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COMENTÁRIO AO CAPÍTULO 07 DE MARCOS

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47 (d) A controvérsia sobre a pureza ritual (7,1-23). A controvérsia que
constitui o clímax desta seção (veja 8,11-21) começa com uma contestação
dos fariseus e dos escribas referente ao fato de os discípulos não cumprirem o
ritual de se lavar antes de comer (7,1-8). A crítica de Jesus de que seus
oponentes estavam trocando os mandamentos divinos por suas tradições
humanas conduz ao exemplo da prática do korban (7,9-13). Finalmente, Jesus
faz uma afirmação pública e dá uma explicação privada acerca da não-
validade das leis judaicas de alimentação (7,14-23). Assim, as perícopes são
conectadas frouxamente pelo assunto (lavagens rituais, korban, leis de
alimentação). O foco teológico é a lei do AT em relação a Jesus. Ele rejeita a
tradição farisaica em torno da observância da lei, adverte contra a substituição
dos mandamentos divinos por ensinamentos humanos e contra o uso da lei
como uma forma de a pessoa escapar de sua obrigação e anula as leis de
alimentação do AT. A reivindicação cristológica implícita é que Jesus é o
intérprete autorizado da lei do AT.
1. os fariseus e alguns escribas: Estes oponentes já são conhecidos a partir
das séries de controvérsias em 2,1-3,6. O fato de que os escribas vieram de
Jerusalém indica que o incidente ocorreu na Galileia, ainda que nada
específico seja dito sobre o tempo ou o lugar.
2. com as mãos impuras, isto é, sem lavá-las: A reclamação era que os
discípulos de Jesus não seguiam as práticas judaicas tradicionais de
purificação ritual. Não era uma questão de higiene. A explicação acrescentada
por Marcos ("isto é, sem lavá-las") indica que ele escrevia a um público para
o qual tais práticas não eram familiares.
3. os fariseus, com efeito, e todos os judeus: A explicação entre parênteses
em 7,3-4 é claramente dirigida a um público não-judaico, dando assim
indícios acerca do destinatário dos evangelhos e seu propósito.
Sem lavar o braço até o cotovelo: A RSV deixa sem tradução a difícil
palavra grega pygmè, que pode ser um latinismo baseado em pugnus/pugillus,
"punho", i.e., com o punho. Marcos estava descrevendo a quantidade de água
usada no ritual de lavagem judaica (veja m. Yad. 1,1; veja H. Balz, EWNT3.
473).
a tradição dos antigos: Os rabinos desenvolveram uma noção de tradição
segundo a qual os grandes mestres de Israel formavam uma cadeia que
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retrocedia até Moisés no Sinai (veja m. ’Abot 1,1-12). Os fariseus desejavam
estender as leis de pureza ritual aplicadas aos sacerdotes no AT a todos os
israelitas, tornando, assim, efetiva a visão de um povo sacerdotal.
4. lavação de copos, de jarros, de vasos de metal: Alguns comentaristas
encontram um tom irônico e impaciente nesta lista. Alguns manuscritos
acrescentam "e camas" à lista (veja Lv 15), o que pode ter sido omitido
acidentalmente ou por causa da incongruência da lavagem de camas.
6. Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas: A citação é aplicada
ao estilo de vida religioso dos fariseus e escribas. O termo grego hypokritês
descreve um ator cujo rosto fica escondido atrás de uma máscara, mas aqui
implica o tom de "falso". Este povo honra-me com os lábios...: A citação de
Is 29,13 é da LXX, e não do texto hebraico, ainda que haja algumas diferenças
para com a LXX. Talvez Marcos (ou sua tradição) usasse uma tradução grega
variante, que pode ter feito parte de uma antologia de citações do AT.
7. Em vão me prestam culto; as doutrinas que ensinam são apenas
mandamentos humanos: A LXX reza "...ensinando mandamentos de
homens e doutrinas" (cf. Cl 2,22). Os fariseus e escribas prestavam culto a
Deus somente da boca para fora e apresentavam seus ensinamentos humanos
como se fossem mandamentos divinos. O contexto deste debate no tempo de
Jesus pode ter sido o programa farisaico de estender a obrigação de pureza
ritual a todo o Israel. Para a protoigreja, o incidente dava uma explicação de
por que os seguidores de Jesus não observarem as tradições judaicas.
8. Abandonais o mandamento de Deus, apegando-vos à tradição dos
homens: A sentença torna explícito o que estava implícito na citação de Is
29,13. Os fariseus e escribas teriam negado vigorosamente esta acusação
porque eles percebiam a si mesmos como os que tornavam práticos e
concretos os ensinamentos que não eram claros a partir da própria lei.
9. Sabeis muito bem desprezar o mandamento de Deus para observar sua
própria tradição: Esta acusação recapitula a ênfase de 7,1-8 e prepara para a
ilustração do korban em 7,10-13.10. Moisés disse: O mandamento divino
(veja Mt 15,4, "Com efeito, Deus disse") implica honrar os pais (Ex 20,12; Dt
5,16) e não falar mal deles ou amaldiçoá-los (Ex 21,17; Lv 20,9).
11. Vós, porém, dizeis: O versículo estabelece um contraste acentuado entre
o mandamento divino e o ensinamento dos escribas e fariseus sobre o korban.
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O termo grego korban é uma transliteração do aramaico qorbãn, "oferta",
"dom". O receptor da oferta é Deus. Ao declarar a propriedade ou o dinheiro
como uma "oferta" a Deus, um filho poderia anular qualquer reivindicação
que seus pais anciãos pudessem ter sobre ela. O termo aparece na inscrição de
um ossuário encontrado próximo de Jerusalém: "Tudo o que um homem
encontrar para seu proveito neste ossuário é uma oferta a Deus por parte
daquele que está dentro dele". Esta inscrição tinha a intenção de evitar que
ladrões de tumbas roubassem objetos de valor do ossuário (J. A. Fitzmyer,
ESBNT 93-100).
12. fazer mais nada por seu pai ou sua mãe: Jesus afirma que o resultado
da prática do korban é privar os pais do benefício da propriedade de seus
filhos, constituindo, assim, uma infração do mandamento (veja 7,10). O que
parece um comportamento piedoso é, na verdade, um modo de fugir da
obrigação religiosa. Alguns mestres judaicos posteriores concordaram com
Jesus (veja m. Ned. 9,1-2).
13. invalidais a palavra de Deus pela tradição: O comentário final retorna
ao princípio geral (7,8-9) ilustrado pela prática do korban. O korban não é um
exemplo isolado, mas, antes, uma orientação geral entre os escribas e fariseus.
14. chamando de novo para junto de si a multidão: Marcos deu estrutura
narrativa a uma série de ditos frouxamente conectados com o material
precedente pelo tema da pureza/impureza.
15. Nada há no exterior do homem que, penetrando nele, possa torná-lo
impuro: Jesus parece anular as leis do AT que tratam da impureza ritual e da
alimentação (veja Lv 11; Dt 14), que não somente ocupavam uma grande parte
do Pentateuco, mas também devem ter interessado diretamente os judeus em
seu cotidiano. A natureza radical da afirmação de Jesus e sua incisiva ruptura
com a tradição judaica têm levado muitos estudiosos a atribuí-la, sem
qualquer hesitação, ao Jesus terreno (N. J. McEleney, CBQ 34 [1972] 43160;
J. Lambrecht, E TL 53 [1977] 24-82). Porém, se este dito foi tão claramente
um ensinamento de Jesus sobre as leis de alimentação judaicas, por que
ninguém o usou no debate sobre a obrigação dos cristãos gentílicos de
observar as leis de alimentação (H. Rãisãnen, JSNT 16 [1982] 79-100)?

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16. Se alguém tem ouvidos para ouvir, ouça: O versículo é a sequência do
chamado a ouvir (7,14; veja 4,3), e pode se derivar de 4,9 e/ou 4,23. A RSV
segue alguns manuscritos importantes ao omiti-lo.
17. a parábola: Marcos construiu uma cena para a explicação que evoca 4,10
(em que Jesus explica a finalidade das parábolas e a parábola das sementes).
Parabolê tem aqui o sentido de "dito obscuro" ou mesmo de "enigma", ainda
que 7,15 pareça notavelmente claro. 19. nada disso entra no coração: A parte
precedente da sentença (7,18b) apenas repete o ensinamento de 7,15. Esta
parte explica que, já que a comida não entra no coração (que no hebraico
designa a sede tanto da aprendizagem quanto do sentimento), mas somente no
estômago, a comida impura não corrompe a essência interior da pessoa. Esta
explicação sugere uma distinção entre a pessoa interior (religião e moralidade)
e a pessoa exterior (ritualismo) que não era usual na tradição judaica, (ele
declarava puros todos os alimentos):
Novamente o problema: se Jesus tinha sido tão explícito sobre a observância
das leis de alimentação judaicas, por que havia tantos debates sobre este
assunto na protoigreja (veja G1 2,11-14; Rm 14,14-20; Cl 2,20-23; At 10,14-
15; etc.)?
20.O que sai do homem: Ao passo que a primeira parte da explicação (7,18b-
19) está focada no "o que entra", a segunda parte atribui corrupção real às
coisas que saem do homem. A ideia é que as más ações e os vícios procedem
de pessoas más.
21-22. intenções malignas... adultérios...: O catálogo dos pecados contém
tanto más ações quanto vícios. Outras listas dessas aparecem em G1 5,19-21;
Rm 1,29-31; lPd 4,3, e muitos dos termos são comuns nas cartas paulinas. O
recurso do catálogo era comum no mundo greco-romano e era conhecido
também no judaísmo (veja 1QS 4,9-11). 23. todas estas coisas más saem de
dentro: A sentença final resume a mensagem da segunda parte da explicação
(7,20-23).
48 (C) Mais atos poderosos e uma controvérsia (7,24-8,21). Esta seção tem
a mesma estrutura geral - três milagres e uma controvérsia - que 6,35-7,23.
Novamente o foco está em Jesus e nas reivindicações cristo- lógicas feitas
acerca dele. O desenvolvimento principal aqui se refere à incapacidade de os
discípulos compreenderem a Jesus e seu cuidado por eles (veja 8,14-21).
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49 (a) Cura da filha de uma mulher gentia (7,24-30). Embora este incidente
tenha as características de um relato de cura (um espírito imundo, o poder
curador de Jesus e a prova da cura), seu foco real é o diálogo entre Jesus e a
mulher gentia, que tem lugar em solo gentio. Em resposta ao pedido da mulher
de cura para sua filha, Jesus enuncia um dito que parece excluir os não judeus
como recebedores de seu poder. A resposta da mulher critica tal exclusividade
e mostra como pode haver lugar para não judeus no plano de Deus. Os leitores
gentílico-cristãos de Marcos entenderiam este relato como uma explicação de
sua presença no povo de Deus.
24. Tiro: Esta região fronteiriça ao noroeste da Galileia, era de caráter
predominantemente gentílico. Não se sabe o quanto Jesus penetrou nesta
região. Aparentemente, ele foi para lá com o propósito de descansar e refletir.
Para o entusiasmo relacionado com Jesus entre o povo daquela área, veja 3,8.
25. veio e atirou-se a seus pés: A postura da mulher é de súplica (veja 3,11;
5,23) no interesse de sua filha que estava possuída por um espírito imundo.
Seu pedido é descrito em 7,26. 26. era grega, sírio-fenícia de nascimento: O
primeiro adjetivo descreve a religião da mulher ("uma gentia"; cf. Mt 15,22,
"uma Cananeia") e o segundo especifica sua nacionalidade. Ela não fazia parte
da população judaica da região de Tiro.
27. Deixa que primeiro os filhos se saciem: Os filhos são, certamente, os
judeus. O dito incorpora a ideia paulina da ordem da história da salvação ("em
primeiro lugar do judeu, mas também do grego"; veja Rm 1,16). não é bom
tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos: Os escritores judaicos às
vezes descreviam os gentios como "cães". Pode haver alguma suavização no
diminutivo "cachorrinhos".
28. também os cachorrinhos comem, debaixo da mesa, as migalhas dos
filhos!: A espirituosa resposta da mulher usa o pronunciamento de Jesus para
dar a vantagem a ela. Sem negar a precedência histórico-salvífica de Israel e
o foco do ministério de Jesus, ela rejeita a ideia de exclusividade para o poder
de Jesus. Para o uso da imagem de comer migalhas sob a mesa no AT, veja Jz
1,7.
29. Pelo que disseste, vai: Jesus interpreta a resposta da mulher como um
sinal de fé no plano de Deus e em seu poder. A suposição parece ser que a

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menina tenha sido curada por Jesus à distância, embora seja concebível que o
milagre consistisse no conhecimento de Jesus de que ela já tinha sido curada.
30. encontrou a criança atirada sobre a cama. E o demônio tinha ido
embora: Estes detalhes servem para provar a totalidade da cura.
50 (b) A cura de um homem incapaz de ouvir e falar corretamente (7,31-
37). Após uma introdução geográfica, a passagem segue o esboço usual dos
relatos de cura. A ordem de Jesus para que a multidão silencie quanto à cura
(7,36) e sua subsequente violação trazem à tona o tema de sua identidade,
sugerindo que as curas não dizem tudo a seu respeito. As palavras que
expressam o entusiasmo da multidão por Jesus (7,37) são tiradas de um trecho
apocalíptico de Isaías, sugerindo que, nas atividades de Jesus, o reino de Deus
está presente.
31. passando por Sidônia: O desvio tomado por Jesus tem intrigado os
comentaristas: "De acordo com a versão apoiada pelos melhores
representantes dos textos alexandrinos e ocidentais, bem como notáveis
testemunhas de Cesareia, Jesus tomou uma rota de desvio, passando ao norte
de Tiro por Sidônia e daí para o sudeste, cruzando Leontes, continuando para
o sul, passando por Cesareia de Filipe para o leste do Jordão, e, então,
aproximou-se do mar da Galileia por seu lado leste, no território da Decápo-
le" (TCGNT 95-96). Esta jornada através de um território amplamente
gentílico pode ter sido compreendida por Marcos como uma antecipação da
missão da igreja aos gentios.
32. um surdo que gaguejava: O termo grego kõphos, usado em referência ao
ouvir, significa "surdo", mas o termo mogilalos, "que fala com dificuldade",
descreve um defeito na fala (veja 7,35, "falava corretamente"), que impusesse
a mão sobre ele: O singular "mão" não é usual em Marcos, sobretudo no
contexto da imposição de mãos (veja 5,23; 6,5; 8,23).
33. colocou os dedos nas orelhas dele e, com saliva, tocou-lhe a língua:
Tirando o homem da multidão, Jesus realiza um ritual de cura. Para o uso de
saliva nas curas de Jesus, veja Mc 8,23; Jo 9,6.
34. levantando os olhos para o céu, gemeu: O significado imediato destas
ações é que Jesus orou a Deus e foi movido por compaixão pelo homem. Elas
não fazem parte, necessariamente, de um rito mágico.

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"Effatha, que quer dizer ‘Abre-te’": A glosa "abre-te" explica o significado
da palavra semítica, usualmente compreendida como o aramaico ’eppattah (=
’etpattah; veja S. Morag, JSS 17 [1972] 198-202).
35. abriram-se-lhe os ouvidos e a língua se lhe desprendeu: A completude
da cura é salientada com esta frase. Alguns manuscritos incluem o advérbio
eutheõs, "imediatamente", falava corretamente: A melhor tradução para o
advérbio orthõs é "apropriadamente", que é mais idiomático do que
"perfeitamente" e menos rígido do que "corretamente".
36. proibiu de contar: A proibição de Jesus do contar sobre a cura
provavelmente faz parte da insistência de Marcos de que Jesus é mais do que
um taumaturgo e que sua identidade completa será somente revelada na cruz
e na ressurreição. A proibição tem o efeito oposto. A reação da multidão dá
testemunho da realidade da cura, ao mesmo tempo que sublinha o tema da
identidade de Jesus.
37 .faz tanto os surdos ouvirem como os mudos falarem: A afirmação da
multidão alude a Is 35,5-6, que faz parte de uma visão do futuro glorioso de
Israel (Is 34-35), relacionada com Is 40-66. O uso deste texto do AT aqui
indica que o futuro glorioso de Israel já está presente no ministério de Jesus.

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