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Magia

Silas Guerriero

A magia é um termo pouco explorado, quando não negligenciado, pela Ciência da


Religião. Poucos são os estudos específicos sobre magia, assim como as publicações em
revistas e apresentações de trabalhos em congressos da área. Em grande parte das vezes,
aparece em contraposição à religião. Em outras, está ligada a ideia de promoção de
malefícios, enquanto que sua congênere religião estaria voltada à prática do bem. Tanto
quanto a religião, o termo magia está profundamente relacionado à construção histórica
de um conceito. Assim, não há sentido em se afirmar uma essencialidade relacionada à
magia.
Para muitas sociedades inexiste uma definição ou até mesmo a denominação de
magia. Aquilo que entendemos por este termo se encontra profundamente arraigado no
cotidiano dessas culturas, não se distinguindo dos aspectos ordinários e nem mesmo
daqueles identificados com uma esfera sagrada, considerado campo próprio das religiões.
Portanto, há de se perceber que para compreender o que é magia, e consequentemente os
estudos científicos de magia, é preciso localizar historicamente o conceito. É necessário
um esforço, de igual monta, para separar os estudos sobre magia efetivados pela Ciência
da Religião daqueles produzidos pelos praticantes e estudiosos insiders. Para esta ciência,
não há razão para separar magia da religião. Ambas fazem parte de um mesmo universo
do campo das crenças e de comportamentos daí advindos. Ao contrário, a distinção entre
magia e religião interessa aos crentes e praticantes na medida em que cria os contornos e
limites de um e de outro. Essa construção não é livre, de maneira alguma, de ideologias
e preconceitos. No entanto, os estudos de religião, a antropologia e mesmo a filosofia têm
tratado magia e religião como fenômenos distintos, acabando por reificar os conceitos.
Tal qual para religião, qualquer definição conclusiva sobre o que é magia se torna
não apenas inútil como insuficiente. Veremos, mais à frente, como essas definições se
constituíram em oposição a religião, sendo esta algo relacionado à devoção aos seres
divinos na esperança que estes resolvam os problemas que afligem os seres humanos e a
magia a manipulação das forças da natureza (ocultas ou visíveis) por parte do agente
mágico em prol das soluções dos mesmos problemas. Outra oposição sempre recorrente
define a religião como algo público, coletivo e social e a magia como algo recôndito e
individual. Forte, ainda, é a relação que se estabelece muitas vezes entre magia e ciência
numa aproximação despudorada, relacionada ao campo do natural, excluindo a religião
para as margens de uma crença pueril e sobrenatural ou mesmo invocando à magia uma
ciência ainda a ser reconhecida. Middleton, na famosa Encyclopedia of Religion editada
primeiramente por Mircea Eliade, ensaia uma definição que, de certa forma, vai ao
encontro do nosso senso comum sobre o que entendemos de magia. Para esse autor, magia
é uma ação distinta das demais ações cotidianas e que envolve algum tipo de ritual na
pretensão de provocar certos eventos ou condições, seja na natureza ou entre as pessoas.
(MIDDLETON, 2005, p. 5562) Na magia, diferentemente da ciência, a relação de causa
e efeito entre o ato e a consequência é de ordem mística. Os atos compreendem algum
tipo específico de ação, como manipulação de objetos e recitação de fórmulas verbais ou
feitiços. Tal definição pode satisfazer a leigos e cientistas, mas alimenta ainda mais a
noção de magia como algo reificado e distinto da religião. Longe de esclarecer, pode mais
confundir e enviesar nossa compreensão sobre o fenômeno. Percebe-se, assim, que a
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questão da magia é dotada de enorme complexidade e requer um olhar acurado por parte
da Ciência da Religião.

A noção de magia ao longo dos tempos


Não é possível determinar o surgimento da magia, visto esta encontrar-se
intimamente relacionada ao cotidiano dos povos. Destarte, pode-se dizer que a magia
existe desde que o ser humano se constitui como tal. Porém, o que podemos verificar é o
surgimento da noção de magia. Uma constante que se apresenta é o fato de que o termo
magia está invariavelmente relacionado às práticas do outro, daquele que não é do grupo,
daquele que é diferente. Em geral, essas ações são vistas enquanto equívocos ou ameaças.
O termo magia surge inicialmente na Grécia Antiga e se configurava em oposição ao
pensamento religioso da época. Entre os séculos VI e V AEC, já se estabelecia a noção
de magia identificada com as práticas e crenças consideradas supersticiosas. A palavra
magia surge a partir do termo designado a seu agente, ou mago (μάγος/magos), tomado
emprestado do persa magus, sacerdote zoroastra. Naquele período, o termo era
depreciativo e designava os estrangeiros e as mulheres que praticavam atos considerados
falsos e em desacordo com as práticas religiosas de então.
Na Roma Antiga, no início da Era Comum, a magia estava relacionada aos grupos
cristãos, vistos como estranhos e pouco romanos. Após a consolidação do cristianismo, a
magia começou a receber um novo estigma, o de estar relacionada a atividades
demoníacas. A magia de então eram as práticas dos pagãos, tidas como falsa religião em
oposição à verdadeira religião, o cristianismo. Exceção a isso se encontrava a magia
naturalis, reconhecida como uma prática ligada às forças ocultas da natureza e, portanto,
não às forças demoníacas. (ROCHA, 2019) Após a Reforma protestante, os católicos
foram identificados como praticantes da falsa religião, principalmente pela devoção aos
santos. As denominadas ciências ocultas, surgidas em torno do século XVI, também
receberam forte oposição dos protestantes, pois traziam a ideia de um ressurgimento do
paganismo. A emergência da ciência moderna contribuiu para relegar as ciências ocultas,
por conseguinte a magia, ao obscurantismo antinatural. O racionalismo do Iluminismo
rejeitava qualquer forma de pensamento tido como irracional ou supersticioso. É nesse
contexto que o processo de colonização do europeu por sobre os demais povos do planeta,
levou à identificação direta da magia às práticas ditas selvagens. O chamado primitivo,
habitante das terras exóticas e distantes, era incivilizado e portador de um pensamento
irracional. Nesse caso, a religião seria oriunda de um alto grau de racionalidade e
civilização, enquanto que o primitivo significaria o selvagem e seu próprio status de ser
humano estava em questionamento.
Esse breve relato demonstra como a magia foi considerada, na maioria das vezes,
a religião do outro, estigmatizada e definida como pensamento errôneo. A cada época
recebeu a roupagem ideológica de então. Há de se ressaltar, no interior do pensamento
ocidental, alguns movimentos surgidos desde o renascimento, como as já mencionadas
ciências ocultas, que vão procurar outras formas de conhecimento, à margem da religião
cristã estabelecida, utilizando forças não empíricas. O avanço da ciência moderna fez com
que vários desses grupos procurassem naquilo que consideravam forças da natureza, as
raízes para um novo pensamento mágico. Esses momentos foram significativos pois
estabeleciam uma valorização da magia. Surge um discurso proselitista, desafiador da
religião hegemônica, de certa forma misturado às descobertas científicas de então. O final
do século XVIII e, principalmente, o século XIX são palcos de muitos desses discursos.
Entre esses podemos citar o magnetismo animal de Franz Mesmer (1784-1815), o
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esoterismo de Eliphas Levi (1810-1885), a teosofia de Helena Blavatsky (1831-1891) e


até mesmo o espiritismo de Alan Kardec (1804-1869). O que se buscava, apoiado nas
descobertas científicas da época, era a manipulação de forças ocultas da natureza em prol
do ser humano. Nesse sentido, não há aqui uma desvalorização da magia ou sua atribuição
a coisas malignas ou equivocadas. Tratava-se de um posicionamento em defesa da magia.
Todos esses movimentos foram fortemente criticados pelas igrejas cristãs. Cabe ressaltar,
ainda, as novas espiritualidades e a Nova Era. Muitos dos grupos que defendem a
elevação do self através de práticas espiritualizadas, praticam abertamente o que
denominam de magia. A Wicca, religião neopagã e autointitulada mágica, é forte exemplo
desse fenômeno.
Anterior a todo esse processo, mas de certa forma na mesma direção, podemos
incluir a alquimia, surgida com esse nome no Ocidente a partir do século XII. Embora
suas origens possam ser traçadas desde tempos bem mais distantes, inclusive em
localidades do Oriente, como a China, foi na Idade Média que essa corrente mágico-
esotérica ficou mais conhecida. Com outros nomes e não necessariamente com os
mesmos objetivos, a prática da alquimia tem sido identificada em diferentes regiões do
globo e em épocas bastante distintas. Em todas elas, sempre houve uma forte ligação com
as tradições esotérica e mística.
O objetivo principal da alquimia é a obtenção da Pedra Filosofal, de caráter
místico, que tornaria possível a transmutação de metais em ouro e também um elixir que
garantiria a imortalidade. Até hoje há muitos que defendem ser a alquimia um processo
científico e não religioso, ou no mínimo relacionado às ciências ocultas. No entanto,
dadas suas características místicas, não é possível compreender a história da alquimia
separada dos ambientes mágico-religiosos. Para muitos, como nos tempos atuais, trata-se
de uma simples metáfora para a alteração da consciência da pessoa que busca a
transmutação. Esta é a visão disseminada pelas novas espiritualidades individualizadas
do começo do século XXI, bastante difundidas em meios de comunicação e literatura,
como os livros de autoajuda ou do autointitulado mago Paulo Coelho (1947- )1. Também
em tempos contemporâneos, há quem defenda que a alquimia esteja relacionada às ordens
herméticas e sociedades ocultas, como a ordem Rosacruz. A magia hermética, atribuída
aos escritos de Hermes Trismegisto (pensador egípcio que teria vivido no século XIV
AEC ou até antes), tiveram forte influência na configuração da alquimia. A partir dos
séculos XIX e XX, grandes nomes ligados à magia e esoterismo aprofundaram os estudos
da relação entre alquimia e esoterismo, como o já citado Eliphas Levi e Aleister Crowley
(1875-1947), fundador da ordem secreta Golden Down e influenciador de vários
movimentos e personalidades até os dias atuais.
É inegável a contribuição dos alquimistas no desenvolvimento da moderna ciência
da química. Entre essas podemos citar o isolamento do mercúrio, a descoberta do aqua
vitae (álcool) e dos ácidos minerais. Dado o caráter de ciência oculta, as descobertas da
alquimia sempre estiveram envoltas em sigilos. Como tal, apenas os iniciados poderiam
ter acesso às sabedorias alquímicas e os textos utilizam uma espécie de linguagem secreta,
plena de metáforas e figuras fabulosas. Da mesma maneira que pressupõem uma mutação
dos metais mais básicos ao ouro, os alquimistas acreditam que também o ser humano
pode alcançar essa elevação, seja prolongando a vida ou mesmo alcançando a plena
espiritualidade. Nesse sentido, a busca da alquimia não é propriamente científica, mas
espiritual. O alquimista acredita que aperfeiçoa a criação divina. Trata-se de um mito

1
Paulo Coelho é um famoso escritor que publicou, em 1988, O Alquimista, livro brasileiro mais vendido
de todos os tempos.
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otimista baseado numa escatologia natural. A partir da revolução científica do século


XIX, esses ideais foram sendo secularizados, muito embora os sonhos e objetivos dos
alquimistas não tenham sido abolidos. Migraram para a ideologia do progresso infinito e
para o mito do cientificismo. Hoje esse discurso se funde com leituras simplificadas das
ciências, notadamente da física das partículas. O novo alquimista não está mais preso a
ordens iniciáticas. Através de um processo individual, de controle do espaço e do tempo
e da relação entre energia e matéria, busca-se a plena transmutação pessoal em um ser
espiritualizado perfeito e superior.
De maneira geral, podemos dizer que a visão sobre a magia tem sido muito mais
forte no sentido de desaprovação e seu rebaixamento a algo primitivo ou equivocado.
Para todos os efeitos, e na perspectiva dos estudos de religião, não é tão simples distinguir
até onde vai o ato mágico e se inicia o religioso, ou vice-versa. Por exemplo, a um olhar
exterior, ou de um concorrente religioso, a benção ministrada por um sacerdote cristão
pode ser vista como um ato mágico, assim como, aos olhares de um fiel, a água benta
pode ser curadora de doenças. Muito embora esses sacerdote e fiel não vejam essas ações
como mágicas, mas como intervenções divinas, o mesmo pode ser estendido a outros
povos e suas práticas que invariavelmente são tidos pela ortodoxia religiosa como práticas
mágicas. A história brasileira é plena de exemplos de como religiões de tradição africana
foram estigmatizadas e combatidas como feitiçarias. Nos anos 1930, terreiros foram
invadidos e destruídos pelo Estado. No presente momento, em pleno século XXI, as
religiões afro-brasileiras são agredidas, física e moralmente, por ações de religiões cristãs
evangélicas. Muito disso se deve à visão estigmatizada de magia que se tem sobre essas
religiões. Porém, aos olhos de um estudioso é necessário reconhecer que as ações
empreendidas em muitas das igrejas pentecostais, como as sessões de descarrego, ou as
curas por benzeção entre fiéis católicos, ou mesmo as denominadas curas energéticas da
Nova Era, são de natureza similar. O mesmo pode-se se aplicar às práticas mágico-
religiosas dos povos indígenas. Como anteriormente afirmado, desde o início da
colonização eram vistas como retratos de primitivismo ou atraso intelectual, servindo
como justificativa para uma dominação das metrópoles brancas e cristãs por sobre outras
etnias. Até hoje, muitas igrejas utilizam esse discurso para justificar uma ação missionária
que, em última instância, afeta profundamente as culturas locais.
Em suma, o que podemos perceber é que a noção de magia é, na maioria das vezes,
uma visão que se tem sobre o outro na perspectiva de desmerece-lo e rebaixa-lo e que a
distinção entre magia e religião é muito mais sutil do que parece ser à primeira vista. O
estudo sobre a magia depende, antes de mais nada, dos significados e conotações a ela
empreendidos ao longo da história. No entanto, a própria Ciência da Religião e demais
estudos científicos sobre a magia e religião acabaram por reificar esses conceitos, gerando
uma grande confusão teórica que perdura até hoje. Hanegraaff (2006) aponta o fato de
que a constituição da tríade magia-religião-ciência está na raiz desses problemas. O
grande erro é o fato de atribuir a toda humanidade esses três tipos de conhecimento
fundamentais. Nesse sentido, criou-se uma realidade que acaba por gerar uma distinção
fundamental entre os povos que pensam, e agem, magicamente, daqueles que pensam
cientificamente. Colocou, ainda, a distinção abissal entre magia e religião, uma falsa e
perigosa, outra verdadeira e redentora. Cabe ressaltar, ainda, o aspecto da amplitude do
conceito de magia. Afinal, vários elementos da vida humana acabaram sendo atribuídos,
por exclusão ou intencionalidade, à magia. Nesse campo acabou entrando uma plêiade de
fenômenos muito distintos como: feitiçaria, prática da maldade, ações demoníacas, curas
medicinais, ocultismo, superstição, divinação, oráculos, misticismo, irracionalidade,
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paganismo, idolatria, fetichismo etc. Faz-se necessário olhar de maneira mais acurada
para formação do conceito a partir da constituição dos estudos de religião.

Visões teóricas sobre magia


Longe de se constituir como algo em si, a magia tem sido a construção de um
determinado olhar sobre práticas e intervenções na vida cotidiana dos mais diferentes
povos. Constitui-se, enquanto tal, um afastamento das crenças e ações dos outros povos
em relação àquilo que se considerava verdadeiro no momento. Esse aspecto impactou
fortemente as visões científicas sobre magia. Hanegraaff lembra que a evidente distinção
entre magia e religião é um legado direto da teologia cristã e das polêmicas doutrinárias.
(HANEGRAAFF, 2006, p. 396) Para esse autor, a sociedade ocidental considerou como
religião o cristianismo, enquanto que relegou a magia à ideia de adoração demoníaca e
idolatria pagã, ou seja, uma religião falsa. Tal perspectiva normativa e tendenciosa jamais
deveria ter sido aceita por uma ciência supostamente neutra. Porém, não foi esse o caso.
A própria tríade Magia-Religião-Ciência depende inteiramente de distinções normativas
entre a religião “verdadeira” e a “falsa”, bem como entre a ciência “verdadeira” e a “falsa”
(HANEGRAAFF, 2006, p. 397). Portanto, magia é muito mais uma categoria polêmica
de exclusão que um instrumento imparcial de análise.
É possível distinguir três grandes perspectivas teóricas distintas sobre a noção de
magia. Evidente que essa distinção tem muito mais um caráter analítico do que uma
evidência empírica. Muitos trabalhos sobre magia utilizam elementos que são
identificados a uma ou outra perspectiva, principalmente quanto às duas primeiras. A
primeira corrente teórica diz respeito às obras dos primeiros estudiosos científicos da
religião, principalmente antropólogos do século XIX. Essa perspectiva pode ser
denominada por abordagem intelectualista. A segunda perspectiva é a relativista cultural
ou também denominada de funcionalismo. Por fim, uma perspectiva mais atual, que
ganhou bastante força nos últimos anos, é a abordagem cognitivista. Cabe aqui uma breve
explanação de cada uma delas.

1. A teoria intelectualista da magia


A teoria intelectualista da magia pode ser assim definida pois procura explicar a
magia em termos de processos de pensamento. Edward Tylor (1832-1917), um dos
fundadores da antropologia britânica, não se preocupou especificamente com a magia,
mas elaborou um pensamento centrado na análise das mentalidades como forma de
distinção da cultura dos povos colonizados em relação ao então denominado europeu
civilizado. Em sua obra referencial, publicada em 1871, Primitive Culture, introduz na
academia o termo animismo, aquele que seria para ele o primeiro estágio evolutivo da
religião. (TYLOR, 1920) Fortemente influenciado pela visão evolucionista do século
XIX, Tylor considerava a magia como um estágio primitivo do desenvolvimento cultural
de todos os povos. Enquanto o civilizado já teria deixado o pensamento mágico de lado,
os nativos das colônias ainda estavam presos a essa forma de pensamento infantil. Para
Tylor, o primitivo pensava em termos animistas porque não conseguia separar a realidade
cotidiana do mundo dos sonhos, estendendo essa visão à não separação entre o mundo
empírico do mundo espiritual. Essa visão estende a noção de alma para todos os seres
vivos e também a elementos do mundo natural, como plantas, rochas, montanhas, trovões,
nuvens etc. Em seu pensamento, assim como de seus contemporâneos, não havia uma
preocupação em assinalar uma clara diferença entre magia e religião. A grande
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preocupação se dava em relação à ciência, visto que a magia era tida como um estágio
primitivo e errôneo desta. O primitivo não seria capaz de distinguir entre a realidade
objetiva e o mundo subjetivo, criando conexões ilusórias. O civilizado, por outro lado,
saberia que essas conexões são apenas subjetivas, ocorrendo apenas na mente do
observador, não na realidade.
Tylor influenciou fortemente outros autores, sobretudo James George Frazer
(1854-1941), outro grande expoente do início da ciência antropológica. Da mesma
perspectiva intelectualista que o primeiro, Frazer afirma que a magia se baseia em
associações erradas de ideias, enquanto que a religião está fundamentada nas crenças de
entidades espirituais e a ciência, tendo se emancipado de ambas, representa a visão da
realidade válida e final. Frazer (1949) apresenta de forma sistemática suas ideias sobre
magia na obra The Golden Bough: A Study in Magic and Religion, publicada em 12
volumes entre 1890 e 1915. Foi responsável por uma das definições clássicas a respeito
da magia. Considera que a simpatia é a característica necessária e suficiente da magia e
que esta magia simpática está na base da maioria das superstições. Tratava a superstição
como um defeito intelectual que levava às disfunções do pensamento lógico. Para ele, a
magia é um sistema de pensamento que pressupõe a ação regular e mecânica da natureza.
Frazer percebeu que nas sociedades ditas primitivas, o feiticeiro acredita que,
compreendendo as leis que regem o mundo, é possível controlar os fenômenos. Como na
ciência moderna, a magia interferiria nos acontecimentos deste mundo e preveria fatos
futuros.
A magia simpática baseia-se na associação de ideias por similaridade ou por
contiguidade física ou temporal. Para Frazer, isso se devia a um erro de pensamento.
Classificava a magia simpática em dois tipos: a homeopática, ou imitativa, ou seja, o
semelhante age sobre o semelhante; e a contagiosa, quando estabelece uma relação,
mesmo à distância, entre duas coisas que já estiveram em contato. Em ambos os casos
temos uma relação direta entre causa e efeito. Se para Frazer a magia utiliza de maneira
errônea o princípio de associação de ideias, então pode ser considerada como uma falsa
ciência.
Segundo Frazer, a magia seria a primeira forma de pensamento humano. O
primitivo procura controlar, por seus próprios meios, as forças da natureza. Após perceber
que não consegue utilizar dessas forças, o ser humano abandonaria a magia para se ater à
adoração de seres divinizados e superiores. Passaria, assim, a uma etapa mais evoluída
que, através da prece e do sacrifício em nome desses deuses, o ser humano procuraria o
caminho da salvação. Este seria o momento da religião. Quando, enfim, percebesse os
limites da religião, o humano voltaria para o princípio da causalidade, mas dessa vez não
mais de maneira mágica, mas sim experimental e científica. Desta forma, atingiria o grau
mais evoluído, ou seja, a ciência moderna da civilização ocidental.
Tylor e Frazer foram seguidos por muitos estudiosos também influenciados pela
perspectiva evolucionista. Tais como Andrew Lang (1844 a 1912), Wilhelm Wundt
(1832-1920) e Gerardus Van der Leeuw (1890-1950). Este último, um dos expoentes
iniciais da Ciência da Religião, sustentou que o mago acredita poder controlar o mundo
externo pelo uso de palavras e feitiços.
Um ponto importante a enfatizar sobre a teoria intelectualista de magia,
protagonizada por Tylor e Frazer, é que ela considera a ciência, e não a religião, a
oposição intelectual da magia. Na magia há a crença em correspondências e analogias
meramente imaginárias, através de forças invisíveis, em contraste com os mecanismos
causais básicos reais da ciência. No entanto, diferentemente de seu antecessor, Frazer
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estabeleceu uma linha evolutiva entre elas que passaria pela religião. Desta maneira
estava estabelecida a tríade Magia-Religião-Ciência que tanto influenciou pensamentos
posteriores.
2. Relativismo cultural e funcionalismo
A virada para o século XX trouxe novas perspectivas teóricas que colocaram em
xeque a visão etnocêntrica dos evolucionistas. A teoria intelectualista foi sendo deixada
de lado e passou-se a analisar a magia a partir de uma perspectiva relativizadora. Não se
tratava mais de colocar o branco, cristão e europeu no ápice da civilização, mas perceber
que não há culturas superiores ou primitivas. Outras chaves analíticas foram utilizadas
para dar conta da explicação não apenas da magia, mas dos comportamentos e da cultura
como um todo. Esse empreendimento da Antropologia foi estendido aos demais estudos
de religião. Essa perspectiva relativista também foi denominada por funcionalista devido,
principalmente, a obra de seus principais iniciadores, que buscaram as explicações da
vida social na função exercida pelas instituições, entre elas a religião e a magia. Os
inauguradores dessa perspectiva foram os franceses Emile Durkheim (1858-1917) e
Marcel Mauss (1872-1950).
Mauss, ao estabelecer o conceito de “fato social total”, aprofundou a compreensão
da cultura como campo multidensional, formado pela integração de várias instâncias da
vida social, entre elas a religiosa, a mística, a histórica, a econômica e a política. Neste
sentido, a magia deve ser compreendida como uma realidade total a partir das
representações coletivas que a definem num determinado contexto particular. A vida
social é um mundo de relações simbólicas e os sistemas formados pelos símbolos são
sempre construções coletivas. Uma ação individual só ganha sentido no conjunto mais
amplo da vida social total.
Mauss e o estudioso de religiões comparadas Henri Hubert (1872–1927)
escreveram uma obra seminal para os estudos sobre magia, Esboço de uma teoria geral
da magia. (MAUUS; HUBERT, 1974) Para esses autores, não basta compreender a magia
restringindo-se apenas à sua lógica interna. É preciso reconhecer que o pensamento
mágico está inserido num conjunto de valores sociais mais amplos, pleno de emoções e
intenções. Para compreender um ato mágico, é preciso olhar para organização social que
os criou. Os fenômenos mágicos, e também os religiosos, não podem ser apreendidos
simplesmente através das consciências particulares. A magia não é um ato individual, por
mais isolado que o mago esteja. Ela será sempre social, pois aquele indivíduo age de
acordo com as tradições de seu grupo. A magia só funciona porque está inserida no
conjunto das representações sociais.
O elemento comum entre magia e religião foi denominado por Marcel Mauss
como mana, palavra melanésia que designa a ação de manipulação de forças
sobrenaturais, bem como a qualidade mágica de certos objetos ou seres. O mana, distinto
de qualquer força material, é uma substância que pode ser transmitida e manipulada. Pode
ligar-se a coisas materiais ou ser uma força espiritual que produz efeitos à distância. A
riqueza do pensamento de Mauss não está em pensar o mana como algo em si mas como
uma categoria de pensamento coletiva que organiza e classifica objetos e pessoas. A
magia e a religião são sistemas de conhecimento. Enquanto crenças, magia e religião
envolvem pensamento, símbolos e formas de comportamento. Traduzem maneiras únicas
de ser um grupo humano na infinita possibilidade de ser.
Junto a Durkeim, Mauss escreveu sobre o pensamento enquanto uma maneira de
classificação (MAUUS; DURKHEIM, 1981), ou seja, do empreendimento humano de
colocar ordem nas coisas. Desta feita, a magia cumpre, como qualquer outro sistema de
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pensamento, um papel na classificação dos seres animados e inanimados. Ao estabelecer


uma relação entre coisas aparentemente desconexas, o pensamento mágico estabelece um
conjunto de relações significativas entre elas. A divisão hierárquica da sociedade e as
relações que os indivíduos estabelecem a partir dessas relações acarretam uma
hierarquização lógica de valores. Ao estudar as sociedades tribais, esses dois autores
procuraram perceber qual é a origem dos sistemas classificatórios. As questões
relacionadas a parentesco, casamento, gênero, família, clã, serviriam de base para
classificações de outra ordem. A classificação entre as ordens do sagrado e do profano
fundamenta toda um conjunto de classificações sociais. As oposições sagrado/profano e
vida/morte orientam todas as demais classificações. Assim também se dá com a magia.
As ações, as interpretações dadas aos oráculos e os feitiços praticados estão todos
relacionados a esse conjunto de classificações.
Diferentemente de seu sobrinho Marcel Mauss, Durkheim nunca empreendeu um
estudo específico sobre a magia. Entretanto, em sua principal obra sobre a religião, As
formas elementares da vida religiosa (2000), publicada originalmente em 1912, distingue
claramente a religião da magia. Para o sociólogo francês, religião é “um sistema solidário
de crenças e de práticas relativas a coisas sagradas, (...) que reúnem numa mesma
comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a ela aderem” (DURKHEIM,
2000, p. 32) Para esses dois autores, no entanto, magia se distingue fortemente de religião.
Apontam a repugnância da religião pela magia, assim como o ato mágico ser
intrinsecamente antirreligioso (Mauss) e não haver igreja mágica (Durkheim).
Diferentemente da primeira perspectiva intelectualista, a grande ênfase, nesta segunda
corrente teórica, é a conjuntura social focada na função que a magia, em oposição à
religião, exerce.
Outro grande pensador desse período foi Lucien Lévy-Bruhl (1857-1939). Este
pensador francês não apresentou nenhuma teoria específica da magia, mas estava
centralmente preocupado com o modo de pensamento associado, que ele chamava de pré-
lógico ou pré-científico. (LÉVY-BRUHL, 1960) Ele argumentou que as sociedades
ocidentais modernas são cientificamente orientadas em seus pensamentos, enquanto as
sociedades primitivas são misticamente orientadas a usar o sobrenatural para explicar
eventos inesperados e anômalos. Uma grande contribuição sua foi o conceito de
participação. O pensamento mágico é atrativo porque permite o sentimento de
participação do sujeito numa totalidade. O indivíduo e o cosmos estão ligados, tudo o que
acontecer ao mundo afetará o ser humano e vice-versa. Esse autor negava que os povos
primitivos fizessem uso do pensamento abstrato e conceitual. Para ele, a mentalidade
primitiva tem uma funcionalidade eminentemente prática e é voltado a aspectos místicos.
Essa característica mística permite estabelecer relações entre pessoas, coisas, fatos ou
ideias que estão isolados. A todo o momento e lugar, o homem das sociedades tribais
percebe que os objetos e seres que o cercam estão inseridos, inclusive ele próprio, numa
ampla rede de participações ou exclusões. Como o elemento que rege essas participações
é místico, sempre que lhe acontece ou deseja alguma coisa, o homem busca agir através
do sobrenatural, manipulando forças místicas. Desta maneira, o mundo sobrenatural
confunde-se com o natural.
Na mesma perspectiva funcionalista, mas agora acrescentada da riqueza do
trabalho de campo, que colocou o cientista em contato com os nativos praticantes do que
se chamava de magia, encontramos o pensamento de um polonês radicado na Inglaterra,
Bronislaw Malinowski (1884-1942). Para esse antropólogo, para compreender a visão de
mundo e o sentido dado à magia pelos povos estudados, é fundamental que se procure,
através de uma observação participante, compreender a cultura em seus próprios termos.
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A magia, como um dos componentes fundamentais desses grupos, deve ser entendida a
partir das funções que desempenha visando o funcionamento do organismo social como
um todo, pois todos os elementos da cultura são funcionais e interdependentes
(MALINOWSKI, 1978).
Para ele, a magia, assim como qualquer outro fato social, é uma resposta a uma
necessidade básica do grupo. Se aqueles habitantes não dispõem de instrumentos e
conhecimentos capazes de assegurar um domínio sobre o meio natural, então lançarão
mão de forças mágicas. Diferentemente dos evolucionistas, que viam a magia como uma
etapa a ser superada, o funcionalismo de Malinowski compreende que, se o pensamento
mágico sobrevive é porque ele tem um sentido e uma função para o grupo. A magia
adquire, sob esse ponto de vista, uma função pragmática, uma vez que seus atos
simbólicos só se tornam reais e efetivos através dos efeitos que produzem. Todas as
atividades realizadas pelos nativos por ele estudados, seja a pesca, a construção de seus
barcos e a navegação, estão envolvidas com a magia.
Malinowski percebia nesses povos a existência de um pensamento racional e
lógico. A magia é utilizada quando não se tem conhecimentos e instrumentos que deem
conta do domínio sobre a natureza. Assim, diante do imprevisto e do desconhecido,
quando os meios práticos não possibilitam nenhum tipo de controle, utiliza-se da magia.
Nestes casos, esta cumpre muito bem sua função.
Malinowski influenciou toda uma geração de antropólogos. Dentre estes,
destacamos o estudo de Evans-Pritchard (1902-1973) entre os Azande, no Sudão do Sul.
O nome de seu principal trabalho, Bruxarias, oráculos e magia entre os Azande (1978),
já nos dá uma pista da sua preocupação principal. Evans-Pritchard questionou o
pensamento de Lévy-Bruhl quanto à questão de uma mentalidade primitiva que explicaria
as crenças tidas como irracionais. Por outro lado, admirava-o quanto à explicação que
Lévy-Brhul dava a respeito da natureza das representações coletivas, ou seja, aquelas
crenças que são compartilhadas por todos os membros do grupo. Esses postulados e
crenças são aceitos até de maneira inconsciente por todos os indivíduos.
De acordo com Evans-Pritchard, os Azande fazem uma distinção entre ser bruxo
e ser feiticeiro. Para ele, a bruxaria é um fenômeno orgânico e hereditário. Todo ato de
bruxaria seria, então, um ato psíquico. Observa que a bruxaria permeia todos os
momentos dos Azande. Forma um pano de fundo para o vasto panorama do uso de
oráculos e magia. Se um insucesso ou infortúnio qualquer se abate sobre uma pessoa,
pode-se atribuir a causa à bruxaria, a menos que haja alguma evidência do contrário ou
que o oráculo confirme que o acontecimento foi obra de feitiçaria feita por algum inimigo.
O combate à bruxaria se faz através da magia. Nesses casos, seu uso é socialmente
aprovado. Se, no entanto, algum Azande utiliza a magia conscientemente para fins
malignos, está usando de feitiçaria, fato este que é moralmente condenável. A bruxaria
não é temida, pois é esperada e acatada por todos com muita naturalidade.
É importante perceber como que os Azande explicam a ordem dos
acontecimentos. A bruxaria explica a coincidência de dois acontecimentos independentes
que acontecem num mesmo momento, acarretando algum tipo de prejuízo. O exemplo
que ele dá para o caso do celeiro é bastante ilustrativo. Todo Azande sabe que a madeira
dos celeiros apodrece devido a ação dos cupins, causando muitas vezes seu desabamento.
Todos eles sabem, também, que ao meio do dia, quando o sol está mais forte, costumam
ficar alguns momentos sob os celeiros. O problema que o Azande se coloca é: por que o
celeiro caiu exatamente aquela hora em que ele estava embaixo? Eles sabem como e o
celeiro caiu. Foi pela ação dos cupins. Mas por que naquele exato momento? Isso se deve,
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sem dúvida, a uma obra de bruxaria. Para os Azande, a bruxaria não é a única causa dos
fenômenos. Ela permite, no entanto, colocar um homem em relação a eventos, nos quais
ele sofre danos, mas que ele não tem como controla-los.
Portanto, longe de significar um desconhecimento das relações causais, como
diriam os evolucionistas, a crença na magia aponta exatamente ao contrário. Há, sim, uma
mentalidade voltada às causas. Ela permite estabelecer relações causais onde o
pensamento lógico não percebe nenhuma. Mais ainda, ela permite um controle sobre a
ordem dos acontecimentos, pois todo Azande tem a possibilidade de utilizar os oráculos,
para saber dos perigos de alguma feitiçaria, e pode até lançar mão da própria magia para
se proteger. Sendo um conjunto de crenças que permeia todo o grupo social, acaba por
colocar os acontecimentos em relação aos demais indivíduos. Dessa maneira, a magia tem
por função controlar, orientar e explicar a ordem das relações sociais entre o grupo.
Superando o pensamento de Durkheim e de Mauss, Claude Lévi-Strauss (1908-
2009) trouxe significativa contribuição ao estudo antropológico da religião e da magia,
embora não possa ser encontrada entre suas obras estudos específicos desses fenômenos.
Lévi-Strauss considera que seus antecessores, apesar de não equivocados, não explicaram
a complexidade das relações sociais. Ao permanecerem presos somente aos dados
empíricos, ou seja, aqueles verificados através da experiência, Mauss e Durkheim não
reconheceram as demais dimensões simbólicas e abstratas presentes na sociedade. Ele
analisa o religioso e o mágico como partes de um sistema de relações que engloba o
artístico, o jurídico e todo aspecto material da sociedade.
Em seu livro O pensamento selvagem, Lévi-Strauss (1970) mostra como se dá o
conhecimento entre os povos primitivos. Para ele, tanto o pensamento científico moderno
quanto o pensamento mágico, mítico e religioso utilizam procedimentos semelhantes:
observação, sistematização e classificação. O pensamento primitivo é uma forma de
conhecimento que produz ordenações verdadeiras. Lévi-Strauss diz que o pensamento
mágico é distinto e autônomo frente ao científico. A magia não é uma mera etapa da
evolução científica, mas é uma forma de conhecimento bem articulada e independente.
Na base de qualquer pensamento está a ordem que se dá a partir de uma intuição sensível
e se apoia na percepção de que os seres e coisas do mundo não são elementos isolados,
mas estão envolvidos em relações de significado. Lévi-Strauss chama essas formas de
conhecimento de “ciência do concreto”, cujos resultados não são menos verdadeiros do
que os das ciências exatas.
Para Lévi-Strauss, ao colocar elementos diferentes numa mesma classe
estabelece-se um princípio de congruência entre duas ou mais coisas então separadas
(fundamento do pensamento mágico). Ao realizar isso, os seres humanos criam um
princípio de ordem no universo. A necessidade de ordenação está na raiz de qualquer
pensamento. Diz ele que “qualquer ordem é melhor do que nenhuma”. A exigência de
uma ordem está na base do pensamento primitivo não por uma característica particular
deste, mas porque esta exigência está na base de todo pensamento. Todo ato mágico
participa dessa ordem classificatória maior, atribuindo o valor e o lugar de cada coisa.
Longe de ser apenas um sistema voltado a questões práticas, o pensamento mágico
articula conhecimentos extremamente abstratos. Lévi-Strauss afirma que “as espécies
animais e vegetais não são conhecidas porque são úteis, mas são classificadas úteis ou
interessantes porque são primeiramente conhecidas” (LEVI-STRAUSS, 1970, p. 29).
A magia não é menor do que a ciência. Ela não ignora as causas reais que afetam
os fenômenos. Lévi-Strauss afirma que as duas se diferem pela ordem de determinações
impostas por cada um desses tipos de pensamento. Enquanto a ciência diferencia níveis e
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formas de determinações, a magia formula uma crença mais global que abarca todos os
tipos de acontecimentos. Assim, para o pensamento mágico as causalidades que regem os
fenômenos já são dadas a priori e estão no nível mágico e sobrenatural. Sendo o mago,
ou feiticeiro, alguém que consegue controlar essas forças causais, a magia tem, portanto,
sua eficácia. A magia não pode ser vista como uma modalidade tímida da ciência, pois
assim nos privaríamos de conhecer o pensamento mágico. Este é tão completo, acabado
e coerente em sua imaterialidade quanto a ciência. Melhor que opor magia e ciência, seria
coloca-las em paralelo, como duas formas de conhecimento, desiguais quanto aos
resultados teóricos e práticos, mas não pelo gênero de operações mentais que ambas
supõem.
As teorias relativistas culturais e funcionalistas permanecem influenciando os
estudiosos até os dias atuais. Seu grande mérito foi o de contornar a visão etnocêntrica
tão presente nos pensamentos anteriores e nas posturas de senso comum presentes até
hoje. No entanto, deram enorme ênfase à cultura enquanto produtora de diferenças. Longe
de ser um equívoco, esse pensamento impossibilitou enxergar a magia, ou a religião, em
sentido mais amplo. Afinal, toda tentativa de generalização tem sido rechaçada e em seu
lugar afirma-se que somente é possível estabelecer estudos particulares. Evita-se cair num
essencialismo, mas por outro lado inviabiliza uma compreensão geral sobre a persistência
do pensamento mágico e religioso por todos os povos do planeta. Outro problema a ser
destacado é o fato de que essa perspectiva reforçou a suposta diferença entre magia e
religião, colocando-as em polos opostos. Tal fato acaba por reforçar a noção reificadora
tanto da magia quanto da religião como entidades em si mesmas.

3. Teoria cognitivista da religião e magia


Na crítica feita ao evolucionismo etnocêntrico do século XIX, as teorias
culturalistas de cunho funcional acabaram deixando de lado a visão intelectualista. A
persistência da religião e da magia foi atribuída, então, às suas funções sociais. Há de se
pensar que, não havendo necessidade ou função, a magia e a religião tenderiam a
desaparecer. De certa forma essa é a tese do historiador Keith Thomas (1933- ) sobre o
declínio da magia na modernidade que muito tem influenciado os pensadores atuais.
Porém, essas posturas invalidaram a tentativa de perceber a magia enquanto consequência
de estruturas cognitivas mentais do ser humano, além de fortalecerem uma visão
reificadora de um elemento de contornos visíveis denominado de magia.
À margem desse pensamento hegemônico, começou a surgir nas últimas décadas
uma nova perspectiva intelectualista. Essa retomada pode ser de grande auxílio para
compreender a natureza e a universalidade da magia e da religião sem se remeter a uma
explicação funcional e muito menos essencialista. A religião e tudo aquilo que
entendemos por pensamento mágico-religioso são consequências das estruturas de
pensamento dos seres humanos. No entanto, é preciso deixar claro que não há a
perspectiva dos primeiros estudiosos, para os quais religião e magia eram frutos de uma
mente primitiva incapaz de perceber a realidade causal. É necessário ressaltar, também,
que nessa perspectiva não diferencia magia da religião e muito menos da ciência. Todas
essas formas de conhecimento são obras da maneira como nossas mentes trabalham.
Para compreender o cérebro que produz crenças, é preciso percebê-lo como
resultado de uma longa evolução biológica e adaptativa. As Ciências Cognitivas se
baseiam na concepção de que o cérebro humano é uma grande coleção de recursos
especializados, evoluídos para resolver problemas adaptativos encontrados pelos nossos
ancestrais ao longo de muitos milênios. Essa arquitetura estrutural da mente do ser
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humano moderno, o Homo sapiens, é comum a todos nós e opera para além das diferenças
culturais. Convém ressaltar que as particularidades culturais são frutos dessa mesma
arquitetura mental, notadamente a capacidade simbólica. Quando falamos de seres
humanos, há de se de considerar suas duas facetas: a biológica, da espécie, e a cultural,
da imensa diversidade histórica. Ambas interferem naquilo que somos. Como afirma Matt
Ridley, os humanos são uma mescla de genes, natureza e experiências (RIDLEY, 2008).
Dessa forma, podemos entender a natureza dos aspectos mágicos e religiosos para além
das especificidades culturais. E também compreender as manifestações culturais, frutos
de contextos históricos.
As ciências cognitivas surgiram a partir de estudos interdisciplinares vindos da
psicologia evolutiva, filosofia, cibernética, inteligência artificial e antropologia. Aos
poucos esses estudos foram sendo aplicados em diferentes áreas, entre elas a religião.
Segundo seus defensores, é possível perceber o comportamento mágico-religioso a partir
de componentes inatos do ser humano.
Michael Shermer trabalha com a ideia de que evoluímos no sentido do
desenvolvimento de um “motor de crenças”, sendo o cérebro uma máquina dessas.
(SHERMER, 2011) A partir das informações captadas pelos sentidos, o cérebro constrói
padrões e incute um significado. Esses padrões significativos se tornam crenças. Segundo
a Ciência Cognitiva da Religião, a descoberta de padrões, na natureza, no comportamento
dos demais animais e também dos demais seres humanos, é um tremendo ganho. Somos,
portanto, descendentes daqueles que foram melhores na descoberta desses padrões. Nessa
busca por padrões os seres humanos encontram causas. O grande problema é que nem
sempre as causas descobertas são aquelas que efetivamente acarretam os acontecimentos.
Muitas vezes não há tempo e discernimento capazes de perceber se tal efeito é fruto de
uma ou outra causa. Acaba-se criando padrões onde eles nem mesmo existem! A
repetição de acontecimentos gera a atribuição de um padrão, o que nos faz perceber que
diante de uma determinada causa há um efeito. Essa ligação é feita de maneira direta, sem
haver uma conexão real entre causa e efeito. Cria-se uma crença de que existe essa
ligação. Isso é feito de maneira inconsciente e muito rápida. Se os seres humanos tivessem
que pensar como responder frente a essas situações, acabariam não agindo e sofrendo um
grande risco de serem pegos pelos predadores ou inimigos. Esse mecanismo é intuitivo e
automático, semelhante ao que se dá em outros mecanismos mentais.
Na ciência também trabalhamos com causas e efeitos, mas de maneira bastante
diferente. Há uma verificação metódica para perceber se há ligação entre a causa e o
efeito. Na magia e na religião essas conexões são diretas, sem uma necessária vinculação.
São crenças. O mecanismo da crença é inato. A cada época constrói-se conteúdos de
crenças distintos. Esses, sim, são culturais. O conceito de magia é histórico, portanto. Mas
aquilo que possibilita a magia é inato.
Os cientistas cognitivos que estudam as crenças religiosas apontam para o fato de
que acontecimentos fortuitos incomodam os seres humanos. O acaso é insuportável pois
é incontrolável. Busca-se causas e sentido nos acontecimentos. Cria-se uma ordem por
detrás do que está oculto e acredita-se que a causa pode ser desvelada. Percebe-se
sequências em busca de uma ordenação. Pascal Boyer (2001) afirma que uma causa-efeito
que se repete permite predição e controle. Ciência, magia e religião nascem desse
princípio. O mecanismo cognitivo que relaciona causa e efeito é o mesmo para esses três
domínios.
Pyysiäinen argumenta que o conceito de magia emergiu simplesmente porque
existe uma tendência humana para acreditar que alguns eventos naturais são devido a
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uma causa sobrenatural. (PYYSIÄINEN, 2004, p. 96) A relação de causa e efeito, descrita
incialmente por Frazer na magia simpática, está presente tanto na religião como na
ciência. É fruto do funcionamento mental. A crítica que o autor faz é a de que os
estudiosos funcionalistas ignoraram a fundamentação psicológica cognitiva do
pensamento mágico. Afirma que é fundamental a consideração do processo todo para a
compreensão do fenômeno. (PYYSIÄINEN, 2004, p. 105)
Avançando nesse raciocínio, Jesper Sorensen vai procurar como as descobertas da
ciência cognitiva podem dar assistência na análise sobre a magia, a ação mágica e o ritual
mágico. Descreve como várias vertentes serão combinadas de maneira a dar uma visão
compreensiva da categorização humana, da conceptualização e da construção de
significados que suportam a ação mágica nas suas diferentes formas. (SORENSEN, 2007,
p. 32)
Ainda é cedo para testemunhar os ganhos que essa nova perspectiva intelectualista
denominada de Ciência Cognitiva da Religião pode provocar no estudo da magia.
Pesquisas recentes têm demonstrado que esses mecanismos de crenças, uma vez da
espécie, tenderão a persistir entre todos os povos e a magia, assim como a religião, está
muito distante de eliminação e sequer de um declínio. Um grande proveito perceptível é
a eliminação do efeito de reificação desses conceitos. Pesquisas promissoras vão na
direção, agora, de procurar perceber como, e quanto, que os fatores culturais interferem
nas cores e dimensões dos elementos mágicos e religiosos da vida das pessoas. Para
muitos, é a grande promessa dos estudos de religião desse século XXI. (GEERTZ, 2014)

Um conceito descartável?
Há quem proponha a eliminação de conceitos como magia e religião pelo fato de
serem construções colonialistas e ideológicas. Evidente que magia não é uma categoria
natural encontrada no mundo (SORENSEN, 2007, p. 2). São modelos sobre o mundo e
servem como descritores de um leque de fenômenos observáveis. Como visto, a
concepção de magia serviu mais para discriminar os outros povos, classificando aqueles
superiores detentores de uma religião frente os demais, supersticiosos e voltados a um
pensamento mágico.
Enxergar magia nas culturas não ocidentais é fazer uma projeção de um conceito
ocidental por sobre culturas que não possuem qualquer denominação a esse respeito.
Identificar a magia serviu muito mais como uma forma de isolar e reprimir crenças e
ideias diferentes das aceitas como verdadeiras. O mesmo vale para o interior da nossa
cultura, pois os elementos mágicos estão presentes a todo momento. Embora haja uma
distinção nas concepções de senso comum separando magia da religião e da ciência, é
preciso reconhecer que são formas de lidar com as vicissitudes do mundo.
Como apontado anteriormente por Hanegraaff (2006), está mais do que na hora
da Ciência da Religião se afastar de estudos tendenciosos. É preciso empreender uma
desconstrução dos conceitos para evitar o risco de se cair em reificações que os tornem
engessados, acabando por fazer com que os pesquisadores mais procurem encaixar a
realidade observada dentro daqueles conceitos já estabelecidos do que realmente
empreender uma construção edificadora de compreensão mais ampla sobre os fenômenos
mágico e religiosos.
Ao invés de simplesmente abandonar o conceito, o que pode em nada contribuir
para eliminar o problema, a tarefa que se coloca é a de perceber a magia como algo
intrínseco ao ser humano. A enorme variedade com que ela é comumente identificada
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pode ser entendida como fruto de um mecanismo básico central. Ao invés de desmerece-
la, é preciso compreender essa variedade e as relações com as histórias e particularidades
culturais. A magia não vai declinar nem é algo a ser evitado. O cotidiano de cada um de
nós é exemplo de como se vive rodeado de elementos mágicos. Cabe à Ciência da
Religião compreender indistintamente os elementos mágicos e religiosos e como eles se
fazem presentes na vida dos povos.

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Basic Books, 2001.
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comparative science of religion and the anthropology of religion. Numen, v. 61, 255-280,
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LÉVY-BRUHL, Lucien. La mentalité primitive. Paris: PUF, 1960.
MALINOWSKI, Bronislaw. Magia, Ciência e religião. Lisboa : Edicoes 70, 1988.
MAUSS, Marcel e DURKHEIM, Émile. Algumas formas primitivas de classificação. In:
MAUSS, Marcel. Ensaios de sociologia. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1981.
MAUSS, Marcel e HUBERT, Henri. Esboço de uma teoria geral da magia. In: MAUSS,
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