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Atos dos Apóstolos – 2020.2 – Faculdade Dehoniana – Prof. Pe. Claudio Buss

ÉFESO: COMO PROCEDER DEPOIS DA “DESPEDIDA”


At 20,17-38

Depois do discurso ao judeus em Antioquia da Psídia (13,16-41) e de Atenas ao


mundo cultural pagão (17,22-31), Paulo fala agora à Igreja cristã, em particular aos
responsáveis da comunidade.
O autor escolhe o gênero literário dos “Discursos de Despedida”, que tem suas
características próprias, entre elas: o reunir-se entre as pessoas que tem uma ligação
própria com o protagonista, o anúncio da morte iminente, o olhar sobre a vida passada
e ao futuro dos presentes, a proclamação de inocência e as advertências; enfim, a
oração, a benção, o abraço e as lágrimas. A escolha de tal gênero literário é em linha
com o contexto narrativo de partida e de último encontro, mas também com o intento
do autor sacro de inculcar na Igreja pós-apostólica o dever de fidelidade no confronto
do “depósito” recebido da Igreja apostólica através de seu representante de maior
dignidade, Paulo.
Tendo presente o conteúdo, se pode dividir em duas partes:
• Nos vv. 18-27 – Paulo vem proposto como exemplo de comportamento. Ele
serve de modelo à Igreja pós-apostólica e, sobretudo, é garantia da validade da
Tradição apostólica recebida.
• Os vv. 28-35 oferecem uma parênese que comporta um apelo à vigilância em
vista das falsas doutrinas, que se difundem.
O discurso foi composto pelo autor do livro: este se insere bem no contexto
narrativo e corresponde ao retrato ideal que Lucas dá a Paulo e à situação da
Igreja de seu tempo. O discurso pressupõe o conhecimento do martírio de Paulo, como
sugere a escolha do gênero literário de “discurso de despedida” e a alusão nos vv. 24 e
29.
O discurso de Mileto mostra bem a transformação em curso em uma Igreja na qual
as testemunhas oculares da primeira geração estão mortas e o agir carismático do
Espírito Santo não é mais tão forte e claramente experimentado. A Igreja era chamada
a referir-se à Tradição (parádosis), qual “depósito” recebido, identificada por Lucas
com a doutrina paulina (esta garantida pela unidade do apóstolo com os Doze, da
integridade da sua vida e do seu ensinamento; ensinamento este ainda confirmado por
Deus e pelo martírio).
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Como consequência, Lucas volta sua atenção ao comportamento dos ministros,


apresentando a eles Paulo como modelo:
1. De uma parte deverão “apascentar a Igreja de Deus” (vigiar contra falsas doutrinas,
ensinar e atualizar o depositum fidei);
2. Da outra parte, estes devem ter também um comportamento ético exemplar. Estas
orientações encontramos nas Cartas Pastorais (1Tm; 2Tm; Tt).
PRIMEIRA SEÇÃO:
➢ v. 17: Paulo faz “vir os anciãos ou presbíteros de Éfeso para Mileto”. Para
Lucas estes são os ministros da comunidade, e certamente não era ainda o caso
fora da Palestina na época de Paulo (cf. Fl 1,1; 1Cor 12; etc.). Lucas tem
presente a Igreja do seu tempo; em torno de Paulo se reúnem os legítimos
representantes da Igreja pós-apostólica.
➢ vv. 18b-21: Paulo recorda o seu comportamento passado não para justificar-se
contra críticas, mas para apresentar-se como modelo. Para descrever o retrato
do apóstolo, Lucas se serve de uma linguagem que ecoa a terminologia do
Paulo histórico (temas característicos do apóstolos recolhidos pela tradição
paulina nas Igrejas por ele fundadas): são substancialmente exortações cristãs
do final do I século: “servir ao Senhor” para Paulo significa uma dedicação
total no trabalho de anunciar o Evangelho e implica também uma atitude de
serviço para com a comunidade. Os vv. 20-21 apresentam Paulo como um
apóstolo completo em todos os sentidos. Ele transmitiu a mensagem cristã:
em todas as formas (anúncio e instrução), em todos os modos (público e
privado); a todos os destinatários (judeus e gregos), com todo o conteúdo (a
conversão e a fé). Paulo é portanto, o legítimo representante da autêntica
tradição apostólica.
➢ vv. 22-24: a atenção se concentra sobre a situação presente de Paulo: a
incógnita da viagem à Jerusalém. O apóstolo tem consciência de estar
“acorrentado do Espírito”, portanto de encontrar-se sob uma vontade divina, a
qual não pode fugir. A paixão de Paulo corresponde à paixão de Jesus. Paulo
sabe que deve andar em direção a “algemas e tribulações”. O apóstolo, a
semelhança de Jesus, faz disto a vontade divina. Sabendo “movido pelo
Espírito Santo”, Paulo sabe também que seus sofrimentos tem um
significado, constituem uma parte do seu ministério apostólico.
➢ vv. 25-31: no v. 26 uma declaração solene: Paulo proclamou a autêntica
mensagem do Reino, em continuidade com o anúncio de Jesus e da Igreja
apostólica; ele por consequência não é culpado se um cristão se perde. Muito
provavelmente o Paulo de Lucas tem em mira o perigo das falsas doutrinas
que começam a difundir-se.
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SEGUNDA SEÇÃO
vv. 28-31: iniciam uma nova seção: “estai atentos (sede solícitos) ” (um imperativo
dirigido aos presbíteros); “sede vigilantes” (v. 31): exorta os anciãos a se
comportarem de acordo com a vocação recebida, lembrando-lhes o trabalho
incansável que ele, por três anos, desenvolveu na cidade de Éfeso. Na situação
crítica da Igreja, cabe a eles zelar pela unidade e pela fidelidade de todos ao
Evangelho.
*Para desenvolver suas funções na comunidade, este devem estar atentos a si mesmos,
visto que sua conduta deve ser conforme àquela de Paulo; deve também estar em
guarda para permanecer na doutrina ortodoxa; visto que não são imunes ao perigo de
falsas doutrinas. Deus mesmo os colocou como epískopoi, ou seja, como guardiões,
supervisores, administradores. O epíscopo ainda não é visto distintamente dos
presbíteros: o termo indica como o presbítero deve desenvolver a sua função na Igreja.
E para sublinhar a função dos presbíteros como epíscopos, o autor apresenta a Igreja
não somente no seu aspecto social de comunidade para governar, mas na sua realidade
profunda de povo da aliança que tem seu fundamente na mesma realidade trinitária de
Deus: nascida do Pai, tornada possível por Cristo, guiada pelo Espírito Santo.
*Graças à morte de Jesus nasceu a plena comunhão com Deus e com o seu
povo.
* Nos vv. 29-30 Paulo exprime em forma profética o que era realidade nos
tempos de Lucas: o perigo das falsas doutrinas. O perigo vem de fora: não se
trata de perseguições, mas de falsos ensinamentos; provém de cristãos de
outras comunidades descritos como “lobos”. Mas o perigo surge também ao
interno da Igreja, com risco de romper a comunhão fraterna.
* Com a partida-morte de Paulo se encerra o tempo da Igreja da origem, tempo
ideal caracterizado pela unidade e da (quase) ausência de falsas doutrinas.
vv. 32-35: conclui o discurso. Paulo confia os anciãos a Deus e a Palavra de sua graça,
ou seja, ao Evangelho, que não somente contém a mensagem para anunciar, mas
comunica também a graça da salvação. Interessante observar que o apóstolo não
confia a Palavra aos presbíteros, visto que tem a função de proclamá-la, mas confia
os presbíteros à proteção e a força salvífica da Palavra. Na sua palavra Deus
certamente opera (cf. Is 55,10-11; 1Ts 2,13; Rm 1,16 etc.) e comunica a força de edificar
a comunidade na unidade (9,31).
No v. 33 se retorna a Paulo, modelo de comportamento: a sua “separação” é sinal
da autenticidade do seu apostolado; ele não desfrutou o ministério para a própria
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vantagem (cf. 1Cor 9,12; 2Cor 7,2; 11,8; 12,13). O tema do “desapego” das
riquezas é um tema caro ao evangelista. O autor sabe que Paulo exercitava um
trabalho manual (18,3; cf. 1Ts 2,9; 2Ts 3,8); mas para o apóstolo o trabalho servia
para não ser pesado a ninguém, para evitar a crítica de viver dependendo dos
outros. Se ajunta a isto o amor pelos pobres. “A atitude fundamental do cristão
está no ‘dar’”.
➢ A despedida de Paulo de Mileto é apresentada por Lucas com uma grande
perícia literária e de acordo com os cânones da historiografia helenista,
compondo um quadro belíssimo e tocante. É o momento da separação definitiva.
O período da vida missionária do incansável evangelizador acabou. A partir
desse momento Paulo inicia seu caminho da cruz.

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