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Rio de
Janeiro, 2015.
2 Fleuma: “um dos quatro humores corporais, segundo a teoria hipocrática e a galênica. Frieza de ânimo, serenidade,
impassibilidade [...] Falta de interesse, diligência ou pressa, lentidão, pachorra [...]” (Ferreira, 1997: 787)
Metafísica: “[...] é um corpo de conhecimentos racionais (e não de conhecimentos revelados ou empíricos) em que
se procura determinar as regras fundamentais do pensamento [...] Segundo Aristóteles, estudo do ser enquanto
ser e especulação em torno dos primeiros princípios e das causas primeiras do ser. Sutileza ou transcendência do
discorrer.” (Ferreira, 1997: 1126)
A Inquisição católica exerceu dura perseguição às pessoas que considerava “bruxas” ou
“adoradoras do diabo”. Você pode saber um pouco mais sobre a história das “bruxas” no
seguinte documentário: https://www.youtube.com/watch?v=_QInuWRZPXQ
Por outro lado, se o demônio era capaz de produzir doenças, havia também
representantes divinos que poderiam realizar curas, como por exemplo, os reis
taumaturgos. Existem relatos como casos dos reis da França e da Inglaterra em
que seus soberanos foram considerados representantes divinos, capazes de re-
alizarem cura de escrófulas3 entre outras doenças, apenas com o toque de suas
mãos ou através de um anel tocado (“abençoado”) por esses monarcas (cf. Bloch,
1993).
No caso do Brasil, os três primeiros séculos, após a chegada portuguesa em
terras nacionais, foram marcados pelas práticas populares em saúde, que mistu-
ravam elementos da cultura negra, indígena e cristã, e eram executadas por ben-
zedeiros e curandeiros (cf. Montero, 1985). Esse cenário sofreu modificações ape-
nas com a instalação da família real portuguesa no Brasil a partir de 1808, com a
estruturação do ensino médico no país, como a abertura das Escolas de Medicina
na Bahia e no Rio de Janeiro. Tal fato contribuiu para que as práticas populares
perdessem sua hegemonia e passassem a competir com o saber médico. Para se fir-
mar como conhecimento hegemônico, a medicina valeu-se da ideia de “charlata-
nismo” das práticas populares e quem as praticassem poderiam ser denunciados à
polícia! Essa “perseguição” não foi suficiente para eliminar as práticas populares,
mas fragmentou o conhecimento tradicional e colaborou para que benzedores e
curandeiros fossem relegados às periferias urbanas (cf. Montero, 1985).
Feito esse aparte, voltemos à Europa.
Após anos de perseguição às bruxas e aos demônios, de hegemonia do clero
e do poder dos monarcas, emergiu, dentro da Europa, o Iluminismo, por volta
do século XVII.
Lembre-se que aprendemosque durante o período do Iluminismo, houve
uma ruptura com as explicações
3 Escrófulas: “Designação imprecisa do estado constitucional, que se observa nos jovens, caracterizado pela falta de
resistência, predisposição à tuberculose, eczema, catarros respiratórios [...] Tuberculose ganglionar linfática em
eventualmente óssea e articular, com supuração e fistulização [...] Ocorre sobretudo em crianças e jovens.” (Ferreira, 1997:
691) Taumaturgo: “Que ou aquele que faz milagre.” (Ferreira, 1997: 1653)
religiosas e a predominância do racionalismo e dos métodos científicos de in-
vestigação. Foi a partir desse momento que a ciência se consolidou como prá-
tica imprescindível para o conhecimento. Os saberes que produzia passaram a
explicar, não somente como funcionava o mundo, mas também como os cor-
pos adoeciam ou permaneciam saudáveis.
Foi por meio da experimentação, fragmentação e classificação da natureza,
dos corpos e dos sintomas que foi possível construir as bases para o surgimento
da medicina moderna que, segundo Foucault (1977), pode ser datada em fins
do século XVIII e início do XIX.
Com o desenvolvimento das experiências e instrumentos científicos, como
por exemplo, o microscópio, constatou-se que não eram os deuses ou os de-
mônios que provocavam as doenças, mas as condições ambientais e orgânicas
eram as responsáveis pelas enfermidades e o saber médico era o mais indicado
para tratar tais casos.
Não foi apenas o surgimento da medicina moderna que ocorreu nos fins do sé-
culo XVIII; como vimos no capítulo anterior, esse também foi o tempo da Revo-
lução Industrial. As condições de trabalho, a vida da população trabalhadora e os
problemas sociais da época despertaram o interesse do conhecimento médico.
Em 1848, foi publicado, em Paris, o texto intitulado “Médicine Sociale” de au-
toria de Jules Guérin (Nunes, 2007). Para Guérin, competia ao corpo médico “me-
lhorar as classes inferiores”, desenvolvendo a moral, a educação e o saneamento
do vício, sugeria também a redução das horas de trabalho e aumento dos salários
para que o trabalho fosse mais eficaz e produtivo (cf. Nunes, 2007: 31ss).
[a sociologia médica é] a ciência que investiga as leis que regulam as relações entre
a profissão médica e a sociedade humana como um todo; tratando da estrutura de
ambas, como as condições atuais emergiram e como o progresso da civilização tem
afetado essas relações (McIntire apud Nunes, 2007: 38).
Um ritmo sem distúrbio significa saúde. [...] Então, a doença surge abruptamente na vida
da pessoa. Ela nos lança para fora de nossa rotina. [...] Ser doente significa sofrer – so-
frer em um duplo sentido. Sofrer significa ser passivo. O homem doente está cortado da
vida ativa, uma vez que ele é incapaz de procurar seu próprio alimento. Está literalmente
abandonado e entregue aos cuidados de outras pessoas. Mas sofrer também significa
desconforto. [...] Este desconforto é chamado dor. Dor pressupõe uma unidade orgânica e
significa que esta unidade foi quebrada. Seu próprio funcionamento, para qual esta-
mos acostumados, não nos chama atenção. A dor é um grito de alarme que nos conta
que em alguma parte específica de nossos corpos uma luta está acontecendo. [...] Mas,
para retornar, nós devemos considerar a posição da pessoa doente nas culturas que têm
contribuído para a estrutura da civilização ocidental. [...] (Sigerist apud Nunes, 2007: 48)
Uma profusão de importantes fatos e teorias novos, de novos métodos e rotinas, absor-
ve de tal maneira a atenção dos médicos e dominam seus interesses que as relações
pessoais parecem ter-se tornado menos importantes, se não absolutamente, pelo me-
nos relativamente, ante a nova e poderosa tecnologia da prática médica. (Henderson
apud Nunes, 2007: 61)
Esse distanciamento entre o saber médico-científico e conhecimento popu-
lar será tema de posteriores pesquisas e críticas, como por exemplo, estudos
que evidenciam as relações de poder que o primeiro exerce sobre o segundo (cf.
Boltanski, 1989). Um estudo célebre, sobre a crescente medicalização da saúde
e consequente distanciamento em relação ao conhecimento popular, é o texto
de Illich (1975), A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. O autor discute
como a elevada medicalização da saúde fez com que os sujeitos perdessem sua
autonomia sobre a própria saúde, passando a serem dependentes exclusiva-
mente do saber médico-científico que, por sua vez, nem sempre é acessível ou
compreensível para todos que o procuram.
Em 1959 Stern publicou o texto “The physician and society” (“O médico
e a sociedade”) em que analisa “as relações entre as mudanças sociais e as
mudanças na prática médica” (Nunes, 2007: 77), isto é, ele relaciona a medicina
com o contexto sociocultural.
[...] estudar as mudanças ocorridas na prática médica em face da vida urbana; o desen-
volvimento das formas corporativas de negócios empresariais; os diferenciais do poder
aquisitivo; a variável composição etária da população pela qual a ciência médica é em
grande parte responsável; a melhoria em transporte e comunicação; as mudanças nos
padrões (ou níveis de vida); o avanço nos padrões educacionais da população americana;
as tendências do declínio da autoridade governamental local e crescimento do papel do
governo federal em todos os aspectos da vida americana”. (Stern apud Nunes, 2007: 76)
Até a década de 1960, os estudos sociais sobre a saúde na América Latina es-
tavam voltados “a descrições de padrões sociais e culturais que afetam a saúde
em pequenas comunidades campesinas ou aldeias indígenas; havia poucos es-
tudos sobre aspectos sociais de algumas enfermidades [...]” (Nunes, 2007: 106).
García inicia sua discussão na área da saúde, na década de 60, estudando a rela-
ção médico-paciente (cf. Nunes, 2013, 2007). Em 1972, publicou “Las Ciencias
Sociales en Medicina”. Nesse manuscrito, o autor ressalta quatro pontos que
deveriam ser relevados pelos estudos das ciências sociais em saúde:
Mas será que o processo de produção ainda hoje é tão influente no processo
saúde-doença?
Para uma pensadora brasileira (Luz, 2013), a lógica de produção capitalista
gera uma perda de sentido do estar e agir social no mundo, desencadeada por
sentimentos de confinamento, limitação e insegurança. A lógica da produtivi-
dade e a racionalidade de mercado estimulam a competição, a busca pelo su-
cesso, o individualismo e o consumo, que dificultam a sociabilidade e levam
os sujeitos a um estado de tensão permanente. Tal situação acaba afetando o
bem-estar e acentua o sentimento de desamparo e perigo, desencadeando uma
busca por cuidado e atenção em saúde “como forma de compensar o vazio de
sentidos culturais da sociedade capitalista atual” (p. 20).
A busca por cuidado não se delimita apenas ao saber médico-científico, o
cuidado pode ser encontrado em outros lugares, em outras formas, por exem-
plo, alguns grupos sociais recebem cuidados e apoio social em instituições re-
ligiosas (cf. Valla, Guimarães, Lacerda, 2013). Reiterando, tudo dependerá do
contexto sociocultural em que os sujeitos e os grupos estão inseridos.
Vimos que a sociologia e a sociologia na saúde podem nos ajudar a compre-
ender como as condições sociais (organização, processo de produção, desigual-
dades na distribuição de renda e recursos, etc.) podem influenciar o processo
saúde-doença. Vamos agora tentar entender como a antropologia e a antropo-
logia da saúde pode nos auxiliar a compreender como a cultura interfere no
processo saúde-doença e nas formas de tratamento.
[...] a forma como as pessoas, em diferentes culturas e grupos sociais, explicam as cau-
sas dos problemas de saúde, os tipos de tratamento nos quais elas acreditam e a quem
recorrem quando adoecem. Ela também é o estudo de como essas crenças e práticas
relacionam-se com as alterações biológicas, psicológicas e sociais no organismo hu-
mano, tanto na saúde quanto na doença. A antropologia médica, por fim, é o estudo
do sofrimento humano e das etapas pelas quais as pessoas passam para explicá-lo e
aliviá-lo.” (Helman, 2009:11)
A palavra disease é utilizada para referir estados orgânicos e funcionais, ou seja, a do-
ença tal como ela é identificada pelo modelo biomédico. Já illness remete à percepção que
o indivíduo possui de seu estado, é a perspectiva leiga sobre o fenômeno, refere-se a
situação da doença no seu sentido mais amplo. Por fim, sickness situa-se entre a
concepção biomédica e a leiga, é uma espécie de consenso negociado entre os dois
modelos. (Víctora, 2000: 21)
Inspirado em Geertz – lembra-se de Geertz? O antropólogo norte-america-
no que propôs a Antropologia Interpretativa – o médico e antropólogo Arthur
Kleinman concebeu que os comportamentos humanos no processo saúde-doen-
ça são respostas socialmente construídas; e os traços cognitivos e as noções ela-
boradas sobre as doenças poderiam ser estudados como “modelos explicativos”,
havendo diferenças entre os modelos explicativos dos profissionais e os modelos
explicativos dos doentes (Uchôa; Vidal, 1994: 500-501). A antropologia na saúde,
nesse caso, ao relevar o contexto cultural e ao identificar os modelos explicativos,
nos ajudaria a apreender os significados socialmente atribuídos a saúde-doença.
Além disso, a antropologia auxilia a área da saúde a compreender os “iti-
nerários terapêuticos” dos sujeitos. Esses itinerários seriam as elaborações e
trajetórias dos sujeitos em busca dos tratamentos de sua doença, quais as pos-
siblidades socioculturais que eles encontram e utilizam, podendo, inclusive,
ser contraditórias (cf. Alves, Souza, 1999: 125).
Para conseguir estudar esses modelos explicativos, os itinerários terapêuti-
cos e compreender o contexto sociocultural em que esses modelos estão inseri-
dos, a pesquisa etnográfica pode ser de grande valia para os estudos da saúde.
Nos anos 80, cresce o interesse por pesquisas sobre: previdência social; políti-
cas públicas de saúde no país, práticas sanitárias, mercado de trabalho, profis-
sões de saúde (cf. Nunes, 2007: 161). E notam-se um progressivo rompimento
com o materialismo histórico e maior relevo a estudos de microfenômenos, de
subjetividades e análises empíricas (cf. Minayo, 2000). Assistimos também uma
maior contribuição da política, da sociologia, da antropologia, da psicologia e
da filosofia para compreensão de temas como: sexualidade, gênero, violência
doméstica e social, representações sociais de saúde e doença, uso de drogas,
práticas de saúde corporais, busca de outras formas de tratamento, como as
terapias alternativas / complementares, etc (cf. Luz, 2011).
Nos anos 90, os principais assuntos sociológicos e antropológicos em saúde
foram: estudos sociais da ciência e da técnica; políticas públicas e de saúde,
racionalidade e práticas médicas, avaliação de políticas e programas de saúde,
comunicação e redes de informação e construção social da saúde e da doença
(cf. Nunes, 2006: 305).
Atualmente há uma pluralidade de temas que podem ser trabalhados e estuda-
dos pela Sociologia e Antropologia na saúde. Apresentaremos a seguir uma ex-
tensa lista de temas (sublinhados), e seus subtemas pesquisados, que Minayo
(2000: 49-50) identificou no campo das Ciências Sociais em saúde, no Brasil:
“Movimentos Sociais
A lista foi longa! Contudo, ainda existem outros assuntos que podem ser
trabalhados. Ao reproduzirmos a preciosa lista de temas e subtemas identifica-
dos por Minayo, intencionamos apenas ilustrar as múltiplas possiblidades que
os estudos sociológicos e antropológicos encontram na área da saúde.
Algum lhe interessou?
Esperamos que você tenha apreciado essa rápida passagem pela sociologia e an-
tropologia da saúde. Cremos que apresentamos os elementos necessários para
que você possa se situar dentro desse campo de estudos. A partir das informações
expostas juntamente com as referências utilizadas, é possível iniciar uma pesqui-
sa mais profunda acerca dos teóricos da sociologia e antropologia da saúde, as-
sim como, sobre alguns de seus referenciais teórico-metodológicos de pesquisa.
No próximo capítulo, pretendemos trabalhar com o conceito de saúde, suas re-
presentações e definições.