Você está na página 1de 18

Hermenêutica Bíblica

Material Teórico
Hermenêutica Cristã: Condições de Possibilidade

Responsável pelo Conteúdo:


Prof. Dr. Paulo Roberto Pedrozo Rocha

Revisão Textual:
Prof.ª Dr.ª Luciene Oliveira da Costa Granadeiro
Hermenêutica Cristã:
Condições de Possibilidade

• Hermenêutica Cristã: Condições de Possibilidade

OBJETIVO DE APRENDIZADO
• Discutir as condições de possibilidade para uma hermenêutica cristã.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e de se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como seu “momento do estudo”;

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo;

No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos
e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você tam-
bém encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão sua
interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados;

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus-
são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o
contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e de
aprendizagem.
UNIDADE Hermenêutica Cristã: Condições de Possibilidade

Hermenêutica Cristã:
Condições de Possibilidade
Comecemos pelas perguntas que ficaram como desafio na unidade anterior, elas
basicamente formalizam a questão da característica da hermenêutica cristã em con-
traste com a hermenêutica de textos sagrados de outras religiões. As aproximações
ou identificações são corriqueiras, afinal, são milênios de teologia cristã e assim
comparamos o cristianismo sempre com outras religiões. Porém, devemos ter em
mente que um paralelo tão estreito entre as teologias cristã e budista, por exemplo,
que nos leve a transpor um a um os elementos de interpretação de textos sagrados
de uma para a outra pode ser uma armadilha e demonstrar que não se sabe muito
bem quais seriam os aspectos cristãos que caracterizariam o trabalho hermenêutico
de um estudioso da Bíblia. O que pudemos aprender com o pouco que vimos do
estudo do Sutra Budista?

Considerando que fundamentalmente uma teologia se faz para uma religião ou


a partir de uma religião (com a intenção de ser um discurso racional sobre Deus
na perspectiva daquela religião), então essa racionalização emergirá do entendi-
mento da transmissão oral dos ensinamentos, profecias ou determinações de seus
fundadores, ou do entendimento das escrituras sagradas para aquela mesma reli-
gião. Dessa maneira, pode não parecer, mas a pergunta proposta é uma pergunta
hermenêutica e a resposta pode ser encaminhada pelo estudo hermenêutico dos
Ensinamentos budistas, afinal. Se é como Scheleiermacher diz, um texto sagrado
é um texto especial e precisa de uma hermenêutica especial. Assim, temos uma
hermenêutica cristã a partir de textos cristãos e uma hermenêutica budista a partir
de textos budistas.

Quais seriam, então, os parâmetros de interpretação possíveis para os Ensinamentos de Buda?


Explor

Quais seriam, em termos simples, as chaves de leitura deles? Não precisa ler todos os Sutras ou
saber muito sobre o Budismo, façamos isso com o que já foi lido em unidades anteriores.

Comecemos pelos procedimentos metodológicos. Como já vimos, ao estudar


um texto hermeneuticamente, perguntamos basicamente por três coisas: quem es-
creve? O que escreve? E para quem escreve?

A pergunta pelo autor remete a uma busca pelo conhecimento daquele que es-
creve o texto, pela compreensão dele e de suas possíveis motivações ao escrever o
texto. Afinal, por que esse autor escreve sobre isso agora e não sobre aquilo outro?
Essa pergunta delimita o tempo e o espaço histórico do autor e da escrita. Qual a
natureza desse autor? É a pergunta pelo autor mesmo, por sua intenção, por sua
motivação e por sua natureza, por seu espírito.

A natureza do autor é importante já em Aristóteles quando ele fala, na Retórica,


sobre o caráter do orador e as paixões do ouvinte:

8
[...] é necessário não só atentar para o discurso, a fim de que ele seja de-
monstrativo e digno de fé, mas também pôr-se a si próprio e ao juiz em
certas posições; de fato, importa muito para a persuasão, sobretudo nas
deliberações, e depois nos processos, que o orador se mostre sob certa
aparência e faça supor que se acha em determinadas disposições a res-
peito dos ouvintes e, além disso, que estes se encontrem em semelhantes
disposições a seu respeito.

E sobre ela também nos chamará a atenção Petrarca em uma das suas cartas:
O discurso, na verdade, é o verdadeiro indicador de nossa alma, enquan-
to, por sua vez, a alma é a força moderadora do discurso. Um depende
do outro: a primeira se esconde no peito; o outro sai a público. Um traz
ornamento, à medida que sai da própria vontade; a outra, à medida que
se dá à mostra, revela as qualidades interiores. Obedece-se à decisão de
um, e se crê no testemunho da outra. Portanto, ambos devem ser provi-
dos, tanto a alma quanto o discurso, de modo que a alma seja justamente
severa em relação ao discurso, e o discurso saiba mostrar toda a grandeza
da alma, ainda que seja claro que onde há fineza de espírito não pode ha-
ver estupidez da expressão, assim como, ao contrário, um discurso jamais
poderá ser digno se, à alma, falta a sua própria majestade.

Apesar dos 1.000 anos que separam Aristóteles e Petrarca, tanto a exortação
do filósofo como a exortação do poeta e retórico renascentista são as mesmas: que
o discurso mostre a grandeza da alma. Em poucas palavras, o que ambos pedem é
que o discurso, assim como todo texto de autoria, seja vivo.

Na perspectiva cristã, a vivacidade do texto está em sua própria sacralidade.


As Escrituras Sagradas são a própria palavra de Deus, são vivas por sua própria
natureza, seu autor é conhecido através de um ato de fé e se espera, de fato, que o
texto seja um meio de contato eficaz entre o homem e Deus apenas intermediado
por Jesus Cristo quando estamos no campo neotestamentário.

Quando falamos de hermenêutica budista, o autor é alguém que está espaço-


-temporalmente muito longe de nós e tem uma forte e longa tradição de comentá-
rios e modificações. Isso exige um trabalho exegético inicial.

Entretanto, todos os textos refletem o pensamento da pessoa que os escreveu; pre-


cisamos ter plena ciência disso. Espiritualmente falando, significa que as vibrações espi-
rituais do escritor são transmitidas, através das letras, para o espírito do leitor. Como os
seus Ensinamentos representam a própria Vontade Divina, o espírito de quem os lê se
purifica. A leitura pode exercer influência positiva ou negativa sobre a alma do leitor. É
grande, portanto, a influência exercida pela personalidade do escritor.

O que lemos nos dois parágrafos da citação são os mesmos elementos indicados
por Aristóteles, Petrarca, Agostinho de Hipona e Schleiermacher: o texto transmite
o espírito do autor e esse espírito anima o texto. Então, a natureza, a índole e até
mesmo a intenção do autor ao escrever o texto precisa ser considerada se quiser-
mos entender o texto na letra e para além dela.

9
9
UNIDADE Hermenêutica Cristã: Condições de Possibilidade

Assim, ler tudo o que os discípulos de Buda escreveram é um procedimento


fundamental e, claro, ler o que escreveram sobre ele também, pois cada expressão
precisa ser analisada e compreendida.

Em que sentido aquelas palavras foram usadas por ele, com a intenção de expressar o que e
Explor

em quais condições?
A partir dos exercícios anteriores, você seria capaz de responder a essa questão?
E para o cristianismo? Antes de seguir com a leitura da unidade, faça uma pesquisa sobre a
formação do cânone cristão e registre sua descoberta pontualmente no espaço abaixo.

Há uma tradição (talvez mais recente que para o Budismo) de escritos a partir do
judaísmo, o que nos traz a questão do cânone bíblico. Cânone bíblico ou cânone das es-
crituras é a lista de textos (ou “livros”) religiosos que uma determinada comunidade acei-
ta como inspirados por Deus e autorizativos. A palavra “cânone” vem do termo grego
κανων (“régua” ou “vara de medir”). A maioria dos cânones tratados nesta unidade são
considerados como “fechados” (ou seja, livros não podem mais ser acrescentados ou
removidos), o que reflete a crença de que a revelação divina está encerrada e, portanto,
uma pessoa ou grupo de pessoas foi capaz de juntar os textos inspirados aprovados
num cânone completo e autorizativo. Por outro lado, um cânone “aberto” é aquele que
permite a adição de novos livros através da revelação contínua.

Esses cânones se desenvolveram através do debate e consenso entre as autorida-


des religiosas de cada uma das respectivas denominações. Os fiéis consideram os
livros canônicos como sendo inspirados por Deus ou como expressando a história
autorizativa da relação entre Deus e seu povo. Alguns livros, como os evangelhos
judaico-cristãos, foram excluídos do cânone completamente, mas muitos livros dis-
putados, considerados não canônicos ou apócrifos por alguns, são considerados
como apócrifos bíblicos, deuterocanônicos ou plenamente canônicos por outros.
Diferenças existem entre a Tanakh judaica e os cânones bíblicos cristãos e entre os
cânones das diferentes denominações cristãs.
Explor

Cânon bíblico, disponível em: http://bit.ly/2KuG1GY

Importante! Importante!

Critérios e processos de canonização diferentes ditam o que as diversas comunidades con-


sideram como Escrituras inspiradas. Em alguns casos, nos quais diferentes graus de inspira-
ção se acumularam, é prudente discutir textos que só foram elevados ao status de canônico
numa única tradição religiosa. Esse tema é ainda mais complexo quando se consideram os
cânones abertos das várias seitas dos Santos dos Últimos Dias – que alguns consideram
como descendentes do cristianismo e, portanto, do judaísmo – e as revelações recebidas
pelos seus diversos líderes ao longo dos anos dentro do próprio movimento.

10
Sobre os Cânones bíblicos cristãos, a Igreja antiga utilizava o Antigo Testamen-
to, especificamente a Septuaginta (LXX) entre os falantes do grego. Os Apóstolos
não deixaram um conjunto definido de novas Escrituras e o Novo Testamento se
desenvolveu ao longo do tempo. Textos atribuídos aos Apóstolos circulavam livre-
mente entre as primeiras comunidades cristãs. As epístolas paulinas já circulavam
de forma conjunta no final do século I. Justino Mártir, no início do século II, men-
ciona as “memórias dos Apóstolos”, que os cristãos chamaram de “evangelhos”, e
que eram consideradas tão autoritativas quanto o Antigo Testamento.
Marcião de Sinope foi o primeiro líder cristão a propor um cânone bíblico. Ele
depois foi condenado por heresia. Marcião de Sinope (c. 140) foi o primeiro líder
cristão histórico a propor e delinear um cânone unicamente cristão (apesar de de-
pois ter sido considerado herético). Ela excluiu todos os livros do Antigo Testamento
e incluiu apenas dez epístolas paulinas e uma versão do Evangelho de Lucas conhe-
cida como “Evangelho do Senhor”. Ao fazê-lo, Marcião estabeleceu uma forma de
analisar textos religiosos que ainda hoje permanece no pensamento cristão.
Depois de Marcião, o cristianismo começou a dividir seus textos entre os que se
alinhavam adequadamente com o “cânone” (no sentido da “régua”) do pensamento
teológico aceito e os que deveriam ser considerados heréticos. Essa visão teve um
papel fundamental na finalização da estrutura da coleção de livros que viria a ser
conhecida como “Bíblia”. E o ímpeto inicial para essa empreitada foi dado pela
necessidade de propor uma alternativa ao cânone de Marcião.
Vindo dos Pais da Igreja, há um cânone com quatro evangelhos canônicos foi afir-
mado por Ireneu de Lyon (m. 202). No início do século III, teólogos como Orígenes
podem ter utilizado — ou pelo menos ter conhecido — os mesmos 27 livros pre-
sentes nas modernas edições do Novo Testamento, embora ainda houvesse disputas
sobre a canonicidade de algumas obras (vide desenvolvimento do cânone do Novo
Testamento). Da mesma forma, o Fragmento Muratori revela que, já em 200, existia
um conjunto de textos cristãos bem similar ao moderno Novo Testamento, incluindo
os quatro evangelhos. Dessa forma, apesar de certamente terem havido numerosos
debates sobre o cânone do Novo Testamento no período do cristianismo primitivo, as
principais obras já eram consideradas aceitas em meados do século III.
Da Igreja Oriental, os Pais alexandrinos também contribuem com o desenvol-
vimento de um cânon bíblico, como o fez Orígenes (c. 184 – c. 253), um dos pri-
meiros estudiosos cristãos envolvidos na codificação do cânone bíblico, teve uma
boa educação tanto na teologia cristã quanto na filosofia pagã, mas acabou sendo
postumamente condenado no Segundo Concílio de Constantinopla (553) por cau-
sa de algumas obras que foram consideradas heréticas. O seu cânone incluía todos
os livros do moderno cânone do Novo Testamento, com exceção de quatro livros:
Tiago, II Pedro, II João e III João. Ele também incluiu o Pastor de Hermas, uma
obra que depois foi descartada. O estudioso Bruce Metzger descreveu os esforços
de Orígenes assim: “o processo de canonização representada por Orígenes ocorreu
através de seleção, partindo de muitos candidatos para a inclusão para poucos”.
Essa foi uma das primeiras grandes tentativas de compilação de certos livros e
epístolas como parte de um cânone autorizativo e inspirado para a Igreja antiga,

11
11
UNIDADE Hermenêutica Cristã: Condições de Possibilidade

embora não seja claro se esta era a intenção da lista de Orígenes. Em sua Carta
Festiva de 367, o patriarca Atanásio de Alexandria forneceu uma lista idêntica para
os livros do Novo Testamento e usou o termo “canonizados” (“kanonizomena”)
para se referir a eles. Seu cânone para o Antigo Testamento incluía os livros pro-
tocanônicos da Bíblia Hebraica, acrescentando a Epístola de Jeremias e o Livro de
Baruque e excluindo o Livro de Ester.
São partes dos Cânones orientais, Agostinho de Hipona (que já estudamos em
outra unidade) e foi o responsável pelos concílios no norte da África nos séculos IV
e V que afirmaram o cânone bíblico que depois seria confirmado pelo Concílio de
Trento, em 1546.
As igrejas orientais sentiram, de modo geral, menos a necessidade de delinear clara-
mente o que seria o cânone do que os ocidentais. Elas eram mais conscientes da grada-
ção da qualidade espiritual entre os livros que aceitavam (como a classificação feita por
Eusébio de Cesareia) e geralmente se dispunham menos a afirmar que os livros que elas
rejeitavam não possuíam nenhuma qualidade espiritual. O Concílio Quinissexto (692),
rejeitado pelo papa Sérgio I, mas aceito pela Igreja Ortodoxa, endossou as seguintes
listas de obras canônicas: os Cânones dos Apóstolos (c. 385), o Sínodo de Laodiceia (c.
363), o Concílio de Cartago (397) e a 39ª Carta Festiva de Atanásio (367).
Porém, as listas das diversas denominações ortodoxas não concordam entre si.
O cânone do Novo Testamento da Igreja Ortodoxa Síria, Igreja Apostólica Armê-
nia, Igreja Ortodoxa Georgiana, Igreja Ortodoxa Copta de Alexandria e da Igreja
Ortodoxa Etíope apresentam diferenças menores, mesmo que cinco destas igrejas
façam parte da Igreja Ortodoxa. O Apocalipse é um dos livros mais disputados,
pois, no oriente, movimentos como o quiliasmo e o montanismo levantaram sus-
peitas sobre ele. Ele só foi traduzido para o georgiano no século X e jamais foi in-
cluído no lecionário oficial da Igreja Ortodoxa, em tempos bizantinos ou modernos.
Porém, seu status canônico não é disputado.
Já na Igreja ocidental, os Pais latinos fizeram o primeiro concílio para aceitar
o moderno cânone católico (o Cânone de Trento) no Sínodo de Hipona (393), no
norte da África. Um breve sumário de seus atos foi lido e aceito pelo I Concílio de
Cartago (397) e pelo II Concílio de Cartago (419). Esses concílios foram realizados
sob a autoridade de Agostinho, que considerava o cânone como já fechado na épo-
ca. O Concílio de Roma (382), do papa Dâmaso I, proclamou um cânone idêntico,
se é que é possível relacionar o Decretum Gelasianum a ele.
Da mesma forma, a encomenda de Dâmaso de uma versão em latim da Bíblia (a
Vulgata), por volta de 383, foi instrumental para a fixação do cânone no ocidente.
Por volta de 405, o papa Inocêncio I enviou uma lista de livros sagrados ao bispo
gaulês Exupério de Toulouse. Os estudiosos cristãos afirmam que, quando bispos
e concílios tratavam do tema, eles não estavam tratando de algo novo e sim “ratifi-
cando o que já havia se tornado o pensamento da Igreja”.
Assim, a partir do século IV, já existia uma unanimidade no ocidente sobre o câno-
ne do Novo Testamento (como é hoje) e, no século V, o oriente, com umas poucas ex-
ceções, passou a aceitar o Apocalipse, harmonizando o reconhecimento do cânone.

12
Posteriormente, há a elaboração do Cânone protestante. Muitos protestantes
modernos citam quatro “Critérios de Canonicidade” para justificar quais livros de-
vem ser incluídos no Antigo e no Novo Testamento.

O fator básico para o reconhecimento da canonicidade era a inspiração divina


e o teste principal para isso era a “Origem Apostólica”. Nesse contexto, o termo
“apostólico” não necessariamente significa autoria ou derivação apostólica e sim
“autoridade apostólica”. Esta, por sua vez, está necessariamente ligada à autoridade
divina através da sucessão apostólica. Contudo, é muitas vezes difícil aplicar esses
critérios a todos os livros do cânone aceito, pois livros considerados como apócrifos
poderiam preencher esses critérios. Por isso, na prática, os protestantes defendem
o cânone da Bíblia hebraica e o cânone católico para o Novo Testamento (27 livros).

Assim, o Cânone de Lutero exemplifica bem essa fase. Martinho Lutero se in-
comodava com quatro livros do Novo Testamento, chamados de “antilegomena”:
Judas, Tiago, Hebreus e o Apocalipse. Por isso ele os posicionou numa posição
secundária em relação aos demais, mas não os excluiu. Ele propôs removê-los
do cânone ecoando a opinião de diversos católicos — como o cardeal Caetano
e Erasmo — e, parcialmente, por causa de ensinamentos que ele percebia como
contrários às doutrinas protestantes como a sola gratia e a sola fide, tese que não é
geralmente aceita por seus seguidores. Ainda hoje esses livros aparecem em último
lugar na Bíblia de Lutero alemã.

Para encerrar esta unidade, faça uma breve pesquisa sobre a formação do cânon
cristão e compare com os itens abaixo. Eles são satisfatórios? Apenas eles bastam
e refletem a história da formação desse cânon? Você usará esta pesquisa para fazer
seus exercícios de fechamento da unidade.

1. O Cânon da Escritura é importante para fazer frente à tentação recorrente


tanto de excluir certas partes das Escrituras quanto à de acrescentar outros
escritos que se apresentam com uma roupagem de revelação divina. Exem-
plos históricos da tendência de cancelar partes da Bíblia são dos agnósticos
e do marcionismo. Os agnósticos rejeitavam os textos que falavam da en-
carnação do Verbo. Marcião rejeitava o AT porque o considerava obra do
“Demiurgo Mau”. Tanto a tendência de querer acrescentar outros escritos
pretensamente inspirados quanto aquela de excluir certas partes da Bíblia
não fazem justiça à novidade de Cristo porque a consideram incompleta
(e por isso é preciso acrescentar outros livros) ou porque estaria “conta-
minada” por doutrinas humanas (e por isso as Escrituras precisariam ser
purificadas desses desvios).
2. A doutrina da unidade do AT e do NT é comum a toda a Tradição patrísti-
ca e medieval. Essa unidade tem o seu centro na Pessoa do Filho de Deus
encarnado e decorre da unidade do desígnio e da revelação de Deus. Por
isso, a palavra “antigo” que damos aos livros da Antiga Aliança não deve
nos levar a pensar que já tenham perdido o seu valor.

13
13
UNIDADE Hermenêutica Cristã: Condições de Possibilidade

3. Etapas da formação dos Evangelhos A origem dos Quatro Evangelhos


(e dos outros escritos do NT) depende da comunidade primitiva. Mais
exatamente, eles são posteriores à existência da Igreja Primitiva. Em sua
forma escrita, a Palavra de Deus é posterior à existência da Igreja dos
Apóstolos: primeiro a Igreja Apostólica recebeu a revelação divina e a
tradição dos Apóstolos e a testemunharam pela palavra (pregação), pela
eucaristia (liturgia) e pela vida (martírio e serviço), e só depois apare-
ceram os escritos do NT como fixação escrita e inspirada da fé vivida
pela Igreja. A origem dos escritos do NT atesta o fato de que a Palavra
de Deus foi escrita primeiramente no coração dos fiéis, e só depois nos
meios materiais. Os escritos do NT são Palavra de Deus exatamente
porque são o testemunho inspirado e consignado por escrito do desígnio
histórico-salvífico de Deus realizado visivelmente na Igreja. Justamente
por ser essa a autoexpressão escrita da fé da Igreja apostólica, a Escritura
tornou-se para a Igreja posterior norma non normata (norma suprema)
da fé e da fidelidade da Igreja. Por isso quando a Igreja lê a Escritura,
reconhece-se nela e reconhece sua própria fé.
4. Marcionismo: movimento dualista ascético fundado por Marcião, nascido
no Ponto, na Ásia Menor. Marcião veio a Roma aproximadamente no ano
140 e foi excomungado em 144. Nas suas Antíteses, ele sustentava que o
criador (demiurgo) e a lei do AT eram absolutamente incompatíveis com o
Deus de amor e de graça pregado por Jesus. Por isso ele rejeitava comple-
tamente as Escrituras hebraicas, aceitava somente as cartas paulinas e uma
versão mutilada do Evangelho de Lucas. Interpretava a pessoa e a obra de
Cristo segundo uma perspectiva doceta. Por algum tempo, Marcião teve
muitos seguidores. Grandes teólogos, como Santo Irineu de Lião (aprox.
130-200) e Tertuliano (aprox. 160-220), sentiram o dever de confutá-lo.
A formação do cânon foi em parte uma resposta às teorias erradas de Mar-
cião; no fim do séc. III, os seus seguidores tinham se tornado em grande
parte maniqueus. Mas a rejeição marcionita ou, ao menos, a subestimação
do AT permanece como tentação perene para os cristãos.
5. Gnosticismo: movimento religioso dualista, que 1. se inspirava no hebraís-
mo, no cristianismo e no paganismo; 2. emergiu com clareza no séc. II; 3.
apresentava a salvação como um conjunto de elementos espirituais livres da
matéria ambiental malvada. Os gnósticos cristãos negavam a encarnação
rela de Cristo e a saluscarnis (lat. “salvação da carne”) por ele realizada. Re-
jeitavam (ou modificavam) a tradição e as escrituras nas linhas fundamentais
do cristianismo, vangloriando-se de um conhecimento privilegiado (de Deus
e da nossa sorte humana) como fruto de tradições secretas e de revelações.
Os escritores ortodoxos cristãos, especialmente Santo Irineu (aprox. 130-
200) fornecem muitas informações sobre o gnosticismo. Um conhecimento
direto mais profundo desse movimento foi possível depois de 1945, quando
cinquenta e dois escritos que tratavam do gnosticismo, em língua copta e do
séc. IV d.C., foram encontrados em NagHammadi (Egito).

14
6. Cânon das Escrituras: é a coleção ou a lista dos livros da Bíblia reconhecidos
oficialmente pela Igreja como inspirados e normativos para o ensino e para a
conduta. Entre as várias denominações cristãs, o elenco difere. Na terminolo-
gia católica, distinguem-se os livros protocanônicos e os livros deuterocanôni-
cos. Estes últimos são livros cujo caráter inspirado nem sempre foi aceito por
todos os cristãos. Entre os hebreus (para o AT) e entre os Protestantes (AT e
NT), esses livros são considerados apócrifos. Na Igreja Católica, a delimitação
definitiva do cânon bíblico foi fixada somente no concílio de Trento.
7. Deuterocanônicos: livros do AT escritos em grego (a maior parte entre 200
a.C. e 70 d.C), publicados nas Bíblias católicas, mas ausentes na maioria
das Bíblias protestantes (os protestantes chamam esses livros de “apócri-
fos”. Compreendem os livros de Tobias, Judite, Sirácide, Sabedoria, 1º e
2º Macabeus (cf. DS 213, 354).
8. O cânon bíblico obriga também a levar em consideração as passagens bí-
blicas que descrevem atos imorais e violentos. Também tais passagens são
Escritura inspirada e não devem ser canceladas sob o pretexto de depurar
a Palavra de Deus de tais “máculas” para torná-las mais “edificantes”. Mas
é preciso ler tais passagens levando em o caráter histórico da Revelação
e das Escrituras. É sobre esse tema que se debruça a Verbum Domini 42.
transcrito como texto de leitura complementar:

No contexto da relação entre Antigo e Novo Testamento, o Sínodo enfrentou


também o caso de páginas da Bíblia que, às vezes, apresentam-se obscuras e difí-
ceis por causa da violência e imoralidade nelas referidas. Em relação a isso, deve-se
ter presente, antes de qualquer coisa, que a revelação bíblica está profundamente
radicada na história. Nela, vai progressivamente se manifestando o desígnio de
Deus, atuando lentamente ao longo de etapas sucessivas, não obstante a resistência
dos homens. Deus escolhe um povo e, pacientemente, realiza a sua educação. A
revelação adapta-se ao nível cultural e moral de épocas antigas, referindo-se conse-
quentemente fatos e usos como, por exemplo, manobras fraudulentas, intervenções
violentas, extermínio de populações, sem denunciar explicitamente a sua imorali-
dade. Isso se explica a partir do contexto histórico, mas pode surpreender o leitor
moderno, sobretudo quando se esquecem de tantos comportamentos «obscuros»
que os homens sempre tiveram ao longo dos séculos, inclusive nos nossos dias.
No Antigo Testamento, a pregação dos profetas ergue-se vigorosamente contra
todo o tipo de injustiça e de violência, coletiva ou individual, tornando-se assim
o instrumento da educação dada por Deus ao seu povo como preparação para o
Evangelho. Seria, pois, errado não considerar aqueles passos da Escritura que nos
aparecem problemáticos. Entretanto, deve-se ter consciência de que a leitura dessas
páginas requer a aquisição de uma adequada competência, através duma formação
que leia os textos no seu contexto histórico-literário e na perspectiva cristã, que tem
como chave hermenêutica última «o Evangelho e o mandamento novo de Jesus
Cristo realizado no mistério pascal». Por isso exortamos os estudiosos e os pastores
a ajudarem todos os fiéis a aproximarem-se também dessas páginas por meio de
uma leitura que leve a descobrir o seu significado à luz do mistério de Cristo.

15
15
UNIDADE Hermenêutica Cristã: Condições de Possibilidade

Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

 Livros
Muito além do ensino: Reflexões sobre aspectos da vida diária a partir da Teologia, Educação e Ciências da Religião
SUÁREZ, A. Muito além do ensino: Reflexões sobre aspectos da vida diária a partir
da Teologia, Educação e Ciências da Religião.

 Vídeos
Hermenêutica e Exegese Bíblica
https://youtu.be/UqQut2se7BU
Hermenêutica Bíblica II, Videoaula 1
https://youtu.be/mz8PZcMVVtY
5 Regras da hermenêutica para iniciantes / 5 Rules of hermeneutics for initiating
https://youtu.be/yT5ltGQrYlw
Hermenêutica Biblica e Exegese qual a Diferença ?
https://youtu.be/jnZFanBheVQ

 Leitura
Os 10 Princípios Básicos da Interpretação Bíblica – Indicações
http://bit.ly/2M3eUWy
Hermenêutica
http://bit.ly/2M2yjHm
Princípios Bíblicos para Interpretar a Bíblia Ilustrados em Gênesis 1-2
http://bit.ly/2Kt979R
Hermenêutica: interpretando corretamente a Bíblia
http://bit.ly/2Kt9f97
Breve percurso histórico da Hermenêutica Bíblica
http://bit.ly/2KtcWvH
Hermenêutica bíblica: refazendo caminhos
http://bit.ly/2Kv4Keb
A Teoria da Interpretação e a Hermenêutica Bíblica de Paul Ricoeur
http://bit.ly/2M35Yk5
Hermenêutica
http://bit.ly/2KsvUmc

16
Referências
AGOSTINHO, S. A doutrina cristã. São Paulo: Paulus, 2002.

ARISTÓTELES. Retórica. Livro II. Tradução Isis Borges B. da Fonseca com Retó-
rica das paixões. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BUZZETTI, C. 4 x 1 um único trecho bíblico e vários “ fazeres”: guia prático


de hermenêutica e pastoral bíblica. São Paulo: Paulinas,1998.

FEE, G .D.; STUART, D. Entendes o que lês? Apêndices Ênio Mueller. Sem indi-
cação de tradutor. 2. ed. de 1997. São Paulo: Vida Nova, reimp. de 2008.

FERRO, M.; TAVARES, M. Análise das Obras Górgias e Fédon de Platão. 3.


ed. Lisboa: Editorial Presença, 1995.

GADAMER, H. G. Verdade e Método – Traços fundamentais de uma hermenêu-


tica filosófica. São Paulo: Vozes, 2003. 

GEFFRÉ, C. Crer e Interpretar – A virada hermenêutica da Teologia. São Paulo:


Vozes, 2004.

GIACÓIA JUNIOR, O. Pequeno dicionário de filosofia contemporânea. São


Paulo: Publifolha, 2006.

GIBELLINI, R. A teologia do século XX. Tradução João Paixão Netto. São Paulo:
Loyola, 2002.

KORTNER, U. H. J. Introdução à hermenêutica teológica. São Leopoldo: Sino-


dal, 2009.

MORA, J. F. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

PALMER, R. Hermenêutica. Lisboa: Editora 70, 2006.

PETRARCA, F. Lettres familières – Rerum familiarium. Introdução Ugo Dotti.


Tradução André Longpré. Paris: Les Belles Lettres, 2002.

RICOEUR, P. O Conflito das Interpretações: Ensaios de Hermenêutica. Rio de


Janeiro: Imago, 1969.

SCHLEIERMACHER, F. Hermenêutica – Arte e técnica da interpretação. São


Paulo: Vozes, 2004.

VATTIMO, G. Para além da Interpretação. O significado da hermenêutica para a


filosofia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1999.

Sites visitados
<https://www.bibliaonline.com.br/acf>.

<https://www.bibliaon.com/>.

17
17

Você também pode gostar