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Medicina não é superstição, em se limita a ser uma crença supersticiosa ou infundada, nem
um conjunto delas. Caso se conceitue crença como aquilo em que alguém crê ou acredita,
todo conhecimento é uma crença, ainda que nem toda crença possa ser caracterizada como
conhecimento. Todo conhecimento, por definição inclui um certo grau de convicção em sua
veracidade. Neste sentido estrito é uma crença, algo em que se acredita.
A primeira explicação que as pessoas e as comunidades primitivas encontram para os
acontecimentos foi de natureza mágico-sobrenatural). Inclusive a explicação para as
enfermidades, como os feitiços (objetos materiais aos quais se atribui alguma potencialidade
sobrenatural. Bem como supersticiosos foram os recursos que mobilizaram para enfrentá-las.
Tais recursos foram chamados de feitiços (coisas materiais, objetos usados com propósitos
sobrenaturais). Desde então há quem pretenda que as intervenções mais eficazes para mudar
o mundo e as coisas que existem nele sejam as daquele tipo. Isto também se dá no campo da
enfermidade e do seu tratamento.
Magia é como se denomina a crença de que é possível intervir em fenômenos naturais
empregando recursos sobrenaturais. Feitiço é como se denomina o recurso natural pelo
qual se tenta interferir no mundo sobrenatural. Sobrenatural é o adjetivo que expressa a
qualidade de tudo que se acredita existir fora da natureza, no mundo além do natural. O
adjetivo sobrenatural designa alguma coisa cuja explicação se situa além da natureza,
ultrapassa os limites naturais. Os teólogos usam este termo para referir uma ordem
qualitativamente diversa na ordem que se encontra na natureza. Todo os materialistas e
naturalistas, além de muitos racionalistas e adeptos de outras escolas filosóficas negam
utilidade a este conceito porque sustentam a irrealidade daquilo que ele representa.
A Medicina nasceu e deu os primeiros passos como prática sobrenaturalista ainda na Pré-
História da humanidade. Primeiro, animatista; depois, animista e, só bem mais recentemente,
religiosa (que, como se há de verificar, são fenômenos humanos e sociais diferentes).
O sobrenaturalismo foi seu berço original, muitíssimos séculos antes de existirem as religiões
Pois, as religiões, tais como são concebidas hoje são uma experiência cultural humana
relativamente recente (contemporânea dos primeiros impérios da Antigüidade). Mas é
possível sustentar a tese de que a Medicina Antiga foi subproduto das crenças sobrenaturais
pré-religiosas. Mas um sub-produto seu, e notavelmente eficaz. Tanto do ponto de vista das
necessidades individuais, quanto das sociais.
O sobrenaturalismo foi a primeira concepção idealista conhecida para explicar tudo o que
existe e que acontece. Inclusive as enfermidades e seu tratamento. Expressou-se em diversas
formas de crença em espíritos como entes diretor da conduta das coisas inanimadas e
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Ritos
e
Mitos
Conduta estereotipada segundo um ritual pré-estabelecido que se acredita pode esconjurar um
malefício ou controlar forças sobrenaturais para ocasionar um benefício ou mm malefício. Em
geral, como fenômeno cultural comum, utiliza-se o termo para mencionar o manejo de coisas
consideradas sagradas. Participar de certas condutas voluntariamente repetidas (ritualizadas)
e compartilhar com os outros membros da comunidade algumas crenças míticas são
fenômenos associativos das sociedades primitivas que possuem notável poder de coesão social.
Além de servirem como instrumentos pessoais de adaptação. Originalmente, a expressão rito
(bem como a palavra ritual) se referia ao conjunto de regras e procedimentos que orientava a
prática dos cultos de adoração ou veneração de uma divindade. Mais tarde, o termo passou a
se referir a outros fenômenos culturais como os ritos de passagem de idade, as cerimônias de
matrimônio e certos comportamentos coletivos padronizados de natureza política.
As superstições, os mitos e os ritos guardam muita analogia com os fenômenos
anancásticos (obsessivo-compulsivos), estudados no campo da psicopatologia. No
entretanto, convém que este fenômenos culturais não sejam psiquiatrizados, ainda que
suas implicações psicopatológicas não devam ser esquecidas. Sobretudo no estudo de
casos individuais. Os mitos, por sua vez, como se viu em outro capítulo deste texto, são
crenças mais ou menos fabulosas que pretendem explicar a origem e o desenvolvimento
dos valores de uma cultura e das pessoas que a integram. Os mitos religiosos são em geral
são considerados dos mais importantes de uma cultura. Mas, os mitos se consolidam mais
quando estão associados a certos ritos praticados coletivamente. Praticamente todas as
culturas cultivam mitos que ap’óiam a noção de sua identidade cultural.
Misticismo
e
Ciência
A curiosidade é inata nos símios. Nos humanos mais que em qualquer outro deste grupo
biológico. Os seres humanos têm necessidade de saber; experimentam a necessidade de
entender as coisas e o porquê das coisas, de saber porque algo acontece e porque não
acontece, porque acontece assim e não de outro modo, e saber como acontece, como
funciona um mecanismo ou um processo evolui. Já o misticismo se refere à condição de
pessoas preocupadas com manifestações sobrenaturais, religiosas.
Desde a aurora da humanidade, quando os seres humanos se defrontaram com suas limitações
e perceberam o risco que seu viver lhes acarretava e aprenderam a temer o que desconheciam,
passaram a sentir a necessidade de explicar o mundo à sua volta, para aumentar suas
possibilidades de sobreviver, facilitar sua vida e melhorar seu bem-estar. Enquanto não
conheciam a natureza e não podiam explicar logicamente os fenômenos naturais, tentaram
explicá-los de forma mágico-sobrenatural através dos mitos e das crenças frutificadas na
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ideologia e no pensamento mágico. Entender o que exista e se passava ao redor de si, poder
explicá-las e intervir sobre eles, controlando-as, passou a significar segurança.
Ao mesmo tempo, trataram de criar um mundo imaginário, no qual pudessem esperar
compensar-se dos sofrimentos, fugir ao medo da morte e permitir-se ter esperança no futuro.
Este mundo fantasiado, é o mundo do misticismo e da superstição.
A palavra misticismo costuma ser empregada com alguns sentidos bastante convergentes:
1. Atitude mística e religiosa que busca a união do crente com uma divindade; 2. Doutrina
segundo a qual a qualidade última é revelada é revelada por meio de um conhecimento
especial, distinto do perceptivo e do ideativo e superior a eles; 3. crença na influência de
agentes sobrenaturais nos fenômenos sociais, humanos e da natureza.
A noção de misticismo mantém grande identidade de elementos com o conceito de
superstição. A palavra superstição também não é unívoca e pode abrigar os seguintes sentidos:
1. crença ou prática pela qual se atribuem explicações sobrenaturais aos acontecimentos
naturais; 2. crença que continúa a ser aceita pela pessoa como verdadeira, a despeito de sua
falsidade ter sido comprovada pela ciência ou pela experiência vivida.
No plano psicológico (e, mais precisamente psicopatológico), o misticismo e a superstição
estão fortemente correlacionados com os fenômenos obsessivo-compulsivos e a manifestações
delirantes ou deliróides.
As diferentes manifestações do vitalismo são (ou foram) formas de expressão supersticiosa na
formulação das explicações mágico-religiosas do organismo humano (ou de todas as entidades
biológicas). As manifestações da vida eram consideradas tão maravilhosamente perfeitas,
quando comparadas com os artefatos mecânicos conhecidos, e tão inexplicáveis à luz dos
conhecimentos existentes, que se aparecimento só poderia ser devido a uma divindade. E cada
vitalista escolhia a divindade que mais lhe agradasse; esquecendo que tal divindade deveria
ser mais complexa e mais inexplicável, o que gera um pensamento circular interminável.
O misticismo e a superstição são comportamentos humanos e fenômenos sociais relacionados
com as convicções e práticas mágicas, feitiços e comportamentos que se acreditam influir em
entes sobrenaturais ou, sobrenaturalmente, desfrutar a possibilidade de influir no mundo
natural. Neste sentido, a magia e o feitiço são processos defensivos simultaneamente
psicológicos e ideológicos baseados no medo e na insegurança das pessoas frente a ameaças
que não possa explicar de outra maneira e, frente às quais, se sinta impotente; mas baseados
também na necessidade social de instrumentos culturais capazes de tornar homogênea a
consciência social.
Magia é o termo genérico que designa a explicação de fenômenos naturais por meio de
conceitos sobrenaturais. Contudo, a expressão magia também pode se referir a práticas rituais
de intervenção que se acredite capazes de mobilizar ou afastar entidades sobrenaturais
desconhecidas (magia direta) ou conhecidos, como demônios, divindades, espíritos (magia
indireta). Em todas as culturas acredita-se que recitando algumas palavras ou realizando
alguns gestos, pode-se comunicar com o mundo sobrenatural e influir sobre seus habitantes.
As rezas e os rituais místicos se originam nesta fonte.
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Em algumas culturas este ritos são bastante trabalhosos, implicam na repetição insistente de
rituais que não devem ser modificados mesmo um pouquinho. Noutras, como alguns os
católicos, os rituais envolvem auto-flagelação, sacrifícios pessoais e outras manobras bastante
dolorosas. Outras, são mais simples, alguns povos orientais compram papeizinhos com orações
nos templos e os penduram em varais para que o vento, soprando nele, leve suas orações para
as divindades. Praticamente todos creditam que estas manobras podem influir na cura dos
enfermos e na profilaxia das enfermidades.
Esses comportamentos rituais e as crenças mágicas que os fundamentam caracterizam uma
fase primitiva do pensamento humano. Contudo, por causa da correlação entre os
pensamentos mágico-sobrenaturais com característica pessoais anancásticas (obsessivo-
compulsiva) de muitíssimos de seus pensadores, não tem faltado quem opine sobre o
caráter patológico ou borderline dessas manifestações.
É bastante lógico que se tente intervir magicamente sobre enfermidades às quais se atribua
alguma causa mágico-sobrenatural.
No passado, já houve quem designasse como magia natural às explicações e intervenções
de coisas da natureza ou sobre elas, como aconteceu com o magnetismo ou o
funcionamento dos organismos vivos. Hoje, isto ao faz um certo sentido, mas todas as
investigações apontam para a condição natural desses fenômenos. Não há prova
convincente da existência de inteligência ou qualquer outra manifestação que possa ser
caracterizada como sobrenatural.
Os procedimentos mágicos podem pretender ter diversas funções e utilidades para quem os
utiliza, como por exemplo:
a) ser um instrumento de conhecimento (adivinhações de acontecimentos futuros,
respostas a problemas, consultas a espíritos);
b) uma prova de inocência ou culpa (“colocar a mão no fogo“, ordálios, veneno
probatório);
c) um recurso profilático contra certos perigos, como as magias profiláticas (rezas de
esconjurar a má sorte ou a atividade dos maus espíritos, como os talismãs de todos os
tipos);
d) encerrar magias corporais (maus olhados, gestos e palavras capazes de produzir males
ou benefícios por encantamento);
e) rituais exteriores mágicos (oferendas, promessas, sacrifícios).
Outro fenômeno cultural que guarda alguma analogia com o misticismo e a superstição é a
esciosofia, que se materializa em certos procedimentos como a astrologia, a alquimia, a
homeopatia e tantos outros.
Esciosofia é como se denomina a qualquer sistema de crenças que discrepe do conhecimento
científico contemporâneo, ainda que já tenha sido considerado científico no passado. Como
acontece com a astrologia, a teosofia, a frenologia. Exemplos de conhecimentos que já foram
considerados como científicos no passado, mas que não são mais tidos assim atualmente.
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Medicina
Primitiva
No início de uma cultura, sem que se tenha estruturado o pensamento racional, predomina o
pensamento mágico, o que também acontece no desenvolvimento individual. Pois, a
imaturidade psicológica e cultural constitui a matriz da sugestionabilidade e de todas as formas
assumidas pelo pensamento mágico. Por isto, o pensamento mágico impera em indivíduos
imaturos e coletividades pouco desenvolvidas, enquanto o pensamento lógico é apanágio das
pessoas desenvolvidas e educadas. .
A noção de primitivismo é essencialmente progressista ou melhorista, porque presume a
existência de uma cadeia de progressivo desenvolvimento cultural em todas as sociedades,
mas é muito sujeita à influência do etnocentrismo, a tendência considerar sua própria cultura
como modelo ideal de desenvolvimento. E isto é um fator que deve ser cuidadosamente
evitado. Da mesma maneira que os critérios de melhora (os chamados parâmetros
civilizatórios) devem ser constantemente criticados.
Não é de admirar que os povos que debitavam as doenças a causas mágicas, buscassem sua
cura na magia. Acreditando que a enfermidade se devia a um feitiço, procuravam quem
soubesse fazer um contra-feitiço. E, depois, usaria amuletos, para esconjurar a repetição
daquela manobra mágica e malévola. Se julgassem que suas mazelas se deviam a tentativas de
roubar sua alma, deveriam procurar uma maneira de recuperá-las ou de segurá-la, mesmo que
fosse pagando resgate (afinal, a alma é coisa muito importante e valiosa). Se atribuíssem a
enfermidade a um castigo divino, deveriam procurar um modo de agrada e cultuar a divindade
para que seus pecados fossem perdoados. Assim era a Medicina primitiva, a primeira
manifestação da Medicina.
Muitas sobrevivências de práticas curativas pré-históricas sobrevivem ainda hoje nos sistemas
culturais mais desenvolvidos e devem ser consideradas quando se estuda o tema.A partir de
um ponto de vista bastante objetivo, é possível levar em conta um processo progressivo de
desenvolvimento não das culturas, mas das civilizações. A etapa pré-civilizada das sociedades
humanas, por isto denominadas primitivas, se caracteriza por uma certa mentalidade que se
diferencia do pensamento civilizado por três características principais:
a) confiança em conteúdos mentais intuitivos que são tidos como revelados e tomados por
verdadeiros;
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Pensamento
Mágico
A gênese do pensamento inteligente, o pensamento mágico se situa entre o pensamento
associativo puro (pré-humano e onírico) e o pensamento lógico, característica cognitiva
essencial do homo sapiens. As crianças muito pequenas tendem a crer que podem produzir
mudanças na realidade pensando nelas ou verbalizando-as. A crença em que basta pensar ou
falar em uma coisa boa ou má para que ele aconteça é muito antiga e, muito provavelmente,
se origina naquela tendência infantil. A mesma que provavelmente alicerça alguns tipos de
pensamentos obsessivos, atos compulsivos e arquiteturas delirantes.
Na história da evolução da humanidade, o pensamento mágico representou este momento
arcaico como um exercício de satisfação da curiosidade científica, um esforço mental em
busca do porquê das coisas e da esperança de contornar suas próprias limitações para satisfazer
suas necessidades.
Existem três premissas básicas sobre as quais se constrói toda a arquitetura do pensamento
mágico em todas as culturas primitivas:
a) a crença de que a realidade é modificável (por exemplo, uma pessoa sadia pode adoecer e
um doente ficar sadio);
b) que tais modificações seriam causadas por poderes sobrenaturais ilimitados e onipotentes; e
c) estes poderes podem ser mobilizados e submetidos à influência de certas fórmulas mágicas,
objetos encantados ou vínculos especiais que permitem superar a imensa assimetria que
caracterizava a confrontação destas entidades sobrenaturais com os seres humanos.
Deve-se ressaltar que as noções de impossível e de impossibilidade são estranhas ao
pensamento mágico. Do ponto de vista do pensamento mágico tudo é possível, basta que se
consiga o agente certo capaz daquela façanha.
O conceito de impossibilidade só surgirá muito depois, quando aparecer a idéia da
possibilidade e sua limitação, como conseqüência da visão científico-natural do mundo e da
necessidade da causalidade natural. Do ponto de vista mítico, influenciado pelo pensamento
mágico, tudo é possível, ou melhor, nada é impossível. Este fato fornece o pano de fundo para
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Animatismo
A mais antiga das concepções sobrenaturais do mundo natural, o animatismo, atribui a tudo,
a todas as coisas e fenômenos, uma essência sobrenatural; uma alma, um espírito que
caracterizava o que se chamaria hoje o conteúdo essencial daquela coisa ou daquele fenômeno
(ainda que não se houvessem estruturado estes conceitos de objeto e de fenômeno).
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Totemismo
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Fetichismo
O totemismo e suas expressões, os Totens e os Tabus são artefatos ideológicos brotados no
seio do animatismo, mas que estenderam sua vigência até à atualidade.
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de valores psicológicos e interesses individuais, é uma ideologia típica das sociedades sem
classes (sem exploração do trabalho de umas pessoas por outras).
As religiões, por sua vez, são ideologias mais sofisticadas que caracterizam as sociedades de
classes mais desenvolvidas.
Animismo
A elaboração do conceito animismo foi um desdobramento histórico, lógico e ideológico do
animatismo como artefato sócio-cultural (embora seu conceito científico tenha sido
formulado anteriormente).
A prática animista conservou o essencial da animatista. Como a crença na existência de um
mundo mágico-espiritual, habitado por espíritos, entes sobrenaturais que mantinham uma
representação terrena e que todas as coisas possuíam almas deste tipo que as animavam,
controlavam, dominavam.
Esta crença no controle que o “mundo sobrenatural“ poderia exercer sobre tudo o que existe no
mundo natureza constitui a essência do sobrenaturalismo e aparece em todas as suas
modalidades.
Entretanto, houve duas diferenças significativas entre o animatismo e o animismo, dentre as
quais se podem destacar as seguintes:
1) fez-se a síntese de muitos espíritos em um (a criação de um único espírito que reunia a
todos de uma mesma categoria ou conjunto generalizável; os espíritos de cada uma das
árvores foram sintetizados no espírito das florestas, os de cada rio, pelo das águas, e assim por
diante); e
2) a atribuição a estes espíritos de grandes poderes mágicos, sobretudo no que dissesse respeito
às coisas e fenômenos de seus reinos.
As divindades foram hierarquizadas segundo seu poder e influência. Algumas dessas
divindades seriam mais importantes que outras, na medida em que o objeto ou o fenômeno
que representassem tivesse maior significado para a cultura; algumas foram representadas
pelos espíritos familiares, outros por animais e muito frequentemente apresentados com
aparência e identidade humanas (antropomorfisados).
Todas as coisas, pessoas, famílias, clãs, gens ou tribos tinham suas divindades das quais se
acreditavam representações terrenas. O sentimento do vínculo com uma divindade
representava, na época, o elemento mais importante da identidade pessoal; mais que os
vínculos familiares, nacionais ou quaisquer outros.
As crenças e a necessidade de seu compartilhamento são fenômenos simultaneamente
individuais e sociais. No plano individual, correspondem a necessidades humanas postas pelo
medo e no plano cultural, respondem a necessidades da organização social. Nas fases iniciais
das culturas, a crenca religiosa de uma pessoa pode ser considerada como traço culturais
essencias para sia identidades, assim como a crença cultivada em uma comunidade pode ser o
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fator mais importante de sua identidade cultural. O surgimento dos orixás na mitologia
africana são bons exemplos deste momento da história. E como os homens criam seus deuses à
sua imagem e semelhança, é bem natural que atribuíssem à divindade de uma pessoa mais
poderosa, maiores poderes que o comum; à divindade de um senhor de escravos, poderes bem
maiores que às dos seus cativos.
Se uma tribo fosse vitoriosa em uma guerra contra seus vizinhos, isto era atribuído a um poder
maior de seu deus sobre o outro. Esta concepção permitiu, não apenas explicar, mas justificar
e legitimar a escravidão e outras desigualdades e mais os comportamentos dos poderosos. É
bem natural que tal cosmologia e sua antropologia gerassem a crença em uma patologia e uma
terapêutica que lhes fosse adequadas. E mais. Alguns destes espíritos eram tidos como
especialistas em causar determinadas formas de enfermidade e, igualmente, de curá-las.
Provavelmente, terão surgido aí os primeiros proto-especialistas e os proto-hospitais nos locais
de culto daquelas entidades sobrenaturais animistas.
A
Religião
A religião ou instituição religiosa é um fenômeno social que apresenta as seguintes
características gerais:
- uma crença ou sistema de crenças que configura uma doutrina devidamente codificada que
relaciona as interações das pessoas viventes com um mundo sobrenatural
- um fundador,
- uma história,
- um culto,
- uma doutrina codificada,
- uma organização social codificada, instituida e hierarquizada.
O conceito de Religião se confunde com o de Igreja (assim, com maiúscula). Todas as
religiões se organizam a partir da figura de um fundador, que pode ser uma figura histórica,
cuja existência possa ser comprovada, ou pode ser uma figura que deva ser considerada mítica,
porque sua existência histórica não pode ser verificada confiavelmente. Aos fundadores
míticos pode ser atribuída identidade humana, divina ou alguma outra identidade
sobrenatural (um espírito, um ser extra-terrestres).
A mensagem atribuída ao fundador tem força de poder constituinte nas religiões. Dirrime
todas as dúvidas e todas as divergência surgidas. O fundador pode deixar um herdeiro ou uma
série deles. Contudo, este não têm o mesmo poder daquele em matéria de doutrina ou de
organização dos crentes.
Cada religião tem sua história e esta pode ser inteiramente original (o islam, o judaísmo) ou
derivar de outra religião (como o catolicismo derivou do judaísmo e as religiões protestantes,
do catolicismo). A origem das religiões pode ser determinada historicamente, com
documentos fidedignos procedentes de fora dela ou pode decorrer inteiramente de
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Culto,
Religião
e
Igreja
Culto é uma forma, muitas vezes ritualizada, de homenagem, adoração ou veneração prestada
a uma divindade ou outra entidade sobrenatural a quem se pretende honrar. Em sentido
amplo, a palavra culto pode se referir aos ritos que se dedica a uma crença sobrenatural ou um
tipo de religião; em sentido mais estrito pode se referir a um rito particular com algum
propósito específico.
As Religiões, como já se viu, são organizações culturais que se organizam a partir de crenças
individuais codificadas e institucionalizadas que sucedem ao animatismo, ao animismo e às
crenças não codificadas e não instituídas; existem como formas mais sofisticadas e
aperfeiçoadas daquela crenças primitivas ajustadas ao mundo dos reinos e. sobretudo, dos
impérios. As religiões forneceram substrato ideológico para os formas mais ou mneos
organizadas de Estado desde sua origem.
Os autores religiosos têm opinião diferente obre esse assunto, como se pode esperar por conta
de sua fé. J. G. Frazer (1854-1941) e M. Mauss (1872-1950) sustentam pretendem que as
religiões sejam fenômenos que nada têm a ver com a noção dos espíritos e seus cultos, do
animatismo ou do animismo, e que não derivam deles. Têm-nas como tendências humanas
naturais, um retorno simbólico ao criador.
Cada um puxa a sardinha para defender a tese de que a sua religião é algo especial,
completamente diferente da superstição e dos demais misticismos. Superstição é a religião
alheia. Parecem pensar.
Analisando-se com isenção percebe-se clara linha evolutiva em cada um destes momento do
pensamento mágico e da evolução das idéias supersticiosas como elemento supersestrutural
ocasionado pela evolução da material da sociedade, desde o animatismo, o animismo, a
religião politeista e a monoteista.
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As Igrejas (com o sentido de organizações ou entidades sociais religiosas) são entes jurídicos
nos quais se organiza a hierarquia das instituições religiosas que resultaram da
institucionalização das seitas animistas codificadas. A codificação e a institucionalização
parecem ser as diferenças essenciais entre uma seita ou crença coletiva e uma religião, a
codificação e a dimensão institucional inerente a esta última. A palavra igreja pode ser usada
em três acepções: 1. a original como comunidade eklesia), 2. como templo; e 3. como
instituição religiosa (que se escreve, quase sempre, como I maiúsculo - Igreja).
A codificação, a organização hierarquizada e a institucionalização têm papel decisivo para
diferenciar as crenças (individuais) e seitas (organizações sócio-culturais relativamente
imaturas) da fé religiosa (fé em sistemas de crenças codificadas e instituídas) e das Igrejas
(organizações sociais instituídas, hierarquizadas e codificadas). Ainda que isto se situe em
pleno terreno das ideologias, é comum que as segundas sejam mais valorizadas que as
primeiras.
A crença individual não se confunda com a instituição social.
Uma instituição religiosa é algo mais que mera crença ou sistema de crenças; é mais que uma
seita, mais que um componente simples ou complexo da consciência social. As instituições
religiosas têm mais que valor individual, mais que instrumento ideológico, mais que recurso
psicológico defensivo contra o medo, o desconhecido e as ameaças reais (como a morte,
doença, o mau tempo) ou imaginárias (feitiços, maus-olhados), pois que tudo isto eram e são
as crenças fundadas no animatismo e no animismo.
Com a palavra instituição, dá-se um fenômeno ambivalente análogo ao que sucede com a
maior parte dos substantivos portugueses terminados em ão e em mento. Significar
simultaneamente uma ação ou atividade e seu resultado. No caso específico estudado aqui,
a palavra instituição tanto significa o ato, atividade ou ação de instituir, quanto significa a
instituição e mais o estabelecimento ou agência instituída. Não obstante o que sucede na
linguagem vulgar, quem usa a terminologia científico-técnica não deve confundir a
instituição com a organização social instituída, o estabelecimento ou agencia institucional.
Quando se faz uma avaliação lingüística, mesmo despretenciosa, pode se verificar que a
palavra igreja pode ser empregada com as seguintes acepções:
- templo,
- associação ou comunidade religiosa,
- uma seita que alimenta uma determinada crença e se nutre dela,
- um sistema de crenças sobrenaturais e, finalmente,
- uma instituição e a organização religiosa, que é o sentido com o qual está sendo empregada
acima.
No processo de socialização das crenças animistas, como resultado do desenvolvimento das
sociedades, as crenças animistas foram codificada e tornadas em instituições e, portanto, um
componente do aparelho estatal e uma ideologia dos interesses das classes hegemônicas. A fé
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liberadas dos deveres da produção material que puderam fornecer a burocracia que a nova
sociedade imperial urbanizada necessitava e possibilitar o aparecimento dos primeiros
intelectuais e técnico, que não eram menos necessários. Além de cuidar das tarefas referentes
às obrigações do culto. Porque eram estas que forneciam o substrato ideológico para a
existência das demais.
Os negócios e procedimentos relacionados com as crenças animatistas e animistas, (os
curandeiros, feiticeiros xamãs ou outras que tivessem, emergiam mais ou menos naturalmente
nas pequenas comunidades antigas (famílias, gens, tribos). Esta função ão lhes conferia
importância maior ou menor na comunidade. Por esta época, como nas entidades sociais mais
antigas, como as famílias e os clãs, as crenças se referiam ao culto dos antepassados reais ou
míticos, ele era dirigido pelo patriarca, o chefe da família. Este reunia a autoridade civil,
militar e religiosa.
Foi apenas com a aparecimento das tribos, que a autoridade espiritual se transformou em uma
elemento mais ou menos independente dentro da organização social. O animismo, com seus
shamãs, pajés e pais de santo são característicos deste momento evolutivo da sociedade,
fenômenos sociais característicos da organização social tribal. Os pajés (ou seus
correspondentes em outras organizações sócio-culturais) passaram a ser figurais mais
proeminentes nas comunidades, a desfrutarem privilégios em relação às outras pessoas. Talvez
por isto, passaram a ser escolhidos segundo variados critérios, principalmente na prole fo que
exercia aquela função. De modo a lhes assegurar adequada formação no desempenho das
funções que seus companheiros esperavam deles.
A organização da sociedade em reinos e impérios e o conseqüente aparecimento da macro-
instituição sócio-política que é o Estado (aliada ao desenvolvimento proporcional da escrita e
dos conhecimentos sobre a natureza, trouxeram exigências novas para as pessoas e para as
entidades sociais que já haviam aparecido. Este momento exigiu um grau maior de
organização da sociedade, inclusive de suas organizações sociais incumbidas do culto. A
urbanização e a conseqüente multiplicação das pessoas nas comunidades, tornou obrigatória a
convivência de pessoas de origens muito diferentes que, até então, competiam por seus
limites. Obrigou também à uma espécie de cosmopolitismo que fora inteiramente
desconhecido até então. A ampliação dos reinos e dos impérios, reforçou esta tendência.
As organizações religiosas desempenharam papel valioso na organização do Estado
fornecendo-lhe quadros letrados para o desempenho de suas funções. Funções administrativas
(registros, controle das finanças, arrecadação de impostos), funções sociais (educacionais e
sanitárias especialmente, mas também nos albergues para peregrinos e viajantes pobres). No
entanto, sua principal função sempre foi ser instrumento de controle social (assegurando a
unidade ideológica e assegurando o necessário apoio político às decisões mais impopulares do
organismo estatal, como as guerras, por exemplo.
Crenças
e
Seitas
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A palavra seita também contém uma ambigüidade semelhante que deve ser considerada.
Tanto pode ser uma forma de organização social não institucionalizada ou hierarquizada em
torno de uma crença qualquer, quanto pode ser um grupo de divergentes que se origine em
uma nova crença ou uma religião diferente. É comum que o termo seita seja empregado com
tonalidade pejorativa, com o sentido de crendice. Nestes dois últimos casos, há a seita e os
seus sectários. Pessoas que se entregavam às suas necessidades místicas e se organizavam para
defender e promover suas crenças sobrenaturais. Mas ali também houve os aproveitadores
que tiravam vantagem de seu poder institucional e de sua autoridade social. Fenômenos que
se avolumam com a emergência das instituições religiosas que brotaram das seitas.
Do ponto de vista social, talvez os mais importantes elementos diferenciais que se possam
estabelecer entre as crenças sejam
a) seu grau de codificação e
b) a extensão de sua influência na vida das pessoas vinculadas a elas.
Quando da organização do Estado escravagista, as crenças que eram cultivadas pelos membros
de seus povos como expressão de suas necessidades individuais e organizadas de maneira
muito primitiva pelas sociedades tribais ou clânicas, foram transformadas em instituições
sociais e ses componentes passaram a desfrutar muito mais autoridade e influência em suas
sociedades. Pois, esse grau de organização da sociedade passou a exigir instrumentos mais
sofisticados de controle social. As religiões, organizações eclesiais ou Igrejas.
Essas instituições sociais ou organizações religiosas hierarquizadas, cujos códigos doutrinários
são tidos como sagrados são instituídas formal e juridicamente como uma rede de papéis,
status, funcões e agências sociais consideradas como socialmente importantes, indispensáveis
mesmo, às quais se atribuiu a função política de exercer o papel de controle social (da
sociedade) a serviço do Estado e dos interesses hegemônicos da sociedade. Ressalte-se que
todas as instituições sociais, inclusive as religiosas mais fundamentalista, têm mais ou menos
evidente, este atributo de servir de instrumento de controle social. Artefato político destinado
à manutenção da situação e da ordem social vigentes.
Para atingir este objetivo controlador da sociedade, as religiões atuam como agências
conservadoras ou reacionária frente ao progresso social; quase sempre agem de modo a
minimizar ou abafar os conflitos e os antagonismos sociais existentes no macro-sistema social
em que se dá. Por este motivo, Marx as designou como “ópio dos povos”, agentes anestésicos
que atenuam ou fazem desaparecer os sofrimentos físicos e psíquicos. Por isto, na tradição
socialista a ação social e individual das religiões é entendida como fator de alienação.
Crenças
e
Religiões
As crenças individuais ou de pequenos grupos, ao serem codificadas e depois
institucionalizadas em religiões que se estruturavam como Igrejas hierarquizadas, conservaram
seu conteúdo supersticioso de misticismo, seu caráter institucional e seu apelo psicológico ao
medo (principalmente da morte) e a insegurança frente ao futuro ignorado, mas sempre
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sofisticaram seus ritos. Cada uma delas assumiu um invólucro que melhor se prestasse à
realização de sua missão institucional.
As primeiras crenças, possivelmente, hão de ter se referido ao culto dos espíritos dos
antepassados e a certas crenças em animais a que as pessoas e grupos sociais se crêem
vinculados por descendência ou de alguma outra maneira. Não parece difícil supor a
capacidade que estas crenças e seus agentes tiveram de fazer as pessoas acreditarem que o
sofrimento, as doenças e a morte tinham raiz sobrenatural e que seu tratamento e suas
medidas preventivas deveriam ser procurados naquele mesmo terreno.
Tudo leva a crer que com o Estado escravista, conseqüente à propriedade individual (e
masculina) da terra e de seres humanos escravizados que a faziam produzir em benefício de
seus senhores, com suas exigências políticas peculiares impusessem a necessidade ideológica
de promover a justificativa da desigualdade e de reforçar ideologicamente o poder dos
poderosos, legitimando aquela experiência social.
Religião,
Desigualdade
Individual
e
Social
Nas comunidades primitivas as diferenças individuais, sociais, econômicas e de oportunidades
entre as pessoas e grupos eram relativamente pequenas e todos gozavam, mais ou menos, das
mesmas oportunidades e desfrutavam padrões de vida semelhantes. Em geral, tais
comunidades se estratificavam apenas por sexo e por idade. As capacidades e habilidades
pessoais serviam quase sempre apenas como fator de prestígio no grupo.
Aqui se chama capacidade à aptidão desenvolvida e habilidade à maior ou menor destreza
com que alguém exerce uma capacidade.
Nas culturas nômades, por exemplo, possuir mais coisas que os outros, freqüentemente
redundava em desvantagem para o possuidor, porque atrapalhava o deslocamento e exigia
mais trabalho, além de ponderável aumento do risco nas viagens e nos combates. Nessas
comunidades mais primitivas quaisquer diferenças eram atribuídas a influências sobrenaturais.
Inclusive as relacionadas com a saúde e a enfermidades. Menos naqueles casos em que a
responsabilidade na diferença era bastante óbvia para ser estabelecida diretamente, como os
acidentes. Mas a causa do acidente seria sobrenatural.
As desigualdades sociais mais significativas só ocorreram depois da instituição da propriedade
privada da terra e da escravidão como forma regular de exploração do trabalho. Possuir mais
terras e mais escravos era ser mais rico e sempre mais vantajoso; o que criou uma escala de
desigualdade social em grau nunca antes assistido. Como essa desigualdade não podia ser
atribuída sempre às qualidades pessoais de quem as usufruía ou padecia, foi necessário
justificar a situação para legitimá-la. Por isto, no regime escravista de apropriação do trabalho
alheio, deveria parecer natural que se atribuísse à divindade do senhor um poder maior que
aquele que se atribuísse à divindade dos escravos; que à divindade que protegia o proprietário
de mais terras, se atribuísse mais poder e mais dignidade (e, até, mais divindade) que à
entidade espiritual que protegia os donos de menos terra e mais ainda que à dos sem-terra. A
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hierarquia do poder que se acreditava achar nas comunidades divinas, refletia e legitimava as
relações sociais que existiam na sociedade real.
Como os homens criam as divindades à sua imagem e semelhança, também eram semelhantes
às suas, as relações que se dariam entre eles no mundo sobrenatural qua as divindades
habitavam. Assim, a divindade que protegia o rei, porque o rei era a figura mais importante da
sociedade, era concebida igualmente como proporcionalmente mais poderosa que as
divindades de seus súditos. Naturalmente, haveria de ser mais poderosa que os deuses
protetores dos nobres que lhe eram subordinados e às das pessoas comuns. O que constituiria
um artefato ideológico muito importante para a manutenção daquela situação política. Por
isto, quando do aparecimento dos impérios (o império é uma monarquia na qual o soberano
tem reis como suseranos e subordinados a si), acreditava-se que o imperador estivesse sob a
proteção da maior de todas as divindades, uma vez que exercia se poder sobre reis e outros
príncipes soberanos. Em alguns impérios, como no Egito, em Roma e no Japão, as próprias
pessoas dos imperadores foram divinizadas por seu povo e transformadas em objetos de culto.
De fato, em todas as culturas, as entidades sobrenaturais foram criadas à semelhança do que
eram e de como agiam e reagiam as pessoas de então. Suas sociedades e as formas pelas quais
se relacionavam, repetiam a sociologia humana. E os agentes mágicos que estabeleciam a
necessária comunicação e interação entre o mundo natural e o mundo sobrenatural, detinham
uma situação social destacada e tinham sua atividade muito bem recompensada. Fosse
curandeiros, pajés, feiticeiros, magos ou sacerdotes, sempre viviam melhor que seus
contemporâneos, Até porque eram eles que recebiam e transmitiam os desejos das entidades
sobrenaturais.
Por outro lado, ao contrário das sociedades mais primitivas, que eram pequenas, permitindo
comunicação direta e fácil entre todas as instâncias da administração, os impérios eram
imensos, os meios de comunicação, lerdos e difíceis; daí ser necessário o aperfeiçoamento dos
instrumentos de controle social (controle sobre a sociedade) e de gestão do poder político, de
ampliação da produção de alimentos, seu transporte e comercialização à distância, além da
necessidade de manter e transportar grandes exércitos.
Uma ideologia muito importante na vida de muitas sociedades, foi e é a crença na origem
divina do poder político e da intervenção da divindade na escolha dos poderosos. Durante
muitos séculos, todo poder social que pudesse existir, inclusive o poder político, era
considerado como produto da vontade divina, vontade que era transmitida pelas mesmas
pessoas que exerciam o ofício de curar os doentes. E isto foi crença estabelecida na Europa até
o Renascimento e o Iluminismo, exercendo forte influência política no mundo ocidental até o
século dezenove. Hoje, ainda é acreditado em muitos Estados orientais que existem como
monarquias absolutas baseadas em ideologias religiosas, nas quais o mandatário é considerado
como uma espécie de preposto da divindade. O chefe das as monarquias absolutas de todas as
partes compartilham um pressuposto deste tipo.
O poder de controle social das crenças animistas existiu muito antes do Estados, quando seus
agentes ainda não atuavam diretamente como agentes do poder estatal que estava por vir. A
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Igreja
e
Estado
Estado é a forma mais estruturada e desenvolvida de organização jurídica e política de um
povo. O estado evoluiu da forma monárquica para a republicana. Enquanto os Estados
republicanos são compostos por cidadãos, os monárquicos têm súditos. Nos Estados
autocráticos existe uma relação de mútua dependência entre estas duas instituições e, neles,
costuma haver uma religião oficial.
Enquanto as crenças são fenômenos psicológicos a serviço dos interesses subjetivos dos
indivíduos que as cultivam, as religiões são instrumentos ideológicos psico-sociais a serviço da
fração hegemônica na sociedade consubstanciados nos Estados. Estado e Igreja necessitavam-
se e se protegiam mutuamente. Por tudo isto, ou para isto, se generalizou a crença ideológica
de que o proprietário, o rico, o nobre, o rei, o imperador, seriam o que eram pela vontade
expressa de uma divindade. Ou seriam, eles próprios, a encarnação do deus, como aconteceu
no Egito, em Roma, entre os Incas, no Japão (até muito recentemente, na metade deste
século) e em muitas outras culturas.
De qualquer forma, a organização social religiosa (a Igreja) cumpria o que talvez tivesse sido
seu primeiro papel institucional, o de legitimar o poder temporal, fazendo crer que o poder
político era atribuído pela divindade ao dirigente do estado, de acordo com um conjunto de
regras e procedimentos que, não por acaso, beneficiavam apenas alguns dentre a totalidade
população, unicamente os membros mais importantes da classe dominante, classe que acabava
de ser formada e começava a entrar em ação como força política. Ao mesmo tempo de servia
de cimento cultural para os componentes daquela sociedade, homogeneizando e unificando-os
em uma totalidade cultural e política.
A Inquisição ibérica terá tido esta importante razão de ser: tornar a população homogênea
do ponto de vista religioso. Porque, naquele momento, o fator religião era muito mais
importante como elemento integrador da sociedade do que qualquer outro. Os conflitos
entre os crentes e os verdadeiros crentes só aparecem depois que desaparecem os
descrentes. Exatamente como sucede nas revoluções que, de certa maneira, são
movimentos que têm tanto de religioso como de político. Uma espécie de religião civil e
política, na qual o herege é muito mais ferozmente combatido que o descrente. .
As Igrejas (e não apenas os templos) nas quais se praticava as religiões dos detentores dos
interesses hegemônicos dos centros antigos de poder foram desempenhando funções sociais
cada vez mais significativas, na medida em que eram instrumentos políticos e ideológicos
eficazes, tendo se mostrado capazes de exercerem eficiente controle social a serviço do
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interesses políticos dominantes e contarem em seus templos com a única burocracia confiável,
porque nelas se encontrava um número ponderável de pessoas escolhidas e com possibilidade
de cultivar o conhecimento e outros valores espirituais porque não necessitavam produzir para
atender suas necessidades de sobrevivência.
Além disso, as religiões antigas prestavam inestimável serviço à administração pública e
privada porque detinham a maior parte dos intelectuais; também por isto, eram muito
prestigiadas e dispunham de grandes recursos dos quais se serviam. Por isto, forneceram
oportunidade ímpar ao desenvolvimento do saber; porque reuniam um conjunto de pessoas,
comumente selecionadas em razão de serem bem dotadas e que eram, ademais,
suficientemente liberadas do trabalho de subsistência para que pudessem cultivar o
conhecimento e a técnica.
Com a nova e mais complexa divisão social do trabalho, imposta pelo império escravista,
coube também aos sacerdotes, em acréscimo às atividades rituais, as tarefas burocráticas,
intelectuais e técnicas exigidas pela nova forma de organização sócio-econômica e cultural.
Ao mesmo tempo, que se serviam da dela, os interesses políticos do poder estatal atribuíram à
religião oficial o monopólio da instrução e a tornaram geradora e fiscal de todas as opiniões,
de todas as crenças, de todo conhecimento, na medida em que era quem estabelecia a
diferença entre o certo e o errado, o limite do vício e da virtude, a fronteira entre a piedade e
a impiedade.
Instrumento ideológico e político dos interesses do Estado, se bem que nem sempre do
governo, a hierarquia religiosa tratava de zelar para que a ortodoxia teológica se identificasse
com a conveniência estatal, sem prejuízo dos seus próprios interesses. Por isto, as idéias de
pecado e crime, heresia e subversão se tornaram próximas, a ponto de se confundirem em
longos períodos da história, porque a religião se identificava com o Estado e concentrava os
instrumentos de instrução e de produção de conhecimentos.
Além do que, tendo se tornado na fonte de determinação do limite entre o certo e o errado,
da justiça e da injustiça, da virtude e do vício, do bom e do mau, do bem e do mal, da
moralidade e da imoralidade, as crenças supersticiosas e, muito mais ainda, as religiões e,
sobretudo, as Igrejas, passaram a ser instrumentos ideológicos de controle social; enquanto o
estado como que se isentava da violência, justificada e legitimada pela fé e obediência à
vontade divina. Nessas culturas primitivas os dois piores e mais reprimidos crimes eram a
impiedade (falta de religião, de fé) ou a heresia (alimentar uma crença condenada ou duvidar
de um dogma estabelecido) e a oposição ao governante (crime de lesa-majestade).
Na Idade Média se acrescentou a falsificação de dinheiro entre os crimes mais horrorosos,
(uma espécie de heresia econômica), o crime de moeda falsa que era, afinal, um tipo de lesa-
majestade porque cunhar dinheiro era uma prerrogativa privativa dos governantes soberanos.
Enganá-los era considerado crime semelhante ao de ofender à divindade. Afinal, ambas as
figuras se apoiavam mutuamente na realidade histórico-social.
Conflito
entre
a
Ciência
e
a
Superstição
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Não contava ele com a natureza essencialmente diversa destas duas categorias de dados
subjetivos: os conhecimentos e as crenças, nem com a infinitude da estupidez humana,
bastante ampliada por sua ilimitada credulidade. Por estas razões, é possível que uma mesma
pessoa, mesmo razoavelmente inteligente e instruída sintetize duas categorias teológicas
incompatíveis, como a crença na redenção com a salvação pela fé e acredite igualmente na
reencarnação e na salvação pelo seu próprio esforço, apesar desta duas convicções serem
absolutamente incompatíveis, tanto do ponto de vista lógico quanto teológico.
Mas existem muitos casos assim.
Como contrapartida, o número de materialistas aumenta exponencialmente, sobretudo na
camada mais culta da população, principalmente entre os cientistas e as pessoas
psicologicamente mais sadias.
Porque a credulidade religiosa é mais comum entre as pessoas imaturas, de baixo nível
educacional e com tendências neuróticas mais evidentes.
Origem
Comum
da
Ciência
e
da
Superstição
No começo havia apenas o conhecimento comum, superficial, assistemático, ametódico, sem
qualquer confiabilidade ou validade, com o tempo, apareceu o conhecimento filosófico, de
onde brotou o conhecimento científico inspirado na busca da verdade.
A ciência, notadamente a ciência médica. e a superstição percorreram um longo caminho em
sua trajetória histórica. Ao longo deste caminho, ainda com origem entrelaçada, foram se
separando pouco a pouco e assumindo, cada qual, sua própria identidade. Tanto a ciência
quanto a superstição se originaram na tendência natural dos humanos a conhecer e explicar o
que existe à sua volta. Ambas são frutos da curiosidade humana. O conhecimento, como todo
artefato humano se constrói com o emprego dos recursos disponíveis para quem o elabora.
No início, não havia diferença entre fato e crença para quem constatava um e criava o outro.
Aparentemente, a diferenciação entre estes dois tipos de elaboração mental demorou milênios
para se estabelecer na consciência de algumas pessoa privilegiadas. Mas quando se deu,
também deu origem ao pensamento filosófico – chamado filosofia da natureza - o que originou
o que hoje se denomina pensamento científico ou consciência científica.
A Medicina racional hipocrática apareceu como expressão deste acontecimento crucial para o
desenvolvimento humano. Quando se separou a natureza das crenças religiosas. Apareceu a
noção de fato, tal como a usamos.
A concepção científico-natural do mundo tem seu marco inicial conhecido hoje, na figura de
Tales de Mileto que pode ser considerado senão o fundador, um dos mais importantes
fundadores da ciência. Depois dele, apareceram as tendências materialistas e idealistas dentro
das concepções científicas que perduram até os dias atuais.
Todo progresso científico foi assentado no pressuposto de que as coisa do mundo tinham
explicação natural e que as soluções para os problemas que afligiam as pessoas e comunidades
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No passado remoto, como j;a se sabe bem, acreditava-se que a solidez e durabilidade de uma
edificação dependiam da vontade de uma divindade ou qualquer outra entidade sobrenatural,
porque se acreditava que tudo o que existia dependia do sobrenatural. As festas da pedra
fundamental e da cumeeira de uma edificação, que inda hoje se pratica, são resquícios desta
época primitiva e supersticiosa. Tudo o que acontecia a todas as coisas do mundo natural
tinha sua causalidade atribuído às potestades imateriais e sobrenaturais. Potestades tidas como
as fontes reais de todo poder que havia no mundo. Não é de estranhar que passassem a
venerar ou a adorar estas entidades que haviam criado para restabelecer sua confiança em si
mesmo. A criatura assenhorou-se do criador.
Hoje, quase todos os que trabalham construindo edificações (ao menos as de maior porte)
preferem confiar na precisão dos cálculos, na qualidade do material empregado e na eficiência
da técnica utilizada para afiançar a qualidade de uma edifício. Esta evolução da mentalidade e
da prática da engenharia há de ter sido fruto do avanço do conhecimento científico e da
confiança em sua aplicação na tecnologia de construção civil e da confiança que o
conhecimento e a técnica inspiram. Em princípio, pode-se afirmar que à medida que o
conhecimento científico avança, as crenças mágico-supersticiosas recuam.
No entanto, o mesmo engenheiro que desdenha de procedimentos sobrenaturais para
projetar, calcular ou edificar, pode manifestar grande convicção em uma explicação mágico-
supersticiosa de uma doença ou na eficácia do tratamento sobrenatural de um doente,
principalmente quando for uma enfermidade psiquiátrica ou de uma condição patológica
somática de causa e tratamento efetivo ignorados pelos médicos.
Quando aqui se atribui a característica de primitividade aos preconceitos sobrenaturais acerca
da doença de expressão mental e do sofrimento físico ou psicológico, não significa que a noção
se refere apenas a comportamentos imaturos ou de culturas do passado distante, regiões mais
remotas, pessoas ignorantes ou integrantes de culturas atrasadas. Mesmo as culturas
adiantadas e evoluídas conservam características de primitividade, principalmente para
lidarem com o desconhecido e com problemas para cuja solução, são impotentes. O
sobrenaturalismo se sustenta do medo, da desesperança, do desespero.
KAYATT-LACOSKI e NASCIMENTO, em trabalho relativamente antigo mas atual em sua
substância, demonstram e estudam a atualidade de tais anacronismos, não influem apenas
na representação social das doenças psiquiátricas pela população não enferma, mas
exercem influência mais ou menos significativa nas opiniões e atitudes dos próprios
doentes psiquiátricos, em seus familiares e do mais próximos deles na sua comunidade,
interferindo na procura e na eleição de medidas terapêuticas tidas por eles como mais ou
menos eficazes.
Por muito tempo, nos primeiros momentos da história, a sistematização do conhecimento e a
legitimação da tecnologia se deu nos templos e se apoiou nos mitos e nas crenças mágicas que
ali se cultivavam. Depois, quando as crenças foram codificadas e institucionalizadas em
religiões e Igrejas, e algumas religiões foram tornada oficiais em seus Estados, deu-se a primeira
grande contradição entre a ciência e a instituições religiosas e seus dirigentes e usufrutuários.
Isto porque, as crenças primitivas, após terem dado contribuição decisiva ao nascimento e ao
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Separação
da
Ciência
e
da
Superstição
A separação da ciência (conhecimento lógico ou experimental baseado em procedimentos
tidos como mais válidos e mais confiáveis) e da superstição (crenças baseadas no pensamento
mágico) originou um conflito ideológico e político que persiste até nossos dias e que, ao que
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parece, se prolongará por muito tempo ainda e que interessa a todos os campos da existência
humana.
O conflito ente os adeptos da ciência e da superstição não é recente. A partir da Antiguidade,
a história da ciência tem sido a luta do conhecimento descoberto (a ciência) contra o
conhecimento tido como revelado (a superstição); do convencimento proveniente da
convicção estabelecida objetivamente e sujeita a comprovação prática, contra a crença cega e
arracional ou mesmo irracional baseada na fé; da liberdade de investigar e descobrir a
verdade, contra a opressão obscurantista da superstição e da obrigação de crer presentes em
todas as crenças religiosas de todas as qualidades; da criatividade que inventa e inova
inteligentemente, contra o dogmatismo que imobiliza; da dúvida sistemática ciência, contra a
obediência incondicional das religiões.
Desde das épocas mais remotas das quais se tem conhecimento, o herói da ciência tem sido
aquele que descobriu uma nova verdade até então desconhecida ou encontrou uma
impropriedade ou inverdade em matéria aceita como verdadeira. Mesmo que todos
acreditassem na veracidade daquilo e que tivessem a mais acendrada fé nessa crença
desmentida; confiassem que teria origem divina. Como costuma acontecer com muitos
conteúdos supersticiosos de todos os tipos.
Mesmo que se trate de uma crença tida como científica. E tanto mais louvada a crença
superada, proporcionalmente mais significativa será considerada a contribuição para a
ciência de quem a desmentiu. E tanto maior há de ser seu mérito como cientista, quanto
mais importante fosse a inverdade desmentida, mais extensamente acreditado fosse o mito
derrubado ou mais significativa e abrangente o alcance da crença desmentida.
O herói das crenças supersticiosas, o santo, é quem subordina a razão e a experiência à sua fé
e mantém sua crença por mais que os fatos provem o contrário; o herói das crenças
supersticiosas é aquele que sustenta suas crenças a despeito de todas as provas em contrário,
por mais convincentes que aquelas provas possam parecer a si mesmo e aos demais.
Pois, como já foi visto anteriormente, neste trabalho, enquanto o conhecimento científico é
uma construção lógico-cognitiva que se tem sempre como provisória, parcial e incompleta, as
crenças supersticiosas (inclusive as religiosas) são artifícios afetivos que buscam restituir o
sentimento de segurança ante o desconhecido e suas, tendo-se, por isto mesmo, como eternas,
completas e definitivas.
Pela própria natureza da ciência, os cientistas buscam permanentemente desmentir os
conhecimentos existentes e derrubar as convicções que cultivam. A ciência é de natureza
iconoclasta; o cientista vive buscando derrubar seus ídolos e suplantar as opiniões vigentes,
inclusive as que ele próprio cultiva. Enquanto a religião cria ídolos e cultiva dogmas. Quando
isto não acontece. Como no dogmatismo, a ciência é vivenciada como se fora religião. E não
se valoriza senão como dogma. Os conhecimentos novos, sobretudo os destinados a substituir
os antigos, são a razão de ser da ciência e, no plano da fé, significam a destruição das crenças.
Quando um cientista se aferra muito acirradamente a uma opinião superada, geralmente, está
defendendo algum interesse seu e não da ciência ou da sociedade, ou tem a atividade
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científica como crença, uma espécie de religião pessoal e particular. O que acontece muito
mais do que se costuma imaginar.
A ciência está voltada para o saber descoberto, a religião, para o saber revelado; ciência é
dúvida permanente e sistemática, a religião é fé indiscutível e eterna; a ciência busca a
descoberta, a religião cultiva o mistério. †Por isto, existe uma contradição insuperável entre a
ciência e a superstição, o conhecimento científico e as crenças religiosas. Desde Hipócrates, se
recomenda aos médicos enquanto profissionais da Medicina, cuidarem, das coisa naturais,
pois são elas que lhes dizem respeito. Não deve provocar admiração saber que inumeráveis
torcedores de times esportivos se comportam, na verdade, como crentes; mais que religiosos,
como fanáticos religiosos. E que o mesmo acontece com militantes de partidos políticos. O
sectarismo ultrapassa em muito os limites das instituições religiosas e políticas. Pode-se
acreditar.
Um cientista pode perfilhar opiniões políticas fervorosamente, ou pode militar com
entusiasmo em um partido político; da mesma forma, um cientista pode ser religioso (sendo
muito numerosos os exemplos de cientistas religiosos, desde Pitágoras) e um religioso pode ser
cientista (como Mendel ou Copérnico e tantos outros desde os sacerdotes do deus Amon no
Egito dos faraós), mas não se pode e nem se deve misturar ciência e religião, da mesma
maneira que não deve por a ciência a serviço de suas convicções político-partidárias, posto
que em ambos os casos, tratam-se de categorias absolutamente inconciliáveis e imiscíveis. Isto
é particularmente verdadeiro na Medicina, onde se aplica com muita propriedade o velho
adágio bíblico ninguém pode ser fiel a dois senhores.
No primeiro momento da história do conhecimento nas comunidades humanas, explicava-se
tudo o que havia a partir de conceitos supersticiosos sobrenaturais, mágicos e místicos. Sendo
bastante compreensível que, naquela época, os primeiros filósofos fossem sobrenaturalistas e
religiosos. Se, ainda hoje, há pessoas ilustradas que se deixam levar por misticismos
supersticiosos destituídos de qualquer prova, na Antigüidade remota as doutrinas místicas e as
superstições de todos os gêneros foram aceitas e prosperaram com maior facilidade.
Pitágoras era místico-religioso, além de ter sido um dos primeiros filósofos conhecidos e dos
mais valiosos. Seu discípulo Filolau, formulou a doutrina dos três espíritos ou almas que
dirigiam a existência de todos os seres humanos:
- o espírito vegetativo, situado no umbigo, que seria comum a todos os animais e a todas as
coisas que crescem;
- o espírito animal, situado no coração, que é comum a todos os animais e lhes proporciona
capacidade de experimentar sensações e a motricidade; e
- o espírito racional, localizado no cérebro, que é apanágio dos seres humanos.
Além desta explicações mágicas, muitas outras foram inventadas, consoantes as cosmologias e
antropologias sobrenaturais que iam sendo criadas e difundidas, na medida dos interesses
materiais de seus autores e inspiradores. Como sucede com todas as ideologias, em todos os
lugares, em todos os tempos.
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O
Materialismo
Mecanicista
na
Medicina
A primeira concepção materialista (ou naturalista) que os protocientistas do passado
elaboraram para explicar a forma do organismo humano, seu funcionamento e suas
enfermidades, foi de natureza mecanicista. Provavelmente porque a mecânica fora o primeiro
ramo da ciência explorado com êxito explicativo, preditivo e operativo. Dos instrumentos de
medir o tempo e as máquina mais complexas como os autômatos mecânicos, à cosmologia
galilaica e newtoniana, o raciocínio mecânico se fez paradigmático para o pensamento
científico até a época do Iluminismo.
A descoberta da explicação das funções organísmicas, todas elaboradas a partir do estudo dos
órgãos, aparelhos e sistemas anatômico-fisiológicos considerados isoladamente, levou o
mecanicismo para a Medicina, onde ele imperou por muitos séculos, tendo sido muito
reforçada pela patologia celular virchoviama. Paradigma que só foi superado pelas descobertas
da teoria dos sistemas, da unidade da psicogênese e da somatogênese. O particularismo
anatômico foi fruto deste paradigma mecanicista na Medicina. A Medicina positivista e
biologicista, que muitos chamam biomedicina, resulta desta concepção materialista ingênua
que foi o marco inicial do pensamento médico que pode ser qualificado como científico.
Nos raciocínios sobre a quantidade de partes de um sistema e sua interação, pode-se usar
três categorias essenciais: o geral, o particular e o elementar.
O geral é uma categoria que expressa uma totalidade. No caso, a totalidade de um macro-
sistema. O particular se refere a uma parte dos elementos de uma totalidade; parte que
contêm um subconjunto de elementos que se definem por uma propriedade essencial
comum a todos os entes daquele conjunto e os distinguem dos demais naquela totalidade.
No caso, um sub-sistema integrante do sistema geral. E o elementar, singular ou individual
ou específico refere-se a um indivíduo singular, um elemento da totalidade, ainda que
contido em uma das particularidades.
Quando se critica a ingenuidade do materialismo mecanicista positivista é preciso recordar
que o positivismo biologicista apareceu como reação necessária e possível ao
sobrenaturalismo. Naquele tempo, o positivismo opôs o reducionismo biológico ao
reducionismo espiritual, que desfrutava muito crédito. A concepção sobrenaturalista do
corpo humano, sua funcionalidade e suas disfunções, era generalista. A saúde e a enfermidade
eram entendidos como fenômenos globais, gerais. A pessoa estava sadia ou estava enferma. E
a enfermidade tinha uma só natureza. Primeiro, sobrenatural, depois, natural. Mas uma só. A
doença. Assim como era a concepção hipocrática (generalista e ecológica, porque o entendia
como parte de seu ambiente).
O materialismo ingênuo lhe opôs o dualismo (que também estava em moda nas religiões do
Renascimento, para salvar a face das crenças religiosas contrariadas pela ciência – como a
cosmologia heliocêntrica e a antropologia evolutivista, por exemplo).
A concepção mecanicista do Iluminismo foi inicialmente particularista (considerando cada
órgão ou cada sub-sistema orgânico isoladamente dos demais); a idéia da patologia celular é
elementarista ou a reforçou bastante. O localizacionismo cerebral foi produto dessa ideologia.
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A noção particularizada de doença do fígado substitui a de pessoa doente por conta de uma
hepatopatia.
A concepção atual da saúde e da enfermidade retorna a ser sistêmica, generalista e
integralizada, concebendo o organismo como uma totalidade cujas partes só podem ser
concebidas isoladamente como um esforço ativo de abstração, um recurso para o
entendimento impossível de ser concretizado na prática. Esta concepção totalizadora do ser
humano saudável ou enfermo, a única que deveria ser designada como holística concebe o
corpo, a mente e o ambiente (tanto físico como social) como uma unidade indissolúvel,
estreitamente cujos componentes, elementares ou particulares interagem dinâmica e
permanentemente.
As concepções científicas generalistas evitam a designação holística (do grego holos =
todo) porque esta designação foi apropriada por tendências sobrenaturalistas. que
consideram o todo como expressão da soma do material e do espiritual, do natural e do
sobrenatural. O que, deve-se convir, não combina com as concepções científicas. Seja do
organismo, da saúde, da enfermidade ou de qualquer outra.
A
Medicina
Racional
e
sua
Sucessora,
a
Medicina
Científica
A Medicina Racional surgiu na Grécia antiga, em um lugar e em um momento que foram dos
mais férteis na história da cultura. A estrutura genérica de seu projeto original está válida até
hoje, apesar das grande mudanças havidas na sua técnica. Sua evolução posterior como
Medicina Científica no Iluminismo, cujo desenvolvimento está sendo praticado até hoje no
mundo inteiro, ao menos em grandes linhas, valoriza a ciência em sua origem, da mesma
forma que impôs a necessidade e o dever do Estado regular e fiscalizar sua atividade.
No plano profissional, os médicos iluministas assentaram a normas para criar, adotar,
empregar e desenvolver as regras e os procedimentos para investigar e para a capacitar e a
habilitar de seus agentes, quer noâmbito da pesquisa, quer nas aplicações médicas. Em todo
mundo sua capacitação e exercício são oficialmente reguladas e fiscalizadas. É assim que esta
atividade vem sendo praticada em todos os rincões do mundo há muitos séculos. Não para
assegurar mercado de trabalho para os médicos, mas para garantir a melhor assistência médica
possível para a sociedade. Diferentemente do que sucede em outras carreiras, a regulação da
Medicina interessa bem mais aos doentes e, por isto, à sociedade, do que aos médicos.
Convém insistir que, ao longo de toda sua trajetória histórica e de sua evolução técnica, a
Medicina evoluiu acumulando um acervo de recursos e procedimentos cada vez mais eficazes
e mais seguros em busca de seus objetivos. Desenvolveu-se, evoluiu. E como tudo que evolui,
a cada momento do progresso e a cada aquisição de novas informações, técnicas e de novos
procedimentos deixou atrás de sí um número semelhante de informações, técnicas e
procedimentos superados. Abandonados por ineficazes, inseguros ou dispendiosos.
Como em toda a atividade técnico-científica, o obsoleto e o contemporâneo convivem, mais
ou menos pacificamente até que o novo supera o velho e se impõe. Este período de
coexistência é um dos elementos que permite distinguir o novo da novidade.
MEDICINA
NÃO
É
SUPERSTIÇÃO
3
3
Não obstante, todas as outras profissões do setor saúde, que foram instituídas ou reorganizadas
depois daquela data, tiveram seu campo de trabalho bem definidos na legislação pertinente.
O
Individualismo
e
o
Coletivismo
O individualismo e o coletivismo são doutrinas políticas, éticas, econômicas e sociais
antagônicas. Na verdade, cada uma delas constitui o ponto mais extremado de uma díade
dialética.
O individualismo é um conceito político, econômico, moral e social que exprime a
afirmação e liberdade do indivíduo frente a um grupo (especialmente à sociedade e ao
Estado). Usualmente toma-se por base a liberdade no que concerne a propriedade privada
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Miranda‐Sá,
L
S
Jr.