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FEITIÇARIA E BRUXARIA MEDIEVAIS:


APONTAMENTOS HISTÓRICOS
MEDIEVAL SORCERY AND WITCHCRAFT:
HISTORICAL NOTES
Luan Lucas A. Morais1

Introdução: problemas semânticos de uma questão histórica


Em seu História Noturna, Carlo Ginzburg nos apresenta o seguinte
cenário: “Bruxas e feiticeiros reuniam-se à noite, geralmente em lugares
solitários, no campo ou na montanha. [...] Os que vinham pela primeira
vez deviam renunciar a fé cristã, profanar os sacramentos e render
homenagem ao diabo” (GINZBURG, 2012, p. 9). Esta breve descrição
refere-se à – suposta – prática muito comum entre os adeptos da
feitiçaria: o sabá.

A partir dessa descrição, é possível identificar alguns dos percalços


interpretativos e metodológicos para a compreensão acerca do
fenômeno que entendemos como feitiçaria. O sabá teria sido uma
manifestação física e presencial dos poderes mágicos e “sobrenaturais”
daqueles indivíduos ou o reconhecimento de um conjunto de práticas
ritualísticas interpretadas como desviantes e arbitrariamente imputadas e
associadas aos ditos “feiticeiros” pelo clero? Ademais, o que distinguiriam
bruxas/bruxos e feiticeiras/feiticeiros entre si? Se existem, quais seriam as
diferenças entre bruxaria e feitiçaria? Quais são seus conceitos, usos e,
sobretudo, implicações no contexto medieval?

1 Professor temporário do departamento de História da Faculdade de Educação,


Ciências e Letras do Sertão Central – FECLESC/UECE. Doutorando em História pela
Universidade Federal Fluminense (UFF), sob orientação da prof.ª Dr.ª Carolina Coelho
Fortes. Integrante do laboratório de pesquisa Núcleo Dimensões do Medievo - Translatio
Studii (UFF) e do Grupo de Estudos sobre Britânia, Irlanda e Ilhas do Arquipélago Norte
na Antiguidade e Medievo – Insulӕ, bem como do GT de Estudos Arturianos Arturus
Insularum. E-mail: luanlucas7@hotmail.com.
2

Parte da discussão acerca das questões levantadas baseia-se,


primeiramente, no próprio entendimento do que era a magia em
contextos tão específicos. Seguindo o lastro antropológico em finais do
século XIX, autores como Edward Tylor, em seu Primitive culture [Cultura
primitiva] (1871) e Sir James Frazer, com The golden bough [O ramo de
ouro] (1890), compreendiam as práticas mágicas em termos opostos à
religião, empreendendo uma análise sobre essas manifestações
vinculadas ao sobrenatural como partes essenciais do funcionamento
das sociedades ditas “primitivas”.

Enquanto Tylor considerava que havia uma base comum para


explicar o desenvolvimento funcional das sociedades e religiões,
denominando de animismo o conjunto de práticas e sentimentos
compartilhados por diferentes povos e em diferentes estágios de
“desenvolvimento”, Frazer buscou exemplificar e demonstrar o primado
das atividades mágicas na construção de um gradativo sistema de
crenças que se aperfeiçoariam da mágica para a religião, culminando
na ciência. Ademais, é com Frazer que a oposição magia x religião
ganha contornos ainda mais funcionais, visto que para o antropólogo as
práticas mágicas baseiam-se no uso controlado e instrumentalizado de
técnicas que alteram o funcionamento de alguma estrutura natural ou
pessoal, em contraste à religião, em que o indivíduo recorre à ajuda de
espíritos ou demais divindades.

Embora a tese de Frazer denote uma evidente perspectiva


evolucionista, sua diferenciação entre magia e religião ainda pode
oferecer algum tipo de insight – com os devidos cuidados – para se
analisar o binômio conceitual e as divergências entre bruxaria e feitiçaria.
Ambas se diferenciam, então, pelas características acerca da natureza
de manifestação do poder mágico: a bruxaria refere-se à presença de
um poder pessoal, único e intransferível de um agente (bruxa/bruxo),
enquanto que a feitiçaria resumir-se-ia à instrumentalização de um poder
mágico adquirido por indivíduos capazes de canalizá-lo e controlá-lo.
3

Se pensarmos na palavra magia enquanto “termo agregador”


(KIECKHEFER, 2019, p. 15), temos que, da Antiguidade em diante, as
práticas mágicas foram catalogadas em diversas atividades que iam
desde à observação dos astros, à adivinhação, à leitura da sorte, às curas
medicinais, etc.2 Não por acaso que no século VII, Isidoro de Sevilha (c.
560-636) estabelece em sua Etymologiae (Etimologias) que as “artes”
divinatórias e mágicas eram de origem pagã, e, consequentemente, de
natureza demoníaca, frutos de uma associação do homem com espíritos
e entidades diabólicas (BOUDET, 2006).

Estabelecidas as diferenças em termos mecânicos, passemos para


o campo semântico. Aqui as fronteiras tornam-se ainda mais tênues. Há
diversas palavras para delimitar e conceituar os indivíduos que usufruem
e controlam esse poder mágico. Para Isidoro de Sevilha, os magos
(magis) eram aqueles denominados de “maléficos” (malefici), pela
natureza pérfida de suas ações e pelo fato de serem capazes de causar
a morte “simplesmente com a violência que emana de seus feitiços”.3 Já
em relação ao seu caráter histórico, temos que:

Magician [“mago”] deriva do latim magia, proveniente do


grego mageia. A palavra grega magos designava
originalmente os sacerdotes-astrólogos iranianos que
acompanharam o exército do rei Xerxes em sua invasão à
Grécia [...]. Em inglês, a palavra magic [“magia”]
frequentemente implicou um sistema intelectual sofisticado, em

2Entretanto, Richard Kieckhefer (2019) aponta que o mais válido seria entender a magia
como um “termo constitutivo”, algo passível de ser definido por suas “formas específicas
de referência”, ou seja, aquilo que a constitui para além de suas capacidades
cumulativas. Para o historiador estadunidense, três seriam os elementos constitutivos da
magia: a conjuração, a manipulação simbólica e uma volição diretamente eficaz. O
primeiro, referente ao ato de invocar e comandar os espíritos, ao assumir e reconhecer
suas presenças, conferindo não apenas a mera manipulação e sim o exercício de uma
autoridade sobre estes. Quanto ao segundo, Kieckhefer retoma as concepções de
Frazer acerca dos elementos pertencentes à natureza e que de alguma maneira
podem ser explicados e conectados simbolicamente aos astros, a partir dos quais
canalizam e manifestam seus poderes (ervas, gemas, artefatos, etc). Por último, a
volição diz respeito ao entendimento que um indivíduo – emissor ou destinatário – tem
do efeito da prática mágica realizada, como por exemplo uma “maldição” ou uma
“praga” rogada.
3 “Magi sunt, qui vulgo malefici ob facinorum magnitudinem nuncunpantur. Hi et
elementa concutiunt, turbant mentes hominum, ac sine ullo veneni haustu violentia
tantum carminis interimunt.” (SAN ISIDORO DE SEVILLA, 2004, p. 704-705).
4

oposição às práticas rudes da sorcery [“feitiçaria”] [...]. (RUSSELL;


ALEXANDER, 2019, p. 16, grifos dos autores)

Ainda na língua inglesa, temos witch [bruxa], warlock [bruxo],


wizard/magician/mage [mago], sorcerer/sorceress [feiticeiro/feiticeira],
etc. Em francês, o termo sorcellerie – cuja tradução para o português
pode ser feita tanto como bruxaria ou feitiçaria – deriva do latim
medieval sortiarius, cujo significado quer dizer “aquele que diz a sorte”.
Na época do império carolíngio, termos como sortilegium e sortiaria eram
utilizados pelos clérigos como designações relacionadas às práticas
mágicas de caráter maligno, bem como de seus praticantes (BOUDET,
2006, p. 198).

Em seu verbete sobre Witchcraft [bruxaria], a Encyclopedia


Britannica define-a como “[...] exercício ou invocação de supostos
poderes sobrenaturais para controlar eventos ou pessoas, práticas que
envolvem tipicamente feitiçaria e mágica” (RUSSELL; LEWIS, 2016). A
menção ao controle das práticas mágicas pelos indivíduos é parte
essencial na melhor delimitação entre o ato instrumental, a feitiçaria, e o
poder pessoal, que quando canalizado para obtenção de algum
objetivo, seria caracterizado como bruxaria. O próprio sufixo -craft, em
inglês, designa a ideia de uma “arte”, “ofício” ou “habilidade”.

Desse modo, o inglês adotou os termos Witchcraft [bruxaria] e


Sorcery [feitiçaria] segundo os termos conceituais explicitados
anteriormente. Porém, no contexto medieval, partindo de uma
compreensão das fontes e da multiplicidade interpretativa particular ao
período acerca da magia e de seus praticantes, o termo comumente
adotado por medievalistas seria o de feitiçaria, embora as supracitadas
diferenciações sejam problemáticas.

Estipulada em seus termos inerentemente práticos, a feitiçaria deve


seus resultados e conceitos às ações perpetuadas por seus agentes: os
feiticeiros e feiticeiras. As experiências compartilhadas, fossem ouvidas,
vivenciadas ou narradas por supostas testemunhas oculares, tiveram no
5

Ocidente medieval um caráter específico por conta da natureza


catártica de tais acontecimentos. Para Jean Claude-Schmitt, embora o
“poder” dos feiticeiros não denote uma “realidade objetiva” aos nossos
olhares hodiernos (SCHMITT, 2017), é necessário compreender que ao
imaginário dos indivíduos praticantes ou não de feitiçaria, tais atos
possuíram sentidos objetivos e materiais. Logo, “A convicção do feiticeiro
de possuir poder e, paralelamente, a convicção de suas supostas vítimas
de serem efetivamente objeto de um sortilégio, delineiam os papéis
sociais, os comportamentos” (SCHMITT, 2017, p. 474).

Ademais, é necessária a compreensão sumária de que as práticas


mágicas em geral eram assim categorizadas mediante uma lógica de
perspectiva. Ou seja, dependiam do local social daqueles responsáveis
por enunciá-las. Portanto, “o estudo da magia é o estudo dos sistemas de
pensamento que definiram magia de maneiras particulares, e das
mudanças nesses sistemas ao longo do tempo” (JOLLY, 2002, p. 3).
Historicamente, essas premissas entraram em conflito com ordem social
vigente no medievo, e, apesar de suas particularidades continentais e
insulares, o tema da feitiçaria atravessou todo o contexto medieval,
sendo mote de conflitos culturais, sociais, políticos e religiosos.

A má compreensão desses conceitos e categorias históricas


configurou há muito uma cristalização das noções pejorativas atribuídas
à época medieval, pois, obviamente, não tardou para que o uso das
práticas ou “habilidades” mágicas fosse colocado em xeque pela
estrutura clerical já na Alta Idade Média. Não por acaso que Stuart Clark
(2006, p. 34) afirmou que “A bruxaria foi construída dialeticamente em
termos do que ela não era”, e que mesmo a historiografia durante muito
tempo não compreendeu que “o significante nela não é sua substância,
mas o sistema de oposições que ela estabeleceu e preencheu” (CLARK,
2006, p. 34).

Desse modo, as próximas linhas se ocuparão de um esforço em


torno de elucidar, contextualizar e compreender a feitiçaria medieval
6

dentro da própria especificidade sociocultural do período em questão,


com o cuidado de evitar generalizações conceituais, teóricas e práticas
desse fenômeno na Europa medieval.

A feitiçaria medieval e suas intersecções espaço-culturais


A feitiçaria cumpriu papéis sociais. Seja no sentido de
apaziguamento ou de escalada das tensões comunitárias, se praticadas
no âmbito público com intuito de ganho social (como no caso de um
favorecimento das colheitas), possuíram apoio da comunidade e de seus
indivíduos, atuando como uma espécie de “dama de companhia da
religião” (RUSSEL; ALEXANDER, 2019, p. 45). Em contrapartida, caso
praticadas em caráter privado com intuito de ganho meramente
individual (como em vinganças pessoais movidas por motivos de
adultério, dívidas, traições, etc.) são rapidamente condenadas e legadas
ao regime de ilegalidade no seio social (RUSSEL; ALEXANDER, 2019).

Sobre esses aspectos, é importante delimitar o lugar da Idade


Média no desenvolvimento das práticas de feitiçaria na Europa. As
instituições medievais – notadamente a Igreja – foram gradualmente de
encontro aos indivíduos reprodutores das ações consideradas desviantes,
bem como do titereiro que as controlavam. Nas palavras de Jean
Delumeau, seriam os “agentes de Satã” e este último o próprio “mestre”
ao qual obedeciam (DELUMEAU, 2009).

Entretanto, o desenvolvimento das concepções de feitiçaria e seus


significados no contexto medieval não devem ser reduzidos meramente
a uma simples oposição contra ordem clerical vigente ou como “ecos”
de um paganismo que foi transmutando-se no decorrer dos séculos para
poder sobreviver e ser condenado posteriormente pela pressão social da
Igreja em relação às práticas mágicas. Embora tentadoras, essas
concepções ignoram muitas vezes o amplo domínio social no qual
estavam inseridos juízes, réus e testemunhas dos atos de feitiçaria. Para
Delumeau:
7

[...] as populações se consideravam cristãs e não tinham o


sentimento de aderir a uma religião condenada pela Igreja. [...]
Deve-se acreditar piamente no imaginário proveniente de seu
medo? Por certo [...] pessoas de outrora utilizaram, sem
nenhuma dúvida possível, procedimentos mágicos para
prejudicar outrem. Mas em tais casos, os documentos que nos
restam põem em causa indivíduos muito mais do que grupos.
(DELUMEAU, 2009, p. 556-557, grifo meu)

Quanto à essa questão, Ginzburg pontua que o vácuo


historiográfico sobre essa ótica e que os silêncios metodológicos de
antropólogos e historiadores derivam das relações de força existentes na
própria documentação sobre o tema. Para tanto, o historiador italiano
observou em sua pesquisa sobre os benandanti – grupo de feiticeiros
praticantes de um culto de fertilidade no nordeste da península itálica –
que a documentação acerca destes “andarilhos do bem” estava
“contaminada” por “testemunhos hostis, que provêm de demonólogos,
inquisidores e juízes ou foram por eles filtrados. As vozes dos acusados nos
chegam sufocadas, alteradas, distorcidas” (GINZBURG, 2012, p. 24).

Desse modo, levando em consideração o processo de


desenvolvimento das práticas de feitiçaria e o surto da “bruxomania”
(wicthcraze)a partir do século XVI na Europa (BARSTOW, 1994), ao
medievo imputou-se o papel histórico do lugar de gênese unívoca desses
movimentos, visto que desde a Alta Idade Média, clérigos influentes já
advertiam e condenavam as práticas envolvendo qualquer tipo de
sortilégios, malefícios e encantamentos dirigidos ao Diabo ou seus servos
(SCHMITT, 2017).

Na Europa continental, o Canon Episcopi (c. 900), cuja autoria é


atribuída a Regino de Prüm (c. 842 – c. 915), monge beneditino que o
teria redigido como parte de uma compilação de antigos sínodos,
capitulários e penitenciais para orientar os bispos que saíssem em visitas
às suas respectivas dioceses, foi um importante documento legal da Alta
Idade Média acerca das crenças europeias sobre feitiçaria no final do
século IX e início do X (RUSSELL, 1972). A herança do direito romano,
segundo Jeffrey Russell, teria sido implacável na associação da feitiçaria
8

medieval ao culto (latria) diabólico. Nisso, entraria o Canon Episcopi ao


dizer que:

Algumas mulheres pecaminosas, acreditam e professam que


são pervertidas pelo Diabo, seduzidas por ilusões e fantasmas de
demônios, [...] também uma multidão inumerável, enganada
por essa opinião falsa, acredita que isso é verdade e, portanto,
crê, vagueia da fé correta e envolve-se com os erros dos pagãos
quando estes dizem que há algo de divindade ou poder, que
não seja o do Deus único. Portanto, os sacerdotes em todas as
suas igrejas devem pregar com toda a insistência para que as
pessoas saibam que isso é falso e que tais fantasmas são
impostos às mentes dos infiéis, e não pelo espírito divino, mas
pelo espírito maligno. (REGINONIS ABBATIS PRUMIENSIS, 1840, p.
355-56)4

No contexto insular, os primeiros penitenciais irlandeses e britânicos


chamavam atenção para as práticas envolvendo o manejo de poções,
filtros, unguentos ou substâncias cuja propriedade sobrenatural poderia
ser manipulada pelos indivíduos para, por exemplo, curar infertilidade,
impotência ou mesmo “atar” casais para a eternidade (BORSJE, 2012).
Os cânones atribuídos a São Patrício na Irlanda, compilados no Collectio
canonum Hibernensis (c. 700) sob o nome de I Sínodo de Patrício, Auxilius
e Isernus advogam que:

14. Um cristão que mata, ou comete fornicação, ou da maneira


dos pagãos consulta um adivinho, por cada ofensa deve fazer
penitência por um ano. Ao fim de um ano de penitência, ele virá
com testemunhas e depois será absolvido pelo padre.
[...] 16. Um cristão que acredita que exista uma lâmia5 no mundo,
ou seja, uma bruxa, deve ser anatematizado; quem deposita
essa reputação em um ser vivo, não será recebido na Igreja até

4“Illud etiam non omittendum, quod quaedam sceleratae mulieres retro post satanam
conversae, daemonum illusionibus et phantasmatibus seductae, credunt se et
profitentur nocturnia horis cum Diana paganorum Dea et innumera multitudine mulierum
equitare super quasdam bestias [...]. Nam innumera multitudo hae falsa opinione
decepta haec vera esse credit, et credendo a recta fide deviat, et in errorem
paganorum revolvitur, cum aliquid divinitatis aut numinis extra unum Deum esse
arbitratur. Quapropter sacerdotes per ecclesias sibi commissas populo omni instantia
praedicare debent, ut noverint haec omnimodis falsa esse, et non a divino, sed a
maligno spiritu talia phantasmata mentibus infidelum irrogari [...].”
5 O texto original em latim é “Christianus qui crediderit esse lamiam in saeculo, quae
interpraetatur striga”, em que o termo lamiam faz menção aos espíritos gregos femininos
alados que vagavam durante a noite para sugar o sangue de homens, mulheres e,
preferencialmente, crianças. Já a palavra striga faz alude às criaturas femininas que se
alimentavam do sangue de bebês, que posteriormente, tiveram suas características
“vampíricas” e exóticas associadas às bruxas e feiticeiras na Idade Média. A striga é
uma criatura muito comum no folclore do leste europeu, sobretudo o dos povos eslavos.
9

que revogue com sua própria voz o crime que cometeu e,


consequentemente, penitencie com toda diligência. (BIELER,
1963, p. 56, grifo meu)6

Um outro penitencial irlandês do século VI, o Poenitentiales Vinniani


[Penitencial de Finnian] (c. 525-550), atribuído ao monge irlandês Finnian
de Clonnard (470-563), alertava que se um clérigo ou uma mulher se
utilizassem de alguma prática mágica para enganar outrem, essa falta
seria considerada como um “pecado monstruoso” (inmane peccatum),
sendo punida mediante seis anos de penitência, três anos “com subsídio
de pão e água, e durante os anos restantes ele deve se abster de vinho
e carnes”(BIELER, 1963, p. 78)7

Jacqueline Borsje, em seu artigo Love magic in medieval Irish


penitentials, law and literature: dynamic perspectives, argumenta sobre
as aplicações do poder mágico no cotidiano familiar e na vida social da
Irlanda dos séculos V e VI. A autora reflete acerca de Santa Brígida da
Irlanda (c. 453-524), que, segundo as narrativas hagiográficas sobre sua
vida, teria ajudado a resolver problemas matrimoniais por intermédio de
um frasco de água benta ou, dependendo do hagiógrafo, de um objeto
não identificado que teria sido abençoado pela santa (BORSJE, 2012).

Segundo Borsje, dentro da lógica do gênero hagiográfico, não há


nada de incomum na demonstração de um milagre feito por um santo,
sobretudo dentro do contexto específico do cristianismo irlandês, em que
elementos pagãos e cristãos aglutinaram-se de forma que o que
certamente seria caracterizado como prática de feitiçaria pelos

6 “14. Christianus qui occiderit aut fornicationem fecerit aut more gentilium ad aruspicem
iuraureti, per singula cremina annum penitentiae agat; impleto cum testibus ueniat anno
penitentiae et postea resoluetur a sacerdote. […] 16. Christianus qui crediderit esse
lamiam in saeculo, qua interpraetatur striga, anathemazandus quicumque super
animam famam istam inposuerit, nec ante in ecclesiam recipiendus quam ut idem
creminis quod fecit sua iterum uoce reoucat et si poenitentiam cum omni diligentia
agat.” (BIELER, 1963, p. 55).
7 “18. Si qui clericus uel si qua mulier malifica uel malificus si aliquem maleficio suo
deciperat, inmane peccatum est sed per penitentiam redimi potest ; sex annis peniteat,
tribus cum pane et aqua per mensura et in residuis .iii. annis abstineat a uino et a
carnibus.” (BIELER, 1963, p. 77)
10

inquisidores continentais na Idade Média Central, na Ilha Esmeralda era


apenas parte da vida comum entre leigos e clérigos (BORSJE, 2012). Em
relação à interferência da santa sobre a vida conjugal de um casal, e o
uso de uma alegada “magia do amor”, como visualizado nos antigos
penitenciais irlandeses supracitados, Borsje comenta que:

Dizem que os performadores associados à magia do amor são


clérigos que praticam o mal e mulheres ou feiticeiras que
praticam o mal. A magia do amor parece ser afrodisíaca. O
texto latino [sobre Santa Brígida] não especifica a natureza do
objeto dado para obter amor. O termo maleficium está implícito,
mas não é usado para esse objeto indutor de amor. Acreditava-
se que várias coisas (com ou sem razão) eram afrodisíacas:
ervas, plantas, raízes, cogumelos, partes de animais, pelos e
secreções do corpo humano, texto em pergaminho, óleo
batismal, bolachas de comunhão ou misturas destes e outros
materiais. (BORSJE 2012, p. 12)

Em solo britânico, o Confessional de Egberto (c. 950-1000), apontou


novamente para a associação entre a feitiçaria e o gênero feminino, fato
que seria extremamente acentuado e explorado na Europa continental
a partir do século XII, ao dizer que:

29. Se uma mulher trabalha com feitiçaria e encantamento e usa


filtros mágicos, ela deve jejuar por doze meses ou fazer três jejuns
declarados de quarenta dias, considerando a extensão de sua
maldade. Se ela matar alguém pelos seus filtros, jejuará por sete
anos... (MCNEILL; GAMER, 1938, p. 246)8

Embora circunscritos às aplicações mecânicas da feitiçaria, os


penitenciais mencionados trabalharam com uma perspectiva de
condenação da prática mágica na esfera civil. Sobre o cenário histórico
inglês, Jean-Patrice Boudet argumenta que a documentação canônica
apresentou “uma verdadeira aculturação cristã e o aparente sucesso de
uma estratégia de assimilação realizada pela Igreja no início da Idade
Média no que diz respeito aos muitos ritos pagãos” (BOUDET, 2006, p. 147).

Quanto à aparente “indiferença” da Igreja em relação a penas


mais severas que deveriam ser aplicadas aos pagãos, hereges e céticos,

8 “29. If a woman works witchcraft and enchantment and [uses] magical philters, she
shall fast for twelve months or the three stated fasts or forty days, the extent of her
wickedness being considered. If she kills anyone by her philters, she shall fast for seven
years […].”
11

Boudet afirma que ela derivou de um sincretismo cultural e de um


“processo de cristianização das práticas mágicas mais comuns” (BOUDET,
2006, p. 149) e “que apesar das repetidas condenações feitas a este
assunto, tais práticas se beneficiaram da relativa flexibilidade da
instituição eclesial, que pareceu tolerá-las amplamente” (BOUDET, 2006,
p. 149), ao largo dos séculos XII e XIII.

De acordo com a gravidade do delito ou desvio, as penas


imputadas obedeciam, geralmente, ao pagamento de penitências na
forma de jejuns ou, em casos mais graves, de somas em dinheiro à Igreja
ou aos indivíduos prejudicados ou ofendidos por qualquer tipo de ação
condenada nos textos canônicos. A transformação gradual da prática
mágica antes utilizada para obter benefícios próprios ou sociais em um
ato deliberado para infligir danos em algo ou alguém – o maleficium – vai
tomando sua forma a partir do século XI, ganhando um destaque cada
vez maior na documentação eclesiástica continental.

A partir de então, aparecem na documentação legal de maneira


mais sistematizada os termos maleficium (ato maligno), maleficus
(feiticeiro) e malefica (feiticeira), como sinônimos de todo o tipo de ato
mágico supostamente performado e denunciado, e, gradativamente,
associadas ao conjunto de heresias que grassaram no Ocidente
medieval entre os séculos XI e XIII.

Escrito por Burcardo de Worms (c. 950/965-1025), o Corrector Sive


Medicus, também conhecido por Decretum Burchardi ou ainda De
Poenitentia, foi um dos mais famosos tratados e penitenciais canônicos
circulados durante o medievo. Datado por volta de 1000-1025, a obra
detalha em seu interior todo o esforço do clero medieval em controlar as
ações condizentes ao âmbito das práticas disciplinares que envolvessem
a moral e os hábitos da época, versando sobre assassinato, perjúrio,
adultério e fornicação e claro, as práticas mágicas. Sobre estas últimas,
o bispo de Worms nos diz:
12

62. Se tu guardaste as tradições dos pagãos, que, dos dias


passados até os nossos dias, os pais transmitem aos filhos, como
se por um direito hereditário estabelecido pelo Diabo, isto é, tu
tens cultuado os elementos, a lua ou o sol, ou o curso das
estrelas, a lua nova ou o eclipse da lua, cuja luz tu esperas
restaurar através de teus clamores ou com tua ajuda? Tu tens
usado esses elementos para tentar trazer ajuda para si ou tu para
eles, ou tens consultado a lua nova antes de construir algo ou
casar-te? Se tu o fizeste, farás penitência por dois anos nos dias
estabelecidos, pois está escrito: “Qualquer coisa que fizerdes em
palavras ou obras, fazei em nome de nosso Senhor Jesus Cristo”9
(JÚNIOR; BIRRO, 2016, p. 301)10

O “ranço” cristão em relação aos assuntos que envolvem o mínimo


de origens pagãs é visualizado pela rápida associação das práticas
divinatórias, da observação dos astros, e do culto aos elementos naturais
como obra demoníaca, fruto dos sortilégios lançados pelo Diabo para
contestar a autoridade e o poder único e supremo de Deus. Sobre isso,
Stuart Clark argumentará que a “dialética do combate” entre o
cristianismo e a feitiçaria se pautará no esforço constante da Igreja em
teorizar, argumentar e estabelecer todo um sistema racional, teológico e
ideológico de inversão da liturgia cristã pelos feiticeiros com o intuito de
zombar de Deus para agradar Satã (CLARK, 2006).

Da feitiçaria mecânica à feitiçaria herética


Durante a Idade Média Central (séculos XI-XIII), as práticas de
feitiçaria foram intimamente vinculadas ao boom herético que assolou a
maior parte da Cristandade medieval. O crime de feitiçaria passou da
esfera civil para o status de crime religioso. A ofensa não era mais contra
os indivíduos, e sim contra Deus. Em 1215, o IV Concílio de Latrão

9 Colossenses 3,17.
10 “Si observatis traditiones paganorum, quas, quasi haereditario jure diabolo
subministrante, usque in hos die semper patre filiis reliquerunt, id est unt elementa coleres,
id est lunam aut solem aut stellarum cursum, novam lunam, aut defectum lunae, ut tuis
clamoribus aut auxilio splendorem ejus restaurare valeres, aut illa elementa tibi
succurrere aut tu illis posses, aut novam lunam observasti pro domo facienda aut
conjugiis sociandis? Si fecisti, duos annos per legitima feria poeniteas, qui scriptum est
‘Omne qodcunque facitis in verbo et in opere, omnia in nomine Domni nostri – Jesu Christi
facite.’” (JÚNIOR; BIRRO, 2016, p. 301). Os trechos do Decretum aqui utilizados referem-
se à tradução dos 4 primeiros capítulos do livro de penitências e da introdução
realizadas pelos professores Álvaro Alfredo Bragança Júnior e Renan Marques Birro. Ver
JÚNIOR; BIRRO (2016).
13

impulsionou os episcopados feudais a intensificarem suas perseguições


aos hereges, com destaque especial aos cátaros-albigenses. Ademais,
não tardou para que a Santa Sé institucionalizasse um processo de
“projeções negativas” (RUSSELL; ALEXANDER, 2019), ou seja, a
demonização de seus oponentes, a um nível de procedimento jurídico
bem específico até mesmo dentro da lógica do direito canônico.

No século XIII, o Tribunal do Santo Ofício foi institucionalizado pelo


papa Gregório IX com o objetivo de investigar e inquirir possíveis desvios
e comportamentos heréticos. Em 1233, Gregório IX edita duas bulas que
delegam às recém-criadas Ordens Mendicantes – e em especial, aos
dominicanos – o papel de agentes inquisitoriais para atuar no combate
às heresias. Logo, há um processo de aperfeiçoamento dos dispositivos
eclesiásticos, cuja organização baseia-se na reformulação do antigo
processo acusatório, agora direcionado também às esferas judiciais
laicas da sociedade, afinal, “no novo procedimento, o juiz não espera
mais um sinal divino que revele a verdade: ele a busca pela confissão do
acusado, procurando extraí-la por meio da tortura” (SCHMITT, 2017, p.
479).

Com os processos de reprimenda cada vez mais institucionalizados


na Cristandade medieval, o papa Inocêncio IV, sob pressão constante
dos inquisidores dominicanos para combater de modo mais eficiente a
ameaça herética, resolve reforçar a lógica de persecução e julgamento
dos hereges, seguindo a noção de que a questão inquisitorial atendia a
interesses tanto eclesiásticos quanto civis (RUST, 2014). Assim, em 1250,
Inocêncio IV promulga a bula Ad Extirpanda, autorizando, de forma
limitada, o uso legítimo da tortura pelos inquisidores aos hereges para
obterem confissões. Sobre o reforço e a intersecção entre os interesses
seculares e clericais, Leandro Rust nos fala que:

Embora drásticas, as prescrições papais não ocultavam algo


evidente em todo documento: a execução das medidas de
combate à heresia dependia inteiramente da mobilização
secular. Desde as acusações do delito de heresia até a
14

destruição da “casa na qual o herético ou a herética tiver sido


descoberto”, passando pela busca, captura e pelo
aprisionamento dos denunciados, tudo dependia dos recursos e
agentes dos governos urbanos. Os espaços das ações
inquisitoriais eram demarcados a partir da “jurisdição e dos
distritos pertencentes ao ofício” citadino. Preservar a custódia
dos bens dos capturados; encontrar uma prisão adequada para
os detidos por heresia; despachar soldados e ajudantes capazes
garantir a ordem e a proteção dos inquisidores; fabricar e
arquivar os livros que registrariam para sempre a perfídia dos
condenados: estas e outras tarefas fundamentais só eram
possíveis à custa dos poderes seculares. (RUST, 2014, p. 214-215)

Caracterizando-se por ser uma completa apropriação do sistema


de justiça pelos homens, é notório que a partir do século XIII o nível de
repressão à feitiçaria deslanchou graças ao caráter cada vez mais
arbitrário dos inquisidores de dividir os assuntos humanos em duas
naturezas distintas: a divina e a profana. Graças à essa lógica de
verticalização, muitos dos estudos sobre feitiçaria seguiram as estruturas
de investigação pautadas nos sentimentos e nas crenças dos
inquisidores, dos juízes e das vítimas de feitiçaria. Nunca sob a ótica dos
acusados (GINZBURG, 2012).

A Ad Extirpanda é deveras gráfica em relação às atividades e


deveres a serem cumpridos pelos clérigos e governantes sob a tutela e
recomendação da Santa Sé. Logo, como supracitado, não se admira
que o discurso virulento se manifestasse de forma tão explícita em
relação aos ditos hereges. O documento nos fala que:

Lei 25
§ 28. Ademais, o potentado ou o governante deve coagir todos
os hereges aprisionados, sem chegar à amputação dos
membros e ao risco de morte, a se considerarem
verdadeiramente como ladrões, assassinos das almas e
assaltantes dos sacramentos de Deus e da fé cristã, a
reconhecerem expressamente seus erros e a acusar outros
hereges que conhecerem, e identificarem os bens deles, os
partidários, os acolhedores e os defensores dos mesmos, tal
como os ladrões e os assaltantes dos bens temporais são
obrigados a acusar seus cúmplices e a reconhecer os crimes que
cometeram. (RUST, 2014, p. 223)11

11“Teneatur praeterea potestas, seurector omnes haereticos, quos captoshabuerit,


cogere citra membridiminutionem, et mortis periculum, tamquam vere latrones, et
homicidesanimarum, et fures sacramentorum Dei, et fidei christianae, errores suos
15

Devido à essa “violência dos perseguidores”, a existência de


feiticeiros e feiticeiras, – superando o ceticismo indiferente do Canon
Episcopi da Alta Idade Média – bem como de suas reuniões secretas, o
sabá, foi atestada e comprovada pelo clero medieval devido à uma
chamada “obsessão demoníaca”, que a partir do século XIII nasceu das
disputas ideológicas e institucionais entre o universo secular e o
eclesiástico. De acordo com Alain Boureau (2016), essa “obsessão pelos
demônios” adveio de uma conjunção de fatores tais como a ideia do
pacto com o demônio e o tema da possessão, potencializadas pelas
novas formas de organização social (a partir do ano mil) e pela
intervenção da mística e da filosofia aristotélica a partir do século XIII,
impactando a concepção de mundo dos sujeitos medievais.

Após este período de gênese e construção das estruturas e


instituições repressivas, ficou cada vez mais claro quem combater: o
verdadeiro inimigo, Satã. Desse modo, no lastro dessa obsessão pelo
Diabo, vemos surgir a partir do século XV uma nova lógica de
perseguição, desta vez direcionada não apenas a alguns casos isolados
ou a indivíduos, mas grupos, coletivos ou “seitas” de feiticeiros cujo
principal objetivo era cumprir os desmandos e assuntos de seu mestre no
plano terrestre. Interessante notar que dentro do campo simbólico
envolvendo tais querelas, havia a questão do desenvolvimento daquilo
que Georges Minois chama de “ateísmo medieval”, pautado na
crescente batalha entre a Igreja medieval e as práticas culturais
populares em relação ao “maravilhoso sobrenatural”.

Para Minois, há na Idade Média Central um gradativo processo de


contestação e defesa apologética da doutrina cristã, seja pela via

expresse fateri, et accusare alios haereticos, quossciunt, et bona eorum, et credentes,


etreceptatores, et defensores eorum, sicutcoguntur fures et latrones rerumtemporalium,
accusare suos complices, et fateri maleficia, quae fecerunt.” A tradução da bula Ad
Extirpanda a partir do texto original em latim foi realizada por Leandro Rust, junto a um
ensaio contextualizando suas origens e desdobramentos na península itálica e no
restante da Europa Ocidental no século XIII. Ver Rust (2014).
16

escolástica de São Tomás de Aquino, seja pelo crescente interesse das


obras gregas e islâmicas de Aristóteles e dos sábios muçulmanos, como
Averróis. Segundo o autor:

A partir do século XII, um quadro clerical mais rigoroso esforça-


se para integrar as práticas mágicas e supersticiosas,
apresentando-as como simbólicas. Essa cristianização das forças
ocultas pré-cristãs preenche o maravilhoso e o miraculoso
cristão. [...] Tudo isso visa dar uma imagem unificada do mundo,
mas prepara um futuro difícil para a fé quando, a partir do século
XIII, estabelece-se o início de da crença, com um combate às
superstições. (MINOIS, 2014, p. 96-97)

De acordo com Minois, isso pode ser demonstrado na crença


popular do culto aos santos, comum na Alta Idade Média. O poder
mágico destes indivíduos, denominado de mana – termo de origem
polinésia para definir uma força misteriosa de caráter benéfico –, só
poderia ser explicado pelos teólogos e juízes dos séculos XII e XIII como
sendo fruto de uma intervenção diabólica. Por trás do maleficium, estava
o Diabo e seus respectivos agentes. Minois, então, argumenta “Mana ou
Satanás? As duas explicações não seguem ambas na direção de um
enfraquecimento divino? Ao fim, quando o espírito científico tiver
desconsiderado o mana e a bruxaria, essas duas explicações reforçarão
o ceticismo e o ateísmo” (MINOIS, 2014, p. 97-98).

Portanto, estipuladas as especificidades de cada contexto


espacial, e a gradativa transmutação do crime de feitiçaria para o de
heresia, daí insurgiram as principais demarcações e relatos sobre os
sabás. Estes, na visão de seus detratores, nada mais eram do que uma
grotesca aglomeração de indivíduos cujo principal objetivo era negar a
autoridade divina e zombar das premissas mais básicas da religião cristã.
Logo, a estereotipação do sabá dependeu tanto dos elementos
folclóricos inerentes às sociedades e aos indivíduos nela pertencentes e,
por isso mesmo, estranhos e alheios à compreensão dos inquisidores,
quanto da própria dedução dos demonólogos, juízes e testemunhas de
acusação (GINZBURG, 2012).
17

Ademais, o temor aparentemente “irracional” acerca das ações


de feiticeiros e feiticeiras funcionou como “prova” e reconhecimento dos
poderes dessas pessoas (RUSSELL; ALEXANDER, 2019). A existência ou não
do sabá foi aprovada não tanto pela sua real proposição, mas sim por
conta de uma necessidade e de um sistema racional que o fizesse
necessário àquela ordem social. A feitiçaria foi tomada, teorizada,
perseguida e julgada enquanto manifestação real na sociedade
medieval.

Enquanto principal expressão da feitiçaria herética, o sabá seria


uma atividade destinada ao jugo dos homens do clero. Entretanto, a
pesquisa de Carlo Ginzburg demonstra que, ao contrário da ideia
comumente difundida pela historiografia tradicional de que a imagem
do sabá foi quase que exclusivamente elaborada pelos perseguidores,
existiram outras formas de compreensão “popular” acerca dessas
práticas. Para Ginzburg:

[...] a sequência que conduziu à sedimentação da imagem do


sabá elaborada por juízes e inquisidores é outra, [...] atores,
tempos e lugares foram em grande parte diferentes. [...] Por
certo, não se pode excluir em absoluto a possibilidade de que,
em alguns casos, homens e mulheres dedicados a práticas
mágicas se reunissem para celebrar ritos que previam, por
exemplo, orgias sexuais; mas quase todas as descrições do sabá
deixam de fornecer provas de eventos do gênero. (GINZBURG,
2012, p. 18-21)

Se compreendido nesses termos históricos, sociais e culturais, torna-


se evidente que o sabá permeou o imaginário de grupos sociais comuns
e antagônicos, sendo este imaginário percebido enquanto um “um
sistema de imagens que exerce função catártica e construtora de
identidade coletiva ao aflorar e historicizar sentimentos profundos do
substrato psicológico de longuíssima duração” (JÚNIOR, 2010, p. 70),
atuando como uma espécie de “tradutor histórico” de categorias
intemporais e universais, como foi o caso do referido sabá e de toda a
sorte de práticas mágicas no Ocidente medieval.
18

Perceber esses processos de rupturas, permanências e


ressignificações torna-se sumariamente importante para uma
compreensão mais objetiva, honesta e crítica do período medieval e de
suas práticas sociais e culturais. Enquanto fenômeno histórico, a feitiçaria
europeia não poderia ser alijada de uma reflexão que levasse em conta
aspectos que ajudem a delinear seus pontos de gênese, teorização e
implementação, a partir, mas não exclusivamente, do Ocidente
medieval.

Considerações finais
Na tentativa de melhor apresentar e explicitar os diversos matizes
e nuances acerca das implicações culturais e sociais das práticas
mágicas, e em especial, da feitiçaria, na sociedade medieval, recortes
deliberados sobre temporalidades e espaços sociais foram realizados.
Longe de esgotar um tema e uma literatura tão vasta, o aqui se objetivou
foi uma compreensão minimamente prática e crítica sobre esse
fenômeno histórico, concentrando-se nos períodos que abarcam a Alta
Idade Média, como no caso dos penitenciais insulares dos séculos VI-X, e
no desenvolvimento teórico de uma feitiçaria instrumental à uma
feitiçaria herética na Idade Média Central, visualizada nos demais
documentos canônicos aqui citados.

Reconhecer o lugar da Idade Média enquanto um dos períodos


histórico da gênese e do desenvolvimento das práticas persecutórias
chanceladas pelo binômio bruxaria/feitiçaria e que, posteriormente,
seriam aperfeiçoadas e sedimentadas do século XV em diante, não é de
modo algum desmerecer ou escamotear o impacto que obras como
Malleus Maleficarum, publicado em 1486, tiveram ainda nos tempos
crepusculares da Baixa Idade Média. É, sobretudo, compreender que o
lastro ideológico que esta e outras obras deixaram - mediante estruturas
histórico-concretas específicas – foi compreendido e apropriado de
maneira mais incisiva nos períodos subsequentes do surto de Witchcraze
europeu e da constante obsessão diabólica que tomou conta do
19

imaginário coletivo dos séculos XVI em diante. Essas características foram


muito bem aprofundadas e exploradas pela demonologia e pelos
tratados demonológicos dos séculos XVI-XVIII.

O processo de padronização das práticas de feitiçaria


catalogadas pela Igreja desse período em diante seria determinante
para uma percepção de mudança de status e do poder do Diabo em
relação à ordem vigente. O crime de renegar e zombar da fé cristã,
tantas vezes alardeado pelos ritos do sabá, ganharia uma nova lógica
de repressão. Era chegado o tempo da “caça às bruxas”.

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