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04/05/2021 A educação quilombola como resistência de suas comunidades e culturas - Centro de Referências em Educação Integral

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PUBLICADO DIA 22/08/2018

A educação quilombola como


resistência de suas comunidades e
culturas
POR INGRID MATUOKA

TAGS: EDUCAÇÃO INTEGRAL INCLUSIVA EDUCAÇÃO QUILOMBOLA IGUALDADE RACIAL

Djey Dornelles Teixeira é uma adolescente de 17


anos que sonha cursar Psicologia. É também parte
da primeira geração da Comunidade Quilombola
Morada da Paz, localizada no interior do Rio Grande
do Sul, a frequentar uma escola. Um direito que
permanece envolto em obstáculos.

“Sou menina, negra, quilombola, moro na zona rural,


muito longe de onde estudo. Ir à escola é sempre

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um desafio”, diz Djey, que é aluna do 2º ano do Ensino Médio de uma escola
pública regular da cidade de Porto Alegre.

Leia + Educação indígena: olhar integral para os saberes tradicionais e do


território

Essa reportagem integra o Especial Eleições 2018 – Caminhos para a Escola


Brasileira, do Centro de Referências em Educação Integral. A série de matérias
irá abordar como os principais temas da educação se relacionam com o projeto
de país em disputa com as eleições que se avizinham, dando ênfase para as
questões identitárias brasileiras, direitos humanos e políticas públicas de
educação.

Para além das dificuldades de acesso, a jovem se queixa de aulas que não
conversam com sua identidade e cultura. “Só lembram da história e da cultura
dos quilombolas em novembro, e só na matéria de História”, conta.

Por estes motivos, diz que persiste nos estudos porque “é preciso”. Do
contrário, não estudaria. “Posso aprender muito mais com a minha comunidade,
viajando e conhecendo outros quilombos, mas eu sei que ter um diploma é muito
importante na nossa sociedade, ainda mais sendo negra e quilombola”, diz.

A experiência da jovem dialoga com a de várias outras crianças e adolescentes


de comunidades tradicionais matriculados nas redes de ensino do País. Se em
suas comunidades a educação acontece de maneira integral, por meio da
experiência e articulada ao território e à cultura, nas escolas o que encontram
são aulas que pouco ou nada conversam com suas realidades.

“Temos uma escola pautada em referenciais curriculares muito padronizados,


que não olha para o territórios e outros saberes. E agora, com a Base Nacional
Comum Curricular (BNCC), há uma tendência a homogeneizar ainda mais”,

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observa Lourdes de Fátima Bezerra Carril, professora na Universidade Federal


de São Carlos que desenvolve pesquisas sobre educação quilombola por meio
do Observatório Quilombola.

Permeado por barreiras físicas, culturais, políticas e étnico-raciais, o acesso à


educação formal por estes povos se traduz, muitas vezes, em precariedade,
preconceito e discriminação.

Se em suas comunidades a educação acontece de maneira


integral, por meio da experiência, nas escolas o que encontram
são aulas que pouco conversam com suas realidades

“Se na escola se desconsidera, por exemplo, o racismo, cria-se um processo que


leva as crianças negras a pensarem que têm que adquirir outras formas de
comportamento, outro símbolo social”, diz Lourdes.

Em Rio de Contas, interior da Bahia, a pesquisadora Claudia Rocha da Silva,


professora na Faculdade de Letras da Universidade do Estado da Bahia (UNEB),
observou estes efeitos de perto.

Estudando o tratamento dado por uma escola à linguagem dos estudantes


quilombolas que frequentavam o Fundamental I, percebeu um forte preconceito
linguístico. Os alunos eram estigmatizados como “menos inteligentes” pelos
professores porque “falavam errado”.

“Esses estudantes eram discriminados por serem falantes de uma variante


linguística estigmatizada, o que a antropóloga Lélia Gonzalez nomeava de
português afro-brasileiro, ou pretoguês”, diz Claudia. O resultado foi a rejeição
dos alunos à própria língua e, consequentemente, à sua cultura.

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Os quilombos foram formados na era colonial, principalmente, a partir da


resistência de negros escravizados e libertos. Muitos deles se associaram a
povos do campo e indígenas. A educação das crianças sempre ocorreu nos
quilombos, liderada pelos mais velhos, e articulada à prática e à tradição oral.

“Encontramos estudantes com uma acentuada baixa autoestima, silenciados no


espaço escolar por não se sentirem capazes de dizer a língua e, por conta disso,
demonstrando desempenho insatisfatório”, conta a pesquisadora.

Apesar da necessidade de aprender a norma culta da língua, Claudia alerta que


isso não pode significar um processo de aculturação linguística. “A escola deve
estar aberta e preparada para lidar com as diferenças, sejam as raciais, as
linguísticas ou quaisquer outras. Senão corre o risco de excluir os que não se
enquadram nos modelos pré-estabelecidos tradicionalmente”, diz.

Em outras palavras, apenas uma educação que se proponha a olhar para a


diversidade pode ser capaz de transformar desigualdades em potencialidades e
construir uma escola verdadeiramente brasileira.

Cartazes nos corredores da escola quilombola Dona Rosa Geralda da Silveira, feitos pelas crianças

Crédito: Acervo pessoal


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O que é educação quilombola?

A fim de recuperar a ancestralidade que, por vezes, a escola distorce e resume à


escravidão, as comunidades quilombolas começaram, por volta de 1980, a se
organizar em prol de uma educação quilombola.

Desde então, foram instituídas legislações para respaldar a garantia da


educação dos quilombolas, como a Lei Nº. 10639 (2003), que tornou
obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira nas escolas, as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico‐raciais
(2007) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar
Quilombola (2012).

Hoje, existem pouco mais de 2300 escolas localizadas em áreas remanescentes


de quilombos no País para cerca de 5 mil comunidades quilombolas, segundo
dados de 2017 do Governo Federal. Destas, somente 34% utilizam materiais
didáticos específicos para atendimento à diversidade sociocultural quilombola.

Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar


Quilombola, de 2012, estas escolas devem estar inscritas em suas terras, e ter
uma pedagogia própria em respeito à especificidade étnico-cultural de cada
comunidade, bem como reconhecer e valorizar sua diversidade cultural.

“Não há um modelo único de comunidade quilombola e, portanto, não há um


formato específico para pensar uma educação quilombola”, diz Kalyla Maroun,
professora na Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). “Cada comunidade tem um processo singular de constituição de
identidade, de formação e autoatribuição enquanto quilombo e assim devem ser
pensadas cada uma das escolas destes territórios”, explica.

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Em comum, estão desafios como garantir saneamento básico, transporte,


energia elétrica e alimentação. A maioria das escolas localizadas nas áreas rurais
funciona em espaços improvisados, cedidos ou alugados de instituições
religiosas ou privadas, em barracões ou salões comunitários, em condições
muito precárias.

Identidade e ancestralidade

Apesar das dificuldades, algumas escolas quilombolas resistem. É o caso da


primeira escola quilombola do estado do Rio de Janeiro, inaugurada em 2013.
Nomeada em homenagem à mulher que lutou até o fim pela garantia dos
direitos da comunidade quilombola de São Pedro da Aldeia (RJ), a escola
municipal Dona Rosa Geralda da Silveira atende quase 300 crianças, da pré-
escola ao 3º ano do Ensino Fundamental.

Mais do que o ensino curricular, a escola preza pela valorização e preservação


da cultura e identidade quilombola. “Nosso projeto é voltado para deixar os
nossos alunos por dentro da história que veio a originar a escola e para que eles
tenham uma educação de qualidade”, conta a diretora Ana Rogéria Arruda
Moraes.

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As várias danças africanas fazem parte da educação quilombola na escola Dona Rosa Geralda da Silveira, em São
Pedro da Aldeia (RJ).

Crédito: Acervo pessoal

Ela conta que com os alunos mais velhos trabalha, por exemplo, o vocabulário
próprio da comunidade. Com os mais novos, utiliza-se da literatura infantil para
contar histórias sobre a África. Ano passado, inclusive, uma mulher quilombola
foi pessoalmente contar para as crianças sobre a origem do quilombo.

Além disso, pretendem desenvolver o projeto Sabores da Terra para abordarem


as origens da alimentação quilombola e seu cultivo. Na merenda da escola,
inclusive, já incorporaram abóbora, aipim, carne-seca, e muitas frutas.

Para as apresentações dos alunos em festas da escola, os pequenos aprendem


um pouco mais sobre músicas e danças africanas. Na última, convidaram um
grupo africano para fazer uma apresentação.

“Trabalhamos com esses elementos para reforçar a identidade negra É comum


eu receber pais que dizem que o filho é pardo, que é moreno, ao invés de dizer
negro. Queremos valorizar a identidade dessas crianças para elas saberem que
são importantes”, diz a diretora.

“Queremos valorizar a identidade dessas crianças para elas


saberem que são importantes”, diz a diretora Ana Rogéria

Ela ressalta que nada disso seria possível sem o comprometimento das dezenas
de professores que lá trabalham. Ao chegarem, os docentes passam por uma
sensibilização ao tema, estudam o Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola e
as Diretrizes da Educação Quilombola, além de receberem cursos de formação
continuada.

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“De nada adiantaria criar um PPP se os professores não levassem a sério. Mas
eles querem fazer mais pela cultura, querem estudar, conhecer, e levar isso para
as crianças”, comemora Ana Rogéria.

Mas todo esse empenho em valorizar a cultura afro-brasileira não vem sem
alguma resistência. A escola, aberta à comunidade, recebe muitos alunos de fora
do quilombo, e algumas famílias não entendem o projeto de educação em vigor,
e “acham que só ensinam macumba”, como conta a diretora, e acabam tirando os
filhos da escola.

“Eu sou negra, e sei a importância de valorizar nossa história. Por meio do
estudo, porque a nossa cultura ficou adormecida por muito tempo no ambiente
escolar, as crianças pequenas vão poder conhecer a nossa bonita história, que
nós não vamos deixar morrer”, diz Ana Rogéria.

O colégio quilombola Maria Joana Ferreira leva para as ruas o combate ao racismo
Crédito: Acervo pessoal

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Continuidade e troca

A escola quilombola de São Pedro da Aldeia, no entanto, enfrenta um problema


comum a muitas outras: a falta de continuidade para as demais etapas de ensino.
São raras as unidades que ofertam Ensino Fundamental II e Médio. Uma delas
fica em Palmas, no interior do Paraná.

Inaugurado em 2009, o Colégio Estadual Quilombola Maria Joana Ferreira


recebe 460 estudantes, e também trabalha os conteúdos regulares do currículo
junto aos saberes e culturas africanas e do quilombo.

Em relação às matrículas em escolas quilombolas, o Ensino Médio concentra


apenas 5,9% enquanto o Fundamental corresponde a 68,5%, segundo o estudo
Educação Escolar Quilombola no Censo da Educação Básica, do Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), de 2015.

“Nós, negros, já passamos tempo demais sem vez, sem voz. Agora vamos
mostrar que somos capazes, sujeitos de nossa própria história”, diz Rosemary
Ferreira da Silva Câmara, diretora do colégio. “E ter escolas quilombolas é
fundamental para isso, e não significa que estamos nos excluindo, como dizem,
até porque o quilombo hoje é composto por várias etnias, acolhemos a todos”,
afirma.

A diretora também conta que promover intercâmbios culturais é um dos


principais objetivos da escola, e que costumam visitar outros espaços e cidades
vizinhas. Em breve, por exemplo, os estudantes irão conhecer uma comunidade
indígena para ensinar a mankala, um jogo africano para aprender matemática.

Dentro da escola, procuram trabalhar o racismo e outras questões por meio do


resgate da autoestima e da ancestralidade, mostrando sua riqueza cultural.
Sobre a importância destas ações, Rosemary sintetiza: “Queremos nossos

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direitos, ter visibilidade na sociedade e diante do poder público, porque ainda


temos muito preconceito e racismo no Brasil.”

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2 comentários

JOSE RAIMUNDO
25/08/2018 às 12:52

Li a matéria acima com cuidado, atenção, de um só fôlego, tal como deve ser quando se quer entender
algo, compreendê-lo na sua essência e importância. Fiquei encantado. Essa questão da educação dos
quilombolas deve se fazer presente e de mineira no centro debate. Uma pena que aqui poucos leem
uma matéria como esta. Recomendo a sua leitura!
Responder

Eyllika Milianni
23/08/2018 às 17:23

Eu acredito que a realidade nas Escolas quilombolas seja desafiadora para os professores.Gostaria de
conhecer um pouco mais sobre o projeto que é desenvolvido,embora,a realidade do Rio Grande do
Norte,seja diferente da do Rio Grande do Sul.E portanto,a formação continuada dos profissionais
deveria ter suas particularidades,o que desconheço até o momento aqui no RN.
Sou pedagoga,e trabalho em uma Escola numa comunidade de remanescentes quilombola.
Responder

EDUCAÇÃO INDÍGENA: OLHAR


INTEGRAL PARA OS SABERES
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INTEGRAL PARA OS SABERES
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