usado. Em resumo, os projetos sistematizavam que aulas transmiti-
das pela TV seriam acompanhadas de textos enviados por correspondên-
cia e eventuais visitas por parte dos alunos a pontos predeterminados, para
que sua educação pudesse receber um maior respaldo. Este respaldo seria
dado por um tutor que faria o auxílio ao aluno pessoalmente.
Foi também na década de 1960 que o conceito de “multimídia” foi
usado para educação. O uso de som e imagem começa a ser entendido
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

como uma nova forma auxiliadora da educação. O processo consistia em


organizar os tópicos a serem estudados pelos alunos, fornecer material
que desse base para o acompanhamento das aulas transmitidas e também
suporte presencial esporádico, através de um encontro com um tutor.
Esse método, ou a combinação desses métodos, foi testado de di-
versas formas no Reino Unido desde a apresentação do projeto por J. C.
Stobart. Dentre as diversas ferramentas que foram usadas para agregar
experiência no uso do sistema de EAD, vimos que os correios, o rádio
e, mais tarde, a televisão foram avanços tecnológicos que funcionaram

Trecho do trabalho publicado nos Anais da ABED: BENEDETTI, Cláudia


Regina e VASCONCELOS, Marilda. Ensino a distância: sujeitos na rede.

145
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

como facilitadores para que esse novo sistema de educação pudesse ob-
ter sucesso. Veremos mais adiante que a administração desse sistema de
educação por uma instituição acadêmica e a popularização do computador
puderam contribuir bastante para a transformação do EAD.

4.14.2 A criação da Open University: novas


ferramentas, novas possibilidades de interlocução
Foi em 1983 que a Europa viu nascer a Open University Business
School (OU), cujo imediato sucesso fez com que se tornasse a maior
escola voltada a negócios através do sistema de EAD. Ainda na mesma
década, a OU expandiu seu atendimento a outros países europeus, como a
Bélgica e, nos anos seguintes, pôde atrair mais de 10.000 cidadãos euro-
peus fora do Reino Unido. A OU possuía escritórios espalhados por vários
lugares que serviriam como pontos de apoio ao estudante.
Novos métodos de ensino também foram criados com o início da
popularização do computador. O novo mecanismo de transferência de in-
formações passou a ser o uso de um misto de multimídias. Nesse mesmo
período, cursos de pós-graduação começaram a ser oferecidos e houve
outro boom de novos alunos. Atualmente, 20.000 alunos se submetem a
cursos de pós-graduação a distância, número maior do que outras univer-
sidades inglesas possuem de alunos tradicionais.
O sucesso do EAD no Reino Unido se deve ao rápido desenvolvi-
mento da tecnologia e à grande integração de novas mídias de comunicação
que foram incorporadas aos cursos universitários e que puderam preencher
as necessidades dos alunos. No início, o uso de transmissões pela BBC e o
envio de itas de vídeo, material impresso pelo correio, juntamente com a
assistência que os alunos recebiam através de encontros com seus tutores
em pontos espalhados por todo o país deram ao EAD a praticidade e con-
iabilidade de que o sistema precisava para começar a ser usado por outras
instituições além da OU e convencer muitos duvidosos de sua eicácia.
O sucesso que este sistema de ensino possui está vinculado ao pro-
cesso histórico que possuiu e, consequentemente, à aceitação a qual se
submeteu durante os períodos inciais de sua prática. O EAD é hoje usado
Proibida a reprodução – © UniSEB

em grande parte por outros países e no Brasil o caminho percorrido tam-


bém foi importante para seu sucesso.

146
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

O ensino a distância permite transpor as barreiras do tempo e do es-


paço e fazer o capital circular mais livremente, as paredes da sala de aula
são agora os quatro cantos da tela do computador.

4.15 O EAD surge no Brasil


No Brasil, o caminho que o EAD tomou teve suas similaridades com
aquele o europeu. Na década de 1930, o sistema de correios no país ainda
era precário e pouco se podia coniar no recebimento de informações. Ainda
havia pouco incentivo por parte das autoridades do sistema educacional da
época. Porém, depois de um período de adaptação, o EAD começou a ser
transmitido pelo rádio e foi bem-sucedido, já que a audiência era grande.
Em 1939, um projeto chamado “Rádio-Monitor” foi desenvolvido.
Lições sobre um certo assunto, seguindo um roteiro planejado para o rá-
dio, eram transmitidas todos os dias em horários predeterminados e pos-
suíam um público iel, já que muitas cartas chegavam todos os dias. Nesse
projeto, os professores, como eram chamados, tinham por responsabili-
dade ler e dar dicas que pudessem guiar os ouvintes na aprendizagem do
assunto proposto. Não havia muita disponibilidade de material, portanto
cabia ao aluno-ouvinte procurar material que lhe desse suporte para co-
nhecer um assunto e, para isso, ele seguia as recomendações do professor.
Na década de 1960, novos objetivos foram estabelecidos para o
EAD. Dentre eles levar a educação a distantes regiões do Brasil. Para
aquelas pessoas que não tinham acesso às instituições de ensino por conta
da distância geográica. O objetivo educacional era proporcionar aos ci-
dadãos participantes conhecimento prático para ser aplicado a uma prois-
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

são. Muitos deles já deveriam desenvolver esta ou aquela atividade, mas o


que lhes faltaria seria conhecimento teórico, para que pudessem aprimorar
seu trabalho. E isso requeria que a pessoa tivesse um conhecimento básico
do assunto, desejo de aprender e algumas horas livres. O que faltava era
a disponibilização de uma ferramenta que pudesse facilitar o desenvolvi-
mento deste projeto.
Com a popularização da TV, a transmissão de cursos se tornou mais ei-
caz com sessões pré-gravadas e aquelas ao vivo. O mais conhecido sistema
de ensino pela televisão, criado na década de 1960, foi o Telecurso Primeiro
e Segundo Graus, realizado pela fundação Roberto Marinho. O principal
objetivo deste programa era oferecer educação informal através do EAD e
dar às pessoas a oportunidade de terminarem o aprendizado de conceitos bá-
sicos relacionados a assuntos como matemática, português e ciências.
147
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

O equipamento usado se resume à televisão e o método é unidirecional,


ou seja, o professor ou tutor não pode acompanhar o progresso do aluno e este
não pode partilhar seu conhecimento ou conclusões com mais ninguém. O
aluno está por sua conta no que se refere a administrar seus estudos.

4.16 EAD e os usuários da Internet


Ao inal da década de 1980, o computador e, consequentemente, a
Internet marcaram uma nova maneira de se enviar e receber informações,
e isso pode ser visto também na educação. O acesso a esta tecnologia per-
mite que as pessoas possam organizar, produzir e armazenar informações
de uma maneira muito mais eiciente. Tal tecnologia também permitiria
uma maior interação entre o aluno e o professor no sistema EAD. A comu-
nicação se tornou mais dinâmica e mais rápida, fazendo com que as dis-
tâncias fossem menores e superassem os obstáculos geográicos. Foi neste
período que se iniciaram as ideias em torno do uso de computadores como
auxiliares da educação. No decorrer dos anos 1980 e por toda a década de
1990, vê-se que, aos poucos, o uso de computadores ligados à Internet se
torna comum nas universidades, escolas privadas e também em algumas
escolas da rede pública.
Com a Internet, termos como sociedade da informação começaram
a ser usados, pressupondo, ou pelo menos construindo esse sentido, que o
novo meio pudesse fazer toda a sociedade ter acesso à informação e, con-
sequentemente, à educação.
Em 2000, o Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) lançou um
material chamado de O livro verde, para a sociedade da informação no
Brasil. Esse livro incentiva o crescente uso da informação disponível por
parte da sociedade brasileira. Ainda tenta fazer com que o acesso à Inter-
net se popularize cada vez mais, pois acredita que, quanto mais pessoas
participarem da rede, mais essa se tornará variada e dinâmica. Tal livro
também é favorável ao comércio eletrônico e à exploração de seus bene-
fícios.
Fazer parte dessa sociedade da informação signiica ter acesso ao
mesmo nível de informações que qualquer outra pessoa em qualquer outro
lugar. Isso, então, proporciona a qualquer indivíduo integrante adquirir
Proibida a reprodução – © UniSEB

o conhecimento desejado sem se importar com as distâncias ou ter de se


submeter às barreiras que um curso tradicional ofereceria.
A ideia de “democratização” da informação se faz necessária para
dar sentido ao novo instrumento educacional, como se as “barreiras” para
148
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

o acesso à educação fossem somente físicas. Nesse caso, temos um dis-


curso que tenta se construir como uno, mas que se esburaca se colocado
diante de outras formações discursivas sobre os problemas de acesso à
rede eletrônica pela maioria da população: pelo menos 80% da população
vive “off-line”.

4.17 Os anos 2000 e a tecnologia por trás do


EAD
Como visto anteriormente, a tecnologia por trás do EAD está ba-
seada em se ter acesso a um computador. Como já foi airmado, com o
grande número de pessoas que podem acessar a rede, o número de pes-
soas que também pode usar o EAD continua crescendo. Alguns centros
usam a associação do aparelho de televisão com satélites, para enviar ou
receber informação para grupos de pessoas, preocupando-se em facilitar
o entendimento dos assuntos propostos e dar suporte educacional à sua
audiência, garantindo, assim, que o usuário de tal sistema possa real-
mente adquirir o conhecimento proposto e fazer uso dele em sua carreira
proissional.
A fotografia digital é
uma outra importante ferra-
menta que se tornou bastante
popular nos meios de educa-
ção. Mesmo em livros, o uso
de fotos digitais proporciona
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

ao leitor ter contato com uma


imagem de maior qualidade e
ainda manipular esse tipo de
arquivo. O usuário tem acesso
a um grande número de imagens
mais rapidamente e ainda
consegue armazená-las para,
posteriormente, serem usadas
em outros trabalhos e artigos.
Telefones celulares e o
que se pode e se poderá fazer
com esses aparelhos também
HEMERA TECHNOLOGIES / PHOTOS.COM / GETTY IMAGES

149
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

estão entre as ferramentas já disponíveis para aqueles que querem melho-


rar ainda mais a eicácia do EAD. Essa tecnologia traz a possibilidade de
comunicação e troca de informações com um grande número de pessoas a
qualquer hora do dia e em qualquer lugar simplesmente
através de um aparelho de mão.
Conexão:
Todos esses equipamentos e suas utili- Acesse o site:
dades tiveram um grande impacto na vida http://www2.abed.org.br/visualiza-
das pessoas. Podemos airmar, sem medo Documento.asp?Documento_ID=427
Leia o texto disponível: “Tecnologia
de equívocos, que é a primeira vez que o educacional: formação de profes-
homem tem a chance de manipular uma sores no labirinto do ciberes-
paço”, de José Augusto de
multiplicidade de informações e suportes Melo Neto
concomitantemente.
Esse sujeito é um novo sujeito, um navegador,
sem embarcação, seu caminho é de marinheiro errante, pois a possibilida-
de de mapeamento está minimizada, no caso do EAD, à página de acesso
ao Ambiente Virtual. A topologia não é mais a da sala de aula, as ferra-
mentas não são mais o giz, a lousa e o caderno de anotações, a materiali-
dade é outra. O livro não apresenta a isicalidade de capítulos sequenciais,
os arquivos estão justapostos e permitem vários percursos de leitura em
uma arquitetura de nós, de textos e rede de textos. Esse sujeito conta ainda
com uma temporalidade e uma espacialidade diferente, pode ter acesso a
aulas que já foram dadas, conversar com o professor em tempo real sem
ocupar o mesmo espaço físico, sem ao menos conhecer pessoalmente esse
professor. As informações ganham, então, uma transitoriedade diferente,
um luxo constante e simultâneo, fazendo surgir um outro sujeito-aluno e
um outro sujeito-professor.
Para que o nível de absorção ou entendimento das informações
possa ser aprimorado, é necessário que tais níveis sejam administrados
de forma eicaz e isso exige o domínio da tecnologia disponível. Quanto
melhor for a habilidade com esta tecnologia, melhores serão os benefícios
adquiridos. O uso de vários equipamentos para acessar e armazenar e or-
ganizar as informações necessárias para se construir o conhecimento de-
sejado juntamente com a assessoria por parte do tutor contribuem bastante
para a motivação do aluno. Esta motivação, segundo o discurso oicial, é a
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chave de que o EAD necessita para ser um sistema competente de apren-


dizagem. É preciso pontuar a competência fundamental que os sujeitos –
alunos e professor – têm de ter para se conectarem a essa modalidade de
ensino a distância informatizada.
150
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

Na verdade, esse discurso revela habilidade em lidar com as possibi-


lidades da rede, seu avanço tecnológico permite a fusão de equipamentos
de comunicação (imagem, som, texto, vídeo etc). Além de disponibilizar
um instrumental multimidiático, o EAD potencializa o caráter industrial
da educação, visto que sua extensão passa a ser mundializada.

4.18 Usuários on-line versus usuários off-line


O suporte dado ao aluno pode ser dividido em dois tipos: o primeiro
abrange aqueles que não têm acesso à Internet e, portanto, podem usar o
sistema de correios ou máquinas de fax para receber e enviar o material. O
aluno ainda pode entrar em contato com o tutor através de telefone. Estes
alunos possuem encontros presenciais com frequência determinada pela
instituição. O segundo tipo abrange aqueles alunos que possuem acesso
à Internet e usam este mecanismo para receber e enviar informações,
podendo ainda estabelecer uma relação com os outros alunos através de
fóruns de discussão ou espaços reservados para a troca de recados entre os
alunos e entre estes e o tutor. Outra vantagem que o acesso à Internet traz
é que o aluno pode desenvolver as tarefas propostas em seu próprio com-
putador, lendo o material recebido, discutindo com seus colegas on-line,
realizando pesquisas na rede e, por im, reenviar o material. Isso tudo sem
o consumo de papel ou a necessidade de se deslocar para realizar tarefas
distintas.
Nesse segundo caso, a interação do tutor com o aluno é maior de-
vido ao mecanismo de comunicação ser mais rápido e interativo do que
aquele por meio do qual o aluno se comunica por correspondência não
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

eletrônica com seu tutor.


A principal vantagem de se ter acesso à Conexão:
rede é a troca de mensagens em tempo real, Acesse a revista Educa
Online:
tanto com o tutor do curso quanto com os http://www.latec.ufrj.br/revistaedu-
outros participantes. Fóruns de discussão caonline/numeros.html
permitem uma maior integração destas pes- Há vários artigos disponíveis
sobre educação a distância.
soas e, portanto, dão uma maior motivação
para aquele aluno que necessita de maior aten-
ção durante seu aprendizado.
Já as videoconferências permitem um relacionamento em tempo
real, no qual os alunos estão reunidos num mesmo ambiente integrando-se
com os colegas de sala, e não com a tela do monitor; a moldura de suas
ações será a do tutor/professor.
151
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

É esperado que o uso dessas ferramentas descritas anteriormente


possa trazer benefícios educacionais. As ferramentas de comunicação
são usadas para apresentar a informação do professor/tutor para o aluno e
vice-versa. O computador pode armazenar esta informação e, consequen-
temente, o aluno pode usá-la num dado momento desejado. A informação,
uma vez armazenada, pode ser acessada a qualquer momento pelo aluno
que tem a chance de decidir quando e onde estudar. Há, então, a sensação
de que o professor/tutor encontra-se disponível sempre, assim como o
conteúdo curricular.
Todo esse equipamento de multimídia permite criar uma realidade
virtual que supriria a necessidade de um real encontro com o professor. A
simulação deste tipo de interação pode ser uma grande motivação para a
continuidade do curso, já que também há a sensação de não se estar sozi-
nho quando em fóruns de discussão. Essa nova relação levanta questões
sobre o tempo e o espaço, sobre a distância e a proximidade. Temos um
outro tipo de sociabilidade, que podemos chamar de tecnológica, já que
é exclusivamente mediada por um aparato técnico que pretende suprir a
necessidade da isicalidade do professor e do aluno.
Supõe-se que este sujeito-aluno seja disciplinado o bastante para
completar o aprendizado do que lhe foi proposto. Essa disciplina é em parte
garantida pelo constante relacionamento com a instituição na troca de in-
formações e no controle virtual e (em parte) presencial de suas atividades.
JEFFREY HAMILTON / LIFESIZE / GETTY IMAGES
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Constrói-se, então, uma nova relação entre sujeitos de um novo dis-


curso sobre uma nova forma de educação, dados pela utilização de novas

152
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

ferramentas e novas possibilidades de interlocução. A originalidade que se


ediica no EAD retém uma memória discursiva sobre o que é ser profes-
sor, o que é ser aluno, o que é uma aula. São essas formações discursivas
que permitem o aparecimento de novas posições-sujeito.

4.19 Os sujeitos e as malhas do digital


Pensar no ensino a distância é pensar em sujeitos conectados a essa
rede mundial que transforma a relação tempo e espaço, que faz circular
discursos fragmentados. Uma rede que, assim como o processo de apren-
dizagem, só funciona se estamos inseridos nela, uma rede com pontos de
esburacamento e entrelaçamento.
A rede eletrônica permite localizar conteúdos e recorrer a fontes
como sons e imagens ixas ou em movimento, os sujeitos têm acesso a
um luxo frenético de informações e a uma possibilidade ilimitada de in-
teração, como airma Roger Silverstone (2002), ao deinir a rede mundial
de computadores como uma “promessa (alguns diriam ameaça) de um
mundo interativo em que tudo e todos podem ser acessados, instantanea-
mente”.
A encruzilhada da Internet é paradoxal, como analisa Kucinski
(2005), constitui um espaço no qual se manifesta a fragmentação ética e
o individualismo, ao mesmo tempo em que é a poderosa ferramenta dos
libertários, dos que não se resignaram ao triunfo do neoliberalismo. Resta-
nos saber como os sujeitos estarão inseridos nesse universo contraditório,
como a educação a distância irá se construir nessa nova “sala de aula”,
que continua quadrada, mas que tem uma espacialidade hipertextual e
uma localidade indeinida.
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

A rede eletrônica possibilita a rápida locomoção de um local a ou-


tro, os sujeitos atravessam paredes sem necessariamente abrir e fechar
portas, a propagação do ensino on-line traz consigo indagações comple-
xas a respeito do próprio conhecimento, da sua utilização e do seu impac-
to sociocultural.
Dentre as discussões apontadas sobre a rede e suas possibilidades,
ica uma questão para a educação a distância: como se posicionam os su-
jeitos (aluno e professor) diante da rede?

153
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

4.20 Aluno e professor: sujeitos de um discurso nas


malhas do digital
Como já vimos, as novas tecnologias causam impacto em diferentes
áreas. Os computadores e a Internet criaram novas oportunidades, novas pro-
issões, novas formas de trabalho que englobam mais gente a cada dia. Entre
essas novas formas está incluída a educação a distância, algo que já conquis-
tou espaço no mercado e que, a cada dia, abraça mais e mais adeptos.
O meio digital permitiu o surgimento dessa nova categoria de edu-
cação, o ensino a distância, que ganhou espaço até mesmo dentro das
universidades convencionais. Hoje, pessoas de qualquer parte do Brasil
podem interagir em cursos oferecidos em diferentes áreas estando em
qualquer parte do mundo. Podem escolher como cortar cabelo, como
montar uma empresa, como tocar um instrumento musical, até mesmo se
pós-graduar. A falta de tempo acelerou o ritmo das pessoas, que tiveram
de se adaptar aos moldes digitais rapidamente.
Recuperando os dados do Anuário Brasileiro Estatístico de Educa-
ção Aberta e a Distância (Abraed 2005), vemos que, em 2004, pelo me-
nos 1.137.908 de brasileiros se beneiciaram de algum curso de ensino a
distância no país. Tais dados são resultado de pesquisa feita apenas com
alunos de instituições oicialmente credenciadas com o número das seis
maiores instituições que ofertam a modalidade: Sebrae (176.514 alunos),
Fundação Roberto Marinho – Telecurso 2000 (393.442), Senai (10.305),
Senac (37.973), Governo do Estado de São Paulo (132.223) e Telemar
(77.494). Ainda segundo o levantamento, deste total de 1,1 milhão,
309.957 pessoas estavam matriculadas em cursos oferecidos por 166 enti-
dades credenciadas, como universidades públicas e privadas que seguem
uma regulamentação especíica do poder público. Esses estudantes estão
distribuídos pelo ensino fundamental, médio, sequencial (curso superior
de curta duração, normalmente de 2 anos), técnico (ensino médio pro-
issionalizante), EJA (Educação de Jovens e Adultos), graduação, e pós-
graduação latu sensu (especialização).
Vale lembrar que este levantamento não Conexão:
incluiu cursos livres como música e idio- Leia o artigo abaixo:
ARETIO, G. Conceitos e
mas, por exemplo. A região Sudeste educa
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fundamentos de educação à
53% do total de alunos a distância do país, distância. 1998. Disponível em:
<http://www.eps.ufsc.br/disserta98/
o equivalente a 163.887 estudantes. O roser/cap2.htm>.

154
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

Nordeste tem o segundo maior grupo, com 18,7% do total de alunos, segui-
do pela região Sul (17%).
Ao adentrarmos no ambiente educacional on-line, muita coisa nos
parece diferente da modalidade que estamos acostumados a vivenciar. E
realmente são diferentes, porém não menos eicazes. Os alunos e o profes-
sor geralmente não se conhecem pessoalmente; o meio de ler o conteúdo
do curso passa a ser a tela, e não mais o papel (embora alguns preiram
imprimir para ler); o modo como as aulas podem ser comentadas, como
podemos dar vazão às nossas opiniões, mostrar nossos descontentamentos e
criar discussões agora são mais abertos do que em uma sala de aula comum,
onde muitas vezes o aluno não consegue ou tem vergonha de se manifestar.
Podemos tirar dúvidas a qualquer momento é só escrever um e-mail, o qual
em breve será respondido pelo professor ou também por algum outro colega
que possa contribuir com alguma experiência.

Um aluno interagindo on-line com um professor remoto pode se


sentir mais próximo de seu mestre do que se estivesse assistindo
a uma aula local expositiva, junto com uma centena de outros co-
legas, todos impossibilitados de interagir adequadamente com o
professor ou entre si. Assim, não é medindo-se a distância espacial
entre alunos e professores que se terá um parâmetro adequado de
comparação. O que realmente importa é a sensação de distância
percebida pelo aprendiz (TORI, s/d, on-line).
Essa sensação de distância tende a ser menor em cursos a distância
já que esse contato torna-se mais rápido e com menos constrangimento.
Às vezes, o que o aluno jamais perguntaria na sala de aula presencial,
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

por vergonha, ou por se achar menos inteligente que os demais, pode per-
guntar na aula on-line e discutir tudo o que quiser. O aluno torna-se um
sujeito potente, capaz de realizar ações que a isicalidade da sala de aula
não permitiria, que a identiicação da relação interpessoal não possibilita.
Alguns sites especializados em EAD disponibilizam depoimentos de seus
alunos tratando dos benefícios desta modalidade educacional:

Enquanto lia as mensagens do fórum esta noite deparei-me lá pelas


tantas com uma grata surpresa. Em todos os cursos que realizei nun-
ca tive tantas informações sobre meus colegas, seus pensamentos,
suas qualidades. Vejam só, o curso tem somente um mês e é incrível
como já “conversei” com os colegas. Como diz meu ilho, “altos
papos”. Nem na mesa do bar da faculdade com a (maravilhosa) cer-
vejinha, tinha aprofundado conversas como aqui ocorreu. Nunca es-

155
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

tive tão próximo dos meus colegas de aula. PARABÉNS A TODOS


e repito: Educação a DISTÂNCIA, DISTÂNCIA... QUE NADA!!!
A comunicação entre os envolvidos é de suma importância para o
melhor aproveitamento de conteúdo e, principalmente, de oportu-
nidades. Já cursei uma faculdade presencial e posso airmar que
aprendi muito mais com curso on-line pois não basta ler as aulas, os
exercícios avaliam o entendimento e a aplicabilidade do conteúdo.
Você aprende mesmo, não decora!

Diante desses enunciados perguntamo-nos: como se dá a construção


da relação sujeito-educador e sujeito-educando no ensino a distância?
Quais as condições de construção dessa relação? Que elementos com-
põem a interação virtual entre o ser o saber?
Se a linguagem é o discurso como percurso, mediação necessária
entre o homem e a realidade natural e social a im de fazer deste um ser
especial com capacidade de signiicar e signiicar-se (ORLANDI, 1999),
é também por meio da relação homem-conhecimento que a linguagem
signiica.
A questão educacional no Brasil é tema que preocupa inúmeros seg-
mentos da população no país. Um dos pressupostos para tal preocupação
assenta-se na diiculdade de as instituições de ensino atenderem à deman-
da do estudante contemporâneo.
Ávido pelo conhecimento e bombardeado pelas novas tecnologias,
o aprendiz percorre instituições educacionais públicas ou privadas preo-
cupado com uma formação que atenda a seus anseios e também aos do
mercado capitalista.

Depoimento de Luiz Fernando Bonn Henzel. Disponível em:


<http://209.85.165.104/search?q=cache:7pqQ1rMD3A8J:www.senace-
ad.com.br/+depoimento+ead&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=1&gl=br>.
Proibida a reprodução – © UniSEB

Disponível em: <http://209.85.165.104/search?q=cache:


YgGHUbdszekJ:www.guiaead.com.br/guiaead/palavra_dos_alunos.
asp+depoimento+ead&hl=pt-BR&ct=clnk&cd=2&gl=br>.

156
Educação, Globalização e Desigualdades na Contemporaneidade – Capítulo 4

Atividades
01. Deina os seguintes sistemas de estratiicação social: castas, estamen-
tos e classes.

02. Escreva um texto síntese sobre as desigualdades no Brasil.

03. Descreva os aspectos contraditórios da globalização.

04. Qual é o papel da educação na sociedade de informação?

05. O que é a exclusão digital?


EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

Reflexão
Vimos que a globalização, por abarcar elementos antagônicos, man-
tém entre si relações dialéticas e deve ser analisada como um fenômeno
contraditório. Ela produz aspectos positivos e negativos. De um lado, a
sociedade global propicia o compartilhamento facilitado de informação
e conhecimento e, de outro lado, é marcada por uma acentuada exclusão
social (tendo uma de suas variantes: a exclusão digital) de amplos seg-
mentos da população.

157
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Leituras Recomendadas
Para uma relexão atualizada sobre a desigualdade brasileira, leia:
SOUZA, Jessé . A parte de baixo da sociedade brasileira. Interesse Na-
cional, v. 14, p. 33-41, 2011.

Referências bibliográficas
CASTELLS, Manuel. A galáxia da Internet. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2003, p. 13-33.

FEATHERSTONE, Mike. Cultura global: nacionalismo, globalização


e modernidade. Petrópolis: Vozes, 1999.

GUIA DE EDUCACÃO A DISTÂNCIA 2005. São Paulo: Segmento,


2005.

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No próximo capítulo
No próximo capítulo veremos alguns aspectos contemporâneos da
discussão sobre educação e cultura. O foco recairá sobre os temas da di-
versidade cultural, gênero e sexualidade na escola.
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159
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Minhas anotações:
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160
Educação e
Diversidade Cultural
5 No primeiro capítulo, abordamos o conceito
antropológico de cultura, o qual vamos retomar
lo
neste capítulo, com foco na relação entre cultura
e educação escolar. Vamos repensar como a escola,
ít u

enquanto instituição socializadora, opera segundo deter-


minados valores e signiicados culturais. Por muito tempo,
Cap

predominou (e há quem diga que ainda predomina) visões


calcadas em valores eurocêntricos e masculinistas no currículo
escolar, algo que vem sendo questionado por perspectivas que
apostam na reconiguração desta por meio da valorização da diver-
sidade cultural.

Objetivos da sua aprendizagem


• Entender as relações entre cultura, escola e socialização;
• Compreender a crítica à chamada “cultura universal” e seus vínculos
com o eurocentrismo;
• Reletir sobre as mudanças contemporâneas no que tange ao currículo
escolar;
• Repensar o currículo em relação à diversidade cultural;
• Compreender o conceito de gênero e sexualidade em seus vínculos
com o contexto sociocultural;
• Reletir sobre as relações entre gênero, sexualidade e a escola.

Você se lembra?
Já vimos a importância central do conceito de socialização e com-
preendemos a escola como uma instituição socializadora. Neste
capítulo, vamos recuperar essa discussão associada à questão da
diversidade cultural, ao gênero e à sexualidade.
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

5.1 Educação, cultura e socialização


A educação consiste em um processo amplo e rodeado por ele-
mentos que interferem e dialogam na interiorização dos conteúdos pelos
indivíduos. Ela assume formas múltiplas se realizando efetivamente em
dois níveis. O primeiro, chamado de sociocultural, é aquele em que as
referências de uma dada sociedade e cultura exercem no indivíduo inlu-
ências que impactam nas escolhas, no modo de agir e de fazer ao longo de
sua existência. O segundo nível, o psicossocial, refere-se a como os indi-
víduos internalizam tudo o que receberam da sociedade e constroem suas
próprias referências em relação à realidade.
Diante da extensa deinição do conceito educação, você precisa estar
ciente da amplitude do processo educativo e das limitações de seu papel, bem
como saber equacioná-los para as necessidades do mundo contemporâneo.
Aparentemente, não há muito o que discutir sobre a relação entre
cultura e escola, visto que o conhecimento discutido nas salas de aula e a
aprendizagem exigida dos alunos referir-se-iam supostamente a um conhe-
cimento tido como universal e não diria respeito às singularidades culturais
desta ou daquela sociedade. No entanto, como veremos, a formação do
currículo escolar, em seu amplo sentido, relaciona-se com signiicados cul-
turais que são escolhidos como fundamentais ou dispensáveis na formação
dos alunos. Em outras palavras, há escolhas que determinam o que deve e
o que não deve ser aprendido e, neste sentido, alguns valores são acionados
no estabelecimento de critérios daquilo que se inclui ou se exclui.
A discussão da cultura e a escola nos remete à formação das socieda-
des modernas e à invenção do que se deiniria como “cultura universal”. Foi
com a modernidade que se instaurou o antropocentrismo e falou-se em uma
cultura da humanidade, ou seja, compreende-se cultura como “uma espécie
de coleção do que de melhor foi produzido”. Como veremos, trata-se de
uma visão amplamente distinta da concepção antropológica que valoriza a
diversidade cultural, como já vimos no primeiro capítulo, posto ela é base-
ada em pressupostos eurocêntricos (um tipo privilegiado de etnocentrismo)
e assentada no domínio ocidental. Em primeiro lugar, equivale-se a cultura
universal ao legado cultural europeu, considerando outras expressões cul-
turais como “atrasadas” ou “primitivas”. Em segundo lugar, esta mesma
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cultura incorpora elementos de outras culturas, quando julga necessário,


sem necessariamente valorizar a sociedade na qual tais elementos culturais
foram criados. A cultura universal, portanto, é uma abstração com origens
coloniais e parte da dominação cultural ocidental:
162
Educação e Diversidade Cultural – Capítulo 5

essa cultura universal não tinha nada de intrinsecamente superior;


ao contrário, sua universalidade era mantida por mecanismos políti-
cos para o resto do mundo. Como detentor de uma cultura superior,
o colonizador justiicava sua dominação como função civilizadora
da humanidade. Em seu percurso pelo mundo, a Europa ia pilhando
experiências locais, abstraindo-as de seus lugares e tempos de pro-
dução. Ampliava, com isso, o repertório do que a humanidade tinha
produzido de melhor ao mesmo tempo em que destruía os sistemas
competidores. A cultura universal tornava-se, assim, cada vez mais
universal (MACEDO, 2010, p. 14).

A cultura enquanto instância simbólica, deinida como partilha co-


mum de signiicados, é um aspecto fundamental do currículo escolar, na
medida em que este se relaciona à escolha de valores que deveriam ser
repassados aos alunos. Em uma visão tradicional, as crianças deveriam ir
à escola para “aprender e para se tornar. Aprender conhecimentos, proce-
dimentos, valores e se tornar educados, cultos, trabalhadores, cidadãos.
Com isso, boa parte dos debates sobre o currículo escolar girava em torno
da projeção deste ‘tornar-se’” (MACEDO, 2010, p. 20-21), o que esteve
atrelado às deinições de cultura universal:
a escolarização consistia na principal porta de acesso à cultura
da humanidade. Do ponto de vista do “tornar-se”, projetavam-se
sujeitos educados e cultos. Em relação a o quê ensinar, a decisão
envolvia apenas a seleção daquilo que, dentro da cultura universal,
deveria ser objeto da escolarização. Assim, as crianças escolariza-
EAD-14-Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação – Proibida a reprodução – © UniSEB

das eram socializadas na cultura universal que se propunha a reunir


toda a produção humana de valor (MACEDO, 2010, p. 21).

Em síntese, “a história do currículo escolar é a história do debate


em torno dos critérios para selecionar, na cultura universal, o que deveria
ser ensinado” (MACEDO, 2010, p. 21). Com a globalização, os intensos
luxos culturais propiciados pelo desenvolvimento dos meios de comuni-
cação e a formação de movimentos sociais em defesa da diversidade cul-
tural, vê-se a formação de um questionamento sobre o currículo escolar
calcado no universalismo moderno. Já são frequentes as críticas a seu viés
eurocêntrico e branco. As propostas de defesa da diversidade cultural, res-
paldadas pela Unesco, vêm sendo adotadas em muitos países, com grande
impacto nas políticas educacionais. São exemplos disto, no Brasil, as leis
163
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

10.639/03 e 11.645/08, que incluem a história e cultura afro-brasileira e


indígena no currículo escolar, até então excluídas do conhecimento tido
como necessário à formação dos alunos. Tais mudanças políticas educa-
cionais podem ser compreendidas como um processo que reconigura a
forma como a escola e a cultura se relacionam, trazendo novos desaios:
com a denúncia do caráter excludente da ideia de cultura universal,
o caráter multicultural das sociedades ganhou visibilidade, o que
passou a exigir da sociedade e da escola novas formas de atuação.
Com isso, os currículos escolares se tornaram mais plurais, tanto
introduzindo novos conteúdos e disciplinas quanto alterando a lógi-
ca que presidia a organização de determinadas disciplinas. Isso não
signiica, no entanto, que os riscos do universalismo cultural, com o
preconceito que geralmente o acompanha, tenham sido eliminados.
Além do risco de que as culturas não hegemônicas sejam caricatu-
radas e/ou folclorizadas, reforçando o universalismo, permanece a
ansiedade sobre a necessidade de algo comum partilhado por todas
as culturas (MACEDO, 2010, p. 24).

Em 2002, a Unesco (Organização das Nações Unidas para a


Educação, a Ciência e a Cultura) instituiu a declaração universal sobre a
diversidade cultural. Relita sobre a relação entre os artigos abaixo (MA-
CEDO, 2010, p. 19-20) e as mudanças na esfera da educação:
Artigo 1.º Diversidade cultural: um patrimônio comum da
Humanidade
A cultura assume diversas formas ao longo do tempo e do espaço.
Esta diversidade está inscrita no caráter único e na pluralidade das
identidades dos grupos e das sociedades que formam a Humani-
dade. Enquanto fonte de intercâmbios, inovação e criatividade, a
diversidade cultural é tão necessária para a Humanidade como a
biodiversidade o é para a natureza. Neste sentido, constitui o patri-
mônio comum da Humanidade e deve ser reconhecida e airmada
em benefício das gerações presentes e futuras.
Artigo 2.º Da diversidade cultural ao pluralismo cultural
Nas nossas sociedades cada vez mais diversas, é fundamental
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garantir uma interação harmoniosa entre pessoas e grupos com


identidades culturais plurais, variadas e dinâmicas, bem como a
sua vontade de viver em conjunto. Políticas visando à inclusão

164
Educação e Diversidade Cultural – Capítulo 5

e participação de todos os cidadãos são garantias de coesão


social, de vitalidade da sociedade civil e de paz. Assim deinido,
o pluralismo cultural dá expressão política à realidade da diversi-
dade cultural. Sendo indissociável de um ambiente democrático, o
pluralismo cultural favorece os intercâmbios culturais e o loresci-
mento das capacidades criativas que suportam a vida pública.
Artigo 4.º Os direitos humanos como garantias da diversida-
de cultural
A defesa da diversidade cultural é um imperativo ético, indisso-
ciável do respeito pelos direitos humanos. Implica um compro-
misso para com os direitos humanos e liberdades fundamentais,
em particular os direitos das pessoas pertencentes a minorias e
dos povos indígenas. Ninguém pode invocar a diversidade cul-
tural para justiicar a violação dos direitos humanos garantidos
pelo direito internacional, nem para restringir o seu âmbito.

Um dos aspectos fundamentais da discussão sobre escola e diversi-


dade cultural é a questão das relações raciais, conforme Thomas Tadeu da
Silva explana, versando sobre o currículo escolar compreendido de forma
abrangente:
é através do vínculo entre conhecimento, identidade e poder que os
temas da raça e da etnia ganham seu lugar na teoria curricular. O texto
curricular, entendido aqui de forma ampla – o livro didático e para-
didático, as lições orais, as orientações curriculares oiciais, os rituais
escolares, as datas festivas e comemorativas – está recheado de narrati-
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vas nacionais, étnicas e raciais. Em geral, essas narrativas celebram os


mitos da origem nacional, conirmam o privilégio das identidades do-
minantes e tratam as identidades dominadas como exóticas ou folcló-
ricas. Em termos de representação racial, o texto curricular conserva,
de forma evidente, as marcas da herança colonial. O currículo é, sem
dúvida, entre outras coisas, um texto racial. A questão da raça e da etnia
não é simplesmente um “tema transversal”: ela é uma questão central
de conhecimento, poder e identidade (2001, p.101-102).
A aparente neutralidade do currículo é questionada, portanto, quando
notamos que há aspectos “raciais” no currículo. Compreende-se “raciais”
não como uma característica biológica humana – na medida em que o saber
acadêmico já descartou a hipótese nefasta da ideia de que a humanidade
estaria dividida em raças –, mas em sentido social. Fala-se em preconceito
165
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

racial quando se percebe que determinados grupos são mais valorizados que
outros e que membros destes grupos têm sua cultura invisibilizada no currí-
culo escolar e, atrelado a isso, sofrem preconceito e discriminação por conta
de características fenotípicas, como cor da pele, tipo de cabelo, formato do
nariz, bem como por pertencerem a grupo cultural distinto do valorizado
socialmente, qual seja, o branco de origem europeia.
Neste sentido, falar de cultura na escola é pensar sua relação com
uma das instituições socializadoras mais importantes da sociedade. So-
cialização é um conceito que denota o processo no qual os indivíduos são
inseridos na sociedade, incorporando seus valores e visões de mundo,
ou seja, as formas de ver o mundo, de se pensar no mundo, as formas de
compreensão de si e as formas de relação com o outro passam pelo que se
aprende na escola. Assim, cabe à escola desenvolver uma perspectiva que
valorize a diversidade cultural em seu amplo sentido.
Nosso foco estarão as relações entre escola, cultura, gênero e se-
xualidade. Veremos que há padrões de gênero e sexualidade que são
reforçados na escola desde sua acepção moderna. De outro lado, outras
visões vêm sendo desenvolvidas de forma a questionar como um saber
supostamente neutro acaba por produzir preconceitos em relação a gênero
e sexualidade. Veremos, portanto, que o currículo escolar se caracteriza
fundamentalmente por valores que sustentam o privilégio masculino e he-
terossexual e como este tem sido reconigurado nos últimos tempos.

5.1.1 Os estudos de gênero e sexualidade


O conceito de gênero foi desenvolvido na década de 1970 por te-
óricas feministas de diversas áreas. Trata-se de um momento histórico
marcado pela entrada massiva das mulheres nas universidade, neste sen-
tido há uma profusão de estudos sobre mulheres em diversos campos do
saber. Desenvolvem-se estudos que demarcam a presença das mulheres na
história, na sociedade e na ciência, ocultados pelo saber até então focado
na história dos homens. Esta corrente de estudos focaliza as assimetrias
de poder entre homens e mulheres na sociedade, no que se refere aos re-
cursos materiais e simbólicos que conferem privilégios aos homens nos
espaço público e privado.
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A publicação de pesquisas sobre a história da mulher levou a des-


cobertas interessantes, por exemplo a de que não existe uma deinição
universal do “ser mulher”, visto que tal deinição varia de sociedade para
sociedade e se transforma dentro de uma mesma sociedade. A teoria ori-
166
Educação e Diversidade Cultural – Capítulo 5

ginal, ainda nos anos 1950, que inluenciou várias acadêmicas posteriores
foi a da ilósofa existencialista Simone de Beauvoir, companheira de Jean
Paul Sartre, com sua frase muito conhecida: “não se nasce mulher, torna-
se mulher”. O que esta frase aponta é o questionamento de uma deinição
biológica do “ser mulher” e o princípio da consideração dos determinan-
tes culturais da feminilidade.
O desenvolvimento dos estudos feministas contribuíram para várias
áreas do conhecimento, com a consolidação de um repertório teórico-
-conceitual. Gênero é um conceito fundamental que possibilita compreen-
der as categorias de masculinidade e feminilidade como fundamentais na
ordem cultural. Joan Scott (1994) deine:
gênero é um saber que estabelece signiicados para as diferenças
corporais. Esses signiicados variam de acordo com as culturas, os
grupos sociais e no tempo, já que nada no corpo, incluídos aí os
órgãos reprodutivos femininos, determina univocamente como a
divisão social será deinida (SCOTT, 1994, p. 12-13).

Em outras palavras, com base no conceito de gênero não se concebem


mais as diferenças entre homens e mulheres como determinadas pela natureza
ou pela biologia. Concebe-se que o gênero é uma construção cultural, ou seja,
a compreensão do masculino e do feminino passa pela cultura, pelos signi-
icados produzidos em determinada sociedade e em determinado momento
histórico. De uma sociedade a outra as deinições de masculinidade e femini-
lidade variam, bem como de uma época a outra. O que é ser homem e o que
é ser mulher, portanto, são conceitos que podem variar de forma signiicativa.
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O século XX foi um século de mudanças substanciais no que tan-


ge aos modelos de gênero. No começo do século, na grande maioria dos
países, as mulheres não podiam votar - no Brasil o voto feminino foi
conquistado em 1934 e, em 2010, foi eleita uma mulher na presidência da
República. Na segunda metade do século XX, há uma superação do hiato
de gênero na educação, quando as mulheres se tornaram a maior parte da
população estudantil nas universidades. Trata-se de uma história de con-
quistas de direitos que tiveram no protagonismo movimentos feministas
no mundo todo. De outro lado, houve uma série de mudanças também
no que se refere às deinições do masculino e do que é ser homem. Em
alguns casos, há maior participação nas atividades domésticas, no cuidar
dos ilhos e na própria noção de paternidade. Dentre elas, há maior possi-
bilidade de demonstrações de afetividade maiores entre pais e ilhos, por
167
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

exemplo. Diante dessas transformações, especialmente nos anos 1990,


houve uma profusão de estudos sobre masculinidade.
O conceito de gênero permite uma crítica às formas essencialistas
de compreensão da masculinidade e feminilidade, impregnadas no senso
comum. Nestas apreensões, há signiicados ixos e imutáveis, posto que
masculinidade e feminilidade seriam essências predeterminadas pela
natureza. Embora questionado academicamente, o saber essencialista pro-
duz consequências efetivas na vida social e, por isso, ele deve ser compre-
endido. Gênero pode ser pensado como uma construção cultural e relacio-
nal, neste sentido o masculino e o feminino são construções históricas e
constituídas em relação, concebidas comumente como um binário interde-
pendente. O feminino se constrói em oposição ao masculino e vice-versa.
O binário masculino/feminino não é horizontal, mas profundamente
assimétrico. As assimetrias ainda persistem quando se nota que as opor-
tunidades no mercado de trabalho são maiores para homens do que para
mulheres. As mulheres ocupam menos funções de cheia ou gerência nas
empresas e, comumente, persistem sendo responsáveis pelas atividades
domésticas. O masculino ainda é o polo mais valorizado na sociedade e os
privilégios aos homens são notórios em todas as instâncias da sociedade.
Os estudos feministas e o conceito de gênero permitiram a desna-
turalização do gênero, o que permitiu uma relexão aprofundada sobre
a subalternização das mulheres na sociedade. É interessante notar que o
desenvolvimento de tais estudos foram possibilitados pela emergência do
movimento feminista das décadas de 1960 e 1970, que passou a ocupar a
esfera pública questionando os privilégios masculinos. Trata-se de déca-
das contestadoras, nas quais muitos movimentos surgiram para questio-
nar formas de opressão antes não problematizadas. Como airma Meryl
Adelman sobre a emergência do movimento homossexual:
[...] os anos 1960, com seu clima de contestação da ordem normativa
de uma sociedade vista então como repressora e “doente”, criaram
um novo espaço onde diversos grupos antes silenciados e margina-
lizados conseguiram assumir e reivindicar sua “diferença”, isto é,
iniciar um processo nada fácil de conquista de direitos. Foi assim que
um dos grupos mais brutalmente perseguidos e estigmatizados da
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sociedade norte-americana saiu dos guetos ou enclaves urbanos onde


mantinham suas comunidades quase clandestinas e desaiou aberta-
mente a noção de heterossexualidade como normalidade sustentada e
defendida pela ordem existente (ADELMAN, 2009, p. 62).
168
Educação e Diversidade Cultural – Capítulo 5

No mesmo momento de expansão de estudos de gênero, há uma


profusão de estudos de sexualidade em sua vinculação com a cultura e
sociedade. A partir de então, fomenta-se uma visão da sexualidade não
restrita à esfera do biológico, mas relacionada ao contexto social. Nas pa-
lavras de Richard Miskolci:
a sexualidade não se refere apenas a atos sexuais, é um termo que
abrange algo muito mais amplo: a forma como as pessoas se rela-
cionam, desejam, amam, expressam afeto e organizam boa parte
de suas vidas. Compreendida dessa forma, a sexualidade se revela
uma questão que vai muito além de decisões privadas, pois ela é
criada e moldada pelo convívio no espaço público em processos de
socialização diversos (...) [que reiteram] o que é socialmente pres-
crito como a forma correta de desejar, o que é reconhecido como
amor e, por conseguinte, o que é rejeitado como inaceitável e abjeto
(MISKOLCI, 2010, p. 91).

Em outras palavras, pela sexualidade perpassam noções de como


o sexo é, deve ser e pode ser, ou seja, existem padrões culturais relativos
à sexualidade, normas prescritivas deinidas socialmente e que, portan-
to, variam e muito de uma sociedade a outra. Com base nessas normas,
criam-se fronteiras entre o que é considerado conduta desejável ou indese-
jável de expressão da afetividade e da sexualidade.
A sexualidade até a primeira metade do século XX, em nossas so-
ciedades, era muito vinculada ao casamento e o aspecto reprodutivo, em
especial, no que tange às mulheres. Havia uma separação entre mulheres
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“respeitáveis” e “perdidas”: as respeitáveis deveriam se relacionar sexual-


mente após o casamento ou, em último caso, casarem-se logo após a relação
sexual; às perdidas, restavam o estigma e a vida à margem da sociedade.
Enquanto isso, os homens tinham acesso aos prostíbulos e eram estimula-
dos a desenvolver sua sexualidade previamente ao casamento e, muitas ve-
zes, com outras parceiras. Criava-se uma dupla moral sexual que acentuava
a subordinação das mulheres no âmbito privado e o privilégio dos homens.
De um lado, a reputação das garotas estava em sua capacidade de conter os
avanços sexuais masculinos, enquanto a dos garotos estava em suas con-
quistas, algo que, de alguma forma, persiste até hoje culturalmente.
Muitos estudos de sexualidade apontam a persistência de uma vi-
são hetero-reprodutiva e marcada pela dominação masculina nas normas
sexuais de nossas sociedades. O que isso signiica? Em primeiro lugar,
169
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

uma concepção heterossexista de sexualidade que naturaliza a heteros-


sexualidade como a única expressão afetiva e sexual valorizada. A he-
terossexualidade era (e ainda é) vista como natural, na medida em que a
sexualidade também era vinculada à função reprodutiva. Trata-se de uma
visão essencialista de sexualidade que, ao invés de estudar as normas que
regem a sexualidade em nossa sociedade, reitera-as, bem como reproduz
preconceitos e induz formas de discriminação.
Estudos sociológicos, antropológicos e históricos passam, a partir
dos anos 1960, a se debruçar sobre como as relações entre pessoas do
mesmo sexo passaram a ser historicamente vistas como antinaturais,
como desvios ou como patologia. Descobre-se que o termo “homosse-
xualidade” surgiu no inal do século XIX, difundido pela psiquiatria e
medicina enquanto desvio psiquiátrico. Nos anos 1970, constitui-se todo
um novo referencial de estudos sobre a sexualidade em um viés socioló-
gico e histórico, ou seja, compreende- se que a sexualidade, a forma como
nossos desejos se expressam, o que esperamos de uma relação, como nos
compreendemos a partir das nossas práticas sexuais, tudo isso e muito
mais depende do contexto histórico e social.
Michel Foucault tornou-se um teórico fundamental sobre o tema,
em sua obra História da sexualidade vol. I, centrando seus estudos em
como as sociedades disciplinam e normalizam a sexualidade, questio-
nando como existem estratégias que vão desde o Estado até as escolas e
famílias que controlam as formas de expressão da sexualidade, fornecem
modelos, inibem certas expressões e estimulam outras consideradas ade-
quadas e naturais. Outros teóricos posteriores passaram a reletir sobre
como certas categorias (como homossexual e heterossexual) emergem
socialmente e como elas moldam a forma de compreensão e expressão
em nossas sociedades contemporâneas. Tal como o gênero, a sexualidade
passou a ser concebida como uma construção cultural e relacional, consi-
derando a homossexualidade como constituída em oposição à heterosse-
xualidade: enquanto a última é considerada natural, saudável e exemplar,
a primeira é vista como desvio, patologia e antiexemplo.
Forma-se o que alguns teóricos denominaram de heteronormatividade:
A heteronormatividade expressa as expectativas, as demandas e as
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obrigações sociais que derivam do pressuposto da heterossexualida-


de como natural e, portanto, fundamento da sociedade. Muito mais
do que o aperçu de que as relações com pessoas do sexo oposto
são compulsórias, a heteronormatividade sublinha um conjunto de
170
Educação e Diversidade Cultural – Capítulo 5

prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e con-


trole até mesmo daqueles que se relacionam com pessoas do mesmo
sexo” (MISKOLCI, 2009, p. 8).

Entre as teóricas contemporâneas mais inluentes sobre sexualidade,


destaca-se Judith Butler (2003). Ela trabalha tanto na esteira dos estudos fe-
ministas, ou estudos de gênero, quanto na esteira dos estudos de sexualida-
de de Foucault. Uma das contribuições centrais de sua obra é a percepção
de que a identidade de gênero moderna está imbricada com noções de sexu-
alidade. Butler mostra como nossa percepção de gênero está ligada a uma
coerência socialmente imposta entre sexo/gênero/desejo/práticas sexuais,
ou seja, a construção da masculinidade passa pela pressuposição de que um
garoto deve ser masculino e desejar e se relacionar afetiva e sexualmente
com garotas. A mesma coerência é exigida das garotas a quem se espera que
encontrem namorados e com eles se relacionem afetiva e sexualmente.
O mundo social é muito mais variado, podendo ser possível encontrar
meninos femininos, meninas masculinas, como também transgêneros e tran-
sexuais e quem foge desse continuum cai na esfera da não aceitação social ou
da abjeção. A abjeção refere-se às manifestações de repugnância e temor em
relação àqueles que não se enquadram nos rígidos padrões heteronormativos.
Nessas ocasiões, são alvo de desprezo ou mesmo vítimas de violência.

5.1.2 Educação, gênero e sexualidade


O que currículo escolar tem a ver com gênero e sexualidade? Consi-
derando as escolas como imersas em determinadas sociedades com valores
culturais especíicos, não é difícil atestar como determinadas representações
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de gênero são veiculadas no espaço escolar. Muitas pesquisas se debruçam


sobre os materiais didáticos que enfatizam sempre o papel de homens como
personagens históricos importantes, por exemplo grandes cientistas ou
homens públicos, obscurecendo a importância de personagens femininas.
Costuma-se representar as mulheres em imagens relacionadas ao espaço
doméstico ou a proissões de cuidados como enfermagem e magistério, tra-
dicionalmente relacionadas à feminilidade, enquanto as iguras masculinas
são veiculadas a proissões e posições sociais mais prestigiadas. Demarca-
se assim, em imagens e nos textos, lugares sociais à feminilidade e masculi-
nidade, sem questionar o quanto a reprodução destes signiicados geram ex-
pectativas em relação aos alunos, inluenciando-os em suas escolhas futuras
e na forma de se relacionar com o outro.
171
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Além dos livros didáticos, professores e diretores – e dos próprios


colegas – normalmente reiteram lugares sociais aos meninos e meninas,
dividindo atividades em masculinas e em femininas, durante o recreio ou
aula de educação física, por exemplo. Dos meninos, espera-se que sejam
bons jogadores de futebol; Das meninas que se engajem em atividades mais
delicadas ou relacionadas à afazeres domésticos, como brincar com bone-
cas ou de “casinha”. Repreensões e elogios são comuns às crianças que,
respectivamente, esquivam-se ou adequam-se às representações de gênero.
É interessante notar que, no século XIX, as escolas eram unis-
sexuais, direcionadas exclusivamente para meninos ou para meninas,
notadamente de elite. Nos internatos do inal do século, a educação aos
meninos era voltada para formar homens públicos ou proissionais libe-
rais, enquanto as meninas eram educadas para afazeres domésticos ou, no
máximo, para o magistério. A divisão entre espaço público (masculino) e
espaço privado e dos cuidados (feminino) era reproduzida na escola, insti-
tuição socializadora que deinia os horizontes de expectativas e os limites
do socialmente possível e valorizado.
Cabe-nos reletir sobre a atualidade desses parâmetros de gênero na
educação, muitas vezes reforçando as desigualdades de gênero:
marcar a diferença entre o comportamento de meninas e meninos é
também uma forma de alimentar modelos com os quais elas e eles
“devem” se identiicar para serem deinidos com o “mais femini-
nas” ou “mais masculinos”. Não é raro encontrar nos conteúdos
didáticos, mesmo de forma subliminar, formas de hierarquizar os
sujeitos a partir do sexo, valorizando mais as atividades considera-
das masculinas do que as femininas (BELELI, 2009, p. 76).

Embora haja toda uma pressão instituída para a adequação dos me-
ninos e meninas às normas de gênero, nem todos as seguem e poucos se-
guem-nas à risca, sem apresentar ambiguidades. Quem convive na escola
sabe da existência corrente de meninos que são mais femininos e meninas
consideradas mais masculinas e, muitas vezes, professores, inspetores e
diretores não sabem como agir em relação às diferenças, na medida em
que o currículo escolar aponta para padrões de gênero e sexualidade. Se-
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gundo a antropóloga Iara Beleli, o deslocamento dos padrões de gênero


“instaura o desconforto, na medida em que surpreende os olhares para um
corpo que não segue as regras de vestimenta e trejeitos traçados pelo per-
tencimento a um determinado sexo, quebrando o estereótipo” (BELELI,
172
Educação e Diversidade Cultural – Capítulo 5

2009, p. 87). Como lidar com as demandas normativas do enquadramento


de gênero no espaço escolar? Em uma perspectiva inclusiva e não norma-
tiva, ressalta Beleli:
Ao invés de cercear comportamentos percebidos como “inadequa-
dos”, ou silenciar ante os comentários jocosos, seria muito mais
interessante se esses comportamentos fossem abertamente discu-
tidos. “Situações de ambiguidade não podem ser camuladas; ao
contrário, devem ser exploradas no sentido de incentivar os alunos e
nós mesmos a olhar para as várias possibilidades de viver o sexo, o
gênero, a sexualidade” (2009, p. 60).

Em relação à sexualidade, há também a prevalência de um padrão


heterossexual, muitas vezes invisibilizado quando se considera que o currí-
culo escolar é supostamente neutro. Nas últimas décadas, a discussão sobre
sexualidade adentrou o ambiente escolar, em grande parte devido à temática
DST/AIDS e gravidez na adolescência, com um enfoque preventivo. No
entanto, pouco se fez até os últimos anos para debater de forma mais apro-
fundada os aspectos socioculturais da sexualidade e dar normas que preva-
leçam no cotidiano escolar. Assim, convive com a suposta neutralidade do
currículo escolar a falta de engajamento pedagógico que lide com a questão
da sexualidade. Segundo Richard Miskolci, tal postura traz consequências:
ignorar a existência do interesse por pessoas do mesmo sexo é uma
das formas que a escola utiliza para construir identidades de gênero
tradicionais, mas vale sublinhar que essa ignorância é intencional e
ativa. Os educadores e educadoras partem de uma desvalorização
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de formas alternativas de compreensão dos gêneros e de vivência da


afetividade para que as identidades esperadas sejam construídas em
cada menino ou menina (MISKOLCI, 2010, p. 100-1).

Comumente, as relações entre gênero e sexualidade encontram-se im-


bricadas, quando se percebe que meninos femininos e meninas masculinas
estão mais sob a mira da normalização escolar e frequentemente são vítimas
de bullying ou de assédio escolar. Nas relações entre os meninos, há um
vínculo entre masculinidade, virilidade e violência. Observa-se que dos me-
ninos exige-se coragem ilimitada, considerando-se vergonhoso ter medo ou
apresentar fraquezas. Afastar-se do feminino é visto como um imperativo
social, na medida em que aqueles que não se enquadram ou que se aproxi-
mam do que é considerado feminino são passíveis de xingamentos:
173
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Como proissionais da educação costumam testemunhar, são me-


ninos femininos e meninas masculinas, pessoas andróginas ou que
adotam um gênero distinto do esperado socialmente, que costumam
sofrer injúrias e outras formas de violência no ambiente escolar.
Será mero acaso que homens e mulheres que constroem um peril
de gênero esperado e escondem seu desejo por pessoas do mesmo
sexo sofram menos perseguição? A sociedade incentiva essa forma
“comportada”, no fundo, reprimida e conformista, de lidar com o
desejo, inclusive por meio da forma como persegue e maltrata aque-
les que são cotidianamente humilhados sendo xingados de afemina-
dos, bichas, viados [...] (MISKOLCI, 2012, p. 32).

Calcados na discussão que izemos podemos compreender as rela-


ções de gênero e sexualidade como um aprendizado sociocultural, ou seja,
não são categorias que denotam algo que é inato, mas que é aprendido,
incorporado em determinado contexto e, para isso, as instituições sociali-
zadoras, por exemplo a escola, têm especial importância.
A questão que se coloca é: até que
ponto não ixamos possibilidades para
Conexão:
meninos e meninas na escola? Que
Assista ao ilme Billy Elliot (2000)
espaços podem frequentar? Que de Stephen Daldry, que enfoca Billy,
atividades de lazer ou esporte adolescente, ilho de uma família tradicional
de trabalhadores mineiros e boxeadores que
podem praticar? Que proissões se apaixona pelo balé. Trata-se de uma narrativa
devem seguir? Muitas vezes, fa- fílmica tocante, que se passa na Inglaterra dos anos
1980, perpassando temas políticos abrangentes do
zemos de forma não impositiva, período, além do foco na questão da relação pai
mas por meio de modelos que e ilho e do drama enfrentado pelo adolescente
não são nunca problematizados. que decide não seguir os padrões de masculi-
nidade esperados para ele.
Ora, por que mulher também não
pode ser engenheira ou ganhar o
prêmio Nobel em Física? Por que um
menino não pode ser um bom bailarino?
Em relação à sexualidade: quando ensinamos ou nos referimos a prá-
ticas afetivas e sexuais tomamos como pressuposto a heterossexualidade?
Será que todos os alunos vão ter práticas heterossexuais? Quando citamos
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exemplos de casais, sempre nos referimos a casais hetero e nunca fazemos


menção à existência de casais de pessoas do mesmo sexo? E as imagens
que são usadas nos livros didáticos trazem apenas casais e famílias com
base heterossexual ou trabalham com outros tipos de coniguração familiar
174
Educação e Diversidade Cultural – Capítulo 5

e conjugal, em especial pessoas que se relacionam com pessoas do mesmo


sexo? Como estudantes constroem uma ideia sobre essas pessoas que se re-
lacionam afetiva e sexualmente com pessoas do mesmo sexo?
Diante destas questões, são muitas as iniciativas que vêm sendo
criadas para que lidar com a diversidade de gênero e sexualidade na esco-
la, combatendo preconceitos e discriminações, evitando assim formas de
bullying associadas a gênero e sexualidade e buscando veicular imagens
mais igualitárias entre homens e mulheres. No Brasil, o programa Gêne-
ro e Diversidade na Escola vem sendo produzido por muitas instituições
federais na formação de professores da rede pública de ensino de todo o
Brasil a partir dos tópicos: diversidade, gênero, sexualidade e relações
étnico-raciais. Busca-se com este programa criar uma escola mais afeita à
diversidade, socializando novos sujeitos para a criação de uma sociedade
mais democrática e mais justa.

Atividades
01. Redija um texto sobre os questionamentos do currículo escolar basea-
do na chamada “cultura universal”.

02. Deina gênero e sexualidade considerando os aspectos socioculturais.

03. Elabore um texto crítico de um parágrafo em relação a como as esco-


las tradicionalmente lidam com as desigualdades e diferenças de gênero e
sexualidade.
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04. Comente 3 aspectos das novas perspectivas calcadas na valorização


da diversidade cultural.

Reflexão
Como vimos, a escola é uma instituição socializadora que se baseia
em valores e signiicados culturais. Por muito tempo, tais valores e signi-
icados eram invisibilizados pelo pressuposto de que a escola operava de
forma “neutra”, apenas utilizando conhecimentos tidos como universais.
Hoje sabemos que o que se chama de universal, na verdade, corresponde a
valores dominantes que obscurecem outras formas de viver considerando
a cultura, o gênero e a sexualidade. Para tanto, há outras pedagogias sendo
pensadas a partir destas relexões.
175
Aspectos Antropológicos e Sociológicos da Educação

Leituras Recomendadas
Sobre novas perspectivas de educação e sexualidade, lei MISKOL-
CI, Richard. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo
Horizonte: Autêntica/UFOP, 2012. Sobre a experiência do curso Gênero e
Diversidade na Escola, oferecido pela Universidade Federal de São Car-
los, leia: VENCATO, Anna Paula . A diferença dos outros: discursos so-
bre diferenças no curso Gênero e Diversidade na Escola da UFSCar. Con-
temporânea – Revista de Sociologia da UFSCar, v. 4, p. 211-229, 2014.

Referências Bibliográficas
BELELI, Iara. Gênero. In: Marcas da diferença no ensino escolar.
São Carlos: EdUFSCar, 2009.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identi-


dade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 19.


ed. Rio de Janeiro: Graal, 2009.

MISKOLCI, Richard. Abjeção e desejo: ainidades e tensões entre a


teoria queer e a obra de Michel Foucault. In: RAGO, L. M.; VEIGA
NETO, A. (Orgs.). Foucault: Para uma vida não fascista. Belo Hori-
zonte: Autêntica, 2009. p. 325-338.

______. Sexualidade e orientação sexual. In: _____. (Org.). Marcas da


diferença no ensino escolar. São Carlos: Ed. UFSCar, 2010. p. 75-111.

______. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizon-


te: Autêntica/UFOP, 2012.

PEREIRA, M. E. et al. (orgs.) Gênero e diversidade na escola: for-


mação de professores em gênero, sexualidade, orientação sexual e rela-
ções étnico-raciais. Brasília, Rio de Janeiro: SPM, 2009.
Proibida a reprodução – © UniSEB

SCOTT, Joan. Prefácio a Gender and politics of History. Cadernos


pagu (3), Núcleo de Estudos de Gênero. Campinas, 1994.

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