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CULTURA E SAÚDE MENTAL: A EFICÁCIA SIMBÓLICA OU

O ETERNO RETORNO DO RECALCADO

Palavras-chave: cultura, saúde mental, clínica social, antropofagia.

Fábio Giorgio Azevedo1

RESUMO

Este artigo pretende sustentar a hipótese de que a legitimidade das tecnologias leves do cuidado em
saúde mental estaria em sua “eficácia simbólica”. Nosso argumento se apoia no homônimo texto do
antropólogo Claude Lévi-Strauss, onde o francês analisa um ritual xamânico que pretende facilitar o
difícil parto de uma mulher indígena. Depois, analisaremos um estudo de caso sobre um duplo
trabalho de cuidado em saúde mental: uma mulher que é “tratada” ao mesmo tempo na Umbanda e
por um psiquiatra. Esse entrelaçamento entre ciência médica e saberes de tradição oral,
acontecimento familiar no Brasil, é abordado na primeira parte, onde se conta um pouco de história
social da medicina, fundamentado em estudos de historiadoras/es acerca da implantação da ciência
médica no Brasil, desde o período Colonial, relevando seu amálgama com os saberes autóctones, e
os aqui desenvolvidos - através dos contatos antropofágicos da mestiçagem. Concluímos sugerindo
a necessidade de invenção de uma clínica social mestiça.

Situando a perspectiva e o problema

O psicanalista Luís Cláudio Figueiredo (1996) define a clínica como uma ética comprometida com
a escuta do interditado e a sustentação dos conflitos e das tensões. Nesse sentido, o presente artigo
se pretende uma espécie de atuação clínica. Praticando uma espécie de “escuta do interdito”,
pretendemos demonstrar que a medicina científica no Brasil foi elaborada em amálgama cultural
com práticas curativas mágicas, mas que tal relação de deglutição recíproca entre universos
bsimbólicos distintos teria sido, (apenas) supostamente, recalcada. A ciência médica, no que

1 Psicólogo, professor no curso de psicologia da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP), onde coordena
o Centro de Atenção às Juventudes (CAJU).
incorporou certos saberes da chamada “medicina rústica”2, desencantou seus simbolismos em favor
de explicações positivas e causais. Não mais analogias entre corpo e cosmos, natureza e doença,
regeriam a eficácia mítico-simbólica das práticas curativas. Agora, sob o ideário da modernidade, a
máxima mitológica aceitável no corpo médico-científico para explicar as doenças seria a ação, por
exemplo, de vermes e vírus. Toda a imaginação mágico-religiosa como fundamento e explicação do
mundo da vida teria sido remetida ao enclausuramento de uma des-razão, ou de um charlatanismo
interesseiro e grotesco.

Ainda seguindo a analogia com a clínica, pretendemos manter os conflitos e as tensões entre redes
semânticas no campo da saúde mental (práticas científicas e tradicionais ou “leves”), visto que, não
raro, nossos convivas são sujeitos que operam em si a metamorfose de universos simbólicos
heterogêneos: o sujeito toma chá, banho de folha e Dorflex. Vai ao culto, vai ao médico; vai ao
terreiro, vai à universidade. Poderíamos imaginar que esse sujeito brasileiro seria uma criação em
progresso que vem se dando sob a efígie da antropofagia, como indicou Oswald, isto é, da
bricolagem singular de cosmologias e redes semânticas diversas, por vezes controversas, mas
conviventes.

Por sorte, o interdito da visão mágica de mundo e dos saberes tradicionais no ocidente moderno
teria contribuído para acrescentar, como uma espécie de “resto”, o que Figueiredo (1996)
denominou “espaço psicológico”. Segundo ele, o espaço psicológico seria “o conjunto daqueles
aspectos da 'experiência' que de uma forma ou outra foram sendo, ao longo da história, excluídos
do campo das representações identitárias que elaboramos sobre nós mesmos tanto para nos
apresentarmos aos outros como para nosso próprio uso”. (p. 27) Dito de outro modo, o psicológico
se mostraria como o impensado, como o que opera no registro subterrâneo da exclusão, tanto o
excluído quanto o excludente, vale dizer, como o que resiste ativamente a uma incorporação ao
universo das identidades e representações. (Figueiredo, 1996, p. 28 e 29)

No caso do Brasil, e em particular no atendimento a uma população que teria sua mentalidade
formada em um híbrido de cosmologias distintas, “o que não tem voz audível pelo ouvido
institucionalizado é tudo o que provém daquela cultura e que não se encaixa no quadro de
demandas e serviços legitimados pelas instituições modernas”. Nesse contexto, as instituições

2 Expressão utilizada por Alceu Maynard Araújo, em livro homônimo (1959).


potencializariam o risco de psicologizar e patologizar o excluído. Para evitar o desacerto,
Figueiredo sugere: “é preciso que a escuta do psicólogo tenha sido formada também nos campos da
antropologia e da sociologia” (Figueiredo, 1996, p. 29).

I. Aspectos da história social da medicina no Brasil

Márcia Moisés Ribeiro, historiadora e pesquisadora do Instituto Butantan, na introdução do livro “A


ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII” (1997), sugere que a arte médica
teria tido um desenvolvimento peculiar no Brasil, resultando numa “medicina multifacetada e afeita
ao universo da magia”. Tal singularidade poderia ser compreendida à luz da precariedade da vida
material, marcada pela raridade de médicos, cirurgiões e produtos farmacêuticos, mas também pelo
sincretismo dos povos (p. 16). Segundo a autora, a medicina do século XVIII no Brasil estaria
solidamente ligada a sistemas mágicos e religiosos, demonstrando uma “aproximação entre a
medicina erudita e o saber popular” (p. 17). Ao aportarem na terra que viria a se chamar Brasil,
europeus e africanos teriam trazido uma infinidade de novas doenças – o sarampo, a varíola, a
tuberculose, as doenças venéreas –, complexificando a patologia brasileira e forçando o surgimento
de uma medicina enquanto “amálgama cultural”, combinando entre si noções e práticas advindas
dos universos simbólicos indígena, africano e europeu. (p. 23) A raridade com que chegavam
fármacos às poucas boticas espalhadas pelos principais centros coloniais de aqui, obrigaram os
adventícios a se submeterem aos costumes da terra. Lembre-se que apesar da exuberância natural do
Novo Mundo – que chegara a ser identificado no imaginário europeu com o paraíso terreal, a
imagem do Éden – seria necessário domar a natureza selvagem para usufruir seus regalos. E nesse
particular, tanto mais o colonizador embrenhou-se terra a dentro, mais precisou se servir dos
conhecimentos indígenas e do homem do sertão, que “tiveram tempo e oportunidade par absorver o
máximo de recursos oferecidos pelo mundo natural” (HOLANDA apud MOISÉS, p. 28). Nesse
contexto, a eficácia terap utica de raízes, ervas, plantas, árvores e frutos, fora forçosamente
reconhecida pelo europeu, “muito ilustrado, mas pouco observador da natureza”. Cite-se o
depoimento do cirurgião português Luís Gomes Ferreira, que atuara no Brasil durante a primeira
metade do século XVIII, autor do importante tratado de medicina Erário Mineral, onde “divulgava
a confiança que tinha na experi ncia do homem do sertão que mantinha estreitos laços de amizade
com o gentio”:


[...] eu vi os paulistas fazerem muito caso dela [da raiz de butuá, medicamento indicado
para doenças hepáticas, chagas generalizadas e outros males], trazendo-a consigo, que são
estes homens muito vistos e experimentados em raízes, ervas, plantas, árvores, e frutos, por
andarem pelos sertões anos e anos, não se curando de suas enfermidades, senão com as taes
cousas, e por terem muita comunicação com os carijós, de quem se tem alcançado cousas
boas, com que lhes se curam a si de muitas doenças[...] (RIBEIRO apud FERREIRA, 1997,
p. 28)

A crescente procura e o prestígio dos práticos, também chamados “curiosos”, explicava-se


pelo menos por três fatores: 1) a falta de indivíduos capazes de exercer a função de boticário (cargo
que só poderia ser ocupado formalmente por quem portasse carta de examinação passada pelo
físico-mor do reino), 2) os abusos com os preços dos medicamentos praticados pelos droguistas e 3)
a carência de médicos (devida à modesta remuneração oferecida pelas câmaras municipais em troca
do “trabalho árduo, a falta de recursos e os lugares longínquos que a profissão os obrigava a
percorrer”). Entretanto, Ribeiro salienta que o sucesso da “medicina popular” não se deveria apenas
à fragilidade dos sistemas de saúde, visto que benzedeiras, feiticeiras e curandeiras eram também
procuradas por pessoas de posses. Lembra-nos a autora que “a concepção da doença e
consequentemente da cura como elemento sujeito à ação de forças sobrenaturais fazia parte do
universo das elites e dos estratos populares” sendo um fenômeno típico de grande parte da Europa
do Antigo Regime (p. 44). Não foram poucos os esforços das autoridades legais, aliadas à Igreja,
para ofuscar o prestígio e a eficácia das práticas de cura dos práticos. Tais invectivas contra a
medicina não-científica, dar-se-ia justamente por sua eficácia terapêutica. Segundo Márcia Ribeiro,
o despeito que os representantes da medicina oficial tinham dos práticos, principalmente quando se
tratava das mulheres, dever-se-ia ao fato de a maior parte da população os preferirem aos
profissionais diplomados, pois, diferente destes, aqueles partilhariam de crenças e práticas que lhes
seriam familiares (p. 40). Note-se que mesmo em importantes tratados de medicina o uso de
amuletos e a larga utilização de plantas e animais na confecção das mezinhas eram comuns:

Segundo Gilberto Freyre, a arte médica trazida para o Brasil por graves doutores
portugueses estava muito próxima daquela difundida por africanos e ameríndios (…) No
caso da magia – no seu vasto significado e não simplesmente na magia curativa – pode-se
afirmar que uma forte razão do seu sucesso nas terras coloniais foi o fato de ser comum aos
três povos (RIBEIRO, 1997, p. 43).

Ainda conforme Ribeiro, o conhecimento ameríndio acerca das virtudes de muitas ervas e
raízes e a aptidão no preparo de mezinhas e nos procedimentos rituais de seu universo cultural
teriam sido atrelados ao legado da medicina européia e africana. Portanto, poder-se-ia concluir que
o universo de crenças que povoava o século XVIII, além de emprestar eficácia às artes de curar,
ligadas a práticas fundadas em sistemas mágico-religiosos, resultaram na formação de uma “arte
médica fortemente marcada pela diversidade” (p. 44).

Na segunda parte de “A ciência dos trópicos”, intitulada “Medicina e práticas mágicas: a


fluidez dos domínios”, Márcia Ribeiro revela que, assim como a agricultura, a medicina nas
sociedades do Antigo Regime estaria subordinada a inúmeras influências cósmicas. Tal fato se
explicaria pela concepção do universo como “uma trama de correspondências ocultas, onde homem
e natureza, céu e inferno, real e imaginário” se entrelaçariam (p. 69). Essa concepção de mundo
teria sido engendrada a partir de uma relação singular com o cosmos e a natureza, e, por
consequência, com o corpo e a doença.

Até meados do século XVIII, “recorria-se frequentemente aos sistemas teóricos do mundo
antigo nos quais os homens assumiam íntimas relações com o cosmo” (p. 73). Hipócrates, Galeno e
Avicena eram nomes aos quais se recorria para justificar tratamentos em que observar os
movimentos da natureza era fundamental. Os fil sofos gregos da escola pitag rica teriam
imaginado o universo formado por quatro elementos: terra, ar, fogo e gua, dotados de quatro
qualidades, opostas aos pares: quente e frio, seco e mido. A transposi o da estrutura quatern ria
universal para o campo da biologia deu origem concep o dos quatro humores do corpo humano
(REZENDE, p. 50). Segundo a patologia humoral – que permaneceu o principal corpo de
explicação racional da saúde e da doença entre o século IV a.C. e o século XVII – o homem seria o
resumo do universo, contendo dentro de si as mesmas qualidades dos quatro elementos
fundamentais. A saúde dependeria do equilíbrio dos quatro humores elementares (sangu neo,
fleum tico, col rico e melanc lico), submissos à influência dos astros. A doença, por sua vez, seria
um elemento estranho que poria em xeque a ordem desse sistema de correspondências ocultas entre
o universo e o homem:
Segundo a concep o hipocr tica da patologia humoral, quando uma pessoa se encontra
enferma, h uma tend ncia natural para a cura; a natureza (Physis) encontra meios de
corrigir a desarmonia dos humores (discrasia), restaurando o estado anterior de harmonia
(eucrasia) (…) A recupera o do enfermo acompanha-se da elimina o do humor excedente
ou alterado. o m dico pode auxiliar as for as curativas da natureza, retirando do corpo o
humor em excesso ou defeituoso, a fim de restaurar o equil brio. Com esta finalidade,


























surgiram os quatro principais m todos terap uticos: sangria, purgativos, em ticos3 e
clisteres4. (REZENDE, 2009, p. 52)

Não apenas no Brasil colonial, como na maior parte da Europa Moderna, a atribuição de
doenças à influência do sol, da lua, dos raios e das tempestades era comum. Por exemplo, apesar de
em algumas partes da Europa a astrologia estar desaparecendo da medicina ortodoxa desde o século
XVI, ainda no século XVII, na Inglaterra, assim como em Portugal, a “ciência” astrológica
encontraria defensores entre os círculos de letrados (p. 74, 75).

Para corroborar com os argumentos de Ribeiro, façamos breve digressão a outro texto, de
Vera Regina Marques (professora da Universidade Federal do Paraná), intitulado “Medicinas
Secretas: magia e ciência no Brasil setecentista”, publicado no livro “Artes e ofícios de curar no
Brasil: capítulos de história social”. Segundo Marques, o uso de remédios secretos não teria sido
monopólio apenas das classes ditas populares. Dom João V teria se valido de um segredo
medicamentoso para superar a impotência que lhe acometera. Houve também muitos soberanos
“reis-curandeiros”: Adriano, Tibério e Tito, imperadores romanos; Mitridates, rei da Pérsia; Átalo,
rei de Pérgamo; Agripa, rei da Judéia, entre outros, preparavam remédios secretos. Os próprios
jesuítas foram importantes idealizadores de remédios de segredo, combinando aspectos mágicos e
religiosos em uma nova/velha relação, pois ainda durante a Idade Média a Igreja havia se
apropriado desse universo. Conforme Vera Marques, “quando os sacerdotes ungiam um doente com
óleo bento invocando o poder dos santos especialistas em curar determinadas doenças, não estavam
fazendo nada mais do que invocar poderes ocultos” (MARQUES, p. 179).

Portanto, mesmo entre as práticas de cura desenvolvidas no universo religioso católico dos
Setecentos havia aproximações com o universo mágico curativo. Todavia, mesmo cientes dos
poderes curativos das plantas os padres não revelavam aos fiéis, para não lhes amolecer a fé e o
poder da Igreja. “Bastava que a cura fosse atribuída a Deus”. E embora várias ordens religiosas no
vasto Império português nos tempos modernos utilizassem o saber herbário herdado da Idade
Média, os tribunais inquisitoriais se mantinham implacáveis com aqueles que promoviam curas
através de “feitiçarias nas quais se usavam plantas”. (MARQUES, p. 181)

Entre os médicos não seria diferente. Marques cita o Compêndio dos segredos medicinais,
ou remédios curvianos, onde se indicava que quando o médico enunciasse as “virtudes” dos
preparados deveria fazer referência a algum dom sobrenatural, celestial, que poderia ser um favor

3 “Que provoca vômito; substância que faz vomitar”. (Dicionário Michaelis)


4 Mezinha, remédio caseiro.



divino, um milagre, assim como influências astrais associadas à graça divina. O caso do médico
Curvo Semedo é exemplo clássico: “Ao mesmo tempo em que continuava 'fabricando'
medicamentos típicos da polifarmácia, secretos e galênicos, em cujas fórmulas constavam
morcegos, sapos, burricos e excrementos, acompanhava a grande novidade terap utica de seu tempo
– os remédios químicos”. Ou seja, coexistiriam os dois sistemas simbólicos: “a imaginação
espontânea, as repetições e, de outro, as inovações científicas trazidas pelos estudos químicos dos
princípios ativos das plantas, fruto da nova racionalidade científica em construção” (MARQUES, p.
182). Marques cita o livro “A revolução científica e as origens da ciência moderna”, de John Henry,
para explicar a coexistências dessas duas ordens de acontecimentos:

“Segundo ele a magia natural, enquanto aspecto dominante da tradição mágica, teria sido
incorporada à filosofia natural, pois aquela apresentava como pressuposto o princípio de
que 'certas coisas tinham poderes escondidos ou ocultos, de afetar outras coisas e assim
realizar fenômenos inexplicáveis. O sucesso de um mago natural dependia de um profundo
conhecimento dos corpos, e do modo como estes agem uns sobre os outros, de modo a
ocasionar o resultado desejado'. Porém, durante a revolução científica, teria havido uma
separação entre esses elementos naturalistas e os outros aspectos da magia” (MARQUES,
p. 182).

Portanto, ainda que entre nós a magia pareça evocar a lida com o sobrenatural, “aos olhos
dos primeiros pensadores modernos, seus efeitos dependiam da manipulação de objetos e processos
naturais”. Ressalte-se que tanto a magia natural, quanto outras expressões do conhecimento da
natureza, como a alquimia e os saberes ditos populares, foram incorporados ao campo da ciência e
estão contidos na visão científica de mundo. A péssima fama que viria a adquirir a magia, segundo
Marques, deveria ser atribuída sobretudo às fraudes de pretensos magos e aos incessantes ataques
da Igreja, o que teria contribuído para que “os filósofos naturais também fossem induzidos a
condená-la, após retirarem dela o que reconheciam como útil”. Por outro lado, lembre-se que as
faculdades de medicina que se prezassem ostentavam em seu currículo aulas de astrologia, e que
“outros aspectos da magia e da alquimia matemáticas inspiraram teorias médicas”. (p. 183) Assim,
diz-nos Marques, os homens das Luzes, ao formularem suas medicinas, prosseguiram
pragmaticamente se baseando na magia natural, porém sem reconhecer ou mencionar tal
procedimento:

“A tradicional arte de curar que se operava por milagres, poderes ocultos e influências
astrológicas continuava viva no universo cultural dos doentes, indo ao encontro de crenças
muito arraigadas nas quais não havia lugar para as explicações racionais emanadas da
nova ordem trazida pelos homens das Luzes. A medicina silenciara acerca da tradição
mágica absorvida em suas hostes, porém os doentes a tinham muito presente”
(MARQUES, p. 185).

O fato é que muitas indicações acerca das práticas curativas daquele período que poderiam
nos parecer destituídas de sentido, apenas regidas pela intuição ou crenças ditas supersticiosas, nada
mais seriam do que “reminiscências de velhos sistemas teóricos que atribuíam determinadas

qualidades às substâncias naturais” (p. 78). Lembre-se que a concepção de mundo subjacente a tais
práticas supõe correspondências entre as várias partes do universo, sendo as próprias práticas
curativas “componentes de um cosmo regido por analogias”. Tanto a medicina difundida nos
tratados quanto as práticas ditas populares, valiam-se de medicamentos naturais e ao mesmo tempo
de certos elementos cujo uso assentava-se em critérios analógicos. Ainda segundo Ribeiro, tanto no
Brasil quanto na Europa moderna, não se fazia distinção nítida entre o emprego de medicamentos
naturais e os sobrenaturais ou simbólicos, não havendo fronteira rígida que separasse o domínio do
mundo natural e do sobrenatural (p. 80).

A medicina justificava o emprego das substâncias naturais assentando-se principalmente no


sistema da patologia humoral. Acreditava-se que, dos quatro humores do organismo, a
melancolia era o preferido do demônio e, assim, nada seria mais adequado que aplicar um
purgante capaz de eliminar esse humor. Por isso, sempre que houvesse desconfiança de que
determinadas moléstias se originassem dos malefícios, recomendava-se o vegetal eleboro
negro, 'por ser o anti-melancólico mais eficaz e que por isso e com maior razão lhe chamam
fuga daemonun (RIBEIRO, 1997, p. 80, 81).
Tanto para o saber tradicional transportado para o Novo Mundo, quanto para as culturas
indígenas e africanas, não se fazia distinção no emprego de substâncias naturais e simbólicas; assim
como se compartia uma “percepção da doença como resultado da intromissão de forças maléficas”.
Segundo Ribeiro, a medicina dos tratados e aquela praticada pelos práticos na informalidade
“dispunham-se a curar feitiços e outros males cujas causas eram atribuídas a forças que excediam os
poderes da natureza”. Na prática, fossem médicos, cirurgiões, empíricos ou supostos feiticeiros,
todos partilhavam a mesma mentalidade mágica:
“Pode-se reafirmar, portanto, que no Brasil colonial não existiram fronteiras rígidas entre a
medicina erudita e as práticas curativas populares. A constante recorrência à magia, a
crença em poderes sobrenaturais, o emprego de ervas e raízes acompanhadas de outras
substâncias e de métodos baseados em supostos sistemas analógicos existentes entre as
várias partes do mundo uniam as duas tradições que permaneceram engatadas durante todo
o período colonial” (RIBEIRO, 1997, p. 85).
II. Sobre a eficácia simbólica: revisitando Lévi-Strauss5
“Os símbolos são mais reais do que aquilo que simbolizam” (Lévi-Strauss)

Como se pode depreender dos argumentos acima, se nos fomos afastando da mentalidade
mágica no campo dos cuidados com a saúde, não teria sido por falta de eficácia das práticas
simbólicas de cura. Motivações políticas e religiosas, por vezes articuladas, relacionadas ao controle
das populações, justificariam a tentativa de recalque daquelas práticas curativas – ainda
remanescentes entre nós –, que imantavam de prestígio e poder as gentes do povo. Mas então qual o
segredo da eficácia dessas práticas mágicas curativas, presentes nas culturas indígenas e africanas,
mas também na Europa moderna fermentada na sabedoria dos povos antigos?
Para nos auxiliar com a resposta, revisitemos um antigo texto publicado em 1949 pelo
antropólogo Claude Lévi-Strauss, intitulado “A eficácia simbólica”. Para situar a relevância e
atualidade desse escrito clássico, lembre-se que Jacques Lacan, ao reformular o inconsciente
freudiano, teria tomado de empréstimo a categoria do simbólico a Lévi-Strauss. Consultando o
Dicionário de Psicanálise, elaborado por Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, no verbete
“simbólico”, nas notas que sucedem à defini o do termo, os autores evocam os trabalhos
desenvolvidos por Marcel Mauss* (1872-1950) que, fazendo frente ao funcionalismo e ao
culturalismo das escolas inglesa e norte-americana, propuseram as noções de “função simbólica” e
“eficácia simbólica”. Depois de Mauss, a partir de 1949, Lévi-Strauss teria desenvolvido tais
noções, justo no texto do qual vamos tratar em seguida. Ressalte-se que em 1953 Lacan se apoiaria
nas ideias de Mauss e Lévi-Strauss para construir sua tópica do simbólico, do real e do imaginário,
“à qual acrescentou a noção de parentesco, extraída das Estruturas Elementares do parentesco”, do
próprio Lévi-Strauss. Conforme Roudinesco e Plon, a noção de “simbólico” em psicanálise
designaria “tanto a ordem (ou função simbólica) a que o sujeito está ligado quanto a própria
psicanálise”. Ou seja, tanto quando tratamos da funcionalidade das terapêuticas “populares” (como
são adjetivadas pejorativamente as práticas sociais de cura em nosso meio); mas inclusive quando
reconhecemos a eficácia das próprias práticas científicas ou a-científicas (como a psicanálise), a
cultura seria este “fora” constituinte do sujeito, onde a eficácia simbólica ganharia seus contornos
curativos.

5 Baseamo-nos no texto de Lévi-Strauss, “A eficácia simbólica” in Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003 (6a. Edição), pp. 215-236.


Em “A eficácia simbólica” (2003) o antropólogo Claude Lévi-Strauss examina “o primeiro
grande texto mágico-religioso conhecido, proveniente de cultura sul-americana”, o qual, segundo
ele, lançaria uma nova luz sobre aspectos da cura xamanística. O texto trata de “um longo
encantamento, cuja versão indígena ocupa dezoito páginas, divididas em quinhentos e trinta e cinco
versículos, recolhido de um velho informante de sua tribo pelo índio Cuna Guillermo Haya” (p.
215). Segundo Lévi-Strauss, o objeto do canto seria ajudar a um parto difícil. O parto difícil seria
explicado porque a potência responsável pela formação do feto (Muu) teria se apoderado da “alma”
(purba) da futura mãe. O canto consiste na busca da alma perdida que seria restituída após inúmeras
peripécias. Explica Lévi-Strauss: “Vencida, Muu deixa descobrir e libertar o purba da doente; o
parto se dá, e o canto termina pela enunciação das precauções tomadas para que Muu não possa
evadir-se após seus visitantes” (p. 216). Uma vez que os abusos de Muu foram retificados, as
relações se tornam amistosas, “e a despedida de Muu ao xamã quase se equivale a um convite:
'Amigo nele6, quando voltarás a me ver?” (idem).
Lévi-Strauss sugere que o interesse excepcional do texto residiria na descoberta “de que Mu-
I gala, isto é, “o caminho de Muu” e a morada de Muu, não são, para o pensamento indígena, um
itinerário e uma morada míticos, mas representam literalmente a vagina e o útero da mulher
grávida, que percorrem o xamã e os nuchu7, e no mais profundo dos quais eles travam seu combate
vitorioso” (p. 217).
Segundo a interpretação de Lévi-Strauss, a perda da “alma de sua vida” pela doente teria
sido resultado da desordem provocada por Muu, “uma 'alma' especial que capturou e paralisou as
outras 'almas' especiais, e destruiu assim a cooperação que garantia a integridade do corpo
principal”, de onde tirava sua “força vital” (niga). Sendo Muu uma alma especial como as demais,
ainda que sendo a responsável pela desordem patológica em questão; Muu não seria uma força
essencialmente má, mas, na expressão de Lévi-Strauss, uma “força transviada” (p. 219).
Lévi-Strauss pondera ainda que a recorrente dificuldade de interpretação do método
terap utico empregado nas curas xamanísticas habitualmente descritas, supostamente seria
desembaraçada declarando que se tratariam de “curas psicológicas”. Mas considera que tal termo
permaneceria vazio se não se propusesse “definir a maneira pela qual representações psicológicas

6 Segundo Lévi-Strauss, o oficiante, também chamado xamã, quando se trata de um nele, distinguir-se-ia de outros
dois tipos médicos indígenas: os inatuledi e os absogedi. Os nele teriam um talento especial, considerado como
inato, consistindo “numa visão que descobre imediatamente a causa da doença, ou seja, o lugar do arrebatamento
das forças vitais, especiais ou gerais, pelos maus espíritos”. (p. 217)
7 Imagens sagradas esculpidas nas essências prescritas que lhes dão a eficácia; os espíritos protetores, que o xamã faz
seus assistentes. (STRAUSS, p. 216).

determinadas são invocadas para combater perturbações fisiológicas, igualmente bem definidas”
[grifo nosso] (p. 221). Nesse sentido, o canto indígena analisado por Lévi-Strauss forneceria uma
contribuição excepcional à solução do problema:

Ele constitui uma medicação puramente psicológica, visto que o xamã não toca no corpo da
doente e não lhe administra remédio; mas, ao mesmo tempo, ele põe em causa, direta e
explicitamente, o estado patológico e sua sede: diríamos, de bom grado, que o canto
constitui uma manipulação psicológica do órgão doente, e que a cura é esperada desta
manipulação (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 221).
Segundo Lévi-Strauss, a cura começaria por um histórico dos acontecimentos que a teriam
precedido, sendo certos aspectos que poderiam parecer secundários tratados com “grande luxo de
detalhes”. Tudo se passaria “como se o oficiante tratasse de conduzir uma doente (…) a reviver de
maneira muito precisa e intensa uma situação inicial, e a perceber dela mentalmente os menores
detalhes” (p. 223). O corpo e os órgãos internos da doente constituiriam o teatro suposto onde a
série de acontecimentos narrados se passariam. Diz Lévi-Strauss:
Vai-se, pois, passar da realidade mais banal ao mito, do universo físico ao universo
fisiológico, do mundo exterior ao corpo interior. E o mito, desenvolvendo-se no corpo
interior, deverá conservar a mesma vivacidade, o mesmo caráter de experiência vivida à
qual, graças ao estado patológico e a uma técnica obsidente8 apropriada, o xamã terá
imposto as condições (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 223).
Ao passo que se adentra o texto indígena, revela-nos Lévi-Strauss, presentificar-se-ia uma oscilação
cada vez mais rápida entre os temas míticos e os temas fisiológicos, “como se tratasse de abolir, no
espírito da doente, a distinção que os separa, e de tornar impossível a diferenciação de seus
respectivos atributos” (p. 223). Por mítica que seja, a penetração da vagina pelos espíritos é
proposta em termos concretos e conhecidos. Conforme a interpretação de Lévi-Strauss, a técnica da
narrativa visaria reconstituir uma experi ncia real, onde o mito se limitaria a substituir os
protagonistas do drama narrado, compondo uma espécie de “geografia afetiva” que substituiria a
estrutura real dos órgãos (p. 225).
Após uma série de peripécias, protagonizadas por monstros fantásticos e animais ferozes no
quadro do mundo uterino, ao qual Lévi-Strauss se refere como “um inferno à Hyeronimus Bosch”, e
quase findo o parto, ainda faltaria uma etapa para a cura: o xamã partiria para a montanha com os
moradores da aldeia, para recolher plantas medicinais. Haveria assim duas ofensivas lançadas em
socorro da doente: uma mitologia psico-fisiológica, e uma mitologia psicossocial, indicada pelo
apelo aos habitantes da aldeia. (p. 227)
Por fim, para como que aferrolhar a eficácia da cura, o xamã apresenta à doente um
desfecho, concluindo o canto após o parto como iniciado antes da cura. Isto, conforme Lévi-Strauss,

8 “1 V obsessor. 2 Que, ou pessoa que cerca ou sitia.”



teria a finalidade de construir um conjunto sistemático, isto é, “uma situação onde todos os
protagonistas reencontraram seu lugar, e ingressaram numa ordem sobre a qual não paira mais
ameaça” (p. 227).

Portanto, para Lévi-Strauss, a cura consistiria “em tornar pensável uma situação dada
inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis para o espírito as dores que o corpo se recusa a
tolerar”. Dado isso, não haveria importância que a mitologia do xamã não correspondesse a uma
realidade objetiva. Antes, o que importaria é que a doente acreditasse nela, e que pertencesse a uma
sociedade que acredita:
Os espíritos protetores e os espíritos malfazejos, os monstros sobrenaturais e os animais
mágicos, fazem parte de um sistema coerente que fundamenta a concepção indígena do
universo. A doente os aceita, ou, mais exatamente, ela não os pôs jamais em dúvida. O que
ela não aceita são dores incoerentes e arbitrárias, que constituem um elemento estranho a
seu sistema, mas que, por apelo ao mito, o xamã vai reintegrar num conjunto onde todos os
elementos se apoiam mutuamente (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 228).
Seguindo a explicação de Lévi-Strauss, ocorreria que, ao contrário de nossos doentes, que
não saram “quando se lhes explica a causa de suas desordens, invocando secreções, micróbios ou
vírus”, a parturiente indígena sara. E isto porque, ao passo que a relação entre micróbio e doença é
exterior ao espírito do paciente, obedecendo uma relação de causalidade; a relação entre monstro e
doença é interior a esse mesmo espírito, consciente ou inconsciente. O xamã forneceria à sua doente
“uma linguagem, na qual se podem exprimir imediatamente estados não-formulados, de outro modo
informuláveis”. Seria a passagem a esta “expressão verbal” que provocaria o desbloqueio do
processo fisiológico, permitindo à doente “viver sob uma forma ordenada e inteligível uma
experi ncia real, mas, sem isto, anárquica e inefável” (p. 228).
Desse modo, para Lévi-Strauss, a cura xamanística se situaria “a meio-caminho entre nossa
medicina orgânica e terapêuticas psicológicas como a psicanálise”. Pois, em ambos os casos, tratar-
se-ia de “conduzir à consciência conflitos e resistências até então conservados inconscientes, quer
em razão de seu recalcamento por outras forças psicológicas, quer – no caso do parto – por causa de
sua natureza própria, que não é psíquica, mas orgânica, ou até simplesmente mecânica” (p. 229).
Além disso, tanto em psicanálise quanto na cura xamanística, os conflitos e as resistências se
dissolveriam porque o conhecimento que a doente adquire progressivamente a esse respeito tornaria
possível “uma experi ncia específica, no curso da qual os conflitos se realizam numa ordem e num
plano que permitem seu livre desenvolvimento e conduzem ao seu desenlace” (idem). Por seu turno,


ainda que ambas visem provocar uma experiência, e ambas cheguem a isto, “reconstituindo um
mito que o doente deve viver, ou reviver”, algumas diferenças, não devem ser desconsideradas:
... num caso, é um mito individual que o doente constrói com a ajuda de elementos tirados
de seu passado; no outro, é um mito social, que o doente recebe do exterior, e que não
corresponde a um antigo estado pessoal (…) o psicanalista escuta, ao passo que o xamã
fala. Melhor ainda: quando as transferências se organizam, o doente faz falar o psicanalista,
emprestando-lhe sentimentos e intenções supostos; ao contrário, na encantação, o xamã fala
por sua doente (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 230).
Lévi-Strauss prossegue comparando o método do xamã com outras terapêuticas, recentes à
época, e que se valiam da psicanálise. Cita um certo Desoille que já haveria sublinhado em seus
trabalhos sobre o sonho acordado que a perturbação psicopatológica só seria acessível à linguagem
dos símbolos, procedendo em falar com seus pacientes por metáforas verbais. Refere-se ainda a
uma psicanalista que teria conseguido um resultado satisfatório no tratamento de um caso de
esquizofrenia considerado incurável. Ela percebera que o discurso, tão simbólico quanto fosse,
chocava-se ainda na barreira do consciente. E, portanto, para atingir os complexos mais
profundamente enterrados, procedia por atos:
“A carga simbólica de tais atos torna-os próprios para constituírem uma linguagem:
certamente, o médico dialoga com seu doente, não pela palavra, mas por meio de operações
concretas, verdadeiros ritos que atravessam a tela da consciência sem encontrar obstáculo,
para levar sua mensagem diretamente ao inconsciente” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 231).
Os gestos realizados pela psicanalista repercutiriam no espírito inconsciente da
esquizofrênica, como as representações evocadas pelo xamã determinariam uma modificação das
funções orgânicas da parturiente: “Na cura da esquizofrenia, o médico executa as operações e o
doente produz seu mito; na cura xamanística, o médico fornece o mito e a doente executa as
operações” (p. 232).
Tanto na cura xamanística quanto na cura psicanalítica, tratar-se-ia de “induzir uma
transformação orgânica, que se constituiria essencialmente numa reorganização estrutural, que
conduzisse o doente a viver intensamente um mito, ora recebido, ora produzido, e cuja estrutura
seria, no nível do psiquismo inconsciente, análoga àquela da qual se quereria determinar a formação
no nível do corpo” (p. 233).
E Lévi-Strauss arremata:
A eficácia simbólica consistiria precisamente nesta 'propriedade indutora' que possuiriam,
umas em relação às outras, estruturas formalmente homólogas, que se podem edificar, com
materiais diferentes, nos diferentes níveis do vivente: processos orgânicos, psiquismo
inconsciente, pensamento refletido. A metáfora poética fornece um exemplo familiar deste
processo indutor; mas seu uso corrente não lhe permite ultrapassar o psíquico (LÉVI-
STRAUSS, 2003, p. 233).
Por fim, indaga ainda Lévi-Strauss, “se o valor terapêutico da cura se deveria ao caráter real
das situações rememoradas, ou se o poder traumatizante destas situações não seriam provenientes
do fato de o sujeito as experimentar imediatamente sob a forma de mito vivido” (p. 233-34). Isto é,
o poder traumatizante de uma situação não resultaria de suas características intrínsecas, mas da
“aptidão de certos acontecimentos, que surgem num contexto psicológico, histórico e social
apropriado, para induzir uma cristalização afetiva, que se faz no molde de uma estrutura
preexistente” (p. 234).

Considerando as terap uticas psicológicas como “formas modernas da técnica xamanística”,


o que teríamos a aprender – nós, trabalhadores “psi” no campo da saúde mental – sobre a validade e
a possível eficácia de nosso trabalho, com aqueles que, segundo Lévi-Strauss, seriam os nossos
grandes predecessores: os xamãs e os feiticeiros?

III. A multiplicidade simbólica no Brasil: um estudo de caso

Na tentativa de atualizarmos alguns aspectos revelados nos argumentos revisitados no texto


de Lévi-Strauss, passemos a considerar um estudo de caso desenvolvido por Patrícia Guimarães,
doutora em Antropologia pelo Museu Nacional da UFRJ, publicado parcialmente em 2001 no livro
“Mediação, cultura e política”, organizado por Gilberto Velho e Karina Kuschnir. O estudo em
questão intitulou-se: “O doutor e a pomba-gira: um estudo de caso da relação entre psiquiatria e
umbanda”; e teve por objetivo, seguindo as palavras da autora, “analisar uma determinada história
de relação com uma entidade sobrenatural, sublinhando como ela potencializa, a partir de um
manejo simbólico de fronteiras entre campos de significados aparentemente excludentes, novas
possibilidades de metamorfose e ação” (p. 295-96).
Trata-se da história de uma mulher iniciada na umbanda que, por não cumprir algumas
obrigações rituais, viveu uma situação de crise, foi tida como louca e internada em um hospital
psiquiátrico. A personagem do caso é Alzira, empregada doméstica, viúva, mãe de cinco filhos,
cozinheira de uma tradicional família carioca e médium de umbanda. Por se tratar de um estudo de
caso de cunho etnográfico, temos o privilégio de “ouvir” da própria Alzira como ingressou no
terreiro e o que desencadeou sua crise:
Devia de ter uns 14 anos quando essa minha tia me levou pra consultar um pai-de-santo
que trabalhava com um preto-velho. Eu tava variando, dava uns ataques em casa por nada,
gritava, chorava... E ainda por cima vivia atrás de homem. O pior é que eu só me metia
com cara casado. Ela me levou no terreiro pra vê se me endireitava, porque ela já estava
vendo que aquilo era coisa espiritual. Quando eu cheguei lá, na mesma hora que eu botei
meus pés lá dentro eu apaguei. O pai-de-santo logo viu que eu tava com uma entidade
muito forte pedindo minha feitura. Bom, pra chegar logo nos finalmente, passou uma
semana eu já tava feita. E adivinha quem tomava conta da minha coroa, quem era meu
guia de frente? É, ela mesma. Essa minha mulher que você achou tão formosa, a D. Maria
Padilha. Aí, pronto, eu era dela e não tinha mais jeito. Mas melhor ser da pomba-gira do
que ser maluca não acha? (…) Depois que a minha cabeça foi feita pra ela, que tudo foi
feito direitinho, que ela comeu, que eu fiz roupa e comecei a trabalhar com ela, minha vida
deslanchou. Eu parei de ter crise, de me meter com cara comprometido, fiquei calma,
arrumei namorado e deixei de ser aquela menina desengonçada cheia de minhoca na
cabeça. Isso durou um bom tempo. Foi só depois que eu já tava viúva, com os filhos
criados, que minha vida voltou a desandar. Nessa época eu já tava vivendo com outro
homem e esse sim era o grande amor da minha vida. Sabe, desde que eu recebi essa
pomba-gira como dona da minha coroa, que todo ano eu fazia uma festa pra ela, dava
roupa nova e mandava matar um boi. Era cada festa que eu nem te conto. Só que aí, teve
um ano que eu não fiz nada pra ela, eu larguei de mão mesmo. Foi um ano que eu tive
muitos problemas com o meu filho mais novo, eu fiquei tão perturbada que não queria
saber de receber ela, de botar roupa pra dar consulta com ela e muito menos dar comida e
fazer festa. É claro que ela não perdoou. Normal, né, porque essa história do meu filho não
era problema dela, pomba-gira cuida mais do lado mulher, exu não gosta de criança, de
filho. O tempo foi passando e as coisas foram piorando. Até que aconteceu a pior desgraça
da minha vida: o meu homem arrumou uma amante, eu descobri. Peguei ele no flagra, aos
beijos com a tal vagabunda numa birosca bem aqui perto de casa. Eu fiquei doida. Dei um
ataque, comecei a tirar a roupa, e quando tava peladinha me atraquei com ela até deixar
ela no chão, aí saí nua gritando e chorando pelo morro. Ele só gritava 'a Alzira tá maluca,
chama o bombeiro, só com camisa de força que ela vai parar...'; bom, não deu outra,
chamaram os homens e eu acabei sendo internada num hospital de maluco. Essa decepção
me deixou doente mental (GUIMARÃES apud ALZIRA, 2001, p. 298-300).
Patrícia Guimarães analisa o caso de Alzira, doando especial atenção ao fato de haverem
duas perspectivas envolvidas: a religiosa e a médica; que foram articuladas por Alzira desde o
momento em que se comportou de modo desviante e se determinou sua loucura.
Segundo a perspectiva religiosa, que Guimarães identifica neste caso como representante de
uma visão de mundo encantada, o mundo no qual o desviante está inserido seria formado por
múltiplos níveis diferenciados mas relacionáveis. Enquanto a visão de mundo ocidental,
estruturalmente, separaria as ordens natural e sobrenatural; a visão encantada reconheceria tais
ordens como complementares, estando os agentes pertencentes a ambas constantemente em
interação. Conforme o sistema simbólico da umbanda, o mundo social seria percebido como “um
amplo conjunto de articulações entre os elementos naturais e sobrenaturais”, reconhecendo-se a
interação entre esses domínios. Haveria na umbanda uma percepção específica da multiplicidade
dos elementos que compõem o mundo, de tal modo que se admitiria a presença destes no cotidiano
terrestre. No discurso da umbanda sobre a loucura o que se enfatiza seria a relação como lugar de
origem do desvio.
Guimarães se refere a um artigo de Simone Guedes, de 1974, onde se buscou identificar
qual a teoria umbandista sobre a loucura. A diferença entre uma suposta teoria umbandista da
loucura e uma teoria da loucura segundo a psiquiatria, estaria no fato de que para a psiquiatria o que
geraria o comportamento desviante identificado como loucura seria uma patologia individual,
algum distúrbio na ordem física; enquanto que para a umbanda o comportamento tido como
anormal não seria fruto de uma mente individual patologizada, mas uma perturbação que
preconizaria relações:
A diferença de percepção estaria no fato de que quando se classifica a anormalidade como
loucura supõe-se que ela esteja no indivíduo; e quando se classifica a anormalidade como
perturbação, o problema é deslocado para as relações. Nesse sentido, não são os indivíduos
que são anormais mas sim as relações que eles estabelecem no mundo” (GUIMARÃES,
2001, p. 307).
Referindo-se a um artigo do antropólogo Gilberto Velho, Guimarães encontraria na noção de
indivíduo uma distinção fundamental entre psiquiatria e antropologia. Pois, enquanto a antropologia
valorizaria a dimensão relativizada do indivíduo, admitindo que nem todos os grupos sociais
existentes nas sociedades complexas postulariam o indivíduo como ator social da mesma maneira, a
psiquiatria tomaria como a priori um indivíduo universal e natural. Isto é, enquanto a lógica da
perturbação valorizaria um indivíduo relacional, a lógica da loucura enfatizaria um indivíduo
autônomo (p. 307, 308).
Segundo a análise de Patrícia Guimarães do caso “o doutor e a pomba-gira”, o paradigma do
individualismo moderno, onde “a realidade individual é completamente destacada da realidade
cosmológica” não seria partilhado pelos adeptos das religiões de possessão. Entretanto, seria um
equívoco concluir que por não partilhar os preceitos ligados às noções de indivíduo e
individualidade, as pessoas construídas ritualmente pela umbanda não portariam uma interioridade.
Ainda que não se trate de um ser psicológico absolutamente autônomo, a interioridade apareceria
como “uma categoria analítica que surge mediando as relações entre perspectivas”. Ou seja, o fato
de Alzira aderir parcialmente ao tratamento médico, e, ao mesmo tempo, servir-se dos trabalhos de
seu pai-de-santo para então se curar, significaria que se configurou “um espaço de interseção a
partir do remanejamento de algumas fronteiras entre dois sistemas cognitivos distintos que
manifestam um ponto de vista excludente”. Tal espécie de antropofagia simbólica, a partir do
manejo de significados, teria sido possível justo pela existência, nos dois sistemas, da ideia de
interioridade. Dito de outra maneira, Alzira conseguiu dialogar com o doutor e com o pai-de-santo
“por reconhecer um espaço interior à sua pessoa, em que as relações estabelecidas com o mundo
social e cosmológico que a constituem ganham uma dimensão de propriedade, e não de
exterioridade” (p. 310).
A noção de interioridade estaria firmemente ligada à construção ritual da pessoa, uma
espécie de metamorfose operada no próprio corpo: “Ao passar pelas ações rituais de fixação da
entidade em sua cabeça, Alzira agregou a si uma outra natureza, transformando seu corpo que, a
partir deste momento, passa a constituir um novo conjunto de afecções” (p. 311). Portanto, “ter”
pomba-gira seria uma qualidade do corpo que ultrapassaria os momentos rituais de possessão. As
naturezas originárias – uma humana e outra sobre-humana – desses dois sujeitos, Alzira e a pomba-
gira Maria Padilha, se articulariam para constituir uma pessoa, uma pessoa que teria um corpo onde
a dimensão físico-orgânica se misturaria com a dimensão físico-moral (p. 313). Um corpo que seria
uma “sede de relações”:
O ter pomba-gira não é uma experiência determinada por um conjunto de regras e lógicas
normativas, mas sobretudo por um agregado de percepções. A visão de mundo encantada de
quem tem pomba-gira está configurada no corpo e não nas representações que compõem
um sistema de pensamento. São as afecções e as sensações corporais que detonam a
diferença de se ter pomba-gira, nas suas mais variadas versões e formas de adesão, e não as
ideias e o pensamento (GUIMARÃES, 2001, p. 313).
Conclui Guimarães que essa corporalidade distintiva, matriz de significados e percepções,
construída socialmente, propicia à Alzira a articulação entre os diferentes domínios culturais
socialmente distantes. Alzira teria operado um “processo de mediação”, um processo de
comunicação entre diferenças, onde teriam ocorrido reconstruções simbólicas e cognitivas
agenciadas pela efetivação das ações mediadoras. Portanto, ao invés de sucumbir ao risco do
embate e da impossibilidade de articulação entre diferentes sistemas simbólicos (o religioso e o
médico; o mágico e o científico), Alzira, segundo Guimarães, ter-se-ia revelado como “um
mediador capaz de construir em si e para si diferentes espaços de mediação” (p. 314).
IV. Saúde Mental e Antropofagia: prolegômenos a uma clínica social canibal

Concluímos que as práticas em saúde mental no Brasil poderiam corresponder a uma


analogia estrutural com o estilo próprio de formação da chamada “cultura brasileira”: um sistema
simbólico metaestável composto pela deglutição de elementos advindos de lugares
(epistemológicos) diversos e estrangeiros entre si. Uma espécie de cromatismo teórico-prático entre
saberes tradicionais e conhecimentos científicos.
O reconhecimento da eficácia simbólica pelos trabalhadores da saúde mental teria por
consequência direta a invenção de práticas terapêuticas inspiradas em universos cosmológicos
heterogêneos, e talvez, (apenas) aparentemente, irredutíveis entre si. Tais práticas refletiriam uma
miscigenação entre saberes e conhecimentos que não respondem a um mesmo cânone. Práticas que
seriam componíveis com os diversos sistemas simbólicos presentes na cultura brasileira e com as
pessoas/sujeitos que se formam através destes. Para tanto, não se trataria simplesmente de uma
bricolagem espontaneísta de teorias e técnicas, numa espécie de ecumenismo epistemológico (visto
que a própria epistemologia responderia aos valores e marcadores de apenas um desses sistemas).
Antes, um programa de pesquisa rigoroso, onde não nos furtaríamos a uma reflexividade em ato e
no inter-dito. Sem dúvida um vasto e complexo programa. Fazendo justiça a Wundt, o fundador da
psicologia moderna, evocamos a insígnia do seu projeto: uma “psicologia dos povos”. Diríamos, em
modo provocativo, uma clínica antropofágica ou canibal, resultante da deglutição e remasterização
de elementos científicos, contra-científicos e a-científicos.
Numa sociedade marcada por uma enorme multiplicidade de domínios culturais e por
indivíduos portadores de uma ampla capacidade de metamorfose e ação, estaríamos no palco
privilegiado de variados processos e estilos de mediação entre universos simbólicos co-existentes e
em conflito (GUIMARÃES, p. 314). Em nosso contexto brasileiro, onde um intenso processo de
mobilidade simbólica e social é estabelecido (GUIMARÃES, p. 296), as práticas em saúde mental
poderiam habitar o borro das fronteiras, o trabalhador psi fazendo as vezes de médium, semeando o
gérmen de uma nova sapiência. Para tanto, havemos de construir esse lugar no imaginário social,
sem o qual nossa eficácia padece.
REFERÊNCIAS

FIGUEIREDO, Luís Cláudio. Revisitando as psicologias: da epistemologia à ética das práticas e


discursos psicológicos. São Paulo: EDUC; Petrópolis, Vozes, 1996.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

REZENDE, JM. À sombra do pl tano: cr nicas de hist ria da medicina [online]. S o Paulo:
Editora Unifesp, 2009. Dos quatro humores s quatro bases. pp. 49-53. ISBN 978-85-61673-63-5.
Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.

RIBEIRO, Márcia Moisés. A ciência dos trópicos: a arte médica no Brasil do século XVIII. São
Paulo: HUCITEC, 1997.

ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Editora da
Unicamp, 2003.

História da psicologia: rumos e percursos. Ana Maria Jacó-Vilela, Arthur Arruda Leal Ferreira,
Francisco Teixeira Portugal (orgs.). Rio de Janeiro: NAU Ed., 2007.

Mediação, cultura e política. Gilberto Velho e Karina Kuschnir (orgs.). Rio de Janeiro: Aeroplano,
2001.




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