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Galeno, discípulo de Hipócrates ?

HIPÓCRATES

O conceito que temos de “ciência”, ou melhor, o saber que hoje classificamos


como “científico” é uma conquista do pensamento ocidental relativamente recente.
Seus preceitos fundamentais (experimentação, enunciação matemática, método,
etc.) não faziam parte da preocupação existente naquilo que se convencionou
chamar pensamento pré-científico, no qual podemos enquadrar todas as formas de
pensar da antiguidade.

A investigação, na antiguidade grega, por exemplo, se dava em termos de


especulação, análise e inferência teórica acerca das coisas, especialmente a partir
do surgimento do pensamento filosófico, manifestado através dos textos de
pensadores a quem se convencionou denominar “pré-socráticos” ou “filósofos da
natureza”, que foram os primeiros que procuraram algum tipo de explicação fora
dos domínios puramente mitológicos. A partir de 500 AC muitas das investigações
de alguns desses filósofos procuraram explicar o funcionamento do corpo humano
na saúde e na doença, sendo que por volta de 400 AC já existiam princípios de
diagnóstico, prognóstico e tratamentos razoavelmente estabelecidos.

O mais famoso médico da Grécia Antiga foi Hipócrates de Cós (+/- 460/380 AC) e
sua importância é tão grande que se pode associar seu nome ao próprio
nascimento da medicina. Tudo o que conhecemos dele advém de uma extensa
coletânea de textos a que se convencionou chamar Corpus Hippocraticum, apesar
de que nenhum desses textos pode ser seguramente considerado de sua autoria.
É possível que Hipócrates tenha sido o primeiro a aplicar os conceitos difundidos
desde tempos anteriores a ele e que, graças ao seu renome, passou a ser
considerado o autor de toda a obra. São 60 tratados, de temática muito variada,
datando os mais antigos de +/- 450 AC e os mais novos de +/- 300 AC. Eles
discorrem sobre medicina em geral, comportamento dos médicos,
anatomofisiologia, medicina preventiva, terapêutica, etc. e mesmo o Juramento, o
texto mais famoso, não pode ser atribuído com certeza a ele.

Postura dos médicos, rigorosa observação do doente, análise dos fatos clínicos
observados, correlação de causas e efeitos, assim se pode resumir do que se trata
o próprio “método hipocrático”. Vamos nos ater aos três princípios básicos que,
para Hipócrates (usaremos a palavra Hipócrates querendo, na verdade, denotar o
que está contido no Corpus Hippocraticum) constituiam as bases do tratamento
médico:

. Natura Medicatrix – a natureza sendo a fonte primeira responsável pelo


restabelecimento da saúde do doente, cabendo ao médico tratar o paciente como
que “imitando” a natureza, a fim de reconduzi-lo a um perfeito estado de equilíbrio;

. Contraria Contrariis – é o que chamamos de Lei dos Contrários, onde os


sintomas são tratados com medidas contrárias a eles;

. Similia Similibus – é a chamada Lei dos Semelhantes, que preconiza que a


doença pode ser debelada pela aplicação de medidas semelhantes a ela.

“Há no homem uma força desconhecida, inteligente, que dirige as funções,


governa o organismo, tira dos alimentos o que lhe é útil e rejeita o que lhe é inútil.
Esta força chama-se natureza e está em vibração simpática com o universo... A
natureza mantém a saúde, defende a economia vital com sabedoria. São quatro os
seus exércitos: o sangue, a pituita, a bile e a atrabile. Conforme a preponderância
de um destes, será o caráter da natureza individual. Ela está rodeada de inimigos,
que lhe procuram roubar a vida, que ela armazena com providencial vigilância. Por
sua vez ela ataca os depósitos de vida ao seu alcance. A luta é constante. Do seu
triunfo resulta a saúde e a prosperidade; durante a luta temos o perigo das
doenças, se é derrotada. Então seu armazém de vida é saqueado, sobrevém o
depauperamento e pode chegar até à morte, voltando, neste caso, a natureza ao
mundo etéreo... Médico é o homem prudente, honrado, discreto e desinteressado,
que adquire pela experiência e raciocínio uma soma de conhecimentos
necessários à missão de assistir à natureza em suas crises. É um servo, um
ministro, um assistente e não um comandante. Só a natureza sabe o que lhe
convém fazer em defesa própria; só ela tem recursos de triunfo sobre os inimigos,
geralmente invisíveis para o médico. Só ela é médica”. (Hipócrates – “Da
Topologia do Homem”)

“As dores serão removidas através de seu oposto, cada uma de acordo com suas
próprias características. Assim, o calor corresponde à constituição quente que foi
acometida pelo frio, e assim por diante. Outra modalidade é a seguinte: através do
similar a doença se desenvolve, e pelo emprego do similar a doença se cura.
Assim, aquilo que produz tenesmo urinário na saúde, cura-o na doença. A tosse é
provocada e curada pelo mesmo agente, exatamente como no caso do tenesmo
urinário. Um outro método: a febre decorrente de uma inflamação será provocada
e curada pela mesma num momento, e noutro, pelo contrário do que a provocou.
Se se banhar um paciente em água morna e lhe administrar bastante líquido,
então ele curará a enfermidade através de um excesso de fluidos; aquilo que
causa a inchação cura a febre existente. E quando se ministra um purgativo ou um
emético, a doença se curará pelo que a produziu, e será produzida pelo que a
cura. Se se der muita água para um homem que vomita, o material que está
causando o vômito será eliminado por ele. Assim, o vômito é suprimido por um
emético. Mas também se pode suprimi-lo ao se eliminar pelos intestinos o que
estava no organismo e causava o vômito. Assim, pode-se restaurar a saúde de
duas maneiras opostas. Se isso vale para todos os casos, torna-se fácil tratar, ora
segundo a natureza e origem da enfermidade pelo contrarium, ora segundo a
natureza e origem da doença, pelo similar.” (Hipócrates – “Dos Lugares do
Homem”)

Primeira constatação: para Hipócrates, tanto a Lei dos Contrários quanto a Lei dos
Semelhantes não se opunham em seu pensamento. Mas, o que podemos
apreender do longo trecho exposto acima?

Enfermidade e saúde estão em oposição, assim como bem e mal, noite e dia, frio e
calor. Assim o elemento de contraste é visto “hipocraticamente” como um fator
decisivo para o entendimento dos transtornos produzidos pela doença e pelos
sintomas molestos que a acompanham. No que toca à relação entre enfermidade e
medicamento (como nos exemplos da tosse e do tenesmo) a visão hipocrática
parece tender ao princípio da similaridade. Não há uma exclusão de um princípio
por outro; ao contrário eles são tratados como complementares. Aquilo que, num
momento é transtorno, noutro pode ser o caminho da cura. O que pode constituir a
enfermidade pode ser fator conveniente na resolução da própria enfermidade.
Porém, mais importante do que a precedência de um princípio sobre o outro é a
proposição de que os efeitos diretos devem, se possível, ser removidos, mas a
reação de cura deve ser estimulada. Esta a importância da concepção hipocrática
de força natural de cura, a vis medicatrix natura, que nos parece ser o conceito
que subjaz aos outros dois.

“A physis mesma, não conscientemente, encontra caminhos e meios como no


piscar de olhos, nos movimentos da língua e afins. Pois por si mesma, sem
adestramento e sem ter sido treinada, cuida do que deve. Lágrimas, secreção
nasal, espirro, cerúmem, saliva, expectoração, inspiração e expiração, bocejo,
tosse, deglutição, em conjunto, mesmo que não da mesma maneira. Micção,
eliminação de gazes, regurgitação, assimilação de nutrientes, respiração, e na
mulher o que lhe diz respeito e ao corpo todo, a saber, suor, prurido,
espreguiçamento e tudo o mais.” (Hipócrates – “Das Epidemias”)

A physis hipocrática, equivalendo à força natural de cura, ao poder que governa as


funções orgânicas. O texto, sem pressupor nenhum grande esquema de
sistematização, é de uma clareza e simplicidade marcantes. A preocupação
hipocrática é observar e ajudar essa força imanente a todo ser humano. Ao médico
caberia a tarefa de discriminar os sintomas úteis e os prejudiciais, estimulando os
primeiros e evitando os últimos. Essa nos parece ser a chave do saber hipocrático:
antes da preocupação com a forma terapêutica está a preocupação com o doente.
São pessoas que adoecem e são elas que devem ser observadas

“A physis opera por si só. Se alguém apresenta transtornos ao sentar, põe-se de


pé; se alguém apresenta transtornos ao andar, mantém-se em repouso, e muitas
outras coisas assim são propriedades da phyis da medicina.” (Hipócrates – “Da
Dieta”)

Novamente temos uma constatação clara e simples, isenta de apanágios míticos e


desprovida de segredos indevassáveis, o que por si só já nos bastaria para
considerarmos o pensamento hipocrático como “a grande flecha arremessada para
além do seu tempo”. Porém, a riqueza dos conhecimentos contida em seus textos
é muito maior do que aquilo a que nos propomos nesse trabalho. Deixemos que
alguns fragmentos falem por si mesmos.

Sobre os médicos e sua conduta:

“Quanto às coisas do espírito, ter sensatez, e não apenas em relação ao silêncio,


mas manter também uma vida muito regular, o que é muito importante para a boa
reputação. Quanto aos hábitos, deve ser honesto e bom e, assim sendo, também
sério e cordial em todas as coisas ... Deve ser correto em todos os seus
relacionamentos, pois freqüentemente é necessário zelar pela correção. Não é
pequena a intimidade entre o médico e seus pacientes, que se colocam nas mãos
de seus médicos ... É preciso portanto observar todas as coisas com firmeza e
conduzir-se assim, de corpo e alma.” (Hipócrates – “Do Médico”)

Sobre as características do saber médico:

“... pois as coisas relacionadas à sabedoria estão todas na medicina: desamor ao


dinheiro, recato, capacidade de ruborizar, decência, reputação, decisão,
tranqüilidade, capacidade de responder, pureza, linguagem sentenciosa,
conhecimento das coisas úteis e necessárias à vida, rejeição da impureza,
ausência de superstição ...” (Hipócrates – “Do Decoro”)

Sobre os honorários do médico:

“Aconselho que, dentre as considerações, seja também examinado isto, pois


acrescenta alguma coisa ao todo: se começar a falar a respeito de honorários com
quem está sofrendo, você dará a impressão de que, se não houver acordo, irá
embora e o abandonará, ou que o negligenciará e não oferecerá algo para a
situação presente. Não é preciso, portanto, cuidar da fixação de honorários, pois
consideramos sem utilidade tal preocupação para quem está atormentado,
principalmente na doença aguda. Ela não estimula o bom médico a buscar o que é
vantajoso: adquirir mais reputação. É melhor, portanto, censurar quem está salvo
do que extorquir dinheiro dos que estão em perigo de morte.” (Hipócrates –
“Preceitos”)

Sobre a medicina vista como arte (no texto que consideramos um dos mais
brilhantes):

“Aos que pretenderam falar ou escrever sobre a medicina baseando sua


explicação em postulados como o “quente e o frio”, o “úmido e o seco” ou qualquer
outro que lhes agrade, cometem erro de vulto em muitas das suas afirmações por
querer reduzir ao mínimo a causa das doenças e da morte do homem ... São,
entretanto, mais censuráveis porque erram naquilo que é uma arte real, de que
todos se servem em momentos cruciais e pela qual os bons praticantes e
profissionais são tidos em grande estima. Alguns profissionais são ruins, outros
muito bons; não seria esse o caso se a arte da medicina não existisse de nenhum
modo e não fosse objeto de qualquer investigação e descoberta, caso em que
todos os médicos seriam igualmente inábeis e ignorantes e tudo o que se relaciona
com a doença seria governado pelo acaso.” (Hipócrates – “Da Medicina Antiga”)

A jóia da medicina de Hipócrates:

“Praticar isso: investigar as coisas passadas, conhecer as coisas presentes,


predizer as coisas futuras. Em relação às doenças, exercitar-se em duas coisas:
ajudar ou, pelo menos, não causar dano. A arte compreende três elementos: a
doença, o doente e o médico; o médico é um servidor da arte. O doente, junto com
o médico, deve fazer o possível para se opor à doença .” (Hipócrates –
“Epidemias”)

Poderíamos deixar que o discurso hipocrático nos banhasse com suas assertivas,
com sua intrínseca sabedoria, por muito mais tempo. Mas, como perceber o que
tem que ser revelado ao nosso modo de pensar de hoje?

Para os gregos, e com Hipócrates não poderia ser diferente, a arte sempre ocupou
um lugar de destaque em todas as formas de saber e, por conseqüência, também
na medicina; a inspiração era tida como uma fonte de lucidez e não como um mero
encantamento. Acreditava-se que as decisões terapêuticas mantinham sempre um
caráter de contingência artística, que contrastava com o caráter absoluto dos fatos.
O principal aspecto da arte era creditado ao seu caráter de síntese e ao fato de
demandar uma sensibilidade às especificidades de cada situação.

A palavra tekné, para os gregos, significava um modo do saber, em especial do


saber-fazer. Este fazer era compreendido, determinado e afinado pela essência da
criação, e permaneceria retido nesta essência. É importante ressaltar que tekné
não significava trabalho técnico no sentido atual; sobretudo nunca queria dizer um
gênero de realização prática. Alias o saber carregava o conceito do ter visto, no
sentido próprio de ver, que indica apreender o que está presente enquanto tal. A
tekné, enquanto experiência grega do saber, é um produzir, na medida em que
traz o presente como tal, da ocultação para a desocultação.

A arte da medicina aparece como um conjunto de noções, de teorias e de


experiências; como um saber que permite tomar uma atitude e uma prática. Em
síntese: uma técnica. Entretanto, nunca a teoria merece destaque. Ao contrário, é
a descrição do "observado" que assume maior importância. Esta medicina também
se distinguiu por reconhecer em todas as doenças uma causa natural, e por
combater os ritos mágicos e a superstição. Hipócrates usava o raciocínio indutivo,
a experimentação, e negava as atitudes mágicas perante a doença.

No cerne da medicina hipocrática está a convicção de que as doenças não são


causadas por demônios ou forças sobrenaturais, mas são fenômenos naturais que
podem ser observados e entendidos/tratados por procedimentos terapêuticos e
pela judiciosa conduta de vida de cada indivíduo. É a expressão da confluência
entre Hygeia, a deusa da saúde que personificava a sabedoria necessariamente
associada à uma vida saudável, e Panacéia, a deusa da cura, personificada pelo
conhecimento dos remédios provenientes dos elementos da natureza."Ares, águas
e lugares", um dos mais significativos livros de Corpus Hippocraticum, enfatiza
essa compreensão dos efeitos ambientais/naturais, considerada como a base
essencial da arte médica.

“Penso ainda que é apenas através da medicina que chegaremos a alguns


conhecimentos positivos sobre a natureza humana, mas com a condição de
abranger a própria medicina em sua verdadeira generalidade. Do contrário,
parece-me que estamos bem longe de tais conhecimentos, quero dizer, de saber o
que é o homem, por que razões ele subsiste e tudo o mais. Assim, creio
firmemente que todo médico deve estudar a natureza humana e procurar com
cuidado, se quiser cumprir suas obrigações, quais são as relações do homem com
seus alimentos, com suas bebidas, com todo o seu modo de vida e quais
influências cada coisa exerce sobre cada um” (Hipócrates – “Antiga Medicina”)

Acreditamos que, mesmo que de uma forma um tanto superficial, tocamos os


principais temas e preocupações sobre os quais se erigiu todo o grande edifício do
pensamento hipocrático, a nosso ver o grande paradigma (usando uma
terminologia atual) de toda a medicina. Hipócrates reconheceu as forças curativas
inerentes aos organismos vivos, forças a que chamou o "poder curativo da
natureza". O papel do médico consistiria em ajudar as forças naturais mediante a
criação de condições mais favoráveis para o processo de cura. Esse é o
significado original da palavra "terapia" que deriva do grego therapeuim ("dar
assistência", "cuidar de").

Os principais temas da medicina hipocrática - a saúde como um estado de


equilíbrio, a importância de influências ambientais, a interdependência da mente e
do corpo e o poder curativo inerente à natureza – refletiam, assim, o universo
inteiro, natural e social, visto como um constante processo determinante do seu
estado de equilíbrio dinâmico.

A doença, como sendo a desarmonia no nível individual ou social, as flutuações


entre equilíbrio e desequilíbrio sendo vistas como um processo natural que ocorre
ao longo de todo o ciclo vital. Assim, os textos hipocráticos não traçam uma linha
divisória nítida entre saúde e doença. Tanto a saúde quanto a doença são
consideradas naturais e parte de uma seqüência contínua. São aspectos do
mesmo processo, em que o organismo individual muda continuamente em relação
ao meio ambiente “inconsciente”.

Como a doença será inevitável no processo vital, a saúde perfeita não é o objetivo
essencial do paciente ou do médico. Na concepção hipocrática, o indivíduo é
responsável pela manutenção de sua própria saúde e até, em sua maior parte,
pela recuperação da saúde quando o organismo se desequilibra.

Um último texto, sobre algo que nos parece nem sempre lembrado, mas de total
relevância:

“Será preciso também transportar a filosofia para a medicina e a medicina para a


filosofia. O médico-filósofo é igual aos deuses. Não há nenhuma diferença entre a
filosofia e a medicina; tudo o que a primeira tem, na segunda se encontra:
altruísmo, reserva, pudor, modéstia, opinião, discernimento, tranqüilidade, firmeza
nos debates, decência, gravidade, conhecimento do que é útil e necessário para a
vida, rejeição de qualquer imoralidade, isenção de superstições, superioridade
divina.” (Hipócrates – “Do Decoro”)

GALENO
Cinco séculos separam Hipócrates de Claudius Galeno (130-200 DC), médico
grego que viveu a maior parte de sua vida em Roma, onde exerceu intensamente
suas atividades. E não é apenas o grande lapso de tempo que conta entre um e
outro: o mundo em que viveram era definitivamente diferente. Roma, como um
grande império, um conglomerado de povos e culturas distintas constituía-se como
uma “colcha de retalhos” mantida unida por um poder centralizador econômico e
militar. A Grécia, ao contrário, onde o conceito de Polis (a cidade-estado) definia
os seus limites e identidade próprias, constituía-se através de uma coerência
cultural ao mesmo tempo imanente e envolvente a todos os cidadãos. Sem a
pretensão de reduzir tudo a um determinismo político e econômico, podemos
afirmar que o mundo grego era o mundo do indivíduo (visto como algo único e
indivisível) enquanto o romano era o mundo de pessoas (persona) que tinham uma
função específica (pré-determinada) e definida em relação ao poder maior
emanado pelo estado.

Galeno foi durante algum tempo médico dos gladiadores, onde talvez tenha
adquirido grande parte de seus conhecimentos sobre anatomia humana (ao vivo),
obtendo enorme experiência sobre o tratamento cirúrgico de fraturas e ferimentos.
É atribuída a Galeno a autoria de mais de 300 livros, sendo grande parte sobre
anatomia e fisiologia do corpo humano e alguns sobre os tratados hipocráticos. Por
irônico que pareça Galeno utilizava-se de porcos e macacos em suas famosas
dissecações para demonstrar suas teorias sobre a anatomia humana. Chegou a
tornar-se médico do imperador Marco Aurélio o que o tornou ainda mais famoso e
enriquecido.

Existem fortes indícios que Galeno possuía uma religiosidade que o aproximava do
monoteísmo, considerando o corpo humano apenas como instrumento da alma,
sendo que todos os órgãos estariam constituídos de acordo com um plano geral
estabelecido por um ser supremo. Esse conceito talvez fosse uma derivação da
filosofia aristotélica. O que importa, porém é que isso valeu, durante toda a idade
média, como uma espécie de chancela por parte da Igreja Católica, sendo sua
obra considerada definitiva para o ensino e a prática da medicina por mais de 1300
anos. A autoridade de sua obra era tamanha que, quando uma observação direta
contrariava seus escritos, os fatos observados eram desconsiderados.

Hipócrates, influenciado pela filosofia de Empédocles, seu contemporâneo, via a


natureza composta por quatro elementos (água, fogo, terra e ar) definidos pela
mistura, duas a duas, das quatro propriedades básicas: seco ou úmido, frio ou
quente. Ele relacionou os elementos aos quatro humores do corpo humano
(sangue, bile negra, bile amarela e fleugma), determinando assim quatro
temperamentos segundo os quais respondemos às vicissitudes e aos fatores
climáticos causadores de doenças e, principalmente, aos nossos sentimentos.

As teorias de Galeno reuniam um misto de idéias filosóficas e a teoria platônica


dos três espíritos (pneumas) ou forças-mães: animal, vital e natural (localizados,
respectivamente, no cérebro, no coração e no fígado). O fígado, grande gerador de
sangue; o cérebro, sede do pensamento e da alma; o coração, órgão do calor e o
pulmão o do resfriamento. Além dos pneumas, considerava as forças secundárias:
atrativas, alterantes, expulsiva e retentiva. O sistema funcional do corpo humano
seria regido pelos 4 elementos (fogo, água, ar e terra) e pelos 4 humores (assim
como para Hipócrates). As doenças proviriam do desequilíbrio desta composição.
Ao contrário de Hipócrates, porém, o olhar galênico era o olhar a doença e as
formas terapêuticas e medicamentosas dos processos de adoecimento, vistas
como essencialmente externas ao ser humano.

Embora se considerasse seu discípulo, Galeno acabou por desenvolver um


sistema médico que, em princípio, se opõe a aquele preconizado por Hipócrates.
Galeno acreditava que, para se combater as doenças eram necessárias
substâncias ou compostos que se confrontassem diretamente aos sinais e
sintomas das enfermidades. Na verdade sua proposta básica era marcada pela
prevalência do princípio dos contrários para a cura das enfermidades. Mas, como
veremos a seguir, não foi essa a mudança de postura fundamental levada a efeito
por Galeno. O que irá marcar indelevelmente todo o processo do saber médico é o
deslocamento do foco da observação: do doente para a doença; do geral para o
particular; da síntese para a análise, representando o início do processo de
fragmentação (vista galenicamente como necessária) desse saber.

A doença, segundo Galeno, ocorreria se houvesse um desequilíbrio na proporção


de um ou mais humores, por falta ou excesso. Por esse raciocínio as causas da
doença seriam vistas como endógenas, ou seja, estariam dentro do próprio
homem, em sua constituição física ou em seus hábitos de vida. Esse ponto tem
respaldo nos conceitos hipocráticos.

Para se obter a cura seria necessário re-equilibrar o organismo, por exemplo,


retirando o humor em excesso ou combatendo sua qualidade com um
medicamento que possuísse a qualidade oposta. Por exemplo, a febre seria um
sintoma de desequilíbrio, indicando excesso da qualidade quente; logo, o
tratamento consistia em regular essa qualidade administrando o seu oposto, o frio.

Para Galeno as doenças eram classificadas como frias, quentes, secas e úmidas,
sendo os agentes medicinais relacionados a idênticas categorias e a graus
diferenciados. Exemplificando: um medicamento poderia ser frio em primeiro grau
e seco em quarto. Assim, empregando um medicamento quente para uma doença
fria, ele procederia segundo o contrarium. Mas há menções em Galeno sobre o
símile, onde o conceito é empregado em geral associado à digestão, no sentido de
que o alimento se tornaria semelhante aos tecidos pré-existentes. O significado
disso é que a qualidade (temperamento) do medicamento (ou alimento) deve
corresponder em semelhança à qualidade da enfermidade e também de seus
produtos (sintomas), embora eles não precisem ser idênticos.

Mas nos parece evidente que calor, frio, seco e úmido são propriedades e
qualidades meramente hipotéticas atribuídas a enfermidades e medicamentos e
que, portanto, seu contrarium ou o símile (quando empregados) tem um caráter
puramente teórico. E esta nos parece ser uma diferença fundamental entre Galeno
e Hipócrates: não a oposição entre o símile e o contrarium (oposição que não
existe em Hipócrates), mas sim a sua teorização. O eixo fundamental já havia sido
alterado: não mais o doente com sua individualidade (aquilo que não pode ser
dividido), mas sim a doença enquanto particularidade, portanto passível de ser
abarcada pela teoria (qualquer que fosse ela), enquanto modelo de explicação.

Galeno acreditava que a observação empírica era essencial ao estudo da saúde


humana, e para ele a anatomia era a chave. "A menos que se saiba como um
órgão funciona", ensinava ele, "não se pode nem reconhecer sua condição
saudável nem aliviar seus males”. Galeno tomou como seu próprio ponto de
partida o ensinamento de Hipócrates de que o organismo individual é uma unidade
que reflete a unidade da Natureza (“Physis”), da qual ele é uma parte. Tanto a
saúde como a doença, assim como qualquer condição determinável no organismo,
devem ser entendidas com referência àquela unidade, especialmente se alguém
procura fundir a diagnose, a prognose e a terapia. A fisiologia seria, portanto, o
estudo da razão e causalidade na Natureza. Para Galeno, a fisiologia inclui grande
parcela de física e química, elas mesmas consideradas como o estudo dos
processos inteligentes e, portanto, inteligíveis da Natureza.

Para Galeno a observação clínica baseada em detalhado conhecimento anatômico


é crítica para a diagnose de qualquer doença ou desequilíbrio no sistema orgânico.
Se o conhecimento médico há de progredir, contudo, os detalhes de casos
específicos têm de ser redutíveis á generalização. Galeno preferiu o poder de
dedução às incertezas do método indutivo, de modo que tentava elaborar
conclusões genéricas a partir das observações a fim de deduzir uma teoria prática
da doença. Seus estudos levaram-no a aceitar duas posições, que ele
intermitentemente tentou conciliar. Em primeiro lugar, tomando a disfunção
orgânica e a doença como fenômenos que não eram radicalmente distintos em
natureza, mas sim diferentes pontos no espectro da doença, ele perpetuou a teoria
Hipocrática dos humores, como já descrevemos anteriormente. A tentativa de
restaurar o equilíbrio dos quatro humores, no entanto, levou Galeno a procurar a
solução precípua de tudo nas substâncias curativas.

Em segundo lugar, porém, com Galeno podemos entrever a separação entre arte e
ciência, como que exigida pela sua maneira de praticar a medicina, separação esta
que se processará, cada vez mais nitidamente, no pensamento ocidental. A prática
da medicina ocidental foi sendo paulatinamente reduzida à técnica - tal como a
conhecemos hoje em dia - levando em consideração o conhecimento das doenças
como foco primordial para o ato, e não mais a arte de curar doentes. Esta arte, no
sentido hipocrático, quando bem exercitada e valorizada, poderia se constituir num
instrumento de percepção e apreensão do ser vivo de maneira sintética; num
desvelar do indivíduo tal como ele se apresenta singular e integralmente. Isto,
porém, implica num compartilhar entre médico e paciente de sensações e
significados que compõem os aspectos simbólicos e mesmo psicológicos do ser
humano. Com Galeno, a nosso ver, é isso o que começa a se perder.

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