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PSICOLOGIA E A PANDEMIA DE COVID-19 NO BRASIL

2022 Copyright by João Paulo Pereira Barros, Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro, Natá-
lia Santos Marques, Camilla Araújo Lopes Vieira, Aluísio Ferreira de Lima (orgs.)
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Catalogação
Leolgh Lima da Silva – CRB3/967

Revisão de texto
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Editoração e Designer
Henrique Jhony Pinto Ferreira
Telefone:(88) 99635-2729

Foto da capa
Thamila Cristina dos Santos da Silva.

Bibliotecária Responsável: Leolgh Lima da Silva – CRB3/967

P974 Psicologia e pandemia de Covid-19 no Brasil: diálogos sobre


educação, saúde, ciência e sociedade./ Organizado por João
Paulo Pereira Barros et al. – Sobral- CE: Edições UVA, 2022.

242p.

ISBN : 978-65-87115-30-6 (e-book)

1.Psicologia- Covid-19. 2 . Sociedade- Impactos da Covid-19. 3.


Covid-19. 4. Psicologia- Infecções por Coronavírus. I. Barros, João
Paulo Pereira. II. Pinheiro, Francisco Pablo Huascar Aragão. III.
Marques, Natália Santos. IV. Vieira, Camila Araújo Lopes. V. Lima,
Aluísio Ferreira de. VI. Título.

CDD 616.2
Sumário

Psicologia e produção de conhecimento acerca da pandemia de covid-19 no Bra-


sil..........................................................................................06

Parte 01 Educação...........................................................................19
01 A pandemia que amplia as desigualdades: obstáculos da educação pública
diante do ensino remoto................................................................20
02 Contextos desiguais na escolarização em tempos de pandemia..............36
03 Pistas (inventivas) para desaprender em tempos de pandemias..............52

Parte 02 Saúde.................................................................................66
04 Tecendo laços em meio à pandemia de covid-19: relato de experiência sobre
um grupo de apoio psicológico a trabalhadores de serviços essenciais..........67
05 O SUS em tempos de pandemia: considerações sobre erospolítica..........83
06 Tessituras da saúde mental: modulação dos sofrimentos e governo da vida no
Brasil pandêmico........................................................................92
07 O consumo de drogas na pandemia de covid-19...............................101

Parte 03 Ética e Ciência..................................................................113


08 Ética e Ciência na pandemia de covid-19.......................................114
09 Pandemia de covid-19 no Brasil: reflexões sobre as implicações éticas e cientí-
ficas......................................................................................126
10 Pensando a Ciência em tempos de pandemia..................................139

Parte 04 Sociedade.........................................................................153
11 Precarização desigual da vida no contexto pandêmico: da necropolítica às mo-
dulações da clínica.....................................................................154
12 Vulnerabilidades em contexto de pandemia: o racismo e a fome como efeitos
de segregação...........................................................................173

4
13 Perda, morte e luto na pandemia de covid- 19................................187
14 O ornitorrinco em meio à Pandemia: notas sobre covid-19, crises e gestão
de mortes................................................................................200
15 Metodologias ativas e participativas no enfrentamento das vulnerabilidades
e desigualdades sociais com populações indígenas................................217
Os autores e as autoras...................................................................232

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Psicologia e produção de conhecimento acerca da pan-
demia de covid-19 no Brasil

João Paulo Pereira Barros, Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro, Natália
Santos Marques, Camilla Araújo Lopes Vieira e Aluísio Ferreira de Lima

Esta coletânea resulta do Curso de Extensão “Aspectos Psicossociais


das Vulnerabilidades no Contexto da Pandemia de Covid-19”, realizado de modo
remoto entre maio e junho de 2020, e organizado pelo Programa de Pós-Gra-
duação em Psicologia e pelo Programa de Pós-Graduação Profissional em Psi-
cologia e Políticas Públicas, ambos da Universidade Federal do Ceará (UFC). O
curso contou com a participação de 180 pessoas e foi destinado a estudantes de
instituições de ensino superior, profissionais da saúde, assistência social e áreas
afins, integrantes de organizações da sociedade civil e de movimentos sociais.
Tal ação teve carga horária total de 21 horas, divididas em sete módulos temá-
ticos ministrados por 20 docentes dos dois Programas acima mencionados. Seu
intuito principal foi promover um espaço de discussão acerca das desigualdades
sociais em tempos de pandemia de covid-19 no Brasil.

Ao problematizar os efeitos subjetivos da pandemia, o curso propi-


ciou uma ação de inserção social e a integração entre os dois Programas de
pós-graduação. Tal iniciativa ratificou, assim, o propósito de contribuir para o
desenvolvimento local e regional a partir de trocas entre pesquisas e extensões
desenvolvidas na UFC e os mais diversos segmentos da sociedade. A proposi-
ção de atividades como essa, assim como a sistematização de seus debates na
forma de livro, sinaliza para a potência insurgente de ambos os programas de

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pós-graduação na área da psicologia. Seus corpos discente, docente e técnico-
-administrativo seguem, crítica e propositivamente, produzindo conhecimento
socialmente referenciado em meio às históricas desigualdades regionais quanto
à distribuição de recursos e oportunidades (BARROS et al., 2019).

Nossos esforços para contribuir com a ciência brasileira persistem,


a despeito do desmonte de políticas públicas para a educação superior, que re-
percutem sensivelmente no fomento aos programas de pós-graduação, e dos
frequentes ataques às ciências humanas alavancados pelas ofensivas antidemocrá-
ticas de grupos de extrema-direita (BARROS; RODRIGUES; BENÍCIO, 2021).
Não seria diferente no contexto pandêmico, o qual se tornou ainda mais dramá-
tico e letal no Brasil, em comparação com outros países. Afinal, a minimização
da gravidade da pandemia se constituiu, desde março de 2020, como política
institucionalizada no âmbito da gestão do Estado.

Segundo Nunes et al. (2021), a retórica “negacionista” na pandemia


pavimentou a potencialização de uma política de mortificação em massa já em
curso desde muito antes dela. As tecnologias micropolíticas em ação no contex-
to da covid-19, articulando dimensões econômicas, sanitárias e psicossociais,
deram-se sobretudo pela negação à população historicamente oprimida por
hierarquias econômicas, raciais, geracionais e de gênero, do direito à vida e à
própria condição de vida digna de ser vivida. Em vez de expressar ignorância ou
acidental displicência, tais retóricas (e práticas) negacionistas se consolidaram,
não obstante, como artifícios articulados à racionalidade do capital, com vistas
a apresentar como inexorável a necessidade de manter o funcionamento sacri-
ficial e concentracionista da economia, conduzida a partir do ultraliberalismo
praticado no Brasil.

Sob essa ótica, afirmou-se uma certa visão de economia (caracterizada


por ser indutora de precarização desigual e maximizada da vida das maiorias

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populares) e negou-se o valor das vidas de pessoas pobres e negras, pessoas
idosas, mulheres, crianças, pessoas com deficiência e indígenas. Foi interdita-
do ou desqualificado o acesso a dispositivos que protegessem essas existências,
objetificadas e instrumentalizadas como supérfluas. São essas, afinal, as vidas
não passíveis de luto público, transformadas, quando muito, em números, pois
houve até a tentativa de ocultar os dados quanto às mortes por covid-19. As po-
líticas de morte no Brasil, pois, seguem operando por meio do desaparecimento
e perpetuam matrizes coloniais que induzem modos de subjetivação atravessa-
dos pela indiferença, pelo ultraindividualismo e pela manutenção de privilégios
históricos.

Assim, diversos artifícios retóricos foram utilizados para naturalizar a


oposição entre “salvar a economia” e “salvar vidas”, o que impôs a muitas pessoas
o risco da morte diante do medo do desemprego e da crise econômica. Em di-
versos entes da federação e entre integrantes dos três poderes da república, não
foram raros aqueles que sistematicamente negaram recomendações de medidas
comprovadamente eficazes e experimentadas em diversos países (como o dis-
tanciamento social rígido e o uso de máscaras).Também não foram raros aqueles
que proliferaram desinformação e notícias falsas sobre a pandemia, defendendo,
reiteradamente, soluções ineficazes (medicamentos para tratamento precoce,
isolamento vertical, imunidade de rebanho, dentre outros).

Somou-se a isso a ausência de uma coordenação nacional contundente


para o enfrentamento da pandemia e o retardo deliberado da imunização a par-
tir da compra e da aplicação em massa de vacinas. Isso se deu na esteira de po-
sicionamentos institucionais de ataque à ciência, desqualificando-a e a desmon-
tando. Nesse contexto, um enorme contingente populacional foi indevidamente
exposto à contaminação, intensificando-a, ao passo que medidas de mitigação
ou contenção de contágios foram sabotadas ou boicotadas. Com honrosas exce-

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ções, a gestão da pandemia no Brasil buscou trivializar a perversa racionalidade
do capital ao naturalizar tanto a doença quanto a morte.

Após meses de gestão desastrosa tanto em relação ao combate à pan-


demia quanto em relação ao desenvolvimento econômico, sem coordenação na-
cional comprometida com a garantia de condições dignas de vida para os mais
diversos segmentos populacionais, o que assistimos foi o país atingir números
inadmissíveis de mortes evitáveis e uma crise econômica galopante. Assim,
grande parte da população vem convivendo, simultaneamente, com a miséria,
o desamparo institucional e a dor pela perda de familiares e pessoas queridas.

Não foi ocasionalmente, portanto, que o tema das vulnerabilizações


sociais compareceu em muitas das discussões estabelecidas no Curso de Ex-
tensão proposto pelos dois Programas acima citados e, consequentemente, na
presente coletânea. Dessa forma, como em outras produções no âmbito das
pós-graduações em Psicologia da UFC (BARROS; ANTUNES; MELLO, 2020),
pautaram-se processos de vulnerabilização, deslocando as questões de um pris-
ma tutelar, moralizante e estritamente individualista para uma perspectiva éti-
co-política, na qual são desnaturalizadas as condições psicossociais que propi-
ciam a precarização desigual e maximizada das vidas, que ora as deixa morrer,
ora as faz morrer.

Assim, este livro traz textos que buscam se somar a outras produções
que, a partir da psicologia, buscaram pautar as discussões sobre a pandemia de
covid-19 no Brasil (p. ex. SPINK, 2020; NEVES; FERREIRA, 2020; RENTE;
MERHY, 2020; LEITE, 2020; COSTA et al., 2020; MOREIRA et al., 2020;
SANTOS; PEDRO, 2020; DIMENSTEIN et al., 2020; GONZAGA; CUNHA,
2020; BIANCO; COSTA-MOURA, 2020). Com base nos debates gerados no
curso, esta obra é formada por 15 capítulos, que estão organizados em quatro
seções temáticas, a saber: (a) educação; (b) saúde; (c) ética e ciência; e (d) socie-

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dade. Cabe frisar a diversidade desse conjunto de textos, que vão desde resulta-
dos de pesquisas a ensaios teóricos. Isso se deve ao fato de que às autoras e aos
autores foi facultada a possibilidade de tratar do assunto central da coletânea de
maneira coerente com suas perspectivas temáticas e teórico-metodológicas no
âmbito dos seus respectivos Programas.

A seção temática Educação é composta por três capítulos. O pri-


meiro deles, intitulado A pandemia que amplia as desigualdades: obs-
táculos da educação pública diante do ensino remoto, de autoria de
Francisca Denise Silva Vasconcelos, Bárbara Ellen Viana Sales, Jorge Samuel de Sousa Tei-
xeira e Luana Paiva da Silva, objetiva averiguar os impactos causados pela covid-19
na relação entre escola e estudantes das redes públicas nordestinas, observando
as principais dificuldades de educação apresentadas pelos jovens com a adesão
do isolamento social. Para tanto, realizou-se Análise de Conteúdo de matérias
jornalísticas publicadas entre março e setembro de 2020, com os descritores
“Pandemia”, “Escola pública” e “Ensino Médio” na plataforma Google Notícias.
Os resultados indicam dificuldades de acesso, fragilidades ligadas à preparação
para o Exame Nacional do Ensino Médio e vulnerabilidades sociais que afetam
estudantes e agravam desigualdades sociais já existentes no período pré-pan-
dêmico, bem como incertezas sobre os impactos posteriores deste cenário na
educação pública.

Luciana Lobo Miranda,Tadeu Lucas de Lavor Filho, José Alves de Souza Filho,
Lara Thayse de Lima Gonçalves, Mayara Ruth Nishiyama Soares, Lorrana Caliope Castelo
Branco Mourão, Paulo Francis Jorge da Silva, Antonio Marlon Coutinho Barros e Luisa
Carolina Holanda Pereira, no texto Contextos desiguais na escolarização
em tempos de pandemia, articulam um conjunto de discussões/problema-
tizações acerca dos processos de vulnerabilização dos atores escolares, fruto dos
contextos de desigualdades sociais que atravessam a escolarização no âmbito das

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escolas públicas, em tempos de isolamento social decorrente da pandemia de
covid-19. Assim, problematizam a desassistência do Estado no campo das polí-
ticas públicas educacionais e as precarizações de acesso às tecnologias no ensino
remoto emergencial.

Já o capítulo Pistas (inventivas) para desaprender em tem-


pos de pandemias, escrito por Érica Atem Gonçalves de Araújo Costa e
Thamila Cristina Santos, materializa exercícios de produção de sentido dian-
te da(s) pandemia(s) como signos provocadores de problemas e deslocamentos
no campo de forças no qual se engendram sujeitos, resistências e outros aprisio-
namentos. Para tal, conceitos de experiência, invenção e políticas de formação
são operadores no diálogo com as filosofias da diferença. Além de uma atitude
de escuta do presente, as autoras convocam zonas de problematização e experi-
mentação que pretendem outros contornos às pandemias que nos assolam.

Por sua vez, a seção temática “Saúde” é formada por quatro capítu-
los. A referida seção se inicia com o texto Tecendo laços em meio à pan-
demia de covid-19: relato de experiência sobre um grupo de apoio
psicológico a trabalhadores de serviços essenciais, de Francisco Pablo
Huascar Aragão Pinheiro, Nayana Rios Nunes da Silva, Natacha Oliveira Júlio, Quitéria
Alves Melo, Rafaela Sousa Alves, Cristina Silmara Duarte Rodrigues, Laiza Cristina Ca-
valcante Menezes, Emanuel MeirelesVieira e Louanne Carneiro de Oliveira. A experiên-
cia relatada surgiu como resposta a uma demanda institucional de um serviço
público de água e esgoto que via como imperativo o cuidado com a saúde mental
de seus trabalhadores durante a pandemia de covid-19. Construiu-se, assim,
um ambiente seguro de identificação, compreensão e partilha.Vários problemas
e dificuldades trazidos aos encontros pelos participantes eram preexistentes e
foram agravados pela pandemia. Entre os resultados da intervenção estavam o
desenvolvimento da autonomia e o aprofundamento dos vínculos entre os tra-

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balhadores.

Em O SUS em tempos de pandemia: considerações sobre


erospolítica, Camilla Araújo Lopes Vieira e Raiza Lopes Pires refletem sobre o Sis-
tema Único de Saúde (SUS), em tempos de pandemia de covid-19, destacando
seu papel e o que ele tem conseguido responder. O texto chama atenção para a
resposta positiva e afirmativa do SUS, mesmo diante do desmantelamento das
políticas sociais e desinvestimento estatal. O texto destaca, por fim, a impor-
tância da participação popular e coletiva para superar a crise sanitária de caráter
mundial, sustentando que a verdadeira transgressão revolucionária se dá por
uma erospolítica.

Magda Dimenstein, no capítulo denominado “Tessituras da saúde


mental: modulação dos sofrimentos e governo da vida no Brasil
pandêmico”, aborda o recrudescimento dos processos de vulnerabilização da
população brasileira no contexto da pandemia de covid-19 e seus rebatimentos
na modulação de sofrimento psíquico de forma ampla e violenta. Destaca sua as-
sociação ao colapso ético-político que marca o país e às tecnologias de governo
que acrescentam desvantagens aos sujeitos que já vivem processos de exclusão e
sofrem os efeitos das iniquidades sociais. Afirma, ainda, o entrelaçamento entre
democracia e saúde mental, ressaltando que, embora a produção do sofrimento
psíquico seja uma experiência coletiva e histórica, alguns corpos são mais susce-
tíveis aos efeitos de extermínio das políticas de morte em vigor.

Paulo Henrique Dias Quinderé, Carla Ribeiro de Sousa, Francisca Graziele


Costa Calixto, Janaína Chagas de Sousa, Mariana Ribeiro Pinto e Ticiane Costa Mesquita
assinam o texto O consumo de drogas e a pandemia de covid-19. Nele,
ressaltam que, em meio às mudanças desencadeadas pela pandemia de covid-19
na organização da vida das pessoas, dadas as medidas de isolamento social, o uso
de drogas deslocou-se de uma esfera pública, com fins de socialização, para um

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consumo doméstico privado. É debatido, então, como tal deslocamento produ-
ziu alterações nas formas dos coletivos humanos se relacionarem com as drogas.

Três capítulos conformam a penúltima seção temática: Ética e


Ciência. Um deles é intitulado Ética e Ciência na pandemia de covid-19,
escrito por Natália Santos Marques, que discute duas possíveis explicações do
porquê de as contribuições científicas não serem ouvidas mais vezes durante cri-
ses e fora dessas situações: o distanciamento ciência-sociedade e o negacionismo
científico. São discutidas questões éticas e políticas relacionadas ao fazer ciência
e às implicações da ciência no mundo. A partir dessas considerações, convoca-se
a comunidade científica a trabalhar para a horizontalidade de sua relação com a
sociedade, bem como fortalecer o combate a todo tipo de negacionismo cientí-
fico, inclusive os negacionismos sob a forma de anticientificismo.

Em seguida, o capítulo elaborado por Veriana de Fátima Rodrigues Co-


laço, com o título Pandemia de covid-19 no Brasil: reflexões sobre as
implicações éticas e científicas, traz uma breve conceituação sobre ética
e bioética, focando no enfrentamento dos dilemas e conflitos dos profissionais
de saúde que estão na linha de frente dos trabalhos com os acometidos pela
covid-19. Apresenta, logo após, o cenário político e social quando da chegada
da pandemia no Brasil e discute a articulação entre ética e ciência, refletindo
sobre sua importância para o enfrentamento da doença, que trouxe consequên-
cias brutais em termos mundiais e que, no Brasil, foram intensificadas por uma
política de negação da gravidade do problema e descrença na ciência, agravando
crises na saúde, na economia e nas relações sociais.

Por sua vez, Rita Helena Sousa Ferreira Gomes, em Pensando a ciência
em tempos de pandemia, realiza um ensaio crítico sobre a ciência. No de-
correr do texto, contrasta a relevância da ciência hodiernamente com o modo
como ela é ensinada, inclusive para os(as) cientistas. Logo após, realiza apon-

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tamentos acerca da relação da ciência com outras atividades e áreas do saber,
para compreender possíveis relações entre negacionismo científico, ascensão da
extrema-direita e a forma como temos produzido o conhecimento científico e
tecnológico. Por fim, defende o reconhecimento da ciência como um produto
coletivo e complexo que urge pela assunção formal e constante de sua respon-
sabilidade ética, política e social.

A última seção temática, Sociedade, comporta cinco capítulos. O


capítulo Precarização desigual da vida no contexto pandêmico: da
necropolítica às modulações da clínica, de João Paulo Pereira Barros, Ana
Carolina Borges Leão Martins, Lara Brum de Calais, Dagualberto Barboza da Silva e Car-
la Jéssica de Araújo Gomes, objetiva refletir sobre aspectos psicossociais dos pro-
cessos de precarização desigual da vida no contexto da pandemia de covid-19 no
Brasil. A partir de diálogos com referências como Judith Butler e Mbembe e de
interlocuções com a Psicologia Social e a Psicanálise, destaca como o contexto
de pandemia acentuou o caráter multilinear, multifacetado e interseccional das
desigualdades no Brasil, a relação da pandemia com práticas antidemocráticas
e com a branquitude e as incidências do debate para uma concepção de clínica
não privativa, “deselitizada”, interessada e engajada nas atuais reconfigurações
do espaço público.

Seguindo na tematização dos processos de vulnerabilização, Karla Pa-


tricia Holanda Martins, Aline Gabriele Carvalho de Lima, Angela Teresa Nogueira de
Vasconcelos, Samanta Basso e Tatiana de Souza Santos Neves contribuem com o capí-
tulo Vulnerabilidades em contexto de pandemia: o racismo e a fome
como efeitos de segregação. Este reúne inquietações acerca dos efeitos
subjetivos e políticos que a pandemia de covid-19 potencializou nas pessoas que
já se encontravam em contextos de vulnerabilidades sociais. Faz, assim, uma
leitura da pandemia como uma experiência de catástrofe, assim como aborda

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efeitos da segregação e das vulnerabilidades sociais, quais sejam: o racismo e a
fome. Sob uma perspectiva psicanalítica, discute-se o potencial traumático en-
volvido nos sofrimentos que se atualizam na ruptura que a pandemia propiciou.

No texto Perda, morte e luto na pandemia de covid- 19, Ma-


ria Suely Alves Costa e Luiz Augusto Souza Barbosa discutem aspectos relacionados
à morte, ao morrer e aos contextos de perdas diante do cenário pandêmico.
Frisam, não obstante, que outras perdas vivenciadas na pandemia e os seus im-
pactos também devem ser considerados no estudo do luto e da saúde mental,
indicando a necessidade de trabalhos consistentes e sistemáticos sobre o proces-
so de luto e os estigmas envolvidos, bem como o desenvolvimento de programas
em educação e saúde sobre o advento da perda.

O capítulo O ornitorrinco em meio à pandemia: notas sobre


covid-19, crises e gestão de mortes, produzido por Aluísio Ferreira de Lima,
trata da apresentação dos modos como a crise econômica mundial de 2008 e
a subsequente crise política que foi instaurada a partir de então se tornaram
os elementos essenciais de ascensão da extrema-direita ao governo federal em
2018. Além disso, assinala como o primeiro ano de gestão do presidente Jair
Bolsonaro focou no desmonte de importantes políticas públicas e favorecimen-
tos aos grupos específicos de apoiadores, sobretudo para tentar tornar opacas
as denúncias contra sua família. Finalmente, faz uma discussão sobre a gestão
política da pandemia e os impactos que a forma de administração das mortes
tem produzido na população.

O livro se encerra com o capítulo Metodologias ativas e parti-


cipativas no enfrentamento das desigualdades sociais com popula-
ções indígenas. Nele, Zulmira Áurea Cruz Bomfim, Maria Zelfa de Souza Feitosa
Oliveira e Nara Maria Forte Diogo Rocha objetivam discutir caminhos que possam
contribuir para o enfrentamento das desigualdades sociais e vulnerabilidades

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presentes no contexto dos povos indígenas. Suas reflexões são orientadas pelas
seguintes questões: como caminhar junto com essas populações para a concreti-
zação dos direitos indígenas? Qual o papel da Universidade e da Psicologia nesse
processo? Quais as possibilidades de aproximações entre a Universidade Federal
do Ceará, neste momento de pandemia mundial de covid-19, e as populações
originárias?

Portanto, o caráter inovador e original desta obra encontra-se na sua


proposta de discutir a pandemia de covid-19 no contexto brasileiro, a partir
da psicologia, dialogando sobre educação, saúde, ciência e sociedade. A diver-
sidade teórico-metodológica de seus capítulos e sua derivação de uma ação de
inserção social no âmbito de duas pós-graduações em psicologia no nordeste
brasileiro, uma das regiões mais afetadas pelas desigualdades históricas do país,
também indicam o potencial de inovação deste livro. A relevância e o impacto
das discussões trazidas a seguir estão relacionados ao seu potencial crítico e à
atualidade dos conceitos e subtemas levantados, o que resulta em contribuição
academicamente arguta para o enfrentamento de desafios nacionais produzidos
ou agravados pela pandemia.

Referências

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18
Parte 1

Educação

19
01

A pandemia que amplia as desigualdades: obstáculos da


educação pública diante do ensino remoto

Francisca Denise Silva Vasconcelos, Bárbara Ellen Viana Sales, Jorge Samuel de
Sousa Teixeira e Luana Paiva da Silva

A pandemia do novo coronavírus trouxe consigo uma diversidade de


novos desafios para a vida em sociedade. As adequações necessárias a um conví-
vio que minimize os riscos de contaminação atravessam desde o campo da higie-
ne até o distanciamento entre corpos, resultando em hábitos que, até então, não
eram vistos enquanto práticas essenciais à manutenção da vida. Dentro desse
contexto de novidades que emergiram no cenário pandêmico, a interrupção de
uma imensa variedade de serviços e setores abalou toda a teia social e fez com
que algumas alterações se tornassem obrigatórias. Tal situação fica clara diante
do fechamento das escolas, que culminou em uma modalidade de ensino em que
o conteúdo é passado por meio de uma tela, o chamado ensino remoto.

Sendo a escola um local propício a uma probabilidade de contami-


nação em massa, tendo em vista a gama de trocas e mobilidades de sujeitos de
diferentes faixas etárias (ARRUDA, 2020), a imposição de uma modalidade de
ensino a distância é tanto uma alternativa para a contenção de uma ameaça à
saúde pública em escala global, mas também acabou sendo um modelo propul-
sor das desigualdades socioeconômicas há muito vigentes em nosso território. A
necessidade de instrumentalização para o acesso aos conteúdos ministrados, tais
como celulares e/ou notebooks, além da indispensabilidade da internet para o

20
acompanhamento das aulas são alguns obstáculos enfrentados pelos estudantes
brasileiros, em especial, aqueles que compõem a educação pública.

Dessa forma, compreender que o atual cenário vivenciado gera im-


pactos não só na área da saúde, mas expõe feridas abertas há bastante tempo
na história do nosso país, torna-se essencial, sobretudo quando se constata que
estamos diante de uma questão interseccional, em que as variáveis de raça e
classe são fundamentais para se entender o distanciamento que acaba sendo não
apenas social, mas que também é um distanciamento no que diz respeito à chan-
ces de vida e apropriação de bens (SOUZA, 2003). Assim, discutir a respeito das
adversidades emergidas pela educação remota em consequência da pandemia
torna-se um exercício de extrema relevância, principalmente para o campo da
psicologia, visto que as dificuldades surgidas em decorrência desse ineditismo
podem ser potentes geradoras de sofrimentos subjetivos àqueles mais atingidos
pela presente situação.

Metodologia
Nosso estudo tem ênfase na Análise de Conteúdo de publicações es-
critas e divulgadas por diferentes sites nacionais acerca da educação da juventu-
de nordestina na escola pública no período de pandemia de covid-19. Analisa-
mos um conjunto de matérias jornalísticas publicadas entre 1º de março e 30 de
setembro de 2020, a partir de uma pesquisa com os descritores “Pandemia”, “Es-
cola Pública” e “Ensino Médio” no Google Notícias. Esse intervalo temporal foi
escolhido por compreender desde o início do confinamento, com o fechamento
das escolas, até o retorno gradativo das atividades escolares e as dificuldades que
cercam esse retorno até o momento.

No total, tivemos 210 resultados, porém, tínhamos como critério de


inclusão os escritos que versavam sobre as vivências dos estudantes da escola

21
pública nesse período de pandemia, considerando apenas as matérias que trou-
xessem dados ou questões, no todo ou em parte, acerca do contexto nordestino.
Como critério de exclusão consideramos a indisponibilidade do artigo na ínte-
gra e de forma gratuita, além do fato de não estarem voltados para a temática
proposta. Assim, fazem parte do corpus deste estudo seis textos que abordam
diferentes questões acerca da relação entre juventude, escola pública e desigual-
dades, aspectos que nos levaram a trazer considerações acerca dos obstáculos do
ensino remoto (DIÁRIO DO NORDESTE, 2020a, 2020b, 2020c, 2020d; G1,
2020a, 2020b). As etapas metodológicas percorridas podem ser visualizadas
na Figura 1, contendo também os aspectos quantitativos obtidos em cada fase.

Figura 1 – Etapas da coleta de dados.


Fonte: Elaboração própria (2021).

Resultados e Discussão
A noção de tema, característica da Análise de Conteúdo, possibilita
uma descoberta dos núcleos do sentido que compõem o processo de comunica-
ção, em que sua presença e nível de frequência podem significar algo relevante
ao objetivo analítico escolhido (BARDIN, 1977), neste caso: compreender os
obstáculos da educação remota e seus impactos sobre os estudantes de escolas
públicas. Desse modo, por meio da análise e interpretação dos conteúdos te-

22
máticos foi possível formar as seguintes categorias: as dificuldades referentes à
estrutura; os obstáculos da preparação para o Enem; e o impacto das vulnerabi-
lidades sociais que atravessam essa juventude.

“Punidos pelas desigualdades”: a juventude da escola pública dian-


te da (in)acessibilidade do ensino remoto
O Estado brasileiro, a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais
Gerais para a Educação Básica, assume como fundamento essencial a responsa-
bilidade pela garantia da democratização do acesso, inclusão e permanência das
crianças, jovens e adultos na instituição educacional (BRASIL, 2013). Entretan-
to, o que fazer diante do desafio de uma educação confinada? Quais as dificul-
dades que atravessam o acesso desses sujeitos durante o período de pandemia?
A partir do que encontramos nas matérias selecionadas, fica evidente que os
obstáculos referentes à falta de acessibilidade aparecem como a primeira ques-
tão para os estudantes da escola pública.

O ensino remoto foi “forçado” pelo avanço da pandemia, e alguns alu-


nos da escola pública enfrentam a já antiga realidade de ter que lidar com aspec-
tos como o acesso limitado ou inexistente à internet, a falta de dispositivos tec-
nológicos e de espaço em casa. Assim, esse formato de ensino acaba por trazer
à tona desigualdades que estavam sendo invisibilizadas, considerando que uma
parcela significativa dos estudantes tem sido excluída do processo de aprendiza-
do remoto (BARRETO; ROCHA, 2020; SILVA; SANTOS, 2020).

A educação em formato on-line pressupõe que todos estejam conecta-


dos e integrados, mas é difícil mensurar o quanto, de fato, os alunos têm acesso.
Segundo a pesquisa TIC domicílio, realizada em 2018, 30% dos lares brasileiros
não possuem internet, sendo a maioria constituída por residências de pessoas
mais pobres (BARRETO; ROCHA, 2020). Entretanto, os diferentes sites e ar-

23
tigos que consultamos trazem diferentes dados, a partir de pesquisas realizadas
em diferentes regiões e anos. Desse modo, é importante considerar que seria
possível contabilizar um lar como tendo acesso à internet, mas com base em
um celular que fica sempre fora de casa por conta do trabalho de um membro
da família, ou mesmo que se tenha um computador em casa, mas que este seja
compartilhado com vários irmãos, o que faz com que seja difícil quantificar essa
questão do acesso.

Assim, a utilização do ensino remoto trouxe discussões acerca das bar-


reiras que seriam criadas dentro do próprio ambiente escolar, passando-se da
“exclusão da escola” à “exclusão na escola”, sendo este o processo de produção
de desigualdades no desempenho de estudantes inseridos na mesma unidade
escolar. Diante do cenário construído pela covid-19, fica evidente que a neces-
sidade de conectividade faz com que as desigualdades se tornem maiores, e a
escola fica designada àqueles que têm recursos, os herdeiros, como denominou
Bourdieu (2015). Com isso, mais do que evidenciar as diferenças dentro da pró-
pria escola pública, o que se apresenta com maior destaque são as desigualdades
entre as classes sociais (BARRETO; ROCHA, 2020; SILVA; SANTOS, 2020).

Se, de um lado, temos as famílias mais abastadas, com acesso a apa-


relhos, espaço e conectividade; de outro, temos uma população desprovida de
todos esses recursos, lutando pela sobrevivência e sendo os mais impactados
diante dos efeitos da pandemia no mundo (BARRETO; ROCHA, 2020). Com
relação a essas desigualdades, vemos nessas oportunidades de acesso o resultado
de uma seleção desigual que pesa sobre os sujeitos das diferentes classes sociais,
o que acaba por prejudicar as menos favorecidas (BOURDIEU, 2015).

Dessa forma, fazer uso das tecnologias na educação básica se constitui


como uma situação que requer maior atenção, sendo importante levar em conta
a realidade tecnológica e residencial da juventude inserida nas escolas públicas.

24
Estamos vivendo tempos difíceis com a pandemia, sendo necessário desenvol-
ver, urgentemente, políticas públicas de igualdade educacional, pensando em
ações voltadas para o combate às desigualdades vivenciadas por esses sujeitos
(BARRETO; ROCHA, 2020).

Diante das matérias encontradas, vemos que as estratégias que estão


sendo utilizadas para atingir o maior número de alunos possível contam com:
aulas via televisão ou via rádio; videoaulas gravadas; aulas nas redes sociais; dis-
ponibilidade de plataformas gratuitas; materiais impressos entregues em domi-
cílio; proximidade dos professores; e algumas tentativas de compra de equipa-
mentos para os estudantes sem acesso a esses recursos, medidas essas que de
certo modo parecem buscar acolher e reverter os obstáculos de acesso.

Mesmo com todas essas estratégias, as matérias trazem que muitos


estudantes ainda estão sendo “punidos pela desigualdade”. A educação como di-
reito de todos não deveria excluir e gerar mais desigualdades neste período pan-
dêmico, muitas vezes reduzindo o processo educativo apenas ao cumprimento
de conteúdos e carga horária. Assim, uma educação que objetive transformar a
sociedade deve estar pautada na possibilidade de igual acesso ao conhecimento,
o que não ocorre para alguns estudantes da escola pública desde antes da pan-
demia, mas que agora foi evidenciado, devendo ser algo a ser combatido em
razão da possibilidade de agravamento e cristalização das desigualdades sociais
nas próximas gerações (SILVA; SANTOS, 2020).

Preparação para o Enem em tempos de pandemia: quando as pro-


vas conteudistas se aliam às provas sociais
A partir das análises feitas com base nas notícias pesquisadas em acer-
vo digital, uma das categorias que surgiu dizia respeito à preparação dos alunos
da rede pública de ensino que iriam prestar o Exame Nacional do Ensino Médio

25
(Enem). Inicialmente prevista para ocorrer entre os dias 1º e 8 de novembro de
2020, o adiamento da prova foi tema recorrente na mídia nacional, sobretudo
durante o período de pandemia, no qual os secundaristas tiveram que abrir mão
do ensino presencial e embarcar em uma nova modalidade.

Diante desse cenário, as principais queixas que surgiam por parte dos
alunos, dentro das matérias analisadas para a construção deste capítulo, diziam
respeito ao conteúdo insuficiente e às dificuldades de captação das matérias mi-
nistradas, visto que, partindo de um cenário nacional onde o abismo social e
econômico é visível, os obstáculos relacionados à instrumentalidade dos alunos
oriundos de classes populares acabavam por afetar seus desempenhos escolares.
Nesse sentido, uma diversidade de fatores está inclusa dentro desse emaranhado
de empecilhos que vão desde a relação com a família e professores até a manu-
tenção da saúde mental e da socialização entre pares.

O processo de preparação para uma prova em âmbito nacional, por


si só, já traz abalos emocionais suficientes para causar impactos no estado de
bem-estar de um indivíduo (DONATO, 2017). Somando-se a isso o caos pro-
vocado pelo contexto pandêmico, as dificuldades atravessadas pelos estudantes
que estão cursando o ensino médio no ano vigente parecem ser multiplicadas
a proporções ainda maiores. O convívio familiar aparece, então, como uma va-
riável importante para se pensar o montante de elementos que resultam em um
ano letivo atípico e desafiador para todos aqueles que compõem o corpo escolar.

A ausência de um familiar que possa prestar um possível auxílio e


acompanhamento (HAMMERSCHMIDT; SANTANA, 2020), somada à baixa
escolaridade dos pais, pode tornar o contexto ainda mais conflitante em um
terreno já bastante prejudicado. Além disso, é importante considerar ainda o
fato de a instituição familiar em si mesma ser um núcleo propenso a desarranjos
e desavenças (HAMMERSCHMIDT; SANTANA, 2020). Dentro dessa lógica, a

26
ausência de instrumentos, tanto emotivos e afetivos quanto materiais e estrutu-
rais, considerando ainda os inconvenientes arquitetônicos, tais como a falta de
um cômodo na casa que seja minimamente silencioso e voltado aos afazeres es-
colares do aluno, acabam por contribuir, junto à pandemia, para que o caminho
tão almejado até a universidade se torne mais distante e heterogêneo.

Para além do conteúdo, os cuidados referentes à saúde mental dos


discentes também se atrelam dentre os fatores incluídos na preparação para o
Enem em tempos de pandemia. Os prejuízos à socialização em decorrência do
isolamento social acabam por subtrair aquele que era, talvez, o único local em
que o estudante podia ter acesso a um círculo de amizades e relacionamentos
interpessoais dentro de seu contexto. Além disso, fatores como situação finan-
ceira/econômica, medo de infecção, frustração e tédio também são constituin-
tes de possíveis efeitos que podem trazer agravos ao bem-estar psicossocial dos
estudantes (RODRIGUES et al., 2020).

A partir dos relatos vistos nas matérias, percebemos ainda que os


agravos à subjetividade dos indivíduos não se restringem apenas ao grupo de
alunos, mas se generalizam também ao corpo docente. Diante do esgotamento
com o horário de trabalho que aparenta não ter mais um limite quantitativo,
além das dificuldades em lidar com as ferramentas tecnológicas atreladas à cria-
ção de novas metodologias que possam dar conta do repasse de todo o con-
teúdo proposto, professores e gestores escolares também são alvo do desgaste
físico e emocional causado pelas sequelas sociais e comportamentais trazidas
pela pandemia, o que pode ser constatado não só pelos fatos supracitados, mas,
sobretudo, pelo aumento de reportagens que apontam para um crescimento na
venda de remédios antidepressivos em decorrência da ansiedade e do próprio
isolamento social (FAUSTINO; SILVA, 2020).

Com base no exposto, percebemos então que o contexto de isola-

27
mento social em consequência de uma pandemia capaz de causar uma crise na
saúde pública, aliado a um desgaste físico e emocional decorrente de uma série
de fatores externos, culmina em um processo subjetivo doloroso e repleto de
impasses que podem agravar ainda mais a separação de classes e reforçar a per-
petuação de um sistema socioeconômico piramidal vigente no meio social.

Vulnerabilidade social e Ensino a Distância: entre a educação e a


sobrevivência
Em vista do enorme impacto ocorrido por conta da alta taxa de contá-
gio do novo coronavírus, muitas estratégias emergenciais de prevenção tiveram
que surgir. Entretanto, pouco se é falado sobre as consequências negativas que
o isolamento social traz, para além de seu auxílio no combate a esse novo vírus.
Em nossas buscas a matérias que expressassem como está vivendo a população
pobre do Brasil, deparamo-nos com o agravamento de situações de instabilida-
de afetiva, emocional, social e financeira das classes mais baixas da população
brasileira, o que consideramos como vulnerabilidade social. Ademais, também
deve-se corroborar os impactos que essas instabilidades trazem no sistema edu-
cacional brasileiro. Dessa forma, é imprescindível que sejam apresentados os
principais temas que influenciam nas impossibilidades do Ensino a Distância
(EaD) para as camadas populares: a começar pelo aumento da fome no país.

Há muito, o problema da fome já era questão a ser discutida nas pen-


dências de cuidados do Estado, questão que começou a ser tratada apenas há
poucos anos, com a implantação de ações governamentais que visavam à dimi-
nuição desse quadro preocupante (SOUZA; DAINEZ, 2020). É de se considerar
que, por um momento, pudemos vislumbrar o sucesso dessa medida efetiva,
porém, logo em seguida, visualizamos seu fracasso com a chegada de uma im-
prevista pandemia (RIBEIRO-SILVA et al., 2020). Aqui, é importante destacar-
mos, inicialmente, que essa situação de fome ainda pode ser mais alarmante se

28
somada à falta de vínculo empregatício, também agravada pela covid-19.

Tanto a fome quanto o desemprego reviveram um cenário de impos-


sibilidades, dentre elas, a da educação. Com o isolamento social e a proibição de
aglomerações, as escolas necessitaram de novas formas que permitissem a che-
gada do ensino aos alunos, o que, posteriormente, foi traduzido no Ensino a Dis-
tância. Entretanto, essa forma de ensino não demorou a se mostrar inalcançável
para alguns. Principalmente aos mais pobres, as aulas remotas se apresentaram
como um desafio, em vista de outras necessidades, sendo a principal de todas,
a sobrevivência. Tal fato nos instiga à reafirmação da existência da desigualdade
social, que está, inclusive, além da desigualdade estrutural de acesso ao conteú-
do (SOUZA; DAINEZ, 2020).

A questão que gostaríamos de trazer com este tópico é: como se preo-


cupar em assistir às aulas quando a fome é tão barulhenta? Dessa forma, não
demoramos a concluir que, a esses jovens estudantes, as necessidades financeiras
falam mais alto do que as educacionais.

Da mesma forma, outra variável se torna importante ao falarmos so-


bre as dificuldades de uma educação remota, que seria uma nova obrigação,
além das já existentes, de cuidar de parentes contaminados e/ou com altos ris-
cos de contaminação. A rotina de estudos é, então, afetada, e muitas vezes não
permite que haja flexibilidade entre as atividades domésticas e acadêmicas; os
jovens precisam adaptar-se de acordo com suas necessidades, mas essa nem sem-
pre é uma saída possível (MÉDICI; TATTO; LEÃO, 2020).

De acordo com as pesquisas realizadas nos jornais, percebeu-se que


tais questões entram como uma sobrecarga emocional e física aos estudantes,
agravando os casos de ansiedade e pânico, principalmente em épocas próximas
ao vestibular. Nos ficou claro, após nossas pesquisas, que há uma maior chance

29
de evasão escolar diante deste cenário e, talvez, a incerteza da volta dos alunos
que já não conseguem mais prosseguir com o Ensino a Distância.

Por fim, e não menos importante, outra variável que também ficou
presente em nossas pesquisas estava relacionada à violência, seja ela física, psí-
quica ou sexual. Compreendemos, a partir de Bourdieu (2015), que a escola,
para além de local legitimador de desigualdades, também é espaço de acolhi-
mento, o que contribuiria para que os jovens pudessem “escapar” de suas rea-
lidades em casa (MARQUES et al., 2020). Entretanto, devido ao período de
confinamento, os estudantes ficam expostos a quaisquer tipos de agressão que
podem vir a ocorrer no espaço da casa, não podendo, inclusive, buscar ajuda em
outros locais devido ao fechamento obrigatório de creches, igrejas, serviços de
proteção, dentre outros (MARQUES et al., 2020).

Em uma pesquisa feita em parceria com o Ministério da Mulher, da


Família e dos Direitos Humanos, a partir de dados do Ligue 180 (MARQUES et
al., 2020), contatou-se o aumento de 17% das denúncias contra agressão às mu-
lheres apenas no mês de março, e teme-se que os resultados seriam ainda mais
alarmantes se a pesquisa se estendesse também aos idosos e às crianças. Dessa
forma, ainda que não seja o estudante a estar exposto a esse cenário de agressão,
é necessário apenas que um de seus parentes seja vítima desse tipo de violência,
para reafirmar, muitas vezes, sua decisão de desistência do ensino remoto.

Nesse sentido, compreendemos que todas as variáveis aqui expostas,


estando sozinhas ou em conjunto, são responsáveis por abrir as portas da evasão
escolar, contribuindo para que os estudantes, temporariamente ou definitiva-
mente, não pensem na educação como assunto urgente, em vista do enorme
cenário de impossibilidades a que são expostos.

30
Considerações finais
Este trabalho teve como objetivo a iniciativa de buscar em notícias,
em âmbito do Nordeste, a exposição de dados que apresentassem o quadro de
impossibilidades do Ensino a Distância para jovens pobres estudantes de escolas
públicas. Diante dos fatos expostos, reafirmamos nossas suposições iniciais so-
bre a existência da desigualdade social de condições de acesso ao ensino remoto
diante da pandemia de covid-19 e nos propomos a analisar as variáveis negativas
no isolamento social, tão necessário para o combate desse novo vírus, porém tão
legitimador de barreiras entre a pobreza e a educação.

Assim, compreende-se que, em um cenário perturbador como este,


o auxílio de professores, gestores ou parentes, que têm condições de estar em
contato com os estudantes afetados negativamente pelo isolamento social, tor-
na-se de extrema importância para que seja possível a diminuição da evasão dos
alunos do sistema educacional e, posteriormente, que possam retornar à escola
em condições presenciais de ensino, com o mínimo de prejuízo possível causado
pelos obstáculos impostos.

Destarte, também instigamos que a readaptação à escola, em um mo-


mento pós-pandemia, não se apresente simplesmente como uma “volta às au-
las”, mas que leve em consideração o retorno atravessado de marcas deixadas
pela covid-19 nesses jovens, e que promova uma educação que não ignore as
falhas e faltas que virão a aparecer nos resultados posteriores, o que já nos alerta
para a necessidade de uma educação mais atenta e subjetiva, que não reafirme
ainda mais as vivências de dor causadas em meio à pandemia.

31
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35
02

Contextos desiguais na escolarização em tempos de pan-


demia

Luciana Lobo Miranda, Tadeu Lucas de Lavor Filho, José Alves de


Souza Filho, Lara Thayse de Lima Gonçalves, Mayara Ruth Nishiyama Soares,
Lorrana Caliope Castelo Branco Mourão, Paulo Francis Jorge da Silva, Antonio
Marlon Coutinho Barros e Luisa Carolina Holanda Pereira

Notas introdutórias de nossas implicações


Neste presente texto, desejamos articular um conjunto de discus-
sões/problematizações acerca dos processos de vulnerabilização dos atores es-
colares, frutos dos contextos de desigualdades sociais que atravessam, de modo
especial, a escolarização presente nas escolas públicas, em tempos de isolamento
social, decorrente da pandemia de covid-19. Nossas inquietações partem dos
trabalhos que desenvolvemos por meio do projeto de extensão “É da nossa es-
cola que falamos”1, vinculado ao departamento de Psicologia e ao programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará (UFC), que
reúne graduandos, pós-graduandos e professores interessados na interface Psi-
cologia e Educação. A partir desse lugar de fala, no dia 1º de junho de 2020,
no módulo “Educação e vulnerabilidade em tempos de isolamento social”, do
curso “Aspectos Psicossociais das Vulnerabilidades no Contexto da Pandemia

1 O Projeto “É da nossa escola que falamos” está vinculado ao Laboratório em Psico-


logia, Subjetividade e Sociedade (LAPSUS) e encontra-se cadastrado na Pró-reitora
de Extensão (PREX) da UFC, onde possui bolsa de extensão. O projeto existe desde
2018 e tem como objetivo fomentar a participação de estudantes, professores e ges-
tores como agentes pesquisadores de seu cotidiano escolar.

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Covid-19”, a profa. dra. Luciana Lobo Miranda, como coordenadora da referida
extensão e orientadora de diversas pesquisas desenvolvidas com escolas, trouxe
uma série de questões sobre a migração abrupta dos processos de escolarização
para o mundo virtual. Na ocasião, foram abordadas as preocupações de nos-
so coletivo de pesquisa/extensão sobre as condições psicossociais de (im)per-
manência dos vínculos escolares, quando as tecnologias, hoje, configuraram-se
como os principais meios de comunicação entre os atores, desde a transmissão
didático-pedagógica do currículo até a manutenção de vínculos entre membros
da comunidade escolar. Tendo como base a aula no referido módulo e, agora,
ampliada como um texto coletivo, daremos prosseguimento às discussões que
temos travado este ano.

Inspirados em Lourau (1996), podemos afirmar que nos encontramos


assim objetivados por aquilo que pretendemos objetivar. Isto é, falar sobre a
escola em tempos de pandemia é dizer dos nossos próprios desafios enquan-
to pesquisadores e extensionistas em manter as interações com o campo neste
novo contexto, mas é também dizer de algo que tem nos afetado em nosso
dia a dia, enquanto discentes e docentes de graduação e pós-graduação de uma
universidade pública. Assim, as reflexões a seguir compõem nossas implicações
primárias e secundárias (PAULON, 2005) sobre o eixo pandemia, educação pú-
blica e desigualdade social.

Sobre desigualdades...
As questões de desigualdades sociais possuem diferentes contornos na
estruturação dos espaços sociais. Estas não deixaram de permanecer com suas
evidências em um período no qual a escola pública encontra-se, por um lado,
desafiada à manutenção da escolarização e, por outro, desassistida por políticas
públicas nacionais que garantam suporte e segurança. Vale ressaltar que cerca
de 30% dos estudantes da rede pública não possuem computador e internet de

37
qualidade para acessar às plataformas de ensino remoto, sendo muitas vezes ne-
cessário o uso do celular, por meio de pacotes de dados, o principal dispositivo
de conexão (AVELINO; MENDES, 2020). Dessa forma, questiona-se: como
planejar e desenvolver atividades pedagógicas por plataformas virtuais quando
nossos professores carecem de formação, seja inicial ou continuada, de conheci-
mentos técnicos e didáticos para a construção dos processos de ensino-aprendi-
zagem? (TODOS PELA EDUCAÇÃO, 2020).

No que se refere à própria disponibilidade de adesão de nossos alunos


e professores a permanecerem no ensino remoto, que necessita de uma auto-
nomia/criatividade de docentes e discentes para a aprendizagem, a organização
das estratégias on-line acabou por, ao contrário, pautar-se pela transmissão ver-
ticalizada entre prazos, metas e obrigações (AVELINO; MENDES, 2020). Ain-
da, as próprias condições de sobrevivência dos alunos, os quais tinham na escola
um território de proteção, seja pelo acesso à merenda escolar, seja por provocar
distanciamentos de contextos de violência e exploração, ou mesmo por ter na
escola relações e vínculos afetivos constituídos em novos projetos e alternativas
de vida, encontram-se agora comprometidas (UNICEF, 2022).

A pandemia não só deu visibilidade às vulnerabilidades no campo edu-


cacional, mas também nos campos da saúde e economia. É estimado um déficit
de um trilhão de dólares na economia mundial advindo de gastos para a saúde
e sustento de famílias que foram diretamente afetadas. No entanto, a pandemia
repercutiu mais ainda de forma negativa em relação às pessoas que já se encon-
travam em situação de vulnerabilidade social, como, por exemplo, trabalhado-
res informais, pessoas em condições precárias ou sem moradia, como também
aquelas que tinham dificuldade de acesso à saúde (ESTRELA et al., 2020).

No campo educacional, a pandemia escancarou a desigualdade entre


aqueles que têm acesso e os que não têm acesso à internet. Segundo a Pesquisa

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Nacional por Amostra de Domicílio Contínua, realizada pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), em 2018, houve um aumento de 79,1% no
acesso à internet nos domicílios brasileiros naquele mesmo ano, se comparado
a 2017, que foi de 74,9%. No entanto, é preciso observar que o rendimento
médio per capita dos domicílios em que havia internet apontado pela pesquisa
(R$1.749) é muito superior em relação aos que não a utilizam (R$940). Na
época, os motivos elencados foram: não havia interesse, o serviço era caro e
nenhum morador sabia utilizar. Dessa forma, é importante atentar que as desi-
gualdades sociais demarcam quem tem e quem não tem acesso à rede mundial
de computadores (IBGE, 2018).

Outro fator relevante que a pesquisa apontou foi o principal meio de


utilização da internet ser através do celular (IBGE, 2018), o que nos traz outros
questionamentos relacionados às vulnerabilidades sociais e econômicas relacio-
nadas à pandemia e à escola. Se antes o celular era evitado nos contextos escola-
res (MIRANDA; KHOURI; FEITOSA, 2017), agora os chamados smartphones
passaram a assumir uma centralidade como acesso ao conteúdo pedagógico.

Por fim, devido a todas as vulnerabilidades sociais e econômicas da


pandemia, dois fenômenos simultâneos podem também ocorrer: primeiro, a
migração de estudantes da escola particular para a pública; segundo, a evasão
escolar de estudantes de escolas particulares e públicas, por dificuldades em
seguir o novo “cronograma” escolar (ESTRELA et al., 2020).

Segundo os dados do Centro de Inovação para a Educação Brasileira


(CIEB, 2020), em 54% dos municípios as estratégias ainda permanecem como
ideia e 45% dos estados ainda planejam como executar; apenas 10% dos mu-
nicípios e menos da metade dos estados analisados possuem, efetivamente, um
processo estruturado de implementação. Esse cenário mostra a dificuldade das
escolas com a situação da urgência da articulação de formas que possam dar

39
conta do ensino e a omissão de medidas nacionais que possam auxiliar de modo
articulado e efetivo, considerando as dificuldades de acesso e o despreparo dos
educadores.

Em vista disso, as próximas reflexões buscarão ampliar nossas per-


cepções sobre essa conjuntura, considerando a continuidade de metodologias
e quais as rupturas necessárias que as escolas precisam fazer para se adaptar ao
ensino remoto, além das dificuldades de manutenção do vínculo escolar e da
qualidade de acesso.

Territórios sociais desiguais e processos de escolarização no con-


texto de pandemia
A transposição da escola física para uma escola virtual, do ensino pre-
sencial para um ensino remoto, da sala de aula para uma plataforma de confe-
rência assíncrona e síncrona, tem potencial de evidenciar as múltiplas condições
de educação, trabalho docente, condições de aprendizagem e realidades sociais
diversas que precisam ser convocadas por uma perspectiva estrutural e social
da educação no Brasil (FRANÇA FILHO; ANTUNES; COUTO, 2020). Não
obstante, a proposta de ensino remoto parece atender às demandas mercadoló-
gicas incessantes da iniciativa privada e, quando comparada à realidade da edu-
cação pública, evidencia-se uma condição de iniquidade e precarização da polí-
tica pública educacional. O que se legitima no ensino remoto ou nos processos
educacionais de Ensino a Distância (EaD) vigentes na pandemia favorece uma
suposta “produção de educação” em larga escala que, em tese, permitiria uma
abrangência de acesso quase que global a uma educação de qualidade (ALVES et
al., 2020).

Entretanto, temos acompanhado cotidianamente a inacessibilidade de


determinadas populações à educação, diminuindo sua participação nos espaços

40
de ensino, em discordância com a aparente democratização da “educação vir-
tual”. Com isso, em meio às desigualdades de acesso e intensificação de discre-
pâncias sociais, o governo, por meio de falas como a do atual ministro da educa-
ção, Milton Rocha, reconhece a crise acarretada pela covid-19 na educação, mas
afasta do Ministério da Educação (MEC) a possibilidade de intervir no enfrenta-
mento das dificuldades de acesso por parte de estudantes, ou de envolver-se no
processo de reabertura das escolas. Em resposta a perguntas feitas de maneira
direta sobre o assunto, o ministro afirma:
Esse problema [fala sobre a acentuação das desigual-
dades educacionais de alunos que não possuem acesso à internet
devido à pandemia] só foi evidenciado pela pandemia, não foi
causado pela pandemia. Mas hoje, se você entrar numa escola,
mesmo na pública, é um número muito pequeno que não tem o
seu celular. É o Estado e o município que têm de cuidar disso aí.
Nós não temos recurso para atender. Esse não é um problema
do MEC, é um problema do Brasil. Não tem como, vai fazer
o quê? É a iniciativa de cada um, de cada escola. Não foi um
problema criado por nós. A sociedade brasileira é desigual e não
é agora que a gente, por meio do MEC, que vamos conseguir
deixar todos iguais (SOARES, 2020).

Essa fala cínica é alegórica da omissão do governo federal diante dos


problemas enfrentados pelo país e mostra marcadamente uma desresponsabi-
lização do Estado frente a essas questões, prática comum de uma política de
governo que defende um Estado mínimo. Defrontamo-nos, assim, com o des-
comprometimento diante das desigualdades sociais que, apesar de construídas
e solidificadas muito antes da pandemia, vêm sendo aprofundadas no contexto
atual.

Autores como Macedo, Ornellas e Bomfim (2020) e Sposati (2020)


ratificam que condições desiguais assolam, principalmente, populações mais
vulneráveis e periféricas, fortalecendo discursos meritocráticos que privilegiam
determinados sujeitos que possuem acesso adequado a tecnologias e recursos

41
educacionais. Dessa forma, a partir de estratégias propagandísticas que vendem
a ideia de que “O Brasil não pode parar” devido à pandemia, refletimos sobre
quem, de fato, pode “não parar” nessa lógica, e quais iniquidades sociais se apre-
sentam e se intensificam neste cenário.

São os territórios, em primazia, periféricos, pobres, marginalizados


e habitados, na grande maioria, por corpos racializados que desmontam o ex-
termínio da população na letalidade da pandemia, e que reverberam na desar-
ticulação de políticas assistenciais de saúde e proteção social para as comunida-
des vulnerabilizadas (MACEDO; ORNELLAS; BOMFIM, 2020). Dentro dessa
perspectiva de reflexão sobre a educação que Bezerra et al. (2020), por meio
de uma pesquisa realizada com uma amostra de 16.440 pessoas, analisou que:
35% das pessoas com baixa escolaridade e renda tiveram maiores prejuízos fi-
nanceiros na vigência rígida do isolamento social, e que 73% das pessoas que
residem em condições precarizadas e subumanas de moradia não conseguiram
se adequar ao isolamento social. Tais dados evidenciam maiores riscos de con-
taminação e transmissão da propagação do novo coronavírus nessas populações.

Dados relacionados às dificuldades de acesso ao ensino remoto enfren-


tadas pelos estudantes das escolas públicas do país, produzidos pela TIC Educa-
ção 2019, ainda no contexto pré-pandemia, apontavam que 39% dos estudantes
de escolas públicas urbanas não têm computador ou tablet em casa, enquanto
o índice em escolas particulares chega apenas a 9%. A mesma pesquisa colocou
em pauta ainda as diferenças de acesso de acordo com as regiões do país, mos-
trando que o uso exclusivo da internet por meio de aparelhos de celular por
estudantes nas regiões Norte (26%) e Nordeste (25%) é maior se comparado
às demais regiões – Sudeste (14%), Sul (14%) e Centro-oeste (15%). Outro
importante dado apresentado foi que apenas 24% do total de escolas localizadas
em áreas rurais possui acesso à internet (CETIC, 2019). Esses dados podem nos

42
servir de base para supor como tem sido, na atual conjuntura, a desigualdade de
acesso entre jovens durante o ensino remoto.

Outro ponto de destaque concernente aos problemas de acesso à edu-


cação diz respeito aos dispositivos de ingresso ao Ensino Superior, que ainda
carregam em si um caráter eminentemente meritocrático e elitista, malgrado a
política de cotas existente (BRASIL, 2012). O instituto SEMESP (2020) com-
pilou dados que corroboram isso. Uma pesquisa realizada em 2018 e publicada
em 2020 mostra que há uma enorme discrepância em termos de classe social,
em que 61,9% dos jovens de 18 a 24 anos que possuem renda domiciliar de
mais de oito salários-mínimos cursam o Ensino Superior, enquanto para jovens
com renda familiar de até meio salário-mínimo esse número cai para 10,5%.
Ademais, é possível visualizar também a exclusão de determinados corpos em
termos de raça/cor, em que apenas 14,7% dos jovens que se autodeclaram pre-
tos e 11,7% dos que se declaram pardos estão matriculados em uma graduação
no Ensino Superior.

Somada a essa reflexão, uma pesquisa realizada pelo Núcleo de Ope-


rações e Inteligência em Saúde (NOIS) da PUC-Rio corroborou para uma vi-
sualização dos fenômenos psicossociais e de marcadores sociais na pandemia no
que tange a um olhar sobre a qualidade de vida, com base nos dados registrados
no Portal do Ministério da Saúde. Esse estudo concluiu que quanto maior a es-
colaridade, menor a letalidade da covid-19 nos pacientes. “Pessoas sem escolari-
dade tiveram taxas três vezes superiores (71,3%) às pessoas com nível superior
(22,5%)” (BATISTA, 2020). Os dados também mostraram que, quando cruzado
o marcador de escolaridade com raça e classe, a população negra sem escolari-
dade (73%), em disparado, tinha as maiores taxas de letalidade em relação à po-
pulação branca de nível superior (22%), por exemplo. Ou seja, quando paramos
para nos debruçar sobre esses fenômenos sociais, percebemos uma disparidade

43
de iniquidade presente na escolarização das pessoas e, com isso, sob uma visão
interseccional, reconhecemos uma estrutura social no país marcada pela meri-
tocracia, condições de acesso e subsídio de capital desiguais nas comunidades de
estrato social diverso, e de uma necropolítica racializada operante nas popula-
ções subalternas (LAVOR FILHO et al., 2018).

Mesmo o vírus tendo um contágio democrático, a sua principal ví-


tima é a população pobre e negra. Portanto, apresenta-se uma reatualização e
uma cronificação de processos colonizadores de mortificação desses sujeitos.
Dessa forma, a escassez de políticas públicas específicas que deem conta dos
contextos em que estão vivendo as populações marginalizadas reflete o fato de o
Estado desocupar-se da proteção dessas vidas consideradas descartáveis, colabo-
rando com a aniquilação de corpos que não importam (NAVARRO et al., 2020).
Tensionamos justamente essa realidade necropolítica na pandemia no aparato
das políticas públicas de educação como uma desassistência marcada nas escolas
públicas, sobretudo.

No contexto educacional, o EaD, que promete possibilitar o acesso à


educação por cada vez mais parcelas da população, é, na prática, uma “cortina
de fumaça” para a subjugação de corpos infames, partes de uma população que
habita territórios vulneráveis e periféricos, que é constantemente acometida
por diversas violências. Nesses contextos, as relações de iniquidade na educação
fortalecem a meritocracia fundante da elite brasileira, pois privilegiam a conti-
nuação da educação àqueles que possuem recursos de capital e humano, princi-
palmente quando não há uma governabilidade implicada com o fortalecimento
da justiça social.

44
Algumas reflexões acerca do ensino remoto
O cenário da pandemia exigiu das escolas uma inversão de valores em
relação ao uso de tecnologias no contexto escolar, haja vista que a entrada das
mídias vinha se dando de forma muito lenta. No livro “Entre redes e paredes: a
escola em tempos de dispersão”, de Paula Sibilia (2012), a escritora já citava o
descompasso entre as subjetividades juvenis, permeadas pela noção da rapidez
tecnológica, e a disciplina da rotina escolar.

A partir do isolamento social imposto pela covid-19, as estratégias


pedagógicas precisaram, de uma hora para a outra, ser adaptadas para o am-
biente virtual, o que levou muitas escolas a fazerem apenas uma transição de sua
forma presencial para uma educação remota. Feitas às pressas, essas formas de
construção de ensino evidenciaram uma educação conteudista e bancária; agora,
ainda mais precária, em que as aulas e atividades são, muitas vezes, construídas
de forma unidirecional e sem interatividade entre professor(a) e aluno(a), alar-
gando o distanciamento entre o corpo estudantil, o trabalho docente e os modos
de ensino-aprendizagem ofertados pelas escolas (MARTINS; ALMEIDA, 2020).
Essas produções colocam-se, portanto, como mais um desafio para a comunida-
de escolar na tentativa de dar continuidade aos processos educacionais de forma
que estejam aptos a acolher as diversas realidades e demandas das escolas, dos
territórios e dos(as) estudantes.

Por outro lado, criando possibilidades remotas, a escola incorpora a


tecnologia, no contexto de isolamento, como aparato útil neste momento em
que o contato físico não é possível, condicionando, de certa forma, a nossa ma-
neira de se conectar com o mundo. O uso das Tecnologias de Comunicação e In-
formação (TICs) se torna o meio de não “isolar” completamente o(a) estudante
de sua escola, estabelecendo novas formas de contato com o território escolar:
as redes sociais, as plataformas de reunião on-line, os encontros síncronos, as

45
lives. Dessa forma, as TICs auxiliam na continuidade da relação com a comu-
nidade escolar e com os estudos, estimulando os encontros que propiciam a
construção dos processos de aprendizagem (SENHORAS, 2020).

Entretanto, apesar da possibilidade de dar continuidade aos vínculos


escolares, o uso das TICs como principal ferramenta do ensino remoto adotada
no período de pandemia escancarou, conforme já discutido no presente texto,
especialmente no contexto brasileiro, uma gritante desigualdade de acesso à
educação, tanto em termos qualitativos como quantitativos. Com a mediação
do ensino pelas tecnologias, estudantes que não possuem aparelhos digitais ou
conexão à internet em seus domicílios não participam de atividades escolares
síncronas com colegas e professores(as), malgrado a tentativa de docentes e ges-
tores(as) de manter o acesso aos conteúdos, através, por exemplo, de envio de
apostilas impressas. São notórios, assim, a discrepância no processo de ensino-
-aprendizagem e o medo do distanciamento da escola, que podem comprome-
ter a continuidade dos estudos desses(as) alunos(as) no contexto pós-pandemia
(SENHORAS, 2020).

Considerações finais
Buscamos apresentar algumas tessituras de reflexões acerca dos en-
frentamentos durante a pandemia no cenário de escolarização no Brasil. Não
intentamos generalizar os contextos de forma fatalista ao discutir os desafios e as
desigualdades relatadas e vivenciadas no campo educacional. Convocamos uma
discussão que não se finda, mas segue em curso devido às incertezas e inoperân-
cias que emergem em um cenário de conflitos inesperados no território escolar,
que continua a tentar formas de permanecer atuante neste novo e, esperamos,
temporário formato remoto.

Além disso, as relações históricas que se constroem diante da pande-

46
mia são incertas. A instabilidade causada pelo número de mortos, da continuação
do ensino remoto, da (in)flexibilização curricular e da necessidade de constru-
ção de vínculos por parte da instituição escolar nos fazem não chegarmos a um
denominador comum, tampouco gerar conclusões acertadas sobre os próximos
passos a serem dados. Contudo, as pesquisas apresentadas, que exemplificam
maior letalidade da pandemia na população com baixa escolaridade, colocam-se
como uma evidência e revelam a precarização da dignidade humana e do acesso
a uma qualidade de vida melhor para comunidades pobres e marginalizadas.

Para além de uma desresponsabilização com a vida e a educação, a


omissão do governo federal diante das inúmeras crises escancaradas na pande-
mia se traduz como uma necropolítica com classe e cor definidas, que impõe
quem tem direito à educação e à vida, uma operacionalização da morte e da
exclusão social de corpos historicamente marginalizados. É preciso desvelar tais
agenciamentos para não cairmos no jargão neoliberal de que “todos estamos no
mesmo barco”. Tentamos, aqui, apenas gerar no(a) leitor(a) a possibilidade de ob-
servar as diversas costuras para se pensar o lugar na escola em meio à covid-19.

Portanto, retomando o emblema “contextos desiguais” que intitula


este capítulo, buscamos desmontar que são igualitários os problemas sociais e
estruturais da educação, quando comparados entre o setor público e o setor pri-
vado referentes à continuação dos processos de ensino no modelo emergencial
remoto, e, diante disso, aprofundando o olhar sobre a escola pública, reitera-
mos que ainda é mais precário o cenário devido ao atravessamento de questões
psicossociais como qualidade de vida, habitação, alimentação, condições finan-
ceiras, serviços de saúde e acesso às tecnologias. A escola pública, como terri-
tório de aprendizagem e de construção de vínculos afetivos, mantém-se ainda
resistente a todos os desmontes que lhe assolam e, por isso, prezamos por uma
educação pública de qualidade e para todos.

47
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51
03

Pistas (inventivas) para desaprender em tempos de pan-


demias

Érica Atem Gonçalves de Araújo Costa e Thamila Cristina Santos

Pista 1 – Pandemias que nos passam, que nos atravessam


Educação como experiência, como algo que nos atravessa é uma pro-
posição do Jorge Larrosa (2015), filósofo da Educação. Com ele, confabulamos
que escrever como experiência é estar entre o singular e o plural, posto que
escrevemos este ensaio nos valendo ora da primeira pessoa do singular, na trans-
crição da fala de uma das autoras, no Curso de Extensão “Aspectos Psicossociais
das Vulnerabilidades no Contexto da Pandemia de Covid-19”, realizado no pe-
ríodo de 25 de maio de 2020 a 18 de junho de 2020, ora em primeira pessoa
do plural, quando outras vozes são conjugadas ao texto para um diálogo entre
políticas de formação e pandemias. Este ensaio faz ressoar discussões do módulo
3, intitulado: “Educação e vulnerabilidades em tempo de isolamento social”.

Vocês perceberão, assim como percebemos ao longo da produção des-


te texto, o quanto a tentativa de fazer sentido ficou atravessada pela filosofia, so-
bretudo, a filosofia da diferença. Fomos entendendo, aos poucos, por que essas
insígnias – formação, invenção e experiência – parecem tão caras para pensar
o momento que estamos vivendo. Nosso lugar de partida é o estado do Ceará,
Brasil, 1º de maio de 2020, quarto mês de isolamento social integral devido à
pandemia do novo coronavírus.

52
Este texto-ensaio foi escrito entre intervalos, em blocos de tempo; as-
sim, pôde-se ir tateando devagar, buscando alguma inspiração. No texto “Fim de
partida, ler, escrever, conversar e (talvez pensar) em uma Faculdade de Educa-
ção”, capítulo do livro “Tremores: escritos sobre experiência”, em que também
encontramos o inspirador texto “Notas sobre a experiência e o saber da expe-
riência”, Larrosa (2015) escreve no contexto das reformas neoliberais das uni-
versidades europeias. É um começo de texto em que ele visivelmente expressa,
pela escrita, como o entristece ter que dar respostas do que será a filosofia den-
tro da universidade e como as perguntas dirigidas à filosofia parecem sem senti-
do. Diante desse desânimo, sentimento político que atua em seu corpo-escrita,
nos diz o quanto precisa escrever para dizer coisas que fazem algum sentido.
Escrever, não pela ótica da utilidade, mas escrever para elaborar sentidos.

A provocação de Larrosa (2015) atualiza-se para nós como uma ques-


tão do tempo presente: como o sentimento político de esgotamento pandê-
mico pode reverberar não um corpo útil, ou um corpo dócil, ou um corpo
despotencializado, mas, sobretudo, pulsar um corpo-escrita, um corpo-
sentido, dito de outro modo, um corpo-antídoto que elabora rotas de
erupção dos instituídos.

Isso me fez lembrar o quanto nunca foi confortável este lugar de


enunciação em que fosse necessário dar dicas, conselhos, soluções diante das
demandas feitas à psicologia. Sabemos que isso atravessa a história das(os) psi-
cólogas(os), em formação ou formadas(os), que podem se interessar por este
capítulo. Assim como Larrosa (2015), procuro escrever mobilizada por este des-
conforto e/ou inadequação e, desse modo, parece justo tratar da vulnerabilida-
de deste texto e não apenas da vulnerabilidade-objeto de nossas preocupações,
dados os efeitos da pandemia no campo da educação. Vulnerabilidade no senti-
do de inacabamento, de assumi-lo como uma materialidade possível num dado

53
contexto. Esse mesmo contexto que me alegra por poder escrever como fruto
de uma experiência singular como docente na universidade pública brasileira,
ao mesmo tempo, “me pega” numa série de turbulências da vida cotidiana.

Partilhar algumas condições de produção desse discurso me parece


importante para que apareçam ambivalências, privilégios, e para que deste en-
saio não esperemos verdades prontas. Há riscos também quando ficamos presas
no signo da crise, este tão frequente no campo da educação. Somos tomadas,
vez ou outra, pelas crises e pelos fins, o fim da escola, o fim da educação, o fim
da infância, o fim da história etc. Fomos habitadas, não faz muito tempo, por
muitos desses enunciados no debate sobre a pós-modernidade. Isso pode não
potencializar pensar o impensado.

Busquei, então, essa ideia de escrever para fazer sentido. Como pode-
ria dar passagem a algo que não foi pensado, que é uma inquietação, um senti-
mento político e coletivo? Persegui essa ideia de escrever como quem pergunta,
para instaurar forças diante do que não se sabe. Quando escrevi, pensei que,
ao ouvirem minha voz e meus desalentos, isso poderia ser um contraponto aos
riscos de despotencialização do corpo, muito atrelado ao que vem nos sendo
exigido como professoras e como alunas, neste momento de isolamento social.
Quanto a esses planos pedagógicos emergenciais, pacotes de formação e elabo-
ração de atividades remotas, ou seja: estar diante da tela, dominar as plataformas
virtuais, saber utilizar recursos audiovisuais, elaborar videoaulas.

Pensamos em como têm funcionado as salas de aulas, se formos pensar


a sala de aula como um espaço-tempo escolar. Ao escrever para fazer sentido,
atento-me à diversidade de análises possíveis, ainda mais considerando a edu-
cação como experiência que nos atravessa, na qual estou imersa, assim como
vocês. De onde podemos compreender? Apostamos que é apenas nesse lugar da
experiência que se pode compreender, não o que acontece, mas o que nos acon-

54
tece. Larrosa (2015) marca a existência desse pronome (nos) como relação que
nos envolve. Não se ater ao que acontece, ao que passa, ao que atravessa, mas ao
que nos acontece, nos atravessa.

Perguntamos: que experiências têm sido possíveis neste período de


interrupção de nossas atividades presenciais? E aqui demorar-se um pouco na
palavra presencial, posto que o contato físico atrelado à presença por si já é
uma aposta, de corpos, de diversidade, de vozes, de coexistências no mesmo
território.

Na arquitetura virtual das pandemias, a linguagem da sala de aula


transmuta-se a partir de um endereço eletrônico, um caminho de virtualidade
que leva aos avatares de pessoas com suas fotografias, operando o próprio som
para não provocar muito ruído e escrevendo nos chats, palavra consolidada no
dicionário da pandemia. Temos tido tempo de gestar outras sensibilidades ou
estamos atrofiados, no sentido de não conseguir respirar e pensar e elaborar
modos de viver coletivamente em um isolamento?

Pista 2 – Escutar experiências do dizer educação


A pandemia tem escancarado o plano da produção de desigualda-
des no Brasil e, desse modo, temos também uma luta para que a educação não
seja um elemento produtor de mais violência e vulnerabilização. Como pensar
composições possíveis de experiência com essa luta filosófica, afetiva e política?
Que experiência tem sido possível nesse campo de forças?

Lembro da perspectiva foucaultiana e genealógica de pensar a edu-


cação como um conjunto de práticas discursivas e não discursivas, em que se
gestam relações de saber-poder e resistências (FOUCAULT, 2003; VEIGA-NE-
TO, 2003). Há uma turbulência própria dos campos e forças em disputa, uma
vez que nada está dado de antemão. Há heterogeneidades e multiplicidades.

55
Podemos ver fenomenicamente essa condição plural e diversa: escolas públi-
cas, privadas, modalidades de ensino diferentes, níveis de ensino diferentes etc.,
mas, genealogicamente, precisamos compor não apenas com o que parece ser
mais consensual e óbvio quanto a essa diversidade. Foucault (2000) fala que há
uma ordem discursiva que constrange o campo do dizer, na medida em que de-
termina modos de exercício do discurso. Nesse sentido, a educação vem sendo
atravessada por várias discursividades que, embora não escondidas, alimentam-
-se de processos de naturalização do que se passa em nós nesses contextos tão
distintos.

Pensamos que poderia ser um bom exercício pôr em análise como es-
sas discursividades têm tomado parte nesses modos de subjetivação (produzidos
em nossos corpos, nossos sentidos), tanto no território da universidade como
na Educação Básica, em tempos de pandemia. Pensamos nesses lugares de fala,
pois nosso encontro se dá entre pesquisadoras, professora de universidade pú-
blica, mãe de uma menina em idade escolar, supervisora de estágio em psicolo-
gia escolar e psicóloga escolar, artista, mestranda de universidade pública. Esses
lugares nos trouxeram cenas, imagens com as quais tentamos escutar esse cam-
po de forças, essa plurivocidade em torno da educação. O que tem se produzido
nesse conjunto de fatos, demandas, documentos, falas que estão dentro do cam-
po da educação, tão diverso, tão heterogêneo? Reunimo-nos em torno de cenas,
apostando que vocês também pudessem imaginar o que está nos acontecendo.

Vamos imaginar a educação como rizoma e como suas linhas emer-


gem e a que mapa nos conduzem. Um bloco de cenas e ruídos materializa uma
espécie de resíduo do cotidiano escolar em suspensão, o que ficou interrompi-
do. Penso na sala de aula virtual, nos processos de aprendizagem, nas exaustivas
tarefas escolares, nos afetos, na relação com os professores, na centralidade do
professor. Outro ponto tem produzido formas de dizer em torno da relação fa-

56
mília-escola, algo que não é absolutamente novo.Vejamos os grupos do WhatsA-
pp de mães (a maioria são mesmo as mães, pelo domínio do recorte de gênero
nas responsabilidades familiares) e suas diferentes funcionalidades: manutenção
de vínculos, vigilância, cobrança. A responsabilização das mães, mulheres e pro-
fessoras quanto à mediação das atividades domésticas e profissionais. A preocu-
pação quando, nessa relação família-escola, a escola sai de cena e o quanto isso
pode significar fator de vulnerabilização diante da necessidade de proteção de
crianças, adolescente e jovens. Como a escola integra uma rede de cuidado e
pode continuar agindo nesse sentido. Por outro lado, escolas privadas disputam
a cena como comércio que precisa se manter lucrativo em litígios com famílias
que não se sentem integralmente atendidas como consumidoras.

Temos visto também, por parte da gestão das políticas públicas, uma
atualização do discurso de descrédito em torno das famílias empobrecidas e
vulnerabilizadas, quanto à sua condição como bons mediadores. Deslegitimação
na forma de negativas: não pegam as cestas básicas, não respondem aos grupos
do WhatsApp. Outra linha nesta pandemia discursiva tem sido o lugar dos pro-
fessores: questões salariais, demandas de formação, precarização do trabalho e,
novamente, as consequências de uma feminilização da educação.

Outra linha gira em torno da produção discursiva da educação nas


redes sociais e como elas colocam em cena continuidades e descontinuidades na
forma como propomos problemas com os quais pensar e agir. Instituições e gru-
pos de pesquisa universitários ou não, fóruns de pesquisa em defesa da educação
têm sido protagonistas nas análises no campo da educação, todos disputando o
concorrido multiverso das lives nas plataformas virtuais. Se no período pandê-
mico a internet passou a ser um território de participação e reconhecimento em
disputa pela classe média, por outro lado, para uma classe periferizada, a quem
sempre foi difícil a garantia de direitos básicos e, consequentemente, os direitos

57
de comunicação e tecnologia, o afastamento das políticas públicas de educação
e assistência social representa o distanciamento cada vez maior no acesso e na
participação.

Se já era um desafio, antes da pandemia, pensar na escuta de jovens,


adolescentes e crianças e em como tomam parte das decisões escolares, a pande-
mia deflagra outras operações de silenciamento do ponto de vista desses sujei-
tos, uma vez que continuam sem serem escutados, ora porque foram suspenso
seus processos formativos por tempo indeterminado – no caso da escola pública
– ora porque estando nos processos formativos de forma virtualizada, nas esco-
las privadas, as condições formativas não se relacionam à experiência, à invenção
e à participação. Pedimos licença, então, para inseri-los em conversa inventada
(nem tanto) entre mãe, filha, escola e pandemia.

Duda, 8 anos, aluna de uma escola privada de grande porte em For-


taleza.
– Mãe, eu não entendo por que o horário muda (indignada).
Mãe questiona por que ela não fala com a professora.
– Mas eu não tenho onde falar para a professora!
Mãe insiste, pois lhe parece tão óbvio.
– Mas não tem a hora da aula on-line, você pode falar para a profes-
sora?!
Duda, já sem paciência.
– Mãe, essa hora é a hora para corrigir tarefas, não é para você falar.
A mãe não desiste. Duda repete.
– É para corrigir tarefas! (sem energia).
A pandemia pergunta para Duda como o corpo da criança que não
tem onde falar desiste da sala de aula? A pandemia pergunta para a professora
como o corpo que ela carrega sem espaço para ouvir pode sustentar mais uma

58
tarefa? A pandemia pergunta para a escola como é possível inventar afetos para
não sucumbir? Como tem sido fazer interferências, contestar e negociar com a
ordem escolar? Faz sentido? Podemos, como psicólogas(os) escolares, produzir
sentidos, devir outros sentidos para a educação?

Pista 3 – Não recuar diante do que é revolucionário: criar o mundo


e a si mesmo
Em 2019, materializaram-se na forma de legislação algumas das con-
dições para a inserção do(a) psicólogo(a) no contexto da Educação Básica no
Brasil (CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA, 2019). Acontecimento que
movimenta o campo das relações entre Psicologia e Educação, assim como pode
ser um analisador desse sonho de habitar cotidianos escolares. Isso nos faz pen-
sar o que pode ser revolucionário em ocupar escolas, em se fazer presente, em
se ocupar dos processos. Nesse sentido, gostaríamos de pôr uma questão não
somente em relação à escola: a questão do corpo, da presença, de como temos
nos produzido no âmbito das institucionalizações de suas segmentaridades du-
ras: horários, regras, verticalizações, burocracia, vigilância, normatizações. O
que temos conseguido tramar como saber interessado nos processos de subje-
tivação? Voltemos à pergunta inicial: o que tem sido possível como experiência
nesse acontecimento?

Gostaríamos de pensar a partir de alguns enunciados e do que nos


impulsiona a falar em termos de invenção. São pequenos trechos (moleculares).
Não faremos exatamente análise do discurso, pois nos faltam as condições de
produção dessas falas. Vamos nos arriscar, pondo-as lado a lado, a fim de produ-
zir sentidos. Também, porque as escutei de forma difusa e não com o intuito de
objetificá-las.

(a) Menina-aluna: mãe, a aula (virtual) não tem emoção. Eu

59
não gosto da aula, pois ela não tem emoção.

(b) Menina-aluna-periférica: está difícil sem ir pra escola.

(c) Menino-aluno-escola alternativa: não quero assistir à vi-


deoaula, pois a videoaula dá mais saudade.

(d) Mulher-adulta-política pública: nós precisamos nos rein-


ventar, não podemos perder os vínculos e nenhum aluno ficará para
trás.

Aonde essas falas estão ecoando? O que dizem sobre afeto, saudade,
experiência, sobre o que nos atravessa? A que invenção temos nos disposto?
Nessa turbulência, nesse mar revolto, em que direção estamos indo? Não te-
mos tentado fazer a invenção caber no calendário, no chronos dos organogramas?
Num mapa que já foi traçado num outro tempo? Não parece fazer sentido con-
tar o que escapa, não faz sentido quantificar o que se gesta nos intervalos entre
essas falas, essas vozes.

Sandra Mara Corazza e Julio Groppa Aquino, no livro “Dicionário


das ideias feitas em Educação”, falam do verbete Calendário. Dizem algo mui-
to simples, mas muito interessante, “Calendário: Não tem pena de ninguém.
No Brasil, o escolar regula o do congresso nacional. Quantos feriados tem esse
ano?” (CORAZZA; AQUINO, 2011, p. 34). Ironicamente, exploram a urgên-
cia do calendário como sendo a nossa questão, ou a questão maior. Porém, a
experiência estabelece que tipo de relação com o tempo? Não dá para pensar
experiência sem tempo, sem ter tempo para pensar. Reivindicar esse tempo da
experiência tem algo de coletivo, de político? Vejamos duas ideias. Uma delas,
inspirada na leitura do texto “Em torno de uma educação menor”, de Silvio
Gallo (2002), também filósofo da educação. A partir de Deleuze, relaciona uma
educação maior a uma educação menor.

60
A educação maior é aquela instituída e que quer
instituir-se, fazer-se presente, fazer-se acontecer. A educação
maior é aquela dos grandes mapas e projetos. Uma educação
menor é um ato de revolta e de resistência. Revolta contra os
fluxos instituídos, resistência às políticas impostas; sala de aula
como trincheira, como a toca do rato, o buraco do cão. Sala de
aula como espaço a partir do qual traçamos nossas estratégias,
estabelecemos nossa militância, produzindo um presente e um
futuro aquém ou para além de qualquer política educacional.
Uma educação menor é um ato de singularização e de militância
(GALLO, 2002, p. 173).

Ao trabalhar os sentidos de maior e menor, aponta essa dimensão dos


mapas traçados, do que já está posto. Fala também da figura do professor mi-
litante como sendo aquele que vai viver com seus alunos as suas misérias, não
somente a econômica, mas a miséria cultural, uma miséria de valores. E que
o papel do professor militante teria a ver com um profeta anunciar o novo,
mas como sendo aquele que pode criar as condições, ou que pode possibilitar
a emergência do novo, mas não anunciar, como profeta do novo, e construir-se
coletivamente (GALLO, 2002).

Como professora atravessada pela educação pública como experiên-


cia, pergunto-me: quais são as chances da educação pública, seja ela básica ou
universitária, num cenário de descaso? Como podemos reinventar? Para que não
confundamos invenção com flexibilização, com adaptação, com uma espécie de
reciclagem e nos distanciemos de uma política de cognição inventiva, segundo
Virgínia Kastrup (2005).

Para Deleuze, em entrevista realizada em 1995, “Uma aula é uma es-


pécie de matéria em movimento. [...] Não é uma questão de entender ou de ou-
vir tudo, mas de acordar em tempo de captar o que lhe convém pessoalmente”
(CLÍNICA DA DIFERENÇA, 2019). O autor provoca que a aula precisa de um
público variável, para tornar possíveis as modulações dos campos de interesse.

61
Onde estão essas salas de aula que não têm um espaço definido e que
não é possível prever o que será aprendido? Elas têm que ser inventadas e, não
necessariamente, elas aparecem de uma vez por todas. Talvez todo dia uma pe-
quena invenção. Talvez assim possamos nos aproximar ou experimentar o que é
essa sala de aula como uma matéria em movimento.

Não parece ter necessariamente a ver com esse chamado aos professo-
res de que a gente precisa “se reinventar”, “continuar com a escola”, “não pode-
mos parar”, “nossos alunos não podem perder, não podem ficar para trás”. Eles
ficam para trás do quê? Embora haja preocupação com as formas de garantir o
direito à escolarização, não quero ser leviana e menosprezar as condições e as
situações de precarização que enfrentamos no âmbito da educação, mas pre-
tendo reivindicar a possibilidade de pensar na proposição de outros problemas
que parecem tão importantes. Pensar o que ainda não se sabe sobre a sala de
aula ou inventar problemas em vez de resolvê-los sob uma lógica produtiva e
naturalizada é um fôlego para continuar afirmando a importância da formação e
do pensamento como invenção de si e do mundo. Conforme nos inspira Walter
Kohan (2020): “Nós estamos infantilizados, mas não no sentido negativo. Assim
como uma criança, estamos num momento em que nós não sabemos”.

Convocar o outro a reinventar pode ter mais a ver com uma potên-
cia do exercício experimental. Nos inspiramos nos estudos de Kastrup (2012,
2019) sobre a potência cognitiva do experimental nas práticas de acessibilidade
para pensar uma sala de aula que experimenta o experimental como uma dire-
ção, uma política, um ethos.
Neste sentido, a presença do experimental na me-
diação a faz mais próxima do encontro do que da transmissão,
em que a aposta é a criação de um território afetivo de acolhi-
mento, propício à troca de experiências e à aprendizagem cole-
tiva. A mediação é distribuída pelo grupo, não se restringindo
a uma pessoa designada pelo Educativo. Ela é antes uma função

62
que uma pessoa. Enquanto função, a mediação se multiplica, se
propaga e se distribui. Os papéis se alternam ao longo de cada
encontro. Quem é mediador de quem? (KASTRUP; VERGA-
RA, 2012, p. 76).

O experimental parece uma boa pista para desviar do emergencial. O


experimental não seria nem um alternativo ao hegemônico nem alguma coisa
que se faz como um pré-piloto, algo que prepara para o que vem de verdade. O
experimental não precisaria de nenhuma validação, é no momento que ele se
dá. Temos dado passagem a esse experimental? Parece importante reafirmar ao
final deste ensaio algumas teimosias: (a) não recuar das conexões entre afeto e
cognição; (b) não recuar de intervir nesse plano de forças movente, no qual se
tem feito e pensado Educação; (c) não recuar diante de políticas que nos deem
tempo para gestar possíveis; nós estamos carecendo de políticas que nos deem
tempo; (d) não recuar de que nos cotidianos caibam inesperados, abertura ao
diálogo e negociações.

Uma escola democrática, que promove emancipação, diálogo, encon-


tros, isso é, hoje, o que é absolutamente revolucionário. A nossa possibilidade de
pensar diferentemente o que está dado para nós.

Referências

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O ABECEDÁRIO de Gilles Deleuze – Transcrição integral do ví-


deo para fins exclusivamente didáticos. (C. Parnet, entrevistadora). Cli-
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Adriana Fresquet, Aline Monteiro e Fernanda Omelczuk. UFRJ, 07 nov. 2019.
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VEIGA-NETO, A. Foucault e a Educação. Belo Horizonte: Autêntica Editora,


2003.

65
66
04

Tecendo laços em meio à pandemia de covid-19: relato de


experiência sobre um grupo de apoio psicológico a tra-
balhadores de serviços essenciais

Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro, Nayana Rios Nunes da


Silva, Natacha Oliveira Júlio, Quitéria Alves Melo, Rafaela Sousa Alves, Cris-
tina Silmara Duarte Rodrigues, Laiza Cristina Cavalcante Menezes, Emanuel
Meireles Vieira e Louanne Carneiro de Oliveira

A pandemia de covid-19 afetou o modo como as pessoas vivem, tendo


em vista os cuidados necessários para se evitar a contaminação com o SARS-
-CoV-2. Além disso, levou milhares de pessoas a lidarem com a percepção da
morte e do luto de maneira mais presentificada como consequência das altas
taxas de letalidade da doença.

No Brasil, a crise econômica, que se agravou com as medidas de iso-


lamento social e com as demais restrições impostas pela pandemia, levou a altos
índices de desemprego. Houve, também, o aumento do número de trabalha-
dores informais. Aos que mantiveram vínculos empregatícios, intensificou-se o
trabalho. Aprofundou-se, então, uma crise decorrente da precarização laboral,
do sistema neoliberal de gestão social e da vulnerabilidade de grande parte da
população (RODRIGUES et al., 2020).

Como estratégia para a manutenção dos empregos, diversas atividades


passaram a ser realizadas no âmbito doméstico, na modalidade de home office. No

67
entanto, alguns trabalhadores não puderam aderir a essa forma de trabalho, na
medida em que atuavam em serviços e atividades essenciais. No Brasil, por meio
do Decreto n.º 10.282, de 20 de março de 2020, o governo federal elencou
diversos serviços públicos e atividades essenciais para a população, tais como
assistência à saúde, atividades de segurança pública e privada, telecomunicações
e internet. Coube aos Estados e Municípios, por sua vez, classificar os serviços
de captação e tratamento de água e esgoto como essenciais.

Aqueles que aderiram ao home office precisaram lidar com desafios


como o uso de novas tecnologias, a utilização do ambiente doméstico para as
atividades laborais, a falta de clareza na separação entre o tempo de trabalho e
de descanso e condições materiais inadequadas. Trabalhadores que não puderam
se manter em isolamento social sofreram com o medo do contágio e com a pos-
sibilidade de transmitir o vírus a pessoas próximas (RODRIGUES et al., 2020).

Nesse contexto, o Serviço Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) de um


município da região norte do Ceará manteve suas atividades. Esse SAAE con-
tava com 245 funcionários, possuía mais de 70.000 ligações de água e 45.000
de esgoto e atendia às residências, comércios e indústrias. Durante a pandemia,
o atendimento presencial ao público foi suspenso e passou a ser realizado pelo
WhatsApp. A área administrativa passou a atuar internamente e os trabalhadores
do setor operacional, responsáveis pela manutenção das redes de água e do tra-
tamento de esgoto, continuaram realizando suas atividades em campo.

Na instituição, houve um índice elevado de afastamentos do trabalho


por suspeitas de infecção pelo SARS-CoV-2 e a morte de um funcionário pela
covid-19. Tal quadro provocou manifestações de sofrimento psíquico em diver-
sos trabalhadores, o que levou a gerência de gestão de pessoas desse SAAE a
estruturar, em parceria com o Laboratório de Práticas e Pesquisas em Psicologia
e Educação (LAPPSIE) da Universidade Federal do Ceará (campus Sobral), um

68
grupo de apoio psicológico para os profissionais da empresa, que foi chamado
de “Tecendo Laços”.

O capítulo aqui apresentado visou relatar a experiência de realização


desse grupo. Tomou-se como fundamentação teórica e metodológica a Clínica
da Atividade, que tem como objetivo a ampliação do poder de agir dos traba-
lhadores através da observação e reflexão sobre si e do diálogo com o coletivo
(CLOT, 2017).

Sobre o grupo

Participantes
O grupo teve início com dez trabalhadores, dos quais seis tiveram
participação mais frequente: Luan, Abel, Davi, Gael, Flora e Sérgio (nomes fic-
tícios). Eles tinham entre quatro e 29 anos de trabalho na empresa e nem todos
se conheciam previamente.

Luan, motorista, durante a pandemia foi convocado a trabalhar no


setor responsável pela manutenção dos sistemas de esgoto, que possuía o maior
número de funcionários contaminados pela covid-19. Davi, funcionário mais
antigo da empresa, Abel e Gael eram assistentes de operação. Os dois primeiros
realizavam manutenção de redes e ramais de água. O último atuava no setor
de corte e religação. Flora e Sérgio trabalhavam com atendimento ao público,
atividade que, como dito acima, era exercida por meio do WhatsApp. Dentre os
participantes que compareceram a encontros pontuais, Arthur, em alguns mo-
mentos, falou sobre sua experiência no setor de corte e religação.

O formato dos encontros e os métodos utilizados


Os encontros eram realizados semanalmente por meio da plataforma
Google Meet, no turno da noite, com duração média de uma hora e meia. Havia

69
a previsão inicial de que fossem realizados oito encontros, mas, a pedido dos
trabalhadores, ocorreram 11. A princípio, os facilitadores faziam registros por
meio de diários de campo, porém, em alguns momentos, os participantes auto-
rizaram que as interações fossem gravadas.

No primeiro encontro, os facilitadores e os trabalhadores foram apre-


sentados. Além disso, o grupo organizou sua dinâmica de funcionamento, os
participantes expuseram suas expectativas e falaram brevemente sobre as impli-
cações da pandemia para o trabalho. Nos cinco encontros seguintes, a participa-
ção dos trabalhadores tinha início com relatos sobre como estavam se sentindo
e sobre a semana de trabalho. A partir dessas falas iniciais, o diálogo se aprofun-
dava.

Nesses encontros, os facilitadores não utilizaram técnicas específicas


da Clínica da Atividade. Ao mediar os diálogos entre os trabalhadores, tentava-
-se criar um clima de segurança, na medida em que os conteúdos das falas não
eram julgados previamente ou valorados.Também era demonstrado um genuíno
interesse dos facilitadores pelas experiências dos participantes. Tinha-se como
objetivo garantir, assim, a expressão livre e, ao mesmo tempo, havia um esforço
para compreender o que era dito e essa compreensão era transmitida ao grupo.
Tais atitudes foram inspiradas pelas condições facilitadoras propostas por Carl
Rogers (2017).

Tendo como norte a criação de Zonas de Desenvolvimento Proxi-


mal, também eram inseridos na conversação mediadores simbólicos que auxi-
liassem os participantes a descristalizar posições já organizadas sobre a própria
atividade. Dessa forma, esperava-se que fossem possíveis reflexões, e mesmo
reposicionamentos, sobre aquilo que era familiar na atividade, de modo que as
interações viabilizassem processos de desenvolvimento (CLOT, 2007).

70
No sexto encontro foi realizada uma autoconfrontação simples e, os
demais, até o encerramento do grupo, foram dedicados a uma oficina de fotos.
O método da autoconfrontação simples consiste em debater com os trabalha-
dores vídeos que registrem sua atuação no trabalho. Dessa forma, é possível
colocá-los na posição de observadores de sua atividade, além de aproximá-los
de sua experiência (CLOT, 2010a). Seguindo esse método, vídeos gravados por
um dos trabalhadores foram reproduzidos durante uma reunião e mobilizaram
a discussão no grupo.

A oficina de fotos consiste em propor aos participantes a produção de


retratos sobre o cotidiano de trabalho, os quais serão apresentados e debatidos
pelo grupo. A temática das fotos é escolhida pelo facilitador (OSÓRIO; PA-
CHECO; BARROS, 2013). Pediu-se, assim, que os participantes registrassem o
que consideravam uma alegria e um desafio relacionados ao trabalho.

Foi necessário adaptar esses métodos ao formato virtual de realização


dos encontros. Mesmo assim, a utilização deles criou uma relação de confian-
ça com o grupo, a partir da qual foi possível debater sobre como a pandemia
impactou o trabalho e a saúde. Dessa forma, foram coletivizadas as discussões
sobre as particularidades da atividade de cada participante. De maneira similar,
também foram abordados os problemas com os quais eles tinham de lidar e as
formas que encontravam para resolvê-los.

O desenvolvimento do grupo
Ao longo dos encontros, foram discutidas inúmeras questões relacio-
nadas às atividades e pré-ocupações (CLOT, 2010a) dos trabalhadores. Algumas
delas causaram comoção ou geraram controvérsias entre os participantes. Além
de ter ocasionado a perda de um colega e imposto novas rotinas e modos de
proceder, a pandemia de covid-19 agravou problemas que já eram vivenciados.

71
A seguir, são destacados alguns momentos que dão um vislumbre sobre como a
pandemia repercutiu no trabalho dos profissionais que participaram dos encon-
tros ou que mostram elementos importantes do ofício e foram debatidos pelo
coletivo que se formou com o grupo de apoio.

O falecimento de Levi
A morte e o luto foram temas recorrentes no grupo. No segundo en-
contro, Davi se mostrou afetado pela perda de um colega de trabalho, Levi, que
faleceu em consequência da covid-19. Ele relatou que, às vezes, não acreditava
na morte do amigo: “eu acredito que ele está fazendo uma viagem. Um dia ele
pode voltar”. Também disse que, eventualmente, ia aos locais que o companhei-
ro de trabalho frequentava com a esperança de reencontrá-lo. Ao comentar essa
fala, Sérgio afirmou que: “às vezes a dor não é sentida da mesma forma, às vezes
tem quem prefira negá-la, mas é melhor senti-la de forma inteira” e parabenizou
Davi por expressar seus sentimentos, na medida em que acreditava que ele não
deveria guardá-los.

No mesmo período do falecimento de Levi, Flora havia perdido a so-


gra, a quem dizia ter enorme gratidão por ajudá-la na criação das filhas. No
quarto encontro, ela também se manifestou sobre o falecimento do amigo e
disse ter se sentido egoísta por não estar mais presente enquanto ele estava hos-
pitalizado em consequência da covid-19. Pelo chat, ela disse:
Nesta semana em que [o Levi] ficou internado, só
consegui falar [com ele] uma vez. E, em meio à pandemia, as
crianças em casa, acabei não dando a atenção devida. Isso me
doeu. Enfim… Era coisa de amigo mesmo e fui omissa na hora
que ele mais precisou (Flora).

Após esse comentário, os demais participantes se solidarizaram com


Flora e tentaram confortá-la. Abel, por exemplo, disse que “as pessoas não são

72
treinadas para aceitar algo tão certo quanto a morte”.

Ao passo que os rituais de despedida estavam inviabilizados pela pan-


demia, pois o comparecimento a funerais era restrito por conta das medidas de
isolamento social, o processo de luto era dificultado (CREPALDI et al., 2020).
O espaço de ajuda mútua construído pelo grupo auxiliou os participantes na
elaboração do luto pela perda do amigo.

Gênero, home office e trabalho doméstico


Flora, única mulher a participar do grupo, esteve presente em cinco
dos 11 encontros realizados. Quando não era possível comparecer, justificava as
ausências, comumente ligadas aos cuidados com as filhas e outras demandas de
sua casa. Na maioria das vezes, falava com o grupo pela janela de mensagens de
texto do Google Meet e relatou que preferia se manifestar por escrito em razão
da agitação das filhas.

Ela falava sobre temas comuns aos outros participantes, como os de-
safios de utilizar o WhatsApp para o atendimento aos clientes, as dificuldades
em lidar com os usuários do serviço e, como visto anteriormente, o luto pelo
falecimento de Levi, de quem era muito próxima. Apesar dessas semelhanças,
era a única a colocar questões domésticas como agravantes dos problemas cau-
sados pela pandemia.

A suspensão das atividades escolares presenciais das filhas e o traba-


lho na modalidade home office resultaram em um hibridismo na rotina de Flora.
O horário de expediente, cumprido no espaço da casa, foi descrito como um
ponto de tensão no seu dia a dia. Sua rede de apoio também estava reduzida em
razão de sua mãe, grupo de risco para a covid-19, não poder ficar com suas filhas
enquanto trabalhava.

73
O isolamento social, a mudança de rotina decorrente da pandemia,
com a necessidade de adaptações súbitas e urgentes, e o excesso de responsabi-
lidades se somaram à carga emocional pela morte de Levi, como visto no tópico
anterior. Apesar de reconhecer que, durante o período de internação do amigo,
precisou lidar com muitas demandas, sentia-se culpada por não ter conseguido
estar próxima a ele nos momentos finais.

A responsabilização das mulheres pela manutenção da ordem domés-


tica e a falsa conciliação entre o trabalho produtivo e reprodutivo são problemas
que foram aprofundados pela pandemia (ABREU; MARQUES; DINIZ, 2020).
A participação de Flora apontou questões sensíveis que há muito tempo afetam
mulheres no exercício de suas profissões, como a justaposição das funções do-
mésticas e de trabalho e a responsabilização pela criação dos filhos.

Riscos
Nos encontros iniciais, os participantes que realizavam a manutenção
das redes de água e esgoto expressavam o temor de que pudessem contaminar
a si próprios e as suas famílias com a covid-19, posto que estavam expostos ao
sair para trabalhar. Houve relatos sobre as medidas que tomavam em campo e
ao chegar em casa para se prevenir contra o vírus. Ao longo das reuniões, viu-se
que o risco de adoecer por covid-19 se somava a inúmeros outros já vivenciados
cotidianamente.

A autoconfrontação simples foi realizada com vídeos trazidos por


Abel. As filmagens mostravam um trabalho em que ele teve que entrar, descalço,
num buraco cheio de água para consertar um cano. Ele deveria usar botas, mas
elas flutuavam e, assim, dificultavam a atividade que precisava realizar. Ao ver as
imagens e ser indagado sobre os riscos que corria, comentou:
Os riscos que a gente se submete aí: primeiro tem
a água; depois, tem o risco de desmoronamento da barreira (a

74
gente pede para abrir [o buraco] bem grande, para evitar que
desabe) e o terceiro risco, a gente tem que mergulhar. Tem o
risco da contaminação de covid... Tem o risco de cortar os pés.
Mas se o policial fosse pensar no dano que uma bala [tem] baten-
do nele, não iria trabalhar (Abel).

Coincidentemente, em um encontro posterior, Abel relatou que havia


cortado os pés trabalhando. Alguns dias depois, as feridas infeccionaram e ele
precisou ser internado para tomar antibióticos, de modo que participou de um
dos encontros do grupo do hospital.

A despeito das possíveis consequências, a exposição ao perigo parecia


ser tratada com orgulho. Abel também contou sobre um trabalho em que pre-
cisou cavar por baixo de uma residência. Não havia sustentação adequada para a
estrutura do imóvel, de modo que a possibilidade de desabamento era iminente.
Ele relatou a situação assim:
Tivemos que destruir a cozinha da mulher. A mu-
lher falou: ‘como pode botar o cano embaixo de uma casa’.
Eu falei: ‘minha senhora, me desculpe, mas foi a senhora que
construiu a casa sobre o cano’. A casa ficou suspensa enquanto a
gente fazia um serviço. [Pra] gente, é como [se fizéssemos] um
show. A gente termina e gosta de receber um aplauso (Abel).

O orgulho ao enfrentar o perigo a que estão expostos coloca-se como


um enigma a ser decifrado em relação à atividade desses trabalhadores. Pode-se
hipotetizar sobre um reconhecimento na atividade que inscreve os sujeitos em
uma história coletiva e permite passar do sofrimento, presente na confrontação
com o real, ao prazer, dando sentido a esse confronto (BENDASSOLLI, 2012).
Dessa maneira, as falas do trabalhador sobre receber os aplausos diante de uma
situação de perigo iminente poderiam estar associadas ao reconhecimento em
seu ofício.

O serviço de corte das ligações de água também expunha os trabalha-

75
dores a situações perigosas. Gael o classificou como “um trabalho espinhoso”.
Os participantes relataram que as equipes que vão aos bairros efetivar os desli-
gamentos sofrem ameaças, como pode ser visto na fala de Arthur:
Existem setores [os bairros são setorizados para fa-
cilitar a distribuição das equipes e dos trabalhos] que a gente
nem pisa lá. A gente é ameaçado é [na] hora, não é virtualmente.
Apontam é arma! Nós é que estamos responsáveis por fazer esse
serviço, [mas] é como se a gente estivesse cometendo um crime.

Davi, por sua vez, relatou que um usuário lhe apontou um revólver e
o obrigou a fazer a religação da água de sua residência. Gael, em outro encontro,
comentou que foi ameaçado com uma faca. Ele também relatou que já fingiu
não ser o responsável por um corte de água realizado em um bairro da cidade
considerado perigoso, logo após um cliente demonstrar raiva e questionar o
serviço.

Durante a pandemia, a prefeitura da cidade atendida pelo SAAE isen-


tou famílias em situação de vulnerabilidade social do pagamento das contas de
água e suspendeu o serviço de corte, o que levou a um aumento da inadimplên-
cia. Por conta disso, os trabalhadores avaliavam que, além da sobrecarga pelo
acúmulo de demandas, a insegurança para eles aumentaria quando essa atividade
retornasse:
Com o corona, a situação vai se agravar, porque as
pessoas não estão pagando. [Elas] se sentem no direito [de não
quitar as dívidas] porque não estamos cortando... A gente sente
um medo que dá um frio na barriga, como se estivesse fugin-
do de um perigo iminente. Compartilho com os companheiros
esse nervosismo, esse medo residual por conta do retorno do
serviço (Arthur).

A partir desses relatos, o que se percebe é que a pandemia agravou ou


deu novos contornos a riscos que já estavam presentes no dia a dia do trabalho
desses profissionais. As novas dificuldades impostas aprofundaram e tornaram

76
essas circunstâncias ainda mais graves.

A relação com os clientes


Desde o primeiro encontro, a relação com os clientes do SAAE foi
evocada como um aspecto negativo do trabalho. As dificuldades encontradas
nessa relação impactavam os trabalhadores, independentemente de setor ou
cargo, como podemos observar no excerto a seguir: “A gente vai prestar um
serviço para eles [os usuários] e sofre, é maltratado, é mal-recebido... A maioria
das pessoas já vem com quatro pedras na mão... Teve uma senhora que só não
chamou a gente pelo nome” (Luan).

Sobre a repercussão dessa relação para a saúde dos trabalhadores, Sér-


gio expôs que: “Você sofre por esperar a agressão do usuário. Sofre mais pela
espera que pela agressão em si. Tem que acalmar o coração, se preservar e ter
cuidado. Queria ter mais maneiras de me proteger”.

A agressão parece desenvolver um sentimento de ansiedade pela me-


mória da experiência vivenciada anteriormente e pelo medo de revivê-la. Em
Clínica da Atividade, ter saúde é a possibilidade de criar e utilizar meios para
conseguir transpor os conflitos que emergem diante dos constrangimentos im-
postos pela atividade (CLOT, 2013). Sozinhos, diante de uma situação para a
qual não dispunham de ferramentas para manejar, parecia só restar aos trabalha-
dores a ansiedade diante do conflito que os espreitava.

Os coletivos de trabalho
Os participantes diziam ter uma boa relação com os colegas do setor
em que atuavam e com os demais funcionários do SAAE. Não raro, festas mobi-
lizadas pelos próprios trabalhadores eram relatadas em tom de saudosismo, pois
a pandemia as inviabilizou. Existia até uma banda, formada por funcionários da
empresa, que tocava nesses eventos. Davi era um de seus integrantes.

77
O grupo, mesmo não sendo homogêneo, propiciou discussões de ofí-
cio e controvérsias (CLOT, 2007). Também houve indícios da existência de al-
gumas regras do gênero profissional constituídas e que puderam ser revisitadas,
na medida em que existiam interseções entre as várias atividades desempenha-
das e que alguns dos participantes já haviam transitado por diversos setores. O
gênero profissional é um traço de união, a memória que atravessa a atuação de
cada trabalhador individualmente e constrói a história coletiva do ofício. Ele
tem um papel mediador entre o coletivo, o indivíduo e a atividade, ao oferecer
uma prescrição informal e implícita, gestada pelos próprios trabalhadores, que
dá suporte para conseguir fazer o que é necessário. Assim, o gênero provê mo-
dos de agir e formas de comunicação que podem ser acessadas com agilidade
diante dos constrangimentos impostos pela atividade (CLOT, 2017).

Durante a autoconfrontação simples, na mesma cena do buraco cheio


de água citada anteriormente, Abel foi questionado sobre as pessoas que o ob-
servavam. Ele explicou que eram seus colegas aguardando a vez de trabalhar:
“Não temos chefes, nós temos uma equipe boa. Nós entramos em acordo: se
eu estou cansado eu levanto e saio, então outro entra. A gente sai de dentro do
buraco, sai de dentro da água, deixando o serviço, e outro entra”.

Parecia haver, ali, uma regra de ofício: se o colega que estava traba-
lhando saísse do buraco, outro deveria imediatamente assumir a tarefa, pois,
tacitamente, admitia-se que ele estava cansado. Não era necessário, portanto,
qualquer ordem ou explicação. Outras regras de ofício também foram relatadas
por Abel. Elas estavam sintetizadas em algo que ele chamou de um “código” dos
profissionais:
(a) o que acontece no carro fica no carro; (b) passa
uma menina bonita, não deve falar. Nem olhar é bom! Pode
colocar nossa vida em risco. Além disso, o cara puxou conversa,
saia, vá trabalhar. Não vai se aprofundar em uma coisa que vai

78
lhe dar problema; (c) a gente não aceita dinheiro [dos usuários].
O SAAE já nos paga; e (d) se a pessoa for grosseira, tente, o má-
ximo possível, não revidar. Apesar de que eu sou um dos poucos
que quebra esse código aí [referindo-se à última regra]. Eu não
sou muito manso quando o cara pega nos nossos calos... Esse
tipo de coisa [o código] é proteção para a gente mesmo, porque
fora do contexto, tudo é pretexto.

Dessa forma, as normas de conduta pareciam dizer que quaisquer


problemas ou desavenças entre os colegas que estavam designados para um ser-
viço deveriam ser resolvidos entre eles. Também era preciso ser respeitoso com
os usuários para evitar conflitos que ameaçassem a segurança de todos. Não era
correto aceitar propina, isso poderia gerar problemas a todo o grupo se um dos
trabalhadores recebesse dinheiro dos usuários, o que não os impedia, contudo,
de aceitar um café ou algum lanche que lhes fosse oferecido. Diante da agressi-
vidade de alguém, a última regra ajudaria a evitar que um conflito se instalasse.

Considerações finais
O capítulo relatou a experiência de um grupo de apoio psicológico a
trabalhadores de um SAAE em meio à pandemia de covid-19. O grupo surgiu
como resposta a uma demanda institucional de cuidado com a saúde mental
dos trabalhadores nesse período. Vários problemas e dificuldades trazidos aos
encontros eram preexistentes e foram agravados pela pandemia.

A imposição do distanciamento social levou à necessidade de adap-


tação das técnicas da Clínica da Atividade para a modalidade remota através do
Google Meet. Diante da impossibilidade de observar presencialmente a ativida-
de dos trabalhadores, a aproximação se deu a partir dos relatos, da autoconfron-
tação simples e da oficina de fotos.

Dos desafios enfrentados, é possível destacar o estranhamento com a


modalidade virtual, que, para os facilitadores, gerou apreensão quanto ao enga-

79
jamento dos participantes e ao distanciamento das atividades realizadas, o que
poderia impedir a articulação dialética entre atividade e subjetividade (PINHEI-
RO et al., 2016). Além disso, as limitações da conexão com a internet e a inex-
periência com a ferramenta de acesso aos encontros dificultavam a comunicação
em alguns momentos, mas isso não impediu que o grupo viabilizasse diálogos e
apoio mútuo.

Um dos efeitos das intervenções foi o desenvolvimento da autonomia


dos participantes, demonstrada na condução dos encontros e no acolhimento de
novos membros ao grupo. Ademais, formaram-se vínculos entre os servidores,
apesar de nem todos se conhecerem pessoalmente, bem como construiu-se um
ambiente seguro de identificação, compreensão, partilha e busca de soluções
conjuntas para as demandas apresentadas.

Davi e Flora encontraram um espaço aberto e acolhedor para dialogar


sobre a morte de Levi. No que concerne à promoção da saúde entre os traba-
lhadores, vários participantes verbalizaram que se sentiam melhores ao final dos
encontros e, em vários deles, era ultrapassado o tempo de duração inicialmente
estabelecido, algo que os participantes justificaram com a assertiva de que “não
sentiam o tempo passar”. Também, a pedido dos trabalhadores, houve o aumen-
to do número de encontros de oito para 11.

A necessidade de adaptação ao contexto da pandemia impediu a equi-


pe de intervenção de cumprir estritamente as prescrições das técnicas da Clí-
nica da Atividade. Para que o grupo se realizasse, foi imperativo que houvesse
inovações de métodos já consagrados, sendo esse um dos legados da experiência
aqui relatada. Havia confiança para tanto, pois a possibilidade de criar e de rein-
ventar é uma das marcas que distinguem a Clínica da Atividade. Como nos en-
sina Clot (2010b), ao rememorar o ergonomista Alain Wisner, “a última palavra
jamais foi dita” (p. 216).

80
Referências

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Acesso em: 10 out. 2020.

82
05

O SUS em tempos de pandemia: considerações sobre eros-


política

Camilla Araújo Lopes Vieira e Raiza Lopes Pires

A partir da perspectiva do tema “Vulnerabilidade, políticas públicas


e garantia de direitos”, com o destaque para os desafios no enfrentamento da
pandemia, eu queria dizer que a primeira questão fundamental é que esta ini-
ciativa é bastante louvável no sentido de mostrar que a Universidade foi, é, e
continuará sendo um espaço fértil ao debate de temas que nos afetam, apontan-
do, portando, seu compromisso social. Nós estamos nos reinventando e, por
isso, estamos todos aprendendo a lidar com as novas tecnologias, mas isso não
se apresenta como um impedimento, muito mais como um desafio, então é im-
portante demarcar nesse momento de relevante audiência virtual – mais de 120
pessoas, inclusive algumas que não estão cotidianamente na Universidade – esse
compromisso político e social e o nosso papel docente.

Gostaria de começar falando sobre essa expressão, pandemia, que tem


na sua etimologia, no seu significado, aquilo que é “de todo o povo”. Temos
vivido uma época histórica de exceção para todos nós, situação que tem nos
colocado, voluntariamente ou não, num momento de afastamento entre pes-
soas – que é o modelo que sabemos possível para atravessar tal evento. Estamos
diante de um problema sanitário: um vírus que contamina e que, em nosso país,
teve oficialmente declarada, em 20 de março de 2020, a transmissão comunitá-
ria (DAUMAS et al., 2020), com letalidade significativa. Estamos diante de um

83
problema mundial que, além da sua dimensão sanitária, é um problema social,
político, geoeconômico (ESTRELA et al., 2020) e que nos importa a partir des-
sa condição complexa, já que aponta para o tema de nossa fala, sobre vulnerabi-
lidade, políticas públicas e garantia de direitos.

A pergunta sobre se nós estamos ou não conseguindo ultrapassar, atra-


vessar, vivenciar esse momento a partir do que o Brasil tem de políticas públicas,
especialmente em saúde, leva-nos a recuperar um pouco da história da saúde no
Brasil, que remonta ao movimento de construção do Sistema Único de Saúde
(SUS). Tal movimento coincide com a luta pela democracia, pela formatação de
um modelo que possa ser acessado por todos. O SUS cumpre sua função de uni-
versalidade no sentido de que chega a todos os brasileiros, um modelo universal,
fonte de luta política e sanitária no país a partir da década de 70 e desde lá, até
os dias atuais, com a participação social de estudiosos, intelectuais, da classe
trabalhadora, dos políticos e da sociedade civil. O SUS caminha, assim como a
própria história recente do Brasil, entre lutas e tensões, entre investimentos e
desinvestimentos. Tivemos em uma década quase 15 ministros da saúde; isso é
um reflexo de políticas que estão alinhadas a um modelo que precisa ser repen-
sado, mas, de modo geral, é importante dizer que o SUS tem dado respostas.
Estamos diante da maior política de inclusão do povo brasileiro, verdadeira con-
quista patrimonial.

O SUS e a pandemia: respostas possíveis


O nosso Sistema Único de Saúde tem conseguido responder, consi-
derando sua dimensão continental e os aspectos de políticas de governo que
atravancam estratégias de Estado, nos seus vários níveis de atenção, às demandas
sociais (BRASIL, 2009). A atenção primária tem, dentre suas propostas, equipes
que funcionam articuladas para dar assistência à população naquilo que deno-
minamos necessidades básicas de saúde, com modelo territorializado, em que,

84
a partir de demandas coletivas e individuais, aciona estrategicamente as equipes
de saúde da família e seus núcleos de apoio com vistas a assistir à população
(MENDES, 2015), com cobertura representativa. Como exemplos relevantes
de nosso acompanhamento a partir da realidade local, temos ações territoriais
que possibilitaram uma formação dialógica e horizontal acerca da realidade do
SUS, conforme apontam Amaral et al. (2018), com ações interprofissionais que
garantem relações efetivas e afetivas com os usuários.

A saúde como direito de todos e dever do Estado, conforme assina-


lado na Constituição Federal, é uma garantia que só se dá mediante políticas
sociais e econômicas que visem à redução de riscos de doenças e o acesso a um
conjunto de outros direitos, tais como saneamento básico, alimentação, mo-
radia, dentre outros. Assim, as políticas públicas de saúde necessariamente se
articulam a outras para que possamos ter respostas às demandas.

O momento atual de colapso do sistema de saúde, como as autorida-


des sanitárias vêm falando, não deve ser argumento estratégico para evidenciar
a não funcionalidade do SUS, mas deflagrar o problema histórico de pouco in-
vestimento em saúde pública, cada vez menor ao longo das últimas décadas1.

O modelo brasileiro de construção do SUS é inspirado em outros


modelos, como, por exemplo, o inglês, que, segundo Giovanella et al. (2018),
é baseado na concepção abrangente de universalidade, com cobertura e atenção
integral à saúde para toda população. Estamos diante de um país capitalista, na
América do Sul, que adotou modelo de sistema público universal.

Feitas tais considerações sobre nosso sistema de saúde, é válido agora


dizer que mesmo dando toda relevância aos analistas sanitários, aos doutores em
microbiologia, aos aspectos quantitativos e epidemiológicos, temos que ir além
1 Para mais informações, consultar: http://www.conselho.saude.gov.br/ultimas-no-
ticias-cns/1044-saude-perdeu-r-20-bilhoes-em-2019-por-causa-da-ec-95-2016.

85
da dimensão biológica da contaminação pelo novo coronavírus para entender a
complexidade de sua ação quando falamos em vulnerabilidades, na análise polis-
sêmica dos muitos significados que isso quer dizer.

A concepção de vulnerabilidade tem relação com os aspectos de mul-


tideterminação, com sua origem não apenas ligada à ausência ou condição pre-
cária no acesso à renda, mas articulada às fragilidades de vínculos afetivo-re-
lacionais e desigualdade de acesso a bens e serviços públicos (BRASIL, 2009;
CARMO; GUIZARDI, 2018).

Falar de vulnerabilidade implica considerar que alguns grupos popu-


lacionais, historicamente, tiveram menos acesso aos bens, serviços e direitos
fundamentais. Daí o porquê de existirem grupos mais morríveis e mais matá-
veis – mulheres, pobres, negros, pessoas com moradias periféricas, sem acesso
a recursos básicos, como água, energia e saneamento, vivendo em grandes aglo-
merados, em comunidades com fluxo de mobilidade muito grande, pessoas que
não têm um emprego fixo, que vivem na informalidade, os povos originários, os
nossos indígenas que têm historicamente quase nenhum acesso à saúde e, quan-
do têm, não é um acesso de qualidade. De acordo com Pereira (2019, p. 378),
“os que devem viver e os que devem morrer são selecionados segundo grupos
biológicos, apresentando o racismo como sua máxima expressão”.

Os riscos aparentemente democráticos que a percepção biológica da


contaminação faz crer trazem consigo um processo seletivo, e esse processo
seletivo é demarcado pela estrutura social. Então, além das questões que envol-
vem os fatores clínicos, 67% dos brasileiros que dependem do SUS são negros
e eles também têm a maioria das doenças como tuberculose e doença renal
crônica.

Quando temos indicação de medidas básicas para o combate à proli-

86
feração do vírus, como higienizar as mãos, álcool em gel, realizar o isolamento
social, utilizar máscaras de proteção e fazer testes, parecem ser atos simples.
Contudo, quando 48% da população brasileira não tem coleta de esgoto, 35
milhões de brasileiros não têm acesso à água tratada e, só em 2017, quase 300
pessoas foram internadas por diarreia – 50% eram crianças de 0 a 5 anos –, é
possível entender não só de vulnerabilidade, mas também de seletividade do
vírus.

Com tal cenário, explicado não exclusivamente por conta da pande-


mia, mas por uma história do Brasil com baixo investimento em políticas sociais,
que não prioriza a coletividade, as necessidades da população, mas as políticas de
mercado, políticas do capital, podemos apontar a marca da banalização estatís-
tica, seja na contabilidade de números ou na fala dos atuais governantes do país.

O ministro da educação ocupa discurso e postura bélicos, imprimindo


rivalidade, mal-estar, criando maniqueísmos e adversidades entre a sociedade; a
ministra da mulher, família e direitos humanos, sem a representatividade da luta
que trata da mulher múltipla, mas apenas da que veste rosa, que tem fé cristã,
comportamento heteronormativo, machista, sexista e de classe; a ministra da
cultura atropelada e desqualificada; o ministro do meio ambiente, com atitu-
des de clara destruição dos projetos de proteção e segurança ao meio ambien-
te e aos povos originários; o ministro da economia, com sérios problemas de
compreensão das necessidade sociais da população, afixado por números, com
a preocupação de que o isolamento destrua a economia, mas sem se importar
que se destruam as vidas que sustentam a economia. Assim, a frase dita pelo
atual presidente, Bolsonaro, “alguns vão morrer mesmo, lamento, essa é a vida”,
não se trata de quaisquer alguns, mas os selecionados pela lógica da necropolí-
tica (MBEMBE, 2018), quem tem suas vidas como menos importantes. Como
exemplo, podemos lembrar do Decreto de 5 de maio, diante do lockdown no

87
estado do Pará, que instituiu o trabalho de empregado doméstico como servi-
ço essencial. O dialeto bélico implementado pelos governantes do país na lida
cotidiana com o vírus, por sua raiz militarizada, convoca expressões que dizem,
por exemplo, que a pandemia é uma “Terceira Guerra Mundial”, em que pro-
fissionais de saúde são “soldados”, são os nossos “heróis nacionais”, negando a
dimensão do medo e da insegurança com a situação atual e fazendo supor que os
trabalhadores da saúde suportam tudo.

Diante do que trouxemos neste ensaio reflexivo sobre o SUS e a pan-


demia, gostaríamos de destacar que não estamos diante de uma guerra, mas de
um momento histórico radical que coloca acento nos problemas já existentes
na história do nosso país e, em especial, nas políticas de saúde. É urgente trans-
por a banalidade das análises simplórias ao campo da ressignificação dos afetos,
numa luta conjunta e coletiva para que possamos enterrar com toda dignidade
ritualística nossos mortos, bem como deixar falar dignamente os nossos vivos
e sobreviventes. Só quando nos dermos conta de que somos sujeitos políticos,
efetivamente, entenderemos nosso compromisso social.

Do bélico ao pacífico: transgressão


A pandemia tem nos mostrado, diante da nossa posição de especta-
dores nas redes sociais, ações que nos dão alento e esperança, como a de uma
moradora de condomínio que colocou no elevador uma inscrição que informava
aos vizinhos, em especial aos idosos, para recorrerem a ela se precisarem. Esse
gesto se multiplicou, assim como os de donos de restaurantes distribuindo co-
mida aos caminhoneiros; professores de educação física nas suas varandas dando
aula de forma gratuita; cantoras líricas fazendo apresentações em suas janelas,
um combinado sincrônico de vida e solidariedade.

Diante do que o título de nosso ensaio nos indica, ao propormos um

88
caminho erospolítico, precisamos situar de onde nossas elaborações se fundam.
Em psicanálise, Eros é um conceito que faz ligação e está entre o campo pulsio-
nal e a cultura. De acordo com Guimarães (2010), na teoria freudiana há um
entendimento, no trânsito de uma sexualidade primária para suas formas mais
elaboradas, da atuação de Eros “manifesta numa relação mais próxima entre se-
xualidade e cultura, como se as pulsões devessem percorrer um trajeto ou per-
curso para transformar o sexual no que ele tem de mais pulsional, mais destru-
tivo, numa sexualidade que atue em benefício do processo civilizatório” (p. 1).

Assim, estamos diante de um conceito que implica função de conser-


vação e unificação, articulando um investimento libidinal que garanta a relação
entre a pulsão e os objetos. Ao longo da obra freudiana, o entendimento de Eros
como conceito vai se modificando e ganhando contornos de pulsão culturante.
É nesse sentido que trazemos aqui a referência a Eros, problematizando nossas
reflexões de forma mais filosófica e em tensão à necropolítica.

Esperar o dia em que voltaremos ao novo normal é um ato paralisante,


porque como diz o poeta, “é você que ama o passado e que não vê que o novo,
o novo sempre vem” (BELCHIOR, 1976). O novo não é nada novo, mas iné-
dito como ato revolucionário de, mesmo em reclusão, continuar se encontran-
do. Temos visto famílias que se reúnem virtualmente para produzir e entregar
alimentos para populações vulneráveis, caminhoneiros que não estavam tendo
como comer e foram acolhidos com comida gratuita, costureiras que estão pro-
duzindo máscaras, lideranças comunitárias fazendo chegar itens de necessidades
básicas.

O exercício da cidadania, vizinhança solidária, de planos comunitá-


rios, de projetos de bairro, com abandono definitivo dessa nomenclatura e pos-
tura bélicas, por substituição ao vocabulário revolucionário do cuidado. Eis a
verdadeira e possível transgressão. Eros é filho de Poros, o deus da riqueza, mas

89
também de Penia, deusa da pobreza, o que indica que podemos expressar o
amor na abundância, mas também na falta, a partir do que ainda não temos, mas
podemos ter, numa erospolítica, com pulsão de vida, a política da vida, pela vida
e para a vida de cada um de nós.

Referências

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bilidade e seus sentidos para as políticas públicas de saúde e assistên-
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tes/pdf/3977+&cd=1&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br. Acesso em: 28 out. 2020.

91
06

Tessituras da saúde mental: modulação dos sofrimentos e


governo da vida no Brasil pandêmico

Magda Dimenstein

Em maio, em meio à fase de confinamento mais intenso da pande-


mia de covid-19 no Ceará, os programas de Pós-Graduação em Psicologia da
Universidade Federal do Ceará (UFC) e UFC/Sobral tomaram a iniciativa de
realizar um Curso de Extensão visando discutir os “Aspectos Psicossociais dasVulne-
rabilidades no Contexto da Pandemia de Covid-19”. Este texto foi escrito a partir da
fala proferida nesse evento, ocorrido em um cenário muito complicado e des-
concertante em termos das políticas sociais no Brasil, em especial, para o campo
da Saúde Mental. Falo da calamidade ético-política que é o governo Bolsonaro,
com suas tonalidades fascistas, racistas, sexistas e antidemocráticas. Trata-se,
portanto, de um texto informal e com linguagem coloquial.

Em relação à temática que nos propomos a discutir – a questão da


saúde mental no cenário da pandemia –, fiz a escolha de conversar não especi-
ficamente sobre a questão assistencial, de como a Rede de Atenção Psicossocial
(RAPS) está funcionando e como os dispositivos da RAPS estão operando ou
discutir qualquer questão que tenha a ver com uma diretriz técnica/orientação
para os trabalhadores da saúde mental nesse momento. Entretanto, não posso
deixar de pontuar que vivemos um quadro de retrocessos avassalador com a
Política Nacional de Saúde Mental atrelada aos governos e não como política de
Estado; de avanço da lógica asilar e hospitalocêntrica; de retração da RAPS; de

92
ampliação das necessidades em saúde mental e dos gradientes de vulnerabilida-
de associados às iniquidades sociais e às questões de gênero, raça e sexualidade.

Elegi conversar a partir de uma perspectiva mais ampla de saúde men-


tal, situada nesse momento muito particular das nossas vidas e das nossas exis-
tências, que é esse cenário mundial de pandemia, que, por si só, é um disparador
importante de sofrimento psíquico. Então, o ponto de partida desta conversa é o
entendimento de que esse cenário tem produzido muito sofrimento nas pessoas.
A quantidade de publicações do mundo inteiro que tenho recebido cotidiana-
mente a respeito disso é impressionante. A experiência da pandemia é para nós,
brasileiros, absolutamente inusitada. No último século, ou mais, talvez, aqui no
Brasil não tivemos experiência similar, não há nada parecido com o que a gente
está vivendo agora. Nem temos também a vivência de guerras ou de situações
desastrosas que exigem confinamento e distanciamento físico da população. Te-
nho enfatizado que não gosto deste termo “isolamento social”, porque não se
trata de isolamento social, mas distanciamento físico e de proximidade afetiva.

As experiências desastrosas como o que houve em Mariana, em Bru-


madinho, não se tratam disso. Foram experiências localizadas, muito pontuais,
produzidas por outros fatores, que tiveram um efeito devastador na população
atingida, sem sombra de dúvida, mas isso que a gente está vivendo é muito di-
ferente. Então, significa que nós, brasileiros, não temos experiência, não temos
vivências nessas situações em que a nossa sobrevivência física está ameaçada. É
como se não houvesse registro subjetivo, simbólico, afetivo desse tipo de vivên-
cia e isso é profundamente desestruturante do ponto de vista psíquico. Não sei
se poderia estender esse raciocínio para o resto do mundo, para populações que
já viveram duas grandes guerras, que vivem atualmente conflitos importantes,
como a Síria, Israel e Palestina, as migrações da África para a Europa. Para nós,
brasileiros, é quase como uma quarta ferida narcísica. Depois de Copérnico, de

93
Darwin e de Freud, essa pandemia veio afirmar nossa finitude e a nossa profunda
vulnerabilidade. Creio que isso tem consequências em relação ao modo como a
gente está vivenciando, encarando e circulando neste cenário de covid-19.

Ademais, esta pandemia, além de exigir de nós algo para que, subjeti-
vamente, a gente estava despreparado, não tinha acúmulo de experiência e um
arsenal de enfrentamento disponível, ela tem forçado o uso de algumas medidas
que implicam em mudanças muito bruscas, muito violentas, dos nossos hábitos,
dos nossos estilos de vida, que estão afetando o nosso cotidiano brutalmente.
A primeira delas é a questão do distanciamento físico, a quarentena. A segunda
é a necessidade de cuidados redobrados com a questão da higiene, da limpeza
dos ambientes, desinfecção dos corpos, espaços e alimentos. Isso tem sido para
muita gente um fator poderosíssimo de estresse.

As particularidades desta pandemia têm produzido muitas resistências


nas pessoas e variadas formas de sofrimento que fazem com que os níveis de
adesão às medidas protetivas, como o distanciamento, como o uso de máscara,
sejam muito baixos aqui no Brasil. Em outros países, como é o caso da China e
do Japão, que já têm um hábito, que, por exemplo, o uso da máscara faz parte
da sua indumentária cotidiana, isso é muito mais simples, para nós não é. Então,
um outro efeito que observamos, por exemplo, é a negação das possibilidades
de contágio e da gravidade da doença. Muitas pessoas creem que estamos viven-
do uma histeria coletiva.

Outra questão em relação a esta pandemia e que também é fonte de


sofrimento para todos nós diz respeito às incertezas quanto ao mundo pós-pan-
demia. O que vai acontecer? O que que vai ser? Por exemplo, a Organização
Mundial da Saúde (OMS) indica que sairemos de uma condição de pandemia
para de endemia, o que significa que talvez a gente vá ter que tomar cuidado e
controle com o novo coronavírus para o resto da vida. Até agora, mais de 6 me-

94
ses após o início da quarentena, os medicamentos continuam a ser experimenta-
dos, a possibilidade de uma vacina ainda está por vir. Então, nos perguntamos o
tempo inteiro: Que mundo será possível? Que novas formas de vida precisamos
inventar?

Em relação à saúde mental, tudo o que vem sendo discutido e publi-


cado em termos da pandemia tem destacado os impactos psicológicos negativos
desta situação real de ameaça física e psicossocial que estamos vivendo, especial-
mente do isolamento entre grupos mais vulneráveis. Certamente, esses impac-
tos estão associados, por exemplo, à falta de informação confiável pelo governo
brasileiro, pela falta de protocolos eficazes e definidos de tratamento, pela falta
de material de proteção para os trabalhadores que estão na linha de frente – em
todo o mundo, não só no Brasil. A quantidade de profissionais que têm adoecido
com a Síndrome de Burnout, pela sobrecarga física e emocional de trabalho, é
uma coisa absurda. A Espanha divulgou que mais de 50% de seus trabalhadores
têm sintomas de depressão. Aqui, no Brasil, mais de 226 médicos morreram e
mais de 257 mil profissionais de saúde foram contaminados pelo vírus. Tem se
registrado aumento da violência doméstica; que o estresse e o medo têm impli-
cações psiquiátricas importantes, altos índices de rejeição social, de discrimina-
ção e até mesmo de xenofobia em relação a pessoas e populações que vivem em
áreas com alta incidência da doença.

Nota-se uma situação de hipocondria social, que é caracterizada por


esse forte medo do contágio, o medo de desenvolver a doença, por uma hipervi-
gilância do corpo – a gente está cada vez mais atento ao que nos está acontecen-
do –, pelo aparecimento de variados sintomas associados ao transtorno do pâni-
co, sintomas somáticos diversos – como insônia, uso abusivo de medicamentos
e até a automedicação, inclusive para substâncias não recomendadas, como é o
caso da cloroquina, da hidroxicloroquina e da ivermectina, que este governo

95
irresponsavelmente recomendou. Outro aspecto em relação a este cenário de
hipocondria social diz respeito à nossa relação com a cidade e com os espaços
públicos.

A pandemia, paradoxalmente, está gerando uma supervalorização dos


espaços privados e um temor generalizado de que a gente possa sair, que possa
frequentar os espaços públicos de forma segura, e de maneira, inclusive, dife-
rente do modo como a gente ocupava os espaços públicos antes da pandemia.
Então, gostaria de chamar atenção para o fato de que precisamos estar muito
atentos para que o confinamento que está sendo exigido pela pandemia não
intensifique um confinamento que a gente já vivia e que estava absolutamente
naturalizado por conta do medo da violência, e que também não desmonte to-
dos os esforços que a gente tem feito neste país no sentido de democratização do
uso dos espaços públicos e de diminuição da segregação socioespacial no Brasil,
que absolutamente é devastadora.

Nesse cenário, gostaria de destacar duas coisas. A primeira delas é que


esta pandemia não está acontecendo em qualquer momento das nossas vidas,
ela está acontecendo em um momento muito complicado da nossa vida insti-
tucional. É muito comum, hoje, a gente escutar pessoas dizendo que estão so-
frendo muito mais pela situação que o Brasil está vivendo do que propriamente
pela questão da pandemia. Esta situação de fragilidade democrática, de perda
de direitos, de descaso do Estado para com a vida das pessoas, de desproteção
por parte das instituições que deviam nos proteger de forma completamente
diferente do que está acontecendo no Brasil, que já é o segundo em número de
mortes no mundo.

Em minha opinião, o cenário antidemocrático e de perda de direitos


que a gente está vivendo no Brasil tem produzido sofrimento na população e,
pior, uma expansão dos gradientes de vulnerabilidade da população como um

96
todo. Não é só para um determinado grupo, mas é para a população de forma
geral. A expansão dessa vulnerabilização tem uma relação direta com o des-
monte das políticas públicas, com o desmonte do Estado Democrático, com as
políticas de morte e de extermínio que estão em vigor no Brasil e com a inten-
sificação do sofrimento psíquico. Ou seja, o clima de insegurança institucional e
democrática no Brasil é um poderosíssimo vetor de vulnerabilização de grande
parte da população brasileira. É uma das estratégias mais poderosas de captura
micropolítica, no plano das subjetividades, de governo dos corpos e de adesão
a uma racionalidade necropolítica, uma racionalidade de morte. Muitos países
tomaram medidas absolutamente distintas em relação, por exemplo, ao manejo
do isolamento, em relação às perdas salariais, à manutenção dos empregos, à
superlotação dos hospitais, à distribuição de alimentos etc. Existem inúmeras
experiências diferentes do que está acontecendo aqui no Brasil e isso fez toda
a diferença. Aqui, a gente está vivendo a política do descaso, essa política do “E
daí?”. “E daí?” é a total afirmação da lógica do extermínio. Então, este é o pri-
meiro ponto a ser destacado: o cenário antidemocrático que estamos vivendo
tem nos vulnerabilizado mais e mais.

O segundo ponto que quero ressaltar é que, apesar dessa vulnerabi-


lização estar se alastrando, estar se intensificando e estar repercutindo negati-
vamente em nossa saúde mental, do ponto de vista da produção do sofrimento
psíquico, é muito desigual. A pandemia veio revelar as profundas desigualdades
sociais que existem no mundo e no Brasil também, deixando claro quem são, lo-
gicamente, os mais vulneráveis e os matáveis. As estatísticas, desde que começou
a pandemia, mostravam que a população negra era a mais afetada, a que mais
morria, e isso está associado diretamente às suas condições de vida e renda, à
dependência dos sistemas públicos de saúde, à existência de doenças prévias sem
continuidade de cuidado, às moradias precárias nas periferias das grandes cida-
des, ao trabalho informal. Ou seja, a quarentena é mais difícil para uns grupos

97
do que para outros, que padecem de extrema vulnerabilidade, o que, por sua
vez, está associado ao racismo, à discriminação sexual e de gênero. A pandemia
deu visibilidade às iniquidades sociais. Ela não mata tão indiscriminadamente
quanto se pensa, deixando claro, por exemplo, quem pode ficar em casa, quem
tem acesso a material de limpeza, quem pode fazer home office, quem tem in-
ternet que lhe permite assistir aulas on-line em uma semana ou tem apenas
um pacote de dados de modo que, se assistir a meia hora de aula, se finda. Esta
pandemia está escancarando que, apesar de não fazer diferença, pois é democrá-
tica do ponto de vista de contágio, diferentemente do que está se propagando
por aí, nós não estamos, definitivamente, no mesmo barco. O custo subjetivo é
bastante desigual. O custo em termos de mortes também.

Na hierarquia das desigualdades, logicamente, os povos tradicionais,


quilombolas, indígenas, moradores de rua, população LGBTQIA+, os usuários
da RAPS e dos equipamentos de saúde mental, que têm uma história prévia de
pobreza, de desproteção, de exclusão social, de marginalização, e que já eram
“descartáveis”, toda essa população fica ainda mais suscetível aos três vírus que
hoje a gente está enfrentando: o primeiro deles é o Bolsonaro; o segundo vírus
é o neoliberalismo, são essas políticas de morte; e o terceiro vírus é o próprio
novo coronavírus.

Daí a importância da nossa resistência e insistência no fortalecimento


das políticas públicas, das políticas de inclusão, do SUS, a valorização da Ciência
e Tecnologia, do ensino público e gratuito, porque reconhecemos que só por
meio disso é que poderemos frear o avanço desta catástrofe social, deste colapso
sistêmico que atinge a todos os setores da vida, que faz com que a covid-19 seja
mais letal para uns do que para outros, respeitando as desigualdades sociais no
país.

A pandemia, em outras palavras, veio ressaltar as profundas desigual-

98
dades sociais no país e seu rebatimento no quadro de morbimortalidade, bem
como a relação indissociável entre saúde e democracia. Somente em um cenário
democrático é possível sustentar uma política pública de saúde mental ancorada
no pressuposto de que o cuidar em liberdade é terapêutico; os mecanismos de
controle social e participação dos usuários; a desconstrução do paradigma da
loucura como desrazão e doença mental, para uma nova acepção de existência-
-sofrimento; fazer a crítica aos especialismos, ao saber da psiquiatria sobre a lou-
cura, ao hospital psiquiátrico como local de tratamento e cura; investir no modo
de atenção psicossocial focado na produção de vida e sociabilidade e não apenas
em remissão de sintomas; em redes integradas de serviços e coordenação dos
cuidados em saúde mental no território; reconhecer a importância das Equipes
da Atenção Primária; dos vínculos com os usuários e familiares, seja de forma
remota ou não, da continuidade de cuidados – monitoramento telefônico/pre-
sencial; dos grupos de apoio mútuo e iniciativas de cooperação e solidariedade;
dos movimentos sociais; a educação em saúde com foco em estratégias de co-
municação e uso das redes sociais com usuários, com trabalhadores; das redes
virtuais em saúde neste momento, da atenção redobrada aos grupos mais vulne-
ráveis; e a importância da formação política e organização coletiva de usuários,
familiares e trabalhadores da saúde mental e das lideranças comunitárias.

Para finalizar, gostaria de lembrar que a sustentação do desmonte de-


mocrático é feita por uma parcela da população brasileira, que não representa
toda a nossa população. As pessoas que defendem Bolsonaro e as políticas de
extermínio e de morte não representam toda a população brasileira. Nós, como
cidadãos, profissionais de saúde, acadêmicos, estudantes, precisamos ter muita
clareza sobre onde nos posicionamos neste jogo perverso e nos fazer a pergunta
que a jornalista Eliane Brum fez: Como vamos impedir que a máquina de Estado
continue a nos matar? Precisamos reconhecer que o Brasil não se reduz a esta
cena tosca, que temos aliados, mesmo que pensem diferente de nós em algumas

99
coisas, mas muitas pessoas estão fartas da política do ódio e de violência que está
dando a tonalidade ao nosso cotidiano e ao nosso presente.

Precisamos apostar na utopia democrática e solidária, como disse o


filósofo esloveno Žižek: a gente precisa fazer com que os nossos sonhos e nos-
sas utopias não só se transformem, mas que perdurem na transmissão da nossa
memória e dos pequenos gestos. A gente precisa fazer com que eles perdu-
rem contra o ataque sorrateiro diário à democracia, sem que a gente perceba
e se indigne, ainda mais neste cenário de ameaça real às nossas vidas. É preciso
continuar nos esforçando para que esta vulnerabilidade que nos toca hoje seja
transformada numa potência, numa potência de resistência e de sustentação dos
ideais de liberdade, de igualdade e de justiça social.

Não podemos deixar de desejar uma vida livre e democrática, porque


no momento que a gente deixar de sonhar com isso, que a gente deixar de de-
sejar isso, é quando, de fato, essas políticas de morte vão nos esmagar. Somente
sustentando isso, os nossos desejos democráticos, consciente e inconsciente-
mente, é que podemos falar em saúde mental, porque é impossível existir saúde
mental sem democracia. A pandemia é só mais um dos nossos graves problemas.
O estrago que se observa no país é efeito do colapso sistêmico que atinge estru-
turalmente e subjetivamente os brasileiros. Os ideais de liberdade, igualdade e
justiça social são a base da desinstitucionalização da loucura. Somente em um
cenário democrático é possível sustentar a diversidade da vida e o cuidar em
liberdade

100
07

O consumo de drogas na pandemia de covid-19

Paulo Henrique Dias Quinderé, Carla Ribeiro de Sousa, Francisca Graziele


Costa Calixto, Janaína Chagas de Sousa, Mariana Ribeiro Pinto e Ticiane Costa
Mesquita

As drogas e a pandemia
Mediante o contexto da pandemia de covid-19, houve mudanças de
hábitos e de comportamentos diretamente relacionados ao consumo de substân-
cias psicoativas. Tais substâncias, comumente chamadas de drogas, fazem parte
do cotidiano da vida das pessoas, que foi alterado devido às medidas de preven-
ção à disseminação do novo coronavírus (SARS-CoV-2).

Para tal, faz-se necessário compreender o conceito de drogas diferen-


temente das definições pejorativas do senso comum e da Organização Mundial
da Saúde (OMS), que absorvem uma concepção biomédica do termo e categori-
zam as substâncias de acordo com os potenciais efeitos físico-químicos, os quais
produzem mudanças fisiológicas e comportamentais nos organismos humanos.

Drogas são substâncias químicas, sintéticas e/ou naturais que se in-


corporam ao organismo humano, com a capacidade de modificar várias de suas
funções (percepção, conduta, motricidade etc.), porém, “os efeitos, consequên-
cias e funções estão condicionadas acima de tudo pelas definições sociais, eco-
nômicas e culturais geradas pelos grupos sociais que as utilizam” (ROMANÍ,
1997, p. 53).

101
As drogas são substâncias inertes até que sejam introduzidas num cor-
po, e não se tratando de pessoas, não podem, literalmente, forçar ninguém a
fazer nada (SZASZ, 1993). Seus efeitos psicológicos só atuam no psiquismo e
na vida social de uma pessoa a partir do momento em que ela os reconhece e
incorpora no quadro das representações coletivas mobilizadas pelo grupo para
descrever esses mesmos efeitos e definir condições adequadas para atingi-los
(BERGERON, 2012; BECKER, 2008).

Não é possível compreender o fenômeno do consumo de drogas ape-


nas a partir dos efeitos físico-químicos que elas disparam nas pessoas, os condi-
cionantes sociais (políticos e econômicos), os elementos pertencentes à produ-
ção subjetiva dos coletivos humanos, tais como as representações que a droga
absorve numa determinada sociedade, os aspectos individuais e como atribuem
sentido ao uso. As múltiplas substâncias, a qualidade da droga, seu grau de pure-
za, as formas de uso, o acesso ao consumo, todos esses aspectos dizem respeito
à maneira na qual a sociedade vai se relacionar com as drogas e como vai expe-
rimentar seus efeitos.

No Brasil, temos uma sociedade que distribui de maneira desigual a


sua riqueza. A partir dos estratos de classe social os coletivos irão consumir
determinados tipos de substâncias, além de experimentarem e vivenciarem os
efeitos de maneiras distintas. Determinadas drogas estão relacionadas a deter-
minados públicos, fatiados de acordo com a sua classe social. Quem possui boas
condições financeiras pode pagar por cocaína de qualidade, acessando todo o
entorno sociocultural que envolve esse consumo; e quem é menos abastado vai
acessar o crack, assim como todo o contexto social que se relaciona com esse
cenário de consumo.

As políticas relacionadas às drogas também exercem influência em


como se experimentam esses efeitos. Se a droga é proibida ou legalizada, se é so-

102
cialmente aceita ou se tem uma representação negativa na sociedade, remete-se
a uma representação de poder, de status social ou se está relacionada a padrões
de beleza. Esses elementos influenciam em como os coletivos irão experimentar
seus efeitos.

Há algum tempo, a maconha era vista muito mais preconceituosamen-


te do que hoje, visto que passa por uma transformação de sua representação.
Tem-se hoje uma representação terapêutica do uso da Cannabis, absorvendo um
significado positivo dentro da sociedade. Durante um período, no Brasil, teve
seu uso criminalizado e associado às comunidades negras expulsas dos centros
urbanos para as zonas periféricas. Mediante pesquisas científicas e a descoberta
dos seus efeitos benéficos, passou-se a produzir uma referência positiva dessa
substância, principalmente pelos seus efeitos terapêuticos na amenização da dor
e do sofrimento dos familiares e pacientes que dela necessitam.

Mais do que as drogas impetrarem modificações no nosso organismo,


nós, enquanto coletivo humano, modificamos as representações que essas dro-
gas têm para a sociedade. Modificamos a sua química, modificamos seus efeitos,
modificamos seus significados e, dessa forma, também absorvemos todas essas
transformações, na medida em que também produzimos modificações nelas.

Assim, o contexto atual nos coloca numa situação de vulnerabilidade,


de medo, ansiedade, angústia e de indefinições. Sofrimento, não só físico, rela-
cionado aos agravos produzidos pela doença covid-19, mas sofrimento psíquico,
de estarmos isolados, longe das pessoas que amamos. Houve restrição quanto à
manifestação dos nossos afetos, logo nós, brasileiros, um povo caloroso, de tato,
de contato, de aconchego, momentaneamente, limitados a exercer tal expansi-
vidade.

Neste novo contexto, os usos vão absorver outras representações e

103
outros significados, e, por certo, produzirão outros efeitos. Destarte, o consu-
mo de drogas tem aumentado neste período de pandemia de covid-19? Prova-
velmente, sim. Estamos diante de um momento de incerteza e de sofrimento. É
possível que o consumo dessas substâncias tenha aumentado como uma forma
de minimizar esses sofrimentos.

Percebe-se o aumento do uso do álcool, que se deslocou de um con-


sumo público, em bares e restaurantes, para o consumo em ambientes domés-
ticos privados. A simbologia do consumo com fins de socialização foi tempora-
riamente suspensa, havendo direcionamento coletivo na busca do álcool como
forma de suportar o isolamento social. 

Um estudo realizado pelo Global Drug Survey, com 55.811 pessoas


de vários países, incluindo: Alemanha, França, Irlanda, Brasil (3.653), Suíça,
Holanda, Nova Zelândia, Reino Unido, Austrália, Áustria e Estados Unidos,
constatou que 43% da amostra aumentou a frequência de beber e que 25% teve
diminuição. Enquanto 36% dos participantes relataram aumento na quantidade
de álcool que beberam em um dia típico, 22% reduziram em comparação com
antes da covid-19. Do total da amostra, 30% relatou começar a beber no início
do dia em comparação com antes da covid-19; e 42% queria beber menos nos
próximos 30 dias (WINSTOCK et al., 2020).

Concernente às demais drogas usadas nos últimos 30 dias por essa


amostra, 28% utilizou produtos de Cannabis contendo Tetrahidrocanabinol
(THC), acompanhados por Canabidiol (CBD) e 9% de produtos de Cannabis.
Seguidos de Cocaína (7%), MDMA (6%), benzodiazepínicos prescritos (5%),
anfetamina (4%), prescrição de opioides e LSD, com 3%, respectivamente
(WINSTOCK et al., 2020).

Um dado chama atenção de que 39% dos entrevistados que usaram

104
Cannabis no ano passado relataram um aumento em comparação com antes da
covid-19. Destaque para os países Austrália (49%) e EUA (46%), com maiores
aumentos no consumo entre os entrevistados. Entre as drogas comumente con-
sumidas em festas ocorreram as maiores quedas. Mais de um terço dos entrevis-
tados que relataram uso de MDMA (41%), cocaína (38%), anfetaminas (35%) e
cetamina (34%) indicaram que usaram com menos frequência em comparação
com o período anterior à covid-19 (WINSTOCK et al., 2020). Dessa forma, os
dados apontam para uma redução do uso de drogas normalmente consumidas
em momentos de socialização e aumento do consumo doméstico dessas substân-
cias como forma de minimizar os sofrimentos decorrentes da pandemia.

Drogas e violência
Em matéria publicada no Portal UOL, Dias (2020a) aborda o levan-
tamento feito no Brasil pelo Centro de Convivência “É de lei” com o apoio do
grupo de pesquisas em toxicologia do Laboratório de Estudos Interdisciplinares
sobre Psicoativos da Unicamp (LEIPSI), que entrevistou 4.000 pessoas entre
os dias 30 de abril e 15 de maio de 2020, apontando que 38,4% das pessoas
em quarentena relataram aumento do consumo de drogas legalizadas ou não.
Do total, 34% disseram ter diminuído a frequência de uso e 27% mantiveram
hábitos anteriores.

A pesquisadora Ana Cristhina Sampaio Maluf chama atenção para que


“a mudança do contexto de consumo pode afetar as experiências e a relação com
as substâncias neste período de isolamento. Torna o consumo mais individual do
que social” (DIAS, 2020a).

No que diz respeito ao consumo do álcool, no qual o uso passou para,


como se diz no Ceará: “dendi-casa”, houve impactos na experiência da relação
com essa substância, tanto do ponto de vista individual quanto coletivo. Se, por

105
um lado, pode produzir resultados danosos, associando-se ao aumento da vio-
lência doméstica; por outro, pode estar associado à diminuição do número de
morte no trânsito, decorrente de um menor número de pedestres e condutores
alcoolizados circulando.

Segundo a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos (ONDH), do


Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), entre os
dias 1º e 25 de março, mês da mulher, houve crescimento de 18% no número de
denúncias registradas pelos serviços: Disque 100 e Ligue 180. Dos 3.739 homi-
cídios de mulheres em 2019, no Brasil, 1.314 (35%) foram categorizados como
feminicídios. Isso equivale a dizer que, a cada sete horas, uma mulher é morta
pelo fato de ser mulher. Ao analisar o aspecto vínculo com o autor, revela-se que
88,8% dos feminicídios foram praticados por companheiros ou ex-companhei-
ros (VIEIRA; GARCIA; MACIEL, 2020).

Portanto, houve um aumento desse tipo de violência, em que as fa-


mílias passam a ficar mais tempo juntas numa situação de sofrimento – atrelado
ao aumento no consumo de álcool e outras drogas. Sabe-se que o abuso dessas
substâncias tem íntima correlação com a violência doméstica.

Levantamento feito pelo Centro de Informação sobre Saúde e Álcool


(CISA) aponta que o consumo nocivo de álcool está relacionado a cerca de 18%
dos casos de violência doméstica. Aparece como um importante fator de risco
para agressões, dado o abuso dessas substâncias poderem propiciar impulsos
agressivos e a perda de controle sobre o comportamento (CISA, 2020). A OMS
enfatiza a necessidade de campanhas que aumentem a compreensão da popula-
ção acerca dos malefícios do consumo nocivo de álcool (WHO, 2018).

Ressalta-se que a violência doméstica é um fenômeno complexo, re-


sultado de muitos fatores: culturais, sociais, econômicos e individuais. Neces-

106
sita-se, além de medidas que possam restringir a venda de bebidas alcoólicas
per capita, de estratégias que aumentem as equipes de profissionais habilitados
para a prevenção e resposta a tais violências, ampla divulgação dos serviços dis-
poníveis, a capacitação dos trabalhadores da saúde para identificar situações de
risco, de modo a não reafirmar orientação para o isolamento doméstico nessas
situações, expansão e fortalecimento das redes de apoio informais e virtuais de
suporte social como alerta para os agressores de que as vítimas não estão com-
pletamente isoladas (VIERA; GARCIA; MACIEL, 2020).

Segundo matéria publicada no Portal G1 SP2 – São Paulo (2020), o


número de acidentes e mortes no trânsito caiu durante a quarentena em São
Paulo. A queda foi a maior já registrada desde 2015, no período de 24 de março
a 30 de junho. No estado de São Paulo, o número de acidentes de trânsito foi de
35,6 mil em 2020, queda de 30% em relação aos 51,3 mil registrados no mes-
mo período de 2019. Já o número de mortes caiu 22%, sendo 1.167 em 2020
e 1.513 em 2019. 

Entre maio e julho desse ano, por exemplo, o número de ocorrências


sem mortes no trânsito no estado do Rio de Janeiro caiu 60% na comparação
com o mesmo período do ano anterior – 9.290 registros para 3.694, segundo
dados da Secretaria de Estado da Segurança Pública. Já os acidentes com ao me-
nos uma morte recuou 11% no mesmo período – caiu de 619 para 552 casos
(ZYLBERKAN, 2020).

Assim, a relação álcool e direção pode ter sido positivamente afetada.


Embora as regras impostas pela quarentena tenham reduzido o número de car-
ros e de pessoas circulando nas cidades, temos, de um modo geral, a população
consumindo mais álcool e outras drogas. Destarte, pode-se inferir que não é
o aumento de consumo de álcool e outras drogas que aumenta a violência no
trânsito, e sim como a população estabelece sua relação com a substância, já que

107
momentaneamente o uso passa a ser mais doméstico. Faz-se pensar que medidas
preventivas, tais como: redução do fluxo de veículos, ampliação e melhorias na
qualidade do transporte coletivo venham a ser mais eficientes na redução da
violência no trânsito do que medidas punitivas para condutores alcoolizados,
quando estes já cometeram a infração.

Drogas e qualidade de vida


As mudanças de hábitos relacionados ao consumo de drogas provoca-
ram alterações nas formas como os coletivos humanos se relacionam com elas.
Pensando nisso, alguns países adotaram medidas para se adaptar a essa realidade
de isolamento social, potencial produtor de sofrimento psíquico.

Alguns países, pensando o uso de substâncias como uma possibilidade


de melhorar a qualidade de vida das pessoas a fim de que possam suportar o
isolamento, traçaram políticas públicas para viabilizar o acesso da população a
determinadas drogas. 

Países como o Canadá, Holanda e até mesmo determinadas localida-


des dos Estados Unidos passaram a considerar os serviços de venda de bebidas
e de Cannabis como serviços essenciais. Dias (2020b) destaca que em torno de
uma dúzia de estados norte-americanos concordaram que estabelecimentos que
vendem Cannabis e dispensários de maconha medicinal não podem parar. Neste
momento excepcional, tal substância pode ser tão necessária quanto os itens de
necessidades básicas.

Na Califórnia, registrou-se um aumento de mais de 150% na comer-


cialização de Cannabis. De acordo com um levantamento do Headset, empresa
americana de pesquisa na área, ainda em março, o aumento do consumo foi
capitaneado por mulheres e jovens. Os estados de Massachusetts, Michigan e
Illinois regularam os serviços de entrega em domicílio para evitar aglomerações

108
(DIAS, 2020b).

Nos países onde a Cannabis é legalizada, traçaram-se estratégias para


fazer com que as pessoas melhorassem suas condições de vida com o uso dessa
substância e suportando o sofrimento. Na Holanda, inicialmente, os coffee shops
fecharam as portas por serem espaços de socialização; mas, com receio de que
o tráfico de drogas entrasse no jogo e devido à crescente demanda pela droga, o
governo voltou atrás e reabriu os estabelecimentos regulando a distribuição de
maneira que não ocasionassem aglomerações (DIAS, 2020b).

No Canadá, a Colúmbia Britânica, província no extremo oeste, incluiu


os produtores e varejistas de Cannabis na lista de serviços essenciais durante a
quarentena. Em comunicado à imprensa, o órgão de segurança pública do go-
verno local afirmou: “serviços essenciais são aqueles serviços diários essenciais
para preservar a vida, a saúde, a segurança pública e o funcionamento básico da
sociedade”. Outras províncias como Quebec e Ontário também classificaram as
lojas de Cannabis como serviços essenciais, assim como estão liberados serviços
como supermercados, lojas de bebidas e de fornecimento de produtos agrícolas
(AMAZONAS ATUAL, 2020).

Assim, essas ações tiveram como objetivo melhorar a qualidade de


vida durante a quarentena das pessoas que dependem de determinadas drogas,
seja do uso terapêutico da Cannabis, seja de pessoas que vieram a apresentar
potenciais quadros de abstinência alcoólica durante a pandemia. Pessoas que vi-
nham fazendo uso constante de álcool e que neste momento tiveram de se isolar,
reduzindo ou cessando o uso, podem apresentar um quadro clínico de abstinên-
cia física, e, mediante a situação caótica de superlotação dos leitos hospitalares e
do colapso dos sistemas de saúde, tal quadro clínico pode levar a óbito caso não
tenham acesso à droga ou à assistência médica.

109
No Brasil, a Associação Brasileira de Cannabis Esperança (ABRACE)
tem se adaptado para manter a produção do canabidiol em suas estufas e labo-
ratórios instalados na cidade de João Pessoa-PB. Foram instituídas escalas de
trabalho, regime de home office e uso obrigatório de máscaras. A produção dessa
substância beneficia pacientes com patologias crônicas, tais como: epilepsia, Al-
zheimer, Parkinson e autismo, melhorando a qualidade de vida dos pacientes e
de seus familiares (DIAS, 2020b).

Considerações finais
A Pandemia de covid-19 proporcionou formas diferentes de se rela-
cionar com as drogas. Houve alterações nos contextos de uso, nos motivos pelos
quais se busca e nas formas de consumir. As mudanças nos contextos de consu-
mo têm interferência direta em como os coletivos humanos irão experimentar
seus efeitos.

Referências

ABUSO de álcool e violência doméstica em tempos de pandemia.


CISA, 30 abr. 2020. Disponível em: https://cisa.org.br/index.php/sua-saude/
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ACIDENTES de trânsito caem 30% no estado de SP durante a qua-


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BECKER, H. S. Outsiders: estudos da sociologia do desvio. Rio de


Janeiro: Zahar, 2008.

110
BERGERON, H. A. Sociologia da droga. Aparecida: Ideia & Letras,
2012.

DIAS, T. 52% dos jovens usam psicoativos para lidar com a pandemia
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uol.com.br/noticias/redacao/2020/06/06/52-usam-psicoativos-para-lidar-
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PROVÍNCIA do Canadá inclui Cannabis entre serviços essenciais na


quarentena. Amazonas Atual, 28 mar. 2020. Disponível em: https://amazona-
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SP durante a pandemia. Revista Veja, 25 ago. 2020. Disponível em: https://
veja.abril.com.br/brasil/numero-de-acidentes-de-transito-cai-no-rio-e-em-s-
p-durante-a-pandemia/. Acesso em: 19 out. 2020.

112
Parte 3

Ética e Ciência

113
08

Ética e Ciência na pandemia de covid-19

Natália Santos Marques

O mundo tem enfrentado nos últimos meses uma crise de saúde sem


precedentes, provocada pela covid-19, doença respiratória contagiosa causada
pelo SARS-CoV-2. Nesse contexto, a comunidade científica tem assumido um
papel vital na produção de informações sobre a pandemia e na busca de trata-
mentos. Estudos de epidemiologia sumarizaram o que já era conhecido sobre o
vírus desde os primeiros registros de manifestações na China, em 2019, até o
final de fevereiro de 2020, e no início de março já conhecíamos diversas infor-
mações relacionadas às formas de manifestações do vírus, distribuição de casos
no mundo, formas de transmissão, sobre diagnóstico, prognóstico, formas de
prevenção individual e de contenção em grandes populações (SOHRABI et al.,
2020).

Ainda não avançamos na constatação de um medicamento ou vacina


com efeitos comprovados na prevenção ou no combate à covid-19. Mas o pri-
meiro passo para isso, que é o sequenciamento genético do vírus, foi realizado
aqui no Brasil, por um estudo encabeçado pela pesquisadora Dra. Jaqueline Goes
de Jesus, em uma parceria entre pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz (IAL),
da Universidade de Oxford e do Instituto de Medicina Tropical da Universidade
de São Paulo (IMT-USP). O genoma completo do vírus foi disponibilizado pela
equipe à comunidade científica internacional, e tem sido essencial para o desen-
volvimento de vacinas, testes diagnósticos, para a compreensão da dispersão do

114
vírus e para detectar mutações que possam alterar a evolução da doença.

Esses dados iniciais produzidos sobre a covid-19 apontaram também in-


formações sobre grupos de risco: pessoas mais velhas e/ou com doenças crôni-
cas pré-existentes (SOHRABI et al., 2020). Sabemos, com isso, que estamos
todos vulneráveis à infecção por esse vírus, mas não igualmente vulneráveis
aos comprometimentos dele decorrentes. A análise de grupo de risco leva em
consideração condições preexistentes no organismo e suas implicações na evo-
lução do quadro da infecção, se ela ocorrer. Porém, as vulnerabilidades de ser
acometido por doenças e a elas sucumbir vão muito além de características or-
ganísmicas, tendo de ser aí incluídos aspectos sociais, econômicos, sanitários e
culturais. Aspectos, portanto, relativos à história pessoal dos indivíduos e dos
grupos aos quais eles pertencem.

Uma pesquisa em curso financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa


do Estado de São Paulo (FAPESP) e divulgada em seu site oficial investiga o
impacto da covid-19 a partir de características sociodemográficas e territoriais,
e tem constatado que o número de casos e de mortes por covid-19 tende a
ser maior nas áreas periféricas das cidades e em regiões que já sofriam com
problemas estruturais como falta de moradia digna, acesso deficiente à água e
saneamento, altos índices de poluição do ar e contaminação do solo (ZIEGLER,
2020). O estudo de Lima et al. (2020) também contribui para expandir a com-
preensão sobre “grupo de risco” para a covid-19. Os autores discutiram os com-
portamentos e crenças de 2.259 cearenses em relação à pandemia e concluíram
que a abordagem diante da covid-19 no Ceará está correlacionada com aspectos
sociais, como gênero, idade, escolaridade e local de residência, assim como o
sistema de crenças da população do estado.

Estudos como esses têm oferecido contribuições significativas ao di-


recionamento de políticas públicas de combate à pandemia. Em momentos de

115
crise, como a que estamos vivendo, a necessidade da ciência em nortear as to-
madas de decisões fica mais evidente. Mas na vida cotidiana, em que más deci-
sões políticas não têm efeitos tão diretos e/ou evidentes na sobrevivência das
pessoas, a ciência tem sido muito menos solicitada. As primeiras contribuições
científicas que alertavam para o risco de uma pandemia de covid-19 datam de
2007 (CHENG et al., 2007). Por que, então, o mundo não se preparou para isso?
Neste capítulo, discutem-se duas possíveis explicações do porquê não somos
ouvidos mais vezes e fora de situações de crise: o distanciamento entre ciência e
sociedade; o negacionismo científico sendo alimentado nas universidades.

Ciência, sociedade e horizontalidade na relação de poder


A superespecialização da ciência moderna oferece inúmeras vantagens
no aprofundamento do conhecimento produzido, mas tem sido acompanhada
pelo estabelecimento de muros dentro da própria ciência e fortalecimento dos
já existentes muros entre a ciência e outras formas de saber humano, como o
conhecimento popular.

Essa crítica do distanciamento do saber científico ao exame popular não


é recente. Segundo Pimenta (2019), o principal legado do Iluminismo é a ideia
de que a razão não é um dado, é uma conquista: o pensar por nós mesmos só se
realiza efetivamente pelo uso crítico da razão, e isso não é dado, é conquistado,
ou seja, é aprendido. Essa ideia de que o pensamento crítico é conquistado ou
aprendido exige a consideração de nossas iniquidades nas condições de desen-
volvimento e de exercício desse pensamento crítico. De acordo com Pimenta
(2019), Kant destaca que um grande empecilho ao desenvolvimento e exercí-
cio do pensamento crítico são os discursos das autoridades, que se apresentam
como verdades, sem o compromisso de justificar suas pretensões à verdade,
sem abrir possibilidade de discutir ou avaliar a necessidade ou razoabilidade
de suas proposições. Nesse sentido, é um discurso arbitrário de autoridade, e

116
autoritário.

Ainda nessa perspectiva, Pimenta afirma que Kant aplicou essa crítica
sobre a limitação do pensamento crítico pelos discursos das autoridades à polí-
tica, à religião e à ciência, especificamente o saber médico de sua época, apon-
tando-o como autoridade estabelecida que se furtava ao exame crítico. Como
um exemplo, uma afirmação política do tipo “Precisamos voltar à normalidade/
ao trabalho, ou o país vai ‘quebrar’!”, sem criar condições para que se examine
criticamente a real disponibilidade de condições de auxílio por parte do Estado,
os efeitos específicos e precisos do atraso no retorno ao trabalho presencial na
arrecadação aos cofres públicos e, consequentemente, nas ofertas de serviços
à população em curto, médio e longo prazo etc., consiste em um discurso que
apresenta suas proposições sem oportunizar esse pensamento crítico, ou seja,
um uso arbitrário de autoridade.

Nessa mesma direção, Skinner (1953) discutiu os problemas advindos


do controle exercido pelas autoridades institucionalizadas, que ele chamou de
“agências de controle”, referindo-se ao Governo e à lei (e, dentro dela, a polí-
cia), à religião, à economia, à educação e até à psicoterapia. Skinner destaca que
um dos problemas do controle exercido por essas agências de controle é o fato
de que seus agentes agem de modo a manter seu poder de controle, ainda que
isso resulte em consequências inconsistentes com a sobrevivência da cultura
(SKINNER, 1971).

Skinner se opunha à nossa forma de organização social, na qual algumas


pessoas têm mais status que outras, criando relações verticalizadas. Para o autor,
o status pessoal e profissional significa não apenas ter disponibilidade de amplo
acesso a reforçadores, mas, principalmente, tem a ver com poder de controle:
poder ou possibilidade de controlar o acesso de outras pessoas aos seus refor-
çadores (SKINNER, 1971). Assim, o status é um reforçador social poderoso

117
e, por isso, as pessoas agem de modo a mantê-lo, o que muitas vezes significa
evitar o exame crítico, a discordância, a avaliação pública, mantendo as relações
verticalizadas.

Das discussões de Skinner (1971, 1978a) sobre os problemas do status e


verticalidade nas relações, pode-se derivar o papel da ciência, enquanto campo
do conhecimento, e da educação, enquanto agência de controle: promover a ho-
rizontalidade das relações por meio do estabelecimento de condições, oportuni-
dades e consequências para o pensar criticamente. Nesse sentido, à comunidade
científica cabe o compromisso ético de reduzir iniquidades e combater vulnera-
bilidades, por intermédio da construção de um conhecimento que oportunize
o debate crítico.

Para Skinner (1953), ciência é, antes de tudo, “um conjunto de atitu-


des” e, nesse sentido, para entender o processo evolutivo da ciência, é preciso
entender o comportamento do cientista, bem como todas as variáveis que o
determinam: variáveis de sua história pessoal – incluindo o acesso a proposições
científicas prévias; e variáveis culturais. Esse conjunto de atitudes envolve uma
“disposição de tratar com os fatos, de preferência, e não com o que se possa
ter dito sobre eles” e a consequente rejeição da autoridade: “A ciência rejeita
mesmo suas próprias autoridades quando elas interferem com a observação da
natureza. A ciência é uma disposição de aceitar os fatos mesmo quando eles são
opostos aos desejos” (p. 25). Assim, Skinner descreve o compromisso do cientis-
ta com a natureza e afirma que ciência é uma disposição para a mudança: “Mude
e esteja pronto a mudar novamente. Não aceite verdade eterna; experimente”
(SKINNER, 1978b, p. 2). Ainda, envolve um reconhecimento honesto do des-
conhecimento: “disposição para escolher permanecer sem respostas, a adotar
respostas insatisfatórias” (SKINNER, 1978b). Ou seja: a ciência pós-moderna
reconhece sua ignorância, reconhece a interferência pessoal do cientista, expõe

118
suas autoridades ao exame crítico e trabalha com verdades transitórias.

Todavia, suas verdades provisórias são metódicas: ciente das possibi-


lidades de viés de percepção e todas as demais possibilidades de interferência
pessoal na produção do conhecimento, a ciência lança mão de procedimentos
que buscam minimizar os efeitos dessas interferências. Controlamos, quando
possível, detalhes do ambiente, participantes e/ou do instrumento de coleta de
dados, repetimos tudo isso com outras pessoas, ou outros ambientes, ou outras
variáveis e, depois disso tudo, “abrimos o código”: contamos tudo o que fize-
mos, exatamente como fizemos, na expectativa que alguém duvide das nossas
afirmações, teste nosso método e avalie os resultados. Ou seja, diferentemente
do discurso autoritário de autoridade, o conhecimento científico que perdura
ao longo do tempo permaneceu não por se furtar ao exame crítico, mas porque
sobreviveu a este. Suas afirmações são constantemente submetidas à verificação
e, consequentemente, à mudança. Portanto, as mudanças nas verdades científi-
cas não são uma fraqueza da ciência, e sim um indicativo de que é um discurso
que não apenas se abre ao pensamento crítico, mas é alimentado por ele.

Aqui, porém, cabe questionar a quem tem sido reservado esse deba-
te. A discussão sobre o pensamento crítico como algo construído, e não dado,
relembra-nos a necessidade do compromisso ético do cientista com a redução
das iniquidades e horizontalidade das relações. Desse modo, possibilitamos a
criação das condições necessárias para que o debate crítico que fomenta o fazer
científico seja exercido por todos, e não apenas por uma minoria privilegiada.
De outro modo, permaneceremos distanciados do exame popular. Dentre os
inúmeros efeitos deletérios desse distanciamento, podemos apontar a produção
de uma ciência desconectada das demandas sociais e o fortalecimento do nega-
cionismo científico, cada vez mais forte no Brasil, que sobrepõe certos relatos
anedóticos às evidências mais fortes em ciência.

119
Negacionismo científico e anticientificismo
O discurso de negação – total ou parcial – da ciência de modo geral,
também chamado negacionismo científico, envolve muitas correntes, tais como
o terraplanismo, o negacionismo acerca das mudanças climáticas e o movimento
antivacina como as maiores representações atuais da total negação da ciência.
Embora aparentemente inofensivos, o fortalecimento desses discursos tem im-
plicado em sérias consequências sociais, inclusive para a sobrevivência, pois tem
orientado decisões individuais, e até políticas públicas. De acordo com a Pesqui-
sa FAPESP (2018), em 2017 as taxas de vacinação de crianças contra 17 doenças
foi a menor dos últimos 20 anos. De acordo com especialistas no assunto, um
dos motivos para esse efeito é o crescimento de crenças distorcidas em relação
às vacinas.

Ao longo dos últimos quatro anos, o presidente dos Estados Unidos,


Donald Trump, tem repetido negacionismos científicos, afirmando frequen-
temente, por exemplo, que aquecimento global não existe e menosprezando
a opinião de cientistas em órgãos governamentais. Esse desprezo pela ciência
também pode ser observado no Brasil, quando, apesar das previsões catastrófi-
cas dos especialistas no assunto em todo o mundo, o presidente Jair Bolsonaro
afirmou, muitas vezes, que a pandemia do coronavírus era “histeria”, “pânico
incentivado pela mídia”, ignorou as recomendações dos especialistas e incenti-
vou comportamentos que competem com a contenção da crise sanitária, como
o incentivo a manifestações envolvendo aglomerações, o precoce retorno ao
trabalho presencial e a saída às ruas sem máscara e mantendo contato físico
interpessoal.

Além desse tipo de negação explícita do conhecimento científico, argu-


menta-se que o negacionismo científico no Brasil tem assumido outra topogra-
fia, talvez ainda mais perigosa, visto que alimentada no seio das universidades.

120
Essa segunda forma de negacionismo científico frequentemente emerge como
críticas ao cientificismo, ou seja, como anticientificismo.

O cientificismo é a concepção segundo a qual a ciência é um conhe-


cimento objetivo, cumulativo, racional e verdadeiro, cuja busca do saber tem
fim em si mesma, de maneira neutra e sem compromisso com a solução de
problemas humanos. A confrontação em relação a essa ideia ficou originalmente
conhecida como “anticientificismo”, e apontava para uma concepção de ciên-
cia como produto social e com compromissos éticos. Assim, inicialmente o an-
ticientificismo surgiu como um discurso de oposição a um certo modelo de
ciência (positivista comtiano). Todavia, atualmente tem se fortalecido como um
discurso de rejeição a qualquer pretensão de objetividade, quantificação, verifi-
cação ou busca por validade interna e/ou externa na ciência. Desse modo, em
sua nova roupagem, o termo “cientificismo” se mantém como uma crítica, mas
dirigida não mais a um tipo reducionista de ciência, mas às características fun-
damentais do fazer científico.

Esse tipo de discurso de negação da ciência tem se alojado no âmago da


própria comunidade científica, no berço da maior parte da produção científica:
as universidades. Quem nunca falou ou ouviu alguém falar, dentro dos muros
da universidade, coisas do tipo: “Isso é muito cientificista!”, em repúdio a lin-
guagens mais técnicas ou operacionais? Ou quem nunca ouviu sobre a suposta
impossibilidade de construir conhecimento científico sobre o homem que seja
generalizável, porque o homem seria “complexo demais”?

Considerando o papel da ciência no desenvolvimento do pensamento


crítico e, com ele, no desenvolvimento do contracontrole às formas de controle
autoritárias, a quem serve o discurso de desqualificação da ciência? Esse tipo de
negacionismo da ciência, nascido e reproduzido no berço da própria ciência (as
universidades), alimenta o negacionismo mais explícito, pois traz em seu âmago

121
um relativismo que se alinha à concepção de “pós-verdade”.

Como aponta a Dra. Imaculada Kangussu, professora de filosofia da


Universidade Federal de Ouro Preto, vivemos hoje o que tem sido chamado
como “era da pós-verdade”, na qual as crenças pessoais parecem ter ganhado
enorme autoridade em direcionar a opinião pública (KANGUSSU, 2019). Nes-
se contexto, segundo Kangussu (2019), a concepção de verdade é tão execrada
que os discursos nem se prestam a convencer o público sobre a veracidade de
suas proposições. Escolhemos em que vamos acreditar muito mais em função da
forma como os diferentes discursos nos afetam do que em função da avaliação
crítica de seu teor de “verdade”, porque a própria busca da “verdade” foi aban-
donada. Então, como explica a pesquisadora, uns vão acreditar que a terra é
redonda; outros, que a terra é plana, porque nenhum dos dois domina a teoria
científica que diz que a terra é redonda. E aí, cada um acredita no que quer. E,
em geral, as pessoas escolhem mais acreditar naquilo que lhes parece mais boni-
to, mais doce, mais poético, mais “leve”, do que em discursos frios e lógicos, es-
pecialmente quando esses escancaram dores e sofrimentos. O risco, aqui, é que
também no âmbito da produção científica a estética e eloquência sobrepujem a
parcimônia, a honestidade intelectual e o compromisso com os dados, “mesmo
quando eles são opostos aos desejos” (SKINNER, 1953, p. 25).

Outra armadilha dessas negações diretas e indiretas da ciência é o for-


talecimento de formas de discursos que se valem do status social conquistado
pela ciência, sem, contudo, sujeitar-se às suas ferramentas de controle: são as
chamadas pseudociências. Dentre elas, pode-se apontar: terapia de florais, acu-
puntura, terapias de cristais, homeopatia, bioenergética, imposição de mãos,
aromaterapia e cromoterapia. Mais uma vez, aparentemente inofensivas, tais
práticas têm despendido dinheiro público e ameaçado vidas, visto que, apesar
de não se comprometerem com a produção de evidências de seus efeitos, muitas

122
têm sido ofertadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), voltadas para curar e
prevenir diversas doenças, como depressão e hipertensão.

Diante de todas essas questões éticas e políticas relacionadas ao fazer


ciência e às implicações da ciência no mundo, inclusive à sobrevivência das pes-
soas, é urgente que a comunidade científica fortaleça o combate a todo tipo de
negacionismo científico, inclusive os negacionismos sob a forma de anticientifi-
cismo. E que isso seja feito para além dos muros da universidade. Uma impor-
tante divulgadora da ciência, a bióloga Natalia Pasternak, relembra-nos que,
apesar de todas as dificuldades em fazer ciência no Brasil, temos uma tradição
científica sólida e respeitada, com nomes conhecidos e respeitados internacio-
nalmente, ao longo da história, como Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, César Lat-
tes, Suzanna Herculano-Houzel e Mayana Zatz. Essas pessoas trouxeram contri-
buições à ciência de todo o mundo. Todavia, como destacou Pasternak (2017),
em geral, a população brasileira não sabe onde se faz pesquisa no país, não sabe
nem mesmo citar um cientista brasileiro, de tal modo que o discurso científico é
um dialeto, e o cientista brasileiro é invisível. Como destacou Pasternak (2020),
nosso silêncio perante a sociedade pode custar vidas.

Assim, precisamos ocupar os espaços midiáticos com a mesma efeti-


vidade com que fazem os negacionistas da ciência e os pseudocientistas, bem
como estarmos atentos para que nosso pensamento crítico acerca do nosso fa-
zer científico (que é o que nos permite evoluir) não funcione como um tipo
de negacionismo científico. Sobre esse ponto, faço uso da referência à imagem
mitológica de Ouroboros, símbolo grego em que uma serpente engole o próprio
rabo. Ouroboros, assim como a crítica da ciência a si mesma, significa evolução,
continuidade, renovação. No entanto, ao contrário da criatura mítica, suicídio e
não renovação está em jogo para o animal de verdade, assim como para a ciência
que rejeita as práticas fundamentais do fazer científico.

123
Referências

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125
09
Pandemia de covid-19 no Brasil: reflexões sobre as implicações éti-
cas e científicas

Veriana de Fátima Rodrigues Colaço

Este texto é resultante de uma fala que fiz para o Seminário 7 do Curso
de Extensão de que trata este livro, cujo tema foi “Ética e Ciência em Contexto
de Pandemia”. Minha apresentação destacou sobretudo a dimensão prática da
relação entre ética e ciência neste tempo de pandemia, acentuando os conflitos
e dilemas vividos, particularmente, por trabalhadores do campo da saúde que
estão na linha de frente do atendimento às vítimas do novo coronavírus. Focarei
na ética e, mais especificamente, na bioética como linha de condução das discus-
sões que o tema desperta. Tomo como premissa básica a convicção de que toda
a vida importa e precisa ser preservada. Com essa convicção é que desenvolvo o
tema falando acerca de conflitos e dilemas éticos neste contexto.

O tema geral do Curso de Extensão versou sobre os processos psicos-


sociais e as vulnerabilidades que todos estamos enfrentando com a pandemia
do novo coronavírus, e as várias falas em todos os módulos tocaram, de algu-
ma forma, nos sentimentos de insegurança, angústia e medo pela agudização
dessas vulnerabilidades em diferentes dimensões: social, econômica, política e
psicológica. Vale ressaltar, no entanto, que para uma grande parte da população
a pandemia só acentuou vulnerabilidades que fazem parte dos seus cotidianos,
especialmente para quem está à margem, em situação de pobreza extrema e
tem sua vida marcada pela privação e pelas consequências nefastas da enorme

126
desigualdade social que temos no Brasil. Também são esses os que enfrentam
os efeitos do vírus mais intensamente, porque a desigualdade aí também está
presente. O vírus se dissemina por todos os setores, mas suas consequências são
bem distintas entre as diferentes camadas sociais. É com essa visão que procura-
rei desenvolver este texto.

Divido em três partes esta minha reflexão. Primeiro, procuro situar


conceitualmente e de forma breve ética e bioética; em seguida, discorro sobre
o cenário político brasileiro atual para o entendimento da intensidade com que
se apresentam os dilemas éticos para os profissionais de saúde neste contexto,
inclusive os da psicologia; e, para finalizar, discuto sucintamente a articulação
entre ética e ciência, considerando o recorte que escolhi tratar.

Breve conceituação sobre ética e bioética

Parto da compreensão de que pensar a ética é fundamentalmente consi-


derar as atitudes das pessoas diante do outro, levando em conta relações sociais
consonantes com valores de uma determinada cultura e que torna possível e
respeitoso o convívio em sociedade. Portanto, não é uma forma natural de agir,
e sim surge da necessidade que se faz imperiosa para o convívio social civilizado.
Diferentemente dos outros animais que se agregam pelo instinto de preservação
da espécie, nós, humanos, temos a capacidade de definir regras, criar meios e
estabelecer modos de viver coletivamente. Portanto, ética é uma prática de con-
vivência social que tem como princípio básico o respeito ao outro, a relação com
a alteridade, e está enraizada na cultura e na história de cada grupo social. Isso
significa que a criação de regras, normas, valores e costumes regula o convívio
social e forma instituições atinentes a cada sociedade, que se transformam com
o movimento da vida.

Na filosofia, a ética tem diferentes conceituações desde os gregos, que

127
a concebiam como conjunto de virtudes. Aristóteles desenvolve todo um pen-
samento explicativo sobre essas virtudes, destacando a prudência como a prin-
cipal delas e o valor da amizade e da justiça nas relações sociopolíticas entre os
seres humanos. Já na visão Kantiana, ética é compreendida como imperativo do
comportamento e seu parâmetro é o coletivo (o que vale para todos). Kant tem
por base o primado da razão. Entende que, por sermos seres racionais e respon-
sáveis, definimos e introjetamos normas para uma vida civilizada em sociedade
(CHAUÍ, 1997).

Spinoza, conforme Chauí (1997), entende que somos seres natural-


mente passionais e sofremos ações externas. Para ele, a passividade é a condição
primeira do ser. A virtude está na força de não sucumbirmos a essas ações ex-
ternas, e sim sermos causa de nossos sentimentos, atos e pensamentos. Qualifica
paixões alegres e paixões tristes. As primeiras são referentes à capacidade de
transformar paixões em ações. Já paixões tristes nos levam à passividade, isto
é, ao domínio das ações externas sobre nós. Lévinas vai também considerar a
passividade como primordial na acepção de que ela implica estarmos disponíveis
a sermos afetados pelo Outro. A sua ética propõe a radicalidade da relação com
o outro, com a alteridade. Nas palavras de José Célio Freire (2002), em seu
livro “O Lugar do Outro na Modernidade Tardia”, explicando a radicalidade da
alteridade levinasiana, escreve: “O sujeito é para o outro, ‘pré-originariamente’.
Sofre pelo sofrimento do outro, responsabiliza-se pelo outro e pela responsabi-
lidade do outro” (p. 52).

Já na sociedade moderna, com o avanço do capitalismo, cujas relações


entre as pessoas são pautadas pelo valor de troca e o outro é qualificado pelo
que tem a oferecer, a ética vai se basear no princípio utilitário: é preciso avaliar/
calcular o que promove mais bem-estar e menos danos para a maior parte das
pessoas. Ou seja, o que se prioriza é o fim, o que se quer alcançar, indepen-

128
dentemente dos meios utilizados, desde que resultem em benefício para um
maior número de pessoas. Em tempos de pandemia decorrente de um vírus de
disseminação rápida e progressiva, a meta é encontrar uma forma de controlar o
vírus e descobrir uma vacina para preveni-lo. Nesse sentido, tomando por parâ-
metro o princípio utilitarista, podemos supor que para salvar a maior parte das
vidas humanas seria possível pôr em risco outras vidas que vão servir de objeto
para esses estudos. Ou seja, vidas descartáveis e que podem ser sacrificadas em
benefício daquelas qualificadas como referência de humanidade.

Foi por essa lógica utilitarista que se guiou a ciência, por exemplo, no
fascismo e no nazismo, justificando estudos que podiam levar à morte, como
aconteceu principalmente na Segunda Guerra Mundial, em que foram pratica-
dos horrores por pesquisadores para produzir uma eugenia dos humanos, de-
rivada da concepção nazista da superioridade da raça branca. Após o fim da
Grande Guerra, outras atrocidades continuaram a ser praticadas em nome da
ciência. Pesquisas foram desenvolvidas em vários campos disciplinares sem o
conhecimento, pelos sujeitos, de seus objetivos e procedimentos, e algumas
provocando danos graves aos que participavam. De acordo com Débora Diniz
e Dirce Guilhem (2017), em 1966 foi publicado um artigo por Henry Bee-
cher que listava 22 relatos de pesquisas financiadas com recursos de instituições
governamentais e empresas de medicamentos que revelavam o não respeito à
integridade e à vida dos participantes, que eram aqueles chamados “cidadãos de
segunda classe” (internos em hospitais de caridade, deficientes mentais, pacien-
tes psiquiátricos e outros).

Na contemporaneidade, o hiperindividualismo vai levar a uma desres-


ponsabilização pelo outro para fazer valer o prazer hedonista e a busca da felici-
dade individual. Acima das relações no campo social está a valorização do sujeito
como livre para exercer sua vontade, mesmo que isso implique a submissão ou

129
o apagamento do outro. A ética, neste caso, se sucumbe a uma exacerbação da
autopromoção e autorrealização como ideais de felicidade que se sobressaem
nas relações sociais.

Nesse contexto, ao contrário do que se propõe sobre a ética regida pela


responsabilização com o outro, vai prevalecer a conduta descomprometida com
a alteridade, em favor dos próprios interesses, tendo em vista a supervalorização
das conquistas individuais, da meritocracia e dos ideais de realização pessoal. A
preocupação com o coletivo se traduz por submissão ou falta de reconhecimen-
to do próprio valor. Diante desse modo de interação vai se impor a criação de
dispositivos legais para regular e assegurar a vida na coletividade. Não foi por
acaso que, após a Segunda Guerra Mundial, foi criada a Organização das Nações
Unidas (ONU) e, em 1948, em Assembleia da ONU, formalizou-se a Declara-
ção Universal dos Direitos Humanos. Em convenções em âmbito internacional
são firmados, por várias nações, protocolos que estabelecem normas e regras
para a conduta das pessoas e definem punições, inclusive para os abusos pratica-
dos em nome da ciência e da liberdade. Reivindicam-se princípios éticos e re-
gras de sociabilidade para ser assegurada a regulação da conduta humana. É em
meio a esse cenário que surgem os códigos de ética das profissões e as resoluções
sobre ética em processos de investigação científica (DINIZ; GUILHEM, 2017).

No que tange ao campo da saúde, a tradicional ética médica era a res-


ponsável por definir princípios e regular condutas para qualquer intervenção
que fosse proposta. As lutas e mobilizações sociais de meados do século XX, nos
países democratas, inclusive no Brasil, pelos Direitos Humanos, as críticas àque-
las práticas de pesquisa, aliadas ao avanço tecnológico e científico, que geram
problemas antes não colocados para os pesquisadores, por exemplo, aparelhos
que prologam a vida, que mobilizaram as discussões sobre a eutanásia, foram fa-
tores que impulsionaram o surgimento da bioética, ampliando para outras áreas,

130
além da medicina, as normas de conduta, numa proposição de pensar a ética da
vida.

No Brasil, a bioética apareceu no final dos anos 1980, mas só se conso-


lidou como disciplina no século XXI (REGO; PALÁCIOS; BATISTA, 20009). A
bioética se preocupa com o respeito pela vida de qualquer ser humano ou animal
não humano, e com isso estabelece regras para intervenções e para a realização
de pesquisas com esses sujeitos. É considerada uma ética aplicada que integra e
relaciona diferentes campos de conhecimento. Segundo os autores Sérgio Rego,
Marisa Palácios e Rodrigo Siqueira Batista (2009, p. 23), no livro “Bioética para
os Profissionais de Saúde”, “ela pode ser definida como o estudo sistemático das
dimensões morais das ciências da vida e dos cuidados em saúde, que emprega
uma variedade de metodologias éticas em um ambiente interdisciplinar”. Os au-
tores chamam atenção para o respeito tanto aos interesses dos indivíduos quanto
da coletividade, priorizando a ética do cuidado e da consideração responsável
pelo outro. Embora o princípio utilitarista tenha sido o parâmetro ético da bioé-
tica, seus propósitos são voltados para o bem comum, no sentido de que as
intervenções no campo da saúde tenham como critério a coletividade (PORTO,
2020).

A bioética analisa e avalia critérios para lidar com os conflitos e dile-


mas morais. Daí a importância de atentar para suas diretrizes em tempos de
pandemia, quando esses dilemas passam a constituir o dia a dia dos profissionais
de saúde, especialmente daqueles que estão na linha de frente, trabalhando di-
retamente com as pessoas contaminadas e com sintomas da doença, desde os
casos mais leves até os que estão na dependência de equipamentos de respiração
artificial e de leitos de UTI.

Assim, é a bioética que formalmente orienta os trabalhadores que estão


na execução direta dos atendimentos aos contaminados pela covid-19, indepen-

131
dentemente dos seus campos de atuação. Mas para nós, brasileiros, é preciso
analisar essa questão tendo em conta a compreensão do cenário político que
recebeu a pandemia.

Contextualizando a problemática

Traçado esse panorama conceitual, passo ao segundo ponto desta expo-


sição, a contextualização da problemática, focando no Brasil, para refletir acerca
dos dilemas éticos. Em nossa realidade, para analisar esses dilemas, não basta
considerar apenas a pandemia, o vírus e a doença. É necessário pensar na exa-
cerbação dos conflitos e dilemas éticos em decorrência de políticas e ações an-
teriores que deixaram de ser propostas ou efetivadas e de decisões que colocam
em risco, inclusive, os direitos fundamentais de todas as pessoas, como a falta de
investimento para o SUS, a precariedade dos espaços de atendimento, a escassez
de equipamentos de segurança para os profissionais e a crise política e econômi-
ca que acarreta outros problemas que ultrapassam o âmbito da pandemia.

Temos um sistema de saúde modelo e referência para o mundo, com


atenção universal que possibilita a assistência à saúde para todos os brasileiros
indistintamente. É pela existência do SUS que estamos conseguindo evitar um
colapso total e tragédia maior para a nossa população em geral. Como sistema
unificado, o SUS presta assistência nos diferentes níveis de atenção à saúde, in-
clusive quem dispõe de plano de saúde e de atendimento em hospitais particu-
lares se beneficia do SUS, pela amplitude de ações que ele envolve. Entretanto,
a ignorância sobre a importância desse sistema e sua negação vêm acarretando
brutal restrição de investimentos e desvios de muitos dos recursos a ele desti-
nados, comprometendo a sua plena execução e limitando o seu alcance para dar
conta de um contingente desmedido de demandas emergenciais. Isso repercute
no trabalho dos que estão no atendimento direto, produzindo situações de mui-
to estresse e exacerbando os conflitos que a pandemia por si já acarreta.

132
Essa limitação do SUS e as dificuldades encontradas pelos profissionais
da linha de frente se agravam com o fato de estarmos com um governante e sua
equipe que negam a gravidade do problema e se comportam no sentido oposto
ao que é recomendado pela Organização Mundial de Saúde e pelos pesquisado-
res e profissionais da saúde. Não temos apenas um presidente perverso e incom-
petente, também assim é sua equipe de ministros ignorantes e despreparados,
que atuam em benefícios próprios e indiferentes à tragédia que assola o país,
que atinge, como sempre, principalmente a população pobre, negra e periféri-
ca, chegando a um índice de mortalidade acima de 150 mil pessoas1, colocando
o Brasil na segunda posição entre os países com maior número de mortos pela
covid-19.

Neste cenário, é evidente que se agudizam os problemas no atendi-


mento aos contaminados e doentes desta pandemia, tornando mais urgentes
e intensos os conflitos e dilemas dos profissionais de saúde de modo geral, in-
clusive psicólogos. Falta uma coordenação nacional responsável e sintonizada
com governos estaduais e municipais para organizar as demandas e direcionar os
recursos de forma a suprir as necessidades básicas para o atendimento a todos os
que estão sofrendo nas Unidades de Pronto Atendimento e hospitais em todo o
território nacional.Vale ressaltar que nem mesmo o montante de recursos apro-
vados no orçamento público federal para o combate à pandemia foi liberado e ao
mesmo tempo são divulgados reiteradamente casos de desvios de dinheiro que
deveria ser empregado no atendimento às vítimas do novo coronavírus.

Diante de um problema alarmante e de expressão mundial que signifi-


ca esta pandemia e suas consequências, temos a instabilidade do Ministério da
Saúde com a troca de ministros e a vacância do cargo no período de isolamento

1 Esse número de mortos é referente ao período em que ocorreu o Seminário, entre


maio e junho de 2020. No primeiro semestre de 2022, esse número é quatro vezes
maior, chegando a mais de 650 mil pessoas mortas no Brasil.

133
social e exacerbação da contaminação e do índice de mortalidade. Surpreenden-
temente, assistimos à falta de ética, à insensibilidade e mesquinhez de ministros
de Estado e do próprio presidente, que desqualificam e debocham das mortes
e do sofrimento da população com expressões do tipo “o que tenho a ver com
isso?”, “não sou coveiro”, “vai morrer mesmo”, chegando ao absurdo de o pre-
sidente declarar para o mundo, na conferência da ONU de 2020, que o Brasil é
um dos países que menos sofreu com a pandemia, mesmo com mais de 150 mil
pessoas mortas no país em decorrência do vírus. Além disso, deparamo-nos com
posicionamentos como o do ministro da economia, que considerava desneces-
sária a compra de mais respiradores por não saber qual utilidade que eles terão
após passar a pandemia, e do ministro do Meio Ambiente dizendo que o governo
deveria aproveitar a “tranquilidade” do momento, com a imprensa voltada para
o novo coronavírus, para “passar a boiada”, numa menção a serem aprovados,
apressadamente, no Congresso, decretos e emendas inconstitucionais e que le-
vam à destruição das nossas riquezas e do ecossistema do Brasil, com repercus-
sões no mundo inteiro.

Assim, para nós, brasileiros, esta pandemia tem o agravante de nos co-
locar diante do risco não apenas dos efeitos do vírus, mas também de uma po-
lítica de descompromisso com a vida e de negação da gravidade do problema,
contribuindo para que boa parte da população desconsidere as recomendações
da Organização Mundial de Saúde, dos profissionais da área e de pesquisadores,
levando à expansão da contaminação e à prevalência da pandemia.

Neste contexto, falar sobre ética como uma prática de respeito e res-
ponsabilidade com o outro, com o diferente, é reagir a este estado de coisa, é se
comprometer com a solidariedade, o cuidado e a preocupação com os expostos
ao vírus, com os que estão trabalhando nos serviços essenciais, com os profissio-
nais da saúde que arriscam suas próprias vidas para preservar ou salvar as vidas

134
de outros, assim como com aqueles que não têm como seguir as recomendações
em face da precariedade da própria existência.
As diferenças entre as condições de vida dos extratos populacio-
nais no Brasil (e no mundo) fazem com que o medo da morte,
que perpassa todos, sempre, atinja mais profundamente aque-
les que já estão feridos no corpo ou na mente... As enormes
desigualdades dos diferentes estratos populacionais levam ao
questionamento sobre a existência real da coletividade (POR-
TO, 2020, p. 7).

Retomando a questão dos conflitos e dilemas éticos dos profissionais de


saúde, perguntamo-nos, diante deste cenário, como enfrentar situações-limite,
provocadas por esta política desastrosa e que colocam as decisões sob a respon-
sabilidade desses profissionais que estão atuando diretamente com a popula-
ção infectada? Como fazer escolhas sobre quem será atendido de uma demanda
crescente e concomitante de pacientes em estado grave, quando há limitações
de pessoal e de recursos disponíveis para todos? Como decidir sobre quem irá
sobreviver com os acessos a respiradores e a leitos de UTI escassos e insuficien-
tes? Como suportar os sofrimentos de pacientes que estão morrendo em massa
e sem o apoio e afeto dos familiares? O enfrentamento dessas e tantas outras
situações-limite desafia esses profissionais e põe em questão a dimensão ética na
sua atuação cotidiana. O compromisso com o outro e com a vida precisa ser a
prioridade em suas decisões.

Os profissionais que estão na linha de frente – incluindo-se também os


de psicologia e de outras áreas que estão nos hospitais e que enfrentam os mes-
mos dilemas – são responsáveis por receber os pacientes, mediar o contato deles
com suas famílias, são encarregados por transmitir óbitos aos familiares e pro-
mover um ambiente minimamente suportável para o cotidiano nesse contexto.
Em meio a pressões e estresses, todos esses profissionais que atuam nos espaços
em que circula o vírus precisam lidar com o medo da contaminação de si e dos

135
outros, com a angústia de não terem como amenizar o sofrimento dos que aten-
dem e o seu próprio. Misturam-se afetos e tensões, o que requer maturidade e
muita responsabilidade para atuar. Isso representa a ética do cuidado e a ética da
vida de que trata a bioética.

O que a ciência tem a ver com isso?

E, para finalizar, trato do último ponto que mencionei: O que a ciência tem
a ver com isso? Como se entrelaçam ética e ciência nesta realidade? Assim como
na discussão sobre ética, também parto de uma visão de ciência como prática
social e produto da ação humana, portanto, sujeita às imperfeições, aos afetos
e implicações político-ideológicas dos seus produtores. Entretanto, é a ciência
que possibilita encontrar saídas para o enfrentamento da situação de tragédia
que assola o mundo.

Neste momento, o que se coloca como desafio essencial para a ciência é


a exigência de rapidez e urgência de investigações para desvendar o desconheci-
do, o imprevisível e inusitado deste vírus e chegar a encontrar alternativas para
seu controle e prevenção. Contrariamente ao esforço de cientistas que estão nos
laboratórios na busca de soluções, atualmente assistimos no Brasil a uma nega-
ção do conhecimento científico e à banalização da gravidade do enorme proble-
ma que vivemos, sem precedentes na nossa história, além de serem incentivadas
condutas que desrespeitam as recomendações da OMS, acordadas por todos os
países que enfrentam a pandemia e, mais grave, com estímulo à utilização de
medicamentos sem eficácia confirmada.

É importante ressaltar que a contribuição da ciência nestes tempos de


pandemia não se resume às pesquisas relacionadas ao vírus, também se faz em
outros campos de conhecimento como o das ciências humanas. Particularmente,
na Psicologia, muitas questões se apresentam como desafio, inclusive pela sua

136
posição híbrida entre a área da saúde e das humanidades.

Com a pandemia e com o isolamento social surgiram novas demandas


nas diferentes áreas de estudo e de atuação da Psicologia. Novos problemas a
serem desvendados se colocaram para esse campo do saber, notadamente, nas
reflexões sobre o atendimento hospitalar e situações de tragédias. Na psicologia
educacional, há que se estudar as implicações da intensificação do uso das tec-
nologias digitais, do ensino remoto e outras demandas; na psicologia social do
trabalho, acentua-se a necessidade de entender as repercussões do crescimento
da informalidade, do agravamento da precarização do trabalho e do aumento
progressivo do desemprego com a redução ou mesmo desativação dos postos
de trabalho e de empregos formais; na psicologia clínica, é preciso avaliar o que
esta pandemia e suas consequências, como o isolamento social, a impossibilida-
de de manter contato com pessoas significativas, o temor do adoecimento e da
morte, representam para a saúde mental das pessoas, observando-se a crescente
demanda de atendimentos com a exacerbação do sofrimento psíquico, dos casos
de depressão e de pânico, entre outros transtornos que comprometem a dinâ-
mica da vida.

Diante disso, a ciência e a ética se implicam mutuamente e precisam


caminhar em articulação. Nesse sentido, os riscos e benefícios de uma ética
utilitarista precisam ser avaliados e ponderados responsavelmente. A virtude
da prudência, da qual falava Aristóteles, e a racionalidade, requerida por Kant,
também se tornam imprescindíveis. Contudo, é no confronto radical com a al-
teridade, como propõe Lévinas, que podemos construir uma ciência implicada
antes de tudo com a vida, o que significa conduta ética e compromisso ético
consigo mesmo, com o outro e com a coletividade.

Como sustenta Boaventura de Souza Santos (2001, p. 65), “uma ciência


prudente para uma vida decente”, e explica “[a ciência] não pode ter apenas um

137
paradigma científico (o paradigma de um conhecimento prudente), tem de ser
também um paradigma social (o paradigma de uma vida decente)”.

Referências

CHAUÍ, M. Convite à Filosofia. São Paulo: Editora Ática, 1997.

DINIZ, D.; GUILHEM, D. O que é Bioética. São Paulo: Brasiliense, 2017.

FREIRE, J. C. O lugar do Outro na Modernidade Tardia. São Paulo: AnnaBlume,


2002.

PORTO, D. Bioética de Intervenção nos Tempos da COVID-19. In: DADALTO,


L. (org.). Bioética e COVID-19 [versão para leitor digital]. Indaiatuba: Editora
Foco, 2020. Disponível em: https://www.editorafoco.com.br/produto/bioe-
tica-e-covid-19-1-ed-2020. Acesso em: 13 out. 2020.

REGO, S.; PALÁCIOS, M.; BATISTA, R. S. Bioética para os Profissionais de Saúde.


Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.

SANTOS, B. S. Um Discurso sobre as Ciências. Porto: Edições Afrontamento, 2001.

138
10

Pensando a Ciência em tempos de pandemia

Rita Helena Sousa Ferreira Gomes

Por trás das cortinas

“Não preste atenção no homem atrás da cortina”, ouvimos o mágico


de Oz dizer a Dorothy numa tentativa desesperada de manter intocada sua aura
de poder. Depois que a cortina se abre, fica evidente que tudo é um teatro:
a fumaça, a voz amplificada, a imagem turva. O que há é apenas um homem
comum que usufrui das benesses advindas de uma impessoalidade que o torna
extraordinário.

Há algum tempo, intelectuais de várias áreas têm alertado para o perigo


das pessoas que (re)produzem os conhecimentos manterem-se detrás das cor-
tinas. Dizer de onde falamos é, antes de tudo, desistir de alçar a uma validação
do que se apresenta por meio de jogos cênicos ocultos. Escrever (ou falar) como
se fôssemos entes despregados de nós mesmos é flertar com a ideia de que
nossas ideias são universais e de que nossos referenciais são neutros. Esforçar-se
por abolir as cortinas da impessoalidade é, assim, um compromisso ético, um
convite para que se estabeleça um diálogo situado entre quem fala e quem lê.
Um diálogo que não esconde seus enraizamentos, mas que, tampouco, omite-se
da obrigação de se guiar pela racionalidade. Um diálogo, portanto, que se tece
como um fino fio entre a busca por argumentos fundamentados e a abertura ao
que nos é diverso e que sempre nos escapará.

139
Procuro me equilibrar nessa delicada corda e me pergunto: “quem é
esse eu que fala (escreve)?”, “para quem acredito que falo (escrevo)?”. Certa-
mente, não sei responder à primeira pergunta, mas tenho pistas relevantes.
Quem escreve é uma mulher de classe média que desfrutou de uma educação
negada à maioria em seu país (e no mundo). Uma mulher que aprendeu acade-
micamente a discutir conceitos e teorias, em especial, filosóficas. Uma professo-
ra que, apesar dos desenganos, confia intensamente na educação como caminho
para a invenção de outros mundos. Uma brasileira que oscila entre o temor e
a esperança diante do futuro e, nesse balanço, lembra-se constantemente que a
ação política acontece cotidianamente e atravessa minhas aulas e minha vida nas
palavras que escolho, nos temas aos quais me dedico, nos afetos que sou capaz de
nutrir, nas fronteiras que consigo defender e naquelas em que me ausento. Sou
também aquela que pensou este texto em pleno isolamento social impelido por
uma pandemia que matou e segue matando, principalmente, aqueles e aquelas
que, diferentemente de mim, não são chamados(as) a falar sobre o que se passa.

Com o Seminário “Aspectos Psicossociais das Vulnerabilidades no Con-


texto da Pandemia de Covid-19”, que reuniu os programas de Pós-Graduação
em Psicologia da Universidade Federal do Ceará, vi abrir-se a possibilidade de
entrelaçar conceitos e concretudes. O Seminário me apareceu como uma fron-
teira de resistência. Apostei que, apresentar ideias, embora não sendo novas,
mas que poderiam ajudar a jogar algumas luzes interpretativas no caos pandêmi-
co, seria bem-vindo para alguns. Mas a quem se destinava meu discurso?

Mesmo sabendo que o Seminário era gratuito e que não continha um


pré-requisito acadêmico de qualquer natureza, suspeitei que falaria com um
público eminentemente universitário e de variadas formações. Essa suposição
estruturou meu ensaio, levando-me a evitar uma fala que se prendesse demasia-
damente na análise de autores e concepções filosóficas e, simultaneamente, na

140
qual eu pudesse criticar sem pudores a ciência como instituição. Acreditei – e
sigo confiante – que o público que me ouviu e este que irá ler-me, compreen-
derão que apontar os equívocos das instituições de pesquisa e ensino não se con-
funde, em hipótese nenhuma, com uma desvalorização da ciência como forma
de conhecimento válido sobre o mundo. Minha pretensão, ao contrário, é dar
material a docentes, discentes, pesquisadores(as) e defensores(as) do saber para
que possamos fortalecer a ciência, a filosofia e as instituições de ensino lá onde
elas, e nós, cegamos.

Arrancada a cortina, sinto-me agora mais confortável em partilhar com


você o ensaio que usei como base em minha exposição durante o Seminário.

Ciência e ética em tempos de pandemia

O problema da ciência, tal qual a entendemos hoje, marca a fundação


do mundo moderno. Um bom entendimento do que é nosso mundo hoje, como
organizamos e percebemos a vida, por que assumimos certas crenças e acata-
mos naturalmente determinados costumes, como nos relacionamos com outras
pessoas e com o ambiente que nos rodeia, requer que vislumbremos o papel da
ciência nessa construção. Não é à toa que, quando muitos de nós pensamos na
Idade Média, pensamos em um tempo de “trevas” marcado pela perseguição da
inquisição contra os que ousavam questionar teórica ou praticamente tradições
e dogmas. A modernidade é filha de uma série de rupturas – ainda que não se
possa negar que haja continuidades – advindas de inúmeros campos que, em
última instância, foram abalados e abalaram pilares que sustentavam uma visão
de mundo há muito sedimentada (MARQUES, 1993; SKINNER, 2000; GO-
TTLIEB, 2016).

Faço essa introdução “histórica” e sei que, para alguns, ela pode parecer
um adorno intelectual sem efeitos práticos. No entanto, é justamente contra

141
isso que reside a tese que quero desenvolver em nossa conversa hoje. 2020. Em
meio à pandemia mais devastadora deste milênio.

Minha tese pressupõe que, para bem avaliarmos nosso tempo, preci-
samos não só olhar para o presente, mas situá-lo em constante diálogo com o
passado e com o futuro. Até aqui, nada de novo: só uma nova forma de dizer
que nosso saber sobre a História (e sobre as histórias) precisa servir para ajustar
nossas ações no presente e nossas lentes direcionadas para o futuro. Reconheço,
obviamente, que há algo de não humano na irrupção das pandemias e, nesse sen-
tido, qualquer ilusão de que há atos humanos capazes de evitar plenamente sua
emergência é danosa. Por outro lado, é extremamente perigosa a suposição que
reduz a pandemia a um fato natural, completamente desligado das ações huma-
nas. Ao pontuar isso, quero sublinhar que a pandemia é um fenômeno complexo
atravessado por fatores não humanos e humanos em sua origem e disseminação.
No entanto, a pandemia vai muito além disso, precisando ser analisada seguindo
as linhas propriamente humanas que a contornam. É aqui que entra meu desejo
de retornar ao problema da ciência e da ética a partir de uma porta filosófica.

Em geral, a filosofia é conhecida por fazer perguntas que parecem des-


cabidas. O incômodo causado pelas questões filosóficas, contudo, diz mais de
sua necessidade do que de sua inadequação. Vejamos isso em um exemplo atual:
não é mistério para ninguém que esteja lendo as notícias que o tratamento da
pandemia em alguns países, notadamente no Brasil e nos EUA, criou tensões
entre decisões estritamente políticas e as recomendações da ciência (THOMAS,
2020; LISSARDY, 2020). Como filósofa, a primeira coisa que me intriga nessa
tensão é: “Como chegamos até aqui?”. Ou seja, penso que precisamos buscar
definir se esse embate é uma questão trazida pela pandemia em si ou se é só uma
exposição mais clara de algo que lhe antecede.

Para mim, há pouco espaço para duvidar de que essa tensão vem se

142
construindo há muito tempo sob nossos olhos e, reiteradamente, ignoramos
sua relevância, como pessoas, mas, principalmente, como acadêmicos(as) e in-
telectuais. Pior, institucionalmente, ignoramos o impacto de sua gestação e seu
desenvolvimento ao nosso redor por anos a fio.

Uma tensão entre diretrizes políticas e diretrizes científicas na pande-


mia precisa nos remeter a como cresceram, nos últimos anos, os espaços ocupa-
dos por movimentos criacionistas, antivacina, terraplanistas etc. O que isso nos
diz do nosso modo de fazer e distribuir o conhecimento e a produção científica?
O que isso nos diz da relação entre as instituições de ensino e pesquisa e a vida
cotidiana? Existe alguma relação entre a ascensão da extrema-direita em tantos
países e o modo como manejamos o conhecimento, notadamente, o tecnológico
e o científico?

Lima Vaz (2000, p. 276) já alertava que:


Muito mais fundamentais, embora aparentemente não tão dra-
máticos quanto os problemas de produção, circulação e distri-
buição de bens e satisfação das necessidades, são os problemas
levantados, na sociedade contemporânea, pela produção, dis-
tribuição e assimilação do saber, por essa ‘economia política da
ciência’.

Se comecei esta conversa sublinhando que o mundo moderno e, em sua


esteira, nossa contemporaneidade, emergem indubitavelmente por uma refor-
mulação de nossos paradigmas sobre o que se tomava como conhecimento exce-
lente, e que é impossível bem entender nosso mundo sem ter minimamente no-
ção do lugar que a ciência e sua filha amada, a tecnologia, ocupam, preciso agora
mostrar o outro lado da moeda: poucos, muito poucos, sabem efetivamente
disso. E a consequência nefasta disso se apresenta agora com toda força. Volto ao
alerta do professor Lima Vaz (2000): tão grave quanto não termos distribuído os
bens necessários à vida foi não termos distribuído os elementos simbólicos ca-

143
pazes de nos permitirem atribuir sentido ao que baseia boa parte das coisas que
dependemos diariamente. Quantos entre nós, provavelmente, privilegiados(as)
em acessar o universo intelectual e seus produtos, saberia responder “O que é
ciência?”, ou “O que é verdade?”, ou “Por que nossos objetos tecnológicos são
como são?”.

Se direciono a pergunta para nós, aqui resguardados no seio de uma


instituição acadêmica, é porque, infelizmente, a distribuição do saber é mais
trágica do que podemos imaginar em um primeiro momento. Não são só os
que estão fora da ciência que não sabem atribuir-lhe sentido, mas, mesmo entre
cientistas e professores(as)-cientistas, vemos um profundo desconhecimento so-
bre a natureza da ciência e da tecnologia. Isso indica que há algo muito errado,
não só na relação que a ciência estabelece com as pessoas comuns, mas também
no formato que educamos nossos(as) cientistas. Certamente, estou generalizan-
do o ensino de ciências e de cientistas aqui. Sei que há diversos graus de discus-
são sobre epistemologia em diferentes cursos e áreas. Via de regra, as chamadas
“ciências humanas” dão maior atenção a este debate, enquanto ele é quase inexis-
tente em formações em engenharias ou algumas ciências da saúde, por exemplo.

A má distribuição de uma educação científica, portanto, não se resolve


simplesmente pelo aumento de vagas no ensino básico e superior ou do acrés-
cimo de horas que os currículos destinam às ditas disciplinas de metodologia,
mas exige uma avaliação qualitativa do “o que ensinar sobre ciência”, do “como
ensinar ciência” e da “finalidade pela qual ensinamos sobre ciência”. Ensinar
ciência como se ela fosse um conhecimento atemporal, desvinculado de anseios
e disputas sociais, culturais e econômicas colocados em certo momento histó-
rico é contribuir para que tenhamos não cientistas, mas “fazedores de produtos
científico-tecnológicos” que, por mais tecnicamente competentes em suas áreas
que possam ser, são limitados em perceber como sua ação e produto científi-

144
co-tecnológico estão direta e inevitavelmente entrelaçados com uma sociedade
complexa.

É preciso que, como instituições de ensino e pesquisa, tomemos para


nós como tarefa urgente discutir a ciência lá onde ela toca os problemas éticos,
políticos e econômicos. É, mais do que nunca, essencial formar cientistas e o
público em geral para que sejam capazes de assumir que a ciência não é, nem
nunca será, um conhecimento neutro, e que assumir a não neutralidade da
ciência não é o mesmo de equipará-la a uma opinião. Ao contrário, a afirmação
de que a ciência e seus produtos não são neutros é uma postura ética fundamen-
tal para guiar seu rigor e sua validade (HARAWAY, 1995). É porque reconhecem
sua não neutralidade que as produções da ciência precisam, constantemente, ser
submetidas a novas análises, que os horizontes e parâmetros metodológicos exi-
gem revisão. É por saber que sua finalidade não é achar a verdade do real, mas
sim criar uma construção coerente que nos permita intervir na realidade, que a
ciência é promissora e forte. Sua promessa e sua força não estão nos indivíduos,
mas no que é possível erigir coletivamente. Fazer parte da ciência é participar
de um projeto humano lento e demorado que, muitas vezes, para andar um pas-
so à frente precisa dar muitos para trás.

Parece-me que é somente quando entendemos essa estrutura não neu-


tra, coletiva, lenta, que está, simultaneamente, fincada pelos pés no seu contex-
to histórico e, pelas mãos, tentando ir além dele, como sendo base da ciência
que podemos situar responsável e eticamente o que ela engendra. E quero grifar
que, quando falo na responsabilidade ética, aponto seguindo a ideia de Morin
(2005), não para os cientistas enquanto sujeitos individuais, mas sim para a ciên-
cia enquanto instituição que os congrega. Ou seja, não se trata nem de jogar a
obrigação ética para o uso que os não cientistas farão de seus produtos (o famo-
so “as armas não matam pessoas, pessoas matam pessoas”) nem tampouco de

145
abandonar aos cientistas o dever de, sozinhos e sem guias normativas racionais
maiores, assumirem os eventuais ônus que suas teorias e tecnologias venham a
causar. Oliveira (1993) nos ajuda a notar o quão paradoxal é vivermos em uma
sociedade erguida e mantida em tantas instâncias por construções científicas e
tecnológicas, ao mesmo tempo que relegamos ao voluntarismo e à opinião os
problemas éticos.

É em meio a esse paradoxo que proponho que analisemos a pandemia


e a tensão entre política e ciência que ela escancarou e colocou nas capas
dos jornais. Já vimos que há um problema de distribuição do saber científico
que assinala o descompasso entre o que recebemos em termos de produção
científico-tecnológica e o que nos fornecem simbolicamente para atribuir
significado e sentido a tais produtos. Esse descompasso não atinge somente
pessoas que não receberam treinamento científico (embora elas sejam, com
certeza, a maioria), alcançando pessoas que atuam na formação e na produção de
pesquisas científicas. Fruto desse segundo caso são aparentes aberrações como
cientistas que defendem, por exemplo, a terra plana ou teorias pseudocientíficas
como a do design inteligente2. Destacar esse segundo grupo é muito importante
para a nossa análise, pois indica que, enquanto instituição, a ciência tem falhado
não só em suas estratégias de comunicação e divulgação científica, mas também
confirma nossa preocupação com o modo instrumental e excessivamente técni-
co com que ela tem sido ensinada nos níveis educacionais mais altos (FREIRE,
2014, p. 62; DUARTE JR., 2010, p. 144).

Essa formação estritamente instrumental em ciência – e aqui vale que


nos interroguemos se uma formação em ciência tão limitada é, propriamente,

2 Infelizmente, não me parece que seja uma coincidência a nomeação, em janeiro de


2020, de Benedito Guimarães Aguiar Neto, adepto do criacionismo, para a função
de presidente da maior fonte de financiamento para desenvolvimento da pesquisa no
país, a CAPES.

146
uma formação científica – atua também reforçando uma visão departamentali-
zada da ciência e dificultando que a transdisciplinaridade se estabeleça mais con-
creta e plenamente no âmbito científico (DUARTE JR., 1995). Ressalto, ainda,
que uma formação acrítica em ciência tende a fortalecer preconceitos para com
outros saberes. Uma vez que o cientista não é capaz de reconhecer nitidamente
que a ciência é um conhecimento que visa atingir um objetivo específico e, logo,
é parcial em seu atendimento às questões humanas, ele pode acabar agindo para
contribuir para uma falsa hierarquização e conflito com outros conhecimentos.
Não é raro, portanto, que ouçamos, por exemplo, que “a ciência é mais rele-
vante que a arte”, ou que “a ciência é um conhecimento produtivo enquanto a
filosofia não serve para nada”, ou, ainda mais comum, “que a ciência nos torna
ateus”. Afirmações como essas evidenciam nossa inabilidade em circunscrever
quais as fronteiras da ciência, entendendo-a como se ela estivesse em competi-
ção com outras formas de conhecer. Longe disso, uma boa formação em ciência
deveria caminhar no sentido de nos ajudar a visitar e considerar as sutilezas e
potências dessas fronteiras, haja vista que a especificidade da ciência só existe e
tem significado em meio à pluralidade das atividades e saberes humanos.

Perceber e dialogar fora do signo da confusão com suas fronteiras é não


só um exercício ético, mas também uma forma de reconhecer ataques à ciência
quando estes ainda estão sendo germinados. E, sob essa ótica, quero retomar o
problema da ampliação do poder de teorias anticientíficas ou pseudocientíficas
em nossos dias. Uma teoria anti ou pseudocientífica só pode ter chegado onde
chegou em um mundo dominado por tecnologias paridas pela ciência, porque
como instituição a ciência não atentou para os ataques desferidos a outros cam-
pos que lhe fazem fronteira, como é o caso da filosofia. Para que alguém chegue
a acreditar que a terra é plana, por exemplo, é preciso que antes tenhamos uma
sociedade que desmerece as discussões filosóficas, tomando-as (muitas vezes,
com aplausos de cientistas e ditos intelectuais) como inúteis. Se hoje as pes-

147
soas duvidam dos dados científicos e supõem que a NASA é símbolo de uma
conspiração maior, isso só pode ocorrer porque elas se baseiam – mesmo que
não conscientemente – em uma teoria do conhecimento que cabia muito bem
na visão de mundo antiga e medieval, mas que é totalmente incompatível com
pressupostos basilares da modernidade e da contemporaneidade. Ora, isso de-
monstra que o silêncio dos setores científicos diante de tantos anos e políticas
de depreciação do conhecimento filosófico mostra agora seu alto preço para a
própria ciência.

Minha tese é que se a ciência não se irmanou com a filosofia (ou com
as artes) para que estas mantivessem seus financiamentos e produções, isso se
deve a uma fragilidade da visão que a ciência criou de si, a uma certa cegueira
em notar como remodelamentos e destruições em outros campos que lhe fazem
fronteira reverbera – ainda que em longo prazo – na própria ciência. Não é
coincidência, pois, que as políticas que antes desmereciam a filosofia e as artes,
cortando investimento e acusando-as de improdutivas socialmente, estendam-se
agora às áreas da ciência mesma. Alastrando-se rapidamente de um desrespeito
às formas de investigações e corte de financiamentos das ciências humanas para
outros campos que pareciam mais assegurados, como é o caso das ciências da
saúde, como vemos agora ocorrer na pandemia.

Ainda nessa seara das fronteiras, parece-me importante frisar que a as-
censão ao poder de uma extrema-direita descaradamente pseudointelectual e
de tendência anticientífica muito se deve aos anos de fertilização e mau enqua-
dramento da relação entre ciência e religião, ou razão e fé. A confusão entre os
objetivos e os âmbitos desses conhecimentos, reduzindo uma relação complexa
a uma mera oposição, facilitou que as pessoas fossem manipuladas a terem de
optar entre acreditar em uma divindade ou em uma teoria científica. Ora, sendo
a ciência tão presente, mas tão incompetente em se entranhar simbolicamente

148
no cotidiano, não é de admirar que as pessoas escolhessem – lembrando que
essa oposição é falsa! – permanecer com suas crenças religiosas que, eficiente-
mente, sustentam-lhes e dão amparo em tempos de crise. Não quero aqui dizer
que a ascensão de uma religiosidade que beira o fanatismo e que se vincula com
a abertura necessária para assunção ao poder de uma extrema-direita se deve
unicamente à inércia da ciência.Todavia, interessa-me que, como pessoas ligadas
à ciência, notemos nossa participação neste processo.

Por fim, desejo pontuar que a despreocupação institucional da ciência


com a ética deixa tanto os(as) pesquisadores(as) desamparados(as) quanto si-
lenciosamente chancela a percepção de que não há uma racionalidade inerente,
e um consequente debate com exigências de rigor acerca das diretrizes que
guiam nossas ações. Essa abstenção institucional tem, também, graves reflexos
políticos, haja vista que ela relega ao campo da opinião a decisão sobre as ações
que impactam a coletividade (OLIVEIRA, 1993). E, sabemos, a opinião é aquilo
que não requer fundamento (PLATÃO, 1993), podendo ser o que assim desejar
seu emissor.

Quando olhamos para o intercruzamento dessa abstenção ética da ciên-


cia com a política, passamos a perceber que não é mera eventualidade que a
extrema-direita tenha se alçado ao poder, justamente pela via das tecnologias
midiáticas. Tecnologias que, impregnadas de parcialidade e enviesamentos favo-
ráveis a uma reprodução e ampliação do consumismo irrefreável, apresentam-se
como neutras, evitando assim que se possa discutir democraticamente os rumos
das criações tecnológicas (FEENBERG, 1995). Tecnologias que, premeditada-
mente ou não, equipararam conhecimentos fundamentados e lentamente vali-
dados com opiniões, criando uma ambiência fértil para que as pessoas – sejam
elas quem forem – se sentissem no direito de não só se posicionarem sobre tudo
e qualquer coisa, mas de acreditarem que estão sendo lesadas em sua liberdade

149
quando alguém lhes diz o que deveria ser evidente: opinião e ciência não são
equivalentes.

Para onde seguir?

Durante este pequeno escrito, busquei demonstrar como elementos


aparentemente concernentes apenas ao campo científico de fato desdobram-se
e impactam nas mais diversas esferas da vida cotidiana. Desta feita, compreen-
der, discutir e rever nossas visões sobre a ciência, seu ensino, suas articulações
com outros saberes e sua íntima relação com a construção do mundo que temos
hoje (e com o que desejamos ter no futuro) é assunto urgente e de interesse de
todos(as).

Fazer a ciência romper os muros das universidades e institutos de pes-


quisa não é, simplesmente, garantir que seus produtos cheguem ao “povo”, ou
que as escolas ensinem teoria “x” ou “y”. A tarefa, ainda mais árdua, porque co-
meça por nós que integramos o tecido humano dessa seara, é a de perceber com
profundidade que ciência e sociedade estão imbricadas irremediavelmente. As-
sim, em uma sociedade marcada pela instrumentalização da vida (MARCUSE,
1968), onde a realidade é repetidamente despedaçada em mil pedaços em nome
da contínua alienação, a ciência não pode se pretender incólume. Daí que, como
cientistas, intelectuais, docentes e discentes, cabe-nos fazer o difícil caminho da
autoavaliação constante e provocar a emergência das contradições sobre as quais
estamos confortavelmente assentados(as).

De partida, parece-me que precisamos contestar os pressupostos frag-


mentários e individualistas que fazem com que a ciência seja vista como um
empreendimento de pessoas atomizadas ou de pequenos coletivos. Defendo que
é necessário considerar a ciência como instituição, isto é, como uma produção
comunitária e complexa que, resguardando suas inúmeras vertentes e irredu-

150
tíveis desavenças, não se furta de perguntar sobre as normas éticas, políticas,
econômicas, estéticas, epistemológicas e culturais que a amarram. Não estou
supondo que, ao se reconhecer como produto comunitário e complexo atado a
incontáveis pressuposições sociais, a ciência irá se tornar ferramenta de harmo-
nia e progresso. Esse ideal iluminista já mostrou bem seus limites e nos trouxe
até a encruzilhada na qual nos encontramos agora. Longe disso, minha aposta é
aquela de seguir escancarando que por trás das cortinas existem apenas pessoas,
uma vez que a potência humana é menos a amplificação de uma só voz e mais a
força do que muitas vozes diversas podem alcançar quando se dispõem a incan-
savelmente construir juntas.

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152
Parte 4

Sociedade

153
11

Precarização desigual da vida no contexto pandêmico:


da necropolítica às modulações da clínica

João Paulo Pereira Barros, Ana Carolina Borges Leão Martins, Lara Brum de
Calais, Dagualberto Barboza da Silva e Carla Jéssica de Araújo Gomes

Pandemia e suas disparidades

Este capítulo objetiva refletir sobre aspectos psicossociais dos proces-


sos de precarização desigual da vida no contexto da pandemia de covid-19 no
Brasil. O texto tomou por base as participações de João Paulo Pereira Barros
e Ana Carolina Borges Leão Martins no segundo módulo do curso “Aspectos
Psicossociais das Vulnerabilidades no Contexto da Pandemia”, promovido pelo
Programa de Pós-Graduação em Psicologia e pelo Mestrado Profissional em
Psicologia e Políticas Públicas da Universidade Federal do Ceará, no primeiro
semestre de 2020.

O ponto de partida das discussões que faremos neste capítulo é de que


a gestão política da problemática da pandemia no Brasil configura-se como uma
vitrine da colonialidade – perpetuação de lógicas de subalternização assentadas
em processos de racialização e generificação que hierarquizam e desumanizam
vidas – e de sua atualização pela racionalidade neoliberal, que enseja formas de
vida marcadamente iníquas, antidemocráticas, violentas e mortificadoras. Por
isso, podemos falar em necroliberalismo, em diálogo com Mbembe (2020a).

O texto está organizado em três seções. Na primeira, destacaremos

154
como o contexto de pandemia acentuou o caráter multilinear, multifacetado e
interseccional das desigualdades historicamente estabelecidas no Brasil, dialo-
gando com referências como Judith Butler, Achille Mbembe e produções que
analisam, pelo prisma analítico da interseccionalidade, as conexões entre raça,
classe e gênero. Na segunda, trabalharemos a relação da pandemia com práticas
antidemocráticas e com a branquitude, entendendo ambas como faces de uma
necropolítica à brasileira, a partir de teorizações da psicologia social e áreas
afins sobre questões raciais no Brasil. Já na terceira seção, abordaremos as inci-
dências do debate para uma concepção de clínica não privativa, “deselitizada”,
interessada e engajada nas atuais reconfigurações do espaço público, a partir de
interlocuções com a psicanálise.

Covid-19, precarização da vida e políticas de mortificação: a pan-


demia como lente de aumento dos efeitos do necroliberalismo

Consideramos plausível assinalar que a forma como a pandemia foi po-


liticamente tratada, em âmbito federal, sobretudo, é uma lente de aumento para
as lógicas que perpetuam desigualdades que nos assolam historicamente. Que-
remos, com tal argumentação, destacar o caráter multivetorial e interseccional
dessas desigualdades.

Para começar, ressaltamos que as territorialidades mais afetadas pelas


desigualdades sociais são também as mais afetadas pela pandemia (G1, 2020a).
São, afinal, as áreas periferizadas as que concentram maior taxa de letalidade por
covid-19. Se tomarmos o estado do Ceará como exemplo dessa relação entre
desigualdade e pandemia, além das mortes geradas especificamente pelo novo
coronavírus, veremos que a taxa de morte por intervenção policial no estado e a
taxa de homicídio cresceram nas periferias durante a pandemia, de acordo com
o Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência (CCPHA,
2020). Destacadamente não foram as medidas de isolamento social, adotadas de

155
modo acertado, que, em si, produziram mais violência, como induzem os argu-
mentos daqueles que assumem o discurso negacionista ou minimizam a existên-
cia da pandemia. Contudo, o contexto pandêmico, pelas respostas políticas que
lhe foram dadas, acentuou uma rede de violências e de precarização nas peri-
ferias, evidenciando como tais territorialidades historicamente vêm sendo sub-
metidas a um perverso abandono socioassistencial que as vulnerabiliza diferen-
cialmente. Outro exemplo disso é a relação entre a crise do novo coronavírus
e o possível aumento da pauperização dessas populações (GERBELLI, 2020).

Além do marcador de classe, vale destacarmos a dimensão de gênero


como outro atravessador dessa desigualdade. A pandemia afeta de maneira acen-
tuada e severa a vida de mulheres nessas territorialidades periferizadas, sendo
fato presente também em outras partes do mundo (MODELLI; MATOS, 2020).
Por sua vez, as desigualdades raciais e geracionais também foram ainda mais
ressaltadas pela pandemia. Afinal, quem mais vem sendo “deixado para trás” em
meio à pandemia, senão pessoas negras e pessoas idosas? (G1, 2020b). O fato
de o novo coronavírus ser mais letal em negros(as) no Brasil, conforme matéria
publicada em 11 de abril (G1, 2020c), torna ainda mais nítido o caráter estrutu-
ral e estruturante do racismo (ALMEIDA, 2018) em nossa vida social brasileira,
bem como o mito da democracia racial (NASCIMENTO, 2016) em nosso país,
que se atualizou, no período pandêmico, com discursos de que a pandemia seria
“democrática”.

A dimensão multilinear, multivetorial e interseccional das desigualda-


des que até então buscamos destacar, relacionam-se ao processo de precarização
da vida, conceito abordado por Judith Butler. Para essa autora,
A precarização designa a situação politicamente induzida na
qual determinadas populações sofrem as consequências da de-
terioração de redes de apoio social e econômicas mais do que
outras, e ficam diferencialmente expostas ao dano, à violência e

156
à morte. A precariedade também caracteriza a condição politi-
camente induzida de vulnerabilidade e exposição maximizadas
de populações expostas à violência arbitrária do Estado, à vio-
lência urbana ou doméstica, ou a outras formas de violência não
representadas pelo Estado, mas contra as quais os instrumentos
judiciais do Estado não proporcionam proteção e reparação su-
ficientes (BUTLER, 2018, p. 40-41).

A noção butleriana de precarização da vida nos é importante para pon-


tuar que a desigualdade não é uma questão estritamente individual. A precari-
zação, nesses termos, está relacionada a marcos de reconhecimento que produ-
zem, ao mesmo tempo, humanização dos corpos – cuja vida deve ser protegida
– e inferiorização de corpos desumanizados, com vistas à sua descartabilização.
A precariedade aparece, portanto, como uma condição social e politicamente
construída, que concerne a determinados grupos e populações mais acentuada-
mente, ao serem expostos de forma assimétrica a contextos de violência, en-
fermidade, pobreza, subalternização ou morte. Assim, recorrendo à discussão
sobre a precariedade da vida, relacionamos ao debate sobre os aspectos psicos-
sociais das vulnerabilidades no contexto da pandemia de covid-19, porque justo
as condições de precarização e vulnerabilidade nos convocam a pensar as rela-
ções de interdependência e de responsabilidade compartilhada, que constituem
um desafio para todas e todos.

Uma vez que a precarização da vida é maximizada para certos grupos e


minimizada para outros, é possível traçar uma relação entre a precarização desi-
gual e a necropolítica, articulando as ideias de Judith Butler e Achille Mbembe.
Ora, o debate proposto por Butler sobre precarização da vida nos remete ao
cálculo político de que alguns terão que morrer para que uma certa forma de
vida seja garantida. Tal forma pôde ser notada, por exemplo, quando a narrativa
do bolsonarismo apregoou, por diversas vezes, ser necessário salvar a economia
em detrimento de salvar as vidas que, em função das desigualdades supramen-

157
cionadas, mais estavam vulnerabilizadas pela pandemia. Logo, torna-se possível
situar esses movimentos no âmbito das operações de uma tecnologia de poder
em ação pela colonialidade e que se volta à produção, a partir de processos de
racialização, de corpos coisificados como supérfluos – logo, matáveis – e mun-
dos de morte.

Em texto recente intitulado “Direito Universal à Respiração”, Mbembe


(2020b) menciona como a precarização da vida e as tecnologias que atuam para
a morte de parcelas da população, atualmente, estão intrinsecamente relaciona-
das ao neoliberalismo e às formas de viver/morrer por ele acentuadas, produ-
zidas e permitidas. Por isso, Mbembe (2020b) escreve que vivemos um tempo
necroliberal, caracterizado por uma desigual redistribuição da vulnerabilidade
e por novos e ruinosos compromissos com formas de violência tão futurísticas
quanto arcaicas. Outras características impressas nas formas de vida neoliberal,
para o autor camaronês, seriam o brutalismo e o esgotamento, ou seja, a expo-
sição de corpos vivos a todo tipo de riscos biológicos, muitas vezes invisíveis, e
à exaustão física (MBEMBE, 2020b). Ainda nesse mesmo texto, a argumentação
mbembeana destaca que a necropolítica também se evidencia na medida em que
o vírus não afeta a todos de uma mesma maneira (MBEMBE, 2020b).

Não obstante, considerando a relação entre desigualdade, precarização


da vida e necropolítica no contexto do neoliberalismo que se acentua na circuns-
tância da pandemia, cabe a discussão sobre o caráter sacrificial dessa economia
necroliberal, ao se viabilizar pela exposição de determinados grupos à morte.
Essa dimensão sacrificial pode ser percebida nas disputas narrativas – sobretudo
econômicas e sanitárias – e das políticas institucionais em torno do isolamento
social como forma de enfrentamento da pandemia. Para Mbembe (2020a), na
ocasião de uma entrevista na qual abordou a temática da covid-19:
o sistema capitalista é baseado na distribuição desigual da opor-

158
tunidade de viver... Essa lógica do sacrifício sempre esteve no
coração do neoliberalismo, que deveríamos chamar de necroli-
beralismo. Esse sistema sempre operou com a ideia de que al-
guém vale mais do que os outros. Quem não tem valor pode ser
descartado. A questão é o que fazer com aqueles que decidimos
não ter valor. Essa pergunta, é claro, sempre afeta as mesmas ra-
ças, as mesmas classes sociais e os mesmos gêneros (MBEMBE,
2020a, p. 15).

Quanto importa – ou, literalmente, vale – cada vida em meio à econo-


mia sacrificial necroliberal? Como se constitui a aceitabilidade social e política
de que o presidente da república, ao ser indagado sobre as mortes na pandemia,
vocifere: “Infelizmente algumas mortes terão, paciência” (LIDNER; TURTELLI,
2020) – ao argumentar a favor do fim do isolamento social –, ou “E daí? Lamen-
to. Quer que eu faça o quê?” (GARCIA; GOMES; VIANA, 2020), reproduzindo
a descartabilidade de certas vidas, aquelas que constituem a maioria da popula-
ção brasileira? Precarização da vida e necropolítica, então, unem-se ao luto e à
comoção (BUTLER, 2019) também como elementos políticos.

A forma como a pandemia foi politicamente tratada nos convoca, por-


tanto, a problematizar os processos por meio dos quais temos enquadrado cer-
tas vidas como (não) passíveis de luto e, no limite, existências que sequer são
consideradas como vidas. Pautar as disparidades neste contexto de pandemia é,
assim, condição necessária para que, a partir de nossa inserção no campo psi,
possamos afirmar a dimensão pública e política do luto diante das mortes em
massa, o que é completamente oposto a corroborarmos o “E daí?”, que expõe
como certas existências estão em uma condição de descartabilidade maximiza-
da, peculiarmente agravada neste contexto de pandemia pela impossibilidade
de despedida.

Se a precarização da vida e a necropolítica são elementos articulados à


racionalidade neoliberal, que, por sua vez, é genealogicamente violenta, como

159
rearticular as ideias de Butler e Mbembe para pensarmos também linhas de re-
sistência a esse estado de coisas e de coisificação? Resistir neste e a este contexto
estaria relacionado à criação de formas de comunalidade (espaços simbólicos de
pertencimento e partilha) em meio à calamidade, tendo a condição precária, a
vulnerabilidade compartilhada e a interdependência como dispositivos de pro-
dução de aliançamentos? Nesse processo, resistir estaria articulado à luta pela
garantia, como prioridade política, do direito à existência para todas e todos?

Branquitude e práticas antidemocráticas: processos de subjetiva-


ção em curso na pandemia

Se, de um lado, temos, no Brasil, grupos interseccional e multiveto-


rialmente mais afetados pelos contextos pandêmicos, porque são cotidiana e
acentuadamente atravessados pelas dinâmicas de precarização desigual da vida;
de outro, temos processos de subjetivação em curso no contexto de pandemia
articulados a práticas antidemocráticas e de neofascistização da vida, muito re-
lacionados aos pactos de elites brancas para a manutenção de seus privilégios.
Para Lazzarato (2020), a racionalidade neoliberal se articula a um neofascismo.
Por sua vez, Mbembe (2017) pontua que o neoliberalismo se caracteriza tam-
bém pela conexão perversa entre capital e (para)militarização. Vale frisar que,
no Brasil, há mais que o recrudescimento de um processo de militarização, mas
também uma paramilitarização, dado o fortalecimento de milícias nos mais di-
versos espaços territoriais, digitais e institucionais. Dessa forma, a pandemia
tem escancarado que uma das mais fortes expressões da neofascistização nos
modos de subjetivação em curso no contexto brasileiro é a incessante produção
tanto de indiferença social quanto de um próprio desejo necrófilo de precariza-
ção das vidas relegadas à condição de existências supérfluas.

Tais lentes analíticas nos ajudam a relacionar a proliferação de práticas


antidemocráticas e de neofascistização com a própria branquitude, que deve

160
ser problematizada ao se considerar o motor racial da necropolítica à brasileira.
Uma das mais caricatas ilustrações dessa relação mórbida foi a realização de
manifestações contra as medidas de distanciamento social adotadas por prefeitos
e governadores para conter o avanço da contaminação por covid-19, a favor do
presidente, contendo contumazes mensagens em defesa de intervenção mili-
tar no Brasil e sem preocupações quanto ao uso de máscaras e prevenção de
contágios (G1, 2020d). São demasiado caricatos os sujeitos de tais carreatas e
motociatas bolsonaristas, que se consideram “invulneráveis” e, ao mesmo tem-
po, avessos a qualquer preocupação de contaminar outrem, assim como o são as
diversas fake news de cunho negacionista que foram acionadas sobre e durante a
pandemia a fim de perpetuar retóricas e persuasões que escamoteiam sua gra-
vidade e desigual incidência letal. Não à toa, portanto, a construção da suposta
“farsa dos caixões vazios” (LEMOS, 2020) – reificando a minimização das mor-
tes – também ganhou destaque nas redes sociais, denunciando a disseminação
de notícias falsas como dispositivos de controle e de governo, sobretudo com
a ascensão de grupos de extrema-direita, não só no Brasil. Negacionismo, anti-
ciência, neofascistização e necropolítica e neoliberalismo se (re)articulam, por-
tanto, no contexto pandêmico brasileiro.

Os supostos “caixões vazios” são, em correlação crítica, justamente


aqueles onde foram e são enterrados “os ninguéns”, de quem fala o conhecido
poema de Eduardo Galeano (2002). Ousamos apontar que, mais do que uma
das várias fake news que se proliferaram na pandemia, essa, em destaque, seria
uma caricata expressão do inconsciente colonial-capitalístico (ROLNIK, 2019)
e do racismo estrutural (ALMEIDA, 2018), que relegam à condição de “nada”
aquelas existências enegrecidas, generificadas e pauperizadas que têm sido mais
vitimadas pelas pandemias e epidemias no Brasil. A invisibilização nadificante
denotada por essa “notícia falsa” é, portanto, resultante da subalternização per-
petuada pela colonialidade, que converte o direito à vida em privilégio branco,

161
sendo permeada por políticas de subjetivação produtora de indiferença diante
da morte do “outro”, que a colonialidade criou.

Com efeito, as vicissitudes do contexto de pandemia escancararam um


fenômeno psicossocial que não é novo no Brasil, haja vista sua história marca-
damente autoritária e racista, mas que nos chama especial atenção em seus (re)
desenhos no contexto da crise sanitária em questão: a adesão subjetiva a proces-
sos antidemocráticos. Isso está em boa parte relacionado às promessas políticas
de grupos de extrema-direita no mundo inteiro, as quais ganham pregnância e
virulência nesse contexto neoliberal que retroalimenta o mal-estar subjetivo,
os endividamentos de diversas ordens, cansaços, desamparos, desorientações,
ressentimentos, desencantamentos, medos, inseguranças, ódios e moralização
da política.

Não obstante, vale salientarmos que as tecnologias necropolíticas, que,


assentadas em um racismo estrutural, atingem negros e negras transformados
em corpos-coisa, corpos-mercadoria e corpos-invisíveis aos hegemônicos cir-
cuitos de comoção social, têm na branquitude um de seus principais sustentá-
culos. A própria branquitude é entendida, então, como efeito dessa racialização
colonial, apresentando-se em diversas dimensões, na política, no direito, na eco-
nomia, no discurso midiático e na produção desejante no campo social.

Maria Aparecida Bento (2012) elucida como a branquitude é um aspec-


to-chave para o estudo das relações raciais no Brasil e de suas dimensões subjeti-
vas, dizendo respeito ao conjunto de “traços da identidade racial do branco” (p.
25). Essas e outras produções, como a de Müller e Cardoso (2017), mostram
como a problematização da branquitude se faz necessária para a análise do fun-
cionamento e reprodução psicossocial do racismo no Brasil. Problematizar a
branquitude implica analisar relações de saber-poder-subjetivação que posicio-
nam o sujeito branco como “modelo universal de humanidade” (BENTO, 2012,

162
p. 25).

É com base na branquitude, portanto, que outros grupos sociais


são vistos como “não humanos”, “descartáveis”, “inelutáveis”, a ponto
de ouvirmos “E daís?” não só do presidente da república, diretamente,
mas também dos corpos em carreata, indiretamente, que, encarnando o
autocentramento da branquitude, tripudiam das mortes provocadas pela
contaminação pelo novo coronavírus. Afinal, a branquitude nos remete à na-
turalização de supremacias raciais, sociais, políticas e econômicas, mas também
ao silêncio, à omissão e às distorções em torno do lugar de sujeitos brancos em
uma sociedade desigual. Advém da branquitude também o equívoco de tomar o
racismo como um “problema do negro”.

Portanto, as carreatas do “mundo-branco”, que ostentam símbolos ver-


de-amarelo clamando por ascensão autoritária e recuo das medidas de proteção
social ante a pandemia, ilustram outra característica crucial da branquitude: o
pacto narcísico para a autopreservação de privilégios. Nesse contexto em que
se diz que a economia “não pode parar”, escancara-se como o próprio direito
fundamental à vida e à respiração é reivindicado como privilégio branco. Assim,
interpelar a elite e a classe média branca em carreatas e protestos contra o iso-
lamento e também aquela que, em quarentena, culpa a periferia pelo aumento
da curva de contaminação, é um dos analisadores para elucidarmos a relação
entre a branquitude, necropolítica, processos antidemocráticos e processos de
subjetivação no Brasil atual.

Tecnologia e segregação: três formas de enlace entre público e pri-


vado

Será preciso investigar de que modo o debate sobre as reconfigurações

163
(necro)políticas dos espaços públicos incidem no cotidiano das práticas psicoló-
gicas, mais especificamente, na prática do(a) psicanalista. Os eixos da “tecnolo-
gia” e da “segregação” serão agora inseridos em uma reflexão política do estatuto
da clínica, que não está apartada do contexto de excessiva vulnerabilização que
estamos atravessando.

Diante das medidas de distanciamento social, em que a digitalização das


relações se acentuou sobremaneira, na passagem do cotidiano presencial à di-
gitalização da vida, uma questão assume o primeiro plano: o que escapa à rede?
Afinal, há algo que a tecnologia não consegue captar, capturar, ao passo que não
se pode tomar como autoevidente o suposto caráter inclusivo da tecnologia,
como se todas e todos, numa sociedade desigual como a nossa, tivessem igual
acesso a ela.

Tentaremos desenvolver tal pergunta – “o que escapa à rede?” – a partir


dos demais questionamentos que atravessam historicamente a constituição da
clínica psicanalítica: como podemos ampliar nosso conceito de escuta? Como
podemos dar uma direção à nossa escuta que ultrapasse o regime de uma con-
cepção privativa de clínica, e alcance a esfera pública? São problemas que cami-
nham no mesmo sentido porque o que escapa à rede também remete às impli-
cações da escuta, para mais além dos processos de digitalização. E seria possível
tomar uma posição política, enquanto psicanalistas, a partir do próprio discurso
analítico? Para avançar nesses e em outros problemas, a divisão clássica entre a
clínica e a política inevitavelmente será embaralhada.

Tal separação entre clínica e política recobre outra divisão: a do público


e do privado. A dificuldade em posicionar a nossa escuta para além de certos
limites, de certas fronteiras, digitais ou não, está muito relacionada à insistência
em uma concepção privativa de clínica, e do consequente rechaço de uma clíni-
ca orientada pela/na esfera pública.

164
Mas o que seria a esfera pública? Neste capítulo, que se centra em dis-
cussões sobre vulnerabilizações e condições precarizantes agravadas pela pan-
demia de covid-19, é fundamental definirmos em qual território essas vidas
precárias se constituem e se formam.

A definição de Hannah Arendt (1991) de esfera pública, em sua relação


com o domínio privado, indica que “tudo o que vem a público pode ser visto e
ouvido por todos e tem a maior divulgação possível” (p. 59). Podemos pensar
essa definição usando como ilustração o contexto de uma sala virtual, como as
que se tornaram frequentes durante a pandemia, em face da suspensão do ensino
remoto e adoção emergencial de estratégias remotas. Nesse contexto de apa-
rência, tudo o que é visto e ouvido por nós mesmos e por outros é constitutivo
da própria realidade. A esfera pública assim se define como a esfera do apareci-
mento, da aparência, em que o ouvir e o ver terão lugar, à medida que falamos.

Se a esfera pública é o lugar da aparência, mundo comum onde vários


têm voz e são escutados, a esfera privada se define no contraponto como um
eixo “pré-político”, de invisibilidade, de não representação. E o que não é visto
nem escutado é muito mais vulnerável, propenso ao (des)aparecimento último
que é a morte.

Então, a esfera privada, como campo pré-político, estaria relacionada


ao âmbito da invisibilidade das necessidades corpóreas, dentro da divisão estrita
entre privado e público. Ousamos dizer que a própria psicanálise nasce enquan-
to proposta de escuta em um espaço considerado pré-político, ocupado por
sujeitos que não tinham voz pública, que não podiam ser vistos nem ouvidos. Na
passagem do século XIX para o XX, esses sujeitos eram nomeados de “histéri-
cos”, e eram majoritariamente mulheres. A psicanálise, então, advém de uma es-
cuta de sujeitos periféricos, de mulheres que não tinham voz no mundo, que não
podiam falar, mas que, de alguma forma, estavam falando com os seus corpos.

165
Nessa acepção, a psicanálise se insere no mundo fazendo a passagem do
privado para o público, promovendo o deslocamento de uma esfera a outra, dan-
do voz e lugar a mulheres que tradicionalmente nunca tiveram sua voz escutada
na esfera pública, em que o cidadão era o homem, o sujeito universal masculino.
Uma clínica dos silenciados, dos invisíveis, dos periféricos. A psicanálise tem
uma relação de solidariedade com os corpos vulnerabilizados desde sua origem,
desde a sua constituição, e é muito importante lembrar disso em um momento
em que existem tantas apropriações elitistas do discurso e da prática analítica.

Já o segundo eixo de articulação entre o privado e o público chama-


remos de eixo do moderno. Há aqui uma pequena inflexão se comparado ao
eixo anterior, de total separação entre as duas esferas. No eixo moderno, ain-
da acompanhando a linha arendtiana, o privado não mais se relaciona ao “estar
privado” de ser visto, de ser escutado, mas sim à propriedade, e, na emergência
dessa outra dimensão do privativo, advém também a ideia de individualidade.
O crivo histórico da modernidade se caracteriza pela reorganização da esfera
pública tendo em vista a manutenção da propriedade privada, como duas esferas
que se aproximam e se entrelaçam, na composição de uma espécie de híbrido,
que Arendt denomina de “esfera do social”.

Tal demarcação imprecisa das fronteiras que dividem o público e o pri-


vado tem muita relação com o avanço do capitalismo, em seus desdobramentos
neoliberais, visando à manutenção do individualismo, da responsabilidade indi-
vidual, e em como o Estado virá em auxílio para a manutenção da propriedade
privada. Nesse caso, muda-se o sentido da coletividade e o eixo do aparecimen-
to, nas esferas que se entrelaçam para compor o social.

Essa segunda concepção também coloca questões à clínica: se, na pri-


meira, a esfera pública se confunde com o campo do político, na segunda, o es-
paço político por excelência será o social, de onde deduziremos outra questão:

166
como nós, analistas, logramos nos inserir na esfera social? Com todo debate
sobre a institucionalização da psicanálise, sobre a entrada de analistas nas es-
colas de ensino fundamental e médio, em hospitais, nas comunidades, essas e
outras iniciativas interrogam a inserção de analistas na esfera social, como sendo
a grande esfera política da modernidade.

Mas não necessariamente essa possibilidade de inserção irá deslocar


uma concepção privativa de clínica, fazendo-nos interrogar até que ponto nos-
sos conceitos, nossos discursos e nossas práticas clínicas dão conta de tratar das
categorias de raça, dos recortes de classe, de gênero, etc. Então, a inserção dos
psicanalistas no híbrido do social implica também uma necessária movimen-
tação da teoria, para que se torne possível pensar articulações do discurso ao
analítico tendo em vista uma ampliação da escuta.

Assim, versaremos agora sobre essas articulações, que conjugam pri-


vado e público, em uma terceira via. Enquanto a primeira forma de articulação
entre o público e o privado é a clássica, da separação, e a segunda, na forma
moderna, caracteriza-se por um híbrido entre o público e o privado, que origina
o social, a terceira, que nomearemos de digital, não está, obviamente, indicada
por H. Arendt: somos nós que precisaremos construí-la. Então, o que seria essa
terceira articulação entre público e privado que daria origem ao digital?

Aqui, há o deslocamento do próprio espaço político: se, no primeiro


formato, o político se confundia com o público e, depois, no segundo formato,
com o social, aqui temos a sobreposição entre a esfera política e a digital. Com
o advento da pandemia, o digital se tornou o nosso novo mundo em comum, o
mais novo espaço público. Isso implica uma modificação dos circuitos de visibili-
dade: se o que era tornado invisível na separação clássica entre público e privado
era da ordem do pré-político, e na configuração moderna o invisível assumia a
forma do não social, da não cidadania, aqui, o invisível será da ordem do não di-

167
gital. É uma nova produção de segregação que vemos nesse terceiro momento,
assim como uma radicalização dos processos de exclusão.

O que está em jogo nesse formato digital? Eis o que precisamos pensar
e construir em conjunto, avançando na estranheza do digital, em que o privado,
o privativo, torna-se a própria condição da política e da esfera do aparecimen-
to. Se não tivéssemos nossa casa e nosso computador ou smartphone, como
teríamos a possibilidade de aparecer no espaço remoto em meio à pandemia?
Então, isso nos possibilita pensar, por exemplo, no estatuto de uma vida não di-
gitalizada, das pessoas que não conseguem cadastrar o CPF para receber auxílio
emergencial, dentre outras ilustrações possíveis. Essas pessoas, que têm de en-
frentar filas em meio a uma pandemia para conseguir o auxílio, são as vidas não
digitalizadas, situadas para além das telas, presentes nas ruas, e estão certamente
em uma condição muito mais precária, de maior vulnerabilidade do que nós.

Se, em uma das seções anteriores do capítulo, falamos das fake news de
supostos caixões vazios durante a pandemia, com vistas a minimizar seus efeitos
mortíferos, o que nos faz retomar a ideia do quanto a esfera pública continua ar-
ticulada à tradicional dimensão do aparecimento, podemos pensar agora que, na
pandemia, manifesta-se também uma outra modalidade de (des)aparecimento,
uma nova relação com a morte, uma dupla morte, mais além do corpo físico,
porque são mortes que não se enquadram nos espaços digitais. Dentro dessa
nova esfera do digital, em que o privativo se torna a condição de aparecimento
na ordem pública, o que cabe à clínica psi?

Nas análises on-line, é o alcance das nossas escutas que será interro-
gado. Como podemos escutar, por exemplo, as formas de sofrimento que não
entram na rede, que escapam às telas dos computadores e dos smartphones?
Como podemos escutar a violência contra as mulheres durante a pandemia,
que, por estarem em situação de quarentena, estão também mais vulneráveis a

168
seus parceiros violentos? E como escutar o luto, o desespero daqueles que estão
morrendo de covid-19? Tais questões tocam nas práticas de cuidado em um novo
formato de articulação entre o público e o privado, relacionado à digitalização
da vida e dos corpos.

Considerações finais: da necropolítica à clínica não privativa

O trajeto do nosso capítulo assinala como o modo de ordenação ne-


cropolítica dos territórios, marcado pela centralidade do pacto narcísico da
branquitude, ejeta corpos não brancos e não reconhecidos em seu caráter hu-
manizado – e, portanto, muito mais propensos aos processos de precarização
maximizada das condições de vida e à morte. Frisamos que esse debate não
está alijado das práticas clínicas dos(as) psicanalistas: uma concepção privativa e
elitista de clínica reforça, especularmente, os mesmos processos de segregação
e de mortificação evidentes nos espaços públicos, na medida em que expropria
vastos segmentos da população de potenciais práticas de cuidado, condenan-
do-os igualmente ao (des)aparecimento de suas vozes, de seus afetos, de seus
corpos.

Uma reflexão profunda sobre o alcance das nossas escutas no contexto


pandêmico de crescente vulnerabilização de certas vidas (e não de outras) assim
se mostra solidária a uma concepção de clínica que jamais deixou de ser “so-
cial”, isto é, um agenciamento que “hibridiza” as esferas públicas e privadas. No
entanto, é mais além da inserção social da prática dos(as) analistas que o nosso
texto nos convoca a pensar: como a nossa escuta pode fazer enfrentamento à
crescente neofascização da vida, que se atualiza e se perpetua em nossos dias, na
reconfiguração digital da esfera pública?

Estamos atentos(as) às reconfigurações necropolíticas dos centros e das


periferias, às (sempre) novas racionalidades neoliberais, às disposições sacrifi-

169
ciais das vidas para a manutenção dos privilégios (brancos), e outras modulações
entre os corpos e os territórios, conforme exposto ao longo do texto. Desse
modo, teremos meios de recuar diante de práticas psicanalíticas/psicológicas
que se alinhem em cumplicidade com os processos de exclusão/segregação,
e reafirmar o completo rechaço da psicologia e da psicanálise diante das mais
variadas políticas de mortificação.

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172
12
Vulnerabilidades em contexto de pandemia: o racismo e a fome
como efeitos de segregação

Karla Patricia Holanda Martins, Aline Gabriele Carvalho de Lima, Angela Tere-
sa Nogueira de Vasconcelos, Samanta Basso e Tatiana de Souza Santos Neves

A pandemia de covid-19 tem evidenciado que, ainda que ninguém esteja


a salvo do contágio do vírus SARS-CoV-2, não estamos igualmente vulneráveis.
Ressaltamos aqui que as desigualdades não são físicas, não foram estabelecidas
pela natureza, ainda que se insista em falar dos grupos de risco apenas relacio-
nados às dimensões físicas e orgânicas dos corpos. São desigualdades morais ou
políticas, pois que dependem de “uma espécie de convenção e foi estabelecida,
ou ao menos autorizada, pelo consentimento dos homens” (ROUSSEAU, 1987,
p. 143).

A disseminação do novo coronavírus no Brasil e o perfil preferencial de


suas vítimas foram uma demonstração implacável das desigualdades que marcam
a nossa história. Contudo, a despeito dessa evidência, as principais estratégias
discursivas dos dirigentes federais sustentaram a indiferença e a desqualificação
de que essas desigualdades históricas se mantêm e se agravam diante da natu-
reza violenta e letal de um vírus. Consideramos que tais estratégias discursivas
podem ser identificadas com uma forma de recusa que desmente e desqualifica
o sofrimento impedindo o trabalho de elaboração das perdas e simbolização das
experiências dolorosas, estabelecendo as condições de possibilidade para a pre-
carização das vidas e nos vulnerabilizando psiquicamente.

173
Dessa forma, a pandemia está deixando marcas, feridas, que acrescen-
tam ao seu domínio uma experiência individual e coletiva de perda que colapsa
a nossa crença no futuro, a confiança em si e nos outros humanos. A partir dessa
compreensão, a pandemia afirma-se como um trauma coletivo, conforme o en-
tendimento retomado por Gondar (2012) do conceito cunhado pelo sociólogo
Erikson, nas suas palavras:
Por trauma coletivo me refiro a um golpe nos tecidos básicos
da vida social que destrói os vínculos que ligam mutuamente as
pessoas e que causa um prejuízo no sentido existente de comu-
nidade [...]. O eu continua existindo, ainda que tenha sofrido
dano e mesmo mudanças permanentes; o tu continua existindo
ainda que distante, e pode ser difícil se relacionar com ele; mas
o nós deixa de existir (ERIKSON, 2011, p. 69 apud GONDAR,
2012, p. 196-197).

Por essa perspectiva de trauma social como desarranjo nos vínculos en-
tre as pessoas, destacamos a segregação como um fator que, embora anteceda
a pandemia de covid-19, se sobressai (ou se intensifica) a partir dela. Neste
trabalho, a partir da noção de segregação em Lacan, pensado aqui enquanto um
fator associado à precarização das vidas e ao incremento das vulnerabilidades,
objetiva-se apresentar dois possíveis efeitos da segregação atualizados no con-
texto atual da pandemia de covid-19, quais sejam: o racismo e a fome, ambos
relacionados aos desmentidos históricos brasileiros. Sob uma perspectiva psica-
nalítica, pretendemos alcançar a dimensão do trauma e da catástrofe envolvidos
nos sofrimentos que se atualizam na pandemia atual.

Vulnerabilidades, segregação e pandemia

“Seremos capazes de redescobrir a nossa pertença à mesma espécie e o


nosso inquebrável vínculo à totalidade do vivo?”. Com essa pergunta, o filósofo
camaronês Achille Mbembe (2020), em abril deste ano, faz sua previsão sobre o
momento em que nos encontramos e sobre as zonas do mundo onde a saúde e

174
a vida já estavam sendo negligenciadas: “infelizmente prevemos que muitos não
passarão pelo buraco da agulha”.

Até o presente momento, no que diz respeito ao nosso país, sabemos


que mais de 153.730 pessoas3 não passaram pelo buraco da agulha. Numa
realidade que já preexiste à pandemia, os que não passam pelo buraco da
agulha são aqueles que rotineiramente vivenciam os piores resultados da grande
desigualdade social existente no Brasil, os mesmos que estão nas várias situações
de vulnerabilidades.

Em meados de março, quando a pandemia começou a ganhar maior


atenção em território brasileiro, surgiu uma nova norma, um imperativo: “fica
em casa”, cujo aparecimento coincide com a política de isolamento que os Es-
tados foram adotando. Em pouco tempo, ganhou as redes sociais com a sua
hashtag, virou campanha de publicidade, teve a divulgação de inúmeros artistas
e passou a ser estampada diariamente como uma obrigação em favor do coletivo.
Sim, pode-se afirmar que a campanha contribuiu em parte numa conscientiza-
ção da população e, assim, foi possível evitar ainda mais a disseminação do vírus
e proteger aqueles grupos denominados “de risco”.

No entanto, cabe aqui uma reflexão sobre o percurso da campanha do


“fica em casa” envolvendo os que não podem ficar em casa e estão em condi-
ções vulneráveis ao vírus. Trata-se aqui de uma parcela da população que traz
consigo os ecos de outros tempos, uma população comumente marginalizada e
geralmente circundada em espaços muito específicos. Para Mbembe (2020), o
confinamento já faz parte de nossa condição, ou seja, o isolamento já existia para
uma parcela da população. Como exemplo, o autor cita as multidões dentro
3 Dado coletado do dia 18 de outubro de 2020. Para mais in-
formações, consultar: https://www.google.com/
search?q=dados+covid&oq=dados+covid&aqs=chrome..69i57j0l2j0i433l4j0.
9652j0j7&sourceid=chrome&ie=UTF-8.

175
das prisões do mundo “e outras pessoas cuja vida é despedaçada contra muros e
outras técnicas de criar fronteiras”.

Diante dos dados que diariamente aumentam sobre os óbitos e infec-


tados pelo coronavírus, “é considerado normal 100 mil pessoas morrerem e a
maioria ser pobre, negra, do Nordeste, da periferia, do Norte, indígena – essas
populações sempre estiveram à margem”, afirma Emanuelle Góes (2020), pes-
quisadora da Fiocruz, em matéria de setembro deste ano.

Se, historicamente, nossa sociedade já parte de uma divisão social – não


só em relação a valores econômicos, mas também baseada no que determinado
corpo representa –, hoje podemos afirmar que essa divisão persiste e traz uma
série de consequências para essas vidas.

As reflexões de Butler (2019) nos ajudam a questionar o modo como


essas vidas são, de fato, (des)qualificadas enquanto vida, como ela afirma: “há
‘sujeitos’ que não são exatamente reconhecidos como sujeitos e há ‘vidas’ que
dificilmente – ou, melhor dizendo, nunca – são reconhecidas como vidas” (p.
17). Para a autora, a condição de ser reconhecido precede o próprio reconhe-
cimento, visto que essa condição parte de campos constituídos historicamente
e de forma variável. Além disso, é sabido que essa condição é estabelecida por
normas que operam de forma a criar alguns sujeitos reconhecíveis e outros não;
não se tratando de uma potencialidade geral entre os seres humanos, as con-
dições prévias ao reconhecimento “preparam ou modelam um sujeito para o
reconhecimento” (p. 19). Isso posto, nos lembra a autora, precisamos pensar as
vulnerabilidades em articulação com as raízes históricas que fazem obstáculos
às condições de possibilidade para o reconhecimento e que desqualificam vidas.
Tais processos repercutem nos nossos processos de luto, visto que uma vida pas-
sível de luto requer primeiramente que seja qualificada como tal.

176
Diante disso, gostaríamos de indicar os efeitos da atual política de isola-
mento para uma política da segregação, considerando-se o termo cunhado rapi-
damente em alguns momentos específicos na obra de Lacan, mas muito potente,
ainda que pouco comum ao vocabulário usual da psicanálise. A segregação esta-
ria no princípio da fraternidade, afirma Lacan (1970/1992) no seu “O Seminá-
rio, Livro 17”:
só conheço uma única origem da fraternidade [...] é a segrega-
ção. [...] na sociedade, tudo o que existe se baseia na segregação,
e a fraternidade em primeiro lugar. Nenhuma outra fraternida-
de é concebível, não tem o menor fundamento, [...] o menor
fundamento científico, se não é por estarmos isolados juntos,
isolados do resto (p. 120-121).

Entende-se, assim, que no contexto do discurso da ciência, a fraterni-


dade poderia se constituir como resultado justamente daquilo de que alguns são
excluídos. A tese lacaniana aposta que os ideais, entre eles os de fraternidade,
estão intimamente relacionados ao discurso da ciência e sua constante tentativa
de universalização do sujeito. No entanto, conforme colocam Fontenele, Souza
e Lima (2018), “tanto mais nos movemos em direção ao universal, mais segre-
gamos o singular” (p. 498). Em direção semelhante, afirma Butler (2019) que
“uma figura viva fora das normas da vida não somente se torna o problema com
o qual a normatividade tem de lidar, mas parece ser aquilo que a normatividade
está fadada a reproduzir: está vivo, mas não é uma vida” (p. 22).

Assim, a prática segregativa se mostra como uma forma de tratar a di-


ferença, tratar aquilo que escapa ao universal, “é um meio que quase podemos
chamar de espacial: cada um em seu devido lugar, ou seja, uma solução que
poderíamos caracterizar como sendo pela via da repartição territorial” (SOLER,
1998, p. 45). E, daí, a criação de espaços de segregação, cujo principal exemplo
colocado por Lacan são os campos de concentração.

177
Feita essa breve explanação sobre a noção de segregação em Lacan,
podemos retomar o contexto da pandemia. É importante relembrarmos que,
mesmo antes da pandemia chegar em território brasileiro, vivíamos em cidades
divididas, separadas e isoladas. O alto nível de desigualdade e violência no Brasil
contribuiu para novas formas de moradia e convivência no espaço público (SPO-
SITO; GÓES, 2013). Como exemplo claro temos uma enorme quantidade de
shoppings centers e condomínios de luxo que normatizam uma área comum,
fiscalizando quem entra e quem sai, quem pode e quem não pode circular nesses
espaços, geralmente em nome de uma segurança exigida por determinada classe
socioeconômica (DUNKER, 2015).

Se antes já existia uma clara prática segregativa, cujo principal alvo era
(e ainda é) o indivíduo considerado perigoso encerrado em espaços de segrega-
ção (favelas, cracolândias e presídios, por exemplo), hoje essa lógica é atualizada
em nome do novo coronavírus. Agora se trata dos que podem ficar isolados e
dos que não podem. Anteriormente, tínhamos a violência policial eliminando
várias vidas não passíveis de luto, hoje temos também o descaso do governo e
das elites diante de uma enorme parcela da população que não possui recursos
mínimos para manter os cuidados necessários de prevenção à covid-19.

Entendemos que a existência prévia de uma prática segregativa relativa


à constante tentativa de livrar-se daqueles que não são bem-vindos na frater-
nidade traz à tona também seus efeitos de segregação. Discutiremos a seguir o
racismo e a fome enquanto possíveis efeitos dessas práticas.

Vulnerabilidades agenciadas pela segregação do racismo

A história do Brasil é marcada por episódios de dor e de trauma que


permanecem ainda hoje encobertos por um trabalho de negação repetidamente
atualizado ao longo das gerações. Elementos históricos importantes na com-

178
preensão de como a sociedade brasileira se organizou permanecem recalcados,
inscritos como traços de memória nacional que insistem em se presentificar,
em que pese o trabalho sistemático de silenciamento das elites e de alguns seto-
res da sociedade brasileira. Destacamos o racismo como um desses elementos
importantes na compreensão da história da nossa organização social – racismo
reiteradamente negado como forma de manutenção do maior de todos os mitos
brasileiros, a saber, o mito da democracia racial. Segundo Souza (1994), esse
mito fora construído para sustentar uma imagem fantasiosa de Brasil, cercado
de belezas naturais e de uma cultura dita exótica, onde as três raças conviviam
de forma pacífica e harmoniosa. O exotismo e a dita democracia racial se fixa-
ram como imagem que teria conferido certa projeção internacional, reforçada
pelas elites ávidas por fazerem-se reconhecidas pelo mundo.

Mais de 300 anos de escravidão sustentaram a criação e a manutenção


permanente de “barreiras étnicas” (MOURA, 2019) desmentidas pelo discurso
da “meritocracia”, mais um elemento do autoengano nacional. Numa sociedade
cujo racismo é estrutural, posto que se encontra na base de suas organizações
sociais e institucionais (ALMEIDA, 2019), as oportunidades não são iguais para
brancos e negros. Em situações de emergência, como no caso da covid-19, a
precariedade relacionada aos marcadores de cor se associa à pobreza e às condi-
ções escassas dos serviços de saúde, educação, alimentação, saneamento, mora-
dia e segurança. Segundo publicação da Faculdade de Medicina da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG, 2020) de maio deste ano, a população negra
encontra-se mais vulnerável em relação à contaminação pelo novo coronavírus
do que a população branca. A condição de subemprego e as atividades informais
são apontadas como agravantes dessa realidade. A publicação destaca, ainda, os
conflitos entre a detecção da doença e a possibilidade de cuidados e o racismo
institucional que desfavorece a entrada de pessoas negras nos serviços hospita-
lares.

179
Pesquisa realizada pelo Instituto Pólis (2020), entre os dias 1º de março
e 31 de julho deste ano e divulgada pela Agência Brasil em agosto de 2020 pela
repórter Camila Boehm, revelou que, na cidade de São Paulo, a taxa de mor-
talidade por covid-19 entre negros foi maior que entre a população branca. A
pesquisa demonstrou que, na capital paulista, a taxa de mortalidade da popu-
lação negra foi de 172 mortes por 100 mil habitantes, enquanto a taxa entre a
população branca foi de 115 por 100 mil habitantes.

Sciulo (2020), em matéria publicada pela Revista Galileu em maio deste


ano, apresentou dados que mostram que 1 em cada 3 pessoas hospitalizadas que
morreram por covid-19 eram negras, em comparação com 1 morte em 4,4
pessoas brancas hospitalizadas. Também apontou que, em São Paulo, os bairros
com maior concentração de negros apresentam números maiores de óbitos pelo
vírus. Destacou ainda um estudo realizado pela PUC-Rio, divulgado em maio
deste ano, que ao relacionar escolaridade e casos de óbitos por covid-19, ob-
servou que a incidência de morte entre pessoas sem escolarização é três vezes
maior (71,3%) do que entre as de nível superior (22,50%), de maioria branca.

A covid-19, que muitos acreditam ter escancarado os abismos econô-


micos e sociais característicos da sociedade brasileira, se por um lado pode ter
revelado a condição de vulnerabilidade que atinge grande parte da população
nacional empobrecida e não coincidentemente negra, por outro, seus efeitos
e gravidade seguem sendo negados por alguns setores sociais e políticos, que
mais uma vez se abstêm de suas responsabilidades diante dos cuidados e do as-
seguramento dos direitos dos cidadãos brasileiros, sobretudo dos mais social e
economicamente vulnerabilizados.

180
Os efeitos de segregação da pandemia sobre a insegurança alimen-
tar

A pandemia de covid-19 culminou no agravamento dos cenários das


vulnerabilidades sociais, nesse caso, mais especificamente, o número de pes-
soas em situação de grave insegurança alimentar dobrou. Segundo o economista
chefe do Programa Mundial de Alimentos da Organização das Nações Unidas
(PMA/ONU), Arif Husain, o número de pessoas com insegurança alimentar
saltou de 135 milhões em 2019 para 270 milhões em 2020. No que se refere ao
Brasil, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 17 de setem-
bro de 2020, apresenta o aumento de cerca de 3 milhões no número de pessoas
sem acesso regular à alimentação básica, nos últimos 5 anos, chegando a cerca
de 10,3 milhões de pessoas nessa situação. Na mesma pesquisa, encontra-se a
especificação de que, em 2018, quase metade dos famintos viviam na região
Nordeste.

A aceleração dos processos de vulnerabilização dos sujeitos, no que tan-


ge à fome definida pela pandemia de covid-19, é uma realidade que infelizmente
já vinha em crescente no último ano, após uma década de decréscimo. Diante
desse contexto, de aumento do número das pessoas que vivenciam a fome co-
tidianamente, o que se busca sublinhar é referente ao que pode ser evitado pela
ação humana. As catástrofes mais difíceis de serem elaboradas são aquelas pro-
vocadas pelos seres humanos.

A fome como privação de alimento decorrente da miséria, nas palavras


do antropólogo argentino Martín Caparrós, “tem sido, desde sempre, a razão
de mudanças sociais, progressos técnicos, revoluções, contrarrevoluções. Nada
teve mais influência na história da humanidade. Nenhuma doença, nenhuma
guerra mataram mais gente. No entanto, nenhuma praga é tão letal e, ao mesmo
tempo, tão evitável como a fome” (2016, p. 11). Tal perspectiva – a de que a

181
fome é um evento que poderia ser evitado – demonstra um caráter contingente,
envolvendo aí a desigualdade social, a má distribuição de renda, mas que não é
necessária, uma cena da catástrofe humana.

A noção de catástrofe, em sua polissemia constituinte, tem como um


de seus significados o de ruptura. Desse modo, falamos aqui de ruptura em duas
acepções: a primeira delas relacionada à ruptura do pacto social; e, a segunda,
relativa à ruptura a que a fome impele subjetivamente as pessoas afetadas. No
primeiro caso, sublinha-se uma consequência nefasta do fato de historicamente
negarmos ou naturalizarmos a miséria e a desigualdade social. Os dados levan-
tados pela Organização das Nações Unidas mostram que no mundo são produ-
zidos alimentos suficientes para que não houvesse pessoas passando fome. Na
segunda acepção, apontam-se os efeitos subjetivos da experiência da fome.

Portanto, o tema da fome apresenta duas facetas no que se refere às


possibilidades de trabalho: por um lado, conforme mostramos por meio de da-
dos, um cenário alarmante que deveria ser pauta de ações de combate à fome
em diversos âmbitos; e, por outro, o silenciamento, ou pior, a negação dessa
realidade, que coloca obstáculos no reconhecimento dos problemas envolvidos
nessa complexa realidade, como também dificulta os processos individuais de
elaboração.

Assim, compreendemos que embora a covid-19 seja uma doença tida


como “democrática” e que diante dela estaríamos “todos no mesmo barco”, essas
e muitas outras pesquisas amplamente veiculadas pelas mídias apontam que as
condições sociais e econômicas pré-existentes à pandemia, tais como moradia,
renda, saneamento básico, acesso à informação e segurança alimentar, são fun-
damentais na compreensão de como a covid-19 atinge a população brasileira. A
partir dos casos de agravamento e morte provocados pelo contágio, podemos
supor que embora a pandemia seja para todos nós uma mesma tempestade, não

182
temos todos a mesma condição de abrigo, ou seja, não estamos no “mesmo
barco”.

Considerações finais

Na pandemia de covid-19 ninguém está a salvo do contágio. A doença


não escolhe órgão, produz colapso no corpo inteiro; provoca angústia, medo,
desorientação, desconfiança; colapsa, inclusive, os fundamentos do capital; e
desorganiza a nossa relação com nossos espaços naturais e sociais. Ela é única,
pois as condições de possibilidade para sua deflagração fazem desta um aconte-
cimento, mas representa também a condensação de vários tempos e pertence à
História e à sua transmissão (MARTINS; RABELO, no prelo).

A dupla incidência destrutiva da doença, que, de um lado, fragiliza os


corpos e, por outro, nega as vulnerabilidades potencializando a experiência
traumática, reafirma o caráter disruptivo do trauma social mantendo um núcleo
intraduzível relacionado ao horror. Todavia, a negação histórica dessas experiên-
cias inomináveis tende a fazer reaparições, as quais insistem em tornarem-se
visíveis. Se mandarmos de volta ao esquecimento aquilo que nem sequer foi
representado, apagando seus rastros de uma narrativa histórica, sua tendência
é forçar seu reconhecimento por uma via que é a da reatualização do trauma.
Nessa perspectiva, diante dos acontecimentos catastróficos e traumáticos, a ex-
periência do testemunho se faz fundamental às políticas da memória, conforme
afirma Selligman-Silva (2003, p. 48): “Aquele que testemunha se relaciona de
um modo excepcional com a linguagem: ele desfaz os lacres da linguagem que
tentam encobrir o ‘indizível’ que a sustenta”.

183
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186
13

Perda, morte e luto na pandemia de covid- 19

Maria Suely Alves Costa e Luiz Augusto Souza Barbosa

Desde o início do atual cenário de pandemia do novo coronavírus (SAR-


S-CoV-2), causador da covid-19, vários aspectos relacionados às formas de vi-
ver e morrer foram modificados, transformados e questionados. A Organização
Mundial da Saúde (OMS), a partir do relato pela Organização Pan-americana de
Saúde (2020), oficializou no dia 11 de março de 2020 a situação de pandemia por
covid-19 e, desde então, contabilizam-se, até setembro do corrente ano, mais de
1 milhão de mortes em todo o mundo, revelando a gravidade do contexto que
estamos vivenciando. No Brasil, esse cenário não se mostra menos preocupante,
sendo um dos países mais afetados no mundo, contabilizando, segundo a OMS
(2020), mais de 4.717.991 de casos confirmados e mais de 140.000 óbitos pela
doença, propiciando diversas discussões e preocupações sobre a atual situação.

Compreende-se, a partir disso, que a pandemia acarreta modificações


do que, comumente, considerava-se como o normal ou cotidiano e, com isso,
enfatiza e prioriza discussões sobre diversos aspectos fundamentais e impres-
cindíveis para questões inerentemente humanas, tanto relacionadas às relações
sociais, pessoais e culturais, como aos processos de saúde-doença e, evidente-
mente, à finitude humana. Dessa forma, discutir aspectos relacionados à morte,
ao morrer e aos contextos de perdas apresenta-se como basilar diante do cená-
rio pandêmico.

187
As mortes de familiares, amigos ou conhecidos na pandemia, ocorren-
do, muitas vezes, em massa e em pouco tempo, afetam diretamente o funciona-
mento coletivo das comunidades, assim como a organização psíquica das popu-
lações afetadas. Além disso, outras perdas estão sendo vivenciadas na pandemia
e seus impactos também devem ser considerados no estudo do luto e saúde
mental (SCHMIDT et al., 2020). As desigualdades sociais foram evidenciadas
e ampliadas devido às restrições de liberdade como medida de segurança para
conter a contaminação por covid-19, afetando trabalhos, formações e relações
sociais. Dessa forma, compreender essas perdas e as consequências delas para
a elaboração do luto na pandemia torna-se fundamental, considerando que os
afastamentos gerados pelo distanciamento social são aspectos relevantes para
estudar as dificuldades que o contexto atual nos apresenta nessas vivências rela-
cionadas ao luto (CREPALDI et al., 2020).

Os modos de viver a morte e o luto são distintos em cada contexto


cultural e em cada época da história; muitas vezes, diferenças existentes dentro
de um mesmo país. Diferentes sociedades processam o luto e a morte de for-
mas distintas, sendo existentes poliformas ainda no processo de adoecimento,
alongando-se aos rituais fúnebres e à vivência posterior a essa perda. Nota-se,
ademais, que essas experiências em volta do luto são primordiais para o reco-
nhecimento dessas perdas, incentivando as suas diversas manifestações e contri-
buindo para o entendimento das formas de vivenciar o luto (ANDRADE et al.,
2008).

Nota-se que, mesmo com essas diferenças ritualísticas, as reações hu-


manas relacionadas às perdas são semelhantes, sentimentos comuns estão re-
lacionados a esses processos de finitude. A morte em um contexto pandêmico
também possui características peculiares em relação a outros contextos de mor-
te, assim, muitas vezes, esses rituais são limitados e precisam ser modificados

188
de acordo com cada contexto, afetando todo o processo de elaboração do luto.
Devido à importância desses cenários é indispensável a apropriação desses as-
pectos para o reconhecimento das formas de elaboração e quais os impactos que
esses processos terão futuramente.

Os rituais fúnebres estão estritamente ligados aos modos de organiza-


ção social da comunidade e às próprias reflexões e indagações sobre a finitude
humana. O modo de lidar e a própria educação para a morte presente, ou ausen-
te, em uma cultura podem modificar as formas de realização desses processos.
Em determinadas sociedades, alguns tipos de morte podem ser tabus; enquanto
em outras, existem discussões e reflexões abertas sobre o morrer. Assim sendo,
atualmente, ainda estão presentes diferentes tabus relacionados a vários aspectos
presentes em discussões sobre a morte e o morrer (SOUZA; SOUZA, 2019).

Dessa maneira, salienta-se a importância de debater sobre os impactos


que a situação de pandemia pode acarretar nos processos relacionados à finitude
humana, adentrando discussões sobre as formas de luto, as consequências nos
rituais fúnebres e a atuação da psicologia no dinamismo da pandemia na saúde
mental da população.

A finitude humana em pauta

As discussões sobre a morte, o morrer e o luto fazem parte de debates


científicos e filosóficos há séculos nas mais diversas sociedades, todavia, com a
chegada da modernidade, diversas questões se modificaram e se apresentaram
de formas diferentes. A definição de uma área interdisciplinar para esses estudos
foi uma mudança basilar, assim, a tanatologia pode ser definida, segundo Ková-
cs (2008, p. 458), como a “área de conhecimentos e de aplicação, envolvendo
cuidados a pessoas que vivem processos de morte pela perda de pessoas
significativas”, além de perdas por processos de adoecimentos, comportamentos

189
autodestrutivos ou por causas externas.  

A morte é um fenômeno comum e inevitável na vida de todos os hu-


manos, inerente aos nossos ciclos de vida. Entretanto, para além da morte bio-
lógica e material, nossa finitude também abarca diversas simbologias. Assim,
questões relacionadas à finitude estão presentes desde as nossas infâncias, como
em perdas de parentes ou animais de estimação, até a mais térrea velhice, com
a perda de companheiros e, até mesmo, da própria morte. Dessa forma, a pre-
sença da morte ocorre e interfere no próprio funcionamento psíquico, com
questões relacionadas ao sofrimento da pessoa que perde um ente querido e no
contexto familiar e comunitário onde ocorre essa perda. Assim sendo, os im-
pactos de mortes em nossa cultura estão presentes nas mais diversas dimensões,
sendo estas social, biológica, espiritual e psíquica (SANTOS, 2007; GONÇAL-
VES; BITTAR, 2016).

Todavia, mesmo ocorrendo impactos no coletivo, ao nos depararmos


com a morte de um ente querido, cada sujeito em nossa sociedade irá vivenciar
esse momento de forma singular, a partir das suas próprias experiências anterio-
res com a morte, seu modo de vida atual e rede de suporte social. Dessa forma,
padronizações de formas mais aceitáveis ou corretas do luto não devem ser re-
forçadas, mas sim descartadas, pois esse fator pode ser mais uma característica
de sofrimento para o indivíduo enlutado.

Salienta-se, ainda, que estudos e levantamentos de sensações esperadas


são fundamentais para que as pessoas enlutadas possam compreender o proces-
so que estão vivenciando. No entanto, os saberes científicos devem respeitar as
diversas formas de experiência do luto em cada cultura e particularidades de
cada sujeito, contribuindo para a criação de estratégias de elaboração e não de
estigmatização desses processos.

190
Embora a finitude esteja presente em vários momentos da vida humana,
nota-se um afastamento desses aspectos relacionados à morte e ao morrer, cons-
tituindo-se como tabus em nossa sociedade (hiper)moderna (FRANCO, 2007).
Muitas vezes, discorrer sobre reflexões acerca do luto é malvisto por diversos
sujeitos e culturas, apresentados em uma posição negativa e indesejável, sendo,
ainda, aqueles que buscam discutir sobre essa experiência taxados como “som-
brios”, quando não ocorre o silenciamento direto dessas pessoas.

Na infância, é perceptível o distanciamento das questões da finitude


humana, ocorrendo quando as crianças são afastadas de qualquer contexto rela-
cionado à morte e ao morrer, afastando-as de funerais, visitas a pessoas em fim
de vida ou de conversas que, simplesmente, contenham a própria palavra morte.
Além disso, quando crianças questionam sobre alguém que morreu e que desa-
pareceu do seu contexto familiar e social, são apresentadas para elas respostas
vagas e mágicas, tornando-se o fenômeno da morte, muitas vezes, como algo
inexplicável para essas crianças, dificultando, além disso, a própria formação
pessoal desses indivíduos sobre a própria finitude humana, sendo um processo
ainda mais confuso.

Somam-se a esses aspectos crenças culturais de que falar sobre a morte


poderia atrai-la, desse modo, a melhor solução seria silenciar e, se possível, nem
nomear esse fenômeno. Assim, de alguma forma, nossa sociedade alimenta a
crença de que não falar sobre morte e morrer poderá afastar essa finitude hu-
mana, quando, na verdade, esse fenômeno humano é primordial para entender
os próprios modos de viver e de existir em nossa sociedade (DANTAS, 2010).

Teoria do apego e o processo de luto

A partir da teoria do apego, de John Bowlby, podemos compreender


aspectos fundamentais das relações interpessoais, tendo com um dos prismas

191
a teoria da vinculação e seus impactos nas relações humanas, como no enten-
dimento do luto. O vínculo, a partir dessa teoria, pode ser entendido como a
relação entre o bebê e a figura de cuidador, auxiliando na forma de cuidado e na
própria sobrevivência do bebê, existindo diferentes vínculos que terão reper-
cussões também na vida adulta desses indivíduos. Nota-se que, inicialmente, a
morte pode ser entendida como a ausência dessa figura de apego, estando pre-
sentes sentimentos como angústia, raiva e ansiedade resultantes dessa ruptura
do vínculo e da ausência da figura de carinho (DALBEM; DELL’AGLIO, 2005).

Assim, a teoria da vinculação nos apresenta quatro possíveis fases de


reação à perda dessa figura de apego, contudo, aponta que essas fases não de-
vem ser vistas como estagnadas e inadaptativas, pois reforça que cada sujeito
vivencia a experiência desse luto de forma diversa. As quatros fases foram deno-
minadas como entorpecimento ou choque, anseio e a busca da figura perdida,
desorganização e desespero e, a última fase, reorganização, ocorrendo em graus
diferentes. Dessa forma, no processo de luto, os sujeitos experienciam diversos
sentimentos e se desorganizam de diversas formas, demonstrando a complexi-
dade da finitude humana (DALBEM; DELL’AGLIO, 2005).

Esse direcionamento corrobora a perspectiva do luto como um pro-


cesso diverso, complexo, cultural e que deve ser entendido de forma singular
e particular, auxiliando-nos na discussão sobre o luto em condições adversas
como está ocorrendo na pandemia de covid-19. Diverge, em certo ponto, de al-
gumas perspectivas vivenciadas pela cultura ocidental, que dissemina a ideia de
que todos os lutos precisam ser vivenciando com bastante sofrimento e emoções
pré-determinadas, como tristeza. Assim, esses estigmas, presentes em assuntos
sobre a morte e o morrer, tornam-se mais um fator de sofrimento, esperando-
-se e acreditando ser possível unificar esse processo que é singular e que não
deve ser enquadrado em caixas teóricas ou vivenciais.

192
Psicologia e o processo de luto

Nos debates e construções sobre o processo de enlutamento, diver-


sas profissões e disciplinas possuem possibilidades de atuação e intervenção,
sendo um fenômeno multidimensional e que necessita de diversas facetas para
ser compreendido. A psicologia, por meio de atuação multiprofissional e com
saberes interdisciplinares, possui função importante para o entendimento e a
intervenção no processo de luto, intervindo junto ao enlutado em processos de
reconhecimento e reconstrução dessas novas formas de viver com a ausência do
ente querido.

Assim, para além de diagnósticos que busquem enquadrar esses sujeitos


ou de medicamentos para silenciar esse processo de elaboração, o profissional
de psicologia se propõe, veementemente, a escutar o que esse sujeito tenta falar
nos mais diversos contextos em que se está, mas que, muitas vezes, é renega-
do devido ao tabu que falar sobre a morte e o morrer se transformou. Dessa
maneira, o espaço disponibilizado pelos psicólogos se torna primordial para o
acompanhamento e auxílio na reorganização do sujeito, contribuindo para sua
adaptação nessa nova realidade sem, contudo, apagar essa experiência na vida
do sujeito. Assim, são objetivos da terapia do luto, dentre outros, a criação de
estratégias de coping, o treino de habilidades sociais, role-play, contribuições para
o crescimento saudável diante da perda e a validação dos sentimentos e vivências
advindas do processo de luto. Ademais, a importância de adequação de teorias
já reconhecidas na terapia do luto a partir de perspectivas próprias das ciências
psicológicas, como a releitura embasada nas abordagens psicológicas (BASSO et
al., 2011; NASCIMENTO et al., 2017).

Além disso, a psicologia contribui para a identificação e atenção aos


processos de lutos intitulados traumáticos ou complicados. Devido a essas difi-
culdades de vivenciar o processo do luto, alguns sujeitos e famílias podem estar

193
fragilizados e mais suscetíveis a desenvolverem transtornos mentais graves, po-
dendo, assim, prejudicar os processos de saúde-doença. Desse modo, a saúde
biopsicossocial dos enlutados deve receber atenção reforçada pelos profissionais
da saúde, avaliando os limites individuais e a disponibilidade pessoal de estraté-
gias para a travessia desse processo de luto, como também apreender modos da
própria comunidade sanar essas necessidades, principalmente em lutos coleti-
vos e complicados, como os vivenciados atualmente na pandemia (CREPALDI
et al., 2020).

Dessa forma, a psicologia pode atuar de diversas formas, como na reali-


zação de grupos terapêuticos ou de atendimentos on-line. Salienta-se, ainda, que
não se deve tentar patologizar o fenômeno do luto, mas sim compreender essas
dificuldades relacionadas à finitude humana como compreensíveis e naturais,
analisando essas características a partir do histórico individual do sujeito, pois
cada um possui formas singulares de reagir aos efeitos do morrer e da morte.

Morte e pandemia de covid-19

Desde o início da pandemia, diversas perdas estão sendo vivenciadas


pela população e comunidades. As perdas vão desde a redução dos aspectos fi-
nanceiros, devido ao desemprego e às consequências econômicas do isolamen-
to, à perda do contato social e da própria morte de familiares e amigos. As-
sim sendo, sentimentos como angústia, medo e tristeza podem estar presentes
constantemente no cotidiano de diversas pessoas, sendo vivenciados de formas
diferentes para cada indivíduo e demandando formas de intervenções distintas
(MELLO, 2020).

Torna-se importante discutir sobre o luto presente em situações emer-


gentes como a que estamos vivendo, já que essas podem causar impactos co-
letivos. Em cenários onde ocorrem diversas mortes, e que são noticiadas de

194
maneira veemente pelas grandes mídias e redes sociais, o processo de luto pode
ser intensificado e, muitas vezes, dificultado. Dessa forma, o psicólogo possui
papel fundamental para contribuir com a elaboração desses lutos, contribuindo
para resoluções coletivas, divulgando informações confiáveis com embasamento
científico sobre o processo de luto e, além disso, priorizando a atuação multi-
profissional com diversos profissionais que possam contribuir nessa situação.

Agrega-se que expressões de tristeza, em nossa sociedade, podem ser


confundidas e encaixadas em transtornos mentais graves, além de serem silen-
ciadas em detrimento de sentimentos considerados como positivos pela nossa
cultura, como alegria e esperança. Soma-se à pouca disponibilidade de atendi-
mento especializado para determinadas populações, principalmente de regiões
periféricas e de cidades do interior do país, ampliando as dificuldades no acesso
ao atendimento psicológico e fortalecendo estereótipos acerca de sofrimento
psíquico.

Acresce-se, ainda, a interrupção dos rituais fúnebres devido à neces-


sidade de distanciamento social, aspecto instaurado pelos governantes a partir
de diretrizes das instâncias em saúde. A partir disso, velórios e funerais tiveram
modificações significativas nos seus modos de funcionamento, com limite na
quantidade de pessoas nesses rituais, com mudança na realização de cerimoniais
religiosos e, consequentemente, com a diminuição do suporte social e comu-
nitário, já que esse contato precisou ser diminuído por conta das medidas de
distanciamento social, afetando diretamente a elaboração do luto (CARDOSO
et al., 2020).

Os impactos psicológicos devido à morte de um ente querido nesse


contexto podem ser ampliados, elevando a possibilidade de lutos complicados
e traumáticos, dificultando, assim, o processo de elaboração (NABUCO et al.,
2020). Dessa forma, torna-se fundamental a criação de mecanismos substituti-

195
vos e adaptados para o momento atual, criando formas de laços interpessoais e
sociais, consolidando e garantindo o suporte social e comunitário. Essas ações
podem envolver, principalmente, as formas virtuais de comunicação, através
de videoconferências entre a comunidade, transmissão ao vivo de cerimônias
religiosas, novas formas de homenagear a pessoa falecida, como por meio de
gravação de vídeo ou fotos de espaços dedicados a essas pessoas. Esses aspec-
tos de proteção devem ser estimulados e criados em toda a rede de saúde, da
Atenção Primária à Saúde até a Atenção Terciária, evidenciando a integração e
intersetorialidade da rede.

A partir disso, a noção de comunidade, respeitando as novas formas de


relação com o distanciamento social, é estimulada e valorizada, contribuindo
para a elaboração coletiva do luto. Salienta-se que, em casos específicos, o aten-
dimento psicológico deve ser oferecido e garantido para essa população, contri-
buindo para a prevenção de transtornos psicológicos graves e para a promoção
de saúde mental em tempos de pandemia.

Considerações finais

Em suma, este capítulo mostra o quanto é imprescindível promover


estudos e reflexões sobre a temática da perda, morte e luto como processos
inerentes ao ciclo de vida. Assim, perante as diversas problemáticas associadas
às situações de luto evidenciadas no contexto da pandemia, torna-se evidente
a necessidade do desenvolvimento de estratégias inovadoras de prevenção e in-
tervenção diante dessa população, considerada de risco, premente de complica-
ções face ao luto pós-pandemia. Como foi exposto, contamos com programas
terapêuticos para o luto, cujo objetivo é ajudar o enlutado e o grupo familiar a
adaptar-se à vida, após a perda da pessoa querida, mas que precisamos ampliar e
diversificar suas ações. Para concluir, a sugestão indicada com base neste estudo
é a necessidade de trabalhos consistentes e sistemáticos sobre o processo de luto

196
e os estigmas envolvidos, desenvolvidos em programas de educação em saúde
sobre o advento da perda.

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199
14

O ornitorrinco em meio à Pandemia: notas sobre co-


vid-19, crises e gestão de mortes

Aluísio Ferreira de Lima

Vivemos um momento histórico em que a globalização do mun-


do pode ser entendida como a universalização do capital e de
seu mercado, dos preços e do dinheiro – cada vez mais virtual
–, do mercado de trabalho, do mercado improdutivo e do mer-
cado imaterial (GORZ, 2005), dos gostos, da alimentação, da
cultura e dos modelos de vida social, das identidades, de uma ra-
cionalidade instrumental/sistêmica a serviço de um capitalismo
de desastre (KLEIN, 2008) – que se organiza não mais a partir
da ordem, mas do caos – que defende a liberdade – que é em
última análise liberdade para o consumo (SEVERIANO, 2007)
– e que é mantido com mercadorias metamorfoseadas em sua
estética, em que a marca substitui o produto (HAUG, 1997) e
sustenta a simulação (BAUDRILLARD, 1991). Podemos dizer
que estamos imersos nas ruínas que Walter Benjamin apontou
em sua alegoria da história (1996) (LIMA, 2010, p. 51-52).

Na ocasião de escrita da epígrafe acima, há 10 anos, eu tentava apresen-


tar fragmentos dos diagnósticos de autoras e de autores sobre o momento que
estávamos vivendo e procurava, a partir de suas provocações, pensar o Brasil,
nosso “ornitorrinco”, animal que serviu como analogia para Chico de Olivei-
ra (2008). Ornitorrinco, mamífero monotremo, da subclasse dos prototérios,
adaptado à vida aquática, de porte pequeno, com bico semelhante ao do pato,
com pés espalmados e rabo chato, ovíparo, cujos filhotes se alimentam lamben-
do o leite que escorre pelos peitorais da mãe (já que a mesma não tem mamas),
cujo macho tem um esporão venenoso nas patas traseiras e conserva caracterís-

200
ticas reptilianas, não poderia ser mais apropriado para descrever um país que se
caracteriza como altamente urbanizado,
[com] pouca força de trabalho e população no campo, dunque
nenhum resíduo pré-capitalista; ao contrário, um forte agro-
business. Um setor industrial da Segunda Revolução Industrial
completo, avançado, tatibitate, pela Terceira Revolução, a mo-
lecular-digital ou informática. Uma estrutura de serviços muito
diversificada numa ponta, quando ligada aos estratos de altas
rendas, mais ostensivamente perdulários que sofisticados; nou-
tra, extremamente primitiva, ligada ao consumo dos estratos
pobres (OLIVEIRA, 2008, p. 132-133).

Naquela época, vivíamos os efeitos da crise econômica mundial de


2008, que afetou o mercado internacional como um todo e, no caso de países
produtores de commodities, como é o caso do Brasil, essa crise havia provocado
impactos devastadores. Os efeitos dela se amalgamaram com a crise política,
iniciada em 2005 por conta dos escândalos de corrupção, e inaugurou-se um
discurso que serviu para o fortalecimento dos vários opositores do governo: é
preciso salvar a sociedade da ameaça de que a crise política possa contaminar a
economia. As crises política e econômica, então, tornaram-se combustível para
a mobilização das massas contra a democracia, a partir de um discurso que le-
gitimava o estado de exceção permanente, que longe de servir como resposta a
uma lacuna normativa:
apresenta-se como a abertura de uma lacuna fictícia no ordena-
mento, com o objetivo de salvaguardar a existência da norma e
sua aplicabilidade à situação normal. A lacuna não é interna à lei,
mas diz respeito à sua relação com a realidade, à possibilidade
mesma de sua aplicação. É como se o direito contivesse uma fra-
tura essencial entre o estabelecimento da norma e sua aplicação
e que, em caso extremo, só pudesse ser preenchida pelo estado
de exceção, ou seja, criando-se uma área onde essa aplicação
é suspensa, mas onde a lei, enquanto tal, permanece em vigor
(AGAMBEN, 2004, p. 48-49).

201
Sabemos muito bem quais foram os resultados disso. A eficácia do pro-
jeto de derrubada da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, somada ao fortaleci-
mento dos espíritos conservadores, reacionários e fascistas, que paulatinamente
apresentaram planos e justificativas para o retorno à política para poucos no
país, com discursos contrários ao desenvolvimento das políticas sociais. A forma
de exceção permanente do capitalismo na periferia do mundo. Desatenta, a
esquerda não percebeu que enquanto nos últimos anos os intelectuais focavam
suas energias nos estudos e denúncias dos problemas relacionados à cidadania,
inclusão, injustiças a reparar, superação dos preconceitos, direito ao dissenso,
entre outras pautas, o capitalismo feroz vinha corroendo toda e qualquer mol-
dura reguladora da democracia.

Os projetos e programas de desenvolvimento social “tornaram-se alvo


de uma elite ressentida que passou a ser alimentada pela fantasia de que enquan-
to deveriam aceitar as medidas de austeridade, os pobres poderiam continuar
consumindo sem trabalhar” (LIMA, 2017, p. 111) e a democracia passou a ser
definitivamente odiada. A retomada da hegemonia por aqueles que, de fato,
representam as desigualdades e todas as formas perversas de governo, existen-
tes desde o primeiro invasor dessas terras, ainda no período do genocídio que
chamamos de colonização, voltou a ser uma possibilidade. Após uma facada em
espaço público, construíram uma vitória da ultradireita para a presidência, em
2018, pautada na ausência em todos os debates com demais candidatos da elei-
ção. No ano de 2019, assim, Jair Messias Bolsonaro torna-se presidente do Brasil
e inicia o desmonte das políticas públicas, com o corte sistemático de recursos
na Educação e na Saúde, a reforma da Previdência Social e o favorecimento dos
militares.

No que se refere à Educação, os primeiros 98 dias de gestão do governo


Bolsonaro, o primeiro ministro (até maio de 2021 foram quatro os que ocupa-

202
ram o cargo), Ricardo Vélez, discípulo do guru bolsonarista Olavo de Carvalho,
tornou-se o protagonista das primeiras polêmicas do governo. Entre elas, a exi-
gência de que as escolas que executassem o Hino Nacional gravassem e lessem
uma carta de sua autoria que continha o slogan da campanha de Jair Bolsonaro:
“Pátria acima de tudo, Deus acima de todos”. Absurdo que foi ridicularizado
em todos os meios de comunicação e, diante da repercussão negativa, abando-
nado em sua execução. Também foi publicada uma portaria do Ministério da
Educação (MEC) que suspendia a avaliação da alfabetização dos estudantes por
dois anos, também revogada após críticas. O ministro ainda propôs a criação de
uma comissão de avaliação para as questões da prova do Enem (a avaliação anual
do Ensino Médio, cujos resultados servem para o ingresso nas universidades
públicas do país), com a justificativa de ajustamento delas à “realidade social e
assegurar um perfil consensual ao exame”.

O ministro que assumiu a seguir não foi melhor. Abraham Weintraub,


que ocupou o cargo por cerca de um ano e dois meses, foi o mais delirante
e inconsequente. Weintraub acumulava polêmicas nas redes sociais, figurando
apresentações ridículas e promovendo ataques aos grandes pensadores da educa-
ção do país. Seu alvo preferido era Paulo Freire, de modo que, em uma de suas
postagens, chegou a dizer: “Paulo Freire representa o fracasso da educação es-
querdista”. Ele seguia a mesma estratégia do presidente, ou seja, para distanciar
os olhos da população das ações do Ministério da Educação, que ficaram prati-
camente paralisadas, criava polêmicas que lotavam as redes sociais com ataques
pessoais. A gestão de Weintraub à frente do MEC ainda foi marcada pelo embate
com as universidades federais. Em abril de 2019, o então ministro afirmou que
cortaria verbas de três universidades por promoverem “balbúrdia”. No final, o
contingenciamento de verbas acabou atingindo todas as instituições federais e
bolsas para estudantes de pós-graduação. Aliás, no primeiro semestre 2019, o
MEC executou pela pasta apenas 4,4% do montante para investimentos previs-

203
tos, o que correspondia a menos da metade do executado no mesmo período
de 2018 (o que se repetiu em 2020, uma vez que Abraham Weintraub esteve à
frente do Ministério da Educação até junho). O único setor da Educação a não
sofrer cortes, mesmo com menor investimento, foi o das escolas cívico-milita-
res, uma das principais bandeiras do governo Bolsonaro. Em 2020, de acordo
com o Ministério da Educação, foram atendidas 54 escolas, espalhadas por 23
estados e pelo Distrito Federal. Nos colégios militares, cada aluno custa, em
média, R$ 7.397,10 aos cofres públicos, ao passo que o governo federal gasta,
em média, R$ 832,05 para cada aluno na rede pública de ensino.

No país da mentira, da falsa democracia racial, do falso liberalismo,


da falsa democracia governamental, das fake news, onde toda barbárie sempre
foi publicizada como uma prática de cuidado, de violência justificável, em que
os rastros das resistências sempre sofreram investidas de apagamento, desde o
primeiro dia desse “desgoverno” temos acompanhado, por meio de todas as for-
mas possíveis de transmissão, a ascensão dos protestos bolsonaristas, pregando
e lutando pela “liberdade” de impedir a liberdade daqueles que eles desprezam.
A exposição de todo o desejo de extinguir as instituições democráticas e o pró-
prio Supremo Tribunal Federal (STF) seguiram concorrendo com as diversas
investigações sobre supostos crimes envolvendo a família do presidente, que
vão desde as “rachadinhas” até o envolvimento na morte de Marielle Franco, ve-
readora assassinada em março de 2018. Não bastassem os desafios que estavam
postos para todas as pessoas que acreditam e lutam por um país menos desigual
e mais justo, em 2020, somos surpreendidos pelo vírus SARS-CoV-2, que pro-
duz a infecção covid-19, e ocasionou uma quantidade significativa de mortes,
tornando-se rapidamente uma pandemia mundial e uma crise financeira global
mais grave do que a de 2008. E, claro, na contramão das medidas apresentadas
pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e das ações realizadas por países
europeus que se preocuparam imediatamente em salvar a população, no que

204
se refere ao presidente do país e seus seguidores e apoiadores, tanto a covid-19
quanto a própria crise econômica foram tratadas, em 24 de março de 2020,
como infortúnios passageiros, efeitos de “uma gripezinha”, conforme o próprio
Jair Bolsonaro classificou a doença, mesmo correndo o risco de agravar ainda
mais essa crise econômica por aqui, uma vez que se tornou objeto de fake news
nas redes sociais.

É certo que alguns Estados da federação assumiram por si próprios


as medidas de isolamento e as tentativas de contenção do vírus, chegando a
comprar equipamentos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em países
estrangeiros fora das rotas escolhidas pelo próprio governo federal, investindo
em hospitais de campanha e desafiando os empresários apoiadores do governo
que, por sua vez, não pretendiam perder nenhum centavo de real, mesmo
que isso custasse a vida de seus empregados. Aliás, é importante dizer que o
foco nas investigações e jogos de poder relacionados aos interesses pessoais do
presidente, que assume a figura do Messias e governa o país à sua imagem e
semelhança para seus eleitores, distanciou a possibilidade de cobranças mais
fortes por uma intervenção política voltada para as vidas. O governo federal,
inclusive, aprendeu rapidamente, como o próprio ministro do meio ambiente
salientou no vídeo vazado da escandalosa reunião que mais parecia uma reunião
de supervilões de filmes de super-heróis, a “necessidade” de investirem na
letalidade do vírus e nas cortinas de fumaça para garantir que as leis, decretos e
a própria Constituição fossem flexibili[dadas] ou ignoradas em benefício deles
próprios.

A primeira morte registrada por covid-19 no Brasil foi no dia 17 de


março de 2020; um pouco mais de um mês após isso, os registros, especifica-
mente em 27 de abril, passaram a indicar 4.602 mortes (G1, 2020). No dia se-
guinte, publiquei um ensaio (LIMA, 2020a; LIMA, 2020b) que contou com uma

205
versão em castelhano, publicada em 16 de maio, no Uruguai; no texto, diante
dos anúncios cada vez mais banais acerca do aumento das mortes e publicização
de caixões sendo enterrados sem identificação, assinalei que “os números não
morrem, só as pessoas morrem” e que a forma de utilização dos números e
apresentação das imagens estavam servindo a um propósito muito específico:
o respeito aos mortos, ao próprio corpo, ora tomado como sagrado, ora como
objeto médico, estava sendo destruído de forma ampla e espetacularizada na
internet.

De uma forma impressionante, fomos capazes de aceitar que, em nome


de um risco que não podia ser especificado, as pessoas que amamos, com quem
nos preocupamos, até mesmo os próprios desconhecidos, fossem enterrados
sozinhos, sem um funeral e representados por números estatísticos. Naquele
momento, em que eram registradas 4.602 mortes, já era possível prever como
agora, quando já temos registradas, em 11 de maio de 2021, mais de 423.000
mortes (BRASIL, 2021), que o presidente nunca se preocuparia com o enfren-
tamento da pandemia. Pelo contrário, os dias que foram seguindo deixaram
ainda mais evidente sua forma genocida de gestão e politização da covid-19. Tor-
nando sua cruzada contra jornalistas e apoiado por seguidores, fez tudo o que
foi possível para minimizar os efeitos devastadores da doença. Chegou ao ponto
de brincar com a própria contaminação da população, ao afirmar, sem nenhuma
resistência política significativa, que o sacrifício das pessoas era necessário, que
não tínhamos outra alternativa diante da pandemia, precisávamos salvar a eco-
nomia e os mais fortes sobreviveriam.

Em maio de 2020, seguindo o presidente Trump, nos EUA, Bolsonaro


rejeitou o projeto da OMS que visava acelerar o desenvolvimento de uma vacina
e de remédios contra o novo coronavírus. Ele criticou sistematicamente, em
todos os meios que tinha à sua disposição, as medidas de distanciamento social

206
e restrições adotadas por governadores e prefeitos, raramente faz uso de más-
caras em público e frequentemente promoveu aglomerações, desrespeitando
recomendações da Organização Mundial da Saúde para conter a disseminação
do vírus. Além disso, o presidente criticou vacinas e comemorou como uma
vitória pessoal nas redes sociais e entrevistas concedidas a breve interrupção,
determinada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), dos testes
no Brasil da CoronaVac, pelo Instituto Butantan, vinculado ao governo do es-
tado de São Paulo. O Tribunal de Contas da União (TCU) chegou a colocar um
prazo de 60 dias para que o governo federal apresentasse um plano detalhado de
vacinação da população brasileira. O governo simplesmente ignorou o pedido,
fazendo apenas uma afirmação de que a requisição deveria ser feita ao Ministério
da Saúde.

Nesse mesmo mês de agosto de 2020, o laboratório americano Pfizer


fez a primeira proposta de venda de 70 milhões de doses para o Brasil. A oferta
foi reforçada outras vezes e, apesar do CEO da farmacêutica enviar uma carta a
Bolsonaro, o governo recusou todas as propostas. Ainda nesse mês, vários países
começaram a promover discussões acerca da vacinação, com o intuito de mobili-
zar as pessoas de seus países a tomarem a vacina. Bolsonaro, incapaz de qualquer
pensamento sensato, em vez de assumir seus erros voltou seu discurso para a
“defesa de liberdade” de escolha daqueles que não querem tomar a vacina. Em
31 de agosto, o presidente afirmou para os jornalistas: “Ninguém pode obrigar
ninguém a tomar vacina”. No mês de outubro de 2020, o presidente rejeitou
uma proposta do Instituto Butantan, que na ocasião previa a entrega de 45 mi-
lhões de doses da CoronaVac até dezembro e outras 15 milhões no primeiro
trimestre de 2021. No mês de dezembro, em entrevista ao programa Brasil
Urgente, da TV Bandeirantes, Bolsonaro afirmou: “Eu não vou tomar vacina e
ponto final. Se alguém acha que a minha vida está em risco, o problema é meu.
Desde o começo eu falei pro meu pessoal, esse vírus é igual uma chuva vai che-

207
gar e pegar em todo mundo”.

Se estávamos, até o início de 2020, preocupados com os efeitos do go-


verno Bolsonaro para a população lançada desde sempre a uma vida precária,
com os dias que se seguiram à pandemia deparamo-nos com impactos psicosso-
ciais ainda mais devastadores. Rapidamente, naturalizamos para uma parcela da
população privilegiada o isolamento social, que se tornou uma medida de cui-
dado e oportunidade para empresários ampliarem as possibilidades econômicas
da exploração do trabalho remoto. Não por acaso, as empresas de aplicativos
de entrega de comida e compras em supermercados rapidamente diminuíram
o valor de pagamentos aos entregadores e conseguiram, na Justiça, o direito de
não se implicar com a promoção de nenhuma medida de prevenção. Entretanto,
como assinalou Juliana Gragnani (BBC, 2020), com a evolução da pandemia no
país, “morreram pobres na linha de frente do tratamento à covid-19, trabalha-
dores de serviços essenciais e informais, trabalhadores que não puderam deixar
de trabalhar, além de pessoas pobres idosas e com comorbidades, com acesso
desigual ao sistema de saúde”.

Os marcadores da desigualdade na experiência social da pandemia, em


específico, as violências de gênero físicas e psicológicas, foram agravados du-
rante a pandemia, sendo as mulheres aquelas que têm sofrido mais violência no
isolamento (BOND, 2020). Aliás, a redução da renda e o convívio com o agres-
sor durante a pandemia, somados às dificuldades de efetuar denúncias por estar
o tempo todo em casa, têm colaborado com o agravamento da violência sofrida
por milhões de mulheres no Brasil (FBSP, 2020). Sabemos que a violência de
gênero, as violências contra crianças e adolescentes, as desigualdades socioe-
conômicas, o racismo e questões territoriais (centro-periferia) são estruturais,
reproduzidos desde o período colonial até as sociedades capitalistas neoliberais,
com base na hierarquização racializada e generificada do status como sujeito de

208
direito, favorecendo os interesses de acumulação de capital por meio de condi-
ções pautadas na exploração maximizada da força de trabalho e na desvaloriza-
ção do trabalho afetivo e doméstico (FRASER; JAEGGI, 2020).

No que se refere à política de educação pública no Brasil, principal


inimiga do governo negacionista de Bolsonaro, os ataques seguiram tão fortes
quanto sua ênfase na promoção da pandemia no país. No final de junho de 2020,
o ministro Weintraub sofreu exoneração do cargo, e o seu sucessor, Carlos Al-
berto Decotelli, que ocupou o cargo de ministro da Educação por apenas cinco
dias, entregou uma carta de demissão a pedido do Palácio do Planalto após re-
ceber uma série de contestações de universidades estrangeiras e da Fundação
Getúlio Vargas sobre inconsistências em seu currículo (na verdade, ostentações
de títulos acadêmicos que não existiam). A substituição foi pelo atual ministro,
Milton Ribeiro, que segue cegamente o pensamento do presidente. O arauto do
Messias Bolsonaro não tardou para anunciar que, para o ano de 2021, a previsão
de corte para o Ministério da Educação seria ainda maior, em torno de R$ 4,2
bilhões no orçamento federal, o que significaria a redução de 18,2% em relação
ao orçamento aprovado para 2020. Para as universidades e institutos federais de
ensino, a previsão de corte era de R$ 1 bilhão de reais.

A gestão política em tempos de covid-19 no Brasil, expressada na figura


do presidente Bolsonaro e seus ministros, ultrapassou o limiar que separava a
humanidade da barbárie. Ficamos ainda mais pobres e, paradoxalmente, ainda
mais insensíveis à pobreza. O alerta que nos fazia Walter Benjamin (2012), em
1933, ao discorrer sobre o anseio das pessoas pela libertação das experiências e
submissão ao progresso técnico, por estarem “cansadas das infinitas complica-
ções da vida quotidiana, e para as quais a finalidade da vida se descortina apenas
como ponto de fuga longínquo numa infindável perspectiva de meios” (BEN-
JAMIN, 2012, p. 90); por aqui, mesmo que a partir de ameaças e alertas, em

209
nome de um risco que não podia ser especificado e o medo que já nos assom-
brava muito antes da pandemia: um governo terrorista, dependente do caos, do
medo e da destruição para sustenta-se no poder. Não por acaso, Jair Bolsonaro
continua afirmando publicamente que não acredita na efetividade de lockdown,
implementado pelos governadores dos estados, isto é, das medidas de restrição
à circulação de pessoas e funcionamento de comércio e serviços para tentar
frear o avanço da pandemia de covid-19. Além disso, sustenta o argumento de
que o lockdown atrapalha a produção de empregos e auxilia no aumento da fome.
Faz a gestão federal em favor da pandemia, com ações pouco efetivas e não
preocupadas em garantir o mínimo de dignidade e de recurso de sobrevivência.

Passadas as festas de final de ano, iniciamos 2021 com uma nova onda
ainda mais forte por conta da variante da doença que apareceu em Manaus,
estado do Amazonas. No dia 7 de janeiro, o Brasil atingiu a marca de 200 mil
mortos pela covid-19. Na ocasião, o presidente chegou até a lamentar os óbitos,
seguido da frase “a vida continua”. O comentário sobre a quantidade de mortes
não tomou 1 minuto do tempo de sua narrativa, em uma live nas redes sociais
que superou uma hora de duração. De forma curiosa, a frase do presidente não
se tornou tão polêmica como as anteriores, pois estávamos em um processo de
abertura e retomada da economia, ao ponto de os noticiários sustentarem uma
forma de notificação das mortes que parece querer justificar a fala de Bolsonaro.
A subjetividade atacada por números, em que as contaminações e as mortes
da população, pela covid-19, são registradas e divulgadas pelos diversos meios
de comunicação como números negativos que se contrapõem aos números de
recuperados, como uma forma de estatística perversa utilizada para incitar a
população para a retomada da economia, reforça a máxima benjaminiana de que
“quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava
nele o que é ouvido” (BENJAMIN, 1994, p. 204-205).

210
Todavia, o horror que seguiria nos dias seguintes reposicionou algumas
dessas notícias. Manaus ficou ainda mais em evidência por conta da crise que
eclodiu no dia 14 de janeiro, quando o estoque de oxigênio acabou em diversos
hospitais e pacientes internados por covid-19 morreram. O episódio mostrou-
-se ainda mais absurdo ao observamos que entre os dias 11 e 13 de janeiro, o
3º ministro da Saúde nomeado por Bolsonaro durante a pandemia, Eduardo
Pazuello, esteve em Manaus para, entre outros pontos, promover o tratamento
precoce contra a covid-19 com remédios como a cloroquina e a ivermectina,
sem eficácia comprovada. Dois dias antes da crise e ciente dos problemas no
fornecimento do gás, Bolsonaro responsabilizou o governo do Amazonas e a
prefeitura de Manaus por “deixar acabar” o oxigênio que seria destinado aos
pacientes de covid-19. Aproveitou a entrevista aos jornalistas para promover o
uso da cloroquina e ivermectina, ao dizer que a cidade não estava aplicando o
“tratamento precoce” contra a covid-19 – sem comprovação científica –, o que
segundo ele teria contribuído para a situação dramática. A mobilização para a
crise veio mais rapidamente por meio das redes sociais e organização de artistas
e ativistas que fizeram doações de tanques de oxigênio, uma vez que não era
possível depender de ações urgentes e eficazes do governo federal.

Bolsonaro chegou a afirmar que seu governo não compraria a Corona-


Vac e que ela não inspirava confiança por causa de sua origem chinesa. Entre-
tanto, devido a todos os seus esforços que se materializaram em 11 negativas de
compras da vacina produzida por outros laboratórios, a vacina da Sinovac tor-
nou-se a primeira possibilidade concreta de vacinação, respondendo hoje pela
esmagadora maioria das doses disponíveis na campanha nacional de vacinação
contra a covid-19.

A pesquisa, resultante de esforços com recursos públicos cortados pelo


governo, tem sido a principal arma contra a pandemia e o governo. Entretanto,

211
o Instituto Butantan segue sofrendo inúmeras vezes com atrasos de chegada de
insumos para a produção da vacina, em muitos casos por pronunciamento e
posturas do presidente, que insiste em acusar a China de ter criado o vírus em
laboratório e tantas outras fake news. No mês de março de 2021, registramos
mais de 300.000 mortos; o discurso do presidente Bolsonaro pareceria ser deli-
rante, se não fosse cínico e mentiroso, ao dizer: “o governo não deixou de tomar
medidas importantes tanto para combater o coronavírus como para combater o
caos na economia”. No dia 23 de abril, ele conseguiu aprovação do orçamento
para 2021. No pior momento da pandemia de covid-19 no país, os valores efeti-
vamente aplicados em saúde serão quase os mesmos de 2019, quando não havia
pandemia (AGÊNCIA SENADO, 2021). O segundo maior corte do orçamento
ocorreu no Ministério da Educação, que perdeu R$ 3,9 bilhões (MÁXIMO,
2021). Em maio, passamos dos 400.000 mortos e apenas 4,1% da população foi
vacinada completamente. O desinvestimento em políticas públicas e ações que
poderiam, de fato, combater os efeitos orgânicos e sociais da covid-19 expres-
sam a imagem de um país que desde sua invasão e genocídio por Portugal faz
política a partir do descaso pela vida dos outros, inclusive dos mais próximos. O
presidente é a imagem que evidencia a aparência, a ostentação e os delírios de
um “novo normal”, no cotidiano das pessoas sem conteúdo.

“A imagem tem sua força drenada pela maneira como é usada, pelos
lugares onde é vista e pela frequência com que é vista” (SONTAG, 2003, p.
88), escreveu Susan Sontag, e essa sentença não poderia ser mais certeira para
analisarmos o modo como a imagem da morte, sua tradução em números e
as performatividades narrativas do presidente Jair Bolsonaro foram e têm sido
utilizadas durante a pandemia para negar sua gravidade e a dor provocada pelas
mortes apresentadas nas estatísticas. Sontag (2003) ensina que, para que a dor se
torne uma imagem em nossa sensibilidade e abra espaço para que ela faça parte
de um processo de travessia, de ressignificações, de narrativas, de histórias, é

212
necessário que nos identifiquemos com ela, é importante que ela seja como
um espelho. Entretanto, a imagem que se apresenta não é capaz de promover
nenhuma emancipação. No máximo, ela representa o ornitorrinco, que é “uma
acumulação truncada e uma sociedade desigualitária sem remissão”, como bem
descreveu Chico de Oliveira (2008, p. 150). No contexto da pandemia de co-
vid-19, nosso ornitorrinco se apresenta como um desafio de compreensão para
nosso pensamento, nossa análise e ação. O que nos resta é continuar seguindo
com a luta, que é como um círculo onde não sabemos bem quando se inicia e
não sabemos onde termina.

Considerando o exposto, gostaria de finalizar o capítulo assinalando que


sinto por não ser um portador de boas notícias, por não conseguir apresentar,
nessas poucas linhas, um prognóstico para o futuro. Sobretudo porque diante
do estado de exceção no qual vivemos atualmente no Brasil, acredito que pre-
cisaremos nos preparar para enfrentar dias piores. Afinal, se existe algo que a
pandemia nos ensinou, nesses vários meses, certamente foi que a existência
da covid-19 em um país que namora com a antidemocracia e expressa fortes
tendências fascistas, articulada com o desinteresse político e por determinados
grupos de nossa sociedade, a transforma em uma doença que pode acelerar ain-
da mais o processo de aniquilação dos mais vulneráveis. Somada a essa condição,
ensinou também como é possível um governo fazer uso de uma pandemia, como
uma oportunidade para o uso de cortinas de fumaça e ações que estão preocu-
padas em salvar prioritariamente a economia e as elites.

Assim, em meio a tantas estratégias e intervenções voltadas para invisi-


bilizar as experiências de sofrimento e mortes durante a pandemia de covid-19,
a lição que fica é a de que nossa sensibilidade e insistência no pensamento crítico
serão imprescindíveis na luta contra o apagamento e o esquecimento dessa tra-
gédia. De tal maneira que aquilo que escolhermos como suportável para sofrer

213
e chorar nos dias que passaram e virão pela frente, deverão ser compreendidos
como os novos limites de nossa capacidade de se indignar, pensar, escrever e
lutar.
‘Quando os mortos choram, é porque
estão começando a se recuperar’, dis-
se o Corvo em tom solene. ‘Lamen-
to ter de refutar meu amigo e colega
ilustre’, disse a coruja, ‘mas, no que
me diz respeito, creio que quando
os mortos choram, significa que não
querem morrer’ (Carlo Collodi – As
aventuras de Pinóquio).

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216
15

Metodologias ativas e participativas no enfrentamento


das vulnerabilidades e desigualdades sociais com popula-
ções indígenas

Zulmira Áurea Cruz Bomfim, Maria Zelfa de Souza Feitosa Oliveira e Nara
Maria Forte Diogo Rocha

A opção pelo nome povos originários, no Brasil e nos estudos das popu-
lações indígenas, marca uma mudança na forma de reconhecimento dos indíge-
nas brasileiros, partindo de uma concepção integracionista relativa à sociedade
brasileira, conforme a criação do Estatuto do Índio, em 1973, para uma relação
em que o Estado brasileiro reconhece, pela Constituição de 1988, a organização
social, costumes, línguas, crenças, tradições e direitos originários sobre as terras
que ocupam, sendo, portanto, dever da União demarcá-las. A expressão “povos
originários” remete às raízes de cada cultura e permite compreender que o pro-
cesso recente de etnogênese de muitas etnias não significa sua anterior extinção
nem trata de pessoas que desconheciam sua ancestralidade. Para sobreviver, os
indígenas precisaram, por muito tempo, utilizar a estratégia de se esconder, sob
identidades impostas pelos colonizadores, mas a luta ancestral atravessou gera-
ções, de maneira que esse processo de etnogênese significa uma nova estratégia
de sobrevivência e, acima de tudo, a possibilidade de reassumir publicamente
aquilo que nunca deixaram de ser.

Essa pontuação faz-se ainda mais importante diante das atuais ameaças
impostas pela tese do Marco Temporal, configurada como uma pressão ruralista

217
para restringir os direitos constitucionais desses povos. Essa tese, que tem sido
usada para pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) a favorecer os grandes
latifundiários nas definições e julgamentos acerca dos conflitos de terra, defende
que somente podem requerer o direito ao território os indígenas que, na data de
05 de outubro de 1988, quando foi promulgada a Constituição Federal vigente,
estivessem estabelecidos nesses espaços, o que desrespeita seus direitos e busca
invisibilizar as existências marcadas pela violência da colonização, que desenrai-
za muitos povos, com práticas contra as quais esses não puderam resistir naquele
momento, e, por isso, forçados a abandonar suas terras originárias. É preciso
dizer que os modos de vida desses povos estão intimamente integrados à sua
ancestralidade, à “com-vivência” da coletividade, à Mãe-Terra e tudo o que há
nela. Nessa dimensão, América Profunda é o termo cunhado por Rodolfo Kusch
(1999) para referir-se à ancestralidade latino-americana.

Assim, apesar de garantidas pela Constituição Federal de 1988, as de-


marcações das terras indígenas têm gerado muitos conflitos, principalmente
nas regiões rurais, onde os grandes latifundiários e fazendeiros promovem atos
violentos contra as populações tradicionais que lutam por concretizar seus di-
reitos constitucionais, sendo muitos indígenas assassinados, violados, abusados.
A relação entre Estado brasileiro e povos originários tem sido marcada, predo-
minantemente, por etnocídios, violações a direitos e tentativas de assimilação
sociocultural, o que tem aumentado consideravelmente nos últimos anos.

A partir do Censo de 2010 (IBGE, 2012), verificou-se que 817 mil pes-
soas se autodeclaram indígenas, o que representa 0,4% da população brasileira,
das quais 19.336 habitam o território cearense. Do total de autodeclarados indí-
genas brasileiros, 502.783 vivem em áreas rurais, enquanto 315.180 moram em
áreas urbanas (IBGE, 2012). No Ceará, oficialmente, a Coordenação Regional
da Fundação Nacional do Índio (Funai) reconhece 14 etnias, distribuídas em 19

218
municípios e que somam cerca de 31 mil indígenas dos seguintes povos: Anacé,
Tremembé, Jenipapo-Kanindé, Kanindé, Tapeba, Tabajara, Potyguara, Kalabaça,
Pitaguary, Gavião, Kariri, Tapuya-Kariri, Tupinambá e Tupiba-Tapuia (FUNAI,
[20--]). Entretanto, além desses povos, existem etnias ainda lutando por seu
reconhecimento, a exemplo do povo Karão, já reconhecido pelas demais etnias.

O Ceará tem sido um dos Estados brasileiros que mais tem negado a
existência de suas etnias indígenas em seu território e o lugar onde a hegemonia
do Estado atuou de forma preponderante para a perda de visibilidade indígena,
que, segundo Pinheiro (2018), só começou a ser revertida a partir da década de
80, pela mobilização do povo Tapeba. Já quanto ao povo Pitaguary, esse processo
teve início na década de 90, quando começaram a se organizar politicamente
para pressionar pela demarcação de sua terra.

A negação da população indígena no Ceará, assim como em outros Es-


tados brasileiros, somente foi possível de ser revertida a partir da demarcação
das terras indígenas, após a promulgação da Constituição Federal de 1988. Para
os povos indígenas, essa é a principal forma de resistência e de preservação de
sua cultura: trazer de volta sua terra que foi roubada com seus direitos. Foi
somente com a ascensão de um governo popular que o país conseguiu avançar
com relação à formulação e implementação de “políticas de ações afirmativas”
que buscaram trazer a demarcação e homologação de Territórios Indígenas (TI)
(HOEFEL et al., 2011).

Nesse sentido, perguntamo-nos: quais as contribuições da psicologia


para a compreensão, atuação e enfrentamento das desigualdades sociais sofri-
das por essas populações? Quando abordamos as desigualdades sociais às quais
os indígenas estão submetidos, referimo-nos não somente a uma condição de
pobreza estrutural, já que o indígena contabiliza sua riqueza a partir de outros
parâmetros, que vão além do modo capitalista de acumulação e de consumo.

219
Não podemos deixar de considerar que a desigualdade e a opressão social são
fenômenos diretamente implicados nas bases produtivas, econômicas e políticas
de uma determinada sociedade; desdobram-se na constituição do indivíduo que
vive e sente na carne as mazelas da exclusão/inclusão, conforme aponta Sawaia
(2011).

É uma desigualdade que se configura em múltiplas violências praticadas


de formas semelhantes a outros grupos étnicos, a falta de acesso a direitos
básicos, a negação de que somos um país plurinacional. O Conselho Indigenista
Missionário (CIMI) aponta essas violências como: omissão do Estado em relação
à demarcação das terras indígenas, suicídio, uso abusivo de álcool e outras
drogas, nas invasões possessórias, exploração ilegal do território, assassinatos e
tentativas de homicídio contra os indígenas, ameaças, lesões corporais, abusos
de poder, racismo e discriminação étnica, violência sexual, desassistência de
políticas públicas, entre outras (CIMI, 2019).

É flagrante, portanto, que estamos vivendo um momento de sério


ataque aos povos originários. Diante disso, torna-se urgente discutir modos de
aproximação e de construção do conhecimento alinhados às suas lutas no âmbito
universitário, dada a importância de seu papel institucional na sociedade.

A situação se agrava em 2020, com a pandemia, que acentuou as fragi-


lidades físicas, emocionais e estruturais já resultantes das desigualdades sociais e
do sofrimento ético-político dos povos originários. Questões de saúde como o
suicídio e o alcoolismo, dentre outras, são preocupações constantes. Os idosos,
chamados troncos velhos, são população de risco no contágio do novo coronaví-
rus e são centrais na vida das aldeias, por serem os guardiões do conhecimento
e das tradições. O isolamento, a medida adotada para a contenção da pandemia,
afeta os povos indígenas de modo diferencial, pois o contato e a vinculação es-
tão na base de seus modos de vida. Mesmo na morte, dependendo do povo em

220
questão, ritos devem ser realizados de modo que o espírito possa se encantar.
A realização dos rituais para o fortalecimento e cura também faz parte de sua
realidade.

Diante do impedimento da realização desses procedimentos, os povos


se veem mais enfraquecidos na luta contra mais um inimigo invisível trazido
pelo contato com os brancos. É preciso buscar modos de mitigar esse sofrimen-
to e, dessa maneira, mobilizar a sensibilidade pública para pressionar o governo
na direção de medidas protetivas que sejam construídas com a participação e o
envolvimento daqueles que serão afetados. Estamos em um momento político,
entretanto, que o cumprimento do papel de proteção do Estado aos territórios
indígenas está sendo violado.

Diante dessa situação apresentada, é nosso objetivo discutir caminhos


que possam contribuir para o enfrentamento das desigualdades sociais e vulne-
rabilidades presentes no contexto dos povos indígenas. Algumas perguntas nos
orientam nessas reflexões: Como caminhar junto com essas populações para a
concretização dos direitos indígenas? Qual o papel da universidade e da psicolo-
gia nesse processo? Que possibilidades temos de aproximações entre a Univer-
sidade Federal do Ceará, neste momento de pandemia mundial de covid-19, e
as populações originárias?

Povos originários: afetividade e decolonialidade na pesquisa, ensi-


no e extensão

A formação universitária em cursos de psicologia está em desacordo


com as legislações vigentes a respeito do ensino da história e cultura afro-brasi-
leira e indígena. A maioria dos cursos não possui entre as disciplinas obrigatórias
nada referente a essa temática. A pesquisa e a extensão em psicologia, nessa di-
reção, também são incipientes, de modo que consideramos as experiências que

221
serão aqui abordadas como pioneiras no sentido da produção de conhecimentos
comprometidos com os povos originários, valorizando seus saberes, cultura e
modos de vida. Sabemos, portanto, que muito há a caminhar e construir. Aler-
tamos, contudo, que tal construção precisa ser sensível às necessidades e singu-
laridades dos envolvidos.

A discussão sobre o papel da extensão na construção coletiva do conhe-


cimento, apesar de já abordada por Paulo Freire, ainda precisa se fazer sentir
como realidade na sociedade brasileira. A universidade precisa estar mais porosa
à presença dos povos indígenas, no sentido de deixar-se afetar por seus saberes,
visões de mundo e problemáticas. Encontramos nas categorias afetividade e de-
colonialidade caminhos para a observação, investigação e análise dessa proble-
mática envolvendo os povos originários no campo universitário.

A universidade, tradicionalmente, construiu-se como um espaço estru-


turado a partir do modelo eurocêntrico de ensino-aprendizagem. Esse fato pode
se revelar nas relações entre alunos e professores, nos conteúdos eleitos como
importantes para a formação profissional, no formato das aulas, nas hierarquias
que se colocam entre os níveis de formação, assim como na predominância de
referências europeias e norte-americanas tanto nos planos de ensino como nas
produções acadêmicas de modo geral (OLIVEIRA; ALMEIDA; OLIVEIRA,
2019).

Recentemente, entretanto, temos visto surgir e ganhar fôlego, na Amé-


rica Latina, as propostas de decolonialização das ciências sociais, a partir do
resgate da ancestralidade e do deslocamento do pensamento e dos modos de
produção de conhecimento, de maneira a afastar-se dos modelos hegemônicos
para outros fundados na história, memória e modos de vida desse território
(SOUSA SANTOS, 2010). Isso implica, como necessária consequência, a re-
configuração do espaço acadêmico, e é nessa mesma dimensão que temos desen-

222
volvido propostas de trabalho com os povos originários. Neste caso, as atuações
no território caracterizaram-se pela transdisciplinaridade e profunda integração
entre alunos de diferentes níveis acadêmicos (graduandos e pós-graduandos),
reunindo, além dos indígenas, colaboradores da psicologia, economia, geogra-
fia, ciências biológicas e farmácia, da Universidade Federal do Ceará e de outras
Instituições de Ensino Superior públicas e privadas.

Ainda considerando a importância de trazer para a universidade a pro-


dução de um conhecimento aliado a processos que facilitem modos de resistên-
cia e de enfrentamento à opressão vivida por esses povos desde a colonização,
trazemos a afetividade como uma categoria desestabilizadora (SAWAIA, 2011)
na atualidade por superar a quebra do “comum”, por este ter sido um caminho
para resistir a uma das estratégias apontada por Espinosa, de sustentação de
regimes autoritários. O individualismo e o distanciamento coletivo têm sido o
paradigma mais evidente, eficaz e disseminado em todos os níveis na atualidade:
global, local, nacional e internacional, sendo neste momento da pandemia um
dos exemplos mais dramáticos de como as políticas de vulnerabilização atingem
as populações pobres, negros, indígenas, refugiados, dentre outros.

Para as populações indígenas urbanas, a afetividade – sentimentos e


emoções –, definida por Sawaia (2011) como a tonalidade, a cor emocional
que impregna a existência, pode propiciar a escuta necessária como apoio psi-
cossocial e para a convivencialidade no enfrentamento das desigualdades e vul-
nerabilidades sociais. A importância do tecido comunitário e o comum para a
prevenção e cura de doenças das populações originárias se destaca, de maneira
que a prevenção e o tratamento não rompam com suas crenças e mitos nos pro-
cessos de saúde e doença.

223
Metodologias ativas e participativas: mantendo a conexão univer-
sidade e aldeia

A aproximação da Universidade, pelo Laboratório de Pesquisa em Psi-


cologia Ambiental (LOCUS), com a população indígena, iniciou-se em 2015,
em atividades práticas das disciplinas de Psicologia Social III e Políticas Públicas
e de Psicologia Ambiental, nas aldeias Jenipapo Kanindé, em Aquiraz, e Pita-
guary, em Pacatuba, ambas na região metropolitana de Fortaleza.

Os objetivos das aulas de campo foram proporcionar aos alunos ati-


vidades práticas que articulassem as políticas públicas de saúde, educação e as-
sistência social com populações indígenas, visto que essas relações são pouco
estudadas na formação do psicólogo. Essas atividades centraram-se nas especifi-
cidades das políticas públicas indígenas, mas também na convivência de alunos,
professores e colaboradores com sua cultura, costumes e modos de vida. Na al-
deia dos Pitaguary, além das visitas aos equipamentos, o campo estendeu-se para
projetos de extensão, dentre eles, os Guardiões do Ambiente, e pelas pesquisas
de cunho etnográfico, resultando na tese de doutorado de Maria Zelfa de Souza
Feitosa, que atualmente atua como professora em suas atividades no pós-douto-
rado do Programa de Pós-graduação de psicologia.

Essas experiências acadêmicas mostraram especificidades do campo in-


dígena, no que tange às políticas públicas, e colocaram alunos de graduação e
de pós, professores e colaboradores em contato com a realidade de desigual-
dades sociais e de sofrimento ético-político dessas populações, o que se confi-
gura em ameaças, adoecimento psíquico, assassinatos e suicídios identificados
nesses contextos. Falamos aqui do sofrimento ético-político, de acordo com a
abordagem de Sawaia (2011), como aquele sofrimento derivado da exclusão, da
injustiça e da iniquidade, produtor de afetos que despotencializam os sujeitos e
cristalizam suas ações.

224
Para a aproximação do arcabouço teórico e metodológico que nos pro-
pomos, pela afetividade e decolonialidade, optamos por metodologias ativas e
participativas pela dimensão ético-política relativa ao campo, considerando os
objetivos de: a) articular de forma dialética sujeito pesquisado/pesquisador; b)
ter como referência os afetos como base para a formação do pensamento, da éti-
ca e de uma racionalidade ético-afetiva; c) considerar a vivência como dimensão
mediadora para a construção de significados e de reflexão para a aprendizagem;
e d) articular ferramentas que acessem a dimensão vivencial, da arte e de pro-
cessos emancipatórios.

Nesse sentido, o LOCUS esteve com os povos originários na aldeia do


Pitaguary e realizou atividades de extensão que se pautaram na convivência e na
afetividade. As metodologias de inserção do campo tinham um caráter interge-
racional e visavam enfrentar o problema da transmissão cultural em um cenário
caracterizado pela desvalorização da cultura indígena. Desse modo, foram in-
centivados espaços de convivência entre crianças e idosos, facilitando troca de
saberes e diálogos entre as gerações. Apostamos também em um maior diálogo
e possibilidade de que os não indígenas aprendessem sobre suas ancestralidades
e pudessem respeitá-las e cultivá-las.

Já no ensino, vimos a integração das disciplinas do curso de psicologia


nas visitas realizadas com as vivências locais de valorização da cultura indíge-
na, aproximando os envolvidos na direção de uma formação para os psicólogos
voltada para os povos originários. Além disso, acreditamos que o contato dos
alunos com o campo pôde levar o desenho de novas problemáticas no campo
profissional e teórico para a psicologia, problemáticas que abraçassem os desa-
fios da sustentabilidade, da ecologia e do respeito entre os povos, de maneira
que pudessem extrapolar para outros âmbitos esse contato respeitoso e acolhe-
dor com a vida no planeta.

225
Desde as primeiras aproximações do Laboratório com as populações
indígenas, realizamos as trilhas socioambientais, metodologia construída a par-
tir das ciências geográficas, que tem por objetivo reconhecer cognitivo-afetiva-
mente os ambientes construídos e naturais, proporcionando as inter-relações
dos participantes entre si e com os ambientes (SIEBRA et al., 2015). Nessas
experiências, do ponto de vista metodológico e de formação, conseguimos
perceber que o contato com o campo pelos alunos e professores mostrou um
processo rico de convivencialidade ao entrar em contato com as aldeias, expe-
rimentar a natureza e a cultura indígena. Isso ficou implícito, por exemplo, na
fala de uma aluna do 7o semestre, do curso de psicologia, em seu relatório da
visita de campo:
Gostaria de externar o quão gratificante foi participar da tri-
lha ecológica organizada pelo LOCUS. Uma experiência ímpar,
que com certeza contribuiu para mim como estudante e como
pessoa. Sei que ao passar por esta experiência aprendemos a
respeitar um pouco mais a natureza, os animais, enfim, cada ser
vivo.

Um outro elemento trazido nos relatórios discentes, tanto da disciplina


de Psicologia Social III como na de Psicologia Ambiental, que denota os bons
resultados dessas experiências, envolve conhecer a força de luta e resistência das
mulheres indígenas. Na aldeia Jenipapo Kanindé, em Aquiraz, tivemos a opor-
tunidade de conhecer a cacique Pequena, a primeira cacique mulher na América
Latina. Sua história de luta e garra ficou marcada na memória dos alunos.

As trilhas socioambientais foram utilizadas, também, em nosso próprio


processo de inserção na aldeia Pitaguary, em Monguba (Pacatuba-CE), onde
concentra-se a maior parte de nossas atividades de ensino, pesquisa e extensão.
Essa etnia habita a região metropolitana, entre os municípios de Maracanaú e
Pacatuba, contando com aproximadamente 4.478 habitantes. Sua Terra Indígena
tem uma área, ainda em processo de demarcação, com cerca de 1.735 hectares e

226
21 km de perímetro, que abriga as aldeias Santo Antônio, Olho D’Água, Horto
e Aldeia Nova, na região de Maracanaú e Monguba. Guiados pela metodologia
etnográfica, realizamos um processo de inserção, planejamento e realização de
ações em íntima relação com os indígenas. Desse percurso de vivências afetivas,
construímos conjuntamente a proposta de um grupo intitulado Guardiões do
Ambiente, cujo objetivo era o fortalecimento da cultura Pitaguary, voltado para
crianças e adolescentes, com enfoque participativo e intergeracional.

Uma outra estratégia utilizada nesse processo foi a aplicação do Ins-


trumento Gerador dos Mapas Afetivos (IGMA) com as crianças e adolescentes
participantes do grupo, que permite investigar a Estima de Lugar do sujeito em
relação ao seu ambiente, ou seja, desvela a qualificação afetiva acerca do lugar
(BOMFIM, 2010). Sendo esse um instrumento de pesquisa e de intervenção,
essa aplicação objetivou orientar nossas ações com o grupo, a partir da avaliação
dos afetos dos participantes com seu território, o que está intimamente relacio-
nado à vivência indígena. A partir disso, foi possível perceber a potencialização
desses sujeitos com o território da aldeia e planejarmos atividades coerentes
com a realidade local. No curso de nossas vivências, duas ações merecem, ainda,
especial destaque: a construção de um jogo de tabuleiro acerca da cultura Pita-
guary e um herbário que pudesse contribuir com o acervo do museu indígena
Pitaguary, que já vinha sendo construído.

O jogo indígena caracteriza-se como uma forma lúdica de entrar em


contato com a cultura, aprender e construí-la no cotidiano. A proposta nasceu
da integração de diversas atividades na aldeia: do processo de inserção etnográ-
fica para a elaboração da tese de doutorado “Lideranças Pitaguary de Monguba:
Estratégias do Bem Viver e de Compromisso Ético-Político” (FEITOSA, 2019);
da preocupação das lideranças a respeito do risco de que os elementos histórico-
-culturais caíssem no esquecimento; dos desafios impostos pela configuração so-

227
cial moderna e desenvolvimento tecnológico, com suas novas e sutis práticas de
colonialidade, que criam atrativos concorrentes ao interesse pela própria cultu-
ra, e da constatação da inexistência de materiais semelhantes que viabilizassem
essas aproximações com a própria cultura. O jogo é cooperativo, contando com
perguntas relacionadas à cultura Pitaguary e a proposição de situações-problema
que devem ser discutidas pelos jogadores. Todo o material foi construído com a
participação dos indígenas e baseado em acontecimentos vivenciados por eles.
Para a sua construção, realizamos trilhas socioambientais, rodas de conversa in-
tergeracionais, com a participação dos troncos velhos e lideranças locais, utili-
zamos o recurso fotográfico e a produção gráfica de artistas indígenas Pitaguary.

A construção do herbário foi realizada a partir de oficinas, com a par-


ticipação de colaboradores dos cursos de ciências biológicas e farmácia e lide-
ranças locais. Foram realizados momentos de discussão sobre a importância e a
função de um herbário; de sua integração como parte do museu; dos conheci-
mentos de medicina tradicional e uso de plantas medicinais; oficina de fanzines;
dinâmicas de grupo relacionadas ao tema; trabalho prático de pesquisa com os
mais velhos e, no horto, sobre a identificação e uso de plantas medicinais na
aldeia; exposição prática sobre a construção do herbário; coleta das amostras;
construção da prensa; e montagem do herbário propriamente dito.

Com a pandemia do novo coronavírus, nossas ações presenciais foram


interrompidas, uma vez que se estabeleceu a necessidade de cumprir os pro-
tocolos de segurança de afastamento das aldeias. Sabendo-se que os povos ori-
ginários possuem um sistema imunológico mais sensível, com maior risco de
agravamento da doença, a orientação é que não retornemos ao território, por
enquanto, a fim de evitar qualquer risco de transmissão.

228
Considerações finais

Diante deste novo contexto da pandemia, deparamo-nos com as difi-


culdades em dar seguimento às nossas ações, inclusive pela ausência de formas
que garantam maior acesso remoto à aldeia. A internet, recurso que vem sen-
do bastante utilizado para promover os encontros e dar continuidade às nossas
atividades, não parece ser o meio ideal de contato com os povos indígenas. Em
muitas aldeias o acesso é precário, além da exigência em operar com sistemas
estranhos para essas populações, especialmente para os troncos velhos, cujas
histórias ganhavam vida ao ar livre, sob a sombra das árvores e contando com
ouvidos e olhares atentos. O toré, ritual de cura e contato com os ancestrais,
precisa da proximidade dos corpos, da respiração no passo ritmado. A presença,
tão importante para alimentar o modo de vida indígena, seus tempos e pro-
cedimentos, tem sofrido impacto direto de mais uma doença que ameaça sua
sobrevivência e coloca a vida em suspensão. Enquanto ainda não sabemos mais
sobre a doença, precisamos pensar em como enfrentá-la juntos.

Diversas lideranças dos povos originários têm produzido textos aler-


tando aos não indígenas os perigos de enxergar a natureza apenas como recursos
e não como um sistema vivo do qual todos dependemos. A sociedade está cada
vez mais sensível ao extermínio que os povos originários têm sofrido. A criativi-
dade para o enfrentamento dessas questões aguarda, neste momento, como uma
semente aguarda para romper o solo, pedindo cultivo e atenção. A participação
do LOCUS no Seminário “Aspectos Psicossociais das Vulnerabilidades no Con-
texto da Pandemia da Covid-19” se deu na direção de apresentar o que já temos
realizado nesse convívio com os povos originários, bem como a sistematização
dos caminhos teórico-metodológicos em psicologia que sustentam essas ações,
e, principalmente, partilhar o sentimento de preocupação com essa população.
Que mais ações possam brotar do respeito, da convivência e do reconhecimento

229
do foco comum na problematização da vida como centro das ações humanas na
terra.

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Categoria:Povos_ind%C3%ADgenas_no_Cear%C3%A1. Acesso em: 05 jun.
2016.

231
Os autores e as autoras
Aline Gabriele Carvalho de Lima
Mestra em Psicologia pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Doutoranda
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Cea-
rá (UFC). E-mail: alinegclima@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-
0002-0276-3277

Aluísio Ferreira de Lima


Doutor em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC-SP). Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Psico-
logia da UFC. Bolsista de Produtividade CNPq. E-mail: aluisiolima@hotmai.
com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9747-4701

Ana Carolina Borges Leão Martins


Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Docente do Curso de Psicologia (UFC – campus Sobral) e do Mestrado Profis-
sional em Psicologia e Políticas Públicas da UFC. E-mail: carolinablmartins@
gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6758-9508

Angela Teresa Nogueira de Vasconcelos


Mestra em Psicologia (UNIFOR). Professora do curso de Psicologia do Cen-
tro Universitário 7 de Setembro (UNI7). E-mail: angelanogueiravasconcelos@
gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2283-9830

1
Antonio Marlon Coutinho Barros
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFC. Especialista
em Saúde da Família pela Universidade Internacional da Lusofonia Afro-Brasi-
leira (UNILAB). E-mail: marloncoutinho@gmail.com. ORCID: https://orcid.
org/0000-0003-1996-7476.

Bárbara Ellen Viana Sales


Graduanda em Psicologia (UFC – campus Sobral). E-mail: bellen018@gmail.
com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3175-0237

Camilla Araujo Lopes Vieira


Doutora em Saúde Coletiva (UFC). Professora do Curso de Psicologia (campus
Sobral) e do Mestrado Profissional em Psicologia e Políticas Públicas (UFC).
E-mail: camillapsicol@ufc.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1706-
3772

Carla Jéssica de Araújo Gomes


Graduanda em Psicologia (UFC – campus Fortaleza). E-mail: carlajessica.cjag@
gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6979-2646

Carla Ribeiro de Sousa


Graduanda em Psicologia (UFC – campus Sobral). E-mail: caarlasousa@hot-
mail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0490-8433

Cristina Silmara Duarte Rodrigues


Graduanda em Psicologia (UFC – campus Sobral). E-mail: cristinasilmaradr@
gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9309-9887

2
Dagualberto Barboza da Silva
Mestrando em Psicologia (UFC). E-mail: dalgobarboza92@gmail.com. OR-
CID: https://orcid.org/0000-0003-3788-1780

Emanuel Meireles Vieira


Doutor em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Professor do Curso de Psicologia (UFC – campus Sobral). E-mail: emanuelmei-
reles@ufc.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7346-4944

Érica Atem Gonçalves de Araújo Costa


Doutora em Educação (UFC). Docente do Departamento de Psicologia (campus
Fortaleza) e do Mestrado Profissional em Psicologia e Políticas Públicas da UFC.
E-mail: ericaatem@ufc.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4341-8138

Francisca Denise Silva Vasconcelos


Filha do povo Tapeba. Doutora em Sociologia (UFC). Professora do Curso de
Psicologia (campus Sobral) e do Mestrado Profissional em Psicologia e Políticas
Públicas da UFC. E-mail: denisesn1301@gmail.com. ORCID: https://orcid.
org/0000-0002-3997-7869

Francisca Graziele Costa Calixto


Mestranda em Psicologia e Políticas Públicas (UFC). Orientadora Educacional
na Secretaria Municipal de Educação de Sobral-CE. Especialista em Psicopeda-
gogia e Saúde Mental. E-mail: graziele_costa@hotmail.com. ORCID: https://
orcid.org/0000-0001-6558-6442

3
Francisco Pablo Huascar Aragão Pinheiro
Doutor em Educação (UFC). Professor do Curso de Psicologia (campus Sobral)
e do Mestrado Profissional em Psicologia e Políticas Públicas (UFC). Bolsista
de Produtividade e Interiorização (FUNCAP). E-mail: pablo.pinheiro@ufc.br.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9289-845X

Janaína Chagas de Sousa


Licenciada em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Vale do Acaraú
(UVA). Graduanda em Psicologia (UFC – campus Sobral). E-mail: janainach15@
gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2382-4921

João Paulo Pereira Barros


Doutor em Educação (UFC). Professor da graduação e do Programa de Pós-
-Graduação em Psicologia (UFC – campus Fortaleza). E-mail: joaopaulobar-
ros@ufc.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7680-576X

José Alves de Souza Filho


Doutorando em Psicologia (UFC). Especialista em Psicopedagogia Institucional
pela Universidade Cruzeiro do Sul (UNICSUL). Bolsista CAPES-DS. E-mail:
josefilhoss@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8059-9196

Jorge Samuel de Sousa Teixeira


Graduando em Psicologia (UFC – campus Sobral). E-mail: jorgesamuel199@
gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4188-5303

4
Karla Patricia Holanda Martins
Doutora em Teoria Psicanalítica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e da Gra-
duação em Psicologia (UFC). Bolsista de Produtividade CNPq. E-mail: kphm@
uol.com.br. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-3242-6287

Laiza Cristina Cavalcante Menezes


Graduanda em Psicologia (UFC – campus Sobral). E-mail: laizacristina2@gmail.
com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2147-3950

Lara Brum de Calais


Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Pós-
-Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia (UFC). E-mail:
laracalais@hotmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3703-1145

Lara Thayse de Lima Gonçalves


Mestranda em Psicologia (UFC). Colaboradora do LAPSUS. Bolsista FUNCAP.
E-mail: larathayse@live.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3751-
9765

Lorrana Caliope Castelo Branco Mourão


Doutoranda em Psicologia (UFC). Integrante do Laboratório de Psicologia em
Subjetividade e Sociedade (LAPSUS/UFC). Professora do Centro Universitá-
rio Christus. E-mail: loccbm@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-
0003-2892-5550

5
Louanne Carneiro de Oliveira
Mestranda em Psicologia e Políticas Públicas (UFC – campus Sobral). E-mail:
louanne.anne@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1354-2995

Luana Paiva da Silva


Graduanda em Psicologia (UFC – campus Sobral). E-mail: luapaiva@alu.ufc.br.
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-5968-5206

Luciana Lobo Miranda


Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(PUC-RJ). Pós-Doutora pelo Programa de Psicologia Social Crítica e Persona-
lidade pela City University of New York (CUNY), EUA. Professora Titular do
Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia
da UFC. Coordenadora do Laboratório em Psicologia Subjetividade e Socieda-
de (LAPSUS). E-mail: lobo.lu@uol.com.br. ORCID: http://orcid.org/0000-
0002-7838-8098

Luisa Carolina Holanda Pereira


Mestranda em Psicologia (UFC). E-mail: psi.luisaholanda@gmail.com. OR-
CID: https://orcid.org/0000-0001-7534-9977

Luiz Augusto Souza Barbosa


Graduado em Psicologia (UFC – campus Sobral). E-mail: luiz.28.augusto@
gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3780-4160

6
Magda Dimenstein
Doutora em Saúde Mental (UFRJ). Professora visitante no Programa de Pós-
-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Professora Titu-
lar do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: mgdimenstein@gmail.com. ORCID:
http://orcid.org/0000-0002-5000-2915

Maria Suely Alves Costa


Doutora em Psicologia Aplicada com ênfase em Saúde pela Universidade do Mi-
nho, Portugal. Professora da graduação e do Mestrado Profissional de Psicologia
e Políticas Públicas da UFC. E-mail: suelycosta@ufc.br. ORCID: http://orcid.
org/0000-0002-3545-0613

Maria Zelfa de Souza Feitosa


Doutora em Psicologia (UFC). E-mail: maria.zelfa@hotmail.com. ORCID:
http://orcid.org/0000-0001-5941-9170

Mariana Ribeiro Pinto


Graduanda em Psicologia (UFC – campus Sobral). E-mail: marianarp@alu.ufc.
br. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8394-3538

Mayara Ruth Nishiyama Soares


Mestranda em Psicologia (UFC). Integrante do Laboratório de Psicolo-
gia em Subjetividade e Sociedade (LAPSUS/UFC) e do Grupo de Pesqui-
sa e Intervenção sobre Violências, exclusão social e subjetivação (VIESES/
UFC). E-mail: mayararnishiyama@gmail.com. ORCID: https://orcid.or-
g/0000-0002-2668-8822?lang=en

7
Nara Maria Forte Diogo Rocha
Doutora em Educação Brasileira (UFC). Professora da graduação e do Mestrado
Profissional em Psicologia e Políticas Públicas da UFC. E-mail: narafdiogo@
gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-5040-1492

Natacha Oliveira Júlio


Bacharela em Direito (UVA). Especialista em Direito e Processo do Trabalho
(Damásio Educacional). Graduanda em Psicologia (UFC – campus Sobral).
E-mail: natachajulio@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0001-
7719-7954

Natália Santos Marques


Doutora em Psicologia Experimental pela Universidade de São Paulo (USP).
Professora da graduação e do Mestrado Profissional em Psicologia e Políti-
cas Públicas da UFC. E-mail: nataliamarques@ufc.br. ORCID: http://orcid.
org/0000-0003-4994-3811

Nayana Rios Nunes da Silva


Mestranda em Psicologia e Políticas Públicas (UFC). Especialista em Psicologia
das Relações Humanas (UVA), em Serviço Social, Seguridade Social e Legisla-
ção Previdenciária (Faculdade Ratio), em Perito Social: dimensões normativas,
instrumentais e éticas (Pótere Social). Atua como assistente social no Serviço
Autônomo de Água e Esgoto (SAAE) de Sobral e Perita Judicial do Tribunal de
Justiça do Ceará (TJCE). E-mail: nayanarios87@gmail.com. ORCID: http://
orcid.org/0000-0001-5182-2344

8
Paulo Francis Jorge da Silva
Graduando em Psicologia (UFC). Colaborador do LAPSUS. Bolsista de Inicia-
ção Científica (PIBIC-UFC). E-mail: paulofrancisjorge@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-5194-8120

Paulo Henrique Dias Quinderé


Doutor em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual do Ceará (UECE). Pro-
fessor do curso de graduação em Psicologia (campus Sobral) e do Mestrado Pro-
fissional em Psicologia e Políticas Públicas da UFC. E-mail: pauloquindere@
sobral.ufc.br. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-8470-1909

Quitéria Alves Melo


Graduanda em Psicologia (UFC – campus Sobral). E-mail: quiterialvesm@
gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2831-1631

Rafaela Sousa Alves


Graduanda em Psicologia (UFC – campus Sobral). E-mail: rafaelasousa1402@
gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-2119-8864

Rita Helena Sousa Ferreira Gomes


Doutora em Filosofia (UFMG). Estágio pós-doutoral na Faculdade de Educação
da Simon Fraser University. Professora da graduação, do Mestrado Profissional
em Psicologia e Políticas Públicas e do Mestrado Profissional em Artes da UFC.
E-mail: ritahelenagomes@ufc.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-
2306-4264

9
Raiza Lopes Pires
Graduanda em Psicologia pela Universidade Federal do Ceará - Campus Sobral.
Membro do Laboratório Clínica,Sujeito e Políticas Públicas (CLIPSUS).

Samanta Basso
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFC. Especia-
lista em Clínica Psicanalítica pela Universidade Luterana do Brasil (ULBRA).
E-mail: samanta.basso@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0002-
0961-9710

Tadeu Lucas de Lavor Filho


Doutorando em Psicologia (UFC). Especialista em Gênero, Diversidade e Di-
reitos Humanos (UNILAB). Membro do Laboratório de Psicologia em Subje-
tividade e Sociedade (LAPSUS/UFC). Professor do Centro Universitário Vale
do Salgado (UniVS) e professor substituto na Universidade Estadual do Ceará
(UECE). E-mail: tadeulucaslf@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-
0003-2687-1894

Tatiana de Souza Santos Neves


Mestranda em Psicologia (UFC). E-mail: tatianasouzapsi@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-3374-7827

Thamila Cristina Santos


Psicóloga, artista visual e mestranda em Psicologia e Políticas Públicas (UFC
– campus Sobral). Gerente de Comunicação colaborativa na Unidade de Ge-
renciamento de Projetos de Prevenção à Violência vinculada à Secretaria dos
Direitos Humanos, Habitação e Assistência Social no município de Sobral, no

10
Ceará. E-mail: santosthamilaa@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-
0001-8616-0731

Ticiane Costa Mesquita


Graduanda em Psicologia (UFC – campus Sobral). Pós-Graduanda em Saúde
Mental pela Faculdade de Venda Nova do Imigrante (FAVENI). E-mail: ticiane-
mesq8@gmail.com. ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1270-2280

Veriana de Fátima Rodrigues Colaço


Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFR-
GS). Pós-Doutora em Psicologia pela Universidade de Barcelona, Espanha. Pro-
fessora titular do Departamento de Psicologia da UFC (aposentada) e professo-
ra permanente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia e do Programa de
Pós-Graduação em Educação Brasileira da UFC. E-mail: verianac@gmail.com.
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-7863-4287

Zulmira Aurea Cruz Bomfim


Doutora em Psicologia (Psicologia Social) pela PUC-SP. Pesquisadora pela Uni-
versidade de Barcelona em Espaço Público e Regeneração Urbana e pós-dou-
tora pela Universidade da Coruña-Espanha. Professora Titular do Programa de
Pós-graduação de Psicologia da UFC. E-mail: zulaurea@gmail.com. ORCID:
http://orcid.org/0000-0002-1874-8821

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