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Atos dos Apóstolos – Faculdade Dehoniana – 2020.2 – Prof. P. Claudio Buss,scj


A CONVERSÃO DE SAULO/PAULO

At 9,1-19

1. Introdução ao tema
A narrativa joga com uma função programática, porque reorienta bruscamente a atividade do
“perseguidor dos cristãos” para fazer dele o vetor de uma missão universal.
O exame do contexto narrativo é instrutivo do ponto de vista do narrador: a conversão de Saulo é inserida
em uma sequência narrativa aberta no capítulo 8 com a perseguição à igreja de Jerusalém depois do martírio
de Estêvão (8,1-3). O movimento da diáspora cristã em Samaria, que segue (8,4), chega até o encontro entre
Pedro e Cornélio, iniciando assim uma longa sequência que vai de 8,4 a 11,30.
At 9 está no vértice de uma série de conversões: Simão, o mago de Samaria (8,4-25), depois o eunuco
etíope (8,26-40), depois Saulo. Temos uma graduação de dificuldade no acolhimento da graça: primeiro um
mago curandeiro, depois um oficial da corte da Etiópia, enfim Saulo cheio de raiva contra os cristãos. A
narrativa torna-se cada vez mais instigante, chegando ao ápice com Saulo. Assim se mostra como Deus alarga
os horizontes do cerco dos eleitos; o passo decisivo será realizado com o encontro entre Pedro e Cornélio (10,1
– 11,18), que inaugura o acesso dos não judeus à salvação.
O tema que domina a trama da sequência não é a exemplaridade da fé dos convertidos: não são exemplares.
O tema comum é a iniciativa surpreendente de Deus na escolha dos convertidos: Simão, o mago ávido por
dinheiro; um mutilado etíope excluso da Aliança; Saulo, o perseguidor; Cornélio, o impuro.
A entrada em cena de Saulo é um momento importante do livro dos Atos dos Apóstolos. A tal ponto que
os Atos contam o mesmo episódio três vezes: At 9, 22 e 26.
Lucas tinha já apresentado brevemente o personagem Saulo em At 7,58 e 8,1a.3 como adversário dos
seguidores de Jesus. Em At 9 apresenta o encontro “perturbador” entre Saulo e o Ressuscitado.
À narrativa da sua conversão (9,1-19a) segue a sua primeira atividade de evangelizador (a Damasco: 9,19b-
25); e a Jerusalém (9,26-31).
2. O GÊNERO LITERÁRIO
- Qual título dar à narrativa de At 9,1-19? Em geral se fala de “conversão de Paulo”. Mas se trata
verdadeiramente de uma “conversão”? Saulo é um homem fiel no Deus de Jesus; não é um pagão, e a categoria
de “conversão” não parece apropriada para o seu caso. Alguns preferem dizem da “Iluminação de Paulo”: há
um luz que o envolve e o ilumina sobre a verdadeira identidade de Jesus de Nazaré. Outros ainda falam de
“Vocação” e a narrativa apresenta certamente elementos do gênero vocacional.
O certo é que Lucas usa vários elementos que se encontram nas teofanias do Antigo Testamento, a saber, a
luz, a voz, o cair no chão, o diálogo entre a voz celestial e o personagem atingido pela aparição. Isso faz com
que seja difícil dizer o que verdadeiramente aconteceu no caminho de Damasco e como Jesus se manifestou a
Paulo, porque a narrativa é redigida segundo os moldes do gênero literário.
2.1 ELEMENTOS TEOFÂNICOS
1. A luz é um traço bastante corriqueiro nas manifestações teofânicas veterotestamentárias. O hagiógrafo
menciona a “glória” luminosa do Senhor que pousa sobre o monte Sinais na hora da aliança (Ex 24,15) e o
“clarão” junto com o “fogo” de onde irradiam “cintilações” na visão do trono do Senhor por parte de Ezequiel
(Ez 1,4.13.27). De modo semelhante, no Novo Testamento, a glória do Senhor envolve os pastores de luz no
nascimento de Jesus (Lc 2,9) e brilha no episódio da transfiguração de Jesus “tornando-se o seu rosto
resplandecente como o sol e suas vestes alvas como a luz” (Mt 17,2).
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2. A voz que vem do céu é também um traço característico dos relatos teofânicos (Ez 1,25; 10,5; 43,6; Dt
4,12; 5,23; Nm 7,89; 2Sm 22,14). O próprio Lucas faz menção a ela no relato do batismo de Jesus, na
transfiguração e no episódio de Cornélio (Lc 3,22; 9,35; At 10,13.15).
3. A queda por terra, mencionada em relação a Paulo, é outro pormenor que se encontra em alguns relatos
bíblicos para indicar a fraqueza do ser humano perante a manifestação transcendente. É o caso de Ezequiel,
de Daniel.
4. O diálogo entre o Ressuscitado e Paulo também faz parte do gênero literário das manifestações de
Deus. Nele Jesus dirige-se a Paulo repetindo duas vezes o nome dele e perguntando-lhe por que o está
perseguindo. Por sua vez, Paulo quer saber a identidade de quem o está chamando. Jesus se identifica e ordena
a Paulo que entre na cidade de Damasco, onde conhecerá a vontade de Deus. G. Lohfink e outros autores
notam que esta sequência de elementos se encontra em alguns relatos do AT, em particular em Gn 46,2-4,
quando Deus, antes da saída do Egito, por meio de uma visão noturna, promete a Jacó fazer dele uma
grande nação (cf. Gn 22,2-1.11-12; Ex 3,4-6).
À luz desses elementos torna-se evidente que para apresentar o encontro do Ressuscitado com Paulo no
caminho de Damasco o evangelista se inspira nos modelos literário bastante difundidos no Antigo Testamento.
Não é possível, portanto, dizer o que acorreu no episódio da conversão de Paulo, mas somente representa-lo
por meio de fórmulas estereotipadas da tradição.

3. QUESTÕES DE HISTORICIDADE DO RELATO


Cinco observações:
i. Baseado sobre o testemunho de Paulo nas suas cartas (Gl 1,13-16; Fl 3,2-7), a existência de uma
conversão espiritual importante na vida de Saulo de Tarso é praticamente incontestável.
ii. Podemos perceber entre a narração de Lucas e do próprio Paulo nas suas cartas, referente ao mesmo
acontecimento (Damasco), perspectivas diferentes. Em Lucas os objetivos são histórico-teológicos; em
Paulo são autobiográficos e querigmáticos (R. Fabris, Atos, 186).
iii. Interessante perceber, no nosso caso, que Lucas tende a aumentar a função dos “Doze” apóstolos como
núcleo privilegiado que funda a continuidade histórica entre o tempo de Jesus e o tempo da Igreja. Paulo,
que não faz parte deste “grupo teológico”, permanece subordinado aos apóstolos e à Igreja de Jerusalém.
Paulo, ainda, é introduzido na Igreja por Ananias, do qual recebe as instruções para o seu futuro trabalho
missionário. (R. Fabris, Atos, 186). Na visão lucana da história da Igreja, Paulo e a sua atividade
missionária constituem um novo elo, aquele que une a Igreja de Lucas – a Igreja dos pagãos
convertidos – com a Igreja primitiva e originária de Jerusalém, a Igreja dos judeus-cristãos.
iv. É interessante ainda perceber como Lucas faz Paulo depender de uma Igreja periférica como Damasco,
através de um personagem que não teve nenhuma função de relevo na organização das primeiras
comunidades (Ananias) e não da Igreja-mãe de Jerusalém (como comumente interpretamos sua
teologia).
v. À luz dos dados cronológicos de Gl 1,13–2,1 e da data aproximativa da Assembléia de Jerusalém no
ano 48/49, a data do acontecimento de Damasco oscila entre os anos 32 e 35.
4. ARTICULAÇÃO DO TEXTO
a) Introdução: vv. 1-2
b) Primeira cristofania (a Saulo): vv. 3-9
1-2: o perseguidor e o seu projeto
3-4a: shock no caminho de Damasco
4b-6: diálogo com o Ressuscitado
7-9: os efeitos do shock: Saulo é conduzido à Damasco
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c) Segunda cristofania (a Ananias): vv. 10-16
10-12: A visão da Ananias
13-16: Diálogo com o Ressuscitado
17-19a: Encontro de Ananias e Saulo
d) Conclusão: encontro entre Saulo e Ananias: vv. 17-19

5. SEMÂNTICA E TEOLOGIA DO TEXTO


a) Introdução (vv. 1-2)
Observações filológicas e teológicas:
1º) O leitor já encontrou Saulo como adversário dos discípulos de Cristo em At 7,58 e em At 8,1. Aqui
vem introduzido como enviado a perseguir nas sinagogas de Damasco aqueles que fugiram de Jerusalém a
motivo da perseguição. Damasco e Antioquia são pontos de referimento fundamental para compreender o
cristianismo das origens.
2º) Nesta cidade, chamada por sua beleza de a “pérola do Oriente”, ou “o olho do deserto”, distante 250
km de Jerusalém, na encruzilhada de grandes caravanas comerciais, havia uma vigorosa colônia de judeus
com sinagogas próprias.
A menção às “cartas para as sinagogas de Damasco”: pode-se supor que a autoridade romana reconhecesse
uma certa jurisdição do Sinédrio sobre os judeus do império no que se referia às questões religiosas. As
“cartas” que Paulo pede ao sumo sacerdote de Jerusalém, mais que mandatos de captura contra os cristãos,
devem ser entendidas como credenciais ou cartas de recomendação para apresentar-se aos presidentes
das sinagogas de Damasco. Estes tinham um certo poder sobre os membros de suas comunidades (Fabris,
Atos, 186).
3º) A menção aos “adeptos do Caminho”: o caminho significa em geral na literatura bíblica a maneira de
viver e agir, a conduta por excelência (cf. Is 30,21; Pr 15,10). Mas, a este sentido abstrato, os Atos, e só
eles, acrescentam um sentido novo: o termo é um dos que designam os cristãos, porque eles seguem o
caminho do Senhor, de Deus, o caminho da salvação (TEB, 2122, nota b).
4º) Todas essas notícias de Lucas sobre a iniciativa audaz e fanática de Paulo servem para criar um eficaz
contraste com o que segue. O perseguidor que se dirige a Damasco para reprimir sem piedade a “heresia
do cristianismo” será transformado em missionário e testemunha do Evangelho de Jesus (Fabris, Atos, 187).
b) Primeira cristofania (vv. 3-9)
1ª observação: Para o relato de aparição, que forma a parte central da seção, Lucas segue o modelo literário
da tradição bíblica com imitações estilísticas e lexicais da Septuaginta. Os elementos característicos do relato
de aparição são: a luz, a voz, a aparição de uma figura celeste e, enfim, a reação do destinatário da revelação.
Mediante a inteligente graduação destes elementos, o narrador obtém um efeito seguro: enfatizar o poder
da iniciativa divina (Fabris, Atos, 187).
2ª observação: Lucas sublinha o caráter inesperado da aparição (v. 3) Aquilo que Saulo vê, segundo Lucas,
é “uma luz do céu”: não diretamente o Ressuscitado, mas a manifestação gloriosa Daquele que agora está
junto de Deus. Lucas, portanto, distingue esta manifestação das aparições do ressuscitado aos Doze antes da
ascensão, assim como quer colocar em evidência a singularidade da aparição de Damasco em respeito às
outras visões do Ressuscitado que Paulo terá depois (cf. 18,9-10; 23,11).
Lucas é preocupado de diferenciar na sua obra as etapas da salvação: entre as aparições do Ressuscitado
antes da ascensão e as visões virão em seguida, Lucas demonstra um tipo particular de epifania: a da
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manifestação fulgurante de Cristo! Diversamente das cristofanias pascais, as aparições no caminho de
Damasco vêm diretamente do “céu” (v. 3b) (Marguerat, Atti, 375).
*Aqui não se fala nem de visão, mas se diz somente que foi “envolvido pela luz”. É Ananias que no v. 17
diz que “Jesus lhe apareceu”, se “fez ver”. O mesmo Paulo, em 1Cor 15,8 fala do que lhe aconteceu sobre a
via de Damasco em termos visuais: “por último entre todos foi visto por mim, como um aborto”.
3ª observação: “Cair” por terra (v. 4a) é a reação normal do homem de fronte a uma manifestação divina
(cf. Ez 1,26-28). Porém, Saulo não se “prostra por terra” (Ez 1,28; Dn 10,9) como uma reação normal na
literatura bíblica diante das aparições teofânicas. Cai por terra, diz o texto: envolvo na luz, Saulo é reduzido
à impotência! (Marguerat, Atti, 375).
4ª observação: vv. 4b-6 (diálogo com o Ressuscitado): segue um modelo conhecido da bíblia hebraica –
“diálogo com uma ‘aparição celeste’”. Temos exemplo na BH – a manifestação de de IHWH a Moisés na
sarça ardente (Ex 3,2-10) e os diálogos divinos com Jacó (Gn 31,11-31; 46,2-3), com um esquema idêntico:
i. A aparição toma a iniciativa e abre o diálogo;
ii. este chama a pessoa pelo nome: “Saul, Saul, porque me persegues”? (o fato de chamar Saulo com o seu
nome aramaico Saul é um efeito de enculturação; a repetição é um modo enfático).
iii. a pessoa reage com uma pergunta: “Quem és tu, Senhor”? (o título “Senhor” aqui não é uma designação
de Jesus; Saulo não identificou a aparição e usa o título geral dado a um ser sobrenatural).
iv. a aparição responde com uma autodesignação: “Eu sou Jesus, é a mim que persegues” (o “Eu sou” é
aqui, como em outras passagens: Lc 21,8; 22,70; 24,39; Jo 6,20.35 etc., uma fórmula de revelação).
v. vem dada uma ordem: “mas levanta-te, entra na cidade e ser-te-á dito o que deves fazer”. (Cf. Marguerat,
Atti, 376).
5ª observação: seguindo o esquema do diálogo, em geral, a ordem ao profeta escolhido é de forma precisa,
como por exemplo: Jacó deve retornar ao país onde está sua família (Gn 31,13); ou mesmo deve descer ao
Egito (Gn 46,3); Moisés, por exemplo, deve conduzir o povo para fora do Egito (Ex 3,10). Porém, o que vem
pedido a Saulo é tanto exigente quanto indeterminado: “Levanta-te, entra na cidade e ser-te-á dito o que deves
fazer” (v. 6): não temos aqui uma vocação, ou um mandato, ou então uma ordem de prosseguir e esperar... A
desconstrução de sujeito perseguidor continua. “O homem que queria encarcerar e deportar, se encontra
dependente, passivo e cego”.

6ª observação: (v. 7): o leitor tem presente que Saulo está acompanhado. Na antiguidade, por razões de
segurança, não se viaja sozinho. Estão mudos pelo espanto, de acordo com o texto. Escutam a voz, mas não
veem nada. Na narrativa, a presença e o ouvir destes asseguram a objetivamente do acontecimento; ao mesmo
tempo, a sua “falta de visão” demonstra a estranheza à experiência espiritual reservada unicamente a Saulo
(Marguerat, Atti, 376)
7ª observação: Como efeito da aparição, a cegueira de Saulo não deve ser compreendida como um punição,
mas como o símbolo do caminho de fé, que leva o interessando das trevas à luz no momento do batismo. Ter
necessidade de ser guiado caracteriza o estado de total impotência...
Com o v. 9 se conclui a primeira parte da narrativa: Saulo está cego e jejua (lugar comum na literatura
bíblica: cf. Ex 34,28; Dt 9,9). O jejuar por três dias por ser entendido, segundo o uso eclesial, como preparação
para receber o batismo. É o sinal de Jonas: é o símbolo do mistério pascal no qual Saulo vem imerso para
readquirir a visão autêntica e reviver para uma outra vida. A cegueira (Is 43,8) contém a reprovação de Deus
a um povo que tem olhos, mas não vê, ouvidos, mas não ouve: se trata de Israel.
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Interessante o que pontua R. Fabris: “Lucas obtém dois resultados: por um lado, mostra que a atividade
missionária de Paulo se origina em Jesus, mas se realiza na continuidade histórica com a Igreja; por outro,
ressalta a extraordinária ação de Deus: aquele que procurava os cristãos em Damasco para obriga-los a renegar
o Messias Jesus deve agora procura-los para fazer-se guiar no novo caminho, no seguimento de Jesus, o
Senhor” (Fabris, Atos, 188).

c) A segunda cristofania (vv. 10-16)


1º) Aspecto introdutório da análise:
A segunda visão é paralela à primeira e o interlocutor agora é um certo Ananías. Hannan-ya, Yhwh faz
graça: o nome evoca a graça que, através Ananias, Deus faz a Saulo. Em At 10 temos também duas visões:
uma de Pedro e outra de Cornélio, colocadas também estas em paralelo. É interessante que num caso como no
outro, Ananias e Pedro, portanto, dois discípulos aderentes à Via, são chamados a fazer um caminho, ou
melhor, são chamados a superar e assumir atitudes contrastantes com a tradição (cf. Grilli, Atti, 65)
2º) Análise do v. 10-12: a visão de Ananias
A mudança de cena é assinalada: “Ora, havia...”. O narrador introduz um novo ator: Ananias (este
personagem faz de mediador entre Saulo e a comunidade judaico-cristã de Damasco). At 22,12 o apresenta
como: “homem piedoso segundo a Lei, de quem davam bom testemunho todos os judeus da cidade”. Aqui sua
identidade é desfocada: “um certo discípulo, chamado Ananias”. Devemos interpretar que este judeu-cristão
de nome Ananias encarna os “discípulos do Senhor” que Saulo perseguia (9,1). Em Ananias, Saulo vai
encontrar o grupo alvo da sua violência.
Temos aqui a comunicação de uma revelação divina através de uma visão, semelhante à primeira cena.
Interessante notar que este gênero é frequente no Antigo Testamento, mas raro no Novo Testamento, com
exceção do nosso livro dos Atos dos Apóstolos e do Apocalipse!
** Observar o gênero vocação - profecia: ... como Abraão em Gn 22,11, Jacó em Gn 31,11, Moisés em Ex
3,4 ou Samuel em 1Sm 3,4, Ananias é chamado por nome e responde à quem o interpela: “Eis-me aqui”! É a
resposta estereotipada de quem se coloca à disposição: ivdou. evgw,( ku,rieÅ
Um mandato a Ananias: impor as mãos sobre Saulo e curá-lo da sua cegueira! Interessante o fenômeno
presente aqui: “uma visão dentro da visão” (vv. 11-12) – ainda a ironia do texto: uma visão na qual Paulo vê
Ananias a impor-lhe as mãos para curá-lo. Saulo, descrito como cego, “vê” Ananias, é um dos paradoxos do
texto: Saulo, em oração (v. 12), vê o que os seus olhos anteriormente não eram capazes de enxergar!
(Marguerat, Atti, 379).
3º) Análise dos vv. 13-16: “O diálogo com o Ressuscitado”!
O Senhor pede a Ananias de socorrer seu “pior inimigo”! De forma irônica a “vítima em potência” é
chamada a salvar o seu torturador!
Atenção ao v. 15!
Saulo vem requalificado em quatro dimensões:
• Saulo agia por própria iniciativa (v. 1-2); agora é um “instrumento por mim escolhido...” (v. 15b).
Saulo é o “instrumento escolhido”: metáfora de Deus-oleiro – o destino de Saulo será inteiramente
modelado pelo fato de ser escolhido por Cristo.
• Saulo “maltratava todos os que invocavam o nome de Jesus” (v. 14b). Agora vem escolhido para
“levar o meu Nome” (v. 15b). Se utiliza aqui o verbo basta,zw (significado de portar, mas também
de tornar célebre, exaltar). A imagem é eloquente: portar o nome de Jesus equivale a torna-lo
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célebre, endossando a identidade de discípulo. Gerhard Lohfink mostrou que no vocabulário cristão
“portar o nome” não pertence tanto à terminologia missionária, mas sobretudo ao testemunho
público.
• Saulo perseguia os cristãos em Jerusalém (v. 13b); agora o espaço do testemunho é sem limites:
“diante das nações pagãs, reis e aos filhos de Israel” (v. 15b). Vem em mente a missão confiada aos
apóstolos em At 1,8. Mas aqui, a sucessão nações – reis – filhos de Israel é curiosa, porque ao
contrário de At 1,8, que vai do particular ao universal, aqui vai do universal ao particular. As nações
serão o campo das missões paulinas. Saulo será o apóstolo dos gentios, ou seja, das nações e reis,
mas terá a consciência da prioridade de Israel.
• Saulo maltratava os santos de Jerusalém (v. 13b); de agora em diante será ele a sofrer. “Eu mesmo
lhe mostrarei quanto lhe é preciso sofrer em favor do meu Nome” (v. 16). O sofrimento é a marca
da condição discipular: o destino do discípulo é a mesma do Mestre; o dei/ paqei/n faz eco ao
evangelho do sofrimento: é necessário que Filho do Homem sofra muito (Lc 9,22; cf. Lc 17,25;
24,26).
4º) Análise dos vv. 17-19: Ananias impõe as mãos sobre Saulo e ele recupera a vista. Nos Atos, a
imposição das mãos tem o sentido da benção, que se concretiza ou no dom do Espírito ou na cura. Aqui
ocorrem ambas. Não temos aqui uma questão de conferir um “ministério”.
É necessário observar a densidade teológica da declaração de Ananias:
a) Chama a Saulo “irmão” (v. 17a), reconhecendo assim como parte de uma mesmo comunidade
de fé;
b) Se apresenta com a “fórmula do mensageiro”, conhecida no AT, que confere legitimidade à sua
intervenção: “O Senhor me enviou” (v. 17b);
c) Interpreta o que aconteceu durante o caminho de Damasco como uma cristofania e lhe
proporciona assim uma leitura da mesma: “Jesus que se fez ver a ti no caminho por onde vinhas”
(v. 17c);
d) Anuncia a recuperação da vista, acompanhado da infusão do Espirito: “para que tu recuperes a
visão novamente e fiques repleto do Espírito Santo” (v. 17d). Neste último motivo transparece
uma simbologia: curar a cegueira é uma metáfora para indicar o acesso a uma revelação; a
simbologia “ver novamente” está presente nos evangelhos como um verbo convencional da
“cura dos cegos”. Retornado à visão, “o convertido da via de Damasco” terá uma outra “visão
da realidade” (v. 18a).
• Saulo recebe o batismo (v. 18b): o batismo em Lucas estará sempre ligado ao dom do Espírito –
inserção na comunidade de fé. A crise suscitada por Jesus na sua vida é superada (os vv. 18-19);
muda em “força vital” a imagem mortífera dos vv. 8-9 (Saulo caído “por terra”).
Interessante dar-se conta que a “conversão de Saulo” não é um evento solitário. Aquele que
impotente pelo “fulgor luminoso” vem trazido à vida pela mediação da Igreja para compreender e
assumir o seu novo caminho existencial. O grande Paulo foi introduzido na comunidade através de
alguns personagens, dos quais Lucas conservou com cuidado os nomes.
Obs.: Lc 4, a missão de Jesus era caracterizada das palavras de Is 61 como um “dar novamente a
vista aos cegos!”
• É surpreendente: Saulo, o perseguidor, torna-se a testemunha perseguida do Cristo, em Damasco e
em Jerusalém (vv. 19b-30) – “metamorfose da identidade de Saulo”.
CONCLUSÕES
A história de Paulo torna-se uma peça de catequese e de meditação espiritual para aqueles cristãos que
vivem nas Igrejas surgidas da missão paulina. Eles podem contemplar a extraordinária ação de Deus que
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realiza o seu projeto por vias imprevisíveis e livres, sacudindo a lógica repetitiva e morta dos sistemas
humanos.
A conclusão da parábola espiritual de Paulo é a mesma de todo o caminho cristão, mesmo que nem sempre
passe pela estrada de Damasco. O encontro com a comunidade crente é o espaço humano dentro do qual se
recebem a iluminação da fé e o dom do Espírito, do qual o rito do batismo é o selo e o sinal visível. Não é por
acaso que Lucas faz coincidir a “cura” de Paulo, que volta a ver por meio da imposição das mãos de Ananias,
com o seu batismo. Neste clima, onde os gestos e momentos materiais adquirem uma transparência de
significado espiritual, não seria de todo extravagante ver na refeição após o batismo, e que devolve energia a
Paulo, uma alusão à eucaristia (cf. 16,34). Deste modo, a participação eclesial de Paulo convertido seria
expressa e realizada na sua forma plena (Fabris, Atos, 189).

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