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01/12/2018 Primeiras impressões do visitante extraterrestre sobre o bicho humano!

Do filósofo espanhol Fernando Savater em “As Perguntas …

A CASA DE VIDRO

Plugando consciências no amplificador! Um projeto de


Eduardo Carli de Moraes.

08/05/2015 por WWW.ACASADEVIDRO.COM

Primeiras impressões do visitante extraterrestre


sobre o bicho humano! Do filósofo espanhol
Fernando Savater em “As Perguntas da Vida” (Ed.
Martin Fontes, 2011)

(h ps://acasadevidro.files.wordpress.com/2015/05/calvin.jpg)
– Às vezes penso que o sinal mais seguro de que vida inteligente existe em algum outro lugar do Universo é que
ninguém tentou nos contatar. (Calvin & Haroldo)

AS PERGUNTAS DA VIDA
por Fernando Savater

Suponhamos que um extraterrestre venha a nosso mundo e comece a nos estudar, a você e a mim.
Tem à sua frente um ser vivo, talvez até o considere inteligente (sejamos otimistas!), mas uma das
primeiras perguntas que se fará é: onde começa e onde acaba esse bicho?

A pergunta não é absurda… não é fácil determinar, por exemplo, se o casulo da crisálida também
deve ser considerado crisálida como o resto do animal que o segregou. Do mesmo modo, o
extraterrestre pode achar que eu também sou minha casa e que acabo na porta da rua, ou que pelo
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01/12/2018 Primeiras impressões do visitante extraterrestre sobre o bicho humano! Do filósofo espanhol Fernando Savater em “As Perguntas …

menos minha poltrona favorita e meu avental fazem parte de mim, ou que o cigarro que estou
fumando é um de meus apêndices e a fumaça constitui minha respiração malemolente. Você, que tem
carro e passa o dia dentro dele, certamente seria classificado pelo marciano entre os terrícolas de
quatro rodas.

Mas, se o forasteiro interplanetário chegar a se comunicar conosco, explicaremos a ele que está
enganado, que nossas fronteiras são estabelecidas por nosso tecido celular e que – por mais que
amemos nossas posses e nosso alojamento urbano – nosso eu vivente só chega até onde abrange a
nossa pele. Ou seja, nosso corpo. Ao que o marciano poderia nos responder: “Tudo bem, e isso, como
vocês chegaram a saber?”

Responder-lhe adequadamente não é tão óbvio como parece. Não poderíamos explicar-lhe que
quando falo em corpo estou me referindo àquilo que sempre vai comigo, diferentemente de outras
possessões, pois meu cabelo, minhas unhas, meus dentes, minha saliva, minha urina, meu apêndice
etc. são partes do meu corpo, muito minhas, mas apenas transitoriamente. Cedo ou tarde deixam de
ser eu sem que eu deixe de ser eu, tal como a serpente se desfaz na primavera da roupa velha que é
sua pele usada.

Nem sequer poderíamos afirmar para o curioso interplanetário que o corpo é tudo aquilo de que não
podemos prescindir para continuar vivos, uma vez que às vezes é preciso trocar meu coração por
outro para eu não morrer, e certos doentes dependem dos aparelhos de diálise que substituem seus
rins, para não falar no ar ou no alimento, que me são corporalmente imprescindíveis quanto os
pulmões ou o estômago e no entanto não fazem parte do meu eu.

Se o extraterrestre estivesse estudando uma mulher grávida, o problema se complicaria mais ainda,
pois não é facil resolver se o feto é simplesmente uma parte de seu corpo ou algo distinto dele.
Quanta complicação! O perspicaz Lichtenberg, no final do século XVIII, disse em um de seus
aforismos que “meu corpo é a parte do mundo que meus pensamentos podem mudar”. Uma ideia
engenhosa, porque para realizar a maioria das modificações da realidade – mudar uma poltrona de
lugar, fazer um carro arrancar, trocar de roupa – preciso agir através de meu corpo, ao passo que me
basta desejar ou pensar para levantar o braço ou abrir a boca.

E, no entanto, não parece ser meu pensamento que me faz respirar ou digerir, tampouco minha
vontade pode me devolver o cabelo e os dentes erdidos… para não falar em mudar a cor de minha
pele ou meu sexo! As metamorfoses de Michael Jackson ou dos transexuais necessitam de
intervenções externas para serem realizadas. Francamente, satisfazer à curiosidade do extraterrestre
pode nos colocar numa situação comprometedora…

No entanto, minha convicção profunda é a de que eu começo e acabo em meu corpo, sejam quais
forem os embrulhos teóricos que essa certeza me traga. Talvez, vendo meu nervosismo, o amável
marciano aceite esse ponto para não me irritar mais; então, ele poderia me fazer a pergunta do
milhão: “De acordo, você começa e acaba em seu corpo, mas… devo assumir que você tem um corpo
ou que você é um corpo?” Uma tal interrogação poderia ser causa justificada para uma guerra
interplanetária!

Provavelmente Descartes, que supunha que a alma fosse um espírito e o corpo uma espécie de
máquina (segundo ele, os animais – que não têm alma – são meras máquinas… que nem sequer
podem experimentar dor ou prazer!), responderia que eu – o espírito – tenho um corpo e me arranjo
com ele o melhor que posso. Segundo uma certa visão popular, estamos dentro do nosso corpo à
maneira de fantasmas encerrados em uma espécie de robôs que devemos dirigir e mover. Até há
místicos que acham que o corpo é quase tão ruim quanto um cárcere e que sem ele nós nos
moveríamos com muito maior ligeireza.

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01/12/2018 Primeiras impressões do visitante extraterrestre sobre o bicho humano! Do filósofo espanhol Fernando Savater em “As Perguntas …

Sócrates talvez tenha se referido a isso em suas últimas palavras, conforme nos são citadas por Platão,
em Fédon, quando ao notar que o efeito da cicuta estava chegando a seu coração, disse a seus
discípulos: “Devemos um galo a Esculápio!”

Havia o costume de oferecer um animal como sacrifício de gratidão a Esculápio, deus da medicina,
quando alguém se curava de uma doença.

Talvez Sócrates achasse que o veneno assassino estava prestes a livrá-lo da doença da alma que
consiste em suportar um corpo. A verdade é que, com um sujeito tão irônico, nunca se sabe…”

(h ps://acasadevidro.files.wordpress.com/2015/05/fernando-savater.jpg)
Fernando Savater

FERNANDO SAVATER
No livro As Perguntas da Vida
Ed. Martins Fontes, 2001, pgs. 56 a 58
Disponível na biblioteca do IFG/Goiânia

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Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG). Documentarista independente.

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