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COMENTÁRIO AO CAPÍTULO 08 DE MARCOS

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51 (c) Jesus alimenta os quatro mil (8,110).
Há claras diferenças na alimentação dos quatro mil (8,1-10) em comparação
à dos cinco mil (6,35-44). A multidão esteve com Jesus por três dias; os
discípulos sabiam que suprimentos estavam disponíveis; houve duas bênçãos;
restaram sete cestos de sobras, e quatro mil foram alimentados. A despeito
dessas diferenças, há tantas similaridades que os relatos de alimentação são
usualmente entendidos como dois relatos do mesmo incidente.
Os temas teológicos de 8,1-10 são os mesmos que os de 6,3544: Deus
alimenta seu povo no deserto, o banquete messiânico e a antecipação da
eucaristia. O elemento teológico distintivo se encontra no número de pães e
de cestos restantes - sete, interpretado frequentemente como uma referência à
missão aos gentios da protoigreja.
2. Tenho compaixão da multidão: A razão da compaixão de Jesus é que a
multidão estava sem comer há três dias. Em 6,34, eles eram como ovelhas sem
pastor. Enquanto o primeiro incidente parece ter ocorrido, todo ele, em um só
dia, este se estende por três dias.
3. se os mandar em jejum: Em 6,35-36, os discípulos sugerem que Jesus
despida a multidão. 4. aqui num deserto, saciar com pão: A combinação de
"pão" e "deserto" evoca o tema do maná do AT. Nada é dito sobre os peixes
aqui (veja 8,7). A incapacidade dos discípulos de compreender o que Jesus
iria fazer, à luz da primeira multiplicação (6,3544), é entendida como uma
forte indicação de que o segundo relato é uma repetição.
5. sete: Em 6,38, o número de pães era cinco. Muitos intérpretes encontram
no número "sete" uma referência à missão aos gentios, i.e., às 70 nações do
mundo, empreendida pelos sete "diáconos" de At 6,1-7. Os discípulos já
sabem quanta comida está disponível sem que se faça qualquer investigação
(cf. 6,38).
6. sentasse pelo chão: A disposição da multidão é bem menos colorida e
aprimorada do que em 6,39-40, embora o resultado seja o mesmo. deu graças,
partiu-os e deu-os aos seus discípulos: Como em 6,41, a descrição da ação de
Jesus é uma antecipação daquilo que ele fará na última ceia (veja 14,22), que,
por sua vez, antecipa o banquete messiânico e a eucaristia da igreja. Os
discípulos servem novamente como distribuidores da comida.

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7. Tinham ainda alguns peixinhos: Como em 6,38.41.43, a referência aos
peixes parece ser uma reflexão posterior. Porém, a interpretação eucarística
da ação tenderia à retirada da referência aos peixes e, assim, sua sobrevivência
pode ser um indício de sua originalidade.
8. recolheram sete cestos: Havia doze cestos cheios de sobras de pães na
primeira multiplicação (6,43). Muitos comentaristas encontram um
simbolismo numérico na quantidade de pães: doze = Israel, sete = gentios. 10.
Para a região de Dalmanuta: A primeira parte do versículo é muito próxima
da fraseologia de 6,45. A localização de Dalmanuta é incerta e tem gerado
muitas conjecturas entre os estudiosos. Alguns manuscritos a tornam
equivalente a Magdala ou Magadã (veja Mt 15,39). A localização era, muito
provavelmente, a oeste do mar da Galileia.
52 (d) A controvérsia sobre os sinais (8,1121).
A controvérsia posta como clímax desta seção (veja 7,1-23) começa com o
pedido dos fariseus por um sinal do céu relativo a Jesus (8,11-13) e passa para
o questionamento um tanto violento dos discípulos por parte de Jesus (8,14-
21). Ele se recusa a dar aos fariseus uma demonstração pública espetacular
(;sêmeion) de sua messianidade e expõe a incapacidade de seus próprios
discípulos de entendê-lo e seu cuidado por eles.
11. os fariseus: Como em 7,1, os oponentes no texto- clímax da controvérsia
são os fariseus (ainda que, na controvérsia anterior, houvesse também
escribas). O modo pelo qual sua ação é descrita ("pô-lo à prova") sugere má
vontade e até mesmo alguma conexão com a tentação de Jesus por Satanás
(veja 1,13). um sinal vindo do céu: A palavra usual de Marcos para designar
os milagres de Jesus é dynamis, e não sêmeion. Talvez o pedido por um
sêmeion aqui tenha alguma relação com a promessa do pseudomessias judaico
Teudas de que ele dividiria o rio Jordão e daria passagem livre a seus
seguidores sobre ele (veja Josefo, Ant. 20.5.1 § 97-98). Em outras palavras,
os fariseus estão pedindo uma demonstração pública espetacular que
confirmaria a messianidade de Jesus. E claro que eles esperavam que Jesus
falhasse no teste e, assim, perdesse o apoio popular. Sua exigência de que o
sinal seja "do céu" é outro modo de dizer que ele deveria vir de Deus.
12. Por que esta geração procura um sinal?: Jesus se recusa a dar a "esta
geração" (veja Mc 8,38; 9,19; 13,30) tal sinal. Compare Mt 16,4, onde
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somente o sinal de Jonas é prometido; ver também Mt 12,39; Lc 11,29.13.
embarcou de novo: Esta nota geográfica prepara para a segunda parte da
controvérsia, na qual os próprios discípulos de Jesus são seus oponentes. 14.
tinham apenas um pão: A presença do único pão servirá como ponto de
desentendimento entre Jesus e seus discípulos. Ele ensinará em um plano
espiritual, mas os discípulos permanecem no plano material.
15. Guardai-vos do fermento dos fariseus e do fermento de Herodes:
"Fermento" simboliza algo como uma vigorosa vitalidade interna; aqui ele se
refere a uma influência maligna que pode se expandir como uma infecção. O
dito é um comentário sobre o pedido dos fariseus por um sinal (8,12).
16. não tinham pães: O comentário dos discípulos sobre o aviso de Jesus em
8,15 reforça sua obtusidade e prepara o cenário para a série de perguntas que
seguem. Mesmo após terem testemunhado toda a atividade e ensino de Jesus,
o entendimento deles piora.
18. Tendes olhos, e não vedes, ouvidos e não ouvis?: Jesus aplica aos
discípulos a linguagem aplicada "aos de fora", que não conseguiram
compreender as parábolas (veja 4,11-12). Assim, os discípulos se juntam "aos
de fora" em sua falta de entendimento sobre Jesus.
19. parti os cinco pães: Este versículo e o seguinte recapitulam 6,3544 e 8,1-
10, respectivamente. Os discípulos deveriam ter reconhecido a capacidade de
Jesus de cuidar de suas necessidades físicas a partir desses dois incidentes.
21. Nem assim compreendeis?: Sua pergunta final resume a série inteira e
aponta para a parte seguinte do evangelho, na qual os discípulos terão que
enfrentar o mistério da cruz como um aspecto essencial da identidade de Jesus.
53 (V) Jesus instrui seus discípulos no caminho para Jerusalém (8,22-
10,52). Neste ponto do evangelho, o ministério galileu é deixado de lado, e
Jesus e seus discípulos partem de Cesareia de Filipe, no norte da Galileia, para
Jerusalém. O foco é a instrução dos discípulos sobre a identidade de Jesus
(cristologia) e o que ela significa para os seguidores de Jesus (discipulado). A
seção começa e termina com a cura de um cego (8,22-26; 10,46-52), cujo
significado simbólico é óbvio. Depois da confissão de Jesus como o messias
por Pedro (8,27-30), há três seções, cada uma das quais contém uma predição
da paixão (8,31; 9,31; 10,33-34) e a incompreensão por parte dos discípulos

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(8,32-33; 9,32-37; 10,35-45), seguida, nos primeiros dois casos, por
ensinamentos sobre as exigências do discipulado.
54 (A) A cura de um cego (8,22-26).
Se há um relato de Marcos que tem uma função simbólica, este é, certamente,
o da cura do cego de Betsaida (8,22-26) (e a cura de Bartimeu [10,46-52]). No
caminho, Jesus convencerá os discípulos da necessidade de sua morte e
ressurreição. Entretanto, os discípulos são lentos em compreender Jesus. No
caso do cego de Betsaida, a aquisição da visão é gradual e imperfeita, e ele
não segue Jesus. Bartimeu é curado imediatamente e segue a Jesus pelo
caminho. Descrever esses relatos como "simbólicos" não é negar sua base
histórica, nem significa que eles pretendam ser somente afirmações
alegóricas.
22. Betsaida: Finalmente, o destino anunciado em 6,45 é alcançado. Ali,
algumas pessoas trazem um cego a Jesus e pedem-lhe que o toque (veja 7,32).
23. cuspindo-lhe nos olhos: Para o uso de saliva numa cura, veja 7,33. Este
relato difere do de 7,31-37 porque aqui a cura acontece em dois estágios. O
que está implícito em 8,23 é que Jesus colocou suas mãos nos olhos do homem
(8,25) e tirou-as antes de fazer a pergunta.
24. vejo as pessoas: A sintaxe ("Eu vejo as pessoas como se fossem árvores
andando") é difícil, sugerindo a muitos comentadores que a partícula aramaica
dê, "quem", "que", etc. foi mal traduzida. Destaca-se que a recuperação da
visão por parte do homem é gradual, não sendo completamente perfeita no
princípio.
25. viu distintamente e ficou restabelecido e podia ver tudo nitidamente:
Três verbos servem para sublinhar a completude da cura do homem após a
primeira cura apenas parcial. 26. Não entres no povoado: Alguns
manuscritos preferem substituir ou acrescentar as palavras "não fales a
ninguém (no povoado)", o que parece ser uma tentativa de esclarecer o motivo
de o homem recém curado não poder entrar em seu vilarejo. Esta é outra
ordem de silêncio após uma ação miraculosa da parte de Jesus (veja 1,44;
5,43; 7,36).
55 (B) Jesus o Cristo (8,27-30). A confissão de Pedro de que Jesus é o
Messias/ Cristo é central em Marcos. A passagem sugere que esta

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identificação está correta (em contraposição a João Batista, Elias ou algum
dos profetas), ainda que ela necessite de explicação nas três instruções
seguintes, com particular atenção ao significado do termo Messias/Cristo
quando aplicado a Jesus. O que os discípulos (e os leitores de Marcos)
precisam aprender é como a paixão e a morte de Jesus se encaixam em sua
identidade de messias judaico.
27. os povoados de Cesareia de Filipe: Esta cidade foi construída por Filipe
e chamada de Cesareia de Filipe para distingui-la da Cesareia Marítima; —»
Geografia Bíblica, 73:57. Os "povoados" se referem aos assentamentos em
torno da cidade. Quem dizem os homens que eu sou?: A pergunta geral de
Jesus prepara seu questionamento mais concreto aos discípulos em 8,29 e
também fornece o tema para os ensinamentos ministrados ao longo do
caminho - a cristologia (e suas implicações para o discipulado).
28. João Batista; outros Elias; outros ainda, um dos profetas: As mesmas
conjecturas apareceram com referência à execução de João Batista por
Herodes Antipas em 6,14-16. "Messias" não está entre as identificações
populares de Jesus.
29. Tu és o Cristo: Respondendo a pergunta concreta de Jesus aos discípulos,
Pedro, como porta-voz deles, reconhece Jesus como o Messias. O termo
hebraico mãsiah é traduzido para o grego como christos; ambas as palavras
significam "ungido" (—> Jesus, 78:34; Pensamento do AT, 77:152-154).
Embora várias figuras do antigo Israel fossem ungidas, o termo veio a ser
aplicado mais distintivamente aos reis. Alguns escritos do tempo de Jesus
(esp. Sal. Sl. 17) usavam-no para descrever o futuro líder de Israel no período
anterior ao eschaton e durante ele. O ungido cumpriria as esperanças de Israel
baseadas nas promessas de Deus. Veja PNT 64-69.
30. proibiu-os severamente de falar a alguém a seu respeito: Ao aconselhar
seus discípulos a manter silêncio, Jesus evita falsas interpretações sobre sua
messianidade e os prepara para as três instruções que virão.
56 (C) A primeira instrução sobre cristologia e discipulado (8,31-9,29).
Tendo apresentado o relato transicional do milagre da recuperação da visão
(8,22-26) e tendo identificado Jesus como o Cristo (8,27-30), a narrativa
marcana explica o que significa dizer que Jesus é o Cristo e quais são as
implicações disso para os discípulos.
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57 (a) A primeira predição da paixão e suas consequências para o
discipulado (8,3138).
Em 8,31-33, Jesus esclarece a natureza de sua identidade como o
Messias/Cristo através de sua primeira predição da paixão. A rejeição
impetuosa da predição por parte de Pedro serve como um contraste para a
insistência de Jesus sobre um sofrimento, morte e ressurreição. 8,34-38 é uma
coleção de ditos sobre o discipulado na qual predomina o tema do sofrimento:
a necessidade de autonegação (8,34), a perda da própria vida em favor do
evangelho (8,35), o valor do verdadeiro eu (8,36-37) e o não se envergonhar
do Filho do Homem (8,38). A combinação dos dois incidentes mostra que a
cristologia expressa no primeiro tem implicações para o discipulado
delineadas nos quatro ditos do segundo: Aonde vai o mestre, também deve ir
o discípulo.
31.O Filho do Homem deve sofrer muito: Em vez de Messias/Cristo, Jesus
usa Filho do Homem (veja 2,10,28) em referência a si mesmo. O verbo para
"deve" (dei) tem o sentido de uma obrigação segundo o plano de Deus. O
quanto a fraseologia das três predições da paixão (8,31; 9,31; 10,33-34) foi
influenciada pelos eventos que descrevem (vaticinia ex eventu) é difícil de
avaliar. Certamente há alguma influência verbal (esp. em 10,33-34), mas este
fato não significa que Jesus não tivesse noção do destino que esperava por ele
em Jerusalém, pelos anciãos, pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas: Não
há referência aos fariseus. Na narrativa da paixão de Marcos, os fariseus não
desempenham nenhum papel explícito na condenação e na morte de Jesus,
depois de três dias, ressuscitar. Para o terceiro dia como dia que representa
um ponto decisivo, veja Os 6,2; Jn 1,17; 2,10. Este pano de fundo do AT torna
plausível que Jesus se referisse à sua futura exaltação, ainda que,
provavelmente não tivesse sido tão explícito quanto a forma presente do texto.
32. Dizia isso abertamente: Antes disto, Jesus recebia as especulações sobre
sua identidade com ordens de silêncio.
33. recriminou a Pedro, dizendo: Arreda-te de mim, Satanás: A ação
impetuosa de Pedro se encaixa no perfil de seu caráter na tradição dos
evangelhos. E também muito difícil imaginar os primeiros cristãos criando
uma história na qual Pedro é identificado como "Satanás". Pedro expressa a
compreensão errônea da messianidade de Jesus que Marcos deseja retificar.

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Quem quer que negue a paixão, morte e ressurreição de Jesus se posiciona do
lado de Satanás (veja Mt 4,10). Ao chamar Pedro de "Satanás", Jesus indica
que a falsa concepão de sua messianidade é uma tentação (veja Jó 1-2; Zc 3,1-
2).
34. a multidão, juntamente com seus discípulos: A estrutura redacional de
Marcos para os ditos sobre o discipulado os apresenta como ensinamentos
públicos que aludem aos sofrimentos de Jesus feitos de forma explícita ao
círculo íntimo dos discípulos em 8,31-33. tome a sua cruz: A crucificação era
bem conhecida dos judeus como a última instância de punição romana. O
condenado carregava a parte superior da cruz (a trave- mestra; veja Mc 15,21).
A imagem (veja Mt 10,38; 16,24; Lc 9,23; 14,27) pode expressar submissão
à autoridade divina em analogia à submissão de um criminoso condenado à
autoridade romana. Se o Jesus terreno usou esta imagem específica para se
referir a seu próprio destino não pode ser determinado com certeza, embora
os primeiros cristãos certamente a lessem tendo em mente a morte de Jesus.
35. o que perder sua vida por causa de mim e áo evangelho, a salvará: O
que é distintivo de Marcos é a expressão "e do evangelho" (cf. Mt 16,25; Lc
9,24). "Evangelho" não se refere a um livro ou a um gênero literário, mas à
boa nova sobre Jesus ou ao próprio Jesus.
37. Pois, que daria o homem em troca de sua vida?: "Vida" (no grego,
psychê e no hebraico, nepes) é usada no sentido de "o verdadeiro eu". Ao
seguir a Jesus, os discípulos podem encontrar a si mesmos, e nada é mais
importante do que isso.
38. o Filho do Homem se envergonhará dele: Alguns comentaristas
encontram uma distinção entre Jesus ("de mim e de minhas palavras") e o
futuro Filho do Homem (veja Dn 7,13-14). Porém é duvidoso que os primeiros
cristãos percebessem tal distinção. O Jesus terreno pode ter vislumbrado sua
função no julgamento final como advogado ou acusador diante de Deus em
relação à resposta ao seu ensino.

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