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At 9,1-19
1. Introdução ao tema
A narrativa joga com uma função programática, porque reorienta bruscamente a atividade do
“perseguidor dos cristãos” para fazer dele o vetor de uma missão universal.
O exame do contexto narrativo é instrutivo do ponto de vista do narrador: a conversão de Saulo é inserida
em uma sequência narrativa aberta no capítulo 8 com a perseguição à igreja de Jerusalém depois do martírio
de Estêvão (8,1-3). O movimento da diáspora cristã em Samaria, que segue (8,4), chega até o encontro entre
Pedro e Cornélio, iniciando assim uma longa sequência que vai de 8,4 a 11,30.
At 9 está no vértice de uma série de conversões: Simão, o mago de Samaria (8,4-25), depois o eunuco
etíope (8,26-40), depois Saulo. Temos uma graduação de dificuldade no acolhimento da graça: primeiro um
mago curandeiro, depois um oficial da corte da Etiópia, enfim Saulo cheio de raiva contra os cristãos. A
narrativa torna-se cada vez mais instigante, chegando ao ápice com Saulo. Assim se mostra como Deus alarga
os horizontes do cerco dos eleitos; o passo decisivo será realizado com o encontro entre Pedro e Cornélio (10,1
– 11,18), que inaugura o acesso dos não judeus à salvação.
O tema que domina a trama da sequência não é a exemplaridade da fé dos convertidos: não são exemplares.
O tema comum é a iniciativa surpreendente de Deus na escolha dos convertidos: Simão, o mago ávido por
dinheiro; um mutilado etíope excluso da Aliança; Saulo, o perseguidor; Cornélio, o impuro.
A entrada em cena de Saulo é um momento importante do livro dos Atos dos Apóstolos. A tal ponto que
os Atos contam o mesmo episódio três vezes: At 9, 22 e 26.
Lucas tinha já apresentado brevemente o personagem Saulo em At 7,58 e 8,1a.3 como adversário dos
seguidores de Jesus. Em At 9 apresenta o encontro “perturbador” entre Saulo e o Ressuscitado.
À narrativa da sua conversão (9,1-19a) segue a sua primeira atividade de evangelizador (a Damasco: 9,19b-
25); e a Jerusalém (9,26-31).
2. O GÊNERO LITERÁRIO
- Qual título dar à narrativa de At 9,1-19? Em geral se fala de “conversão de Paulo”. Mas se trata
verdadeiramente de uma “conversão”? Saulo é um homem fiel no Deus de Jesus; não é um pagão, e a categoria
de “conversão” não parece apropriada para o seu caso. Alguns preferem dizem da “Iluminação de Paulo”: há
um luz que o envolve e o ilumina sobre a verdadeira identidade de Jesus de Nazaré. Outros ainda falam de
“Vocação” e a narrativa apresenta certamente elementos do gênero vocacional.
O certo é que Lucas usa vários elementos que se encontram nas teofanias do Antigo Testamento, a saber, a
luz, a voz, o cair no chão, o diálogo entre a voz celestial e o personagem atingido pela aparição. Isso faz com
que seja difícil dizer o que verdadeiramente aconteceu no caminho de Damasco e como Jesus se manifestou a
Paulo, porque a narrativa é redigida segundo os moldes do gênero literário.
2.1 ELEMENTOS TEOFÂNICOS
1. A luz é um traço bastante corriqueiro nas manifestações teofânicas veterotestamentárias. O hagiógrafo
menciona a “glória” luminosa do Senhor que pousa sobre o monte Sinais na hora da aliança (Ex 24,15) e o
“clarão” junto com o “fogo” de onde irradiam “cintilações” na visão do trono do Senhor por parte de Ezequiel
(Ez 1,4.13.27). De modo semelhante, no Novo Testamento, a glória do Senhor envolve os pastores de luz no
nascimento de Jesus (Lc 2,9) e brilha no episódio da transfiguração de Jesus “tornando-se o seu rosto
resplandecente como o sol e suas vestes alvas como a luz” (Mt 17,2).
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Atos dos Apóstolos – Faculdade Dehoniana – 2020.2 – Prof. P. Claudio Buss,scj
2. A voz que vem do céu é também um traço característico dos relatos teofânicos (Ez 1,25; 10,5; 43,6; Dt
4,12; 5,23; Nm 7,89; 2Sm 22,14). O próprio Lucas faz menção a ela no relato do batismo de Jesus, na
transfiguração e no episódio de Cornélio (Lc 3,22; 9,35; At 10,13.15).
3. A queda por terra, mencionada em relação a Paulo, é outro pormenor que se encontra em alguns relatos
bíblicos para indicar a fraqueza do ser humano perante a manifestação transcendente. É o caso de Ezequiel,
de Daniel.
4. O diálogo entre o Ressuscitado e Paulo também faz parte do gênero literário das manifestações de
Deus. Nele Jesus dirige-se a Paulo repetindo duas vezes o nome dele e perguntando-lhe por que o está
perseguindo. Por sua vez, Paulo quer saber a identidade de quem o está chamando. Jesus se identifica e ordena
a Paulo que entre na cidade de Damasco, onde conhecerá a vontade de Deus. G. Lohfink e outros autores
notam que esta sequência de elementos se encontra em alguns relatos do AT, em particular em Gn 46,2-4,
quando Deus, antes da saída do Egito, por meio de uma visão noturna, promete a Jacó fazer dele uma
grande nação (cf. Gn 22,2-1.11-12; Ex 3,4-6).
À luz desses elementos torna-se evidente que para apresentar o encontro do Ressuscitado com Paulo no
caminho de Damasco o evangelista se inspira nos modelos literário bastante difundidos no Antigo Testamento.
Não é possível, portanto, dizer o que acorreu no episódio da conversão de Paulo, mas somente representa-lo
por meio de fórmulas estereotipadas da tradição.
6ª observação: (v. 7): o leitor tem presente que Saulo está acompanhado. Na antiguidade, por razões de
segurança, não se viaja sozinho. Estão mudos pelo espanto, de acordo com o texto. Escutam a voz, mas não
veem nada. Na narrativa, a presença e o ouvir destes asseguram a objetivamente do acontecimento; ao mesmo
tempo, a sua “falta de visão” demonstra a estranheza à experiência espiritual reservada unicamente a Saulo
(Marguerat, Atti, 376)
7ª observação: Como efeito da aparição, a cegueira de Saulo não deve ser compreendida como um punição,
mas como o símbolo do caminho de fé, que leva o interessando das trevas à luz no momento do batismo. Ter
necessidade de ser guiado caracteriza o estado de total impotência...
Com o v. 9 se conclui a primeira parte da narrativa: Saulo está cego e jejua (lugar comum na literatura
bíblica: cf. Ex 34,28; Dt 9,9). O jejuar por três dias por ser entendido, segundo o uso eclesial, como preparação
para receber o batismo. É o sinal de Jonas: é o símbolo do mistério pascal no qual Saulo vem imerso para
readquirir a visão autêntica e reviver para uma outra vida. A cegueira (Is 43,8) contém a reprovação de Deus
a um povo que tem olhos, mas não vê, ouvidos, mas não ouve: se trata de Israel.
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Interessante o que pontua R. Fabris: “Lucas obtém dois resultados: por um lado, mostra que a atividade
missionária de Paulo se origina em Jesus, mas se realiza na continuidade histórica com a Igreja; por outro,
ressalta a extraordinária ação de Deus: aquele que procurava os cristãos em Damasco para obriga-los a renegar
o Messias Jesus deve agora procura-los para fazer-se guiar no novo caminho, no seguimento de Jesus, o
Senhor” (Fabris, Atos, 188).