Você está na página 1de 5

FAJE - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia

DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA
Evangelho Segundo Marcos - 1°/2022/ Prof. Rivaldave Torquarto
Aluno: Gabriel Cavalcante de Oliveira
1.Introdução e Estrutura de Mc 6,30-44

Marcos, através da chave de leitura visto em sala, possui três grandes partes,
marcadas por lugares geográficos, mas também teológicos. A perícope de 6,30-44 está
localizada na primeira grande parte do evangelho, que possui enfoque nos milagres e
prodígios de Jesus. Nesse bloco, o evangelista busca mostrar que Jesus é o filho de Deus
através de suas ações, mas do que em ensinamentos. A fração do pão por excelência
busca revelar isso através do caráter messiânico de Jesus que traz vida em abundância
para todos. Mc 6,30-40 se organiza internamente com intercalações de problemáticas e
soluções, quase como se o evangelista quisesse ensinar a sua comunidade que a
indisposição é superada com o compromisso e generosidade. Seguimos o seguinte
esquema:

Preâmbulo 6,30 O que sobra da missão A¹


1º Encontro 6,31-33 A multidão incomoda Jesus B¹
2º Encontro 6,34 A multidão tem a compaixão de Jesus B²
Problemátic 6,35-36 As horas avançam e insensibilidade dos C¹
a discípulos
Solução 6,37a Convite ao compromisso C²
Obstáculo 6,37b-38 Não há dinheiro nem pão suficiente D¹
Superação 6,39-42 Há pães em abundância D²
Conclusão 6,43-44 O que sobra da partilha A²

2.Análise da Perícope

6,30: Os apóstolos reúnem-se com Jesus e lhe deram conta de tudo o que tinham feito e
tudo o que haviam ensinado.

Nesse verso, os apóstolos retornam da missão incumbida por Jesus em Mc 6,7-


13. Eles prestam conta à Jesus do que fizeram, que segundo Mc 6,12-13 foram,
proclamar a conversão, expulsar demônios e curar doentes com óleo. Toda via, há um
elemento a mais que não foi recomendado por Jesus, o ensino. O verso 6,11b, deixa a
entender que objetivo principal, esperado por Jesus, era que os apóstolos dessem um
testemunho. Mas ao voltarem, contam também tudo o que haviam feito e tudo que
haviam ensinado. Aqui percebemos que quando se trata do Reino, o ensino não se
mantém em palavras, mas em gestos e ações visíveis. Os prodígios de Jesus também são
ensinamentos.6,31: Ele lhes disse: “Vinde vós à parte num lugar deserto e descansai
um pouco”. Porque havia muita gente que vinha e voltava, e eles nem sequer tinham
tempo para comer.

O v.31a mostra o convite de Jesus aos apóstolos para que se retirem ao deserto,
lugar teológico, que representa o Deus do Êxodo, presente no deserto, lugar onde João
batizava e anunciava a vinda do Messias, e onde Jesus passou quarenta dias sendo
servido por anjos e onde ele se retirava com frequência. O convite do Nazareno era um
convite para a renovação das forças e da esperança junto ao Senhor. Isso revela a
estreita relação entre Pai e Filho, pois Jesus é capaz de apresentá-lo a outros.

A problemática inicial da perícope situa-se no v.31b. Aqui as multidões


atrapalham, não só o reencontro entre mestre e discípulos, mas o encontro deles com
Deus. A multidão novamente possui um papel de dispersão. Esse também é um fator
que motiva o convite de Jesus para o deserto. Essa movimentação da multidão pode
significar que elas vinham ao encontro de Jesus e de seus apóstolos que voltaram de
missão. A ênfase que Marcos dar na condição de não terem tempo para comer,
representa o quanto essa gente os importunavam.

6,32-33: Eles partiram de barco rumo a um lugar deserto, à parte. O povo os viu se

afastarem e muitos os reconheceram. Então, de todas as cidades acorreram a pé para

aquele lugar e chegaram antes deles.

Jesus se integra ao grupo dos doze para o deserto. Durante a missão, com certeza
os discípulos se tornaram conhecidos por seus feitos em diversas localidades, isso
explica como grande parte da multidão os reconhecem. A multidão insiste em sua
missão de encontrar Jesus e os doze, capaz até de caminharem até esse lugar
despovoado. No v.33b ao mostrar que a multidão chegara antes deles, Marcos poderia
deixar a entender que não adiantava para onde fossem, o povo sempre os
acompanhariam. A partir daqui, a multidão começa a mudar sua imagem.
6,34: Ao desembarcar, Jesus viu grande multidão. Ele foi tomado de compaixão por
eles, porque eram como ovelhas sem pastor, e pôs-se a ensinar-lhes muitas coisas.

O v.34 é o ponto de virada para a revelação messiânica de Jesus. Aqui Jesus tem
o mesmo sentimento que o Deus do Antigo Testamento, que enxerga e escuta a dor e os
clamores do povo e desce para salvá-los. A compaixão de Jesus decreta a nova imagem
que tem a multidão, “são ovelhas sem pastor”. A multidão que “vinha e voltava” no
v.31b, é descrita dessa forma, pois abandonadas por seus governantes e líderes, não
sabiam para aonde ir. Estavam perdidos. O evangelista cita que Jesus ensina, mas não
revela o conteúdo. Sua ação seguinte deve revelar a essência do ensinamento.

6,35-37: Depois, como a hora avançasse, seus discípulos aproximaram-se dele para
dizer-lhe: “O lugar é deserto e a hora já avançou. Despede-os, para que vão aos sítios
e aldeias dos arredores comprar para si o que comer”. Mas ele lhes respondeu: “Dai-
lhes vós mesmos de comer”. Eles lhe dizem: “Será preciso ir comprar pão por duzentas
moedas de prata e dar-lhes de comer?”.

Os discípulos se mostram insensíveis à problemática da multidão. É deserto e


tarde, os discípulos sabem da situação, mas ainda assim querem despedi-los.  Não se
solidarizam ou sentem compaixão como seu mestre. É mais um relato da incompreensão
de quem é Jesus e das exigências do seu Reino. Jesus aproveita para provocá-los ao
compromisso social.  Faz com que eles se impliquem com a necessidade do povo.
Lentos para compreender, os doze continuam insistindo que a solução só pode passar
pela compra. É interessante pensar que durante a missão, deveriam depender da graça e
da generosidade, sem depender dos recursos materiais (6,8-9). Há uma total
incompreensão do que foi vivido e ensinado por Jesus.

6,38-40: Ele perguntou: “Quantos pães tendes? Ide ver!”. Tendo verificado,
responderam: “Cinco, e dois peixes”. E ele ordenou que acomodassem todos em
grupos sobre a relva verde. Eles se estenderam em fileiras de cem e de cinquenta.

No v.38a Jesus enxerga uma oportunidade de “catequese”. Responde à pergunta,


um tanto quanto irônica dos discípulos, com outra pergunta, tranquila e sábia. Faz com
que eles mesmos encontrem a resposta para seus questionamentos: dispor dos seus
próprios recursos. Marcos acrescenta o número exato do que tinham, “cinco, e dois
peixes”. Sete é o número do que se tem para partilhar. Em sete dias, Deus cria o mundo
no Gn 1, e Jesus dá sinal de seu messianismo também com 7 frações de alimento.
A partir daqui, Jesus toma conta da situação e se posiciona como o pastor, isso
podendo ser respaldado pelo v.39, que faz referência direta ao Sl 23,1-2. O evangelista
mostra duas lições para os seguidores de Jesus a partir de sua ação nesses versículos. A
primeira: ele ordena e os discípulos executam, isto é, os discípulos devem estar prontos
para escutar e colocar em prática a vontade de Deus. A segunda: os discípulos devem
organizar a comunidade.

6,41: Jesus tomou os cinco pães e os dois peixes, e erguendo os olhos para o céu,
pronunciou a bênção, partiu os pães e dava-os aos discípulos para os oferecessem ao
povo. Repartiu também os dois peixes entre todos.

Ao olhar para os céus e pronunciar a benção, Jesus estabelece uma relação entre
o alimento e a graça divina. O alimento se torna dom de Deus, e o dom não deve ser
negado, mas partilhado com todos e todas. Cabe aos discípulos o serviço aos irmãos e
irmãs, e a partilha desses dons. Tornar o pão acessível, eis a terceira que Marcos oferece
à sua comunidade.

6,42-44: Todos eles comeram e ficaram saciados. E recolheram-se os pedaços, que


enchiam doze cestos, e também o restante dos peixes. Os que haviam comido os pães
eram cinco mil homens.

Por fim, a plenitude que o Messias carrega consigo. Todos ficam saciados e
ainda resta o pão para outros que ainda não tiveram acesso. A fração é contínua. Jesus,
na catequese de Marcos, supera Moisés (Ex 16,14-18) e Eliseu (2Rs 4,43-44), pois
revela um novo tempo, onde o compromisso, a solidariedade e a compaixão são os
verdadeiros milagres.

3.Relações Intertextuais

A perícope da “multiplicação” dos pães, está situada logo após o relato da morte
de João Batista e a festa de Herodes (6,17-29). Essas duas perícopes possuem
aproximação, não só de sequência, mas uma aproximação antitética. Ambas relatam
situações que contrastam. O Evangelista aqui, apresenta dois cenários e os põe em
confronto para se chegar a como é o verdadeiro reino e como age o verdadeiro rei.

O primeiro confronto que notamos é entre um rei tirano e um rei pastor. De um


lado Herodes, que usa seu poder para benefício próprio, que não tem responsabilidade, e
que age de forma inescrupulosa (6,17). Do outro, Jesus, que sente compaixão por suas
ovelhas e as acolhe (6,34). O mesmo é atribuído a festa e a partilha. A festa de Herodes
é um banquete restrito para os seus e pessoas influentes (6,21), a fração do pão é
partilhada para aqueles que estavam no deserto (6,44).

M 6,17-29 6,30-44
c
1º Mandou um guarda com à prisão (6,27a) Tomou os pães (6,41a)
2º Decapitou João Batista (6,27b) Pronunciou a benção (6,41b)
3º Trouxe a cabeça para a moça (6,28a) Entregou aos discípulos (6,41b)
4º Entregou à sua mãe (6,28b) Todos ficaram saciados (6,42)
Outro confronto perceptível é o contraste entre vida em abundância (6,42-43) e
morte imediata (6,27) presente nessas duas perícopes. Enquanto no banquete de
Herodes é a cabeça de João que é apresentada na bandeja (6,28), na fração, é o pão e o
peixe que são entregues pelas mãos dos discípulos (6,41). Por fim, o processo ao final
de cada perícope, feito em quatro partes, termina em resultados diferentes. Seguimos o
seguinte esquema:

Ao final, aos discípulos de João, sobra apenas seu corpo sem vida. Para os
discípulos de Jesus, sobram doze cestos cheios. Um banquete termina em morte e outra
em vida.

4.Referências bibliográficas

BARBAGLIO, Giuseppe; FABRIS, Rinaldo; MAGGIONI, Bruno. Os Evangelhos I.


São Paulo: Loyola, 2002. v. 1. (Bíblica Loyola, 1).

MEURER, G. Liberdade e fraternidade sob o sinal do pão em Marcos 6–8. Estudos


Bíblicos, São Paulo, v.35, n.138, p.155–164, 2021. Disponível em:
https://revista.abib.org.br/EB/article/view/65. Acesso em: 13 jun. 2022

CORREIA JÚNIOR, J. L.; SILVA, G. S. e. "Dai-lhes vós mesmos de comer" (Mc


6,37;Mt 14,16b; Lc 9,13): comprometam-se socialmente!. Estudos Bíblicos, São Paulo,
v.25, n.95, p.35–48, 2022. Disponível em:
https://revista.abib.org.br/EB/article/view/594. Acesso em: 13 jun. 2022.

MYERS, Ched. O Evangelho de São Marcos. [tradução I.F.L. Ferreira; revisão H.


Dalbosco], São Paulo: Edições Paulinas, 1992. (Coleção Grande Comentário Bíblico)

Você também pode gostar