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COMENTÁRIO DE MARCOS CAP.

8
BARBAGLIO
A segunda multiplicação dos pães 8,1-10
(Mt 15,32-39; cf. Mc 6,33-44)

1 Naqueles dias, tendo-se ajuntado de novo uma grande


multidão, e como não tinha o que comer, Jesus chamou
os discípulos e disse-lhes:
2 Tenho compaixão desta multidão, porque já há três dias
que está comigo e não tem o que comer.
3 Se eu os mandar em jejum para a casa, desfalecerão
pelo caminho; alguns deles vieram de longe.
4 Responderam-lhe os discípulos: Onde acharemos pão para
saciá-los aqui no deserto?
5 Ele perguntou-lhes: Quantos pães tendes? Responderam:
Sete.
6 Então mandou que a multidão se assentasse pelo chão.
E, tomando os sete pães, deu graças, partiu-os e deu aos
discípulos, para que eles os distribuíssem; e eles os distribuíram
à multidão.
7 Tinham também alguns peixinhos; depois de ter rezado
a bênção sobre eles, mandou que fossem distribuídos
também.
8E comeram e ficaram saciados, e dos pedaços recolheram
sete cestos.
9 Eram cerca de quatro mil. Depois, Jesus os despediu
'o e, imediatamente, subindo para o barco com seus discípulos,
partiu para a região de Dalmanuta.

Confrontando esta segunda narração de multiplicação dos pães com a primeira, relatada por 6,34-44,
impõe-se a interrogação: trata-se de um dúplice relatório do mesmo milagre, ou de dois episódios distintos?
Esta não é uma curiosidade estilística, nem a solução de um rébus evangélico, mas um confronto com a
intenção de Marcos e a mensagem que ele quer nos comunicar. Antes de mais nada, os dados mais seguros.
Marcos tem certeza de estar narrando dois milagres distintos. As palavras que Jesus dirige aos discípulos em
8,19-20 a propósito do milagre dos pães supõem dois episódios distintos. De outro lado, se confrontamos nos
dois relatos de Marcos os elementos comuns e paralelos, aparece imediatamente que a estrutura é a mesma:
compaixão de Jesus para a multidão como motivação do milagre, diálogo com os discípulos, refeição
prodigiosa com os pães e peixes multiplicados, o ajuntamento dos pedaços e enfim a constatação do número
dos participantes. Ao lado desta evidente semelhança emergem as diferenças, sobretudo nos pormenores:
três dias de permanência da multidão junto de Jesus (8,2), num verdadeiro deserto, onde não há relva (8,6);
também os números são diversos: sete pães contra cinco do primeiro milagre, sete cestos contra os doze do
primeiro.
A interpretação mais coerente destes dados é que na realidade se trata do mesmo milagre transmitido em
dois ambientes diferentes; na tradição foram emendados os pormenores do milagre segundo perspectivas
diversas. O primeiro relato remonta à comunidade palestinense ou tradição judeu-cristã, o segundo à
comunidade grega ou tradição helenístico-cristã. Deste modo explica-se no segundo relato a insistência sobre

1
o número sete pela lembrança do colégio dos sete, que é a primeira organização da Igreja helenística, At 6,1-
6.
A compaixão de Jesus é motivada pelo fato de que a multidão não tem o que comer e não pode ser
mandada para casa, porque alguns vieram de longe. 8,3b. Na primitiva Igreja, esta expressão é uma fórmula
para designar os pagãos convertidos (At 2,39b; 22,21; Ef 2,13.17).
Enfim, também aqui o milagre é descrito com evidente alusão ao texto eucarístico, como no primeiro
relato; porém, é escolhido um termo que se encontra na liturgia da Igreja grega de Antioquia, eucharisíein
( deu graças), no invés de eulogein (8,6b). 22
Concluindo, pode-se pensar que Marcos tenha registrado as duas tradições de um único milagre dos pães,
inserindo-as no quadro geral da seção dos pães. Assim, o segundo relato relaciona-se muito bem com a
perspectiva da vocação dos pagãos à salvação: com o novo princípio sobre a pureza, Jesus elimina a
separação entre pagãos e judeus; com os dois milagres em território pagão, antecipa a admissão dos pagãos à
salvação; enfim, com o banquete messiânico no deserto, acolhe os pagãos vindos de longe à plena
comunidade da mesa.
Assim, as duas tradições do milagre dos pães representam, nesta parte central de 6,30-8,26, os dois
painéis de um dístico, que desenvolve temas correspondentes, centrados sobre os sinais da missão e a
autoridade de Jesus, sobre o endurecimento dos fariseus e a incompreensão dos discípulos. Esta liberdade da
tradição e dos evangelistas a respeito do material evangélico pode desorientar somente quem considera os
gestos e as palavras de Jesus objeto de análise histórica e de indagação lingüística. Todavia, onde a pessoa de
Jesus, a sua ação e ensinamento não são embalsamados, mas se tornam alicerce de uma comunidade, aí suas
palavras e gestos assumem o calor e a tonalidade da vida de cada dia com seus problemas, tensões e
esperanças.
Só com esta condição, a fidelidade a Jesus é fidelidade ao Vivente que anuncia o evangelho, a alegre
notícia para todos os homens.

O sinal do céu 8,11-13


(Mt 12,38-39; 16,1-4; Lc 11,16-29)

11 Então se apresentaram os fariseus e começaram a discu- Jo 6,30;


tir com ele pedindo, para pô-lo à prova, um sinal do céu. L Cor 1,22
12 Mas ele, suspirando profundamente, disse; Por que esta
geração procura um sinal? Em verdade vos digo, que
nenhum sinal será dado a esta geração.
13 E deixando-os, subindo de novo à barca, foi para outra
margem.

Os traços desta cena, inserida entre a chegada à margem ocidental e a nova saída, são rápidos e nervosos
como o sentido da sentença de Jesus. O evangelista não podia traçar de maneira mais clara e vistosa o
contraste entre o gesto prodigioso de Jesus, que sacia os peregrinos, e a recusa severa de um sinal aos
fariseus. Os fariseus representam uma categoria, a geração que rejeita Jesus, a geração do coração
endurecido, incapaz de colher o verdadeiro significado de seus gestos (2,16.24; 3,5). O pedido de um sinal
de autenticação do céu, de Deus, é uma tentação para Jesus, 8,12b. É um convite astucioso, em nome de
suposta seriedade religiosa, a percorrer o caminho do messianismo espetacular. Por parte dos fariseus, é a
pretensão de basear a fé sobre a demonstração evidente e verificável de Deus, sem correr o risco do empenho
pessoal. Como espectadores e fiscalizadores neutros e desligados, eles se acham na condição de estabelecer
o que é sinal ou não da presença de Deus. Isto significa reduzir a liberdade de Deus para dentro dos limites
de seus próprios preconceitos e esquemas subjetivos. Nestas condições, não há mais espaço, nem para a
liberdade humana, nem para a experiência genuína da fé. A fé é a confrontação mais séria de Deus com o

2
homem, como aconteceu no “ evento-Jesus” . A recusa de Jesus de pôr a liberdade de Deus a serviço de
quem tem medo de viver no risco da liberdade é a rejeição de vender barato a liberdade do homem.

O fermento dos fariseus e o fermento de Herodes 8,14-21


(Mt 16,5-12)

14 Os discípulos tinham se esquecido de trazer pães e não


tinham consigo no barco senão um só pão.
15 Entretanto, ele os ensinava dizendo: Cuidado, guardai-
-vos do fermento dos fariseus e do fermento de Herodes! Lc 12,1
16Mas eles comentavam entre si o fato de não terem
pães.
17 Jesus, percebendo isto, disse: Por que discutis entre vós
por terdes pães? Ainda não entendeis e não compreendeis? 6,52; 7,18
Tendes o coração endurecido?
18 Tendo olhos não vedes e tendo ouvidos não ouvis? E não Is 6,10;
vos lembrais Jr 5,21; Ez 12,2
19 de quando parti cinco pães para cinco mil homens,
quantos cestos cheios de pedaços recolhestes? Dizem- 6,41-44
-lhe: Doze.
20 E de quando parti sete para quatro mil homens, quantos 8,6-9
cestos de pedaços recolhestes? Sete, respondem.
21 E dizia-lhes: Nem assim compreendeis? 7,18

À obtusidade dos fariseus, que exigem de Jesus um sinal de autenticação, segue a incompreensão dos
discípulos, que não sabem captar a importância dos sinais já realizados por Jesus. A narração atual se adapta
muito bem à "sccção do pão” , porque o diálogo esclarecedor entre Jesus e os discípulos parte do
esquecimento de provisão de pão, 8,14. A sentença de Jesus sobre o fermento dos fariseus e de Herodes foi
associada a este contexto pela sua afinidade temática.
No evangelho de Marcos, os fariseus e os partidários de Herodes estão associados em seu projeto contra
Jesus (cf. 6,13; 12,13). O medo dos fariseus de perder o prestígio religioso e o medo dos herodianos de
comprometer o poder ou sucesso político alimentam a suspeita comum e a comum hostilidade a respeito de
Jesus. Este medo é como uma fonte escondida de corrupção, "fermento”, que impede de compreender e de
acolher o projeto de Jesus. E um perigo ao qual os discípulos não são estranhos, de modo nenhum. Pelo
contrário, sua cegueira-e-surdez espiritual, comparável à daqueles que estão fora, tem raízes num coração
endurecido, isto é, no centro da personalidade fechada aos projetos de Deus. O convite insistente de Jesus
aos discípulos para que penetrem na compreensão do milagre dos pães faz intuir que aquele gesto, no projeto
de Jesus, não foi um alegre piquenique popular, mas um momento preciso de revelação de sua tarefa e de sua
presença.
O milagre do cego curado, que segue imediatamente, 8,22-26, e corresponde ao milagre do surdo-mudo
da seção paralela, 7,31-37, está nesta linha de revelação salvífica: há uma surdez-e-cegueira do homem mais
grave e profunda do que a física; ela não pode ser curada por milagre algum, enquanto o coração não mudar.
E é precisamente isto que Jesus quer alcançar com sua ação e palavra.

(O cego de Betsaida 8,22-26

22" Chegando a Betsaida, trazem-lhe um cego e lhe pedem 7,32

3
que ele o toque.
23 E ele, tomando o cego pela mão, levou-o para fora da
aldeia, aplicou-lhe saliva nos olhos, impôs-lhe as mãos e Jo 9,6
lhe disse: Vês alguma coisa?
24 E ele, olhando para cima, disse: Vejo os homens como
se fossem árvores que andam.
25 Então novamente lhe impôs as mãos sobre os olhos, e
ele viu distintamente e se achou curado e podia ver nitidamente
tudo e de longe.
26 Jesus o mandou para sua casa dizendo: Nem entres na
aldeia. 7,36

A cura do cego de Betsaida, na margem oriental do lago, é o último episódio da secção do pão e ocupa
uma posição paralela à do surdo-mudo da Decápole, 7,32-37. O primeiro anuncia a vocação dos pagãos à
salvação, o segundo antecipa a iluminação dos discípulos seguindo Jesus no caminho para Jerusalém, 2,27-
33. Os dois relatos apresentam um evidente paralelismo, também de estrutura e terminologia, e por isso
podem-se explicar não só como um modelo narrativo comum, mas ainda como uma imitação intencional por
parte do redator.26 A outra peculiaridade deste milagre é a cura progressiva em dois tempos: após a primeira
intervenção de Jesus, o cego vê profundamente; após a segunda imposição das mãos, vê distintamente.
Tendo presente o que Marcos já disse, com muita insistência, acerca da compreensão profunda dos gestos de
Jesus, 8,17-21, não se pode atribuir este pormenor da cura do cego simplesmente ao pedantismo do cronista.
Com uma expressão retomada dos profetas, a incompreensão dos discípulos era apresentada como cegueira:
Tendo olhos não vedes ..., 8, 17b.
A iluminação dos discípulos realizar-se-á no caminho de Cesaréia de Filipe, quando Jesus enfrentará o
grupo de dois momentos, com duas perguntas sucessivas: Quem dizem os homens que eu sou?; Mas vós
quem dizeis que eu sou? 8,27-29. A cura gradual do cego de Betsaida antecipa, numa espécie de ação
simbólica, a gradual abertura dos discípulos à fé.
A narração se conclui com uma estranha ordem de Jesus ao cego: entres na aldeia. Ela se insere na lógica
do segredo, que deve velar, até o momento oportuno, a verdadeira identidade de Jesus. Nada se diz, neste
ponto, da reação do povo, que é mencionada nos outros milagres. Assim o milagre fica aberto a ulteriores
desenvolvimentos na secção seguinte. Pedro, que reconhece em Jesus o Messias, dá a verdadeira resposta ao
gesto de Jesus que cura o cego, 8,29. Mas esta proclamação de fé precisará de um novo aprofundamento e de
uma longa caminhada no seguimento de Jesus pela estrada que leva à morte violenta. Não é por acaso que
Marcos situará numa outra e decisiva virada neste caminho um novo milagre de cura: o cego de Jericó,
10,46-52. Então se compreende que os relatos de milagres, na trama do evangelho, não são nem fatos de
crônica, nem gestos espetaculares ou edificantes, mas momentos decisivos da revelação de Jesus e de sua
missão.

DA PROCLAMAÇÃO DE CESARÉIA À ENTRADA EM JERUSALÉM 8,27-10,52

A trajetória de Jesus chegou a uma virada decisiva e crítica. Está para se concluir definitivamente a
atividade na Galiléia, nas cidades ao redor do lago, enquanto no horizonte se delineia de forma sempre mais
precisa a perspectiva do fim trágico. As suspeitas e as oposições dos notáveis da capital, Jerusalém, vão se
concretizar numa conspiração que tem a finalidade de suprimir de maneira exemplar o rabi da Galiléia.
Jesus, já posto de sobreaviso pelo fim violento de João Batista, se move com maior cautela, mas ao mesmo
tempo com maior determinação, rumo a seu objetivo. Ele tem a firme intenção de qualificar o grupo dos
discípulos envolvendo-os no seu projeto que agora ele está expondo em termos precisos e essenciais.
Esta nova orientação domina a seção central do livrinho de Marcos 8,27-10,52. Desde o primeiro
episódio, a proclamação messiânica de Pedro em Cesaréia de Filipe, que serve de articulação entre a

4
primeira parte do evangelho e a segunda, Marcos anuncia o tema dominante: Jesus está sozinho com os
discípulos a caminho (8,27b). A decisão interior de Jesus de enfrentar o judaísmo em seu centro político e
religioso, Jerusalém, é evidenciada pelo motivo da caminhada ou do caminho, o qual ritma, como um
comentário musical temático, os momentos salientes desta secção: 8,27b; 10,17.32.52.
Na caminhada rumo a Jerusalém, 10,1.32, Jesus é acompanhado pelo grupo dos discípulos, que de vez em
quando se abre para deixar ver, sobre o fundo, a multidão. Jesus endereça agora aos discípulos um ensino
particular, que tem como tema-guia o significado de sua caminhada rumo à morte. Os discípulos não só são
chamados a compreender o projeto do reino; agora devem aderir e envolver-se no destino de Jesus. Só assim,
seu projeto messiânico e sua pessoa podem se revelar a eles em toda a sua profundidade.
Portanto, a estrutura que sustenta estes três capítulos é constituída pelos três anúncios da morte e
ressurreição: 8,31-33; 9,31-32; 10,32-34. Cá e lá encontram-se outros anúncios ou referências à morte
violenta, porém não tão explícitos e marcados como os três mencionados acima. Além disso os três anúncios
são formulados segundo a linguagem usada pelos cristãos das primeiras comunidades para expressar a sua fé
em Jesus morto e ressuscitado. Em poucas palavras, eles são pequenos resumos da fé cristã, uma síntese do
Querigma primitivo. Jesus se autodefine nestes anúncios como o Filho do Homem que, através da
humilhação e da morte, chega à glória e à vida plena. A designação de Filho do Homem, muito arcaica, não
mais cm uso na comunidade de Marcos, conserva ainda o timbre das palavras de Jesus. Ela é muito apta para
dar um conteúdo mais genuíno à designação mais conhecida e corrente de Cristo, com a qual Pedro proclama
Jesus em Cesaréia de Filipe, 8,24. Os três anúncios da morte e ressurreição, embora dispostos cm forma
progressiva ou em crescendo, são articulados no contexto de forma igual. Ao anúncio segue-se a reação dos
discípulos: escândalo (8,32-33), incompreensão e medo (9,32; 10,35-40). Apesar disso, Jesus desenvolve seu
ensinamento sobre a morte e ressurreição, derivando dele consequências para a vida dos discípulos ou para a
comunidade: participação em seu destino de morte e ressurreição, 8,34-9,1; acolhimento, serviço e
autodoação na comunidade- 9,35-37; 10,42-45. A esta estrutura e a este clima espiritual, caracterizados pelo
tríplice anúncio, Marcos adaptou o outro material narrativo ou de ensinamento. A narração da
transfiguração, 9,2-8, e o diálogo seguinte com os três discípulos, 9,9-13, servem como comentário e
confirmação do primeiro anúncio da morte após a proclamação messiânica de Pedro; a cura do menino
epiléptico após a descida da montanha da transfiguração (9,14-29) sublinha o poder de Jesus que domina e
vence o poder de morte; a coleção de sentenças em forma concatenada, no c. 9, é uma ampliação da
instrução aos discípulos sobre a tolerância e o acolhimento (9,38-41); sobre o escândalo ou crise de fé
provocada e suportada, 9,41-47; sobre o espírito que deve caracterizar os discípulos a de guardar a paz na
comunidade, 9,48-50. Também as instruções seguintes, na primeira parte do c. 10, esclarecem três temas que
interessam o comportamento prático dos discípulos ou dos membros da comunidade: o matrimônio como
possibilidade de empenho definitivo do amor, 10,1-12; o papel e valor das crianças na comunidade, 10,13-
16; o problema da posse dos bens, 10,17-31.
O último episódio desta secção, a cura de Bartimeu, o cego de Jericó,10,46-52, corresponde
simetricamente à história do cego de Betsaida, 7,22-26: ele resume e fecha a secção e antecipa a nova (cc. 10
e 11). Graças à instrução de Jesus, os discípulos, incapazes de compreender e de ver seu destino de morte e
ressurreição, porque contrária a seus esquemas humanos e seus preconceitos religiosos, recebem agora o
dom da visão e podem assim seguir Jesus, como cego curado (10,52), no caminho que leva a Jerusalém,
rumo à morte e ressurreição.

A proclamação messiânica de Pedro em Cesaréia de Filipe 8,27-30


(Mt 16,13-20; Lc 9,18-21)

27 Jesus partiu então com os seus discípulos para as aldeias


de Cesaréia de Filipe; e no caminho interrogava os seus
discípulos, dizendo: Quem dizem os homens que eu sou?
28 Responderam-lhe: Uns, João, o Batista, outros, Elias 6,14 15

5
outros, um dos profetas.
29 Então perguntou-lhes: Mas vós, quem dizeis que eu sou? Jo 6,69
Pedro respondeu: Tu és o Cristo.
30 E lhes ordenou de não falar com ninguém a seu res- 9,9
peito.

O diálogo ou confronto direto de Jesus com os discípulos nas cercanias de Cesaréia de Filipe constitui o
ponto de divisão do evangelho de Marcos. A progressiva revelação da identidade de Jesus aos discípulos dos
capítulos precedentes alcança aqui seu ponto alto. Jesus se acha nos confins setentrionais da Palestina, na
redondeza da cidade que o tetrarca Herodes Filipe, nos primeiros anos da era cristã, tinha mandado construir
e à qual tinha posto o nome de Cesaréia. em honra de César Augusto, com o acréscimo de Filipe, a fim de
distingui-la da outra cidade situada na costa mediterrânea e chamada também Cesaréia (marítima), ou Torre
de Estratão. Neste ambiente, longe da multidão, Marcos coloca o breve diálogo de Jesus com os discípulos.
A primeira pergunta permite a Marcos relembrar a opinião do povo já relatada antes da secção do pão,
6,14-15. Jesus, como o Batista, pertence à serie das grandes personagens da tradição bíblica. À opinião do
povo, Marcos contrapõe a tomada de posição dos discípulos: Mas vós, quem dizeis que eu sou? Agora os
discípulos se encontram diante do paradoxal projeto do Reino no discurso em parábolas, 4,1-34. À sua
incompreensão tinha correspondido a paciente explicação e instrução de Jesus. Eles se tinham deparado com
as manifestações prodigiosas do poder de Jesus sobre as forças desencadeadas do mar. Então tinha surgido
neles a interrogação: Quem é então este a quem até o vento e o mar obedecem? Enfim, o último grande
gesto, dos pães no deserto, devia iluminar os discípulos e abrir a sua consciência à compreensão. A pergunta
explícita de Jesus agora sugere a perspectiva certa para uma resposta a todas as interrogações e todas as
incompreensões precedentes. Não se trata de compreender uma doutrina ou um discurso sobre Deus e sua
ação, mas de encontrar-se com uma pessoa concreta. Os discípulos não podem classificar Jesus entre os
modelos tradicionais, já confeccionados. Isto pode bastar para o povo, numa pesquisa de opinião pública.
Mas eles estão demasiadamente envolvidos no destino de Jesus para responder de maneira não-
comprometida.
A resposta de Pedro, em nome de todo o grupo, segundo a perspectiva de Marcos, tem esta função: os
discípulos tomam posição no que diz respeito ao papel e à identidade verdadeira de Cristo: Tu és o Messias,
em grego Christos. Para os leitores cristãos do evangelho de Marcos é uma fórmula familiar, que irá assumir
toda a sua consistência e ressonância profunda após a experiência de páscoa. O título Christos, colocado já
no começo do evangelho, 1,1, ressoará solene no momento decisivo da confrontação de Jesus com a
autoridade judaica, quando a ele mesmo será posta a pergunta: És tu o Messias (Christos), o Filho do
Bendito?, Mc 14,61. A atual resposta de Pedro, embora ainda não iluminada pela fé pascal, está na linha da
fórmula da fé Cristã. Jesus é o enviado definitivo de Deus, o cumprimento de todas as esperanças de
libertação, contraponto i) história de Israel. A ordem de calar-se dada por Jesus não corrige nem rejeita a
resposta de Pedro, mas sublinha sua seriedade e o compromisso dela. Além disso, uma indiscriminada
propaganda deste título poderia pôr em movimento as ambíguas expectativas messiânico-nacionalistas das
massas populares. Isto representaria não só um risco de fracasso para o projeto originário de Jesus,
provocando a repressão violenta da potência ocupante, Roma, mas seria o mais clamoroso mal-entendido a
respeito de sua identidade. Deve-se esperar a experiência pascal para dar a resposta à pergunta de Jesus. Por
isso, Marcos imediatamente acrescenta à proclamação de Cesaréia o primeiro resumo ou sumário do
querigma cristão em forma de profecia, 8,31-33.

Jesus anuncia a sua morte e ressurreição 8,31-33


(Mt 16,21-23; Lc 9,22)

31 E começou a explicar-lhes que era necessário que o Fi- 9,31; 10,32 M4


lho do Homem sofresse muito e fosse rejeitado pelos

6
anciãos e pelos chefes dos sacerdotes e pelos escribas,
que fosse morto e depois de três dias ressuscitasse.
32 Ele dizia isto abertamente. E Pedro, tomando-o a parte,
começou a recriminá-lo.
33 Mas Jesus, voltando-se e vendo os seus discípulos, repreendeu
Pedro e disse: Afasta-te de mim, Satanás! Tu
não pensas como Deus, mas como os homens.

É o primeiro dos três anúncios da paixão que dão o ritmo a esta seção do Evangelho de Marcos (cf. 9,31-
32; 10,32-34). Na atual composição, este primeiro discurso sobre o Filho do Homem sofredor e glorioso
constitui um comentário à proclamação messiânica de Pedro, assim como, perante o sinédrio, a aceitação da
dignidade messiânica por parte de Jesus será comentada pelas palavras sobre o Filho do Homem à direita de
Deus (cf. 14,62). Inicia
aqui a instrução explícita e franca acerca do destino de Jesus (8,32), que deve levar os discípulos à adesão
radical a seu seguimento. A linguagem tem semelhanças com a terminologia usada na pregação e na
catequese da comunidade: ensinar, dizer a palavra. Também o conteúdo deste ensinamento ó típico do
querigma cristão: a morte e a ressurreição de Jesus (8,31b). Porém através das fórmulas tradicionais, que
refletem a experiência pascal cristã, pode-se ouvir de novo o eco da originária interpretação que Jesus deu de
sua morte violenta. Ele utiliza, para este fim, a imagem do Filho do Homem. Este símbolo ou modelo é
familiar ao ambiente apocalíptico, do qual o livro de Daniel é o texto bíblico mais representativo.
Ora, na tradição apocalíptica, o Filho do Homem é concebido como o agente da libertação e do
julgamento salvífico definitivo de Deus na história. Em particular na visão de Dn 7,13, o Filho do Homem,
contraposto às potências políticas representadas pelas quatro bestas, Dn 7,1-8 obtém de Deus o poder e o
reino definitivo, 7.13-14. Mas isto acontecerá após as perseguições que terão golpeado os “ santos do
Altíssimo”, isto é, os fiéis de Deus, dos quais o Filho do Homem é o representante e o símbolo (cf. Dn
7,18.21.17).
O destino do Filho do Homem, em alguns textos judaicos, assume os traços característicos do Servo
sofredor que, após muitas tribulações e humilhações, volta a ver a luz e é glorificado por Deus (Is 53,3.11-
12). Ora, segundo Marcos 8,31, Jesus se identifica com o destino daquela figura, a fim de fazer que seus
amigos entendam a novidade de seu projeto messiânico. À luz desta tradição bíblica acerca do Filho do
Homem, do Servo sofredor e do justo perseguido mencionado nos Salmos, Jesus compreende que seu fim
violento não é um incidente absurdo e desagradável, mas faz parte da lógica do projeto de Deus. Ele é
necessário, não por força de uma fatalidade histórica ou de uma cega vontade divina, mas para o
cumprimento da libertação definitiva ou escatológica anunciada nas Escrituras, numa situação de violência
organizada na base de despotismo. Com efeito, a rejeição e a morte de Jesus serão decididas de forma
pública e solene pelo sinédrio, onde os 71 membros representam as três correntes do poder judaico, a
aristocracia leiga, os anciãos, e sacerdotal, famílias sacerdotais, os escribas, peritos teólogos-juristas, guias
do povo.
Mas à luz da grande tradição bíblica, Jesus pode anunciar também a esperança na vitória sobre o
sofrimento e a morte graças à fidelidade de Deus. Deus intervirá no seu destino após breve tempo, após três
dias, isto é, no momento decisivo, de maneira que o destino de todos os justos perseguidos, dos sofredores
de toda a história bíblica tenha finalmente uma garantia de esperança. A fórmula de Marcos, depois de três
dias ressuscitaria, mesmo se reflete a maneira de falar cristã, traduz a interpretação originária que Jesus deu à
sua esperança em frente à morte. A reação de Pedro diante da nova e surpreendente revelação de Jesus
contrasta com a sua precedente proclamação messiânica. Também este é um tema constante: a cada anúncio
de Jesus em relação a seu destino messiânico, responde a reação negativa do grupo. Esta não deriva tanto da
incapacidade de compreender o destino sofredor do Messias, como Servo sofredor ou justo perseguido,
quando do medo de ficar envolvidos com o seu destino. Para os discípulos e a comunidade que ouve o

7
evangelho de Marcos, a pergunta sobre se o Messias tradicional de Israel pode ser rejeitado, humilhado e
morto não é uma questão teórica ou doutrinai. É uma questão que exige uma decisão radical: o projeto de
Deus passa agora por este caminho. Toda alternativa faz parte do contraprojeto, que só pode ser sugerido
pelo poder adversário: o Satanás.
A tentação de um messianismo alternativo ao da morte e ressurreição assumiu para Jesus a forma mais
dramática e triste: o medo, a dúvida e a perplexidade refletidos no rosto e na voz de Pedro e seus discípulos.

Como seguir a Jesus 8,34-9,1


(Mt 16,24-28; Lc 9,23-27)

34 E, chamando a si a multidão juntamente com seus discípulos, Jo 12,26,


disse: Se alguém quiser vir após mim, renuncie Mt, 10,38;
a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Lc 14,27
35 Pois aquele que quiser salvar a sua vida irá perdê-la, mas Mt 10,39);
aquele que perder sua vida por causa de mim e do evangelho Lc 17,33;
irá salvá-la. Jo 12, 25
36 Que aproveita ao homem ganhar o mundo inteiro, se
depois perder a sua vida?
37 Com efeito, com que poderá ele comprar de volta a sua
vida?
38 Se alguém se envergonhar de mim e de minhas palavras, Mt 10,33;
nesta geração adúltera e pecadora, também o Filho Lc 9,26;
do Homem se envergonhará dele, quando vier na glória 2Tm 2,12
de seu Pai com os santos anjos.
9.1 E dizia-lhes: Em verdade vos digo que alguns dos presentes 13,30
não sofrerão a morte até que vejam chegar o reino
de Deus com poder.

Com atenta sensibilidade espiritual, o evangelista faz seguir a nova revelação do destino de Jesus, 8,27-
33, as conseqüências para a vida dos discípulos, reunindo uma série de sentenças acerca do seguimento 8,34-
37. A trajetória e o destino de Jesus prolongam-se agora na comunidade dos discípulos que vivem do
compromisso evangélico. Mas o olhar é dirigido ao futuro ao Filho do Homem que vem em veste de juiz
definitivo para estabelecer o Reino na sua plena manifestação salvífica, 8,38-9,1. Que se trata de um trabalho
de montagem, com peças originárias retocadas cá e lá por Marcos, pode se entender pelas seguintes
observações: 6 a introdução geral torna-se mais pesada pelo acréscimo com seus discípulos; vir após mim. . .
e siga-me (8,34b) é uma tautologia inconcebível na linguagem de Jesus; a expressão por causa do evangelho
(8,35b) é um acréscimo que reflete o dicionário e a teologia de Marcos; a fórmula de ligação e dizia-lhes
(9,1) é característica do estilo de Marcos para introduzir um trecho novo, ou estranho em relação à sua fonte.
A atenção dedicada ao estudo literário do evangelista ajuda a descobrir a finalidade que ele persegue
nesta coleção de ditos em relação ao discipulado. O ensinamento é dirigido aos discípulos, mas no pano de
fundo percebe-se a multidão. Em outros termos, pode-se dizer que, se as preocupações de Marcos se voltam
para os discípulos, o ensinamento de Jesus tem sempre valor público e universal. Os discípulos, porém,
tendo agora ouvido a revelação do projeto messiânico nos termos do querigma pascal, são os primeiros a
empenhar-se pessoalmente pelo seguimento de Jesus. O primeiro dito apresenta três condições para ser
discípulo ou seguir Jesus:
1. O total “ descentramento” ou liberdade de si mesmo e de seus interesses: renunciar a si mesmo;

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2. esta liberdade de si mesmo deve chegar ao ponto de enfrentar com coragem e decisão o “ linchamento
social” : tome a sua cruz; 7
3. isto é possível, e é também a conseqüência lógica do pleno envolvimento no destino do Cristo morto e
ressuscitado. O segundo dito, 8,35, quer ser uma motivação e comentário do primeiro.
O paradoxo cristão, cujo modelo é a morte e ressurreição de Jesus e se prolonga na vida do discípulo, é
formulado mediante uma sentença que se assemelha ao modo semítico-aramaico de falar. Este modo de
pensar se acha já na tradição bíblica, Sb 3,2-4, e nos ditos rabínicos e dos estóicos, mas a novidade é
constituída pelo motivo: por causa de mim e do evangelho. Também a psicologia moderna reconhece que o
dinamismo que leva à maturidade o salva da neurose é o descentramento e a atitude oblativa. A vida
resumida na personalidade consciente e livre não é um bem para guardar para si, e sim para gastar. Mas
somente o empenho e a solidariedade radical com o Cristo e sua tarefa histórica, que se prolonga na
comunidade, tornam possível ao homem este dinamismo paradoxal de salvação. Não só o tornam possível,
mas lhe oferecem o modelo e a garantia histórica: Jesus, que fez oblação de si mesmo e de sua vida,
reencontra-a em plenitude no esplendor da ressurreição. A mesma lei e o mesmo empenho valem para o
discípulo, que deve continuamente confrontar a sua fidelidade a Jesus e ao evangelho com as perseguições e
com as resistências interiores.
Os dois ditos que seguem, 8,36-37, são uma ampliação do tema dos versículos precedentes. A vida plena
e a realização do autêntico projeto pessoal na fidelidade a Cristo são o valor supremo, diante do qual nada
valem todos os bens que podem ser representados pelo termo “mundo” , cf. F1 3,7-8."
Este tema é expresso com um provérbio popular, v. 36, e com uma sentença que lembra o tema bíblico do
Salmo 49,8-10 (v. 37): “Ninguém pode de modo algum remir-se, nem pagar a Deus o preço de seu resgate;
mesmo se ele levantar o preço de sua pessoa, será sempre insuficiente para viver sem fim e nunca ver a
cova” .
É contra o pano de fundo destes ditos que se situa o ensinamento evangélico a respeito da ambigüidade da
riqueza e do risco da alienação ou escravidão na acumulação dos bens (cf. 10,23-25 e par.). Seguem agora
duas sentenças que evocam o horizonte escatológico da existência dos discípulos. A sentença ou lógion a
respeito do “ Filho do homem” , v. 38, é dirigida aos discípulos que devem enfrentar as perseguições:, ou o
processo por causa de sua fidelidade a Jesus e ao evangelho, v. 35.''
A tomada de posição perante Jesus e seu evangelho hoje decide o próprio destino definitivo, porque o
Cristo virá no papel de juiz escatológico. Também a imagem do Filho do Homem que vem num cenário de
julgamento, participando da glória e majestade de Deus, deve-se ao ambiente apocalíptico tradicional
inaugurado por Dn 7,9-10.13-14. A novidade e originalidade evangélica consiste em identificar esta figura
misteriosa do Filho do Homem com Jesus e seu papel salvífico. Além disso, Jesus é o Filho do Homem que
decide o destino salvífico de cada homem, porque é o Filho do Pai, com o qual tem uma relação única: (Ele)
virá na glória do seu Pai (8,38b; cf. 13,32).
Marcos acrescentou aqui outro lógion, que comenta e completa o precedeu te e serve de transição ao
episódio seguinte, a transfiguração sobre a montanha. Seu sentido geral, apesar das dificuldades das
afirmações particulares, é suficientemente claro: a vinda certa do reino de Deus, com poder, deve ser motivo
de esperança e encorajamento para os discípulos. As dificuldades surgem quando nos questionamos: Jesus
está esperando ou prometendo a vinda gloriosa do reino a seus contemporâneos? Qual é o sentido de na
glória de seu Pai? A vinda final? A ressurreição? A transfiguração?
Antes de mais nada deve-se reconhecer a honestidade da tradição evangélica que conservou uma sentença
de Jesus, não obtsante sua obscuridade e a contradição com a experiência histórica. Segundo: a linguagem
usada é típica ila tradição profética e apocalíptica, portanto a interpretação deve levar em conta esta
perspectiva e mentalidade.10 Quando os profetas querem pôr em evidência a seriedade da resposta humana
ao apelo de Deus ou a certeza da intervenção divina, eles sobrepõem as perspectivas de tempo e espaço:
Deus está aqui agora!

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As interpretações propostas na tradição exegética, que começou desde as primeiras comunidades cristãs
— interpretações que identificam a vinda do reino de Deus com poder quer com a ressurreição-pentecostes,
quer com a parusia-vinda final — são todas legítimas e, justamente por isso, não exclusivas.
Com efeito, o Reino se revela com poder em todos os três eventos mencionados acima. Na sentença de
Jesus o acento é posto sobre a seriedade ou urgência da decisão e sobre o contraste entre o reino de Deus que
se revela de forma obscura e embrionária nos sinais, nos gestos e palavras de Jesus, e a sua manifestação
definitiva. A posição que Marcos reservou para esta sentença, no centro de seu evangelho, após a revelação
histórica do projeto de Jesus culminante em sua morte e ressurreição, nos convida a não congelar o reino de
Deus em um venerando passado de lembranças, e a não afastá-lo em um evanescente e fantasioso futuro,
mas a tê-lo presente, para nos deixar plasmar pela sua força crítica e estimulante. É no presente da vida dos
discípulos que O Filho do Homem continua seu destino de morte e ressurreição; e no presente histórico da
comunidade, o Reino-com-poder determina a seriedade do empenho e da decisão.

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