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RESUMO
Este artigo pretende sustentar a hipótese de que a legitimidade das tecnologias leves do cuidado em
saúde mental estaria em sua “eficácia simbólica”. Nosso argumento se apoia no homônimo texto do
antropólogo Claude Lévi-Strauss, onde o francês analisa um ritual xamânico que pretende facilitar o
difícil parto de uma mulher indígena. Depois, analisaremos um estudo de caso sobre um duplo
trabalho de cuidado em saúde mental: uma mulher que é “tratada” ao mesmo tempo na Umbanda e
por um psiquiatra. Esse entrelaçamento entre ciência médica e saberes de tradição oral,
acontecimento familiar no Brasil, é abordado na primeira parte, onde se conta um pouco de história
social da medicina, fundamentado em estudos de historiadoras/es acerca da implantação da ciência
médica no Brasil, desde o período Colonial, relevando seu amálgama com os saberes autóctones, e
os aqui desenvolvidos - através dos contatos antropofágicos da mestiçagem. Concluímos sugerindo
a necessidade de invenção de uma clínica social mestiça.
O psicanalista Luís Cláudio Figueiredo (1996) define a clínica como uma ética comprometida com
a escuta do interditado e a sustentação dos conflitos e das tensões. Nesse sentido, o presente artigo
se pretende uma espécie de atuação clínica. Praticando uma espécie de “escuta do interdito”,
pretendemos demonstrar que a medicina científica no Brasil foi elaborada em amálgama cultural
com práticas curativas mágicas, mas que tal relação de deglutição recíproca entre universos
bsimbólicos distintos teria sido, (apenas) supostamente, recalcada. A ciência médica, no que
1 Psicólogo, professor no curso de psicologia da Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública (EBMSP), onde coordena
o Centro de Atenção às Juventudes (CAJU).
incorporou certos saberes da chamada “medicina rústica”2, desencantou seus simbolismos em favor
de explicações positivas e causais. Não mais analogias entre corpo e cosmos, natureza e doença,
regeriam a eficácia mítico-simbólica das práticas curativas. Agora, sob o ideário da modernidade, a
máxima mitológica aceitável no corpo médico-científico para explicar as doenças seria a ação, por
exemplo, de vermes e vírus. Toda a imaginação mágico-religiosa como fundamento e explicação do
mundo da vida teria sido remetida ao enclausuramento de uma des-razão, ou de um charlatanismo
interesseiro e grotesco.
Ainda seguindo a analogia com a clínica, pretendemos manter os conflitos e as tensões entre redes
semânticas no campo da saúde mental (práticas científicas e tradicionais ou “leves”), visto que, não
raro, nossos convivas são sujeitos que operam em si a metamorfose de universos simbólicos
heterogêneos: o sujeito toma chá, banho de folha e Dorflex. Vai ao culto, vai ao médico; vai ao
terreiro, vai à universidade. Poderíamos imaginar que esse sujeito brasileiro seria uma criação em
progresso que vem se dando sob a efígie da antropofagia, como indicou Oswald, isto é, da
bricolagem singular de cosmologias e redes semânticas diversas, por vezes controversas, mas
conviventes.
Por sorte, o interdito da visão mágica de mundo e dos saberes tradicionais no ocidente moderno
teria contribuído para acrescentar, como uma espécie de “resto”, o que Figueiredo (1996)
denominou “espaço psicológico”. Segundo ele, o espaço psicológico seria “o conjunto daqueles
aspectos da 'experiência' que de uma forma ou outra foram sendo, ao longo da história, excluídos
do campo das representações identitárias que elaboramos sobre nós mesmos tanto para nos
apresentarmos aos outros como para nosso próprio uso”. (p. 27) Dito de outro modo, o psicológico
se mostraria como o impensado, como o que opera no registro subterrâneo da exclusão, tanto o
excluído quanto o excludente, vale dizer, como o que resiste ativamente a uma incorporação ao
universo das identidades e representações. (Figueiredo, 1996, p. 28 e 29)
No caso do Brasil, e em particular no atendimento a uma população que teria sua mentalidade
formada em um híbrido de cosmologias distintas, “o que não tem voz audível pelo ouvido
institucionalizado é tudo o que provém daquela cultura e que não se encaixa no quadro de
demandas e serviços legitimados pelas instituições modernas”. Nesse contexto, as instituições
Segundo Gilberto Freyre, a arte médica trazida para o Brasil por graves doutores
portugueses estava muito próxima daquela difundida por africanos e ameríndios (…) No
caso da magia – no seu vasto significado e não simplesmente na magia curativa – pode-se
afirmar que uma forte razão do seu sucesso nas terras coloniais foi o fato de ser comum aos
três povos (RIBEIRO, 1997, p. 43).
Ainda conforme Ribeiro, o conhecimento ameríndio acerca das virtudes de muitas ervas e
raízes e a aptidão no preparo de mezinhas e nos procedimentos rituais de seu universo cultural
teriam sido atrelados ao legado da medicina européia e africana. Portanto, poder-se-ia concluir que
o universo de crenças que povoava o século XVIII, além de emprestar eficácia às artes de curar,
ligadas a práticas fundadas em sistemas mágico-religiosos, resultaram na formação de uma “arte
médica fortemente marcada pela diversidade” (p. 44).
Até meados do século XVIII, “recorria-se frequentemente aos sistemas teóricos do mundo
antigo nos quais os homens assumiam íntimas relações com o cosmo” (p. 73). Hipócrates, Galeno e
Avicena eram nomes aos quais se recorria para justificar tratamentos em que observar os
movimentos da natureza era fundamental. Os fil sofos gregos da escola pitag rica teriam
imaginado o universo formado por quatro elementos: terra, ar, fogo e gua, dotados de quatro
qualidades, opostas aos pares: quente e frio, seco e mido. A transposi o da estrutura quatern ria
universal para o campo da biologia deu origem concep o dos quatro humores do corpo humano
(REZENDE, p. 50). Segundo a patologia humoral – que permaneceu o principal corpo de
explicação racional da saúde e da doença entre o século IV a.C. e o século XVII – o homem seria o
resumo do universo, contendo dentro de si as mesmas qualidades dos quatro elementos
fundamentais. A saúde dependeria do equilíbrio dos quatro humores elementares (sangu neo,
fleum tico, col rico e melanc lico), submissos à influência dos astros. A doença, por sua vez, seria
um elemento estranho que poria em xeque a ordem desse sistema de correspondências ocultas entre
o universo e o homem:
Segundo a concep o hipocr tica da patologia humoral, quando uma pessoa se encontra
enferma, h uma tend ncia natural para a cura; a natureza (Physis) encontra meios de
corrigir a desarmonia dos humores (discrasia), restaurando o estado anterior de harmonia
(eucrasia) (…) A recupera o do enfermo acompanha-se da elimina o do humor excedente
ou alterado. o m dico pode auxiliar as for as curativas da natureza, retirando do corpo o
humor em excesso ou defeituoso, a fim de restaurar o equil brio. Com esta finalidade,
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surgiram os quatro principais m todos terap uticos: sangria, purgativos, em ticos3 e
clisteres4. (REZENDE, 2009, p. 52)
Não apenas no Brasil colonial, como na maior parte da Europa Moderna, a atribuição de
doenças à influência do sol, da lua, dos raios e das tempestades era comum. Por exemplo, apesar de
em algumas partes da Europa a astrologia estar desaparecendo da medicina ortodoxa desde o século
XVI, ainda no século XVII, na Inglaterra, assim como em Portugal, a “ciência” astrológica
encontraria defensores entre os círculos de letrados (p. 74, 75).
Para corroborar com os argumentos de Ribeiro, façamos breve digressão a outro texto, de
Vera Regina Marques (professora da Universidade Federal do Paraná), intitulado “Medicinas
Secretas: magia e ciência no Brasil setecentista”, publicado no livro “Artes e ofícios de curar no
Brasil: capítulos de história social”. Segundo Marques, o uso de remédios secretos não teria sido
monopólio apenas das classes ditas populares. Dom João V teria se valido de um segredo
medicamentoso para superar a impotência que lhe acometera. Houve também muitos soberanos
“reis-curandeiros”: Adriano, Tibério e Tito, imperadores romanos; Mitridates, rei da Pérsia; Átalo,
rei de Pérgamo; Agripa, rei da Judéia, entre outros, preparavam remédios secretos. Os próprios
jesuítas foram importantes idealizadores de remédios de segredo, combinando aspectos mágicos e
religiosos em uma nova/velha relação, pois ainda durante a Idade Média a Igreja havia se
apropriado desse universo. Conforme Vera Marques, “quando os sacerdotes ungiam um doente com
óleo bento invocando o poder dos santos especialistas em curar determinadas doenças, não estavam
fazendo nada mais do que invocar poderes ocultos” (MARQUES, p. 179).
Portanto, mesmo entre as práticas de cura desenvolvidas no universo religioso católico dos
Setecentos havia aproximações com o universo mágico curativo. Todavia, mesmo cientes dos
poderes curativos das plantas os padres não revelavam aos fiéis, para não lhes amolecer a fé e o
poder da Igreja. “Bastava que a cura fosse atribuída a Deus”. E embora várias ordens religiosas no
vasto Império português nos tempos modernos utilizassem o saber herbário herdado da Idade
Média, os tribunais inquisitoriais se mantinham implacáveis com aqueles que promoviam curas
através de “feitiçarias nas quais se usavam plantas”. (MARQUES, p. 181)
Entre os médicos não seria diferente. Marques cita o Compêndio dos segredos medicinais,
ou remédios curvianos, onde se indicava que quando o médico enunciasse as “virtudes” dos
preparados deveria fazer referência a algum dom sobrenatural, celestial, que poderia ser um favor
“Segundo ele a magia natural, enquanto aspecto dominante da tradição mágica, teria sido
incorporada à filosofia natural, pois aquela apresentava como pressuposto o princípio de
que 'certas coisas tinham poderes escondidos ou ocultos, de afetar outras coisas e assim
realizar fenômenos inexplicáveis. O sucesso de um mago natural dependia de um profundo
conhecimento dos corpos, e do modo como estes agem uns sobre os outros, de modo a
ocasionar o resultado desejado'. Porém, durante a revolução científica, teria havido uma
separação entre esses elementos naturalistas e os outros aspectos da magia” (MARQUES,
p. 182).
Portanto, ainda que entre nós a magia pareça evocar a lida com o sobrenatural, “aos olhos
dos primeiros pensadores modernos, seus efeitos dependiam da manipulação de objetos e processos
naturais”. Ressalte-se que tanto a magia natural, quanto outras expressões do conhecimento da
natureza, como a alquimia e os saberes ditos populares, foram incorporados ao campo da ciência e
estão contidos na visão científica de mundo. A péssima fama que viria a adquirir a magia, segundo
Marques, deveria ser atribuída sobretudo às fraudes de pretensos magos e aos incessantes ataques
da Igreja, o que teria contribuído para que “os filósofos naturais também fossem induzidos a
condená-la, após retirarem dela o que reconheciam como útil”. Por outro lado, lembre-se que as
faculdades de medicina que se prezassem ostentavam em seu currículo aulas de astrologia, e que
“outros aspectos da magia e da alquimia matemáticas inspiraram teorias médicas”. (p. 183) Assim,
diz-nos Marques, os homens das Luzes, ao formularem suas medicinas, prosseguiram
pragmaticamente se baseando na magia natural, porém sem reconhecer ou mencionar tal
procedimento:
“A tradicional arte de curar que se operava por milagres, poderes ocultos e influências
astrológicas continuava viva no universo cultural dos doentes, indo ao encontro de crenças
muito arraigadas nas quais não havia lugar para as explicações racionais emanadas da
nova ordem trazida pelos homens das Luzes. A medicina silenciara acerca da tradição
mágica absorvida em suas hostes, porém os doentes a tinham muito presente”
(MARQUES, p. 185).
O fato é que muitas indicações acerca das práticas curativas daquele período que poderiam
nos parecer destituídas de sentido, apenas regidas pela intuição ou crenças ditas supersticiosas, nada
mais seriam do que “reminiscências de velhos sistemas teóricos que atribuíam determinadas
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qualidades às substâncias naturais” (p. 78). Lembre-se que a concepção de mundo subjacente a tais
práticas supõe correspondências entre as várias partes do universo, sendo as próprias práticas
curativas “componentes de um cosmo regido por analogias”. Tanto a medicina difundida nos
tratados quanto as práticas ditas populares, valiam-se de medicamentos naturais e ao mesmo tempo
de certos elementos cujo uso assentava-se em critérios analógicos. Ainda segundo Ribeiro, tanto no
Brasil quanto na Europa moderna, não se fazia distinção nítida entre o emprego de medicamentos
naturais e os sobrenaturais ou simbólicos, não havendo fronteira rígida que separasse o domínio do
mundo natural e do sobrenatural (p. 80).
Como se pode depreender dos argumentos acima, se nos fomos afastando da mentalidade
mágica no campo dos cuidados com a saúde, não teria sido por falta de eficácia das práticas
simbólicas de cura. Motivações políticas e religiosas, por vezes articuladas, relacionadas ao controle
das populações, justificariam a tentativa de recalque daquelas práticas curativas – ainda
remanescentes entre nós –, que imantavam de prestígio e poder as gentes do povo. Mas então qual o
segredo da eficácia dessas práticas mágicas curativas, presentes nas culturas indígenas e africanas,
mas também na Europa moderna fermentada na sabedoria dos povos antigos?
Para nos auxiliar com a resposta, revisitemos um antigo texto publicado em 1949 pelo
antropólogo Claude Lévi-Strauss, intitulado “A eficácia simbólica”. Para situar a relevância e
atualidade desse escrito clássico, lembre-se que Jacques Lacan, ao reformular o inconsciente
freudiano, teria tomado de empréstimo a categoria do simbólico a Lévi-Strauss. Consultando o
Dicionário de Psicanálise, elaborado por Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, no verbete
“simbólico”, nas notas que sucedem à defini o do termo, os autores evocam os trabalhos
desenvolvidos por Marcel Mauss* (1872-1950) que, fazendo frente ao funcionalismo e ao
culturalismo das escolas inglesa e norte-americana, propuseram as noções de “função simbólica” e
“eficácia simbólica”. Depois de Mauss, a partir de 1949, Lévi-Strauss teria desenvolvido tais
noções, justo no texto do qual vamos tratar em seguida. Ressalte-se que em 1953 Lacan se apoiaria
nas ideias de Mauss e Lévi-Strauss para construir sua tópica do simbólico, do real e do imaginário,
“à qual acrescentou a noção de parentesco, extraída das Estruturas Elementares do parentesco”, do
próprio Lévi-Strauss. Conforme Roudinesco e Plon, a noção de “simbólico” em psicanálise
designaria “tanto a ordem (ou função simbólica) a que o sujeito está ligado quanto a própria
psicanálise”. Ou seja, tanto quando tratamos da funcionalidade das terapêuticas “populares” (como
são adjetivadas pejorativamente as práticas sociais de cura em nosso meio); mas inclusive quando
reconhecemos a eficácia das próprias práticas científicas ou a-científicas (como a psicanálise), a
cultura seria este “fora” constituinte do sujeito, onde a eficácia simbólica ganharia seus contornos
curativos.
5 Baseamo-nos no texto de Lévi-Strauss, “A eficácia simbólica” in Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 2003 (6a. Edição), pp. 215-236.
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Em “A eficácia simbólica” (2003) o antropólogo Claude Lévi-Strauss examina “o primeiro
grande texto mágico-religioso conhecido, proveniente de cultura sul-americana”, o qual, segundo
ele, lançaria uma nova luz sobre aspectos da cura xamanística. O texto trata de “um longo
encantamento, cuja versão indígena ocupa dezoito páginas, divididas em quinhentos e trinta e cinco
versículos, recolhido de um velho informante de sua tribo pelo índio Cuna Guillermo Haya” (p.
215). Segundo Lévi-Strauss, o objeto do canto seria ajudar a um parto difícil. O parto difícil seria
explicado porque a potência responsável pela formação do feto (Muu) teria se apoderado da “alma”
(purba) da futura mãe. O canto consiste na busca da alma perdida que seria restituída após inúmeras
peripécias. Explica Lévi-Strauss: “Vencida, Muu deixa descobrir e libertar o purba da doente; o
parto se dá, e o canto termina pela enunciação das precauções tomadas para que Muu não possa
evadir-se após seus visitantes” (p. 216). Uma vez que os abusos de Muu foram retificados, as
relações se tornam amistosas, “e a despedida de Muu ao xamã quase se equivale a um convite:
'Amigo nele6, quando voltarás a me ver?” (idem).
Lévi-Strauss sugere que o interesse excepcional do texto residiria na descoberta “de que Mu-
I gala, isto é, “o caminho de Muu” e a morada de Muu, não são, para o pensamento indígena, um
itinerário e uma morada míticos, mas representam literalmente a vagina e o útero da mulher
grávida, que percorrem o xamã e os nuchu7, e no mais profundo dos quais eles travam seu combate
vitorioso” (p. 217).
Segundo a interpretação de Lévi-Strauss, a perda da “alma de sua vida” pela doente teria
sido resultado da desordem provocada por Muu, “uma 'alma' especial que capturou e paralisou as
outras 'almas' especiais, e destruiu assim a cooperação que garantia a integridade do corpo
principal”, de onde tirava sua “força vital” (niga). Sendo Muu uma alma especial como as demais,
ainda que sendo a responsável pela desordem patológica em questão; Muu não seria uma força
essencialmente má, mas, na expressão de Lévi-Strauss, uma “força transviada” (p. 219).
Lévi-Strauss pondera ainda que a recorrente dificuldade de interpretação do método
terap utico empregado nas curas xamanísticas habitualmente descritas, supostamente seria
desembaraçada declarando que se tratariam de “curas psicológicas”. Mas considera que tal termo
permaneceria vazio se não se propusesse “definir a maneira pela qual representações psicológicas
6 Segundo Lévi-Strauss, o oficiante, também chamado xamã, quando se trata de um nele, distinguir-se-ia de outros
dois tipos médicos indígenas: os inatuledi e os absogedi. Os nele teriam um talento especial, considerado como
inato, consistindo “numa visão que descobre imediatamente a causa da doença, ou seja, o lugar do arrebatamento
das forças vitais, especiais ou gerais, pelos maus espíritos”. (p. 217)
7 Imagens sagradas esculpidas nas essências prescritas que lhes dão a eficácia; os espíritos protetores, que o xamã faz
seus assistentes. (STRAUSS, p. 216).
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determinadas são invocadas para combater perturbações fisiológicas, igualmente bem definidas”
[grifo nosso] (p. 221). Nesse sentido, o canto indígena analisado por Lévi-Strauss forneceria uma
contribuição excepcional à solução do problema:
Ele constitui uma medicação puramente psicológica, visto que o xamã não toca no corpo da
doente e não lhe administra remédio; mas, ao mesmo tempo, ele põe em causa, direta e
explicitamente, o estado patológico e sua sede: diríamos, de bom grado, que o canto
constitui uma manipulação psicológica do órgão doente, e que a cura é esperada desta
manipulação (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 221).
Segundo Lévi-Strauss, a cura começaria por um histórico dos acontecimentos que a teriam
precedido, sendo certos aspectos que poderiam parecer secundários tratados com “grande luxo de
detalhes”. Tudo se passaria “como se o oficiante tratasse de conduzir uma doente (…) a reviver de
maneira muito precisa e intensa uma situação inicial, e a perceber dela mentalmente os menores
detalhes” (p. 223). O corpo e os órgãos internos da doente constituiriam o teatro suposto onde a
série de acontecimentos narrados se passariam. Diz Lévi-Strauss:
Vai-se, pois, passar da realidade mais banal ao mito, do universo físico ao universo
fisiológico, do mundo exterior ao corpo interior. E o mito, desenvolvendo-se no corpo
interior, deverá conservar a mesma vivacidade, o mesmo caráter de experiência vivida à
qual, graças ao estado patológico e a uma técnica obsidente8 apropriada, o xamã terá
imposto as condições (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 223).
Ao passo que se adentra o texto indígena, revela-nos Lévi-Strauss, presentificar-se-ia uma oscilação
cada vez mais rápida entre os temas míticos e os temas fisiológicos, “como se tratasse de abolir, no
espírito da doente, a distinção que os separa, e de tornar impossível a diferenciação de seus
respectivos atributos” (p. 223). Por mítica que seja, a penetração da vagina pelos espíritos é
proposta em termos concretos e conhecidos. Conforme a interpretação de Lévi-Strauss, a técnica da
narrativa visaria reconstituir uma experi ncia real, onde o mito se limitaria a substituir os
protagonistas do drama narrado, compondo uma espécie de “geografia afetiva” que substituiria a
estrutura real dos órgãos (p. 225).
Após uma série de peripécias, protagonizadas por monstros fantásticos e animais ferozes no
quadro do mundo uterino, ao qual Lévi-Strauss se refere como “um inferno à Hyeronimus Bosch”, e
quase findo o parto, ainda faltaria uma etapa para a cura: o xamã partiria para a montanha com os
moradores da aldeia, para recolher plantas medicinais. Haveria assim duas ofensivas lançadas em
socorro da doente: uma mitologia psico-fisiológica, e uma mitologia psicossocial, indicada pelo
apelo aos habitantes da aldeia. (p. 227)
Por fim, para como que aferrolhar a eficácia da cura, o xamã apresenta à doente um
desfecho, concluindo o canto após o parto como iniciado antes da cura. Isto, conforme Lévi-Strauss,
Portanto, para Lévi-Strauss, a cura consistiria “em tornar pensável uma situação dada
inicialmente em termos afetivos, e aceitáveis para o espírito as dores que o corpo se recusa a
tolerar”. Dado isso, não haveria importância que a mitologia do xamã não correspondesse a uma
realidade objetiva. Antes, o que importaria é que a doente acreditasse nela, e que pertencesse a uma
sociedade que acredita:
Os espíritos protetores e os espíritos malfazejos, os monstros sobrenaturais e os animais
mágicos, fazem parte de um sistema coerente que fundamenta a concepção indígena do
universo. A doente os aceita, ou, mais exatamente, ela não os pôs jamais em dúvida. O que
ela não aceita são dores incoerentes e arbitrárias, que constituem um elemento estranho a
seu sistema, mas que, por apelo ao mito, o xamã vai reintegrar num conjunto onde todos os
elementos se apoiam mutuamente (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 228).
Seguindo a explicação de Lévi-Strauss, ocorreria que, ao contrário de nossos doentes, que
não saram “quando se lhes explica a causa de suas desordens, invocando secreções, micróbios ou
vírus”, a parturiente indígena sara. E isto porque, ao passo que a relação entre micróbio e doença é
exterior ao espírito do paciente, obedecendo uma relação de causalidade; a relação entre monstro e
doença é interior a esse mesmo espírito, consciente ou inconsciente. O xamã forneceria à sua doente
“uma linguagem, na qual se podem exprimir imediatamente estados não-formulados, de outro modo
informuláveis”. Seria a passagem a esta “expressão verbal” que provocaria o desbloqueio do
processo fisiológico, permitindo à doente “viver sob uma forma ordenada e inteligível uma
experi ncia real, mas, sem isto, anárquica e inefável” (p. 228).
Desse modo, para Lévi-Strauss, a cura xamanística se situaria “a meio-caminho entre nossa
medicina orgânica e terapêuticas psicológicas como a psicanálise”. Pois, em ambos os casos, tratar-
se-ia de “conduzir à consciência conflitos e resistências até então conservados inconscientes, quer
em razão de seu recalcamento por outras forças psicológicas, quer – no caso do parto – por causa de
sua natureza própria, que não é psíquica, mas orgânica, ou até simplesmente mecânica” (p. 229).
Além disso, tanto em psicanálise quanto na cura xamanística, os conflitos e as resistências se
dissolveriam porque o conhecimento que a doente adquire progressivamente a esse respeito tornaria
possível “uma experi ncia específica, no curso da qual os conflitos se realizam numa ordem e num
plano que permitem seu livre desenvolvimento e conduzem ao seu desenlace” (idem). Por seu turno,
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ainda que ambas visem provocar uma experiência, e ambas cheguem a isto, “reconstituindo um
mito que o doente deve viver, ou reviver”, algumas diferenças, não devem ser desconsideradas:
... num caso, é um mito individual que o doente constrói com a ajuda de elementos tirados
de seu passado; no outro, é um mito social, que o doente recebe do exterior, e que não
corresponde a um antigo estado pessoal (…) o psicanalista escuta, ao passo que o xamã
fala. Melhor ainda: quando as transferências se organizam, o doente faz falar o psicanalista,
emprestando-lhe sentimentos e intenções supostos; ao contrário, na encantação, o xamã fala
por sua doente (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 230).
Lévi-Strauss prossegue comparando o método do xamã com outras terapêuticas, recentes à
época, e que se valiam da psicanálise. Cita um certo Desoille que já haveria sublinhado em seus
trabalhos sobre o sonho acordado que a perturbação psicopatológica só seria acessível à linguagem
dos símbolos, procedendo em falar com seus pacientes por metáforas verbais. Refere-se ainda a
uma psicanalista que teria conseguido um resultado satisfatório no tratamento de um caso de
esquizofrenia considerado incurável. Ela percebera que o discurso, tão simbólico quanto fosse,
chocava-se ainda na barreira do consciente. E, portanto, para atingir os complexos mais
profundamente enterrados, procedia por atos:
“A carga simbólica de tais atos torna-os próprios para constituírem uma linguagem:
certamente, o médico dialoga com seu doente, não pela palavra, mas por meio de operações
concretas, verdadeiros ritos que atravessam a tela da consciência sem encontrar obstáculo,
para levar sua mensagem diretamente ao inconsciente” (LÉVI-STRAUSS, 2003, p. 231).
Os gestos realizados pela psicanalista repercutiriam no espírito inconsciente da
esquizofrênica, como as representações evocadas pelo xamã determinariam uma modificação das
funções orgânicas da parturiente: “Na cura da esquizofrenia, o médico executa as operações e o
doente produz seu mito; na cura xamanística, o médico fornece o mito e a doente executa as
operações” (p. 232).
Tanto na cura xamanística quanto na cura psicanalítica, tratar-se-ia de “induzir uma
transformação orgânica, que se constituiria essencialmente numa reorganização estrutural, que
conduzisse o doente a viver intensamente um mito, ora recebido, ora produzido, e cuja estrutura
seria, no nível do psiquismo inconsciente, análoga àquela da qual se quereria determinar a formação
no nível do corpo” (p. 233).
E Lévi-Strauss arremata:
A eficácia simbólica consistiria precisamente nesta 'propriedade indutora' que possuiriam,
umas em relação às outras, estruturas formalmente homólogas, que se podem edificar, com
materiais diferentes, nos diferentes níveis do vivente: processos orgânicos, psiquismo
inconsciente, pensamento refletido. A metáfora poética fornece um exemplo familiar deste
processo indutor; mas seu uso corrente não lhe permite ultrapassar o psíquico (LÉVI-
STRAUSS, 2003, p. 233).
Por fim, indaga ainda Lévi-Strauss, “se o valor terapêutico da cura se deveria ao caráter real
das situações rememoradas, ou se o poder traumatizante destas situações não seriam provenientes
do fato de o sujeito as experimentar imediatamente sob a forma de mito vivido” (p. 233-34). Isto é,
o poder traumatizante de uma situação não resultaria de suas características intrínsecas, mas da
“aptidão de certos acontecimentos, que surgem num contexto psicológico, histórico e social
apropriado, para induzir uma cristalização afetiva, que se faz no molde de uma estrutura
preexistente” (p. 234).
REZENDE, JM. À sombra do pl tano: cr nicas de hist ria da medicina [online]. S o Paulo:
Editora Unifesp, 2009. Dos quatro humores s quatro bases. pp. 49-53. ISBN 978-85-61673-63-5.
Available from SciELO Books <http://books.scielo.org>.
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