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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

PUC - SP

Luciana Costa Lima Thomaz

Marcel Martiny: eugenia e biotipologia na França do século XX

MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA

SÃO PAULO

2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC - SP

Luciana Costa Lima Thomaz

Marcel Martiny: eugenia e biotipologia na França do século XX

MESTRADO EM HISTÓRIA DA CIÊNCIA

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para obtenção do título de Mestre
em História da Ciência sob a orientação da Profa.
Doutora Ana Maria Alfonso-Goldfarb

SÃO PAULO

2011
Banca Examinadora

__________________________

__________________________  

__________________________
Autorizo, exclusivamente para fins acadêmicos e científicos, a reprodução
total ou parcial desta dissertação por processos fotocopiadores ou eletrônicos.

Ass.:_____________________________________________

Local e data:_______________________________________

Luciana Costa Lima Thomaz

luc_thomaz@hotmail.com
AGRADECIMENTOS

Agradeço à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

(CAPES) pela bolsa concedida que tornou possível a realização desta pesquisa.

Agradeço à professora Dra. Ana Maria Alfonso-Goldfarb por todo o apoio

dado a mim nesta jornada. Suas palavras de incentivo foram determinantes neste

período.

À professora Silvia I. Waisse, a minha gratidão eterna pelo suporte e pela

orientação aos meus passos durante todo o período desta pesquisa: desde seu

esboço mais precoce até a sua conclusão final. Muito obrigada hoje e sempre.

Agradeço especialmente ao Rodrigo, Sofia e Valdete pela paciência e amor.

Sem vocês eu não teria conseguido.


RESUMO

A medicina tradicionalmente vigente no Ocidente se baseava na classificação


da heterogeneidade humana em diversos tipologias (compleições). Com a
formulação da ciência moderna, gradualmente, a base da medicina passou a focar
os fenômenos físicos e químicos que ocorrem na matéria viva. Assim, a prática
clínica passa a depender do diagnóstico de entidades nosológicas, classificadas
segundo seu mecanismo etiopatogênico, por sua vez, dependente de mecanismos
biomoleculares.
No entanto, nas primeiras décadas do século XX acontece uma explosão de
classificações tipológicas numa variedade de contextos – antropologia, criminologia,
psicologia, pedagogia, etc. – incluindo a medicina. Para abordar esse fenômeno,
focou-se as teorias que afirmavam uma relação intrínseca entre as tipologias
humanas e os folhetos embrionários, em particular, a obra de Marcel Martiny (1897-
1982).
A análise realizada em três esferas superpostas, levando em conta aspectos
histórico-sociais, epistemológicos e historiográficos, permitiu identificar fortes
componentes eugenistas nas biotipologias desenvolvidas na primeira metade do
séculos XX, dentro do chamado “holismo médico”. Esse é também o pano de fundo
do trabalho de Martiny, que utiliza como método, basicamente, medições
antropométricas, cuja vinculação aos fenômenos fisiológicos e biomoleculares é
realizada de maneira puramente analógica.
Depois da Segunda Guerra Mundial, a teoria das biotipologias foi depurada
de seus elementos eugenistas, sua falta de fundamentação empírica foi omitida e,
apesar de todas suas contradições, continua a ser apresentada como “ciência
provada” em diversos contextos, especialmente, nas abordagens médicas holistas.

Palavras-chave: História da ciência; História da medicina; Século XX; Holismo


médico; Biotipologia; Eugenia; Marcel Martiny
ABSTRACT

The traditional approach to medicine in the West was grounded on the


classification of the endless human diversity in classes (complexions). With the rise
of modern science, the focus of medicine gradually shifted to the physical and
chemical processes proper to living matter. Consequently, the practice of medicine
became dependent on the diagnosis of clinical entities, which were classified
according to their etiopathogenic mechanisms, in turn dependent of biomolecular
phenomena.
Despite this mainstream direction, countless typological classifications burst
out in the first decades of the 20th century in a wide range of contexts – anthropology,
criminology, psychology, education, etc. – including medicine. To understand this
phenomenon, this study focused on biotypological theories grounded on the
assertion that there is an intrinsic relationship between human types and
embryological layers, the work by Marcel Martiny (1897-1982) in particular.
Analysis carried out within three overlapping spheres addressing socio-
historical, epistemological and historiographical aspects allowed identifying strong
eugenic element in biotypological theory as formulated in the first half of the 20th
century within the context known as “medical Holism”. This was also the background
for Martiny, whose experimental work is restricted to anthropometric measurements
that then were related with physiological and biomolecular phenomena exclusively
by way of analogy.
After World War I biotypological theory was depurated from all eugenic
elements, whereas its lack of any empirical foundation was neglected and despite its
contradictions, it is discussed even in our own days as if it were sound science.

Keywords: History of science; History of medicine; 20th century; Medical Holism;


Biotypology; Eugenics; Marcel Martiny
SUMÁRIO

Introdução............................................................................................................... p.01

1. Capítulo 1: Da complexio à biotipologia: o terreno individual em medicina p.06

1.1 A teoria tradicional dos temperamentos............................................................. p.06

1.2 Surgimento da medicina moderna...................................................................... p.10

1.3 Abordagens tipológicas e funcionamento neuropsíquico................................... p.12

1.4 Tipologias e eugenia.......................................................................................... p.17

1.5 A eugenia na França.......................................................................................... p.27

1.6 Movimentos holistas na medicina francesa........................................................ p.33

2. Capítulo 2: Martiny: neo-hipocratismo, eugenia e biotipologia..................... p.38

2.1 Análise do Essai de biotypologie........................................................................ p.42

2.2 Folhetos embrionários e biotipologia.................................................................. p.46

2.3 Aplicações da biotipologia.................................................................................. p.53


2.3.1 Na patologia.................................................................................................... p.53
2.3.2 Na psiquiatria.................................................................................................. p.57
2.3.3 Na terapêutica e na toxicologia....................................................................... p.58
2.3.4 Na pedagogia e nas profissões....................................................................... p.59
2.3.5 Na educação física e nos esportes................................................................. p.61

2.4 Hereges entre os ortodoxos............................................................................... p.62

3. Conclusões: Biotipologia e ciência.................................................................. p.69

4. Bibliografia.......................................................................................................... p.72
ÍNDICE DE TABELAS

 
 
Tabela 1: Autores de classificações biotipológicas ………………………………. p.19
 
Tabela 2: Correlação entre biotipos e folhetos embrionários……………………. p.48
   
 
 
 
 
 
 
 
ÍNDICE DE FIGURAS

Figura 1: Frontispício de The Physiognomical System of Drs. Gall and Spurzheim, p.14
publicado em Londres, em 1815, por Spurzheim.

Figura 2. Exemplo de instrumento (crâniometro) usado por Paul Broca em seus p.15
estudos de craniologia.

Figura 3. Frontispício de Criminal Man (1887) de Lombroso. p.16

Figura 4. Os biótipos humanos de acordo com Sheldon. p.20

Figura 5. Pende em uniforme fascista ao lado de Mussolini. p.25

Figura 6. Capa de La difesa della razza, publicação oficial do movimento fascista p.25
italiano.

Figura 7: Alexis Carrel e Charles Lindbergh no Rockefeller Institute, 1935. p.33

Figura 8: Biótipos de acordo com Martiny. p.48


 
INTRODUÇÃO

A medicina ocidental dependeu da classificação da heterogeneidade

humana em grupos, fossem eles chamados de compleições, constituições,

temperamentos, entre outros,1 desde a Antigüidade clássica até a primeira

modernidade, quando se gestou o que se conhece como “ciência moderna”.

Com a formulação da ciência moderna, gradualmente, a base da

medicina passou a focar os fenômenos físicos e químicos que ocorrem na

matéria viva. Hoje é fato de conhecimento comum que a medicina depende do

diagnóstico de entidades nosológicas, classificadas segundo seu mecanismo

etiopatogênico (moléstias inflamatórias, degenerativas, neoplásicas,

congênitas, etc.), 2 que por sua vez, são dependentes de mecanismos

biomoleculares. Estes últimos são, precisamente, o alvo da terapêutica. 3

Assim, consequentemente, não pode surpreender o fato de que o estudo das

constituições e temperamentos individuais não forme mais parte do currículo

acadêmico das faculdades de medicina no Ocidente.

Nesse panorama, no entanto, há um fenômeno altamente dissonante:

uma análise das abordagens médicas nas primeiras décadas do século XX

mostra uma verdadeira explosão de classificações tipológicas numa variedade

                                                                                                               
1
Vide Capítulo 1 da presente obra.
2
Robbins et al., Patologia Estrutural e Funcional, 1.
3
Goodman, & Gilman, Pharmacological Basis of Therapeutics, 3.

  1  
de contextos – antropologia, criminologia, psicologia, medicina, pedagogia,

entre vários outros.4

Retomando, com poucas palavras: se a via privilegiada na teoria e na

prática médicas levou, inexoravelmente, a partir da primeira modernidade, a

explicar os fenômenos fisiológicos, patológicos e terapêuticos nos termos de

interações moleculares, o que poderia representar esse curioso episódio

centrado, novamente, na ideia de classificar a infindável diversidade humana

em categorias com valor heurístico?

Esse foi o cerne inicial do qual partiu a presente pesquisa, aliado ao

fato de que as chamadas “medicinas alternativas” hodiernas, em algumas de

suas variantes, tendem a não dispensar o uso teórico e prático das tipologias

humanas.5 Assim, a primeira etapa da pesquisa consistiu num mapeamento

das concepções tipológicas nas primeiras décadas do século XX. Visto que

estas abordagens mostraram-se virtualmente infindáveis, foi necessário limitá-

las com um recorte bem claro. Assim foram enfocadas as teorias que

afirmavam uma relação intrínseca entre as tipologias humanas e os folhetos

embrionários.6

                                                                                                               
4
Vide Capítulo 1 desta obra.
5
Assim por exemplo, na Medicina Tradicional Chinesa/acupuntura, tem-se os tipos Yin e
Yang, primordialmente, vide Yamamura, Arte de inserir. Na homeopatia, são descritos
diversos sistemas de tipologia, vide por exemplo, Franco Constituição e Temperamento.
Essas três abordagens médicas foram classificadas, junto à medicina convencional, pela
Organização Mundial da Saúde como racionalidades médicas completas, vide Salles, “Perfil
do Médico Homeopata”.
6
Vale a pena lembrar a importância da embriologia, aliada à genética, nas primeiras décadas
do século XX; vide, por exemplo, Robert, Embryology, Epigenesis, and Evolution, 58.

  2  
Entre os estudiosos que afirmaram essa relação, inclui-se Marcel

Martiny (1897-1982), médico francês que, senão o formulador, foi um grande

difusor dessa hipótese. De fato, em diversos círculos contemporâneos é

citado como uma das grandes autoridades no campo das tipologias

humanas.7 Por outro lado, são virtualmente inexistentes os estudos sobre sua

obra.

A etapa seguinte da pesquisa consistiu em contextualizar de forma

histórica e científica Martiny e sua obra. Como resultado, uma rede

complexa de conexões surgiu, trazendo à tona elementos da eugenia, que

anteriormente não pareciam ser claramente pertinentes.

A pesquisa então, nos conduziu do ambiente médico-científico francês

das primeiras décadas do século XX, preocupado com os possíveis

reducionismos resultantes dos avanços nas ciências da matéria, aos círculos

de eugenistas europeus, notadamente o francês Alexis Carrel (1873-1944) e

o italiano Nicola Pende (1880-1970).

Cabe lembrar que, na primeira metade do século XX, a França

atravessou um período politico turbulento, devido às duas Guerras Mundiais.

Em 1940, ocorreu a ocupação alemã de Paris, provocando uma série de

alterações no país. A França foi então dividida em duas grandes áreas, uma

dominada pelos alemães (Norte, Ocidental e Costa Atlântica) e outra pelo

governo chamado de “França de Vichy“ (Régime de Vichy), liderado por


                                                                                                               
7
Vide, por exemplo, Kossak-Romanach, Homeopatia em 1000 Conceitos; Franco; Turinese,
Modelli psicosomatici; Sagrado, Manual de técnicas somatotipológicas.

  3  
Philippe Pétain, também sob influência alemã. Esse período durou até 1944,

com a Batalha da Normandia e a libertação de Paris.8

Nesse contexto, a eugenia apareceu como uma justificativa científica

capaz de embasar as diversas questões raciais e nacionalistas discutidas nos

países europeus durante o século XX.

A cultura do modelo de higiene racial permeou a ciência, visando a

criação de uma raça humana aperfeiçoada livre de patologias indesejáveis,

principalmente mentais. E sobretudo, legitimou o extermínio de milhões de

indivíduos, sob a alegação da “pureza” das raças, de maneira extensiva nos

Estados Unidos e em toda a Europa, principalmente na Alemanha.

Os institutos de pesquisa em eugenia multiplicaram-se pela Europa a

partir do início do século XX. Os Institutos Kaiser Wilhelm, na Alemanha,

receberam apoio financeiro, principalmente do Instituto Rockefeller, dos

Estados Unidos, para o desenvolvimento de pesquisas em eugenia e higiene

racial, mesmo durante o período de intensa recessão americana após 1929.9

Obras com aparente interesse científico continham evidentes

mensagens eugenistas, no que dizia respeito à biometria de indivíduos

provenientes de povos considerados inferiores. Por exemplo, a biometria

                                                                                                               
8
Berstein, & Milza, Histoire de la France, 325.
9
Black, Guerra contra os Fracos, 456.

  4  
craniana de africanos foi comparada a de caucasianos, como “demonstração”

da superioridade dos indivíduos europeus.10

Nosso segundo passo será uma análise detalhada da obra principal de

Martiny, entitulada Ensaio sobre as Biotipologias Humanas, desenvolvida no

segundo capítulo. Essa análise visa identificar a fundamentação teórica e

experimental das teses do autor, sua coerência e consistência de

argumentação, entre outros parâmetros padrões da análise epistemológica.

A metodologia utilizada neste estudo corresponde à desenvolvida pelos

pesquisadores do Centro Simão Mathias de História da Ciência (CESIMA) que

brevemente, constrói o objeto de estudo na intersecção de três

esferas. 11 12 Sejam elas: ciência e sociedade, ou a inserção no contexto

histórico-social; a epistemológica, ou análise epistêmica dos documentos e

fontes; e a última, análise historiográfica, onde a redefinição e ampliação dos

objetos da história da ciência são abordados levando-se em consideração as

variadas noções de ciência que surgiram.

                                                                                                               
10
Gould, Falsa Medida do Homem, 113.
11  Alfonso-Goldfarb, “Centenário Simão Mathias”, 5.  

  5  
CAPÍTULO 1

DA COMPLEXIO À BIOTIPOLOGIA:

O TERRENO INDIVIDUAL EM MEDICINA

1.1 A teoria tradicional dos temperamentos

Desde a antiguidade clássica até o segundo quartel do século XVIII, a

teoria e a prática medicinais no Ocidente foram norteadas pelo que se

conhece como “doutrina humoral”. O documento textual que a nós chegou e

que é considerado o mais antigo a atestar a doutrina é a obra “Da natureza do

homem”, pertencente ao Corpus Hippocraticum.12

Um “humor” (no grego, kymos, literalmente, “suco”) consistia na

associação, em proporções diversas, dos quatro elementos descritos por

Empédocles13 - água, terra, ar e fogo – com suas respectivas qualidades,

umidade e frieza, secura e frieza, umidade e calor, e secura e calor. Embora o

número e características dos humores fossem abordados de modos diferentes

nos diversos escritos hipocráticos, a fórmula mais conhecida é a de quatro

humores: sangue (quente e úmido), fleuma ou pituita (frio e úmido), bile

amarela (quente e seco) e bile preta ou melancolia (frio e seco).14

                                                                                                               
12  
O Corpus Hippocraticum é composto por 53 escritos de origem desconhecida que
começaram a ser reunidos em Alexandria e foram editados pelo médico e helenista Émile
Littré em 1839, vide Laín Entralgo, Historia de la Medicina, 60. “Da Natureza do Homem”
(Peri physios anthropoy) é atribuído ao próprio Hipócrates ou ao seu genro, Pólibo.  
13
Sobre as possíveis origens da noção de elemento e humor em Empédocles, vide Klibansky
et al., Saturn and Melancoly, 5-6; Barnes, Presocratic Philosophers, 242 et seq.
14
Para a elaboração desta breve resenha sobre a tradição da medicina humoral, utilizamos
Klibansky et al.; Barnes; Laín Entralgo, Historia de la Medicina, e Agustín Albarracín, “El
fármaco en el mundo antiguo”.

  6  
Nesse contexto, concebeu-se a doença como o predomínio de alguma

das qualidades, desequilíbrio na composição dos elementos ou, mais

frequente e longamente na medicina ocidental, como a má mistura (dyskrasia)

dos humores. Para restaurar a mistura apropriada (eukrasia), visava-se o

“cozimento” e eliminação do(s) humor(es) em excesso ou alterado(s), através

de recursos terapêuticos – dieta, medicamentos, procedimentos externos –

com as qualidades opostas às da doença em questão.

Por outro lado, os humores também passaram a definir uma tipologia –

os temperamentos ou compleições - idéia que, transmitida através de Galeno

e com a construção do que se denominou Galenismo,15 perdurou virtualmente

inalterada ao longo da Idade Média e do Renascimento. 16 O predomínio

relativo de um dos humores definia um tipo físico e psíquico – sanguíneo,

fleumático, colérico ou melancólico - com as conseguintes correlações

referidas às predisposições mórbidas e à relação com os chamados “non

naturales” – ar, alimento e bebida, movimento e repouso, sono e vigília,

secreções e excreções, e paixões da alma.17

Vale dizer, que o que originalmente havia sido considerado como sinais

de doença passou, gradualmente, a ser enxergado como uma tipologia das

                                                                                                               
15
Galeno de Pérgamo (131-200/203 d. C) exerceu a medicina, de início, junto aos
gladiadores no ginásio pergameno e aos 33 anos mudou-se para Roma, onde seu prestígio
profissional se consagraria. Foi médico da aristocracia e de vários imperadores; vide Laín
Entralgo, Historia de la Medicina, 65. Sobre a noção e a história do Galenismo, vide Temkin,
Galenism: Rise and Decline; García Ballester, Galen and Galenism.
16
Para a elaboração dos humores e temperamentos por Galeno, vide “On the Humors” (Peri
kymon) e “Mixtures” (Peri kraseyon).
17
Vide Jarcho, “Galen´s Six Non Naturals”.

  7  
18
disposições. O termo latino complexio foi utilizado para definir o

temperamento peculiar de cada indivíduo e de cada parte dos mesmos, de

acordo com a índole de sua crase humoral e constituiu a espinha dorsal das

discussões sobre as causas, mecanismos, prognóstico e tratamento dos

pacientes referidos nos consilia medievais.19

Fato importante nesse processo foi a introdução do Galenismo no

Ocidente latino a partir do final do século XI. Um dos primeiros textos

traduzidos por Constantino, o Africano, (ca.1020-1087) foi Isagoge Ioannitus,

uma introdução ao Ars medica (Tekhné iatriké, deformado em Tegni) de

Galeno, atribuído a Hunain ibn Ishaq (809-873) e que foi fundamental para a

medicina medieval latina.

No texto mencionado acima, a medicina foi dividida em teórica e prática

e a primeira, subdividida em “consideração dos naturais, dos não naturais e

dos contranaturais; disso dependem o conhecimento da saúde e da doença”20.

Os “naturais” são “aquelas coisas de acordo com a natureza” e são sete: os

quatro elementos (com suas respectivas qualidades); as qualidades (nove: as

quatro simples e as quatro duplas, e a nona “igual”, i.e. mistura equilibrada

das quatro simples); os quatro humores (com suas qualidades respectivas);

os membros ou órgãos; as três faculdades com seus espíritos (naturais, vitais

e animais); e as operações, também classificadas de acordo com as

                                                                                                               
18
Klibansky et al., 12. Todos os negritos nesta obra são nossos, exceto quando
explicitamente indicado.
19
Laín Entralgo, História Clínica, 67-71. Os consilia (singular, consilium, conselho)
constituíram o gênero privilegiado, entre os séculos XIII a XVI, de relato da experiência
prática dos médicos clínicos.
20
“Isagoge Ioannitus”, traduzido em Withington, Medical History, apêndice IV, 387.

  8  
qualidades (apetite: quente e seco; digestão: quente e úmido; retenção: frio e

seco; expulsão: frio e úmido).21 Da combinação desses fatores dependia a

suscetibilidade tanto às doenças (“coisas contranaturais”) quanto às “coisas

não naturais”. Além do mais, as doenças das partes simples também se

subdividiam de acordo com as qualidades, em quatro simples e quatro

compostas.22

Voltam a se encontrar, virtualmente, os mesmos conceitos na

elaboração feita por Daniel Sennert (1572-1637), considerado o último grande

representante desta tradição,23 em suas Instituições Médicas de 1656.24 Outro

exemplo surpreendente é a longa exposição dos temperamentos tradicionais

na secção “Semiótica” das Instituições Médicas de Hermann Boerhaave

(1668-1738),25 o “mestre da Europa inteira”26, porquanto este, como resultado

da emergência da ciência moderna, já havia incorporado na parte teórica da

medicina as novas noções mecânicas.27

                                                                                                               
21
Ibid, 387-8.
22
Ibid, 391.
23
Maclean, Logic, Signs and Nature, 34.
24
Daniel Sennert, The Institutions.
25
Boerhaave, Academical Lectures. Observe-se que a edição aqui utilizada data de 1751.
26
Haller, Bibliotheca Anatomica, I: 756.
27
Em uma fase posterior, reinterpretará a crase humoral – propriae commixtio ou
temperamento – nos termos das partes sólidas e líquidas do organismo, que formam o
fundamento de sua fisiologia. Assim, cabe destacar o esforço que Boerhaave faz para
adaptar a noção de “temperamento” aos novos ventos que assopravam na medicina do
Setecentos; vide “Introduction à la pratique clínique”.

  9  
1.2 Surgimento da medicina moderna

O Galenismo entrou num processo gradual e prolongado de queda a

partir dos séculos XVI e XVII. Entre os possíveis motivos aduzidos, incluem-se

os seguintes: 28

1) A revisão humanista e renascentista dos textos originais de Galeno

que estimulou diversos estudiosos a verificar os conceitos lá expostos,

levando a notáveis dissensões, como as célebres instâncias da anatomia de

Andreas Vesalius (1514-1564) e da fisiologia de William Harvey (1578-1657),

ruindo a autoridade absoluta e consagrada do médico romano;

2) A emergência da medicina química, com Paracelso (1493-1541), Jan

Baptist Van Helmont (1579-1644) e a chamada “escola iatroquímica”;

3) A aplicação da nova mecânica em medicina, levando à chamada

“iatromecânica”;

4) A mensuração instrumental da temperatura corporal, iniciada por

Sanctorius (1561-1636), que alterou radicalmente o estatuto ontológico das

qualidades galênicas;

5) A queda paralela da cosmologia aristotélica, na qual se

fundamentava grande parte das doutrinas galenistas;


                                                                                                               
28
Esses e outros motivos são discutidos por Temkin, cap. 4; e por Waisse-Priven,
Hahnemann: Médico de Seu Tempo, capítulo 1, secção “A Medicina do Século XVIII”.

  10  
6) A introdução de fármacos trazidos às Américas, cuja ação desafiava

frontalmente a interpretação tradicional da terapêutica medicamentosa

galênica.

Paralelamente, foram tomando forma as bases do que conhecemos

como “medicina moderna”. Esse foi um processo tão gradual quanto a queda

do Galenismo e extremamente complexo. No entanto, pode-se afirmar que,

dentre as várias propostas formuladas nos séculos XVIII e XIX, que

preencheram o vazio deixado pela derrubada do Galenismo,29 foi privilegiada

aquela que visou analisar a complexidade humana a fim de assimilar os

mecanismos fisiológicos a processos físicos e químicos. Se a Patologia foi o

reverso da Fisiologia e a Terapêutica a restauração da Fisiologia, então o

caminho lógico foi concentrar todo esforço na compreensão do funcionamento

orgânico.

De Albrecht von Haller (1708-1777) a Matthias Schleiden (1804-1881),

Theodor Schwann (1810-1882), Justus von Liebig (1803-1873) e Carl Ludwig

(1816-1895), nos territórios germânicos, e de François Magendie (1753-1855)

a Claude Bernard (1813-1878), na França – a Fisiologia adquiriu um marcado


30
viés experimental, matemático, físico e químico. Nessa visão, a

complexidade humana foi reduzida a seus componentes materiais e, desde

então, a medicina prevalente no Ocidente baseou a procura dos meios

terapêuticos em mecanismos biomoleculares cada vez mais sofisticados.


                                                                                                               
29
Ibid, 45.
30
Sobre esses desenvolvimentos, vide Hall, Ideas on Life and Matter; Rothschuh, History of
Physiology; e os estudos mais focalizados de Russo, “Irritabilidade e Sensibilidade”; Padula,
“Claude Bernard”, e Waisse-Priven, d & D: duplo Dilema.

  11  
Nesse ínterim, a clínica médica não mudou seu modus operandi básico,

a saber, identificar através dos sinais e sintomas manifestos pelo doente a

possível alteração interna. No entanto, foram desenvolvidos novos e mais

efetivos procedimentos semiológicos, como a percussão, por Leopold

Auenbrugger (1722-1809), membro da chamada “Primeira Escola de Viena”, e

a auscultação instrumental, por René Laennec (1781-1826), o célebre clínico

francês. 31 Concomitantemente, o desenvolvimento vertiginoso da pesquisa

anátomo- e fisiopatológica foi permitindo realizar correlações cada vez mais

consistentes entre os achados semiológicos e seus possíveis mecanismos

orgânicos subjacentes.32

A medicina moderna passou a se basear na procura dos mecanismos

biomoleculares envolvidos na produção de doenças a fim de neutralizá-los

também no nível biomolecular. Nesse nível de abstração já não há lugar para

“idiossincrasias” – ora individuais, ora tipológicas. Essas ficaram como o nicho

próprio das abordagens médicas marginalizadas como “alternativas”.

1.3 Abordagens tipológicas e funcionamento neuropsíquico

Apesar das tendências que prevaleceram, no sentido de se considerar

a doença em termos físicos e químicos, os esforços por definir as populações

humanas através de critérios tipológicos não desapareceram completamente,

                                                                                                               
31
Laín Entralgo, Historia de la Medicina, 344.
32
Este tipo de desenvolvimentos é o que fez Michel Foucault concluir que foi então que
“nasceu a clínica”, vide Nascimento da Clínica.

  12  
mas, ao contrário, tirou-se proveito dos métodos estatísticos que estavam
33
sendo desenvolvidos. Em particular, o foco dirigiu-se a aspectos

neurológicos, psicológicos e psiquiátricos.34

Assim devem ser mencionados, em primeiro lugar, os trabalhos do

médico germânico Franz Joseph Gall (1758-1828), que procurou relacionar

medidas do crânio com aspectos intelectuais e caracterológicos dos indivíduos

– Frenologia (Figura 1).35

                                                                                                               
33
Vide Murphy, “Medical Knowledge”.
34
Uma variante da recusa a reduzir o funcionamento neuropsíquico a processos orgânicos
físicos e químicos na virada do século XIX foi abordada, no contexto alemão, por Harrington
em Reenchanted Science.
35
Young, “Franz Joseph Gall”, 250.

  13  
Figura 1. Frontispício de The Physiognomical System of Drs. Gall and
Spurzheim, publicado em Londres, em 1815, por Spurzheim.36

Da mesma maneira, Paul Broca (1824-1880) procurou relacionar a

inteligência e a suposta superioridade de algumas raças sobre outras, através

do peso e do volume do cérebro. Para tanto, realizou mensurações do crânio

e pesagens de cérebros. Esse estudo ficou conhecido como “Craniologia”

(Figura 2). Chegou também a desenvolver 27 instrumentos, com a finalidade

                                                                                                               
36
John van Wyhe, The History of Phrenology on the Web,
http://www.historyofphrenology.org.uk/images.html Acesso em 02/06/11.

  14  
de obter maior precisão nas medidas, ajudando, inclusive, a padronizar

muitos métodos para este tipo de estudo.37

Figura 2. Exemplo de instrumento (craniómetro) usado por Paul Broca em


seus estudos de craniologia.38

A este contexto associam-se os trabalhos da chamada antropologia

criminal de Cesare Lombroso (1835-1909). O autor postulou que os

criminosos teriam características físicas semelhantes àquelas do “homem

primitivo” – posto que os atos criminais estariam relacionados a um estado

selvagem, primitivo de existência. Assim, haveria sinais físicos indicativos de

atavismo (reaparecimento de caracteres presentes em antepassados),

chamados de “estigmas de criminalidade”, como ilustrado na Figura 3. Esses

incluíam, entre outros, assimetrias no crânio e na face, a presença de volume

                                                                                                               
37
Clarke, “Paul Broca”, 478.
38
Alex Peck: Antique Scientifica
http://antiquescientifica.com/craniometer_Paul_Broca_Matthieu_illustration.jpg Acesso
18/07/11.

  15  
craniano reduzido e canhotismo que denotariam comportamentos como

impulsividade, vaidade, preguiça, covardia e crueldade.39

Figura 3. Frontispício de Criminal Man (1887) de Lombroso.40

Com leituras de cunho psicológico e psiquiátrico foram desenvolvidas

tipologias por Carl G. Jung (1875-1961) e Ernst Kretschmer (1888-1964).

Jung publicou o seu Psychologische Typen (Tipos Psicológicos) em 1921,

onde classificou os indivíduos de acordo com os tipos primários de funções

psicológicas perceptivas (sensação e intuição) e judicativas (raciocínio e

sentimento), que por sua vez eram modificadas por dois tipos atitudinais

principais, extroversão e introversão. Jung postulou que a função dominante

                                                                                                               
39
Gibson, Born to Crime, 641.
40
Roy Rozenzweig Center for History and New Media,
http://chnm.gmu.edu/courses/magic/police/policework.html Acesso em 03/06/11.

  16  
caracterizava a consciência, enquanto que seu oposto era recalcado e

caracterizava o inconsciente, resultando em oito tipos psicológicos.41

Kretschmer, por sua vez, abordou as possíveis correlações estatísticas

entre caracteres físicos e distúrbios físicos. 42 Assim, classificou os tipos

constitucionais mais frequentemente observados em: leptossômico (magro e

fraco), pícnico (robusto) e atlético (musculoso), cada um dos quais se

associando com determinados tipos psicológicos, respectivamente, o

esquizotímico, o ciclotímico e o viscoso ou o enequético, que, nas formas

extremas, evoluiriam para uma patologia psiquiátrica.43

1.4 Tipologias e eugenia

As considerações tecidas na secção anterior indicam um forte viés

eugênico na classificação moderna dos seres humanos em tipos. O termo

eugenia foi cunhado, em 1883, por Francis Galton (1822-1911) para nomear à

ciência que lidava com todas as influências que otimizavam as qualidades

inatas da raça e também com as que as desenvolvem para a máxima

vantagem.

                                                                                                               
41
A este respeito, vide Sharp, Personality Types.
42
Em relação com o que é discutido mais adiante neste capítulo, vale a pena observar que
Kretschmer assinou o juramento dos professores universitários de fidelidade a Hitler e não
combateu a política eugênica nazista. Vide Klee, Personenlexikon zum Dritten Reich, 339.
43
Jaspers, Psicopatologia Geral, 324.

  17  
A preocupação fundamental de Galton era com a possibilidade de que

os fenômenos associados à civilização humana viessem alterar os

mecanismos utilizados pela seleção natural de modo a permitir a reprodução

e a perpetuação de taras hereditárias que, assim, levariam à degeneração da

espécie. Ao contrário, a eugenia - que literalmente significa “bem nascido” ou

“nobre na hereditariedade” – permitiria dar "às raças mais adequadas ou

estirpes de sangue, uma melhor chance de prevalecer rapidamente sobre as

menos adequadas".44 Vivendo numa época na qual a genética era, grosso

modo, usada para o aprimoramento de plantas e animais, Galton perguntou-

se se não seria possível o mesmo tipo de manipulação na raça humana: “Não

poderiam os indesejáveis serem deixados de lado e os desejáveis

multiplicados?”, tomando o ser humano as rédeas de sua própria evolução.45

Karl Pearson (1857-1936), discípulo e sucessor de Galton, deu um viés

particular, matemático e estatístico, à eugenia, intimamente relacionado com

o surgimento das biotipologias nas primeiras décadas do século XX, a saber,

a biometria. Em 1901, juntamente com Walter F. R. Weldon (1860-1906) e

Galton fundaram a revista Biometrika, 46 um periódico que almejava estudar

as bases da estatística. Esse trio também fundou também o laboratório de

biometria do University College of London, dedicado às relações entre

variação e hereditariedade.47

                                                                                                               
44
Kevles, In the Name of Eugenics, 4.
45
Ibid, 5.
46
Em 1925, Pearson fundou a revista Annals of Eugenics, hoje Annals of Human Genetics.
47
Castañeda, “Testando uma Teoria”, 204-7.

  18  
A relação entre biometria e biotipologia foi imediata e, sendo

incontáveis os aspectos manifestos dos seres humanos, foram igualmente

inúmeras as classificações biotipológicas propostas. Martiny ressaltou as

desenvolvidas pelos seguintes autores (Tabela 1):

Tabela 1. Autores de classificações biotipológicas48

Rostan – Sigaud – Chaillon – Mac Auliffe – Lambert – Thooris –


Manonvrier – Allendy – Viard – Bourdel – Gorman – Lavater –Stahl – R.
Baron – Houssay – Girard – Bessonnet-Favre – Brétéché - Laignel-
Lavastine – di Giovanni – Viola – Pende - Kretschmer – Beneke – Kraus –
Bauer – Tandler – Martius – Martin – Rauthman – Grote – Roessic –
Jaensch – Stiller – Brandt – Borkardt – Brungsch – Naegeli – Boven –
Jung – Marañón – d’Obermer – Cawadias – Marinesco – Bottu – Bounak
– Charcow – Krylov – Saltikow – Nicolaiev – Ignalov – Nedrigaylov –
Techistiakov – Nikolski – Brentmann – Tchoutchouklao – Tschernorutsky –
Vienius – Makabov – Watagino – Tchelzowa – Stafko – Koldmaia – Mills –
Bean – Bryant – Draper – Pearl – Stokhardt – Sheldon – de Rocha Vaz –
Berardinelli – Rossi – Boccia

A relação entre biometria, biotipologia e eugenia é claramente ilustrada

pelo exemplo de William Herbert Sheldon (1898-1977), que realizou estudos

estatísticos formais sobre tipos humanos nos calouros das universidades de

elite da Ivy League dos Estados Unidos, entre as décadas de 1940 e 1960.49

                                                                                                               
48
Martiny, Essai de biotypologie, 24.
49
Vertinsky, “Physique as Destiny”, 294.

  19  
Os tipos físicos – baseados em medidas dos diâmetros e proporções

corporais e nas variações anatômicas da estrutura torácica e da coluna

vertebral – e temperamentais foram associados aos folhetos embrionários

(endoderme, mesoderme e ectoderme) e classificados em: 1) endomórficos,

brevilíneos, complacentes e psiquicamente tolerantes; 2) mesomórficos, de

constituição média, musculosos, e caracterizados pelo espírito de liderança; e

3) ectomórficos, longilíneos, com tendência à introspecção. Sua obra mais

famosa, Atlas of Man, publicada em 1954, apresenta centenas de fotografias

desses biótipos (Figura 4).

Figura 4. Os biótipos humanos de acordo com Sheldon.50

Endomórfico Mesomórfico Ectomórfico


Brevilíneo Mediano Longilíneo
Abdome Musculoso Membros longos
proeminente Espírito de liderança Introspecção
Complacência Lidera grupos Isola-se em grupos
psíquica
Mistura-se em
grupos

A polêmica quanto à definição de um objetivo educativo para os

trabalhos de Sheldon para o conhecimento da somatotípia ou se, ao contrário,

seriam puramente racistas persiste até a atualidade. A controvérsia parece


                                                                                                               
50
Sheldon, Atlas of Man.

  20  
ainda mais conflituosa, visto que, os arquivos que foram descobertos na

década de 1970 contendo milhares de fotografias foram lacrados pelo

governo dos EUA. Outras tantas foram queimadas pelas universidades

envolvidas e a parte restante foi transferida ao Smithsonian Institute e

destruída entre 1995 e 2001.

Devido a sua imensa influência sobre os trabalhos de Martiny e por ter

sido o criador do termo “biotipologia”, devemos deter-nos, de modo mais

aprofundado nas atividade de Nicola Pende (1880-1970), membro do que se

conheceu como “escola constitucionalista italiana”, baseada em estudos

endocrinológicos.

A origem desse movimento pode ser identificada nos trabalhos de

Achille di Giovanni (1838-1916), professor na universidade de Pádua, que

abordou o problema da doença sob a ótica da teoria da evolução. Assim,

compreendia as variações individuais como o resultado de modalidades da

evolução ontogenética dos sujeitos. Enxergando na morfologia individual o

que chamava de “erros evolutivos” (por excesso ou por defeito), realizou uma

tipologia genética e clínica, baseada na noção de terreno mórbido. Essa

tipologia é, essencialmente, anatômica, baseada na desproporção (por

excesso ou por defeito) das diferentes partes do corpo e, para tanto, utiliza a

antropometria. Desse modo, definiu três “combinações morfológicas”, por

comparação a uma combinação “ideal abstrata”51.

                                                                                                               
51
Sagrado, 14.

  21  
De acordo com Maria V. Sagrado, é esse uso da antropometria o que

distingue, fundamentalmente, a escola constitucionalista italiana da francesa52

e claramente, também o que despertou o interesse de Martiny por essa via de

pesquisa. 53 De fato, o principal representante da primeira, Giacinto Viola

(1870-1943), discípulo de di Giovanni e ambos, mestres de Pende, aplicou a

tese dos erros e a antropometria ao estudo das constituições individuais.

Enuncia, então, que há duas modalidades básicas de variação da forma

humana, no sentido longilíneo e no sentido brevilíneo e, através de métodos

estatísticos, procura determinar o tipo médio (normolíneo).54

O seguinte passo foi dado por Pende, que acrescentou à abordagem

morfológica de di Giovanni e Viola o estudo individual da endocrinologia, do

desenvolvimento físico e psíquico, da bioquímica humoral, da neurologia

vegetativa e da psicologia diferencial. Dá o nome de “biotipologia humana” à

ciência que se ocupa do complexo de manifestações anatômicas, humorais,

funcionais e psicológicas próprias a cada indivíduo. De acordo com Pende, o

que se trata é de conhecer “o conjunto dos caracteres particulares que

diferenciam um indivíduo de outro e o afastam do tipo humano abstrato ou

genérico e convencional do homem-espécie descrito pelos anatomistas, os

fisiologistas, os psicólogos e os estatísticos”55. Em 1939, escreveu:

                                                                                                               
52
A tradição constitucionalista francesa, seguindo Claude Sigaud (1862-1921), se baseava
em critérios anátomo-orgânicos e, assim, por exemplo, classificava os biótipos em
“respiratório”, “digestivo”, “muscular” e “cerebral”, Ibid, 15.
53
Martiny afirmará que di Giovanni e Viola foram os primeiros a apreciar os tipos humanos
com base nas disciplinas científicas da antropometria e da estatística; vide Essai de
biotypologie, 24.
54
Sagrado, 15.
55
Pende, Trattato de biotipologia, 1.

  22  
“Eu dei o nome de Biotipologia Humana à ciência que se
ocupa não somente da biologia humana [...] mas que se ocupa de
todo o complexo particular da manifestação vital, de ordem
anatômica, humoral, funcional, psicológica, de cuja síntese
diagnóstica podemos reconhecer o tipo estrutural-dinâmico
especial de cada indivíduo, que estabelece os caracteres
particulares que o diferenciam de outro e o afastam do tipo
humano abstrato [...] A biotipologia é, em outros termos, a ciência
da arquitetura e da engenharia do corpo humano individual. O
biótipo individual, sendo a resultante vital unitária de todos os
fatores somático-psíquicos hereditários e ambientais, não pode ser
conhecido na sua complexidade estrutural-dinâmica e no seu valor,
senão após realizada a síntese lógica de todos os seus elementos
morfológicos, teciduais, humorais, funcionais e psicológicos.“56

O pivô desse projeto foi representado pelo sistema endócrino, em sua

inter-relação com os caracteres somáticos e psíquicos presentes no

indivíduo.57 Vale dizer, os fatores endocrinopáticos refletem-se na constituição

morfológica e nas funções hormonais, de modo que possam ser utilizados,

principalmente para a identificação de criminosos, que na época eram

definidos como doentes, já que esta era uma das preocupações mais

importantes de Pende.58

O marcado viés eugênico do projeto biotipológico de Pende, rebatizado

como “ortogênese”, é explícito na definição que propõe para esta “ciência”,

que “se ocupa da proteção higiênica e médica do crescimento físico e

psíquico, com o propósito de construir o homem normal, corrigido dos erros e


                                                                                                               
56
Turinese, Modelli psicossomatici, 114.
57
Pende, Endocrinologia, II: 1102.
58
Vide Galera, “Construindo la fisiología del delito”.

  23  
dos desvios aos que está exposta a fábrica humana durante seu período

formativo”59. É preciso notar que não só contra os criminosos apontava a mira

de Pende.

Em 14 de julho de 1938, Benito Mussolini lançou uma violenta

campanha antissemita, com a publicação do Manifesto degli scienziati razzisti

(Manifesto dos cientistas raciais), redigido pelo próprio Mussolini, mas

apresentado como uma obra de um grupo dos principais cientistas italianos.

Embora sabe-se que houve tímidos protestos contra o Manifesto, estes não

se deveram tanto ao seu objetivo quanto aos argumentos pretensamente

científicos aduzidos para justificar o antissemitismo, a inferioridade dos negros

e a superioridade da raça italiana. Um exemplo típico é o caso de Pende, na

época o principal pensador italiano na “ciência das raças”. Apesar de

vinculado ao fascismo (Figura 5) e ativo colaborador da revista La difesa dela

razza (A Defesa da Raça), sua publicação oficial (Figura 6), protestou contra o

Manifesto. Contudo, não devido ao antissemitismo de Estado que propunha,

mas porque afirmava que a italiana é uma raça ária, o que era descabido: a

expressão devia ser corrigida para “raça ítalo-romana”.60

                                                                                                               
59
Pende, “Ortogenesi (scienza della)”, II: 607. O projeto incluía: medicina e higiene individual,
biologia da raça e eugenia, pedagogia, antropopsicologia criminal, orientação e seleção
profissional e política biológica – todas elas baseadas na biotipologia. Encontraremos
algumas destas aplicações também em Martiny.
60
Por esse motivo caiu em desgraça com Mussolini. Por isso, mais tarde publica um novo
artigo, onde justifica o motivo pelo qual deve ser proibido o casamento de negros, judeus e
árabes com membros da linhagem ítalo-romana. Reconcilia-se, assim, com Mussolini, que
então o nomeia reitor da Academia della gioventù italiana del littorio (Academia da juventude
italiana fascista), organização chave para o doutrinamento dos jovens. Vide Feinstein,
Civilization of the Holocaust, 24-7.

  24  
Figura 5. Pende em uniforme fascista ao lado de Mussolini.61

Figura 6. Capa de La difesa della razza, publicação oficial do movimento


fascista italiano.62

                                                                                                               
61
Programa La Storia Siamo Noi: Il Caso Pende, RAI Educational,
www.lastoriasiamonoi.rai.it/puntata.aspx?id=285 Acesso em abril de 2011
62
http://simonamaggiorelli.wordpress.com/2010/05/30/il-velenoso-mito-della-razza Acesso em
28/07/11.

  25  
Pende esquematizou seu método através de uma “pirâmide

biotipológica”, cuja base era representada pela dotação genética do indivíduo

e cujas faces representam, respectivamente, os aspectos morfológico,

fisiológico, ético e intelectual de um indivíduo. Para cada tipo constitucional há

uma variante estênica e outra astênica. Numa obra posterior, mais

amadurecida, escrita em conjunto com Marcel Martiny, Pende descreveu

quatro biótipos humanos fundamentais:63

• Brevilíneo-astênico: estatura médio-baixa, com tendência a obesidade

ginecóide, flácida pela retenção hídrica, com aspecto do corpo e da face

infantis, com uma discrepância entre membros e tronco a favor deste último.

Face pálida. Musculatura fraca. Movimentos lentos. Hiperplasia do tecido

linfático, com sistema venoso atônico e com aparecimento precoce de

varizes. Baixa pressão arterial.

• Brevilíneo-estênico: morfologia a primeira vista semelhante à anterior,

porém com uma menor tendência à obesidade que é, contudo, de tipo tônico

e não flácido. Musculatura robusta, com tórax largo e curto. A pressão arterial

é maior que a média. Hipercolesterolemia. Reações de defesa violentas, por

exemplo, com alergia. É um lutador, um trabalhador incansável com forte

tendência ao nomadismo psicológico.

• Longilíneo-estênico: estatura maior que a média, enquanto o peso é

normalmente menor que o da média. Estrutura robusta e harmoniosa, tônica.

                                                                                                               
63
Turinese, Modelli psicossomatici, 115.

  26  
Equilíbrio nas linhas da face. Há uma abundante secreção biliar, lembrando

nestes indivíduos o temperamento biliar. Reações psicológicas rápidas.

Pende falava a favor de uma tendência à esquizofrenia e Martiny, sobre uma

tendência paranoica.

• Longilíneo-astênico: não são necessariamente altos, mas há predomínio dos

membros em relação ao tronco. São longilíneos de baixa estatura. Tem um

tipo gracioso, delicado com pouco desenvolvimento muscular, recordando a

fisionomia de um adolescente. Segundo Pende há predomínio da função

sentimento ou da função intuição, com inclinação à arte e à metafísica.

Pende sugeria também uma tendência à esquizotimia (o antigo

temperamento atrabiliar ou melancólico também é lembrado).64

1.5 A eugenia na França

De acordo com William H. Schneider, pouco tem sido estudado sobre a

eugenia na França, devido à aplicação de um conceito muito estreito que, por

longo tempo, fez com que esta aparecesse como um fenômeno tipicamente

anglo-saxão, associado com a aceitação imediata da herança mendeliana ou

a fortes preconceitos de raça ou de classe. Por isso, esse autor propos uma

visão mais ampla e inclusiva, onde a eugenia é relacionada com um contexto

histórico-social fortemente impregnado pela percepção de que a sociedade

                                                                                                               
64
Turinese, Modelli psicossomatici, 114.

  27  
estava num estado de declínio e degeneração, para cuja solução foram

propostos meios científicos.65

De fato, havia a preocupação pela saúde e o estado físico da

população, associada a um aumento aparente no número de criminosos,

alcoólatras, casos de tuberculose e de doenças venéreas e à diminuição da

natalidade.66 Assim, as tentativas de solução foram organizadas ao redor de

dois eixos, a natalidade e a higiene social, e que foram instrumentadas pelos

professores da Faculdade de Medicina de Paris, onde estudou Martiny no

período em questão.

No contexto desta pesquisa, interessa-nos em particular a abordagem

da natalidade, no projeto conhecido como “puericultura”, montado por

Adolphe Pinard (1844-1934), professor de obstetrícia na Faculdade de

Medicina de Paris. Puericultura significava para ele, “o conhecimento relativo

à reprodução, conservação e melhoramento da espécie humana”67. Na época

em que Martiny realizou seus estudos de graduação, a tendência eugênica

francesa tendia a ser positiva, vale dizer, enfatizava as medidas de higiene

social, especialmente focadas no alcoolismo, a tuberculose e as doenças

                                                                                                               
65
Schneider, “Eugenics Movement in France”, 69.
66
Um estudo conduzido por Brocca entre 1866 e 1867 evidenciou diminuição de
características mensuráveis, como a estatura, na população de soldados e escolares
franceses. Por outro lado, a França havia perdido sua reputação como potência militar no
Continente na Guerra Franco-Prussiana de 1870-1; Ibid, 70.
67
Ibid, 72. Sobre Pinard, vide também Bashford, & Levine, Oxford Handbook of the History of
Eugenics, 336.

  28  
venéreas, ao invés das supressivas, como o controle pré-matrimonial e a

esterilização.68

Outro foco de interesse particular são o Rockefeller Institute e seu

emissário na França, Alexis Carrel (1873-1844), Premio Nobel de Fisiologia,

porquanto tiveram grande influência na carreira de Martiny.

Alexis-Marie-Joseph-Auguste Carrel nasceu em Lyon e completou seus

estudos de medicina na Université de Lyon. Embora houvesse precocemente

manifestado uma habilidade cirúrgica, não conseguiu obter os títulos de que

necessitava a fim de prosseguir seus estudos, por falta de mentor (patron

procteteur) que o auxiliasse, nem passar nos chamados concours.

Segundo sua autobiografia, Carrel sofria de uma crise de identidade,

não exclusiva a ele, pelo fato de ter sido criado em um ambiente católico,

embora ele próprio não fosse praticante, dentro do universo acadêmico.

Associado a esses fatores, cresceu em Carrel um interesse a respeito das

curas milagrosas, o que era bastante comum no fim do século XIX na França.

Em 1901, quando foi reprovado em seu primeiro concours, escreveu um

tratado a respeito das curas da Virgem de Lourdes e, em 1902, voluntariou-se

a acompanhar um grupo de peregrinos doentes ao santuário.69

                                                                                                               
68
Schneider, 76. No entanto, a eugenia negativa voltaria ao centro do palco na década de ’20,
em virtude de fatores como a depressão econômica, a influência da Igreja católica e dos
movimentos eugênicos nos EUA e na Alemanha nazista; Ibid, 84.
69
Os dados nesta secção foram tomados da obra God’s Eugenicist: Alexis Carrel and the
Sociobiology of Decline, de Andrés H. Reggiani. Esta biografia mostra a carreira de Alexis
Carrel como médico cirurgião além de seu envolvimento com movimentos políticos na França
e nos EUA relacionados à eugenia.

  29  
Lourdes era na época, não somente o local onde aparecera a uma

jovem a imagem de Nossa Senhora (1845) a uma jovem pastora, mas

também um símbolo do conflito entre a Igreja Católica e a elite anticlerical na

França. Devido às diversas atribuições de curas no santuário, este era o único

local da Igreja Católica que possuía um centro médico de “verificações de

cura” (Bureau de constatations médicales) de reputação internacional. Isso

porque Jean-Martin Charcot (1825-1893), em seus trabalhos sobre a histeria,

havia associado os efeitos da fé com sintomas histéricos. Além disso, as

péssimas condições de higiene do santuário eram frequentemente apontadas

em detrimento das suas curas milagrosas. Porém, os serviços médicos do

santuário continuavam a atrair a atenção crescente de médicos de grande

reputação da França e regiões vizinhas.

Carrel visita Lourdes dentro deste contexto, voltando seu interesse

principal ao que era chamado de cicatrisations ultra-rapides, que o intrigavam.

Acompanhou em seu grupo de pacientes peregrinos, especialmente, o caso

de uma jovem chamada Marie Bailly, com tuberculose, cujo quadro clínico

registrou antes da visita. Após os banhos nas águas quentes, Carrel pode

constatar o “milagroso” desaparecimento total dos sintomas (fato atestado por

dois outros médicos), na mesma tarde em que chegou, configurando uma

cura súbita. Bailly mencionou a um jornal local o nome de Carrel como o da

testemunha principal da “cura milagrosa”. Embora ele negasse, por medo às

possíveis repercussões sobre sua reputação, os receios confirmaram-se e o

episódio chegou ao conhecimento de seus colegas em Lyon, que o

  30  
qualificaram como impostor. Isso marcou o fim de toda possibilidade

acadêmica e empregatícia para Carrel.

Carrel tomou a decisão de migrar a Montréal. Ali desenvolveu uma

técnica de sutura dos vasos sanguíneos que despertou o interesse dos

médicos e acadêmicos norte-americanos, sendo convidado a lecionar na

Universidade de Illinois. Em 1905, foi convidado a desenvolver sua técnica de

“triangulação” no Johns Hopkins Hospital e, em 1906, Simon Flexner (1863-

1946) ofereceu a ele uma posição no Rockefeller Institute for Medical

Research em Nova Iorque. No Instituto, Carrel encontrou o ambiente propício

para sua pesquisa. Em 1912, recebeu o Prêmio Nobel de Medicina e

Fisiologia, graças a seu trabalho em cirurgia vascular e transplante de órgãos.

Na década de 30, realizou trabalhos de pesquisa em circulação

extracorpórea, conjuntamente com Charles Lindbergh (1902-1974). Além do

interesse em técnicas cirúrgicas, Lindbergh e Carrel compartilhavam os

mesmos interesses políticos. Em 1935, Carrel lançou sua obra literária mais

famosa, L’homme, cet unconnu, cujas ideias eugenistas despertaram o

interesse de muitos cientistas e acadêmicos nos EUA, tornando seu autor

uma verdadeira celebridade literária. No entanto, o ponto de vista político de

Carrel estava em dissonância com o clima liberal prevalente entre os

cientistas dos EUA em sua época. Dizia que estes ideais democráticos eram

os responsáveis pela catástrofe contemporânea, referindo-se ao clima pré-

guerra. Conforme a Europa se aproximava da guerra, Carrel impunha sua

  31  
visão fascista, chegando mesmo a glorificar Hitler no prefácio de L’homme,

cet inconnu, editado em 1939.

Em 1939, após o fechamento de seu laboratório no Rockefeller Institute,

Carrel voltou para a França, onde tronou-se assessor técnico do Secrétariat

d’état de la famille et de la santé. No entanto, desencorajado pelo clima liberal

que permeava o governo francês, voltou aos Estados Unidos para só

regressar à França em 1941, já sob o governo de Pétain, onde achou espaço

propício para que suas ideias fossem desenvolvidas.

A Fondation Française pour l’Etude des Problèmes Humains (FFEPH)

foi o centro onde Carrel pode colocar em prática seus planos para a medicina

preventiva, através de conceitos como os de biotipologia, eugenia,

puericultura e higiene industrial. Fundada em 1941, tinha como objetivo

aperfeiçoar as condições fisiológicas, mentais e sociais da população

francesa. Os trabalhos da Fundação foram publicados nos Cahiers, nos quais

Carrel e seus colaboradores descreviam as características dos estudos lá

realizados. Nesse contexto, cabe destacar o uso frequente de expressões tais

como “fator humano”, “síntese”, “pessoa real”, verdadeiras “senhas” das

ideias da época, como é discutido abaixo.

  32  
Figura 7: Alexis Carrel e Charles Lindbergh no Rockefeller Institute, 1935.70

No início de 1944, Carrel estava já afastado da Fondation por

problemas pessoais com a nova diretoria. Faleceu em Paris, em novembro

deste mesmo ano, enquanto o governo liberal o denunciava por seus atos

durante o governo de Vichy.

1.6 Movimentos holistas na medicina francesa

Dizíamos acima, que algumas expressões podem ser consideradas

palavras-chave da medicina francesa nas primeiras décadas do século XX,


                                                                                                               
70
Foto reproduzida de Reggiani, 16.

  33  
que apontam, diretamente, para o surgimento e a ampla difusão das

biotipologias nesse período. O próprio Martiny indicou, para justificar a

“ciência da biotipologia”, a necessidade de se abordar os seres humanos de

maneira integral ou “sintética”. Vale dizer: reconhecia o valor da abordagem

analítica das ciências contemporâneas, mas afirmava enfaticamente que:

“não há doenças, mas doentes” e “o homem está feito de todas essas

unidades biológicas reunidas e também tem uma personalidade, que só pode

ser definida de acordo com o valor específico do ser como um todo”71.

A questão do que se conhece como “holismo médico” 72 tem sido

amplamente estudada em alguns contextos, como o alemão, onde o conflito

“máquina versus organismo” foi um tema explicitamente discutido pela

sociedade em geral e os estudiosos em particular, chegando a formar parte

do discurso oficial do nazismo.73 No entanto, tem sido, ainda, pouco abordada

no contexto francês.

Na França, aponta George Weisz, 74 o termo “holismo” não se

popularizou até a década de 1960, e até então, eram utilizados termos afins,

como “síntese”, “humanismo médico” e “neo-hipocratismo”. É neste contexto

que se encontram circunscritas as idéias e atividades de Martiny.

                                                                                                               
71
Martiny, Essai de biotypologie, 13-4.
72
O termo “holismo” foi cunhado pelo então presidente da África do Sul, Jan Smuts em sua
obra Holism and Evolution, de 1926, na qual discorria sobre a tendência integralizadora do
universo. Apesar disto, Smuts foi um grande defensor da separação das raças num
movimento conhecido mundialmente chamado Apartheid. Vide Otto, & Bubandt, Experiments
in Holism, 252 - 4.
73
Vide Harrintgon, Reenchanted Science; Fortes, “Homeopathy and National Socialism”.
74
Weisz, “Moment of Synthesis”, 68.

  34  
De acordo com Fritz Stern, no contexto do pessimismo do período de

entreguerras, cientistas tais como Carrel, Rémy Collin (professor de histologia

e autor de Physique et metaphysique de la vie, 1925) e Louis de Broglie

(vencedor do Prêmio Nobel de Física de 1929) misturavam temas científicos

com filosofia, surgindo então, um panorama mais amplo que foi denominado

“holismo”. Segundo o próprio autor, este é um termo bastante elusivo e servia

para denominar a medicina dita “alternativa”, variando desde o estudo das

constituições, a biotipologia, o neo-hipocratismo e a psicobiologia, à

homeopatia e os tratamentos fitoterápicos.

O que unia todas estas subdivisões terapêuticas era o fato de

postularem que o ser humano não deveria ser observado em seções ou

partes, como era próprio da medicina convencional, que tendia às

subespecializações e ao aumento crescente dos exames laboratoriais na

investigação do processo patológico. Tanto nos EUA, quanto na Europa havia

a ideia de que a relação médico-paciente deveria ser diferente, mais próxima,

e assim, procurou-se redesenhá-la.75 Esta visão já havia sido desenvolvida

por Carrel durante seu período no Rockefeller Institute ao mesmo tempo em

que mantinha contato com holistas franceses de Lyon, como René Allendy

(1889-1942), Pierre Delore (1896-1960) e Paul Desfosses.76

Weisz descreveu duas linhas de força no desenvolvimento do holismo

médico francês que nos ajudam a enquadrar o nosso objeto de estudo. Por

                                                                                                               
75
Reggiani, 61.
76
Paul Desfosses era médico, cirurgião e editor de La Presse Médicale; vide Freire,
“Mulheres, Mães e Médicos”, 122.

  35  
um lado, havia a chamada linha “pragmática”, constituída por cientistas que

formavam parte do establishment médico convencional, com a diferença de

que abordavam as questões da saúde humana de uma perspectiva sistêmica

e contextualizada. Vale dizer, tratava-se de médicos e cientistas dedicados à

atividade clínica e à pesquisa que, dessa maneira, produziram um corpo

importante de evidências que embasava as abordagens não reducionistas do

ser humano. Esse viés se viu reforçado pelo fato de que alguns dos campos

privilegiados de estudo eram ramos marcadamente sistêmicos da ciência

médica, a saber, a endocrinologia, a neurofisiologia e a imunologia. Essa linha

levou à produção de um conceito chave da medicina francesa, o conceito de

terreno, intimamente vinculado às noções de constituição e de temperamento,

que se tornou o denominador comum de todos aqueles que, de alguma

maneira, se opunham ao reducionismo biomédico.77

A outra linha era, marcadamente, ideológica e se autodelimitava

completamente da medicina dita oficial. Composta por diversos grupos

(naturopatas, vitalistas, humanistas cristãos 78 ) era amplamente dominada

pelos homeopatas. Esses grupos serviam-se das pesquisas produzidas pelos

“pragmáticos” para fundamentar suas ideias holistas a priori. Como veremos,

Martiny representou um caso exemplar desta linha de holistas.

                                                                                                               
77
O conceito de “terreno” também ocupou um lugar proeminente na bacteriologia francesa da
época. Assim, se debate a importância relativa dos microrganismos e da suscetibilidade
individual e populacional ao contagio. Weisz, em 78, destaca que a noção de “terreno” foi
incorporada, inclusiva, pela abordagem pasteuriana.
78
Na opinião de Weisz, 81-2, 85; embora também houvesse elementos eugênicos, com a
grande exceção de Carrel, não tiveram grande representação no holismo francês. No entanto,
a associação de Martiny com Pende é suficiente para lançar sombras de dúvida sobre essa
afirmação.

  36  
A conjunção de ambas as linhas teve como um dos seus resultados

uma atividade febril para tipificar os “terrenos”, levando a uma verdadeira

explosão de propostas de classificação de constituições e temperamentos

(Tabela 1).

Nesse contexto, a figura de Hipócrates tornou-se o emblema da

medicina holista e humanista e o “neo-hipocratismo” emergiu como

movimento oficial em 1933. 79 Esse movimento estava constituído por

homeopatas como Allendy, Maurice Fortier-Bernoville (1896-1939) e Martiny,

que vinham procurando formular uma forma de homeopatia cientificamente

aceitável e mais próxima da medicina convencional. Por outro lado, o

manifesto do neo-hipocratismo foi inspirado nos trabalhos do britânico

Alexander P. Cawadias (n. 1884), e prescrevia: 1) a primazia da clínica sobre

o laboratório; 2) uma concepção mais dinâmica da doença, baseada na

constituição (morfologia), o temperamento (fisiologia) e o caráter (psicologia);

e 3) um tratamento que visasse ajudar o corpo em sua reação contra a

doença.80

                                                                                                               
79
Nesse retorno ao passado, adquirem posição de destaque os historiadores da medicina;
assim, Maxime Laignel-Lavastine e Arturo Castiglioni passam a lecionar na Academia de
Medicina; Weisz, 82.
80
Weisz, 82-3.

  37  
CAPÍTULO 2

MARTINY: NEO-HIPOCRATISMO, EUGENIA E BIOTIPOLOGIA

Marcel Martiny nasceu em Nice em 1897 e faleceu em Paris em

1982.81 Iniciou seus estudos médicos em Paris, onde exerceria sua profissão

no Hôpital Foch, no Institut Prophylactique e, posteriormente, assumiria o

cargo de médico chefe do Hôpital Léopold Bellan e nos ambulatórios da

Chambre de Commerce de Paris.

Durante a Primeira Guerra Mundial teve atuação junto à missão

enviada pelo Rockefeller Institute, valendo-lhe, ao final, o reconhecimento

através de uma Croix de Guerre e a promoção para oficial da Legião de

Honra.

Atuou como médico homeopata e acupunturista junto ao principal

expoente desta especialidade na França, George Soulié de Mourant (1878-

1955), responsável por introduzir a acupuntura na França. Martiny,

juntamente com sua esposa Thérèse, realizaram a atualização da obra de

Soulié de Mourant Précis d’acupunture. Devido a sua contribuição nesta área,

foi nomeado presidente de honra da Associação Científica dos médicos

acupunturistas da França.

                                                                                                               
81
Os dados sobre a biografia de Martiny foram extraídos do artigo “Le Docteur Marcel
Martiny” de Denise Ferembach.

  38  
Como homeopata teve seu nome ligado à Liga Homeopática

Internacional, além de sua classificação de biótipos ser até hoje citada como

referência para o estudo de constituições e temperamentos em homeopatia.

Seu trabalho junto ao movimento neo-hipocrático, no entanto, talvez

seja a área de sua maior participação. Publicou inúmeros escritos a este

respeito, incluindo um livro inteiramente dedicado a este assunto, Hippocrate

et la médecine. Em 1972 foi nomeado presidente da Sociedade Internacional

de Medicina Neo-Hipocrática.

Por ser amigo do presidente do Senegal, Léopold Sedar Senghor

(1906-2001), acabou por tornar-se Cônsul Geral deste país em Mônaco.

Obteve também o cargo de professor na Ecole d’Anthropologie, que teve

como um dos seus principais criadores Paul Broca. Atuou como conselheiro

na Associação dos Antropólogos de Língua Francesa e através do cargo de

médico-chefe da Câmara de Comércio de Paris, realizou exames em

adolescentes que lá estudavam para embasar seus próprios estudos sobre os

tipos constitucionais.

Dentro do contexto descrito no capítulo anterior, em 1948, Marcel

Martiny publicou a obra-síntese de seus estudos em biotipologia, Essai de

biotypologie humaine,82 baseado nos trabalhos realizados com Pende e nas

observações de outros autores que também compuseram, no mesmo período,

teorias sobre biótipos e constituições.

                                                                                                               
82
Doravante mencionado como Essai.

  39  
Não se pode insistir o bastante, devido às circunstâncias contextuais,

no fato de que foi Pende o grande inspirador do trabalho de Marcel Martiny.

Assim, nas primeiras linhas do capítulo primeiro do Essai, utilizou um tom

extremamente elogioso quando lhe atribuiu a criação de termo e do conceito

de “biotipologia”, a saber, a ciência que “trata das correlações entre a forma

humana, sua fisiologia e seu psiquismo e que visa estudar o homem no seu

conjunto unitário”. Martiny qualificou, do ponto de vista epistemológico, a

biotipologia como uma “ciência nova”, baseada exclusivamente “na

observação experimental e na estatística”.83

De modo consistente com o viés adotado pela linha médica neo-


84
hipocrática, humanista ou sintética, utilizou o recurso histórico na

fundamentação da legitimidade epistemológico-antropológica da biotipologia.

Desse modo, naturalmente, suas reflexões iniciam pela teoria tradicional das

complexões, baseada nos quatro elementos, procurando “sintetizá-la” pela

identificação de temas similares em outras culturas, desde a Antiguidade até

os tempos modernos.85

                                                                                                               
83
Martiny, Essai, 13.
84
Deve-se enfatizar que, embora Martiny seja considerado como um dos representantes
principais do chamado “neo-hipocratismo”, ao longo do Essai refere-se, indistintamente, a
este, ao humanismo médico e à “síntese”.
85
Isso leva Martiny a descrever uma longa série de analogias baseadas no número 4 que
inclui os órgãos privilegiados pelos embalsamadores egípcios antigos, com suas
correspondências com 4 “gênios”, representados, respectivamente, como cinocéfalo, águia,
cão e ser humano, as 4 figuras na visão de Ezequiel (1:4-26), os 4 pontos cardinais, os 4
rostos de Brahma nas 4 posições, os 4 Vedas, as 4 condições que subjaziam os 4 períodos
da vida que organizam as leis de Manu e seus símbolos correspondentes, uma dupla
estequiologia humoral chinesa, e assim por diante. Certamente, privilegia a teoria humoral
greco-galênica. Vide Essai, 17-25.

  40  
O motivo para tanto entusiasmo foi, imediatamente, explicitado. Martiny

reconhecia o grande avanço que as ciências contemporâneas haviam feito

com base na abordagem “analítica”, que decompunha o ser humano em seus

elementos constitutivos. No entanto, questionava a aplicação desses

conhecimentos pelo médico clínico, sob o célebre lema “não existem doenças,

mas somente doentes” 86 . Essa postura coincidia completamente com a

preocupação da época com os reducionismos extremos. Nesse sentido,

Martiny advogava explicitamente a favor da abordagem sintética e é,

precisamente, a biotipologia a disciplina capaz de realizá-la: “É a esta síntese,

a ser realizada com as disciplinas científicas rigorosas, que se liga a

biotipologia”87.

Não obstante Martiny vai mais longe ainda e, seguindo as pegadas de

Pende, enxergou um escopo muito mais amplo para as possíveis

contribuições da biotipologia, incluindo: a patologia, a psiquiatria, a

terapêutica, a orientação e seleção ocupacional e a educação física.

Virtualmente, a mesma concepção que a explicitamente eugênica de Pende.

O viés eugênico, nunca admitido abertamente por Martiny,88 também

se evidenciou em alguns aspectos da institucionalização do projeto

biotipológico. De acordo com nosso autor, em 1932 foi fundada na França a

Société de Biotypologie pelo cientista Emile Charles Achard (1860-1944) e os

psicólogos Henri Piéron e Henri Laugier. Este último - que também participou
                                                                                                               
86
Ibid, 14.
87
Ibid, 15.
88
No entanto, observe-se o título dado à obra que antecedeu o Essai: La biotypologie
humaine et orthogénesique, publicada em 1930.

  41  
da fundação do Centre Nationale de la Recherche Scientifique, em 1939, foi

um dos pupilos mais célebres de Charles Richet (1850-1935), ganhador do

Prêmio Nobel de Fisiologia em 1913 pela descrição da reação anafilática e

fundador da Société Française d’Eugénique, que presidiu entre 1920 e

1926.89 A fundação da Sociedade Francesa de Biotipologia também contou

com a participação de Edouard Toulouse, médico e jornalista ativista da

causa eugenista na França, relacionando-a aos distúrbios psiquiátricos.90

Observa-se ainda, que Martiny definiu suas quatro constituições

biotipológicas fundamentais, com base em indivíduos brancos, do sexo

masculino, entre 16 a 32 anos de idade. As razões destas limitações eram,

segundo ele, porque “indivíduos são por um lado, constitucionalmente

realizados e por outro lado ainda não são deformados pelo acúmulo de

influências exógenas”91.

2.1 Análise do Essai de biotypologie

Lembramos que já foi mencionado no capítulo introdutório do Essai a

conceitualização a biotipologia e traçada a sua suposta linhagem histórica. A

obra seguiu sucessivamente, com os seguintes tópicos: 1) Biometria e seus

princípios; 2) A gênese dos biótipos (biotipogênese); 3) A descrição dos

biótipos (constituições); 4) Os fatores estáticos e dinâmicos que modificam as


                                                                                                               
89
http://nobelprize.org/nobel_prizes/medicine/laureates/1913/richet-bio.html Acesso em
01/08/11.
90
Koupernik, “Eugénisme et psychiatrie”.
91
Martiny, Essai, 91.

  42  
constituições biotiopológicas; 5) Os biótipos globais, resultantes da

constituição de base e as modificações estáticas e dinâmicas; 6) As diversas

aplicações da biotipologia.

Antes de nos aprofundarmos na discussão dos tópicos mais relevantes

do Essai, convém advertir que, desde o início, que Martiny caracterizou a

biotipologia como uma “ciência do futuro”. Ou seja, admitia não estar em

condições de apontar nem uma única aplicação concreta do conceito

biotipológico a qualquer área específica, mas sistematicamente prometia que

tudo seria comprovado... no futuro!

Outra forte característica no texto é o uso profícuo que Martiny fez da

literatura disponível na época, como suposta fundamentação da legitimidade

científica da biotipologia. Em particular, manifestou predileção pelos temas

mais discutidos na época, como o estudo do metabolismo, a endocrinologia, a

neurologia e a bioquímica. Como exemplo, podemos citar a menção ao

“diagrama do equilíbrio neuroquímico regulador da personalidade individual”

formulado por Pende:

“Ele considera duas constelações, uma parassimpática


anabólica, a outra ortossimpática catabólica. A primeira, sob o
signo da acetilcolina, favorece o desenvolvimento do sistema
vegetativo e reprodutivo, o anabolismo dos glucídios, lipídios,
protídeos, da água, dos íons de potássio e de sódio, do fósforo,
das vitaminas A, C e E, dos grupos B, D, da secreção de insulina,
da cortina [cortisol], da testosterona, da progesterona, do timo, de
certos hormônios da hipófise anterior e posterior. Essa constelação

  43  
estimula a tonicidade e a contratilidade dos músculos lisos e
estriados, mas torna mais lentos o coração e os processos
neuropsíquicos.”92

A descrição da “constelação” oposta é imediatamente seguida, sem

ilação aparente, por uma discussão dos “progressos da radio-espectrografia”

acerca da arquitetura das correntes que formam as proteínas, da qual,

imediatamente, deve deduzir-se seu “valor dentro da especificidade biológica

e, consequentemente, biotipológica” 93 . Vejamos um exemplo típico de

argumentação:

“Se a molécula [proteica] mais ou menos anidra apresentar


um estado cristalizado, quando se dissocia, tende, de acordo com
Svedberg, a uma forma globular. Assim, ela se opõe à esclero-
proteína absolutamente insolúvel de longas correntes
polipeptídicas bem evidenciadas por Atsbury. Talvez há mais do
que um parecido nesta similaridade com os extremos da longitípia
e a brevitípia do biótipo e da molécula, provavelmente há é uma
correspondência”94.

Embora esse tipo de raciocínio não fosse alheio ao desenvolvimento da

ciência, já desde a primeira modernidade era pressuposto essencial a

necessidade de se ligar o fenômeno visível ao invisível subjacente. Talvez

esse tenha sido o maior desafio a ser enfrentado, porém as pessoas

dedicadas à ciência procuraram responder a ele. 95 Enquanto a pesquisa

                                                                                                               
92
Martiny, Essai, 68.
93
Ibid, 69.
94
Ibid.
95
Nas próprias origens da ciência moderna, ninguém menos que Robert Boyle seria criticado
por seus contemporâneos, entre outros motivos, por não ter conseguido correlacionar

  44  
apontava para o estudo da matéria e das partículas até se chegar ao que, já

na época de Martiny, tornaria-se propriamente a bioquímica, este se esquivou

ao esforço e ao invés de propor um programa sólido de pesquisa, limitou-se a

enunciar possíveis analogias. Assim, pode-se observar que Martiny infringiu

os próprios pressupostos da ciência enquanto ciência.

Em outro momento, quando se propôs a explicar a origem dos

organismos e das formas vivas, ainda que declarasse não querer associar a

origem das reações químicas às quais se submete o embrião, em seu

desenvolvimento, a qualquer teoria espiritualista, afirma:

“Mas se dermos ao acaso o sentido puro que lhe atribui P.


Vendrier, podemos dizer que o surgimento da vida foi de improviso,
como se vinda de um outro mundo. Por este último termo não se
deve entender [a vida] como um componente estelar, mas do extra-
cosmos. Por sorte, não à nossa ignorância ou à nossa
incapacidade de prever, mas à uma violação da causalidade. Como
observou Broglie, a física atômica contemporânea, abandonando a
noção de Heisenberg, foi direcionando-se para essa noção
específica de acaso.”96

Essa colagem desordenada de dados obtidos da literatura científica,

utilizada para fundamentar possíveis analogias “ainda elementares, muito

incompletas” a serem confirmadas “no futuro”, constituiu o conteúdo das

quase 500 páginas da obra. Por isso, convém ter em mente, na leitura e

análise, que o objetivo explícito de Martiny foi uma síntese dos dados
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                           
experimentos e conclusões teóricas. Vide Alfonso-Goldfarb, Da Alquimia à Química, 194 et
seq.
96
Ibid, 97.

  45  
díspares fornecidos pelas diversas ciências e que, a ferramenta lógica de que

se valeu fundamentalmente, se não exclusivamente, foi a analogia.

Finalmente, também deve ser ressaltado que, virtualmente, todo

projeto biotipológico assumia a existência de um tipo “normal”, a respeito do

qual todos os outros representam desvios, no sentido do excesso ou do

defeito (“hiperevoluídos” ou “hipoevoluídos”). 97 Consequentemente, Martiny

não teve ressalvas, mas, ao contrário, considera como um “método de

trabalho excessivamente interessante” a técnica de superposição fotográfica

desenvolvida por Galton (e Pearson) para a determinação do tipo médio.98 As

conotações eugênicas não poderiam ser mais claras e, assim, Martiny pode

observar, por exemplo, que “a biometria da base hereditária individual,

capítulo mal discutido nesta obra, constitui o fundamento futuro de uma

eugenia racional”99.

2.2 Folhetos embrionários e biotipologia

Dentre os diversos tópicos abordados por Martiny no Essai, nos

interessa discutir, aqui, em profundidade, suas ideias embriológicas e as

supostas correlações que traçou entre elas e as biotipológicas, lembrando

que essa vinculação constituiu a pergunta inicial que embasou a presente

pesquisa. Por sua vez, Martiny colocou a questão que despertava seus

                                                                                                               
97
Ibid, 63.
98
Ibid, 62.
99
Ibid, 37.

  46  
desvelos no início do capítulo dedicado à biotipogênese: “Através de qual

processo misterioso um indivíduo nasce com um certo biótipo antes do que

com outro?”100

Depois de um reconhecimento ambíguo de outros estudiosos, como,

por exemplo, Sheldon, por terem “pressentido” a importância das questões

embriológicas na biotipogênese, Martiny afirmou que suas conclusões eram o

resultado de “observações conduzidas ao longo de 20 anos”. Mas, atenção:

essas observações referiam-se a “milhares de biótipos euplásicos de ambos

os sexos” quanto a sua forma corporal e não ao estudo de milhares de

embriões, como seria esperável, já que sua afirmação era taxativa: “as formas

corporais constitucionais derivam automaticamente seja da predominância de

um dos três tecidos primordiais embrionários, seja de seu justo equilíbrio”.101

Essa afirmação foi reforçada pela seguinte: “Não se trata aqui de hipóteses

impossíveis de controlar, nem de teorias metafísicas. Mas os cálculos

estatísticos facilmente estabelecerão as intersecções”102.

A priori e sem qualquer recurso ao estudo comparativo de embriões e

biotipologias corporais, assumiu (porém, afirmando como “fato”) que, dado

que o embrião tem três folhetos – o endoderme (chamado por ele de

entoblasto), o mesoderme (mesoblasto) e o ectoderme (ectoblasto) e dado

que há formas corporais diferentes, estas se deviam ao excesso e defeito

relativo em cada biótipo de algum dos “tecidos primordiais”, aos quais deve
                                                                                                               
100
Ibid, 91.
101
Ibid, 91-2.
102
Ibid, 92. Note-se aqui a estrutura da argumentação típica de Martiny: afirma um “fato” cuja
fundamentação será estabelecida “no futuro”.

  47  
ser acrescentado um quarto tipo, o normal.103 A distribuição se daria como

representado na Tabela 2 e na Figura 8.

Tabela 2. Correlação entre biótipos e folhetos embrionários

Tipo Entoblasto Mesoblasto Ectoblasto


constitucional
Entoblástico Aumentado Normal ou Muito
diminuído diminuído
Mesoblástico Normal Aumentado Diminuído
Cordoblástico Normal Normal Normal
Ectoblástico Regressão: Regressão: Aumentado
carência carência
evolutiva evolutiva

Figura 8: Biótipos de acordo com Martiny.104

                                                                                                               
103
Ibid, 93.
104
Ibid, 107-108.

  48  
Não é supérfluo insistir, mais uma vez, em que Martiny não apresentou

qualquer evidência experimental que sustentasse a possibilidade de excesso,

deficiência ou “regressão” com “carência evolutiva” de qualquer folheto

embrionário. Tratou-se de meras suposições baseadas na descrição de

quatro biótipos e três folhetos embrionários somados ao tipo “normal”:

“A prova que nos foi possível realizar pela simples


(experiência) clínica, foi trazida pela importância absoluta e relativa
dos principais órgãos e suas funções. Segundo uma correlação
positiva multidimensional, que por ela mesma não pode ser
acidental, descobriu-se que em seu domínio ou deficiência, órgãos
humanos são agrupados de acordo com três fontes de tecido
primordial.”105

Assim, o restante do capítulo sobre biotipogênese foi dedicado à

discussão do finalismo teleológico da evolução, a uma descrição do

desenvolvimento embrionário, às linhas de força (eixos de simetria) do

embrião e aos derivados orgânicos de cada folheto embrionário - dos quais

deduzirá, no capítulo seguinte, dedicado à descrição dos biótipos, os

predomínios e carências orgânicos relativos.

Como de habitual, Martiny começou afirmando fortemente um “fato”

que jamais foi comprovado, no caso, “A biotipogênese, ao se apoiar na

embriologia, permite, portanto, considerar 4 biótipos genéticos, verdadeiras

constituições de base [...]”. Essas constituições eram “o fruto da observação

imparcial de numerosos autores ao longo do tempo”, enquanto que “a

                                                                                                               
105
Ibid, 106.

  49  
classificação embriológica que nós adotamos hoje nunca havia sido

aprofundada antes de nós”.106

A descrição dos tipos de Martiny foi feita de acordo com os critérios

que o mesmo elegeu e, esquematicamente, foram divididos em setores, para

facilitaram as caracterizações: altura, peso, aspecto geral, massa/tônus

muscular, crânio, face, sistema endócrino e psiquismo. Para os fins do

presente trabalho, a descrição dos tipos não é tão importante como as

explicações putativas dadas, sua fundamentação e suas correlações

potenciais. Vejamos o caso da constituição entoblástica.107

De acordo com Martiny, ela se caracterizava pela sobrecarga do

sistema linfático, devida à impossibilidade de reabsorver as proteínas na

circulação distal que, desse modo, passavam a circular pelos vasos linfáticos

que as retornam à circulação sanguínea. Devido à insuficiência concomitante

do mesoblasto, que originava os vasos linfáticos, a circulação nesse sistema

é muito lenta, agravando o estado de “hidrofilia celular constitucional”. A isso

associaram-se hiperinsulinismo, hipopituitarismo global e hipotireoidismo

constitucional.

Mais uma vez, deve-se ressaltar o fato de que essas afirmações não

foram acompanhadas de estudos populacionais estatísticos de medições

hemodinâmicas e hormonais, nem de estudos histológicos. Não se trata nem

sequer de deduções fisiológicas, mas de lucubrações a partir de correlações


                                                                                                               
106
Ibid, 107.
107
Ibid, 110 et seq.

  50  
hipotéticas entre uma série de tipos biométricos e dados fornecidos pela

pesquisa fisiológica e bioquímica da época. Com consequências altamente

perigosas, porquanto Martiny concluia, ainda no caso do biótipo entoblástico,

além das suscetibilidades particulares às moléstias contagiosas e às

intoxicações ocupacionais, que:

“[constitui] o ponto de partida da Evolução Cronológica


Ascendente, é hipo evoluído, pseudo-infantil [...]”108, são indivíduos
calmos, sonolentos, apáticos e sedentários [...] é um hipogenital e
um hiperdigestivo, mais glutão do que sensual [...] pouco combativo,
de natureza passiva, tranquila, com uma bondade em parte devida
ao abandono, e em parte à recusa [...] perfeita adaptação a
trabalhos sem variedade.”109

Os biótipos constitucionais sofrem modificações em função do espaço

(estáticas) e do tempo (cinemáticas). Os fatores estáticos apresentam uma

cronologia de evolução hierárquica, desde os elementos entoblásticos (hipo-

evoluídos) aos ectoblásticos (hiper-evoluídos), passando sucessivamente,

pelos mesoblásticos e cordoblásticos (normais), que se manifestam,

especificamente, em três áreas: filogenética (particularmente aplicada à

evolução humana), racial e sexual.110 Naturalmente, Martiny afirmava que “O

problema da imigração [...] é um outro exemplo da grande importância da

biotipologia”, enquanto que sua relação com os sexos “também é de grande

valor teórico e prático [...] nas questões do trabalho feminino e das relações

                                                                                                               
108
Ibid, 113.
109
Ibid, 115.
110
Ibid, 137.

  51  
sexuais”. 111 Assim, devotou intensa atenção à descrição biotipológica das

raças e dos sexos.

Os fatores cinemáticos se referem, essencialmente, ao temperamento:

os mesmos quatro biótipos, agora variáveis e relacionados com a idade e o

calendário (anos, meses, dias, “o instante que passa”112), o que virtualmente,

representava um retorno à teoria tradicional das compleições, sob o disfarce

de ciência contemporânea. Por exemplo,

“No inverno, Kendall tem mostrado que a glândula tireoide


contém menos tiroxina, esta deficiência acentua o entoblastismo.
Na primavera, o mesoblastismo se manifestará através do
despertar da genitalidade, da atividade muscular, um aumento das
hemácias e da taxa de hemoglobina.”113

Essa série inclui, ainda, outros aspectos ambientais (“mesológicos”),

incluindo agentes astronômicos (o sol, as fases da lua, os planetas), meteoro-

climáticos (clima, umidade ambiental, estado elétrico, regime dos ventos),

físicos (magnetismo terrestre, orientação nos pontos cardinais, impressões

sensoriais), psíquicos, alimentares, tóxicos, infecciosos e sociais. Virtualmente,

trata-se dos “non naturales” da medicina galênica, reinterpretados de acordo

com seu potencial “endoblastizante”, “mesoblastizante”, “cordoblastizante” ou

“ectoblastizante”.114

                                                                                                               
111
Ibid, 138.
112
Ibid, 183.
113
Ibid, 184.
114
Ibid, 194 et seq.

  52  
Neste ponto, Martiny oferece um resumo da ideia toda:

“[...] uma grande Lei opera, que podemos chamar de


Hierarquia Cronológica Ascendente [...] 1º Não importa quais sejam
as escalas de magnitude do tempo e do espaço sobre as que
operam os fenômenos vitais, um processo comum opera em seu
desdobramento; 2º Depois de um estágio inicial passivo [...] a
matéria vital, como consequência de um impulso interno
combinado com uma ação exterior, se desloca [...] na direção de
um novo equilíbrio. Esse deslocamento suscita uma coerência
nova que é um ganho e representa um estágio ascendente
hierárquica e cronologicamente diferenciado. Essa lei encontra sua
cristalização nas quatro grandes constituições, segundo o
ordenamento endo-, meso-, cordo- ectoblástico. Ela anima com seu
ritmo próprio a grande Evolução filogenética, a Ontogênese do
embrião, as idades dos seres vivos, os ciclos biológicos anual,
mensal e diário. Ela condiciona a adaptação progressiva ou
instantânea às influências mesológicas. Um mundo esclarecido por
esta grande síntese mecânica se abre diante das ciências
biotipológicas.”115

2.3 Aplicações da biotipologia

2.3.1 Na patologia

Martiny, a partir do oitavo capítulo de um total de doze, propos-se a

discorrer a respeito das aplicações da biotipologia em diversas áreas da

medicina. No campo da patologia, dedicou um capítulo a mostrar “o impacto

da personalidade (do indivíduo) sobre seu estado mórbido” e o correlacionou

                                                                                                               
115
Ibid, 207-8.

  53  
às descobertas feitas até aquele momento no campo da psicossomática,

considerando verdade absoluta “comprovada através dos tempos” que “é tudo

simplesmente o efeito da energia mental sobre a matéria viva e,

reciprocamente da matéria viva sobre a energia mental”: “Nós vimos, no curso

de nosso estudo das constituições de base, suas predisposições mórbidas

essenciais, tão verdadeiras que (pode-se dizer) a patologia não é o contrário,

mas o exagero do estado fisiológico.” 116

Martiny situou a biotipologia entre as “diáteses gerais e as miopraxias

individuais” e enfatizou que os clínicos deveriam aprofundar-se no que

chamava de “terrenos mórbidos,” explicando que por este termo deveria

entender-se “o comportamento de um dado biótipo no curso de uma doença

infecciosa aguda ou crônica”. Assim, por exemplo, no caso das doenças

infecciosas, Martiny relacionou os estágios de uma infecção aos biótipos:

• Incubação: entoblástica.

• Invasão: mesoblástica.

• Período de estado: cordoblástico.

• Convalescença: ectoblástica.

Podia haver, relembrava Martiny, sincronicidade entre a constituição e

o estágio mórbido, “como foi observado”.117 Por exemplo, o indivíduo do tipo

entoblástico, quando acometido por uma infecção aguda, qualquer que fosse

sua origem, apresentava uma incubação arrastada e dolorosa, uma invasão

com marcado sofrimento e um período de estado pobre em reação.


                                                                                                               
116
Ibid, 275.
117
Ibid, 280.

  54  
Martiny chegou a arriscar uma etiologia infecciosa mais frequente para

cada tipo, bem como apontou as células mais encontradas nestes estados.

Por exemplo, os entoblásticos eram mais frequentemente acometidos por

bacilos e os monócitos eram mais usualmente encontrados nestes estados.

Nos mesoblásticos, os cocos são mais frequentes nas infecções. Mas

relembra que “estes esquemas são altamente discutíveis”118. Em relação aos

ectoblásticos, Martiny, sem nenhuma comprovação estatística, refere que

estes, mais provavelmente, teriam doenças neurológicas devido à origem

embriológica. E mais uma vez afirma que, futuramente, isto seria comprovado,

graças aos dados epidemiológicos que seriam colhidos através da

estatística.119 Comparou o tipo de indivíduo mais suscetível à tuberculose (os

tuberculínicos) com aqueles mais românticos de espírito, com “febre no corpo

e queimação na alma”.120

Em relação à disposição dos organismos a serem acometidos por

certas doenças, o que Martiny, chamava de “diáteses”, atribuiu, mais uma vez

o mérito a Pende de ter estudado, primeira e profundamente, a relação entre

ambos. Para este autor, as predisposições hereditárias familiares eram

frequentemente inaparentes, sendo que quando uma doença se manifestava

haveria, pelo menos, uma desproporção entre os sintomas e as causas da

mesma (sintoma exuberante e causa “insignificante”).121

                                                                                                               
118
Ibid, 279.
119
Ibid, 280.
120
Ibid, 281.
121
Ibid, 283.

  55  
Segundo Martiny, seria através do conhecimento da biotipologia que

“no futuro” seriam prevenidas as doenças de cura difícil, através do domínio

das diáteses. As clássicas descritas foram: a diátese linfática (com o

linfatismo tórpido e o linfatismo erético), a artrítica, a neoplásica, a

neurovegetativa endocrinopática, a mesenquimatosa abiotrófica fibroblástica e

a metabólica (obesidade, magreza, diabetes). Todas elas foram descritas com

suas prováveis alterações hormonais, principalmente ligadas a um

determinado biótipo com estrutura corporal mais ou menos corpulenta.

Quanto às miopraxias, Martiny as correlacionou às patologias do

aparelho digestivo, circulatório, respiratório, hematolinfopoiético, renal,

dermatológico e outros (dentes, olhos e rinofaringe). Aqui, Martiny seguiu a

mesma linha de analogia, associando origem embriológica e processo

patogênico. Fez associações do tipo: “indivíduos longilíneos estênicos

(cordoblásticos) estão mais predispostos às úlceras hipertróficas e os

brevilíneos astênicos (entoblásticos) às úlceras duodenais.”122 acrescentando

que, para Pende, os cordoblásticos eram mais predispostos ao câncer de

estômago e intestino.

Mais uma vez, Martiny tentou correlacionar suas teses com as ideias

da psicossomática da época, usando, por exemplo, o clássico quadro das

emoções reprimidas como causa das perturbações ulcerosas do estômago.123

                                                                                                               
122
Ibid, 280.
123
Ibid, 281.

  56  
2.3.2 Na psiquiatria

No campo da psiquiatria, Martiny, de início, pos em evidência a

importância da correlação entre a mente e o corpo visto que tentaria

relacionar as constituições físicas com certos problemas mentais. Ressaltou

que os problemas mentais não eram configurados nos tipos puros, mas nos

“mixótipos”, ou seja, nos tipos mistos.

Assim, os entoblásticos eram indivíduos com reações lentas e


124
astênicas, distraídos, e “viscosidade mental”. Porém, Martiny não

correlacionou esse biótipo a qualquer patologia mais grave. Os mesoblásticos

puros eram hiper-reativos, os cordoblásticos tinham bom autocontrole e os

ectoblásticos aparentavam ter pouca energia, porém, grande atividade

mental.125

Aqui, Martiny voltou a se referir à “Evolução Cronológica Ascendente”,

realizando uma associação entre problemas mentais e idades cronológicas:

“O adulto idiota tem uma idade mental que não ultrapassa [a


de uma criança de] 2 anos, não atravessa os limites do
entoblastismo. O imbecil com linguagem articulada possui 4 anos
de idade. Ele é centrado no mesoblastismo. O débil mental tem
uma idade biotipológica que não ultrapassa os 8 anos, não alcança
o cordoblastismo e não conhecerá jamais o ectoblastismo.”126

                                                                                                               
124
Ibid, 328.
125
Ibid, 330.
126
Ibid, 328.

  57  
Em sequência, Martiny se propôs a discorrer sobre o “idiotismo”,

segundo o ponto de vista de outros autores, utilizando-se de termos como

“verdadeiro declínio vital”. Discutiu também “o aspecto físico do idiota” que,

por si só, segundo ele, trazia o diagnóstico:

“Sua fisionomia traduz a estupefação, o crânio é por demais


pequeno ou, pelo contrário, por demais volumoso devido à
distensão causada pelo líquido céfalo-raquidiano: as orelhas mal
formadas ou destacadas, a dentição é deplorável, e, aqui, todas as
variedades se reencontram; sua linguagem é rudimentar e seus
meios de expressão estão frequentemente limitados a alguns gritos
através dos quais refere que tem fome.”127

2.3.3 Na terapêutica e na toxicologia

Martiny sugeriu que a relação entre a terapêutica (medicamentosa) e a

biotipologia estava na individualização das doses, relacionando-a a uma

“especificidade biológica”, sendo que cada “unidade viva tem sua

individualidade própria, seja ela uma célula ou um grupo de pessoas”, 128

enquanto que a reação destas unidades aos agentes patógenos poderia

variar quanto a sua intensidade (forte, mediana e fraca).

Nesse contexto, refere-se aos limites entre doses terapêuticas e

tóxicas no tratamento das doenças segundo a suposta intensidade do

acometimento. Assim, por exemplo, para os processos patológicos “fracos”,


                                                                                                               
127
Ibid, 329.
128
Ibid, 358.

  58  
Martiny recomendou o uso das “microdoses”, que atuariam na

hipersensibilidade celular, indicando a homeopatia como a melhor alternativa

terapêutica nessas situações.129

Também menciona modalidades terapêuticas não medicamentosas,

como é o caso dos procedimentos cirúrgicos, que curavam de maneira

“enérgica” alguns processos patológicos locais.130 Por outro lado, explicou os

processos metastáticos nas doenças como fenômenos físico-químicos de

migração da “energia vital” no organismo. Exemplificou dizendo que um

eczema, ou um reumatismo, podiam combater um processo de hipertensão

arterial, ou que a supressão produzida pelas vacinas podia levar, em última

instância, a uma hemorragia cerebral.131 Vale a pena observar que esta tese é

aceita por algumas correntes da homeopatia hodierna.

2.3.4 Na pedagogia e nas profissões

Martiny iniciou este capítulo com uma intrigante citação de Henri

Lacordaire132 : “A liberdade é o esmagamento dos fracos”133.

No campo da análise das tendências profissionais, Martiny teceu

reflexões no que tange às características dos biótipos. Elegeu o campo do

                                                                                                               
129
Ibid, 365.
130
Ibid, 366.
131
Ibid, 367.
132
Henri Dominique Lacordaire foi um célebre religioso da ordem dos dominicanos, conhecido
por seus sermões na catedral de Notre-Dame; vide Greenwell, Lacordaire.
133
Essai, 395.

  59  
aconselhamento profissional como um dos principais palcos para a atuação

da biotipologia, acreditando que o êxito profissional dependia da adequação

do direcionamento das crianças de acordo com “suas possibilidades físicas e

intelectuais”.134

Essa tarefa, segundo Martiny, devia ser realizada pelos pais,

professores e pelo médico de família,135 conhecedor da biotipologia. Utiliza-se

da comparação entre seres humanos e cavalos “puro-sangue e de trabalho”,

afirmando que, na tarefa da orientação profissional, não havia intenção de

transformar um no outro e vice-versa: “Se um ser humano realizar uma tarefa

que não aquela para a qual foi projetado, após vários anos, ele colapsará

física ou moralmente”136. O conhecimento da biotipologia evitaria este tipo de

transtorno, segundo Martiny.

Alfred Binet (1857-1911) é citado por Martiny como uma referência

para testes mentais a serem aplicados em crianças, com o fim de avaliar sua

“idade mental”. No entanto, Martiny lamenta que, na época, tais testes não

eram mais tão utilizados por pais e professores. Os testes mentais

possibilitariam detectar deficiências, inclusive as transitórias “perturbações

mentais” de origem endócrina da adolescência. 137

Martiny também ressaltou a importância da noção dos “terrenos

mórbidos” para determinar os ambientes onde os indivíduos deviam trabalhar,


                                                                                                               
134
Ibid, 397.
135
Vide conceitos similares na base da medicina nacional-socialista em Fortes.
136
Ibid, 396.
137
Ibid, 404.

  60  
evitando locais que pudessem predispor aos adoecimentos. Por exemplo, os

heredo-tuberculínicos (ectoblásticos) deveriam evitar ambientes com muita

umidade ou poeira, pois poderiam desenvolver doenças pulmonares

ocupacionais.

2.3.5 Na educação física e nos esportes

Neste campo, Martiny também tentou apresentar a biotipologia como

mecanismo para a seleção das atividades mais adequadas aos biótipos já

discutidos: “Todo excesso de desenvolvimento muscular, portanto, sobre um

segmento do corpo, em desacordo com o biótipo geral (de um indivíduo) é, no

futuro, uma possibilidade de adoecimento.”138

Não seria supérfluo lembrar que, dada a situação política do século XX,

os esportes se tornariam um veículo de ufanismo e valorização nacionalistas,

sendo os atletas os casos exemplares de um futuro promissor, saudável, os

representantes dos altos valores de seus países. Além disso, os atletas

serviriam como verdadeiras “cobaias” nos estudos de fisiologia, testando os

limites das condições fisiológicas humanas.139 A esse respeito, Martiny redigiu

um texto sobre a biotipologia nos esportes que foi publicado em 1968 sob o

titulo de Sur l’interêt de l’anthroposcopie dans l’étude des sportifs. Martiny

valoriza, em particular, seu trabalho junto a Alfred Thooris (1876-1956) na

Câmara de Comércio de Paris. Thooris fazia parte da chamada “Escola


                                                                                                               
138
Ibid, 416.
139
Fournel, Genre du sport.

  61  
Morfológica” (École Morphologique), com uma tendência à hiperclassificação

altamente descritiva dos tecidos do corpo humano, principalmente dos

esportistas.140

Em seguida, Martiny analisou os tipos mais frequentemente associados

a cada modalidade esportiva e propos-se a realizar a previsão daqueles que

lograriam ser campeões dentro das mesmas. Por exemplo, os grandes

vencedores em provas de velocidade no atletismo seriam indivíduos de

grande estatura (longilíneos), pois as características endócrinas destes

seriam favoráveis ao “tônus simpático” e, portanto, às corridas que exigem

velocidade.141

2.4 Hereges entre os ortodoxos

Em 1949 foi publicada, na França, uma obra organizada por Alexis

Carrel intitulada Médecine officielle et Médecines hérétiques.142 Os diversos

capítulos foram compostos pelos maiores nomes da medicina holística da

época, entre os quais Martiny, que desse modo, permite-nos um olhar

particular nas ideias comuns a esse grupo, assim como nos seus interesses

diferenciais.

                                                                                                               
140
Keel, Avènement de la médecine, 414.
141
Essai, 422.
142
Carrel, org. Médecine officielle et médecines hérétiques; doravante referido como
Hérétiques.

  62  
No capítulo introdutório, redigido pelo próprio Carrel, há uma

apresentação de suas ideias acerca do mundo em que vive e sobre as

“funções futuras da medicina”. Ele iniciou mostrando uma preocupação com a

situação da saúde do ser humano de seu tempo, de maneira bastante

pessimista, visto que, segundo ele, a eliminação das doenças infecciosas não

suprimiria o adoecimento moral e psicológico nas sociedades “civilizadas”,

exemplificando com a “fragilidade nervosa”, a “corrupção moral” e a “loucura”.

Concluia, por fim, “nossa raça perde a coragem de viver”. 143 Perguntou-se,

então, se a medicina poderia ajudar a mudar essa situação deplorável, e

propôs três métodos de intervenção para sanar os males da sociedade

moderna.

O primeiro método diz respeito à individualização nos estudos sobre o

ser humano, pois, em última instância, “ele é um objeto único no universo”144.

Além disso, propôs estudos sobre a moral e o caráter, bem como sobre a

clarividência e a telepatia. Carrel mencionou a existência, em Paris, de um

instituto dedicado aos fenômenos metapsíquicos.

O segundo método proposto, que confirma a análise realizada ao longo

da presente pesquisa, é a valorização dos estudos sobre biotipologia e a

eugenia de maneira igualitária para alcançar uma sociedade “mais saudável”:

“É preciso dar mais importância à tipologia humana como já


fez Nicola Pende, na Itália. E, igualmente, à eugenia e à

                                                                                                               
143
Carrel, “Role future de la médecine”.
144
Ibid, 4.

  63  
modelagem do homem pelos fatores físicos, morais, intelectuais,
estéticos e religiosos do meio. Enfim, ao estudo da deterioração
mental e da criminalidade.”

O terceiro método proposto por Carrel foi a realização daquele que

seria o instrumento ideal para a solidificação de uma sociedade saudável em

“todos os aspectos do conhecimento humano”. A criação do Institut de

l’Homme (Instituto do Homem) pode-se dizer que sempre foi um sonho de

Carrel. Essa instituição teria como objetivos primeiros: “definir os princípios da

formação fisiológica e espiritual do indivíduo”, “estudar as condições sociais e

mentais necessárias à vida de cada indivíduo” e, finalmente, produzir estudos

para efetuar “a propagação dos melhores elementos da raça”.145

Carrel finalizou o capítulo afirmando que esse conhecimento podia

proteger os indivíduos contra as doenças orgânicas e contra a deterioração

mental produzidas pela civilização industrial. Ao mesmo tempo, a adoção

desses métodos poderia trazer equilíbrio às atividades humanas, fazendo

com que cada indivíduo se tornasse “um bom elemento” dentro da raça e da

sociedade em que vive:

“Hoje, graças à eugenia e a uma sábia utilização dos fatores


físicos, químicos, fisiológicos e mentais que agem sobre a
formação do indivíduo, este sonho tornou-se realizável. A medicina
pode ajudar na realização das tendências hereditárias de cada um.
No plasma germinativo das raças que ocupam a Europa
Ocidental há, ainda, imensas potencialidades. Estas raças deram
prova de sua força criativa. Seu gênio é de uma diversidade
                                                                                                               
145
Ibid, 8.

  64  
prodigiosa. Ele é expresso por César, por Carlo Magno e por
Napoleão. Mas, também, por Dante, Ruysbroeck, o admirável,
Newton, Pasteur. A gênese dos grandes homens é ainda
desconhecida. Não seria preciso procurá-la, desde já, para a
construção de indivíduos de uma estatura intelectual e espiritual
mais alta?”.146

Assim, finalizou afirmando que a “qualidade de vida é mais importante

que a vida em si”147.

O capítulo redigido por Rémy Colin,148 intitulado ”Existe-il une doctrine

officielle?” (Existe uma doutrina oficial?) lidava com os conflitos entre os

métodos tradicionais na medicina e o surgimento de técnicas novas naquele

momento, como por exemplo, a psicossomática, a biotipologia e a psicanálise.

Já aquele composto por Auguste Lumière149 discutia a retomada da medicina

humoral no século XX. 150 O médico homeopata Léon Vannier, 151 em “La

tradition scientifique de l’homéopathie”, por sua vez, tratou dos princípios da

homeopatia e de seu reconhecimento como sistema terapêutico eficaz.

                                                                                                               
146
Ibid.
147
Ibid, 9.
148
Rémy Colin (1880-1957), médico que praticava o que poderíamos qualificar como uma
“medicina psicológica”, era professor de histologia na Faculdade de Medicina de Nancy; suas
obras incluem textos sobre a “metafísica da vida”; vide http://www.professeurs-medecine-
nancy.fr/Collin_R.htm Acesso em 11/08/11.
149
Auguste (1862-1954) e seu irmão Louis Lumière são universalmente conhecidos pelo
desenvolvimento do cinematógrafo. Além disso, Auguste montou um laboratório de pesquisas
fisiológicas e farmacológicas, em Lyon, visando a fabricação de novos medicamentos;
publicou, também, textos nas áreas de biologia e de medicina; vide Sapp, Evolution by
Association, 104.
150
Lumière, “La Médecine humorale et ses résultats”.
151
Léon Vannier, (1880-1963), foi uma das maiores autoridades da homeopatia francesa
moderna; suas ideias são aplicadas até a atualidade. Vide Weisz, 84.

  65  
A defesa das teses da medicina naturalista, acerca de que o ser

humano deveria voltar às suas origens primordiais e ao contato com a

natureza e seus elementos, é o conteúdo da contribuição de Joseph

Poucel.152 Outro autor muito conhecido no ambiente das chamadas medicinas

alternativas é o médico George Soulié de Morant.153 Seu capítulo nesta obra

discorre sobre a acupuntura, a “energia vital”, e a “eletricidade cósmica”.154

Pouco conhecido na atualidade, René Allendy (1889-1942) foi uma das

figuras centrais no palco da medicina holista francesa na primeira metade do


155
século XX. No contexto de Hérétiques, discorreu sobre “agentes

imponderáveis” que, no caso, deviam ser entendidos como elementos

místicos e espirituais que podiam interferir no exercício da medicina.

Como esperável, o capítulo de Martiny está dedicado ao neo-

hipocratismo.156 Além de apresentar um breve histórico do movimento neo-

hipocrático e sua situação contemporânea na França, retomou alguns dos

pontos centrais do seu manifesto programático, diferenciação entre

“experimento” e “experiência” (a ser enfatizada à custa do primeiro), a

oposição “análise versus síntese” em medicina, etc. - como justificativa para o

                                                                                                               
152
Joseph Poucel 1881-1971), grande representante do movimento naturista na França,
nesse capítulo discorre sobre sua experiência na prática da medicina, baseada na prevenção
de intoxicações com álcool e tabaco, a exposição do corpo nu ao ambiente (“o ar”) e à água
(hidroterapia), alimentação vegetariana etc.
153
George Soulié de Morant (1878-1955) é reconhecido como o introdutor da Medicina
Tradicional Chinesa na França e, consequentemente, a acupuntura no Ocidente; vide Lutaif,
“George Soulié de Morant”
154
“Acuponcture, énergie vitale et électricité cosmique”.
155
Vide Weisz, 73.
156
“Nouvel Hippocratisme”, 141.

  66  
que considerou ser a necessidade de retornar “ao plátano de Cós” 157 .

Acentuando, entre outros conceitos, a utilidade terapêutica da vis medicatrix

naturae, a importância dos fatores ambientais, dietéticos, a atividade física e a

higiene mental – os “non naturales” – o “neo-hipocratismo” serviu a Martiny

para fundamentar sua teoria dos biótipos.

É nesse contexto que encontramos comprovação documental da

hipótese desenvolvida ao longo da presente obra. Em 1945, Martiny,

aparentemente, não encontrou obstáculos de qualquer natureza para

enunciar explicitamente a relação entre biótipos e raças humanas. Em função

do estado da discussão sobre as possíveis relações entre o movimento

médico holista francês, a eugenia e as teorias racistas, vale a pena citar por

extenso:

“Estes quatro biótipos básicos podem ser ligados a uma


ordem cronológica da evolução racial. Pode-se, de fato, admitir
que, graças ao atavismo e apesar das pluralidades da mestiçagem,
os fenótipos de aparência o bastante pura lembram os genótipos
fundamentais.
Assim: 1o O endodérmico com o corpo inclinado para frente, a
nuca curvada, o queixo recuado, pode estar ligado aos antropoides
e aos negroides, ainda inteiramente polarizados sobre uma vida
nutritiva essencialmente vegetariana.
2o O mesodérmico, ainda curto na perna, mas cuja atitude é
em linha reta, no qual o queixo se endireita, no qual o nariz se
desenha e se curva, pode estar ligado aos primeiros homens,
conquistadores e caçadores, nômades e carnívoros.

                                                                                                               
157
Hérétiques, 143.

  67  
3o O blastodérmico, no qual os membros se alongam, o
ângulo facial se redesenha, e a testa se torna irregular, pode sem
dúvida estar ligado aos primeiros organizadores de uma vida de
relação, em um momento coletivo e social.
4o O ectodérmico, que cai ligeiramente sobre sua atitude
ereta, que eleva sua fronte e torna côncava a sua nuca,
completando assim o desenvolvimento da cabeça, pode estar
ligado aos primeiros homens civilizados enfraquecidos, os quais, já
com a posse do mundo, tornam-se passivos e com puro
pensamento.”158

Merecem ser ressaltadas nessa construção não somente as

características de maior ou menor aptidão física e mental das raças

respectivas, mas o conceito de uma gradativa evolução racial, levando de

raças meramente “vegetativas” – antropoides e negroides – àquelas

consideradas socialmente mais desenvolvidas e intelectualizadas.

                                                                                                               
158
Martiny, “Nouvel Hippocratisme”, 149. No entanto, admite que cabe a possibilidade de um
entoblástico vir a ser um homem de “muito grande valor, um super-homem mesmo, como
parece ter sido São Tomás de Aquino”, enquanto que o entoblástico, um indivíduo de
intelecto obtuso.

  68  
3. CONCLUSÕES:

BIOTIPOLOGIA E CIÊNCIA

Como pode ser constatado, a associação feita por Martiny entre

biótipos e folhetos embrionários é puramente analógica, sem qualquer

embasamento em trabalho experimental de laboratório. Igualmente, tampouco

foram realizadas mensurações objetivas referidas a aspectos

endocrinológicos, metabólicos ou bioquímicos. Os únicos dados apresentados

por Martiny são antropométricos que, per se, não permitem levar a quaisquer

conclusões fisiológicas, patológicas, psicológicas, sociais, ambientais ou

pedagógicas referidas a algum dos supostos campos de aplicação da

biotipologia. Ao contrário, os trabalhos antropométricos caracterizam

marcadamente as abordagens eugenistas de Galton e Pearson ao nazismo,

apenas para citar as instâncias mais evidentes.

Nossa análise mostra que Martiny, na verdade, infringiu todos os

pressupostos mínimos do que se entende como ciência moderna, ou seja, a

tentativa de fundamentar os fenômenos perceptíveis naquilo que é invisível.

Ao que tudo indica, a disponibilidade de instrumentos e outros recursos

necessários limitou mesmo que relativamente, o desenvolvimento desse

objetivo. No entanto, esse argumento não pode ser aplicado no caso de

Martiny, quando se leva em conta o grau de sofisticação da pesquisa

embriológica desde a década de 1880.159

                                                                                                               
159
Vide Waisse, & Alfonso-Goldfarb, “Mathematics ab ovo”.

  69  
Dada esta situação combinando pistas de elementos eugênicos e

bases epistemológicas notavelmente deficitárias, investigamos as possíveis

vinculações de Martiny com movimentos eugenistas e/ou explicitamente

racistas. Como foi discutido, os poucos estudos referidos à eugenia e ao

movimento holista na França, da primeira metade do século XX, tendem a

subestimar, senão a negar, essa rede de conexões. Nossa análise da

documentação indica as origens claramente eugenistas, com indícios de

finalidade racista da construção da biotipologia de Martiny, que talvez deva

então, principalmente se tomarmos a obra Hérétiques como referência, ser

diferenciado dos demais participantes do movimento holista.

Certamente, depois do final da Segunda Guerra Mundial, esse tipo de

discurso passou a ser politicamente incorreto e desapareceu do contexto das

chamadas biotipologias. Em particular, procurou-se “limpar” o nome de

autores como Pende, cuja associação com o fascismo e o racismo continua

atualmente sendo polêmica na Itália.

Assim, não causa surpresa que o próprio Martiny fizesse uma

autocrítica explícita. Em 1973 publicou, no Bulletin et Mémoires de la Société

d’Anthropologie de Paris, o artigo “Quelques réflexions critiques sur

l’existence des morphotypes humains”, onde reavaliou sua experiência com a

antropometria nos ambulatórios da Câmara de Comércio, discorrendo sobre

os resultados de suas observações, questionando se os resultados seriam,

realmente, concordantes com o que ele e Pende haviam descrito

anteriormente. Indagou a si mesmo como outros autores de sua época se não

  70  
teriam realizado seus estudos baseados em um padrão ditado por Galeno e

repetido pela tradição galênica através dos tempos:

“De qualquer forma, em 1973, a validade da base dos


biótipos é censurável. Não só a sua interpretação é difícil, mas, se
existir, é tal que os grupos endoblástico, mesoblástico,
cordoblástico, ectoblástico são de uma qualificação muito difícil
(aproximativa). No entanto, eles respondem a uma predominância
de formas bastante óbvia, pela antroposcopia. Com apenas um
relance, podemos diferenciar um cavalo de um puro-sangue. Este é
o método que foi aplicado principalmente para os homens no
estudo de nossos biótipos.”160

Assim, a teoria das biotipologias foi depurada de todo elemento

eugenista e/ou racista, a sua falta de fundamentação empírica foi

curiosamente omitida e, apesar de todas as suas contradições, como

explicitadas na presenta obra, ela continua a ser apresentada como “ciência

provada” em diversos contextos.

                                                                                                               
160
Martiny, “Quelques refléxions critiques”, 267.

  71  
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