Você está na página 1de 22

MIWA, Marcela. Fundamentos Socioantropológicos da Saúde.

Rio de
Janeiro, 2015.

2. Saúde e doença ao longo da história

Pelo senso comum, estamos acostumados a relacionar muitas doenças com a


presença de um agente patogênico, isto é, algo como vírus, bactéria, fungos, etc.,
capaz de nos causar doenças. Em outras palavras, acostumamo-nos a as- sociar
saúde-doença com seus aspectos puramente biológicos. Fazemos uma série de
exames clínicos para tentar descobrir “quem” é o responsável pela en-fermidade. E o
melhor profissional para entender, diagnosticar e tratar sujeitossaudáveis e doentes é
o médico.
Mas você sabia que nem sempre foi assim?
E você já pensou com o contexto sociocultural pode influenciar no processosaúde-doença
assim como nos tratamentos e percepções em relação ao assunto? Na história de muitos
povos, saúde e doença eram tratados pelo xamã1,um sujeito conhecedor de rezas,
símbolos e rituais, capaz de trabalhar com ospoderes da natureza e dos espíritos no intuito
de restabelecer a saúde física emental dos membros do seu povo. Existem evidências de
cultos xamanísticosentre nativos norte-americanos, da América Central, da América do
Sul, daOceania, Tibet, China, Índia (cf. Montal, 1986). A saúde, para o xamã, envol-via
muito mais do que simples ausência de doenças, era entendida como um estado de
harmonia: com a própria visão de mundo, com a natureza (animais,plantas, minerais, etc.)
(cf. Barros, 2008) e com o mundo espiritual. Os sujeitostratados por ele eram convidados
a resgatar essa harmonia com o auxílio dos
saberes e intuição xamânicos.
Já em outros lugares, como na Grécia Antiga, muitos dos problemas de saú-de
enfrentados pelos sujeitos, especialmente a loucura, eram interpretados como
responsabilidade e vontade dos deuses gregos. Contudo, é interessante mencionar
que, a princípio, a interferência divina não era associada à ideia de castigo ou culpa
do sujeito (cf. Pessoti, 1994).
Foi especialmente com Hipócrates, reconhecido como o “pai da medicina”, que
doença passa a ser dissociada da vontade dos deuses e começa a ser entendida como
desequilíbrio orgânico, resultante do desequilíbrio no sistema de humores do sujeito
(sangue, pituíta, bílis amarela e bílis verde, escura) e o ambiente externo (cf. Pessoti,
1994). O tratamento indicado seria uma limpeza do organismo ou ór-gão, provocando
um expurgo, através de mudanças alimentares ou alterações nocomportamento e modo
de vida, visando ao retorno da harmonia humoral.
1 Xamã: “A palavra xamã vem do tungue saman, aparentado com o sânscrito sramana e com o pâli samana, que significa
‘homem inspirado pelos espíritos’.” (Montal, 1986: 15).
Juramento de Hipócrates dos médicos:
“Por Apolo, o médico, e por Asclépio, por Higia e Panacea e por todos os deuses e deu-
sas, a quem conclamo como minhas testemunhas, juro cumprir o meu dever e manter
este juramento com todas as minhas forças e com todo o meu discernimento: tributarei
a meu Mestre de Medicina igual respeito que a meus progenitores, repartindo com ele
meus meios de vida e socorrendo-o em caso de necessidade; tratarei seus filhos como se
fossem meus irmãos e, se for sua vontade aprender esta ciência, eu lhes ensinarei desin-
teressadamente e sem exigir recompensa de qualquer espécie. Instruirei com preceitos,
lições orais e demais métodos de ensino os meus próprios filhos e os filhos de meu Mes-
tre e, além deles, somente os discípulos que me seguirem sob empenho de suas palavras
e sob juramento, como determina a praxe médica. Aviarei minhas receitas de modo que
sejam do melhor proveito para os enfermos, livrando-os de todo mal e da injustiça, para o
que dedicarei todas as minhas faculdades e conhecimentos. Não administrarei a pessoa
alguma, ainda que isto me seja pedido, qualquer tipo de veneno nem darei qualquer con-
selho nesse sentido. Da mesma forma, não administrarei a mulheres grávidas qualquer
meio abortivo. Guardarei sigilo e considerarei segredo tudo o que vir e ouvir sobre a vida
das pessoas durante o tratamento ou fora dele.” (Gaarder, 1995:69)

Contudo, as teorias apresentadas nessa época, que se baseavam na teoria


dos humores e da fleuma2, não significaram uma ruptura com a metafísica. Elas
procuraram romper com a explicação mitológica e rejeitar a medicina sa-
cerdotal, no entanto suas proposições anatomofisiológica possuíam um teor
altamente especulativo, quase mágico, aos olhos de hoje (cf. Pessoti, 1994).
Com o passar dos anos e a configuração da Idade Média, presenciou-se o
retorno do misticismo. Nesse momento, as doenças, especialmente a loucura,
não eram mais produzidas pelos deuses do Olimpo, agora elas passaram a ser
entendidas como obras do demônio ou daqueles que pactuavam com os pode-
res do diabo, como os acusados de feitiçaria ou bruxaria.

2 Fleuma: “um dos quatro humores corporais, segundo a teoria hipocrática e a galênica. Frieza de ânimo, serenidade,
impassibilidade [...] Falta de interesse, diligência ou pressa, lentidão, pachorra [...]” (Ferreira, 1997: 787)
Metafísica: “[...] é um corpo de conhecimentos racionais (e não de conhecimentos revelados ou empíricos) em que
se procura determinar as regras fundamentais do pensamento [...] Segundo Aristóteles, estudo do ser enquanto
ser e especulação em torno dos primeiros princípios e das causas primeiras do ser. Sutileza ou transcendência do
discorrer.” (Ferreira, 1997: 1126)
A Inquisição católica exerceu dura perseguição às pessoas que considerava “bruxas” ou
“adoradoras do diabo”. Você pode saber um pouco mais sobre a história das “bruxas” no
seguinte documentário: https://www.youtube.com/watch?v=_QInuWRZPXQ

Por outro lado, se o demônio era capaz de produzir doenças, havia também
representantes divinos que poderiam realizar curas, como por exemplo, os reis
taumaturgos. Existem relatos como casos dos reis da França e da Inglaterra em
que seus soberanos foram considerados representantes divinos, capazes de re-
alizarem cura de escrófulas3 entre outras doenças, apenas com o toque de suas
mãos ou através de um anel tocado (“abençoado”) por esses monarcas (cf. Bloch,
1993).
No caso do Brasil, os três primeiros séculos, após a chegada portuguesa em
terras nacionais, foram marcados pelas práticas populares em saúde, que mistu-
ravam elementos da cultura negra, indígena e cristã, e eram executadas por ben-
zedeiros e curandeiros (cf. Montero, 1985). Esse cenário sofreu modificações ape-
nas com a instalação da família real portuguesa no Brasil a partir de 1808, com a
estruturação do ensino médico no país, como a abertura das Escolas de Medicina
na Bahia e no Rio de Janeiro. Tal fato contribuiu para que as práticas populares
perdessem sua hegemonia e passassem a competir com o saber médico. Para se fir-
mar como conhecimento hegemônico, a medicina valeu-se da ideia de “charlata-
nismo” das práticas populares e quem as praticassem poderiam ser denunciados à
polícia! Essa “perseguição” não foi suficiente para eliminar as práticas populares,
mas fragmentou o conhecimento tradicional e colaborou para que benzedores e
curandeiros fossem relegados às periferias urbanas (cf. Montero, 1985).
Feito esse aparte, voltemos à Europa.
Após anos de perseguição às bruxas e aos demônios, de hegemonia do clero
e do poder dos monarcas, emergiu, dentro da Europa, o Iluminismo, por volta
do século XVII.
Lembre-se que aprendemosque durante o período do Iluminismo, houve
uma ruptura com as explicações
3 Escrófulas: “Designação imprecisa do estado constitucional, que se observa nos jovens, caracterizado pela falta de
resistência, predisposição à tuberculose, eczema, catarros respiratórios [...] Tuberculose ganglionar linfática em
eventualmente óssea e articular, com supuração e fistulização [...] Ocorre sobretudo em crianças e jovens.” (Ferreira, 1997:
691) Taumaturgo: “Que ou aquele que faz milagre.” (Ferreira, 1997: 1653)
religiosas e a predominância do racionalismo e dos métodos científicos de in-
vestigação. Foi a partir desse momento que a ciência se consolidou como prá-
tica imprescindível para o conhecimento. Os saberes que produzia passaram a
explicar, não somente como funcionava o mundo, mas também como os cor-
pos adoeciam ou permaneciam saudáveis.
Foi por meio da experimentação, fragmentação e classificação da natureza,
dos corpos e dos sintomas que foi possível construir as bases para o surgimento
da medicina moderna que, segundo Foucault (1977), pode ser datada em fins
do século XVIII e início do XIX.
Com o desenvolvimento das experiências e instrumentos científicos, como
por exemplo, o microscópio, constatou-se que não eram os deuses ou os de-
mônios que provocavam as doenças, mas as condições ambientais e orgânicas
eram as responsáveis pelas enfermidades e o saber médico era o mais indicado
para tratar tais casos.

2.1 Contexto histórico da Sociologia da


Saúde

Não foi apenas o surgimento da medicina moderna que ocorreu nos fins do sé-
culo XVIII; como vimos no capítulo anterior, esse também foi o tempo da Revo-
lução Industrial. As condições de trabalho, a vida da população trabalhadora e os
problemas sociais da época despertaram o interesse do conhecimento médico.
Em 1848, foi publicado, em Paris, o texto intitulado “Médicine Sociale” de au-
toria de Jules Guérin (Nunes, 2007). Para Guérin, competia ao corpo médico “me-
lhorar as classes inferiores”, desenvolvendo a moral, a educação e o saneamento
do vício, sugeria também a redução das horas de trabalho e aumento dos salários
para que o trabalho fosse mais eficaz e produtivo (cf. Nunes, 2007: 31ss).

Em lugar de aplicações vacilantes e isoladas agrupadas em títulos como polí-


cia médica, higiene pública, ou medicina legal, chegou a hora de reunir estes fa-
tos dispersos, regularizá-los em um todo e de levá-los à sua significação mais ele-
vada, sob o nome, mais apropriado para suas funções, de medicina social. [...]
Por quem serão determinadas, senão pelo médico, as causas da deterioração física da
classe para quem se acaba de por abaixo a estrutura de privilégios, e que conhece os
meios para torná-la mais sã, forte e feliz? [...] (Guérin apud Nunes, 2007: 31)

Jules Guérin (1801-1886)


Nasceu em Boussu, “estudou em Lovaina e Paris, de 1821 a 1826. Diplomou-se em
medicina, tendo se encarregado da direção da Gazette de la Santé a partir de 1828.
Rebatizado com o nome de Gazette Médicale de Paris, tornou-se a publicação médica
mais importante na França”. (Nunes, 2007: 29)

Além da França, outros países também começaram a discutir acerca da


“medicina social”, como no caso da Alemanha, em que seus teóricos destaca-
vam a importância das condições sociais para o processo saúde-doença, assim
como, percebiam a saúde como uma questão de interesse social (cf. Nunes,
2007). O termo “sociologia médica” foi utilizado em um texto de 1894, de auto-
ria de Charles McIntire, médico de Easton, Pensilvânia, em uma conferência na
Academia de Medicina nos Estados Unidos (cf. Nunes, 2007).

[a sociologia médica é] a ciência que investiga as leis que regulam as relações entre
a profissão médica e a sociedade humana como um todo; tratando da estrutura de
ambas, como as condições atuais emergiram e como o progresso da civilização tem
afetado essas relações (McIntire apud Nunes, 2007: 38).

As concepções relacionadas a uma “medicina social” ou “sociologia médi-


ca” contribuíram para que se atentasse para as relações entre médico, paciente
e sociedade. O próprio Charles McIntire chamou a atenção para a linguagem
médica que poderia dificultar o entendimento para quem não estivesse acostu-
mado (cf. Nunes, 2007: 38).
Em 1929, o médico Henry Sigerist, ao publicar “The Special Position of the
Sick” (“Da posição do doente na sociedade”) foi pioneiro ao retirar o foco da me-
dicina e enfatizar a importância da pessoa doente no contexto social. Sigerist en-
tendia que o doente ocupava uma posição específica na sociedade, uma vez que a
doença ocasionava uma interrupção na vida e que o status do doente só poderia
ser compreendido por meio de uma análise histórica (cf. Nunes, 2007: 47).

Um ritmo sem distúrbio significa saúde. [...] Então, a doença surge abruptamente na vida
da pessoa. Ela nos lança para fora de nossa rotina. [...] Ser doente significa sofrer – so-
frer em um duplo sentido. Sofrer significa ser passivo. O homem doente está cortado da
vida ativa, uma vez que ele é incapaz de procurar seu próprio alimento. Está literalmente
abandonado e entregue aos cuidados de outras pessoas. Mas sofrer também significa
desconforto. [...] Este desconforto é chamado dor. Dor pressupõe uma unidade orgânica e
significa que esta unidade foi quebrada. Seu próprio funcionamento, para qual esta-
mos acostumados, não nos chama atenção. A dor é um grito de alarme que nos conta
que em alguma parte específica de nossos corpos uma luta está acontecendo. [...] Mas,
para retornar, nós devemos considerar a posição da pessoa doente nas culturas que têm
contribuído para a estrutura da civilização ocidental. [...] (Sigerist apud Nunes, 2007: 48)

Henry Ernest Sigerist (1981-1957)


Nasceu em Paris. Foi professor de História da Medicina e diretor do Instituto de His-
tória da Medicina da Universidade de Leipzig, até 1932. Depois, transferiu-se para a
Universidade de Johns Hopkins, nos EUA, permanecendo até 1947, após esse período
muda-se para a Suíça, lá vivendo até seu falecimento. (Cf. Nunes, 2007: 45-46)

Em 1935, o médico Lawrence Henderson realizou uma palestra denomi-


nada “Physician and Patient as a Social System” (“A relação médico/paciente
como um sistema social”), chamando atenção para a questão da comunicação
entre médicos e seus pacientes (cf. Nunes, 2007).

Uma profusão de importantes fatos e teorias novos, de novos métodos e rotinas, absor-
ve de tal maneira a atenção dos médicos e dominam seus interesses que as relações
pessoais parecem ter-se tornado menos importantes, se não absolutamente, pelo me-
nos relativamente, ante a nova e poderosa tecnologia da prática médica. (Henderson
apud Nunes, 2007: 61)
Esse distanciamento entre o saber médico-científico e conhecimento popu-
lar será tema de posteriores pesquisas e críticas, como por exemplo, estudos
que evidenciam as relações de poder que o primeiro exerce sobre o segundo (cf.
Boltanski, 1989). Um estudo célebre, sobre a crescente medicalização da saúde
e consequente distanciamento em relação ao conhecimento popular, é o texto
de Illich (1975), A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. O autor discute
como a elevada medicalização da saúde fez com que os sujeitos perdessem sua
autonomia sobre a própria saúde, passando a serem dependentes exclusiva-
mente do saber médico-científico que, por sua vez, nem sempre é acessível ou
compreensível para todos que o procuram.

Lawrence Joseph Henderson (1878-1942)


Nasceu e faleceu nos EUA. “Graduou-se em 1898 no Harvard College e em 1902 na
Harvard School of Medicine. [...] nunca praticou a medicina, embora dela tivesse grande
conhecimento, até mesmo do papel que o seu rápido desenvolvimento científico estava
tendo na época. [...] O interesse de Henderson pelas ciências sociais foi derivado das
suas leituras de Pareto, levando-o a desenvolver constantes análises em torno dos
conceitos de sistema, equilíbrio, dependência mútua e as funções dos esquemas con-
ceituais [...]” (Nunes, 2007: 60)

Contudo, voltemos a Lawrence Henderson.


Esse médico irá influenciar o sociólogo americano Talcott Parsons, que
na década de 1950 publicou o livro The Social System, cujo capítulo X, “Social
structure and Dynamics process: the case of the modern medical practice” ex-
plicita suas preocupações com a área da saúde. Segundo o médico e sociólogo
Juan César García (1983) – de quem falaremos mais adiante – Parsons fez parte
da corrente sociológica do neopositivismo ou funcionalismo sociológico. Para
essa corrente, as sociedades são como totalidades que compõem um sistema
social de elementos interdependentes que tendem ao equilíbrio e à estabilida-
de; elementos desviantes ou desarmônicos seriam considerados “disfuncio-
nais” e as mudanças sociais não eram revolucionárias, mas adaptativas e lentas
(cf. García, 1983). Ainda segundo García (1983: 106), Parsons entendia a doença
como parte do equilíbrio social, uma forma de conduta desviada, e a medicina
serviria como um mecanismo de controle social.
Uma breve meditação nos fará ver imediatamente que o problema da saúde encontra-
se intimamente implicado nos pré-requisitos funcionais do sistema social [...] a doença
incapacita para desempenhar efetivamente os papeis sociais. [...] A prática médica [...] é
um ‘mecanismo’ no sistema social para enfrentar as doenças de seus membros. (Par-
sons apud Nunes, 2007: 91-92)

Talcott Parsons (1902-1979)


Nasceu no Colorado, EUA. Cursou a Universidade de Amherst onde se interessou pe-
las ciências sociais. Trabalhou em Harvard, onde construiu sua carreira. Presidiu as
Eastern Sociological Society (1942), American Sociological Association (1949), Ame-
rican Academy of Arts and Science (1967). (cf. Nunes, 2007: 90)

Nunes (2007: 92-93) chama-nos atenção para o fato de Parsons reconhecer


que existem outras formas de lidar com a doença além da medicina científica,
como por exemplo: a magia e a religião. Outros aspectos interessantes, aponta-
do pelo mesmo autor, foram os estudos de Parsons sobre as características do
papel do médico e sua competência técnica e do papel do doente, considerado
leigo, desqualificado ou limitado para recuperar a própria saúde.
Apesar das contribuições de Parsons, este também sofreu críticas. Conforme
Nunes (2007:101) as três limitações apontadas às obras parsonianas são: a) não
reconhecer as divisões sociais estabelecidas pelo sexo, classe social e etnia que,
por sua vez, influenciam as experiências acerca do processo saúde-doença e
seus tratamentos; b) utilizar uma abordagem a-histórica sem se atentar para as
diferenças das instituições de saúde das diversas sociedades; c) idealização do
relacionamento médico-paciente.
Essas críticas nos apontam outro prisma para compreender o processo saú-
de-doença. Quando indicam que Parsons não reconhece as divisões sociais,
como as classes sociais, e que ele não se atenta para a historicidade4 dos fenô-
menos sociais, vislumbramos a influência do materialismo histórico dialético.
4 Historicidade: “Caráter do que é histórico. Atuação do homem como agente no processo histórico-literário”.
(Ferreira, 1997: 901)
Sociologia Médica ou Sociologia da Saúde?
Segundo Nunes (2006) o termo Sociologia Médica foi definido por Charles McIntire
em 1894. Nos fins dos anos 1960 e início dos 70, começaram a ocorrer mudanças
nas perspectivas na abordagem da sociologia médica, retirando o foco da medicina e
da profissão médica para “deslocar-se em direção à saúde e a outras profissões dessa
área” (p. 290), configurando, dessa forma, a ideia de uma sociologia da saúde.

2.2 Contribuições do materialismo histórico


para pensar o processo saúde-doença

Você deve se lembrar que o materialismo histórico dialético está relacionado à


Karl Marx. Resumidamente, o materialismo focará as condições materiais de
existência, as formas de produção da sociedade; o histórico relaciona-se ao
movimento, a dinâmica, o processo; e o método dialético, debruça-se sobre as
contradições do social.
Você também deve se recordar que, páginas acima, mencionamos que
a ideia de uma “medicina social” coincidiu com as realidades urbanas pós
Revolução Industrial.
Um pensador da sociologia da saúde marcadamente marxista foi o sociólo-
go americano Bernhard Stern.

Bernhard Joseph Stern (1894-1956)


Nasceu em Chicago, EUA. Estudou na Universidade de Cincinnati. No início da década de
1920 passou um tempo estudando na Europa, retornando aos EUA em 1924. Em
1927, na Columbia University, obteve o título de doutor em Sociologia e Antropologia
com a tese Social factors in medical progress em que analisava a “resistência social à
inovação médica”. (cf. Nunes, 2007: 74-75)

Em 1959 Stern publicou o texto “The physician and society” (“O médico
e a sociedade”) em que analisa “as relações entre as mudanças sociais e as
mudanças na prática médica” (Nunes, 2007: 77), isto é, ele relaciona a medicina
com o contexto sociocultural.

[...] estudar as mudanças ocorridas na prática médica em face da vida urbana; o desen-
volvimento das formas corporativas de negócios empresariais; os diferenciais do poder
aquisitivo; a variável composição etária da população pela qual a ciência médica é em
grande parte responsável; a melhoria em transporte e comunicação; as mudanças nos
padrões (ou níveis de vida); o avanço nos padrões educacionais da população americana;
as tendências do declínio da autoridade governamental local e crescimento do papel do
governo federal em todos os aspectos da vida americana”. (Stern apud Nunes, 2007: 76)

A partir do trecho citado acima, podemos constatar que, além de privilegiar


a perspectiva histórica, Stern ressalta a importância de voltar-se para as con-
dições materiais de existência para compreender a própria ação da medicina.
Para García (1983: 110-112) poderíamos dizer que Stern percebia o vínculo da
medicina com o desenvolvimento das forças produtivas e que a própria ciência
estava sob a influência do seu meio econômico.

Stern e outros autores, aceitando a concepção geral de que historicamente existe um


melhoramento dos níveis de saúde, concentram-se no estudo dos determinantes da
distribuição desigual da morbi-mortalidade. No capitalismo ocorre um melhoramento
dos níveis de saúde quando comparado a outros modos de produção pré-capitalistas
existindo a possiblidade de um melhoramento para as classes sociais dominadas. São
as relações de produção capitalistas, sem dúvida, que estão impedindo um melhora-
mento homogêneo de saúde para todas as classes sociais pois não permitem uma
distribuição igualitária do excedente. Essa contradição se resolverá com a mudança
das relações de produção, que permitirá uma distribuição segundo necessidades e,
por conseguinte, uma homogeneização do estado de saúde ao nível alcançado pelas
classes dominantes no modo de produção superado” (García, 1983: 113-114).

Como já apontado acima por García, Stern evidenciou como as desigual-


dades sociais influenciam na manutenção da saúde. Ao estudar os anos de
1938-1940 da cidade de Nova Iorque, Stern constatou as diferenças de morta-
lidade infantil entre brancos e negros (66% maior para negros em relação aos
brancos), como também, percebeu que havia diferenças semelhanças entre
grupos de brancos com rendas diferentes e entre os que moravam na zona rural
e na área urbana (cf. Nunes, 2007: 79).
Outro pensador marxista na área da saúde, que foi muito influente na
América Latina, desde meados da década de 1960 até os anos 80, é o médico e
sociólogo argentino Juan César García (cf. Nunes, 2013).

Juan César García (1932-1984)


Nasceu em Necohea, Argentina. “Graduou-se em medicina pela Universidade de La
Plata (Argentina) e foi chefe do Centro de Saúde de Berisso, província de Buenos Ai-
res. Estudou sociologia na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso),
Chile, onde lecionou Teoria Sociológica. Em 1965 foi nomeado assistente de investiga-
ção na Universidade de Harvard em 1967 incorporou-se à Organização Pan-America-
na da Saúde, em Washington, DC.” (Nunes, 2007: 107)

Até a década de 1960, os estudos sociais sobre a saúde na América Latina es-
tavam voltados “a descrições de padrões sociais e culturais que afetam a saúde
em pequenas comunidades campesinas ou aldeias indígenas; havia poucos es-
tudos sobre aspectos sociais de algumas enfermidades [...]” (Nunes, 2007: 106).
García inicia sua discussão na área da saúde, na década de 60, estudando a rela-
ção médico-paciente (cf. Nunes, 2013, 2007). Em 1972, publicou “Las Ciencias
Sociales en Medicina”. Nesse manuscrito, o autor ressalta quatro pontos que
deveriam ser relevados pelos estudos das ciências sociais em saúde:

a) a localização da medicina na estrutura social [...]; b) a influência da estrutura social


na produção e distribuição da doença [...]; c) análise da estrutura internada produção
de serviços médicos e d) a relação da formação de pessoa de saúde com o médico
(Nunes, 2007: 108).

Os estudos de García entre os anos de 1960 e 1980 não se limitaram às rela-


ções médico-paciente, contemplaram também temas como: educação médica;
estudante de medicina; ensino das ciências sociais; doenças; artigos sobre as
origens da medicina social; o conceito e a história da medicina comunitária; es-
colha da enfermagem como profissão; a articulação da educação e da medicina
na estrutura social, história das instituições de pesquisa na América Latina e
relações entre medicina e o Estado, de 1880 a 1930 (cf. Nunes, 2013: 1755-56).
Uma estudiosa que realizou interessantes investigações acerca do processo
saúde-doença, sob a ótica do materialismo histórico, foi Asa Cristina Laurell.

Asa Cristina Laurell (1971- )


“Graduou-se em medicina, em 1971, pela Universidade de Lund (Suécia) e obteve o
grau de Mestre em Saúde Pública pela Universidade da Califórnia, Berkeley, especia-
lizando-se em epidemiologia. De 1972 a 1974 coordenou pesquisa sobre problemas
socioeconômicos nas áreas de cortiços da cidade do México. [...] coordenadora do cur- so
de pós-graduação de Medicina Social na Universidade Autônoma Metropolitana de
Xochimilco, na cidade do México [...]” (Nunes, 2007: 134)

Laurell compreende que saúde e doença não se restringem ao âmbito bio-


lógico, estão relacionados a: formas de organização da sociedade; a lógica dos
interesses econômicos; a relações de poder e a representações sociais (Laurell,
1983). Em outras palavras, Laurell entende saúde como um processo social em
que é preciso relevar o nexo biopsíquico, isto é, a historicidade dos processos
biológicos e psíquicos humanos (Laurell, 1989).
Ao estudar as influências do processo de produção sobre a saúde, Laurell
(1989) compreende que o processo de produção, a forma de organização das
forças produtivas e as formas de produção originam processos de adaptação e
padrões de desgaste nos sujeitos. Os processos de adaptação, ou melhor, os “es-
tereótipos de adaptação” para usarmos as palavras de Laurell, são entendidos
como um fenômeno da coletividade, do grupo social em determinada posição
na produção, e essa adaptação ocasiona mudanças específicas nos processos
corporais para a sobrevivência e para lidar com o estresse. Essas adaptações são
respostas às cargas de trabalho que os sujeitos enfrentam durante a produção.

Para Laurell (1989:111ss), as cargas de trabalho podem ser classificadas como: a)


cargas físicas – como por exemplo: calor ou som excessivo; b) químicas – pó, fumaça,
etc; c) biológica – microorganismos, etc; d) fisiológicas; e) psicológicas.
Já o processo de desgaste é definido por Laurell como: “perda da capacidade
efetiva / potencial, biológica e psíquica” (1989: 115) ocasionada pelas formas
de produção. Essa perda não é irreversível, caso haja uma mudança na forma
de produção ou se os sujeitos deixarem o trabalho que ocasiona o desgaste, é
possível reverter essa condição.
As desigualdades sociais, desencadeadas pela divisão social do trabalho e
pela distribuição desigual de bens e recursos entre as classes sociais, influenciam
os perfis patológicos das coletividades. Esses perfis patológicos podem se alterar
conforme as transformações das sociedades (cf. Laurell, 1983). Para ilustrar isso,
Laurell, em seu texto “A saúde-doença como processo social” (1983), comparou
os índices de mortalidade no México entre os anos de 1940 e 1970 e constatou
que as mudanças histórico-sociais ocorridas, no referido país, influenciaram a
diminuição das doenças infecciosas. No mesmo manuscrito, a autora comparou
os diferenciais de mortalidade entre as classes sociais, da Inglaterra, no perío-
do de 1921 a 1972, dando relevância aos dados referentes aos anos posteriores
a 1949, devido ao fato que em 1946 foi implantado o Serviço Nacional de Saúde
inglês, que garantia a toda a população o acesso ao serviço médico.
Comparando os dados no referido intervalo de tempo (1921-1972) Laurell ve-
rificou que não houve diminuição dos diferencias de mortalidade entre os gru-
pos sociais. Quando analisados isoladamente, cada grupo até apresentou uma
diminuição em seus índices de mortalidade, contudo, a proporção dos índices
de mortalidade entre os grupos permaneceu relativamente os mesmos. Tal per-
cepção levou Laurell a concluir que os diferencias de mortalidade não são resul-
tantes diretos de acesso diferente aos serviços médicos. Os grupos sociais apre-
sentam perfis patológicos5 que se “distinguem conforme o modo particular de
combinar-se o desenvolvimento das forças produtivas e as relações sociais de
produção” (Laurell, 1983: 148). Indicando a importância de “estudar o tipo, a fre-
quência e a distribuição da moléstia nos diversos grupos sociais que constituem
a sociedade [...] a distribuição da doença e da morte é desigual” (idem: 145).
5 Perfil patológico: “O perfil patológico se constitui considerando o tipo de patologia e a frequência que determinado
grupo apresenta em um dado momento.” (Laurell, 1983: 137)
Caso tenha interesse em saber mais detalhes sobre o texto “A saúde-doença como pro-
cesso social”, você pode encontrá-lo no seguinte endereço: https://fopspr.files.wordpress.
com/2009/01/saudedoenca.pdf

Mas será que o processo de produção ainda hoje é tão influente no processo
saúde-doença?
Para uma pensadora brasileira (Luz, 2013), a lógica de produção capitalista
gera uma perda de sentido do estar e agir social no mundo, desencadeada por
sentimentos de confinamento, limitação e insegurança. A lógica da produtivi-
dade e a racionalidade de mercado estimulam a competição, a busca pelo su-
cesso, o individualismo e o consumo, que dificultam a sociabilidade e levam
os sujeitos a um estado de tensão permanente. Tal situação acaba afetando o
bem-estar e acentua o sentimento de desamparo e perigo, desencadeando uma
busca por cuidado e atenção em saúde “como forma de compensar o vazio de
sentidos culturais da sociedade capitalista atual” (p. 20).
A busca por cuidado não se delimita apenas ao saber médico-científico, o
cuidado pode ser encontrado em outros lugares, em outras formas, por exem-
plo, alguns grupos sociais recebem cuidados e apoio social em instituições re-
ligiosas (cf. Valla, Guimarães, Lacerda, 2013). Reiterando, tudo dependerá do
contexto sociocultural em que os sujeitos e os grupos estão inseridos.
Vimos que a sociologia e a sociologia na saúde podem nos ajudar a compre-
ender como as condições sociais (organização, processo de produção, desigual-
dades na distribuição de renda e recursos, etc.) podem influenciar o processo
saúde-doença. Vamos agora tentar entender como a antropologia e a antropo-
logia da saúde pode nos auxiliar a compreender como a cultura interfere no
processo saúde-doença e nas formas de tratamento.

2.3 A Antropologia na saúde


Uma das principais contribuições da Antropologia para a saúde é “relativizar
conceitos biomédicos” (Minayo, 2009), as explicações baseadas na ciência e
na biologia são importantes, entretanto, não constituem as únicas formas de
interpretação e compreensão do processo saúde-doença. Segundo Langdon e
Wilk (2010: 179), “todas as culturas possuem conceitos sobre o que é ser doente
ou saudável”, que extrapolam as teorias médico-científicas.
Você já deve ter ouvido expressões como: “ele pegou um vento gelado e aí fi-
cou gripado”. Não queremos deslegitimar essa explicação, contudo, você percebe
que não há menção ao vírus da gripe, que seria a interpretação biomédica para a
doença? Mesmo que não acreditemos na relação “vento gelado-gripe”, temos de
reconhecer que expressões como essa são difundidas em nosso senso comum.
Cada grupo social também possui uma compreensão própria a respeito do
corpo e do seu funcionamento. Segundo Helman (2009), a cultura irá influen-
ciar a relação dos sujeitos com seus corpos da seguinte maneira:

1. Crenças sobre a forma e o tamanho ideais do corpo, incluindo as rou-


pas e a ornamentação de sua superfície
2. Crenças sobre os limites do corpo
3. Crenças sobre a estrutura interna do corpo
4. Crenças sobre o funcionamento do corpo”. (Helman, 2009: 27)

As formas de compreender o corpo e seu funcionamento, por sua vez, determi-


narão “os tipos de recursos e práticas aceitas em cada sociedade” (Víctora, 2000: 19).
Lembra-se do xamã que mencionamos no começo deste capítulo? O xamã en-
tende as doenças como provenientes da desarmonia do sujeito com suas visões
de mundo, com a natureza e com os espíritos. Dessa forma, seus tratamentos não
se restringirão à doença orgânica, mas envolverão os aspectos psicoespirituais.
Talvez você esteja se questionando “mas será que isso funciona?”.
O antropólogo Lévi-Strauss, em seu célebre estudo “O feiticeiro e sua magia”
(1973a) procurou explicar o mecanismo da eficácia da magia e dos rituais do fei-
ticeiro ou xamã. Para que as práticas mágicas funcionem são necessários três
elementos: a) a crença do feiticeiro em suas técnicas – se não acreditar, prova-
velmente ele não irá praticá-las; b) crença do doente no poder do feiticeiro – se
o doente não acreditar no feiticeiro, certamente não irá procurar seus serviços;
c) aprovação da opinião coletiva. Podemos entender que a questão da magia ul-
trapassa a busca da simples busca da cura orgânica, a “eficácia simbólica” (Lévi-
Strauss, 1973b) dos rituais, símbolos e tratamentos do xamã/feiticeiro é capaz de
conferir sentido ao processo saúde-doença e pode, até mesmo, levar à cura.
A prática xamânica não exclui o conhecimento biomédico. Por vezes, é possível que atuem
em conjunto, considerando o bem-estar do sujeito enfermo, como você poderá ver no seguin- te
vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=YKubroVL-Xs

A experiência da dor também sofre influência da cultura (Adam, Herzlich,


2001), por exemplo, às vezes, para uma mesma doença, certos grupos manifes-
tam sua dor de maneira intensa, associam outros sintomas à doença e quei-
xam-se de forma imprecisa, enquanto outros grupos podem ser mais comedi-
dos ao expressarem suas dores e mais precisos na descrição dos sintomas.

O caso da influência cultural na experiência da dor e descrição dos sintomas


Trata-se de um estudo realizado por Irving Zola, na década de 1960, com grupos de
americanos, um de origem italiana e outro de origem irlandesa. Esse estudo foi citado
por Philippe Adam e Claudine Herzlich:
“O autor estudou a descrição que os pacientes faziam de seus sintomas ao clínico geral,
ao oftalmologista e ao otorrinolaringologista, e comparou com grande precisão a ex-
pressão das reclamações em pares de doentes, um de origem italiana, outro de origem
irlandesa, que tinham recebido o mesmo diagnóstico. Os irlandeses localizavam preci-
samente com maior frequência os sintomas, descrevem uma disfunção cirscuncrita e
minimizam o sofrimento. Os italianos reclamam de sintomas mais numerosos e mais
difusos; eles insistem sobre a dor e exageram, afirmando que seu humor e suas rela-
ções estão perturbadas. Assim, para um mesmo problema de visão, à questão ‘Qual é o
seu problema?’ um americano de origem irlandesa responde: ‘Não consigo enxergar o
suficiente para por um fio no buraco de agulha ou ler o jornal’, enquanto que o paciente de
origem italiana responde: ‘Estou com uma dor de cabeça que nunca passa, os olhos
escorrem e ficam vermelhos’.” (Adam; Herzlich, 2001: 71-72)

Apesar de existirem estudos antropológicos que abordassem saúde e doença,


a ideia de antropologia médica surgiu nos EUA na década de 1960, “fortemente
associada à Epidemiologia e à Clínica, dedicando-se em linhas gerais ao estudo
da incidência e distribuição das doenças, aos cuidados em instituições médi-
cas, aos estudos dos problemas de saúde em geral e à etnomedicina” (Canesqui,
1994:15). Posteriormente, a antropologia médica ampliou sua área de atuação,
para além de suas raízes epidemiológicas e clínica, dedicando-se a estudar

[...] a forma como as pessoas, em diferentes culturas e grupos sociais, explicam as cau-
sas dos problemas de saúde, os tipos de tratamento nos quais elas acreditam e a quem
recorrem quando adoecem. Ela também é o estudo de como essas crenças e práticas
relacionam-se com as alterações biológicas, psicológicas e sociais no organismo hu-
mano, tanto na saúde quanto na doença. A antropologia médica, por fim, é o estudo
do sofrimento humano e das etapas pelas quais as pessoas passam para explicá-lo e
aliviá-lo.” (Helman, 2009:11)

Dessa forma, depreende-se que para entender o processo saúde-doença


e tratamentos é fundamental considerar o contexto sociocultural do grupo
estudado.

“A expressão antropologia médica vem de uma tradição de pesquisa anglo-saxônica


atuando diretamente no campo da biomedicina e das terapêuticas tradicionais, de pre-
ferência em países da Ásia, da África e da América Latina. No Brasil foi bastante usada
por antropólogos da saúde formados na Inglaterra e nos Estados Unidos. [...] Por sua
vez, a expressão antropologia da saúde tem origem francesa e trabalha com um marco
referencial mais amplo e contextualizado”. (Minayo, 2009: 204-205)

Além da relevância do contexto, alguns autores em antropologia médica,


valem-se da distinção de três perspectivas sobre a doença: disease; illness e
sickness.

A palavra disease é utilizada para referir estados orgânicos e funcionais, ou seja, a do-
ença tal como ela é identificada pelo modelo biomédico. Já illness remete à percepção que
o indivíduo possui de seu estado, é a perspectiva leiga sobre o fenômeno, refere-se a
situação da doença no seu sentido mais amplo. Por fim, sickness situa-se entre a
concepção biomédica e a leiga, é uma espécie de consenso negociado entre os dois
modelos. (Víctora, 2000: 21)
Inspirado em Geertz – lembra-se de Geertz? O antropólogo norte-america-
no que propôs a Antropologia Interpretativa – o médico e antropólogo Arthur
Kleinman concebeu que os comportamentos humanos no processo saúde-doen-
ça são respostas socialmente construídas; e os traços cognitivos e as noções ela-
boradas sobre as doenças poderiam ser estudados como “modelos explicativos”,
havendo diferenças entre os modelos explicativos dos profissionais e os modelos
explicativos dos doentes (Uchôa; Vidal, 1994: 500-501). A antropologia na saúde,
nesse caso, ao relevar o contexto cultural e ao identificar os modelos explicativos,
nos ajudaria a apreender os significados socialmente atribuídos a saúde-doença.
Além disso, a antropologia auxilia a área da saúde a compreender os “iti-
nerários terapêuticos” dos sujeitos. Esses itinerários seriam as elaborações e
trajetórias dos sujeitos em busca dos tratamentos de sua doença, quais as pos-
siblidades socioculturais que eles encontram e utilizam, podendo, inclusive,
ser contraditórias (cf. Alves, Souza, 1999: 125).
Para conseguir estudar esses modelos explicativos, os itinerários terapêuti-
cos e compreender o contexto sociocultural em que esses modelos estão inseri-
dos, a pesquisa etnográfica pode ser de grande valia para os estudos da saúde.

2.4 Sociologia e Antropologia na saúde no


Brasil

A inserção da sociologia e da antropologia na área da saúde, no Brasil, é relati-


vamente recente. Você deve se recordar que o termo “sociologia médica” surgiu
com Charles McIntire, em 1893 (cf. Nunes, 2007). Contudo, a disciplina “socio-
logia” só foi institucionalizada no Brasil na década de 1930 com a criação da
cátedra na Escola Livre de Sociologia e Política em São Paulo em 1933 e a Facul-
dade de Filosofia, Ciências e Letras, da Universidade de São Paulo, em 1934 (cf.
Nunes, 2007: 156).
Os estudos sociológicos e antropológicos em saúde no Brasil apenas ganha-
ram força a partir da década 1960, acompanhando o movimento das ciências
sociais em saúde na América Latina. Nos anos de 1950-60, na América Latina, os
estudos antropológicos davam maior ênfase à etnomedicina (cf. Nunes, 2007,
158). Nos anos 70, vimos que os estudos sociológicos em saúde passaram a so-
frer maior influência do pensamento do materialismo histórico (idem p. 159).
Ainda na década de 70, ocorreu uma crise econômica na América Latina que
desencadeou aumento da inflação, aumento da dívida externa, aumento do de-
semprego. Por outro lado, na mesma época, presenciamos o fortalecimento do
discurso internacional sobre a Atenção Primária em Saúde (Nunes, 2007: 160).
Nesse período, surgiram, no Brasil duas importantes organizações acadêmico
-políticas em saúde: o Centro Brasileiro de Estudos da Saúde (Cebes) em 1976;
e a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (Abrasco), em
1979 (Nunes, 2007: 160).
Esses dois movimentos organizados, de inspiração acadêmica e política,
influenciaram fortemente a elaboração do capítulo dos direitos sociais na
Constituição de 1988, a chamada Constituição Cidadã. Nele a saúde é defini-
da de forma ampliada, como resultante de condições e qualidade de vida. Sua
conceituação ultrapassa a visão biomédica, permite a integração, na sua elabo-
ração histórica, tanto da interdisciplinaridade, da discussão do híbrido bioló-
gico-social, como da incorporação da cultura e do protagonismo dos movimen-
tos e dos sujeitos sociais. (Minayo, 2000: 46)

Nos anos 80, cresce o interesse por pesquisas sobre: previdência social; políti-
cas públicas de saúde no país, práticas sanitárias, mercado de trabalho, profis-
sões de saúde (cf. Nunes, 2007: 161). E notam-se um progressivo rompimento
com o materialismo histórico e maior relevo a estudos de microfenômenos, de
subjetividades e análises empíricas (cf. Minayo, 2000). Assistimos também uma
maior contribuição da política, da sociologia, da antropologia, da psicologia e
da filosofia para compreensão de temas como: sexualidade, gênero, violência
doméstica e social, representações sociais de saúde e doença, uso de drogas,
práticas de saúde corporais, busca de outras formas de tratamento, como as
terapias alternativas / complementares, etc (cf. Luz, 2011).
Nos anos 90, os principais assuntos sociológicos e antropológicos em saúde
foram: estudos sociais da ciência e da técnica; políticas públicas e de saúde,
racionalidade e práticas médicas, avaliação de políticas e programas de saúde,
comunicação e redes de informação e construção social da saúde e da doença
(cf. Nunes, 2006: 305).
Atualmente há uma pluralidade de temas que podem ser trabalhados e estuda-
dos pela Sociologia e Antropologia na saúde. Apresentaremos a seguir uma ex-
tensa lista de temas (sublinhados), e seus subtemas pesquisados, que Minayo
(2000: 49-50) identificou no campo das Ciências Sociais em saúde, no Brasil:

“Políticas, instituições e Gestão de Serviços

• Relações entre o papel da medicina e a reprodução capitalista;


• A produção social da saúde e da doença;
• A crescente subordinação da prática médica nos interesses da indústria
farmacêutica;
• A política da previdência social no Brasil;
• A constituição das várias formas dos serviços sanitários;
• O papel do estado como organizador do imaginário de saúde;
• A reforma sanitária;
• Avaliação dos serviços e da implantação do SUS;
• Políticas para grupos específicos: mulheres, crianças, adolescentes, ido-
sos, indígenas, trabalhadores;
• Políticas relacionadas à prevenção ou tratamento de enfermidades ou
problemas específicos: AIDS, mentais, endemias, crônico-degenerativas, vio-
lências, doenças do trabalho;
• Reforma do Estado e do SUS;
• Padrões de consumo em saúde;
• Municipalização e formas de gestão participativa;
• Reformas asilares e desospitalização;
• Sistemas de saúde comparados;
• Sistemas de gerenciamento do setor;
• Avaliação de acessibilidade e qualidade dos serviços;
• Sociologia das instituições, das práticas institucionais e avaliação
institucional;
• Gestão de serviços.” (Minayo, 2000: 49-50)
“Processos de Saúde e Doença

• Relações entre os processos de trabalho e a saúde-doença;


• Articulação entre o biológico e o social;
• Inclusão da questão cultural nos fenômenos do adoecer, morrer e vida;
• Abordagens antropológicas e etnográficas sobre doença, cura e
representações;
• Análises de relações entre religião e saúde-doença;
• Questões de gênero, sexualidade e etnia e sua relação com enfermidades
específicas;
• Estudos de intervenções médicas e específicas;
• Análises de diversas racionalidades terapêuticas;
• Análises filosóficas e sociológicas das representações.” (Minayo, 2000: 50)
“Formação de Recursos Humanos
• Análise da magnitude das tendências do mercado e da força de trabalho;
• Relações entre mudanças tecnológicas e as especializações;
• Análises contextuais e históricas dos cursos e das carreiras;
• Abordagens dos movimentos sindicais e corporativos do setor;
• Análises de demanda, oferta e dos egressos dos cursos do setor.” (Minayo,
2000: 50)

“Movimentos Sociais

• Estudos de origem, institucionalização e significado;


• Abordagens sobre sua relação com o estado;
• Análises de estudo de casos específicos, com ênfase em processos
participativos;
• Discussões sobre organização e representação de interesses.” (Minayo,
2000: 50)

A lista foi longa! Contudo, ainda existem outros assuntos que podem ser
trabalhados. Ao reproduzirmos a preciosa lista de temas e subtemas identifica-
dos por Minayo, intencionamos apenas ilustrar as múltiplas possiblidades que
os estudos sociológicos e antropológicos encontram na área da saúde.
Algum lhe interessou?
Esperamos que você tenha apreciado essa rápida passagem pela sociologia e an-
tropologia da saúde. Cremos que apresentamos os elementos necessários para
que você possa se situar dentro desse campo de estudos. A partir das informações
expostas juntamente com as referências utilizadas, é possível iniciar uma pesqui-
sa mais profunda acerca dos teóricos da sociologia e antropologia da saúde, as-
sim como, sobre alguns de seus referenciais teórico-metodológicos de pesquisa.
No próximo capítulo, pretendemos trabalhar com o conceito de saúde, suas re-
presentações e definições.

ADAM, P; HERZLICH. Sociologia da doença e da medicina. Bauru-SP: EDUSC, 2001.


ALVES, PCB; SOUZA, IMA. Escolha e avaliação de tratamento para problemas de saúde:
considerações sobre o itinerário terapêutico. In: RABELO, MCM; ALVES, PCB; SOUZA, IMA.
Experiência da doença e narrativa [online]. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1999. http://books.scielo.
org/id/pz254/pdf/rabelo-9788575412664-06.pdf
BARROS, NF. A construção da medicina integrativa: um desafio para o campo da saúde. São
Paulo: Hucitec, 2008.
BLOCH, M. Os Reis Taumaturgos – o caráter sobrenatural do poder régio, França e Inglaterra. Trad.:
Julia Mainardi. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
BOLTANSKI, L. As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1989.
CANESQUI, AM. “Notas sobre a produção acadêmica de antropologia e saúde na década de
80”. In: ALVES, PC; MINAYO, MCS (orgs.) Saúde e doença: um olhar antropológico. Rio de Janeiro:
Editora Fiocruz, 1994.
FERREIRA, ABH. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
FOUCAULT, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1977.
GAARDER, J. O mundo de Sofia: romance da história da filosofia. São Paulo: Cia das Letras, 1995.
GARCÍA, JC. “Medicina e sociedade: as correntes de pensamento no campo da saúde”. In: NUNES,
ED. (org.) Medicina social: aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global, 1983.
HELMAN, CG. Cultura, saúde e doença. Porto Alegre: Artmed, 2009.
ILLICH, I. A expropriação da saúde: nêmesis da medicina. 3ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1975.
LANGDON, EJ; WILK, FB. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao conceito de cultura
aplicado às ciências da saúde. Rev. Latino-americana de Enfermagem, 18(3): 09 telas [174-181], 2010.
LAURELL, AC. “Para o estudo da saúde na sua relação com o processo de produção”. In:
Processo de produção e saúde. Trabalho e desgaste operário. São Paulo: Hucitec, 1989.
LAURELL, AC. “A saúde-doença como processo social”. In: NUNES, ED (org) Medicina Social:
aspectos históricos e teóricos. São Paulo: Global, 1983.

Você também pode gostar