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SUMARIO

1. Fontes e Escopo
2. Exemplos de Doenças
3. Antes de Hipócrates
4. Hipócrates, Corpus Hippocraticum e a Definição da Medicina
5. As Teorias Hipocráticas
6. As Práticas Hipocráticas
7. A Religião e a Medicina nos Séculos V e IV na Grécia
8. De Platão a Praxágoras
9. Alexandria, Anatomia e Experimentação
10. A Medicina Helenística
11. Roma e a Transplantação da Medicina Grega
12. As Consequências do Império − Farmacologia, Cirurgia e o Exército
Romano
13. A Ascensão do Metodismo
14. Alternativas Humorais
15. A Vida e a Carreira de Galeno
16. A Medicina Galênica
17. A Diversidade da Prática da Medicina, sobretudo no Universo Masculino
18. A Medicina e as Religiões do Império Romano
19. A Medicina do Império Romano Tardio
20. Conclusão Bibliografia

Agradecimentos
Este livro, que demorou mais tempo para ser concluído do que o editor original,
o falecido Roger French, e eu pretendíamos, contou com a colaboração de
muitas pessoas. Diversos trechos do livro foram apresentados em conferências e
seminários no mundo inteiro, e agradeço aos comentários e críticas do público
nessas ocasiões, em especial em Londres, Paris e Pisa. Diversos colegas leram e
comentaram o manuscrito inteiro ou parte dele: Elizabeth Craik, Jason Davies,
Helen King, Cornelius O’Boyle, Thomas Rütten, Manuela Tecusan, Philip van
der Eijk e Heinrich von Staden. Isabella Andorlini, Klaus-Dietrich Fisher, Ivan
Garofalo, Mariaelena Gorrini, Ralph Jackson, Marie-Hélène Marganne,
Innocenzo Mazzini e Gotthard Strohmaier mantiveram-me informado sobre as
mais recentes descobertas em suas áreas específicas de interesse e permitiram
que citasse alguns de seus trabalhos ainda não publicados. Ralph Jackson e
Nikolai Serikoff cederam gentilmente fotografias de suas coleções. Tive também
o privilégio de discutir muitas ideias deste livro com dois amigos que, de
maneiras diferentes, deram uma grande contribuição ao estudo da medicina
antiga, Luis Garcia Ballester e Owsei Temkin. Nenhum dos dois aprovou
totalmente algumas das minhas especulações, mas ambos me encorajaram a
seguir meu objetivo de apresentar a um público mais amplo minhas descobertas
recentes e a de outros estudos acadêmicos. Este livro é o resultado de uma longa
colaboração com o Wellcome Trust e o Wellcome Institute for the History of
Medicine, como eram chamados antes de encerrarem suas atividades no ano
2000. Meus colegas acadêmicos, que agora trabalham no Wellcome Trust Center
for the History of Medicine em UCL, há muito tempo toleram meus interesses
excêntricos em nosso campo de pesquisa comum, e diversos alunos e colegas da
área de pesquisa mantêm minhas ideias em constante desafio. Minhas
secretárias, Frieda Houser e Sally Bragg, proporcionam certo grau de ordem em
minha vida, em geral sob extrema pressão. Jane Henderson fez o trabalho
importante de compilar o índice. Diversos estudantes de medicina ouviram com
prazer histórias do Dr. Galeno e, embora não acreditem, ensinaram-me medicina
e como falar em público. Vários diretores do Departament of Anatomy, em
especial Geoff Burnstock e Nigel Holder, incentivaram minhas pesquisas como
parte do programa mais abrangente do departamento. Por sorte tive acesso aos
acervos das melhores bibliotecas do mundo, como o Institute of Classical
Studies, o Warburg Institute e, o paraíso da pesquisa, a Cambridge University
Library. Agradeço a gentileza e a ajuda de seus funcionários. Mas este livro iria
demorar ainda mais tempo para terminar se não fossem o extraordinário acervo e
os ainda mais extraordinários funcionários da Wellcome Library. Em qualquer
departamento, seja no Reprographics Department, onde Chris Carter fez
milagres com a câmera e Catherine Draycott ensinou-me os mistérios do
catálogo on-line; seja no Poynter Room, onde, com a permissão de Richard
Aspin, consultei os inúmeros manuscritos e John Symons foi uma fonte
incansável de informações profundas e precisas acerca da bibliografia sobre a
história da medicina; ou nas principais salas de consulta da biblioteca onde
encontrei sempre colegas gentis, entusiasmados e alegres, cuja competência
explorei sem escrúpulos durante muitos anos. Nigel Allan, Eric Freeman, Robin
Price, William Schupbach e Brenda Sutton foram os muitos amigos que fiz na
Wellcome Library. Comecei a escrever este livro no ano 2000, quando ganhei
uma bolsa de estudos do Institute for Advanced Study em Princeton, um paraíso
de tranquilidade acadêmica em um momento de grande turbulência. Agradeço
aos funcionários do instituto e a meus colegas pelas valiosas observações e
discussões que me obrigaram a pensar e a repensar seriamente minha pesquisa.
Minha visita a Princeton foi feita durante meu Research Leave Fellowship do
Wellcome Trust, cujo apoio ao meu trabalho e à história da medicina em geral
foi excelente por muitos anos. Tenho o enorme prazer de agradecer o estímulo
que recebi de Peter Williams, Bridget Ogilvie, David Allen e dos funcionários
administrativos. Meu profundo agradecimento à minha família, principalmente,
à minha esposa, que leu cada palavra deste livro em todas as suas versões
iniciais e que contribuiu para melhorar sua lógica, precisão e estilo. Como nós
dois sabemos, este não é o livro que escreveria para ela ao longo de 30 anos, mas
é um testemunho de seu amor e dedicação nesse período. Além dos amigos e
colegas mencionados acima, que me ajudaram na segunda edição deste livro,
gostaria também de agradecer a Glenn Bowersock, Mark Geller, Peter Goode,
Brooke Holmes, Caroline Petit, Laurence Totelin e aos revisores da primeira
edição, em especial John Scarborough e Danielle Gourevitch. Essa segunda
edição é dedicada aos antigos membros do Wellcome Trust Centre for the
History of Medicine em UCL, obrigado a encerrar suas atividades em 2011, um
golpe enorme para todos os pesquisadores interessados no assunto.

Nota ao Leitor Traduzi todas as citações em grego e latim para o inglês, exceto
quando escritas em outra língua, assim como os títulos antigos. Nomes antigos
foram transcritos em geral em sua forma mais familiar, sem nenhuma tentativa
de criar uma coerência entre a grafia grega ou a latina. Com frequência, indiquei
o nome atual ou o local de um antigo lugar. As datas exatas de muitos escritores
antigos raramente são conhecidas, e só é possível definir datas aproximadas.
Procurei ser coerente ao indicar todas as datas a.C., mas só acrescentei d.C.
quando o leitor poderia se confundir com os períodos históricos, sobretudo, nos
capítulos que ultrapassam os limites dos mundos helenístico e romano. É preciso
mencionar duas características da padronização das notas. Os colchetes usados
para isolar o nome de um autor do texto como, por exemplo, [Aristóteles],
indicam que não temos certeza de que a obra seja de sua autoria (em geral sem
nenhuma certeza). Nesse sentido, por razões evidentes no texto, refiro-me ao
Corpus Hippocraticum sempre como [Hipócrates]. Em segundo lugar, os dois
principais conjuntos de textos de medicina antiga são citados de duas maneiras
diferentes. Todas as referências aos textos de Hipócrates têm um título em
inglês, com o nome do livro e do capítulo, o volume e o número da página de
acordo obra padrão de Émile Littré (Paris: Baillière, 1839-61). Por sua vez, para
economizar espaço, citei Galeno apenas pelo volume e número da página citados
na obra padrão de K. G. Kühn (Leipzig: K. H. Knobloch, 1821-33), com o
acréscimo, se possível, do número da página de uma versão em inglês
disponível. Quando necessário, mencionei também um texto aprimorado de uma
edição mais recente, em geral, nas séries CMG. Os textos não incluídos na
edição de Kühn foram citados pelo título, seção e página de uma edição moderna
importante. Usei, com frequência, edições padrões de outros textos antigos, com
a indicação se necessário do nome do editor. Não fiz referências bibliográficas
completas aos papiros, em geral indicados por P., e às inscrições como, por
exemplo, I. Ephesos ou Griechische Versinschriften. As pessoas com
conhecimento do grego ou do latim que quiserem examinar esses documentos
em sua versão original devem consultar a lista de abreviaturas em Liddell, H. G.,
Scott, R. e Jones, H. S. (1968) A Greek-English Lexicon, ed. 9, com
Supplement, Oxford: Oxford University Press; e o Supplement revisto (1996)
org. P. G. W. Glare, Oxford: Clarendon Press; ou no Oxford Latin Dictionary
(1968-82) Oxford: Clarendon Press.

1 Fontes e Escopo

A história é a arte de esquecer e lembrar ao mesmo tempo. Muitas das vozes do
passado, em especial os derrotados em qualquer conflito, na melhor das
hipóteses têm um eco distante, e quanto mais nos distanciamos no tempo
maiores são as lacunas de nosso conhecimento. Os dois milênios ou mais que
nos separam dos gregos antigos e dos romanos significam que qualquer
reconstrução abrangente de suas ideias sobre saúde e cura é repleta de
problemas. As vicissitudes da palavra escrita ao longo dos séculos reduziram
radicalmente a abrangência do material de pesquisa a uma fração do que antes
existia. Em consequência, o mero fato da preservação desse material deu
relevância a determinados documentos e impôs uma maneira de pensar em
relação a eles, que algumas vezes distorcem a realidade histórica. Meu objetivo,
ao analisar neste capítulo o processo de destruição, e ao definir em geral algumas
consequências das lacunas históricas que afetam a compreensão do passado, é
enfatizar a fragilidade da informação histórica e a necessidade de estarmos
abertos a interpretações alternativas do que ainda existe.1 No entanto, quando
mencionamos registros escritos corremos o risco de esquecer que grande parte
da medicina grega e romana não constava de textos escritos, porque em uma
sociedade na qual a alfabetização restringia-se à elite masculina, a comunicação
oral predominava. A “velhinha idosa” para quem Scribonius Largus comprou um
remédio para o estômago em torno de 40 d.C. e os camponeses da Toscana e da
Corcira que, 500 anos depois, forneceram informações a Alexandre de Trales
sobre seus remédios, eram quase com certeza analfabetos.2 Muitos detalhes do
exercício da medicina como, por exemplo, a de fixar um osso quebrado ou a
intervenção para remover o pus de um panarício, ou como reconhecer e escolher
ervas medicinais nas florestas e nos campos, e como fazer o diagnóstico de
doenças, eram ensinados oralmente e pelo exemplo prático, e só raras vezes
eram textos escritos.3 Não sabemos o que o botânico Teofrasto aprendeu em
suas conversas com lenhadores por volta de 330 a.C. e, ainda mais importante,
por que a trepanação, a remoção de pequenos círculos de osso do crânio, era
realizada na Grécia pré-histórica.4 Só é possível imaginar as palavras usadas
pelos antigos exorcistas para expulsar as doenças descritas pelo autor de A
doença sagrada no século V a.C., sem reconhecimento legal (“embora alguns
exorcismos tenha, surtido efeito ) de um advogado romano por volta de 200
d.C.5 Só é possível especular o conteúdo das palestras sobre medicina proferidas
por Asclepíades de Perga no ginásio de sua cidade natal ou em Selêucia (Sul da
Turquia), uma cidade vizinha, que contribuíram para a concessão oficial de uma
coroa de ouro e da cidadania de Selêucia e de um memorial público em
Pérgamo.6 Nem temos o privilégio de fazer uma antiga consulta ou assistir a
uma cirurgia. Tudo isso precisa ser reconstruído na imaginação a partir de relatos
de casos, tratados educacionais que davam conselhos sobre o que deveria
acontecer, descobertas arqueológicas de instrumentos e remédios, além de
representações artísticas ocasionais de um momento idealizado.7 Além disso, a
escrita não garantia a sobrevivência do que havia sido copiado. Não eram
prescrições médicas arranhadas em pedaços quebrados de cerâmica, que corriam
o risco de serem destruídas. Os fragmentos de livros luxuosos de herbários e
tratados de medicina importantes escritos em papiro encontrados nas areias do
Egito são um testemunho igual às destruições fatais do tempo e do
esquecimento.8 Vestígios assustadores de uma literatura extensa que
desapareceu. Como gostaríamos de consultar um tratado de medicina completo
de Diocles, Erasístrato ou de Asclépio de Bitínia, porque sem dúvida mudaria
nossa concepção a respeito dessas figuras influentes, mas também controversas,
cujas opiniões sobrevivem no mundo atual apenas pelos escritos de outras
pessoas, com frequência de opositores. Nossa compreensão de personalidades
tão famosas como Hipócrates se enriqueceria com o acesso direto aos arquivos
em Cós, supostamente consultados por Sorano de Cós para escrever Vida de
Hipócrates, ou para as conclusões bem menos respeitáveis de Andreas em The
Descent of Medicine, dois livros conhecidos apenas por referências em uma
biografia posterior.9 Não só acadêmicos, como também romancistas e diretores
de cinema se inspirariam muito no tratado de medicina Memória de Doroteus,
com sua história horripilante de uma criança mumificada exibida em Alexandria,
ou as lembranças ainda mais interessantes de Olimpus, um médico da corte
brilhante e de curta duração de Antônio e Cleópatra em 30 a.C.10 Com
frequência, conhecemos a existência de uma obra apenas por intermédio de outro
autor, que a critica ou a usa com um objetivo sem relação com a medicina. Os 48
livros nos quais o médico Juliano comentou os Aforismos de Hipócrates no
século II só são mencionados por seu opositor, Galeno; só nos restam também
algumas palavras citadas por um escritor de livros de gramática posterior de um
tratado de medicina de seu contemporâneo, o famoso orador romano e autor de
O asno de ouro, Lucio Apuleio.11

Figura 1.1 Uma página de um livro ilustrado de ervas medicinais escrito em


papiro no Egito c.400 d.C., que possivelmente mostra um symphytum officinale,
nome científico do confrei. Londres, Wellcome Ms. 5753. Cortesia da Wellcome
Library, Londres.

O desaparecimento de uma quantidade expressiva da literatura antiga sobre


medicina foi resultado, em parte, da ausência relativa de depósitos adequados e
seguros para guardar os livros durante séculos. Com exceção dos acervos dos
templos, havia poucas bibliotecas grandes que, além disso, ficavam distantes
umas das outras. As grandes bibliotecas foram criadas por reis e governantes
riquíssimos, como a de Alexandria, no século III, e a de Pérgamo, um século
depois.12 A biblioteca pública de Celso em Éfeso refletia a riqueza, o bom gosto
e a posição imperial elevada de seu doador, Ti. Julius Aquila Polemeanus, cônsul
de Roma em 110 d.C.13 Por outro lado, a maioria das bibliotecas privadas era
pequena e dispersava-se com frequência. Uma escultura do túmulo de um
médico em Óstia, o porto de Roma, mostra só alguns rolos de livros e Galeno de
Pérgamo orgulhava-se de ter ajudado médicos pobres a comprar livros e
instrumentos, que não poderiam adquirir de outra forma.14 Na verdade, na época
de Galeno havia um comércio próspero de livros sobre medicina em Roma, onde
era possível comprar os 156 livros escritos pelo médico da corte imperial,
Tiberius Claudio Menecrates, que fundou sua escola de medicina “clara e lógica”
em meados do século I, e os amigos ricos de Galeno mandavam fazer cópias de
seus discursos para enviar à Ásia Menor ou à Palestina.15 Mas a maioria dos
médicos na melhor das hipóteses teria alguns manuais sucintos ou resumos de
doutrinas antigas para complementar o que haviam aprendido oralmente, ou por
terem assistido a outros médicos operarem ou fazerem palestras em teatros e
espaços públicos.16 A distância entre o conhecimento de Galeno adquirido em
livros e sua expectativa do médico competente era enorme, sem mencionar
outros médicos que julgava ignorantes e incompetentes. Na realidade, ele quase
tinha de pedir desculpa ao público por sua paixão incomum por livros de
medicina e por gastar tanto dinheiro comprando-os.17 Mais tarde criou-se uma
lenda de que mandara fazer exemplares de seda com letras bordadas e de ter um
raro tratado do antigo filósofo Anaxágoras.18 Mas Galeno era filho de um
arquiteto rico, vivia em uma cidade rica na época do auge da prosperidade de
Roma e, portanto, tinha recursos para comprar os livros ou copiar os que o
interessavam. Porém na escala médica essa bibliofilia era um luxo caro. Em
resumo, a sobrevivência da literatura médica antiga dependia de dois fatores: de
copiar e recopiar os textos ao longo dos séculos, assim como da existência de
pessoas e instituições interessadas em livros e que tinham uma condição
econômica para comprá-los e preservá-los.19 É possível que alguns tratados
como o Anatomia de Diocles, tenham se perdido por terem sido superados por
progressos posteriores; outros, mesmo tendo sido escritos por autores renomados
como Galeno, desapareceram por serem muito especializados. Os acasos da vida
cotidiana também tiveram influência na preservação dos livros. Galeno perdeu
muitos de seus livros no grande incêndio de Roma em 192 e copiou exemplares
de amigos para recuperar pelo menos uma parte.20 No ano 500, no mundo de
língua latina, que se estendia da Inglaterra, Gália, Espanha até as atuais Argélia e
Tunísia, em uma sociedade empobrecida em consequência da guerra, conquistas,
impostos elevados e o colapso econômico em geral, os livros eram uma raridade
e a maioria era cópia das escrituras sagradas e de livros de teologia. A cultura
médica latina que ainda florescia no Norte da África em 450, com escritores
como Célio Aureliano e Cassius Felix, quase se extinguiu quando as instituições
civis que a apoiavam enfraqueceram-se e, por fim, se fragmentaram. As
prioridades das igrejas e dos mosteiros, que preservaram a maior parte do
conhecimento do latim clássico em suas bibliotecas, não era naturalmente a dos
médicos. Nesse sentido, era preciso escolher o que copiar e preservar e o que
descartar. Um tratado filosófico erudito sobre teoria médica segundo o modelo
de Galeno, ou uma pesquisa de muitos volumes sobre medicina em geral era
irrelevante, porque um compêndio sucinto que reduzisse a medicina a uma
abrangência factível, com uma gama restrita de tratamentos práticos em um
único volume seria muito mais necessário. Esse processo é ilustrado com
precisão no destino da História Natural, uma vasta compilação científica de
Plínio, o Velho (23-79 d.C.) acerca do mundo da natureza. Embora os
manuscritos dessa enciclopédia colossal tenham continuado a ser escritos, as
seções sobre medicina tiveram uma circulação maior na Antiguidade tardia e no
início da Idade Média na forma de resumos separados, os chamados Medicina de
Plínio e Física de Plínio.21 Essa catástrofe literária resultou no quase total
desaparecimento de escritos médicos em latim do período antes de 350 d.C. O
livro de receitas médicas de Scribonius Largus e talvez o poema médico de
Quintus Serenus, de data desconhecida, são os únicos sobreviventes de obras
escritas por médicos, porque tanto Cornelius Celso, autor de Sobre a medicina,
quanto Plínio eram amadores ricos.22 No entanto, isso não significa que os
resumos e os manuais em latim de meados do Império Romano tardio devam ser
desprezados, como Valentin Rose os menosprezou, chamando-os de “uma
literatura para bárbaros”, porque grande parte deles originava-se de textos
eruditos mais extensos, alguns deles escritos em grego.23 Mas o processo de
adaptação e, quando necessário, de tradução resultava em um livro com uma
aparência e leitura muito diferente de suas fontes. Por esse motivo, limitava os
diagnósticos e as terapias alternativas e restringia ainda mais a dúvida filosófica:
concisão, clareza eram o que era necessário. Uma redução semelhante de obras
de medicina disponíveis ocorreu também no mundo mais rico de língua grega ou
bizantina em meados do Império Romano tardio, embora por razões e uma
cronologia muito diferentes. A atividade intelectual que não se restringia à
teologia estagnou-se por um século a partir do ano 650. Poucos livros de
medicina e de ciência foram copiados nesse período e ainda foram escritos em
menos quantidade. Porém o processo de declínio começara bem antes do século
VII e continuaria por muito tempo. Enquanto um texto em latim que ainda podia
ser lido no ano 700 poderia ter sobrevivido até o mundo atual, as perdas de
trabalhos de medicina escritos em grego continuaram regulares por diversos
séculos. Em parte essas perdas parciais foram resultado do triunfo do galenismo.
Apesar do interesse de outras pessoas em preservar e estudar os ensinamentos de
Hipócrates, a visão de Galeno de Hipócrates e do Corpus Hippocraticum
predominaria a partir da Antiguidade tardia. Galeno separou as obras genuínas
ou não de Hipócrates, o que de fato valeria a pena estudar e o que poderia ser
descartado, e suas decisões foram a tal ponto aceitas que o galenismo e as ideias
de Hipócrates eram consideradas idênticas. Para os gregos de Bizâncio medieval,
Hipócrates e Galeno eram quase divinos, merecedores de serem homenageados
em afrescos junto com os patriarcas e profetas como arautos da verdade cristã.24
Suas opiniões tinham uma autoridade semelhante e ajudaram a marginalizar e,
por fim, a eliminar competidores. Outras tradições da medicina erudita,
sobretudo, o empirismo e o pneumatismo, que floresceram de 250 a.C. a quase
500 anos depois, desapareceram, exceto por fragmentos preservados nas obras
de outros escritores. Textos em latim posteriores, como os de Célio Aureliano,
destacaram mais a terapia metódica do que os textos em grego. Visões diferentes
das ideias de Galeno restringiram-se a áreas da medicina em que Galeno pouco
interferira como, por exemplo, em ginecologia do metódico Sorano, ou na
botânica médica de Dioscórides, ou quando, por acaso, livros escritos por outras
pessoas ficavam em anexo ou eram confundidos com tratados genuínos de
Galeno, como Definições médicas ou A tomada do corpo pela alma.25 Novos
textos disponíveis graças à descoberta de traduções medievais da medicina grega
antiga para línguas orientais (sírio, árabe, hebraico e armênio) não alteraram o
cenário de uma maneira radical, exceto ao revelar o não reconhecimento de
Galeno em relação à sua dívida com os predecessores de Hipócrates, em especial
a Rufus de Éfeso.26 Esse processo de destruição também foi consequência da
maneira pela qual os livros antigos eram feitos e da necessidade de recopiá-los
sucessivamente ao longo dos séculos, caso alguém tivesse interesse em preservar
um tratado específico. Com frequência, esquecemos que Hipócrates está mais
distante no tempo do que Galeno, Leonardo da Vinci ou Martinho Lutero; Paulo
de Égina tem a mesma relação cronológica com Galeno, a exemplo de
Shakespeare com o mundo atual. Além disso, os efeitos multiplicadores e
estabilizadores da impressão tipográfica nos ajudaram. Os livros gregos mais
antigos tinham a forma de um rolo longo e contínuo, difícil de escrever e ainda
mais complicado de consultar uma receita específica ou uma observação. A
partir do século II, o livro em forma de rolo foi aos poucos substituído pelo
códice com um formato semelhante ao livro moderno. Os livros que não foram
transferidos para o novo formato, a menos que tivessem sido preservados por
acaso nas ruínas de Herculano ou nas areias do Egito, desapareceram. A escrita à
mão grega também mudou ao longo dos séculos e, por esse motivo, os antigos
manuscritos ficaram menos acessíveis às gerações futuras. A mudança mais
significativa na escrita grega ocorreu a partir do ano 850, quando as letras
antigas mais quadradas e maiores foram substituídas por uma caligrafia menor e
mais redonda, e com muito mais abreviações. No famoso manuscrito ilustrado
de Dioscórides de ervas medicinais publicado em Viena, originalmente escrito
em 512 ou pouco depois, todos os nomes de plantas e trechos longos do texto
foram transcritos no alfabeto grego “moderno” em torno de 1406, provavelmente
porque a escrita original era difícil de ler (e para o observador atual uma escrita
mais bonita). O novo formato da letra tinha a vantagem adicional de economizar
pergaminho ou papel, e ao longo do tempo eliminou o antigo formato.27 A
segunda grande destruição de textos gregos de medicina ocorreu durante essa
transição. Os livros que estavam sendo reproduzidos foram escolhidos pelo
critério de uso mais abrangente ou por serem uma fonte fidedigna. Muitos dos
textos mais teóricos de Galeno ainda existentes no século IX, quando foram
feitas as traduções para o sírio e o árabe, desapareceram logo depois. Os livros
grandes, mais caros de produzir, corriam um risco maior. Quando Hunain ibn
Ishaq procurou manuscritos gregos de Galeno por volta de 850 teve muita
dificuldade em achar exemplares do Sobre a Demonstração e dos três livros,
Sobre Erasistratus Conhecimento anatômico, que desapareceram na versão em
grego.28 O enorme compêndio de autoajuda médica de Rufus dedicado a leigos
(“os que não tinham acesso a um médico”) e seu tratado sobre melancolia
também desapareceram na mesma época.29 As guerras e as conquistas
influenciaram a destruição dos livros, quando o mundo bizantino reduziu-se ao
oeste da Anatólia, à Grécia, à Constantinopla e ao sul da Itália. É difícil calcular
a gravidade da perda de textos de medicina quando Constantinopla foi saqueada
pelos cruzados em 1204, e, apesar de algumas obras de medicina antigas terem
sobrevivido, desapareceram mais tarde, talvez em 1453, com a conquista de
Constantinopla pelo Império Otomano, que resultou na dispersão e perda de
muitos textos antigos em grego. O médico e tradutor, Niccolò de Reggio, que
trabalhou na corte de Nápoles na primeira metade do século XIV, traduziu pelo
menos cinco livros de Galeno para o latim, que não mais existiam na Grécia,
com base em manuscritos obtidos em Constantinopla e no Sul da Itália.30 Esse
desaparecimento gradual de textos medievais antigos é ilustrado com precisão
pelo destino do livro Sobre os movimentos problemáticos, de Galeno. O livro foi
traduzido duas vezes para o sírio e uma vez para o árabe no século IX, e Marco
de Toledo fez uma tradução para o latim a partir da versão em árabe por volta de
1200. O livro escrito em grego, ainda disponível à consulta em 1320, quando foi
traduzido do grego por Niccolò, foi citado uns 30 anos depois por um estudioso
bizantino. Mas até então não havia uma versão completa do manuscrito grego e a
história complicada da impressão da tradução para o latim de Marco convenceu
com facilidade os estudiosos a partir de 1540, que o trabalho de Marco era, na
melhor das hipóteses, um pasticho do original de Galeno.31

Figura 1.2 Publicação das obras de Galeno no Renascimento. Uma página da


publicação feita na Basileia em 1538 das obras completas de Galeno pertencente
a John Caius (1570-73). A margem tem anotações e comentários copiados de
livros e manuscritos gregos que Caius viu na Inglaterra e na Itália. Eton College,
v. IV, p. 286. Reproduzida por permissão do Provost and Fellows de Eton
College. A impressão de textos de medicina gregos, que começou efetivamente
em Veneza em 1499 com obras de Aldine Dioscorides e continuou no ano
seguinte com o primeiro volume do projeto de edição (nunca concluído) das
obras de Galeno por Kallierges e Blastos, foi um marco decisivo no processo de
impressão.32 Atualmente, o material disponível à consulta foi em grande parte
publicado entre 1499 e 1540.33 Havia uma quantidade enorme de manuscritos
raros guardados por pouco tempo em bibliotecas isoladas ou inacessíveis no
século XVI, mas os indícios da existência desses textos baseavam-se mais nas
histórias de viajantes e especulações intelectuais do que em fatos comprovados.
A destruição da herança escrita da medicina grega diminuiu com o início da
impressão; desde então nenhum tratado impresso se perdeu. O processo de
destruição foi de certa forma revertido no último século. Exceto pela descoberta
extraordinária em 2005 de obras de Galeno no mosteiro Vlatadon, os papiros
encontrados no Egito revelaram nomes e textos de escritores desconhecidos; a
abertura de bibliotecas e a consulta a acervos no Oriente Médio recuperaram,
embora traduzidos, alguns tratados que haviam desaparecido há mais de um
milênio. É possível que sejam feitas novas descobertas. No entanto, essa
recuperação parcial, apesar de valiosa, não encobre um fato essencial. Hoje,
temos só uma pequena parcela do que existia na Grécia em 850, uma fração da
literatura acessível de Galeno, e quanto à Antiguidade só nos restam fragmentos,
títulos ou nenhum documento. Essa limitação de fontes de pesquisa exige cautela
por parte dos historiadores da medicina antiga em fazer qualquer generalização
baseada em documentos preservados, ou ao fazer pronunciamentos mais
definitivos. Existem muitas lacunas nas fontes médicas que sobreviveram ao
longo dos séculos e, portanto, não podemos depositar confiança total em
hipóteses, e o caminho mais seguro é a análise das possibilidades ou a definição
de parâmetros. Assim, no que se refere a medicina antiga, medicina grega,
medicina romana ou qualquer denominação que se possa escolher, essa análise
ou opinião sobre a medicina antiga, sobretudo, quando impressos, permite dar
um sentido de abrangência e finalidade, que as evidências raramente
proporcionam. Mas o leitor deve manter certo ceticismo e considerar que essa
exposição é um delineamento de possibilidades e não um mapa detalhado.34 A
natureza fragmentada das fontes preservadas faz com que a história da medicina
antiga, baseada em grande parte em escritores de textos médicos, seja difícil de
apreender, se não impossível, além de ser uma oportunidade e um desafio. Em
muitos aspectos da saúde e da cura é possível consultar documentos produzidos
por autores que não eram médicos em contextos leigos – advogados,
historiadores, poetas, dramaturgos, além dos papiros egípcios e das inscrições
em grego e latim do mundo antigo. É verdade que essas informações nem
sempre correspondem às prioridades de um escritor de textos médicos. Já no
século II Galeno lamentou o fato de ter sido Tucídides, o historiador, e não
Hipócrates, o médico, quem fez um relato da grande epidemia que devastou
Atenas em 430-428 a.C.; Hipócrates não teria omitido nenhum aspecto essencial
da informação médica, nem teria usado uma terminologia imprecisa em questões
cruciais.35 Porém, assim não teríamos a admirável análise de Tucídides dos
efeitos da epidemia na sociedade ateniense na época da guerra ou, bem mais
tarde e em uma óbvia imitação de Tucídides, o relato pungente de Procópio
sobre a pandemia de 541-544.36 Outros autores descreveram acontecimentos
mais locais. Um cronista anônimo sírio descreveu a escassez de alimentos na
região de Edessa (atual Urfa, no Sudeste da Turquia) em 499-500, com um relato
vívido de uma comunidade lutando para sobreviver, enquanto os doentes das
regiões rurais chegavam a Edessa em busca de refúgio e para descansar sob as
colunas transformadas em hospitais temporários. É comovente pensar nesses
infelizes andando a esmo pela cidade pegando talos e folhas de legumes, que
comiam mesmo sujos de lama. E as crianças abandonadas pelas mães
envergonhadas, porque “quando pediam algo para comer elas não tinham a dar”.
O destino deles era descrito com indiferença e de maneira lacônica: “os
cadáveres ficavam expostos nas ruas”.37 Assim como esses acontecimentos
memoráveis e incomuns, muitos aspectos da rotina diária de um médico da
Antiguidade foram revelados apenas casualmente por comentários de escritores
leigos. O discurso em um tribunal no século IV a.C. do orador Isócrates
descreveu com detalhes a solidão e a sujeira do quarto de um doente que estava
deitado na cama coberto de pus, com seu mau humor afastando todos os criados,
exceto um que ficou ao seu lado, mas que o doente quase não deixava dormir.
Nessas circunstâncias, não causa surpresa que os membros da família menos
próximos preferiam ficar distantes do parente tuberculoso e agonizante.38
Diversos séculos mais tarde, talvez em torno de 370 d.C., um autor anônimo
escreveu em neossiríaco, a forma comum da língua dos arameus usada no
Oriente Próximo, um relato da vida dos santos médicos cristãos, São Cosme e
São Damião. Ele os descreveu cuidando de seres humanos e de animais da
mesma maneira em suas cirurgias, e nas visitas às vizinhanças durante semanas
ou quando ficavam em casa para pensar, detalhes da rotina das atividades
médicas omitidas por escritores médicos (ou veterinários).39 O orador e o
hagiógrafo nos levaram além do que autores médicos contavam, porque ao
escreverem para seus colegas de medicina não precisavam dar informações que
já eram familiares. As fontes literárias não só mostram relatos rápidos da visão
do paciente e do contexto social da prática da medicina antiga, como também
proporcionam riqueza e vivacidade à história da medicina antiga. As fontes
inserem personagens e dilemas humanos na narrativa austera e impessoal,
porque os autores antigos de textos de medicina raramente eram prolixos ao se
descreverem para os leitores. O médico da tradição de Hipócrates permanecia na
maior parte do tempo anônimo (ou usava um pseudônimo). O biógrafo de
Teodoro Prisciano foi condenado a fazer tijolos de palha.40 Em meio a essa
aridez, agradecemos às inúmeras referências a si mesmo de Galeno, cuja
determinação de mostrar ao mundo quem ele era, o que escrevia e o que
acreditava ser seu objetivo na vida enriqueceu as informações a seu respeito. Em
especial no período romano, existem muitos dados além dos textos estritamente
de medicina, que um historiador pode consultar. As descobertas arqueológicas
revelaram não só a prática de cirurgias, bem-sucedidas ou fracassadas, mas
também os instrumentos e, às vezes, os remédios que os médicos tinham à sua
disposição.41 A posição social dos médicos e dos curandeiros em suas
comunidades, o treinamento que haviam feito e os antecedentes familiares
podiam ser vistos nos comentários (e queixas) dos pacientes, em suas lápides e
inscrições expostas na antiga cidade. Em Éfeso no século II d.C. um observador
atento viu gravados em uma pedra os resultados de uma competição anual de
médicos (com quatro classes de “eventos”), assim como um decreto de Roma
que confirmava os diversos privilégios fiscais concedidos aos médicos por mais
de um século e meio.42 Uma grande pedra registrava as honras concedidas a
Attalus Priscus, filho de Asclépio, “conselheiro municipal, funcionário do
templo, guardião da propriedade de Antônio e membro da dinastia de médicos
municipais”, enquanto outra inscrição dizia que a proteção ao túmulo do médico
municipal Julius era responsabilidade de seus amigos judeus.43 As lápides
comemoravam os sucessos e insucessos de Aquilas, médico da cidade de
Synnada (hoje no centro da Turquia), que casou a filha com um membro de uma
família proeminente há gerações de uma província rica da Ásia ligada à
administração imperial romana nos anos 170 d.C. E ao seu quase contemporâneo
Barbius Zmaragdus, um sócio humilde do colégio de Março em Aquileia, no
Norte da Itália.44 O decreto da cidade de Halasarna em Cós, que homenageou o
médico Onasander em torno de 180 a.C., descreveu longamente a carreira que o
ascendeu de um mero assistente humilde de uma cidade rural para a capital, da
prática da medicina nessa cidade, onde “não hesitava tratar sem remuneração, se
necessário” os antigos amigos da região rural.45 Por outro lado, as pequenas
placas funerárias em Roma de médicos, em geral antigos escravos, só
registravam o nome e a profissão.46 Mas as inscrições funerárias dos médicos
raramente davam detalhes sobre seus hábitos e os textos de medicina
enfatizavam os casos excepcionais e notórios, ou descreviam o que aconteceria
quando tivessem de enfrentar determinada doença. Elas omitiam informações
por julgá-las óbvias para os leitores aos quais os textos destinavam-se; por
exemplo, como os médicos da tradição de Hipócrates haviam anotado os casos
em que trabalharam compilados nos famosos estudos de caso, que compõem os
sete volumes de Epidemias.47 Só com Galeno vimos um médico comentar a
possível confusão causada por cópias escritas com uma péssima letra (as letras
de médicos não melhoraram ao longo dos séculos). Uma solução apresentada por
Servilus Damocrates em torno de 40 d.C. foi a de escrever a receita médica em
verso na expectativa de que as limitações da métrica dessem estabilidade às
fórmulas.48 A melhor descrição do trabalho de um médico comum pode ser
obtida nos papiros do Egito no período greco-romano, que se estendem
principalmente do século II a.C. ao século VI d.C. Eles descrevem as atividades
dos médicos chamados para examinar pessoas feridas em uma briga ou a morte
em circunstâncias suspeitas, receitando, administrando um hospital familiar ou
escrevendo livros.49 Os textos contêm informações sobre o valor dos impostos
que pagavam (e, em comparação, os de seus colegas dos vilarejos e das cidades)
e a correspondência privada deles. Um filho escreveu à mãe para desculpar o
irmão Marcus por não ter ido para casa, a fim de assistir a um enterro, porque
estava preocupado em deixar seus inúmeros pacientes em sua sala de cirurgia.50
Temos indicações dos livros que leram ou tentaram encontrar.51 Alguns textos
fizeram parte de obras de cirurgiões e farmacologistas cultos, às vezes com belas
ilustrações em papiros de alta qualidade, um prazer para manusear e ver.52 Mas
junto com esses textos existem os chamados papiros mágicos, cujos autores
achavam natural pedir ajuda mágica e divina ao tratarem de doenças.53 Os
papiros escritos em copta, a língua dos egípcios nativos, também nos lembram
que em sua expansão os gregos e, em âmbito muito maior, os romanos
incorporaram em suas estruturas políticas regiões e grupos com diferentes estilos
de cura, alguns, como os egípcios, com experiência em medicina mais antiga e
tratamentos mais eficazes, do que seus conquistadores.54 Em que medida os
relatos dos papiros aplicam-se a outras regiões do mundo clássico em épocas
distintas é um assunto delicado. Alguns estudiosos consideram o Egito como
uma região com estruturas sociais e jurídicas peculiares originárias da época dos
faraós, além de fazer parte de um mundo mais amplo da Grécia Helenística e da
Roma imperial. No entanto, mesmo se é preciso prudência ao transferir as
instituições egípcias para outros lugares do mundo antigo, os papiros
proporcionam ao historiador uma percepção da abrangência e diversidade das
atividades médicas fora das grandes metrópoles. Assim, por exemplo, a mistura
de um material nativo com um estrangeiro encontrada no livro de medicina de
Crocodipolis, escrito por volta de 170 d.C., tem uma visão paralela à do Egito
dois séculos depois do escritor latino Marcelo, cujo extenso manual de remédios
práticos, Sobre as drogas, expandiu a tradição de Scribonius Largus e de
Dioscorides ao citar ervas medicinais e práticas de cura de sua Gália nativa.55
Juntos, o material médico e o leigo oferecem uma visão de um único sistema de
medicina da Antiguidade. Esses textos mostram que a diversidade do conceito de
uma história da medicina antiga dificulta sua interpretação desde o início. O
enfoque do pensamento em termos da tradição ocidental de medicina, como
alguns historiadores inclinaram-se a pensar, só acrescentou dificuldades ao tema,
porque a essência da tradição mudara ao longo do tempo e havia criado uma
tensão entre a história do passado vista em seus próprios termos ou, na visão
teológica, como etapas que conduziram ao presente.56 Mas o reconhecimento e
a aceitação desse problema representam um passo para solucioná-lo. Os
instantâneos fotográficos disponíveis podem ser usados para evocar o passado e
são guias mais úteis do que uma página em branco. Eles requerem uma
interpretação e uma cuidadosa percepção das diferenças, porém podem revelar
informações nem sempre visíveis ao primeiro olhar. Textos escritos durante
séculos também indicam continuidades de longo prazo e mudanças, como os
exemplos citados neste capítulo. Além disso, os estudiosos mostraram com
frequência como a diversidade de opiniões pode se harmonizar; como, por
exemplo, a compreensão adquirida pelo estudo da linguagem (ou das
linguagens) da medicina relaciona-se às provas extraídas da história ou da
arqueologia.57 O trabalho realizado a partir da década de 1970, mesmo que não
tenha sempre contemplado escritos de medicina tradicionais, deu uma textura
diferente à configuração histórica de uma geração anterior. Esses novos
desenvolvimentos refletem-se no relato a seguir. Cronologicamente, abrange um
período desde os poemas de Homero e de Hesíodo no século XVIII a.C. a Paulo
de Egina em torno de 620 d.C. Antes dos poetas tínhamos apenas as descobertas
da arqueologia e, diversos séculos antes no mundo grego, as tabuletas de
Micenas. Depois de Paulo, tanto no Ocidente quanto no Oriente, houve uma
lacuna literária de mais de um século. No início o foco geográfico dirigiu-se para
o mundo do mar Egeu, na Grécia, com sua posterior expansão para o Oriente
Médio e o Egito e, mais tarde, para o Império Romano às margens do
Mediterrâneo, mas que incluía uma extensão maior em grande parte da Grã-
Bretanha e da Europa até o rio Elba e o Danúbio mais ao norte. Havia um
relativo consenso em relação a essas definições geográficas, que dependiam do
padrão do relato escrito, o que para a medicina era uma questão mais arbitrária e
problemática. Esse relato abrangia uma série de práticas médicas e ideias, nem
todas universalmente aceitas, na época ou agora, no âmbito da medicina. A partir
do Corpus Hippocraticum houve uma tensão entre as pessoas que queriam
restringir o nome e a natureza da medicina a um tipo de cura ou a um conjunto
de crenças, e as que incentivavam, seja como pacientes seja como praticantes,
métodos e conceitos diferentes. Alguns eram racionais e foram aceitos por essa
razão; outros foram classificados como curas alternativas, complementares,
religiosas ou mágicas, que, dependendo do ponto de vista de uma pessoa, teria
uma conotação pejorativa ou elogiosa; outros poderiam ser vistos como uma
mistura de ambos os tipos de cura. Este livro tem precisamente o objetivo de
analisar essa diversidade, sem se preocupar com o rótulo de qualquer teoria ou
terapia específicas. A escolha desses limites cronológicos e espaciais tem
também o intuito de eliminar diversos preconceitos tradicionais. A inserção das
informações originárias das línguas do Oriente Próximo, do hebraico, do sírio e
do copta é útil para lembrar que o Império Romano não se restringia a um grupo
de falantes de latim e de grego, e que as práticas da medicina não
necessariamente tinham limites linguísticos. Eliminei deliberadamente a
fronteira entre os primeiros séculos do cristianismo e de seus predecessores não
cristãos. Embora, como veremos, o advento do cristianismo resultou em novas
perspectivas e, em parte, em uma nova ideologia de saúde e de cura, as
estruturas da sociedade na qual se desenvolveu não mudaram da noite para o dia.
Houve uma lógica e coerência por algum tempo em determinados contextos.
Séculos depois que o médico escravo teve seu nome registrado em uma inscrição
funerária, os advogados cristãos no século VI ainda determinavam o preço a ser
pago por um escravo, que havia estudado medicina.58 O legado médico da
Antiguidade à Idade Média e ao Renascimento consistiu, principalmente, em
ideias do século V modificadas por estudiosos mil anos depois. A extensa
cronologia adotada neste livro tem, sobretudo, o objetivo de se contrapor a dois
preconceitos antigos que, juntos, têm impedido um estudo sério da medicina da
Antiguidade. O primeiro preconceito refere-se à admiração pelo milagre grego, o
fascínio compreensível diante do estímulo intelectual, das novas descobertas, das
novas teorias e práticas de cura, que caracterizaram a Grécia e os gregos em
especial de 650 a 330 a.C. Nesse período, como se afirma em geral, encontram-
se os primórdios da ciência e da medicina ocidentais em sua gradual
emancipação da religião e da cura popular: a observação e o raciocínio dedutivo
substituíram a prece e a panaceia.59 Nesse período a grande maioria da
coletânea de textos do corpus de Hipócrates foi escrita, e sua linguagem, estilo e
maneira de pensar refletiram outros desenvolvimentos intelectuais em literatura,
história e filosofia. Na verdade, as diversas formas de interação dos praticantes
desses campos do conhecimento dão a esse período um “charme” especial. Os
antigos anatomistas de Alexandria, Herófilo e Brasistratus, que viveram na
primeira metade do século III a.C. também usufruíram de um ambiente
intelectual vibrante da Alexandria Helenística.60 Mas esse modelo de história da
medicina, com sua ênfase em novas descobertas e novas maneiras de pensar, não
se aplica com facilidade aos períodos seguintes, quando as novidades eram,
supostamente, mais raras e os médicos trabalhavam em geral com a percepção
sofisticada da importância de suas tradições intelectuais.61 Questões políticas e
linguísticas também contribuíram para o final da história da medicina grega em
Alexandria. Em vez de respirar o ar puro da liberdade democrática da Grécia,
cujos clima e geografia, segundo o autor de Ares, Águas e Lugares, produziram
os melhores espécimes de todas as raças possíveis, tanto do ponto de vista moral
quanto físico, a maioria dos médicos e escritores gregos de medicina vivia sob o
domínio de Roma.62 Muitos não eram gregos no sentido estrito de Hipócrates:
apesar da nostalgia dos dias agradáveis da Grécia independente, a maioria nunca
vira o Pártenon ou jamais pisara no Parnasso. O grego era apenas a língua
“comum” do Oriente helenístico e se tentassem reproduzir a linguagem de
Demóstenes ou de Hipócrates correriam o risco de serem criticados por
artificialidade. Nem a moral deles era irrepreensível, de acordo com o relato do
satírico grego Luciano da vida de um intelectual grego em Roma no século II.63
Por esse motivo, os historiadores desprezavam a medicina deles como uma mera
derivação, digna, na melhor das hipóteses, de um leve aceno em direção a
Galeno, Sorano, Rufus e Dioscorides, entre outros, antes de voltar ao material
mais interessante da Era de Ouro da Grécia. Portanto, não tinham obrigação de
enfrentar as milhares de páginas de Galeno ou a ainda mais proibitiva solidez de
Oribasius, ou de comentaristas alexandrinos tardios dos séculos V e VI.64 Os
classicistas que escolheram escrever sobre a medicina grega não se estenderam a
escritores gregos de medicina no período da Roma imperial. Autores que
escreveram textos acerca da medicina romana também foram, até pouco tempo,
menosprezados. Em parte essa reação foi consequência de um segundo
preconceito distorcido, ou seja, a falsa equação do latim romano, que, embora
válido para a república romana, foi impossível de manter nos séculos seguintes.
O Império Romano era poliglota e a cultura grega nos dois primeiros séculos de
nossa era foi extraordinariamente vigorosa e estendia-se muito além dos limites
do mar Egeu. Como exemplos, além do mais grego dos gregos, Plutarco de
Queroneia (que, no entanto, adotou o nome de Lucius Mestrius ao se tornar
cidadão romano), podemos citar o filósofo judeu de Alexandria, Filo, o geógrafo
Estrabão de Amasya (Pontus, Nordeste da Turquia), o astrônomo egípcio
Ptolomeu e o imperador romano Marco Aurélio, que escreveu Meditações em
grego. Limitar o estudo da medicina no mundo romano (isto é, o que significa a
medicina romana para mim), ou mesmo à Itália, a textos na maior parte em latim
é um grande erro de julgamento enraizado na antiga Roma. Na campanha contra
os inimigos estrangeiros realizada na década de 180 a.C., o político Catão, o
Velho escreveu ao filho advertindo-o com uma linguagem viva e vigorosa para
não confiar nos médicos imigrantes gregos. Sua mensagem foi repetida
minuciosamente, com exemplos espetaculares de avareza e corrupção, 250 anos
depois por Plínio, o Velho, que afirmou que a medicina era intrinsecamente não
romana, inventada pelos gregos em detrimento de seus pacientes romanos.65
Assim como as tabuletas ornamentais, a medicina era uma lista de imoralidades,
uma prova da renúncia da sociedade à virtude imaculada e da decadência moral
da Roma de Nero.66 A crítica de Plínio não era isenta de provas: seus exemplos
históricos ou outras opiniões citados em textos mais moderados eram chocantes.
Além disso, em épocas posteriores, a quase total ausência de textos de medicina
em latim do período anterior a 400 d.C. confirmou que esse tema não interessava
a estudantes de latim da cultura romana.67 Na melhor das hipóteses originava-se
de fontes gregas, ou na pior era puro charlatanismo e nada mais que tolices. Seu
mais famoso representante, Galeno, um imigrante grego em Roma, proporcionou
uma prova em dobro de tudo o que Plínio dissera. Suas denúncias a médicos em
Roma, em especial a Asclépio e aos metodistas, enfatizaram e confirmaram seus
muitos fracassos e incoerências, enquanto seus interesses teóricos e longueurs
repetitivos exemplificaram tudo o que Plínio e Catão haviam detestado. Ao se
concentrar, como fazia com frequência, nos princípios teóricos para determinar o
tratamento recomendado, ou nas estruturas ocultas e funções do corpo, em vez
de oferecer uma orientação clara e detalhada do remédio para curar a doença,
Galeno foi acusado de preferir palavras vazias a remédios eficazes. Mesmo
quando forneceu essa informação em seus livros de remédios, sua prolixidade (já
um motivo de queixa na Antiguidade) intimidou as pessoas que procuravam uma
resposta rápida e simples. Quanto a autores posteriores, foram esquecidos com
facilidade por serem repetitivos, reacionários, pedantes ou com defeitos ainda
piores. Não contribuíram com nenhuma novidade e contentaram-se apenas em
reciclar o antigo estilo ruim e assustador. Os autores latinos posteriores eram
frequentemente superficiais e condescendentes do ponto de vista intelectual. Os
enciclopedistas e comentadores gregos eram exageradamente prolixos, teóricos e
tediosos. Em resumo, depois das realizações dos anatomistas alexandrinos a
medicina grega sofreu rapidamente um declínio fatal. Galeno e seus admiradores
foram jogados na lata de lixo da história. Quais eram seus conhecimentos
valiosos de medicina adquiridos de seus predecessores, em especial de
Hipócrates, a quem Galeno atribuía a origem de todos os fundamentos de sua
medicina. O último progresso da medicina confirmou a sabedoria desprezada.
Vesalius, Harvey e os médicos dedicados ao estudo da química nos séculos XVI
e XVII destruíram o galenismo, em particular seus princípios de anatomia e de
fisiologia, como um sistema de medicina válido. Por sua vez, Hipócrates
sobreviveu como um símbolo vivo, uma voz presente no século XX. O holismo
de Hipócrates continuou a ser difundido e praticado por médicos clínicos ricos e
o Juramento de Hipócrates é considerado o critério da moral médica.68 O longo
sucesso de Hipócrates confirmou o bom senso do menosprezo à medicina
romana e à prioridade da medicina dos séculos IV e V da Grécia. Nesse período
não só assistimos à criação da medicina ocidental, como também muitos dos
princípios formulados nesses séculos permaneceram válidos. A descrição de uma
atitude específica em relação à medicina romana ou à medicina tardia grega
talvez seja de certa forma exagerada, uma resposta retórica ao estilo bombástico
de Plínio, embora ainda esteja presente nos estudos acadêmicos atuais. Mas
desde a década de 1970 o padrão da pesquisa sobre a história da medicina antiga
mudou consideravelmente. Há uma geração o ponto central da pesquisa
acadêmica em relação à antiga medicina concentrava-se no Corpus
Hippocraticum e em pequenos textos ligados a Hipócrates e elogiados pelo
grande editor do século XIX, Émile Littré.69 Porém, na verdade, até 1988 menos
da metade do corpus de Hipócrates estava disponível em inglês e alguns
tratados, em especial de ginecologia, ainda não constavam das séries Loeb ou em
uma tradução em inglês de fácil acesso. Agora, o cerne do interesse direcionou-
se ao mundo grego do Império Romano. Não só fora comprovado quanto o
cenário histórico das realizações da antiga medicina grega devia aos pré-
julgamentos de Galeno e aos de estudiosos do século XIX, como também o
papel da cultura grega em geral no mundo romano fora examinado de novo em
seus contextos histórico, arqueológico e literário. A antiga medicina foi estudada
com mais detalhes, cuidados maiores e atenção do que em qualquer período
desde meados do século XVI. Em consequência, o papel e as realizações da
medicina na Grécia clássica, assim como no mundo romano, foram mais
valorizados, e livros que antes se destinavam a apodrecer nas prateleiras mais
distantes de uma biblioteca clássica reapareceram. Esse interesse renovado
envolveu a participação de especialistas de uma ampla gama de disciplinas.
Filósofos, paleógrafos, epigrafistas, epidemiologistas, editores de texto e
arqueólogos trabalharam em conjunto para recuperar e explicar mais uma vez
esse aspecto do mundo antigo. Essa pesquisa, que abrangeu o longo período de
Hipócrates a Paulo de Egina, também incorporou uma importante premissa do
campo da antropologia social. Após essa análise minuciosa concluiu-se que o
padrão da medicina ocidental ou da cura não podia ser transferido para séculos
diferentes ou culturas distintas, a fim de enfatizar a distinção nítida entre
racional e irracional, adequado e inadequado, formal e informal. Além disso, só
os elementos das primeiras categorias seriam considerados medicina ou
poderiam ser objeto de estudo como parte da história da medicina. A cura foi
vista como um amplo sistema de interação entre sociedade e pessoas no que se
referia à saúde e como mantê-la, recuperá-la e defini-la.70 Essa definição
permitiu que os historiadores criassem um modelo abrangente para compreender
o mundo da medicina na Antiguidade, que envolvesse questões sobre a eficácia
das propriedades medicinais das ervas e de tratamentos cirúrgicos, assim como o
papel da religião nas curas. Discutiram-se as especulações filosóficas de Galeno,
a agricultura prática de Catão, a meteorologia de Hipócrates e os amuletos
egípcios. Essa visão abrangente da cura não é nova. Ela pode ser encontrada há
meio século no prefácio do livro História da medicina de Ernest Sigerist, um
texto magnífico e melancólico que começa com a pré-história e a antropologia,
mas termina no século IV a.C. devido à morte do autor em 1957.71 Uma história
abrangente da medicina na escala que ele pretendia seria uma história da
humanidade de proporções de Galeno e, talvez por isso, desde então não houve
mais tentativas. No entanto, isso não impede que tenhamos uma visão da
amplitude ou do valor dessa concepção da medicina, nem excluir uma tentativa
mais modesta de analisar a história da medicina não apenas como um sistema de
ideias, mas, sim, como uma rede de práticas enraizadas em uma sociedade
específica, sobrepondo-se, competindo e mudando ao longo do tempo. É essa
historicidade, assim como essa diversidade que este estudo tem o objetivo de
transmitir.

Mapa 2.1 O Mundo Grego.


2 Exemplos de Doenças

O mundo da Antiguidade clássica era restrito geograficamente e em sua gama de
doenças comparado ao mundo atual. Por sua limitação em grande parte à bacia
do Mediterrâneo durante quase toda a sua existência, havia poucas incursões de
estrangeiros que traziam com eles agentes patogênicos desconhecidos.1 Os
comerciantes conseguiam chegar até a China, Malásia e Zanzibar, e a navegação
para o Norte da África era feita pela ponta ao norte das ilhas Britânicas, mas
essas viagens eram uma exceção.2 Em sua maioria, a população concentrava-se
em torno do mar no interior da região, “nosso mar”, como os romanos o
chamavam. Mesmo quando os exércitos do Império Romano alcançaram os rios
Danúbio, Elba e Tigre, e quando soldados da Espanha, Síria e Dácia
conquistaram a Muralha de Adriano e misturaram-se a vendedores ambulantes e
civis de regiões distantes, como Comagena, na atual Turquia, ou Palmira, no
deserto da Síria, que haviam seguido o exército, o padrão das viagens não sofreu
uma alteração radical.3 As viagens a pé, a cavalo ou por mar eram demoradas, e
o medo das tempestades de inverno fechava com frequência o Mediterrâneo
durante semanas. Em consequência, a visão do mundo de um homem ou de uma
mulher comum limitava-se à fazenda, ao vilarejo ou à cidade mais próxima.
Poucos se aventuravam a viajar para diferentes regiões do mundo antigo. Só os
exércitos e nos últimos dois séculos antes de Cristo os prisioneiros que seriam
vendidos como escravos nos mercados de Delos e Roma movimentavam-se em
grande número em longas distâncias. A concentração em larga escala da
população era também rara. Antes de 330 a.C. poucos lugares, em especial
Atenas, Corinto, Siracusa (Sicília) e Cartago (Tunísia), tinham mais de 15 mil
habitantes. Muitas das “cidades gregas” tinham menos de 2 mil moradores
dentro de suas muralhas, e mais habitantes na região rural ao redor, mas poucas
vezes com mais de 6 mil no total.4 O número de cidades grandes cresceu nos
períodos helenístico e romano, como Alexandria (Egito), Antioquia, Éfeso e
Esmirna (todas na atual Turquia), e Roma, cuja população era de 750 mil a 2
milhões de habitantes em 10 a.C., porém, isso era um fato excepcional. Os
números razoavelmente precisos são difíceis de obter mesmo com as
informações mais detalhadas dos papiros egípcios, mas os números citados,
calculados com base em diversos tipos de registros do mundo antigo,
proporcionam um sentido do grau de magnitude do nível populacional.5 Esses
números confirmam o padrão inicial: a maioria da população vivia no que hoje
chamaríamos de vilarejos, raramente com mais de 3 mil habitantes, embora as
escavações arqueológicas na Itália e em outros lugares tenham revelado mais
evidências de uma região rural habitada, do que antes se supunha. O nível
demográfico flutuava como reação a diversas circunstâncias. A arqueologia
confirmou um declínio populacional significativo no continente grego nos
últimos dois séculos antes de Cristo, sobretudo em razão da guerra.6 Do mesmo
modo, nos dois séculos seguintes houve um aumento expressivo da população
em vários lugares, antes que a peste Antonina causasse uma súbita redução,
segundo os registros egípcios, de pelo menos 10 a 15%.7 O declínio
populacional na Antiguidade tardia é um assunto delicado; enquanto muitas
cidades na Gália e na Itália reduziram-se no século IV, a Inglaterra ocupada
pelos romanos prosperou por mais tempo, e no Norte da África romana o
declínio só aconteceu em meados do século V. Em meados do século VI a área
habitada dentro das muralhas de Roma diminuiu consideravelmente comparada a
cinco séculos antes, com uma população calculada em dezenas, em vez de
centenas ou milhares, talvez com apenas um quarto do tamanho de
Constantinopla na época.8 Essa abordagem refere-se a pequenos vilarejos
agrários “onde todos se conheciam – a família, a educação, a riqueza e o estilo
de vida”.9 Os estereótipos opostos de cidade e país, temas comuns na comédia e
na tragédia na Grécia clássica, ou mais tarde em Catão, c. 165 a.C., e por Plínio,
o Velho, na História Natural, dois séculos depois, a transição do período do
homem grego da cidade desonesto em contraste com o camponês romano
virtuoso, são conceitos errados.10 As cidades e a região rural estavam
intimamente conectadas em todos os lugares. O pai de Galeno, um arquiteto,
também era proprietário de terras com um grande interesse em agricultura e o
cultivo de colheitas e de vindimas.11 Mesmo quando membros da elite urbana
mudavam-se para uma cidade maior ou, mais tarde, como era frequente para
Roma, o centro do poder, mantinham vínculos com a cidade natal ou com a
região de suas propriedades rurais. Do mesmo modo, muitas características da
medicina grega mostram nitidamente seus antecedentes rurais. A anotação
minuciosa dos ventos, das mudanças de estação, das chuvas e da temperatura em
Epidemias de Hipócrates tem paralelos estreitos com Os trabalhos e os dias, de
Hesíodo, e com Georgics, de Virgílio, uma interpretação poética da agricultura
prática.12 O modelo de colonização divergia entre cada região: as propriedades
rurais da Inglaterra e do Norte da França eram diferentes da paisagem urbana
mais concentrada da Itália, da Sicília ou da costa da Ásia Menor (Oeste da
Turquia), onde os vilarejos estendiam-se ao longo do Nilo, com as tavoliere em
grande parte desertas do Sul da Itália ou do centro da Espanha. Os pequenos
povoados rurais do planalto de Sâmnio (centro da Itália) com suas cidades
comerciais localizadas em intervalos ao longo da planície do vale do Pó a 322
quilômetros ao norte, uma cidade costeira na Campânia multicultural, como
Pompeia, um vilarejo longe do mar ou uma grande autoestrada. Mas todos os
lugares, nas cidades, metrópoles e vilarejos, assemelhavam-se em escala menor
aos seus equivalentes atuais, com horizontes mais limitados e uma população
com menos mobilidade. Enquanto em algumas áreas, como a região de Fens, na
Inglaterra, forneceu suprimentos de gêneros alimentícios para um mercado
maior, a maioria das comunidades era autossuficiente e havia adotado uma série
de estratégias para enfrentar as mudanças de estações e de padrões anuais de
chuvas e fertilidade.13 Em parte isso era consequência do altíssimo custo da
circulação de um grande volume de gêneros alimentícios, como grãos, para
suprir uma potencial escassez de víveres. O transporte desses víveres só era
viável mediante a generosidade de um benfeitor rico ou pela exploração do
poder imperial, como Atenas e Roma, para manter os habitantes dessas capitais
sem risco de inanição e, por conseguinte, de distúrbios políticos.14 Um
fazendeiro médio que vivesse longe da costa poderia muito bem repetir as
palavras do bispo cristão, Gregório de Nazianzo, de que os excedentes da
produção não eram lucrativos e que qualquer deficiência significava uma
catástrofe potencial.15 Seria possível superar uma colheita ruim, mas não uma
série de safras desastrosas, que resultaria em morte e desastre; a interligação (e
em algumas vezes confusão) entre as duas palavras gregas para morte e doença
disseminada, limos e loimos, é mais do que um jogo de palavras. Na época do
poeta Hesíodo em torno de 700 a.C., significava uma realidade sempre presente,
o limite sutil da subsistência típica de um agricultor da Antiguidade que tinha de
alimentar a família e, ao mesmo tempo, precisava procurar desesperadamente
algo para comer.16 Galeno relatou a vida difícil dos camponeses em sua época,
obrigados a comer raízes, folhas e capim depois que seus suprimentos eram
tirados deles à força pelos homens poderosos da grande cidade.17 Nas guerras
dos godos no século VI a população do centro da Itália, forçada a subsistir com
pouco mais do que bolotas de pão, sofreu diversas doenças graves. O relato de
Procópio da pele ressecada das pessoas e da incapacidade de se alimentar com
comida, mesmo quando a ofereciam, é uma obra-prima de uma observação
perspicaz e de uma descrição patética.18 Em outras ocasiões, os agricultores
trapaceavam na quantidade de grãos que entregavam na cidade para guardar um
pouco mais para eles, ou se recusavam a vender o milho que haviam colhido,
com medo de serem contaminados pela peste, mas aos olhos das pessoas
famintas da cidade a intenção era de lucrar depois com preços mais elevados.19
Na cidade ou no campo, a desnutrição resultante do equilíbrio precário entre o
suprimento e a demanda foi o principal fator do perfil demográfico da
Antiguidade clássica. Não só havia uma estreita margem de erro nas colheitas
anuais, como também alguns alimentos ficavam indisponíveis em diversas
estações do ano. As tempestades de inverno mantinham os pescadores no porto e
a escassez de legumes frescos na mesma estação causava xeroftalmia e outras
doenças provocadas por desnutrição, em especial em crianças bem pequenas.20
Enquanto as consequências do enfraquecimento físico após um período longo de
carência alimentar poderiam ser reduzidas por um retorno a uma alimentação
saudável, a escassez de víveres constante tinha um impacto mais grave na saúde
em geral. Apesar da dificuldade em encontrar estatísticas confiáveis, sem dúvida
o perfil demográfico da Antiguidade assemelha-se ao dos países em
desenvolvimento atuais, com uma expectativa média no nascimento de 20 a
30%.21 Mas essa média encobre diversas variáveis fundamentais. Cada
localidade tinha doenças específicas e um perfil demográfico muito diferente,
uma peculiaridade que Grmek chamou de patocenose, ou seja, o conjunto de
doenças em determinado momento e local dependia de diversos fatores
endógenos e ambientais.22 Algumas regiões, sobretudo os locais próximos aos
focos de malária nas planícies, eram extremamente insalubres; no entanto, em
lugares como Tifernum em Umbria havia muitos avôs e avós. Por sua vez, as
grandes cidades atraíam pessoas de locais vizinhos, ou também de centenas de
quilômetros de distância, para aumentar uma população incapaz de subsistir
sozinha.23 Em segundo lugar, embora houvesse uma taxa muito alta de
mortalidade entre crianças com menos de um ano de idade, as que sobreviviam a
essa fase crucial poderiam viver até os 30 ou 40 anos, e cerca de 5% viviam até
os 60 anos.24 Mas não se sabe o percentual de mulheres entre essas pessoas.
Sem dúvida, os problemas específicos relacionados à gravidez e ao parto
causavam a morte de muitas mulheres, apesar de não existirem dados
confiáveis.25 As descrições das hemorragias pós-parto, as infecções e os
tratados importantes sobre ginecologia, como o de Sorano, escrito em torno de
100 d.C., mencionam instruções detalhadas de como virar a criança no útero, a
fim de evitar complicações durante o parto.26 Entretanto, a existência de
instrumentos cirúrgicos como o fórceps para retirar bebês mortos (ou para forçar
um aborto de uma criança viva) indicava que as precauções nem sempre eram
bem-sucedidas.27 Mesmo depois do nascimento, como acontece na África atual,
mães jovens e desnutridas têm alto risco de adoecerem e morrerem e, em
consequência, havia um desequilíbrio numérico entre os sexos, agravado pela
prática de matar crianças indesejadas, sobretudo meninas e deficientes.28 A
inserção das diversas doenças da Antiguidade nesse perfil demográfico é
problemática. As observações e descrições das doenças e as maneiras como eram
classificadas quase sempre impossibilitam fazer uma analogia com doenças
mencionadas em livros didáticos de medicina atuais.29 Às vezes essa
dificuldade era causada por uma categoria ampla demais: as antigas “febres” e os
“eczemas” abrangiam quase qualquer doença em que o corpo do paciente
estivesse quente ou com processo inflamatório, enquanto discussões sobre a
maneira de tratar “tumores” incluíam desde o câncer até carbúnculos. Em outras
ocasiões, a doença alterava-se ao longo dos séculos e produzia uma série de
doenças relacionadas e, possivelmente, também de curta duração, como os vírus.
A lista crescente de tentativas para identificar a peste mencionada por Tucídides
exemplifica a dificuldade, mesmo quando as informações são numerosas e
relatadas por uma testemunha que contraíra a doença.30 Com muita frequência,
mesmo as informações contidas em um texto de medicina são, na visão atual,
fragmentárias, porque o autor não percebeu determinados sintomas, que hoje são
considerados vitais, ou omitiu detalhes que para ele eram banais. Os relatos mais
extensos, embora não muito elaborados, de casos individuais da Antiguidade
mencionados nos livros Epidemias de Hipócrates, são seletivos em sua
apresentação de indícios e sintomas, com o enfoque especial em detalhes que
permitiriam, no futuro, ao escritor (e ao seu público) avaliar a gravidade de uma
doença semelhante, prever seu resultado e, quando possível, intervir com
sucesso. Mas outras informações que seriam também essenciais para um
diagnóstico atual são excluídas.31 Sobretudo em textos leigos, o relato com
frequência foi estruturado para enfatizar detalhes de um diagnóstico periférico, a
exemplo da maneira como um paciente reagia à doença ou o comportamento do
médico, o que dificulta ou até mesmo impossibilita um diagnóstico atual. As
tabuletas colocadas em diversos santuários do deus Asclépio, em especial em
Epidauro (Sul da Grécia), quase sempre registram minuciosamente a doença ou
as doenças que levaram o doente a procurar a ajuda do deus, mas o objetivo não
era o de um relato médico e, sim, de louvar o poder de cura do deus.32 Em
outras ocasiões, as conclusões das testemunhas antigas não se adaptam com
facilidade às descrições atuais da doença identificada: a “lepra” bíblica, por
exemplo, aparece em paredes e roupas, assim como em seres humanos.33 As
pesquisas paleopatológicas ajudam a dar mais precisão aos relatos, bem como a
arqueologia e a biologia poderão acrescentar mais informações no futuro, porém,
as duas disciplinas são pouco usadas em sítios clássicos e têm um valor limitado
para a compreensão do registro escrito.34 No entanto, com essas observações em
mente é possível pelo menos esboçar o perfil das doenças na Antiguidade
clássica.35 Talvez tenhamos começado com uma conclusão negativa: tendo em
vista a estrutura etária da população, as doenças degenerativas características do
século XX seriam menores. Portanto, não é uma coincidência que a discussão
mais longa sobre essas doenças foi feita não em um tratado médico, mas, sim,
em uma obra filosófica de Platão, Timeu. Neste livro Platão expôs sua
concepção e análise do mundo, modelos matemáticos, em vez de informações
médicas obtidas em outras pessoas.36 Porém, isso não significa que essas
doenças fossem desconhecidas. A artrite, sobretudo, foi detectada em muitos
esqueletos, com frequência em pessoas relativamente jovens, e muitos
esqueletos também revelaram outras doenças que causavam dores crônicas,
talvez durante décadas. Havia a percepção nítida de que algumas doenças
afetavam mais os idosos. O câncer, por exemplo, exceto os cânceres
“congênitos”, era raro antes da idade adulta, e muitos tipos de câncer antes da
“velhice”.37 O câncer de mama relacionava-se à menopausa, quando o sangue
que antes fluía estagnava-se dentro do corpo e apodrecia. Em geral era uma
doença fatal, embora Galeno acreditasse que, se diagnosticado com rapidez,
poderia ser curado com a remoção do principal agente cancerígeno do corpo, o
excesso de bile preta.38 A cirurgia para remoção do tumor canceroso só era feita
por médicos competentes ou audaciosos e, mesmo assim, apenas em casos de
cânceres superficiais. Na verdade, a menos que se conseguisse remover
inteiramente as raízes do câncer, acreditava-se que a vida do paciente poderia se
prolongar evitando a faca.39 Celso não era um entusiasta dessa intervenção
drástica; em sua opinião era mais provável prejudicar do que ajudar o paciente.
Segundo ele, um tratamento conservador para evitar o desenvolvimento do
tumor ou que se expandisse para partes mais perigosas do corpo, era a melhor
alternativa.40 Mas, em geral, em vez de direcionar a atenção para doenças
específicas dos idosos, os médicos antigos viam a deterioração física e mental
gradual da idade como um processo inevitável da decadência e extinção da
chama da vida.41 Por esse motivo, os doentes não eram mencionados, só as
exceções, os saudáveis e bem dispostos, como o relato de Plínio, o Velho, de seu
amigo centenário Antonius Castor, que ainda caminhava em seu jardim de
ervas.42 Galeno e seus pares tinham prescrições individuais para a longevidade.
O médico Antiochus, aos 80 anos, andava todos os dias um quilômetro ou mais
de ida e volta do foro para ver seus pacientes, enquanto Telephus, o professor,
viveu até quase 100 anos com sua dieta de cevada cozida, mel, legumes, peixe,
aves, pão e um pouco de vinho, e com uma visita aos banhos não mais de uma
vez por semana.43 Os escritores antigos davam mais informações a respeito de
epidemias ou doenças contagiosas disseminadas, mas seus relatos apresentam
diversos problemas diferentes. Em relação ao modelo demográfico descrito neste
capítulo, poderíamos pensar que a população era dispersa demais para que
houvesse surtos frequentes e propagados de epidemia, que os antigos chamavam
de “peste”.44 O agente contagioso não sobreviveria tempo suficiente para ser
transmitido a um hospedeiro não imune, ou haveria hospedeiros potenciais com
imunidade adquirida pela exposição prévia ou herdada e, assim, o agente não
conseguiria se reproduzir.45 Esse padrão previsível confirmou-se com o registro
histórico, porque, apesar de podermos escrever uma longa lista de surtos de
peste, as epidemias foram na maioria das vezes locais. Por exemplo, a epidemia
de 278-276 a.C. só atingiu Roma e o Lácio e terminou com um inverno
excepcionalmente frio.46 Segundo Tácito, a epidemia do segundo semestre do
ano 65 a.C. matou 30 mil pessoas em Roma, inclusive membros do Senado e da
nobreza, mas não se tem certeza se essa epidemia tinha relação com as
epidemias que haviam devastado poucos anos antes o Norte dos Alpes.47 É
possível que essa descrição de grandes pestes locais seja resultado de fontes
imprecisas, que se concentravam basicamente em Roma e Atenas, com o
objetivo de registrar acontecimentos em uma escala maior. Assim, por exemplo,
em seu relato da grande peste em 430 a.C., Tucídides descreveu os eventos em
Atenas e o que aconteceu com as tropas atenienses em Potideia, mas não se
deteve em minúcias sobre a passagem da peste pelo Egito e Lemnos, além de
não mencionar “outros lugares populosos” atingidos pela doença, exceto pelo
comentário negativo que o Peloponeso não foi seriamente atingido.48 Do
mesmo modo, Tito Lívio relatou surtos de peste em Roma em 431 a.C. e 428
a.C., porém, não fez referência à doença na Grécia.49 Em outras ocasiões, os
escritores antigos registraram doenças que atingiram áreas maiores. A peste
Antonina de 166-172, que talvez tenha sido varíola, estendeu-se para o oeste da
Pérsia até o Império Romano e além do Reno transmitida supostamente pelo
Exército romano vitorioso depois de uma campanha contra a Pérsia.50 Essa é
uma explicação plausível para a transmissão da peste, embora tenhamos de
aceitar a ideia antiga de que o Exército estava de certa forma sendo punido por
um deus por ter saqueado o templo de Apolo, ou supor que teve a infelicidade de
andar próximo aos poços de nafta do Norte do Iraque, cujos vapores
envenenavam o ar.51 O surgimento de uma doença diferente foi registrado por
Galeno em 189, quando seus efeitos em Roma intensificaram-se durante meses
de escassez de víveres.52 Uma pandemia posterior ocorreu em 250 e prolongou-
se por quase 20 anos, seguindo em direção ao oeste. Segundo Cipriano, uma
testemunha, a pandemia não poupou uma única cidade. Metade da população de
Alexandria morreu e pelo menos um vilarejo desapareceu.53 A peste de
Justiniano, que começou em 541 no Egito e disseminou-se na Espanha, Trier e
talvez no País de Gales, foi admirável em dois aspectos. Essa doença foi o
primeiro surto confirmado de peste bubônica (apesar, é claro, de não ter esse
nome) e continuou a aparecer em intervalos regulares ao redor do Mediterrâneo
oriental, a região com a maior densidade populacional, por 200 anos.54 No
entanto, outros fatores apoiam a ideia de que a maioria dos surtos de doenças
infecciosas foi local. Em muitas fontes a ocorrência está associada à escassez de
víveres, com a consequente redução da resistência física, e a períodos de cercos,
como observou o historiador Amiano Marcelino na cidade de Amida, sitiada em
359 d.C.55 Com frequência também se associava a exércitos, tanto nos
acampamentos militares quanto em campanha. Os exércitos cartagineses na
Sicília foram destruídos por doenças em 406 e de novo em 396 a.C.56 Os
exércitos romanos e cartagineses foram dizimados em Siracusa em 212 a.C., e
uma frota romana foi obrigada a levantar âncora e abandonar as operações na
Lícia, porque muitos escravos das galés haviam adoecido.57 Em 90 a.C. 17 mil
homens das tropas de Otávio, que sitiavam Roma, supostamente morreram de
doenças no período das guerras civis entre os partidários de Caio Mário e
Sula.58 As condições de um acampamento militar repleto de soldados era uma
fonte ideal para o surgimento de doenças e, por esse motivo, não surpreende que
mesmo no Exército romano bem organizado muitos soldados não podiam lutar
por estarem doentes (inclusive com doença contagiosa dos olhos), do que por
ferimentos.59 Um incidente em 232 d.C. ilustrou com precisão a ocorrência de
doenças nos exércitos, assim como mostrou antigas ideias sobre a causa e a
disseminação dessas doenças. Nesse ano o imperador Alexandre Severus e suas
tropas estavam acampados perto do rio Eufrates, na fronteira com o Norte da
Síria, onde, como relatou o historiador grego contemporâneo Herodiano, todos
adoeceram por causa do ar sufocante.60 As tropas vindas da Ilíria adoeceram
com mais gravidade e muitos morreram, porque estavam acostumados com o ar
úmido e frio, além de rações mais nutritivas do que as servidas no acampamento.
O exército foi obrigado a recuar para a Antioquia, onde o imperador e os
soldados recuperaram-se com o ar frio e a água limpa da cidade. Um
epidemiologista atual, se fosse chamado para diagnosticar um surto maciço de
doença em um acampamento militar na região do Mediterrâneo, suspeitaria
imediatamente de uma doença contagiosa, como shigelose ou disenteria causada
por bactérias. A conhecida “febre de acampamento”, o tifo, seria provavelmente
excluído da primeira hipótese de diagnóstico, porque os microorganismos
transmissores da doença, os piolhos, precisavam de climas mais frios para se
desenvolverem.61 Mas logo surgiu a explicação de que as doenças resultavam
de condições de vida insalubres, água infectada ou outra forma de poluição.62
Por outro lado, Herodiano, como outros escritores antigos em geral, atribuiu esse
desastre médico em um acampamento militar, quase do tamanho de uma
pequena cidade, a uma alimentação deficiente e a incapacidade das tropas de se
adaptarem ao novo clima quente e sufocante.63 A água da Antioquia recuperou-
os, não por sua pureza e ausência de parasitas, mas, sim, porque causou uma
mudança na constituição de seus corpos: o vento e a água neutralizaram o calor e
o efeito opressivo do “espessamento” da fronteira do deserto sírio.64 Os
comentários sucintos de Herodiano revelam o abismo que separa as explicações
e prioridades da medicina atual das da medicina da Antiguidade.65 O autor
focou diferentes aspectos da doença, com uma visão distinta da causa, e
enfatizou o efeito do clima, em vez de vetores, germes, bactérias, vírus entre
outros microorganismos transmissores de doenças. Assim como a maioria dos
escritores de medicina da Antiguidade, sua explicação da doença baseava-se na
interação pessoal com o ar; a receptividade e a resistência, a força ou fraqueza
provocada pela alimentação ou estilo de vida. Esses fatores eram vitais para
determinar a reação a um ar nocivo, mas precisavam ser definidos ou explicados.
Nesse contexto a pergunta por que o ar tornava-se nocivo era secundária; o que
causava a poluição tinha menos importância do que a percepção de que o ar era
perigoso.66 Na verdade, o importante era a capacidade do doente potencial de
repelir mudanças prejudiciais, uma capacidade que, como os médicos
aconselhavam, poderia aumentar com uma mudança de alimentação ou, como
um autor da tradição de Hipócrates recomendava, de inspirar o ar o menos
possível com uma alteração no hábito de respirar.67 A crença predominante
entre os escritores de medicina da Antiguidade de que as epidemias eram
resultado do ar nocivo contrastava, aparentemente, com o uso comum de
palavras latinas como “infecção” e “contato/contágio” para descrever o processo
de transmissão das doenças.68 Incidentes desagradáveis como doenças ou
heresias podiam ser transmitidos de uma pessoa para outra, assim como a tinta
penetra em um tecido ou um dedo sujo mancha uma toga imaculadamente
branca.69 Mas esse aparente contraste entre autoridades gregas e latinas não
significa que os gregos desconhecessem o contágio pessoal de doenças ou a
crença dos romanos nos agentes transmissores individuais, antes dos
bacteriologistas no século XIX. Tucídides, em seu relato da peste em Atenas,
mencionou a transmissão da doença entre as pessoas, sem indicar que sua
opinião fosse incomum e diversos autores gregos explicaram por que uma
pessoa contagiava-se com a proximidade de um doente e outras não. Os
principais exemplos de autores latinos e gregos referiam-se a “tísica”
(tuberculose), psora (sarna) e “oftalmia”, mas excluíam com regularidade as
“febres” e propunham explicações idênticas para a transmissão potencial de
doenças chamadas de “mau olhado”.70 Nas descrições metafóricas do processo,
sempre com a dificuldade de distinguir a metáfora morta, os autores latinos
mencionavam com frequência o “tato”. Os gregos usavam a palavra
“compartilhamento”.71 Porém, esses autores não discutiram a consequência
terapêutica dessas metáforas, ou seja, a exclusão, temporária ou permanente, do
doente do contato social, por duas razões básicas. As soluções adequadas no
caso de animais infectados só podiam ser aplicadas com extrema dificuldade em
seres humanos. Seria muito mais fácil matar um carneiro doente em um rebanho
do que alguém da família e, em segundo lugar, a sociedade antiga não tinha
poder nem estruturas administrativas capazes de lidar de maneira apropriada
com assuntos de saúde pública.72 A última observação talvez pareça paradoxal
às pessoas familiarizadas com o, de esgoto e aquedutos do mundo romano, ou
até mesmo com sistemas mais simples da antiga Grécia, além do costume de
contratar abertamente médicos que discutiremos mais tarde. Essas medidas sem
dúvida reduziram o impacto de doenças em cidades superpovoadas, embora
Galeno tenha mencionado que os dejetos expelidos pelos esgotos haviam
diminuído o tamanho dos peixes pescados na parte inferior e no estuário do rio
Tibre a pouco mais de uns gramas comparado aos peixes gordos e saudáveis de
sua parte superior.73 Mas existem poucos indícios de que a preocupação com a
saúde pública tenha exercido influência na construção dos esgotos comparada à
estética, ao prestígio pessoal do doador e, em especial em Roma, à necessidade
de evitar a desordem no cerne do império. A existência de regulamentos sobre a
localização dos cemitérios fora das muralhas da cidade, o contato físico ou a
mutilação de cadáveres devia-se mais à religião do que à higiene, embora, assim
como nos hábitos alimentares dos judeus, a religião tenha contribuído para o
aperfeiçoamento das condições da saúde pública.74 Sabinus, Galeno e outros
médicos da tradição de Hipócrates de Ares, águas e lugares ofereciam conselhos
excelentes quanto ao local da cidade, a largura das ruas e a importância de uma
boa ventilação nas casas, e escritores de manuais de arquitetura como Vitrivius
(c. 20 a.C.) os apoiavam, porém, não há provas de que suas opiniões fossem
sequer seguidas.75 Em geral, as recomendações deles seguiam o bom senso –
evitar pântanos e terrenos alagados, fumarolas e cadáveres com mau cheiro –,
que não precisavam de um médico para advertir quanto a esses perigos, como
qualquer leitor dos conselhos de Varrão para fazendeiros sabia.76 Mas a cidade
como entidade política não exercia um papel importante em questões referentes
à saúde, exceto em seus objetivos administrativos: os médicos, por exemplo,
precisavam servir o exército e agir como peritos em casos de assassinatos ou de
ferimentos sérios. Exceto entre os judeus e cristãos, a responsabilidade em
relação à saúde era um problema particular de uma pessoa e de sua família. Os
pobres romanos ainda se aglomeravam em prédios de vários andares em
“Suburra quente como uma fornalha”, enquanto as mansões dos ricos
pergamenos (Galeno entre eles) situavam-se em lugares mais saudáveis, e como
as descobertas recentes das escavações arqueológicas confirmaram, no meio da
grande colina, acima da cidade sufocante onde soprava a brisa fresca do mar
Egeu a alguns quilômetros a oeste.77 A perspectiva em relação ao ambiente
também explica as informações escassas fornecidas pelas fontes antigas
referentes a doenças ocupacionais. Galeno proporcionou uma visão precisa da
conexão entre a ocupação e a saúde na Antiguidade com seus relatos sobre
pescadores temporariamente paralisados por terem tocado em um poraquê com o
tridente, e de copistas profissionais (como ainda existiam não há muito tempo no
exterior das mesquitas na Turquia), que ficaram cegos por escreverem
continuamente à luz do sol brilhante em lugares que refletiam esse brilho.78 O
rosto pálido dos mineradores de chumbo e de prata, sobretudo na Espanha, era
um lugar-comum entre os poetas latinos, e Plínio, o Velho, mencionou as
pequenas máscaras de proteção usadas por trabalhadores na extração de zarcão
(apesar de a descrição de seu uso não inspirar confiança em sua eficácia).79 É
possível imaginar o destino dos muitos escravos que trabalhavam nas minas de
prata extremamente poluídas e na produção de alumínio na Ática no final dos
séculos VI e V a.C. (de acordo com estudos da calota de gelo da Groelândia,
esse foi o período da maior concentração de chumbo na atmosfera), ou os que
eram condenados pelos juízes romanos a trabalharem nas minas em Wadi
Faynan (Jordânia).80 Havia alguma ajuda médica (uma inscrição romana
registrou a presença de um médico em uma empresa de mineração espanhola),
mas não muita.81 A vida de muitos trabalhadores escravos nas grandes
propriedades rurais da República romana não foi menos brutal e curta. Esses
escravos quase sempre trabalhavam em regiões notoriamente insalubres, eram
alimentados com comidas indigestas e sem nutrientes, e quando adoeciam eram
tratados, caso fossem, com remédios mais básicos e comuns.82 No início do
século IV a.C. Platão descreveu o Estado ideal nas Leis, recomendando que
deveria haver uma diferença entre os médicos que tratavam dos homens livres e
dos escravos. 0s escravos seriam tratados por médicos escravos, que
prescreveriam tratamentos grosseiros e rápidos sem explicação, como
“déspotas”, e não médicos cuidadosos.83 Não sabemos se os escravos que
trabalhavam nas casas das famílias imperiais e dos senadores ricos no final da
República e início do Império Romano eram mais bem cuidados nas mãos dos
escravos ou de ex-escravos que trabalhavam como médicos, ou até por
especialistas, entre a distribuição das pessoas na casa.84 Um escravo muito
especial poderia ser tratado pelo médico pessoal do dono da casa, porém, é mais
provável que estigmatizados, açoitados e com uma carga de trabalho exaustiva,
os escravos só viam um médico quando eram vendidos.85 Nessa ocasião
chamavam um médico que os examinava e que decidia, por exemplo, se um
ouvido supurado teria cura, ou se havia um problema crônico ou congênito, que
reduziria o preço da venda.86 Quando eram vendidos para gangues
inescrupulosas as vidas desses escravos eram ainda mais infelizes e curtas. A
reconstrução do perfil das doenças da Antiguidade é dificultada pela grande
diferença entre a compreensão antiga e moderna do conceito de doença. Embora
as doenças fossem vistas às vezes, em especial no contexto religioso, como se
tivessem existência própria, a maioria dos médicos da Antiguidade pensava
nelas em termos de processos patológicos, que atingiam o corpo ao longo do
tempo.87 Eles teriam concordado com um autor aristotélico, segundo o qual a
doença tem a conotação de movimento, ao passo que a saúde tem o sentido de
repouso.88 Em geral, viam a doença como uma alteração biológica que atingia
uma pessoa e originava-se do estado físico influenciado por seu estilo de vida.
Alguns sintomas logo foram chamados de “doenças” e, sobretudo no período
romano, eles eram sofisticados, e em termos de observação havia discussões
memoráveis sobre nosologia. Porém, mesmo quando a importância desses
sintomas foi reconhecida, muitos médicos, em especial os da tradição de
Hipócrates, os consideravam mais como orientações, que se modificariam de
acordo com as conclusões sobre o estado físico do paciente. Do mesmo modo,
apesar do consenso de que certos sintomas ou síndromes eram uma
“patognomia” ou um “prognóstico”, que caracterizava tipos específicos de
doenças, não eram considerados como a doença em si, mas, sim, apenas
indicadores de mudanças mais profundas na constituição do paciente.89 Além
disso, alguns nomes antigos de doenças não são específicos na concepção atual.
A palavra “tísica”, por exemplo, que em geral significa tuberculose, poderia
abranger diversas doenças debilitantes.90 Feridas, gangrenas e abscessos, alguns
descritos com um tom dramático, eram todos reunidos no mesmo conjunto
específico e não havia garantia de que a terminologia de um autor para designar
pústulas coincidisse com a palavra usada por outro autor. A crítica mordaz de
Galeno aos “médicos jovens” que queriam criar sua própria terminologia, às
vezes mais específica para descrever doenças, resultava em perda de precisão e
inteligibilidade. A exatidão da descrição deles, como Galeno acreditava, não
seria percebida por pessoas que desconhecessem as palavras, e haveria outras
maneiras melhores de dar uma definição mais clara de uma doença com o uso de
uma terminologia mais antiga e abrangente.91 No entanto, apesar dos problemas
de identificação, é claro que muitas doenças conhecidas da Antiguidade ainda
existem no mundo atual.92 Tosses, resfriados, pneumonia e pleurisia eram
comuns no inverno; diarreias, no verão.93 Icterícia e outras infecções do fígado
eram descritas como uma forma de infecções parasitárias do aparelho digestivo.
Tênias, ascarídeos e vermes na Guiné egípcia eram doenças comuns.94 Na falta
de antibióticos, as úlceras eram frequentes e, como Galeno mencionou em
Método de curar, constituíam uma grande parte do trabalho de médicos e
cirurgiões comuns. Mas havia outras doenças de pele desfiguradoras, como
sarna, alfo e herpes, e o farmacólogo e escritor Dioscórides receitava mais
remédios para essas doenças do que para outras.95 Segundo Plínio, os “líquens e
as sicoses”, uma inflamação causada por fungos, só surgiram na Itália no início
do século I d.C.96 O uso dos banhos públicos, um dos sinais de civilização entre
os romanos, diminuiu algumas formas de doenças causadas pela sujeira, mas,
como previsível, provocou outras infecções. A lepra (a hanseníase), uma doença
infecciosa crônica causada pelo Mycobacterium leprae, que afetava a pele e o
sistema nervoso periférico, foi a doença de pele mais famosa da Antiguidade. As
evidências paleopatológicas de sua existência no Mediterrâneo só surgiram na
época helenística.97 Textos da Babilônia, do Egito e de Israel escritos a partir de
800 a.C. descreveram doenças de pele desfiguradoras, talvez entre elas a
hanseníase, provavelmente citada como psoríase. A doença bíblica, zaath,
traduzida na versão autorizada da Bíblia inglesa como lepra, afetava não só a
pele, como também as paredes das casas e as roupas, com ênfase em seu aspecto
escamoso (e fúngico?) ainda é mais problemática.98 A palavra “lepra”, que
significa em grego uma “doença que provoca o aparecimento de escamas”, é
mencionada no Corpus Hippocraticum, e um tratado sobre “elefantíase”, uma
palavra grega para uma doença que causa espessamento da pele e alterações nos
ossos, foi mencionado no século V pelo filósofo Demócrito, embora talvez
tivesse sido escrito três ou quatro séculos mais tarde.99 A data em que essa
doença surgiu no Mediterrâneo é um tema controvertido, mesmo na
Antiguidade. Plínio situava seu aparecimento em meados do século I a.C., na
época de Pompeia, ao passo que Plutarco, um contemporâneo um pouco
posterior, citou o médico Athenodorus, segundo o qual a doença só surgira no
final do século II a.C.100 Mas existe um bom motivo para acreditar que a
doença já fora discutida em torno de 250 a.C. pelo médico Strato, e um unguento
para tratar a elefantíase foi criado pelo cirurgião Arcagato, que viveu no final do
século III a.C.101 Os contratos de vendas de escravos no Egito helenístico
incluíam cláusulas que cancelavam a venda se mais tarde o escravo sofresse de
epilepsia ou de “toque” interpretado como uma espécie de lepra cutânea.102
Porém, foi preciso esperar os autores romanos Aretaeus e Célio Aureliano,103
para termos descrições mais precisas e detalhadas do que sem dúvida era a
hanseníase. A importância dessa doença estende-se além de relatos médicos,
porque as histórias de lepra no Antigo e no Novo Testamento têm uma ênfase
especial na literatura cristã. O relato nos Evangelhos do encontro de Jesus Cristo
com leprosos na estrada significa que era uma doença comum, em contraste com
as conclusões de antigos escritores de medicina ou de evidências
paleopatológicas preservadas.104 As divergências podem ser explicadas pelo
impacto forte e duradouro que a pele em escamas e um rosto deformado
causavam em um observador casual, assim como acontece com as doenças atuais
que podem ser incluídas no contexto da antiga palavra. O rim e problemas de
bexiga também tinham destaque em antigos manuais de medicina, com diversas
explicações para a impossibilidade de urinar ou o ato doloroso de urinar.105
Existem vários relatos de cirurgias para retirar pedras na bexiga, mas todos
mostraram o perigo de uma infecção posterior se a incisão não cicatrizasse de
maneira adequada.106 Por esse motivo, não causa surpresa que alguns cirurgiões
tenham se especializado no tratamento de fístulas, uma consequência da
ulceração contínua, sobretudo, no períneo ou na região do ânus.107 As
hemorroidas, por outro lado, eram vistas como doenças positivas, uma maneira
de o corpo expelir com frequência ou o sangue excessivo ou prejudicial, e o
término da menstruação era um fato preocupante, porque indicava que o sangue
prejudicial mantinha-se dentro do corpo como um veneno oculto. A cistite e os
abscessos da uretra e da próstata também foram descritos, mas os cânceres de
pênis e do útero, doenças sexualmente transmissíveis, só foram mencionados
mais tarde nas fontes preservadas. Só existiam registros de formas mais brandas
de doenças sexualmente transmissíveis, como as causadas pela bactéria
Chlamydia trachomatis; se o corrimento mucoso desagradável e constante
descrito como blenorragia corresponde à doença atual é um tema controvertido
e, apesar de algumas opiniões veementes, a existência da sífilis venérea na
Antiguidade não foi ainda comprovada. As ulcerações, cancro e tumefação do
pênis poderiam ser sintomas da doença, mas só alguns esqueletos tinham sinais
das lesões características dos estágios finais da sífilis.108 Porém, ainda não se
tem certeza de que era resultado de uma infecção venérea ou não, embora as
mudanças patológicas no feto encontrado em uma escavação no Sul da França
tenham indicado a existência de uma forma venérea.109 As evidências
paleopatológicas de anormalidades em esqueletos, de textos e de manifestações
artísticas são muito mais extensas.110 Sinais de fraturas, artroses na coluna
vertebral e deslocamentos, tanto congênitos quanto em consequência de traumas,
são encontrados com regularidade nas escavações.111 Existe uma descrição
clássica de uma corcunda, talvez como resultado da tuberculose, em
Articulações de Hipócrates, que, assim como Fraturas, descreve vários
problemas de articulações, apesar da surpresa em vermos o que parece ser uma
fratura de punho de Colles, sendo tratada como um deslocamento (citado como
difícil para curar!).112 As manifestações artísticas, em especial a escultura,
mostraram uma ampla gama de deformidades desde nanismo, acromegalia, pés
tortos e quadris deslocados (congênito?).113 A gota foi homenageada com um
poema satírico da coletânea de obras atribuídas ao escritor romano Luciano. Seu
título cômico, Tragodopodagra, a Tragédia Gotosa, não escondeu os sofrimentos
provocados pela doença.114 Doenças oculares também foram descritas na
Antiguidade e eram tão comuns que a existência de especialistas justificava-se
plenamente. Glaucoma, tracoma e conjuntivite eram frequentes e Galeno
pensava que um cirurgião competente seria capaz de curar diversas doenças
oculares, inclusive crescimento da córnea ou das pálpebras.115 A descoberta de
um conjunto de instrumentos de um oculista em um túmulo em Montbellet
(França) esclareceu três descrições antigas de uma cirurgia de catarata de Celso,
Antillo e Paulo de Egina.116 Apesar da descoberta de mais de 300 selos usados
para marcar bastões de unguento para o tratamento de doenças oculares (em
especial de “olhos inflamados e inchados”, lippitudo) em muitos lugares da
Gália, na Inglaterra e nas províncias ao norte ter indicado que a doença era mais
comum na região do Mediterrâneo, o assunto ainda está aberto a discussão.117
Indícios registrados no Egito e no perfil das doenças oculares atuais no Levante
sugerem uma visão oposta, ao mesmo tempo em que a descoberta de
instrumentos cirúrgicos, assim como os selos dos oculistas indica que as doenças
oculares não eram as únicas enfermidades cuidadas por esses médicos. Outras
doenças não deixaram traços nos registros arqueológicos, mas são descritas em
minúcias em textos médicos e leigos – acidentes cardiovasculares e epilepsias
(atribuídos a causas divinas e naturais), enxaquecas, dores de cabeça e distúrbios
nervosos e mentais.118 Esses distúrbios incluíam a sensação de uma pessoa que,
deitada na cama, tinha a impressão de que alguém, ou um demônio, tentava
estrangulá-la (ephialtes), a paranoia ou uma alucinação fatal de que um escravo
era uma grande jarra que deveria ser jogada de uma janela alta.119 O limite entre
a loucura e um desvario profético ainda é um assunto polêmico, tanto no
paganismo, no judaísmo ou no cristianismo, e a melancolia do gênio tornou-se
um lugar-comum a partir do período helênico.120 Cenas de loucura
predominaram no início da literatura épica, na tragédia clássica grega e na poesia
latina e referiam-se à vingança divina.121 Em especial em textos do Oriente
Próximo, inclusive judaicos e da literatura tardia cristã, os distúrbios mentais são
com frequência atribuídos à intervenção de demônios, sendo que alguns deles
podem se apossar do corpo.122 No entanto, médicos e escritores de Hipócrates a
Galeno, um especialista com estilo próprio quanto à relação entre mente e corpo,
sugeriram explicações materialistas alternativas, mesmo que eles fossem uma
minoria.123 O maior grupo de doenças mencionado em textos médicos antigos é
o que se refere a febres, puretoi ou febres, um termo amplo originário da
sensação de um calor abrasador. (Como o termômetro não havia ainda sido
inventado, a temperatura tinha de ser calculada pelo tato ou pela descrição do
paciente de seus sintomas.) Na terminologia médica atual a febre é apenas um
sintoma e uma das indicações de uma doença específica. Mas na Antiguidade a
febre era considerada uma doença, porém, mesmo assim, precisava de uma
precisão posterior. Algumas febres, como as “febres com calafrios”, eram
descritas em termos de seus efeitos, mas a taxonomia mais comum dependia de
sua periodicidade, quando a temperatura alta era constante ou diminuía e, em
seguida, voltava depois de um ou mais dias. O padrão dessa febre baseava-se nos
acessos periódicos de calafrios e febre da malária, uma doença transmitida por
mosquitos em pântanos baixos ou rios com um fluxo lento de água. A malária
caracterizava-se também pelo aumento do baço e do fígado, além de ciclos
recorrentes de ataques e remissão.124 A regularidade matemática com a qual
podia ser calculada e prevista, assim como o ciclo sazonal típico de transmissão
no final do verão, sugeriu aos gregos que a doença era sujeita às mesmas leis do
resto do universo. A Plasmodium vivax, a P. malariae e a P. falciparum, esta
última a mais perigosa, foram as três principais formas da malária na região do
Mediterrâneo. Às vezes provocava uma morte rápida, mas quase sempre seus
efeitos eram debilitantes como, na verdade, os efeitos de todas as formas de
malária, e de longo prazo, tanto na mente quanto no corpo. A malária falciparum
existia na Grécia desde pelo menos o período Neolítico, mas a incidência nem
sempre era constante. Muitas áreas que mais tarde se tornaram focos conhecidos
de malária como, por exemplo, a Beócia e a planície da Macedônia, tinham um
nível demográfico maior nos séculos V e IV a.C. do que no início do século
XX.125 As cidades litorâneas ao sul da Etrúria eram densamente povoadas até o
século III a.C., enquanto a colônia grega de Pesto, no Sul da Itália, famosa hoje
por seus templos magníficos, situava-se em uma área que na Baixa Idade Média
era um pântano infestado de mosquitos transmissores da malária. Portanto, há
muito tempo os estudiosos acreditam que as primeiras infecções da malária
falciparum na pré-história reduziram-se em consequência de mudanças
climáticas, que controlavam o mosquito vetor, e o aumento da incidência da
malária só ocorreu de novo em meados ou no final do século V a.C. Sem dúvida,
não existem registros de observações sólidas sobre a incidência de febres e do
comportamento dos mosquitos para sugerir uma analogia com a malária: os
quartos nos andares mais altos eram mais saudáveis do que os do térreo (porque
os mosquitos têm uma capacidade de voo pequena); febres graves eram muito
comuns em um ano com uma primavera úmida e um verão quente, que criava
grandes poços de água estagnada, um foco ideal para a proliferação de insetos, e
depois que secavam os mosquitos partiam para procurar outro habitat; os
pântanos à beira-mar, como ao redor de Ravena, eram menos perigosos do que
os pântanos no interior (a salinidade deles impedia que a larva do mosquito se
desenvolvesse).126 Porém, enquanto havia, em geral, uma analogia entre a
pobreza e a predominância da malária (e vice-versa), principalmente em regiões
baixas perto de pântanos ou de rios com um fluxo lento de água, a incidência da
malária era muito mais complexa. A intervenção do homem com a criação de
fazendas longe das florestas ou a construção de estradas em lugares pantanosos,
paradoxalmente, aumentou o número de focos de mosquitos. Ao mesmo tempo,
a fertilidade de muitas planícies, sobretudo na Campânia romana, incentivou os
agricultores a continuarem nesses lugares, em especial se tivessem adquirido
certa imunidade na primeira infecção e na recaída, porque uma fazenda em um
planalto era quase igual em termos de salubridade e, com certeza, pior em
relação à prosperidade. Mas logo que a malária se instalava em um local, sua
incidência desafiava todas as tentativas de cultivar de novo a terra. Os pântanos
em Pontinas, uma região de florestas e áreas alagadas bastante atingida pela
malária na Campânia romana, tinha engolido diversas cidades e vilarejos muito
antes da primeira tentativa de drená-las por Cornelius Cethegus em 160 a.C., e
continuou a desafiar todos os melhoramentos até Mussolini, na década de
1930.127 Em 500 d.C., com o empobrecimento de Roma, a Campânia inteira se
converteu em uma das piores regiões infestadas pela malária, quando os canais
de drenagem secaram e a terra fértil inundou-se de água.128 A malária é sem
dúvida uma explicação mais plausível para o declínio econômico de
determinadas regiões do mundo romano do que o vilão habitual, o
envenenamento por chumbo.129 Embora as análises dos esqueletos tenham
revelado uma presença crescente de chumbo na Antiguidade clássica comparada
com a do segundo milênio antes de Cristo, essa taxa foi menor do que a prevista,
em razão do aumento significativo da produção de chumbo de 600 a.C a 500
d.C. e da difusão do uso de chumbo em objetos caseiros e canos.130 Em parte
pelo fato de a doença imitar sintomas de muitas outras enfermidades, descrições
precisas de envenenamento por chumbo eram raras. No século II a.C. Nicandro
mencionou o exemplo mais antigo, e Paulo de Egina, sete séculos depois,
observou que a doença estava disseminada.131 Vitruvius aconselhou a não beber
água de poços perto de minas de chumbo e também criticou o uso de chumbo em
tubulações de água, uma proibição apoiada por Augusto, apesar de pouco
seguida.132 Mas as fontes de água com o fluxo livre – as torneiras eram raras –
não eram muito contaminadas pelo chumbo e o acúmulo de outros depósitos, em
especial giz nos canos de chumbo reduziam ainda mais o perigo. O hábito de
ferver o suco de uma fruta em contêineres de chumbo para produzir sapa, um
procedimento recomendado por diversos escritores de culinária e de agricultura
para melhorar o sabor, era muito mais perigoso. Imitações atuais, de acordo com
a recomendação de Columela, resultaram em concentrações de 800 mg por litro,
cerca de 16 mil vezes mais do que o limite máximo recomendado para beber
água.133 Mas, embora a classe alta rica pudesse ser exposta ao envenenamento
do sapa, o argumento de envenenamento pelo chumbo para explicar o
comportamento dos imperadores ou o declínio da população do Império Romano
é extremamente exagerado. No entanto, o envenenamento por chumbo não era o
único perigo enfrentado pela população com a comida e a bebida. Grande parte
do pão da Antiguidade continha partículas duras e às vezes pedaços de brita,
enquanto outros farináceos eram ainda piores.134 Galeno pensava que comer
mingau de trigo era inadmissível, mas teve a má sorte no final de um dia
cansativo de encontrar um grupo de camponeses que comiam sua refeição. Eles
ofereceram generosamente a Galeno e seus dois jovens companheiros o mingau
de trigo cozido com um pouco de sal, preparado pelas mulheres no local. O
resultado foi flatulência, prisão de ventre, dor de cabeça e distúrbios visuais.
Entretanto, Galeno disse que os camponeses comiam com regularidade esse
mingau de trigo, apesar de saberem que era pesado e indigesto, como qualquer
pessoa perceberia, disse Galeno com mordacidade, mesmo sem tê-lo comido.135
Ele também se opunha à ingestão de todos os tipos de frutas, pois ficara doente
durante muito tempo depois de comer uma fruta fresca. Além disso, as frutas
poderiam apodrecer no clima quente do Mediterrâneo, especialmente abricós,
pêssegos e nectarinas. As maçãs maduras, se estivessem assadas ou cozidas,
poderiam ser benéficas para pessoas doentes, admitiu com má vontade, mas não
se surpreendeu com o hábito de os camponeses asiáticos alimentarem os porcos
com maçãs. As frutas que não estavam maduras eram também um perigo, a
exemplo de Protas, o orador, “nosso amigo cidadão”, que adoecera depois de
comer maçãs e peras verdes.136 Por fim, embora o imperador Claudio tenha
sido assassinado com cogumelos envenenados, como o historiador Tácito
alegou, outras pessoas morreram por acidente ao confundirem uma espécie
mortal com um cogumelo comestível.137 Além desses riscos à saúde
poderíamos acrescentar o tratamento dos médicos. Um paciente egípcio escreveu
a seu médico perguntando-lhe quando seria sua próxima visita, porque o haviam
deixado sozinho, sujo e com o mau cheiro de pus por diversos dias.138 A
conduta dos médicos poderia ter consequências ainda piores. Plínio, o Velho,
censurou todos os médicos gregos por terem matado impunemente seus
pacientes romanos.139 Essa denúncia é um memorável exagero em relação a
uma questão técnica da legislação romana, mas tem ainda mais impacto com as
inscrições, a exemplo da queixa do marido de Aurelia Decia, “a mais
extraordinária e casta das esposas, cuja morte aos 28 anos, 10 meses e 24 dias
ocorreu em minha ausência pela imperícia dos que tentavam curá-la”.140 Outras
lápides trágicas registravam as mortes prematuras de Euelpistus, “a alma mais
inocente que os médicos mataram”, e de Ephesia Rubra, uma mãe dedicada que
teve seus dias de vida abreviados pelos médicos.141 O marido de Julia Prisca, de
20 anos, só conseguiu se consolar pelos erros cometidos pelos médicos dela,
com o pensamento de que a morte também não poupava os reis.142 Sua dor não
teria diminuído, ao saber que pelo menos alguns médicos antigos estavam
dispostos a assumir certo grau de responsabilidade médica por terem causado a
morte de um paciente ou agravado sua doença.143 Porém, essa apologia dos
médicos não significava uma confissão expressiva de suas deficiências, mas,
sim, a consciência da dificuldade de chegar sempre a uma conclusão certa ao
lidar com o corpo humano, um problema tão complexo e individual. A medicina,
tanto da perspectiva do paciente quanto do médico, era sempre um assunto
arriscado.144 Assim também eram as consequências. É fácil esquecer, em meio
às lápides dos que haviam morrido prematuramente e a retórica encorajadora dos
manuais detalhando os tratamentos eficazes, que muitos doentes continuariam a
sofrer com dor e ansiedade por muitos anos.145 Os médicos da tradição de
Hipócrates fizeram relativamente poucos comentários sobre doenças crônicas,
embora mencionassem com regularidade casos “graves”, o que significava que
sabiam distinguir as doenças, e só no período helenístico encontramos tratados
dedicados a doenças longas. Às vezes os tratamentos eram apenas paliativos,
como estabilizar um membro quebrado para permitir certa mobilidade, apesar do
uso restrito.146 Em outras ocasiões, o médico poderia fazer um tratamento que
durasse meses, até mesmo anos. Galeno, por exemplo, dizia que tratara com
sucesso de uma paciente com câncer de mama com um ano de purificação para
remover a bile negra e perigosa do corpo dela e que, desde então, repetia a
purificação uma vez por ano.147 Em seu conjunto, a medicina antiga dependia
do poder de recuperação do corpo e da natureza de doenças graves, que
impunham seus limites. As doenças de longa duração, por exemplo, que devem
ter sido o sofrimento de muitas pessoas, eram raramente comentadas, como a
descrição do desespero de uma mulher com problemas de sangue há muitos anos
e que se entregara aos cuidados de um médico e limitava-se a tocar na bainha
das roupas de um médico famoso que passasse por seu vilarejo. Ou o alívio de
um sírio anônimo curado pela intervenção divina depois que 36 médicos haviam
fracassado.148 No Peloponeso, Euandridas construiu uma fonte em
agradecimento e homenagem a Hércules por seus poderes de cura, que o haviam
favorecido, ao contrário dos médicos.149 As tabuletas que descreviam as curas e
enfeitavam as paredes dos santuários de restabelecimento da saúde no mundo
antigo mostravam uma litania, ao mesmo tempo triste e alegre, de doenças a
superar: cegueira, paralisia, dores no estômago e na cabeça, problemas nos
membros, acidentes cardiovasculares, distúrbios mentais que haviam
atormentado de uma maneira intolerável os doentes e suas famílias até serem
curados. É possível imaginar a felicidade de Felix, um escravo público em
Roma, que ficara cego durante 10 meses e fora abandonado pelos médicos,
quando Bona Dea o curou.150 Relatos de milagres de cura cristãos continuavam
sua tradição. Seria possível observar a inconveniência social, assim como
pessoal provocada pelo rico advogado Innocentius e sua fístula anal, que
desafiara todas as tentativas dos melhores médicos e cirurgiões de sua cidade
natal, Cartago.151 O poço de Betsabá, assim como o de Asclépio, na ilha Tibre,
em Roma, e, talvez, muitos outros santuários de cura, ficavam cheios dos
excluídos da sociedade, os mancos, os cegos, os doentes mentais que pediam
caridade ou tinham a esperança de serem curados.152 A situação deles era muito
pior do que a do rico filósofo romano Sêneca ou do orador grego Aelio
Aristides, cujos relatos dramáticos de seus sofrimentos ao longo dos anos são
importantes no registro literário.153 Por fim, nossa compreensão da realidade
das doenças na Antiguidade, tanto do ponto de vista pessoal ou como os
fundamentos da teoria e da prática da medicina, precisa ser na melhor das
hipóteses parcial. Neste capítulo tivemos inevitavelmente de omitir e reduzir
informações. A reunião de textos de períodos diferentes, lugares distintos e
tradições diferentes corre o risco de reconstruir um prédio que nunca existiu, ou
que não seria reconhecido por seus contemporâneos. Os estudos demográficos
basearam-se em inscrições em lápides (sobretudo na Itália e em Roma) e nos
papiros egípcios, que podem conter distorções. Os textos de medicina
preservaram informações gerais sobre médicos e cirurgiões, mas é possível que o
processo de acumulação confunda nosso entendimento em relação aos
tratamentos praticados ou às doenças existentes. Um exemplo final mostra como
os gregos e os romanos tinham visões diferentes, tanto entre si quanto à maneira
como os vemos. No século I mais de um autor observou o aparecimento de
novas doenças, embora tenham oferecido explicações diferentes.154 O escritor
grego Plutarco imaginou uma discussão à mesa do jantar sobre esse tema.155
Uma das pessoas presentes, um médico local, apresentou como prova da
existência de novas doenças o tratado de Athenodorus, Epidemias (tanto o livro
como o autor eram desconhecidos), no qual o autor mencionava que a hidrofobia
e a “elefantíase” (provavelmente lepra) eram desconhecidas antes da época de
Esculápio, no final do século II a.C. Essa opinião foi duramente criticada por
outro convidado, Diogenianus, que se opunha à noção de átomos de Demócrito
(e de Esculápio?) originários de um universo externo e que traziam as sementes
das doenças. Em sua opinião, todas as doenças eram resultado da alimentação do
ser humano: “a desarmonia entre a comida e a bebida que ingerimos e o nosso
corpo ou o erro em usá-las perturbam nosso sistema”. Havia apenas uma
pequena margem de possíveis reações. As doenças eram constantes e as supostas
novas doenças eram consequência do fracasso da observação ou da
nomenclatura. Plutarco tinha uma visão moderada. Ele rejeitava a ideia de fatos
externos prejudiciais, assim como a visão de Diogenianus de um universo
perpetuamente estático de doenças. Na opinião de Plutarco havia novas doenças,
mas por uma causa simples. O homem primitivo tivera, de fato, uma deficiência
alimentar, porém, o estilo de vida luxuoso da Roma moderna, com comidas
exóticas que chegavam de todas as regiões do império e de outros lugares, era
ainda muito pior. Por esse motivo, não causava surpresa que as doenças novas e
diferentes fossem criadas por um excesso de luxo. Esse debate sucinto entre
gregos cultos proporciona uma visão das antigas concepções da saúde e da
doença. Havia um consenso que algumas ideias haviam mudado, que existiam
doenças novas, mas, ao mesmo tempo, nenhum dos exemplos de doenças citados
neste capítulo seria considerado hoje uma epidemia, enquanto o contágio da
hidrofobia e da lepra, mencionadas como exemplos, era bem diferente. Para uma
pessoa, a formação do universo, com as constantes mudanças de interação entre
os átomos e os poros, significava que o surgimento de novas doenças era sempre
provável; para outra, representava um erro na avaliação das reações pessoais
diante de doenças específicas. Segundo Plutarco, o luxo e a vida moderna eram
os vilões. Todos viam a doença em termos individuais. Suas ideias, argumentos,
até mesmo as fontes, podiam ser pesquisados por muitos séculos anteriores.
Juntos constituem uma abordagem da medicina que procura causas e que
envolve debate e discussão, não apenas entre médicos, como também entre todas
as pessoas com tempo e interesse em participar. Agora, iremos ver ao longo
deste livro como essa abordagem desenvolveu-se.


3 Antes de Hipócrates Em 1879 o mundo culto soube que o poeta Homero havia
escrito a Ilíada enquanto trabalhava como vice-chefe da equipe médica do
exército de Agamemnon na guerra de Troia. Não houve dúvida de que Homero
era médico por sua ênfase notável no poema em ferimentos e outros assuntos
médicos; e seu cargo de chefia foi comprovado pelo acesso a informações
detalhadas das atividades nas duas linhas de frente. Sua posição estratégica, um
pouco acima da rotina diária da batalha, demonstrou que ele não participava
como soldado, embora tivesse visto cadáveres e pessoas morrerem. Além disso,
o posto de chefia da equipe médica não lhe permitiria tempo para escrever, como
a de um oficial menos graduado possibilitava. Embora essa conclusão refira-se
mais à organização e aos preconceitos do exército real da Saxônia, no qual o
Oberstabsarzt Frölich serviu do que a Homero, ela indica um fato inegável: o
poeta escolheu incluir muitos detalhes médicos com uma abordagem
sofisticada.1 É importante começar a história da medicina por Homero, não
apenas porque os gregos o fizeram, ou por causa de sua descrição de Macaão
como “um médico (iatros) com mais valor do que muitos outros homens em
extrair flechas e no uso de sedativos”. Homero proporcionou aos médicos
posteriores, indiferentes a um cargo inferior e ao contexto militar, uma
justificativa para o sentimento de superioridade deles perante o resto da
humanidade.2 Os poemas de Homero deram uma visão das ideias e práticas da
medicina muito antes da literatura médica e, apesar de as informações não
resgatarem os tempos heroicos de Agamemnon e de Ulisses, são úteis para
mostrar a expectativa do público do poeta na época, ou as que eram implícitas no
final do século VIII. Homero usou uma terminologia complexa para descrever os
tipos de ferimentos que, presumivelmente, seus leitores conheciam, e essas
descrições minuciosas nem sempre foram resultado da imaginação poética.3 A
crença de Frölich de que só um médico poderia escrever esse texto com tanta
precisão e detalhes técnicos subestimou a necessidade de criar uma relação entre
o poeta e o público, por desconhecer em 1879 os métodos da composição oral da
Ilíada e da Odisseia sob a perspectiva atual. Em razão de o conhecimento de
termos médicos e de situações no contexto da medicina não serem privilégio
apenas de profissionais, os poemas revelaram que muitas pessoas tinham acesso
e entendiam essas informações. A existência de médicos com habilidades
específicas não diminuía a importância do fato de que o conhecimento deles não
era mantido em segredo. Segundo Homero, Macaão e seu irmão Podalírio eram
originários de uma família de médicos e haviam adquirido o conhecimento de
remédios por intermédio do pai, Esculápio, que, por sua vez, o adquirira com o
centauro Quíron. Mas na Ilíada Macaão e Podalírio são retratados primeiro como
guerreiros, líderes que conduziam seus exércitos vindos de Tricca, Itome e
Oechalia e lutavam ao lado dos outros heróis.4 O papel exercido por Macaão em
conduzir seus homens como o “pastor do povo” não dependia só de seu
conhecimento de medicina, e os adjetivos que lhes são atribuídos também foram
aplicados a outros líderes.5 Como médico ele retirava flechas dos corpos dos
feridos, extraía o sangue envenenado e aplicou “sedativos” em Menelau ferido
na batalha, com um sucesso imediato.6 É possível imaginá-lo também fazendo
curativos nos feridos, como outros heróis faziam com seus companheiros.7 Por
sua vez, Podalírio não é visto em cena, uma omissão corrigida por um poeta
épico posterior, Arctinus, no Sanque de Troia.8 Enquanto o irmão tratava dos
ferimentos de Ajax, Podalírio, que conseguia “ver o invisível e curar o
incurável”, observou o brilho nos olhos de um paciente e nele enxergou seus
pensamentos atormentados, que terminariam em suicídio.9 Não é necessário
chegar ao ponto dos estudiosos alexandrinos que converteram Macaão no
protótipo do cirurgião e Podalírio no protótipo do médico, porque a
diferenciação feita pelo poeta tem um objetivo artístico e não profissional.
Porém, a divergência de Arctinus em relação a Homero foi observada e
explicada com facilidade, porque ferimentos eram mais frequentes em campos
de batalha e, portanto, Homero concentrou-se no que era mais importante em seu
conflito épico. O fato de Macaão e Podalírio realizarem suas ações sem recurso
dos deuses é ainda mais importante no relato. Macaão usou seus remédios e
Podalírio diagnosticou a loucura incipiente de Ajax sem menção aos deuses. Na
verdade, quando Apolo chegou para tratar os deuses que haviam sido feridos nos
combates, ele o faz da mesma maneira e com palavras iguais às de Macaão.10
Embora esse argumento não deva ser enfatizado demais ao abordar um poema
que descreve os deuses e os heróis com uma linguagem convencional, existe
certo humor em um deus tratar os imortais com os mesmos meios usados por
Macaão em seus pacientes humanos. Porém, os deuses não estavam
completamente ausentes do campo de batalha no momento da cura. Em Ilíada
16, 523, Glauco, logo depois de presenciar a morte de Sarpedão, reza a Apolo
pedindo a cura de seu ferimento, e a prece é atendida.11 O papel de Apolo na
peste descrita no início do primeiro livro da Ilíada é muito mais complexo. Ele é
o agente da destruição e, ao mesmo tempo, do final da peste. Apolo lançou suas
flechas “malignas” para atingir animais e homens, porque se zangara com os
gregos por terem rejeitado com aspereza o pedido de seu sacerdote, Crise, do
retorno da filha capturada por Agamenon. Apolo agiu em resposta à prece de
ajuda de Crise e, a partir desse momento, o final da peste passou a ser um
assunto de negociação apenas com o deus. Depois de nove dias de mortes os
gregos pediram conselho a um vidente, sacerdote ou um intérprete de sonhos
para saberem a causa de sua raiva.12 Não havia lugar para um iatras nessa
passagem, porque o poeta deixou claro que todas as pessoas pensavam que esse
sofrimento profundo era de origem divina e, em consequência, seria preciso ter
ajuda não de um iatros, mas, sim, de alguém com mais capacidade de entender
os deuses.13 Aquiles, o porta-voz dos gregos, não tinha dúvidas a respeito da
raiva do deus: os gregos tinham cometido alguma ofensa contra Apolo. Os
gregos haviam quebrado um juramento, ou teriam oferecido um sacrifício
inaceitável.14 Até esse momento, a cadeia complexa de causa e efeito não fora
motivo de reflexão. No entanto, assim que a causa foi revelada pelo vidente,
houve uma aceitação geral de seu raciocínio e consenso que só uma desculpa
apropriada ao deus o convenceria a concluir o que iniciara. A insistência de
Agamenon ao direito de compensação por ter desistido da jovem confundiu, mas
não contradisse, sua vontade de oferecer essa explicação e conselho. A expiação
final teve um duplo desdobramento: o pai recuperou a filha e os gregos
ofereceram um sacrifício ao deus. Só depois Apolo se acalmou. Essa crença de
que uma doença que afetava tantas pessoas pudesse ter uma causa além da
individual e que se relacionava à raiva de alguma divindade existia em toda a
região do Mediterrâneo, em especial no Antigo Testamento. Deus soltava raios
nos pecadores quando se zangava; quando os judeus, ou seus líderes, romperam
a aliança com Jeová, foram punidos com doenças terríveis, que só terminaram
com a reparação do mal causado por parte dos judeus.15 Mesmo nas sociedades
modernas do Ocidente que conhecem os efeitos da poluição, desnutrição,
doenças infecciosas, vírus, bactérias entre outros males, uma dimensão religiosa
ou moral não está inteiramente ausente de discussões sobre epidemias, como as
reações iniciais à disseminação da Aids na década de 1980 demonstraram.16
Mas o consenso dos gregos diante das muralhas de Troia, de que a epidemia que
os atingia era resultado da raiva divina, não prova que Homero e seu público
atribuíam todas as doenças aos deuses. O pressuposto de que Apolo, Ártemis,
Zeus ou outro deus poderia enviar uma doença para uma comunidade ou para
pessoas era amplamente compartilhado.17 Porém, havia sinais de outra opinião.
A dor excruciante e fétida da ferida de Filoctetes, que provocou seu abandono
pelos gregos em Lemnos, foi atribuída a uma causa aparentemente natural, a
mordida de uma serpente de água.18 Na Odisseia 11, 171-3, o poeta descreveu a
pergunta religiosa e, ao mesmo tempo, agnóstica de Ulisses à mãe no mundo dos
mortos para saber se ela morrera depois de uma longa doença ou se fora atingida
pelas flechas de Ártemis. Hesíodo, nos Trabalhos e os Dias, também ofereceu
explicações alternativas. A infelicidade, a fome e a peste podiam ser enviadas do
céu por Zeus, a fim de punir os que agiam com violência ou crueldade, mas o
poeta também descreveu um cenário vívido de doenças que, andando a esmo
pelo mundo, trazia em silêncio desgraças para os mortais. Zeus poderia ter o
controle total da situação, porque silenciava esses seres humanos, porém, mesmo
assim, eles tinham autonomia de movimento e podiam ir para onde queriam.19
Não havia um Livro de Jó grego que refletia sobre as causas do sofrimento
humano individual e a prosperidade, antes de chegar à conclusão de que a
inescrutabilidade dos desígnios de Deus ao permitir essas diferenças fazia parte
de Sua majestade. Em vez disso, havia uma série de explicações que se
sobrepunham umas às outras e que eram escolhidas como apropriadas em
determinada situação. Algumas envolviam de maneira direta os deuses, outras
indiretamente, ou sem relação com eles. A evolução da medicina no mundo
antigo tem sido vista com frequência como uma extensão da última categoria em
detrimento das outras, e existem boas razões, antigas e modernas, para adotar
essa interpretação. Assim, um autor tragicômico de c. 420 a.C. descreveu um
grupo de heróis semidivinos, “os camareiros do bem e do mal”, que ameaçaram
o pecador com diversas doenças – tosses, baço inchado, hidropisia, catarro,
sarna, gota, loucura, líquens, inchaços e febres intermitentes. Nesse caso, é
possível pensar que parte do humor estivesse precisamente na associação do
castigo divino para ladrões e criminosos culpados de crimes não muito graves,
com uma sofisticada diferenciação médica de tipos de doenças.20 Mas, como
veremos, essa extensão do espaço ocupado pela explicação não teológica não
exclui outras possibilidades, mesmo entre os médicos racionalistas, e muitos
preconceitos e reações dos gregos no período anterior a Hipócrates continuaram
a exercer influência sobre o pensamento e a prática da medicina ao longo de
muitos séculos.21 Os poemas homéricos também descreveram a posição social
do médico. Junto com o vidente, o armeiro e o trovador, o médico era um dos
artífices, os “serviçais da humanidade” cujo país “não tinha limites”, e que
mudavam de um lugar para outro quando seus serviços eram solicitados.22 Essa
era uma maneira de vida familiar mencionada em documentos do Levante
contemporâneo, sobretudo os relacionados às famílias reais. Os textos hititas,
babilônicos e egípcios mostraram médicos que mudavam de uma corte para
outra, sendo chamados (ou enviados em uma missão de intercâmbio
diplomática) para curar governantes e seus parentes.23 Em oposição a esse
cenário, é tentador associar a concessão de terra a um ijate em Pilos no período
de Micenas, com a tentativa de um senhor local para garantir a moradia de um
médico entre seus dependentes.24 A carreira de Demócedes de Crotona no
século VI pode ser em parte interpretada da mesma maneira, ao mudar do Sul da
Itália para Egina e Atenas. Em seguida, começou a trabalhar na corte de
Polícrates de Samos em 520 a.C. Os persas o levaram como cativo depois da
queda de Polícrates, mas Demócedes conquistou a liberdade e adquiriu uma
grande riqueza ao curar uma lesão no pé do rei Dario depois que os médicos
egípcios haviam fracassado. Mais tarde curou a rainha Atossa de uma úlcera de
mama longa e dolorosa.25 Duas gerações depois, Apolonides de Cós foi médico
da corte de Artaxerxes I por 30 anos até ser enterrado vivo por causa da relação
sexual que mantinha com a irmã da rainha, uma história contada por outro
médico grego a serviço da Pérsia, Cresias de Cnido.26 O Egito foi uma das
maiores fontes desses médicos.27 Homero mencionou que o Egito era o país da
“raça de Paion” onde todas as “pessoas eram médicas” e a “terra fértil produzia
muitos remédios”.28 Helena foi ao Egito para pedir a Polydamna, esposa de
Thon, nepenthes e acholon, ervas para eliminar a tristeza de Menelau e de
Telêmaco. A arqueologia confirmou a existência de um comércio antigo de
substâncias medicinais entre o Egeu e o Levante. Resinas aromáticas, ópio,
coriandro, ciperáceo e muitas outras substâncias entraram no mundo grego
vindas do Egito e do Oriente Próximo bem antes dos poemas de Homero.29
Muitos remédios ginecológicos do Corpus Hippocraticum contêm ingredientes
do Oriente Próximo, e é possível que a prática da fumigação tenha uma origem
semelhante, com a aplicação de aromas adocicados em problemas
ginecológicos.30 Não sabemos ainda quando e como essa transferência ocorreu,
porque os médicos gregos não registraram o uso dessas substâncias importadas.
A troca continuou porque temos referências em textos de medicina egípcios a
favas de Creta e outros remédios que vinham do mundo grego.31 O tema se o
conhecimento de remédios também envolvia mais do que uma compreensão
casual das teorias subjacentes é um assunto controvertido.32 A visão exagerada
de Homero da ubiquidade dos médicos egípcios não sugeriu um conhecimento
direto, e essa passagem de Homero talvez houvesse sofrido em parte a influência
do comentário de Heródoto, de que existiam muitos médicos no Egito, cada um
deles com uma especialidade em determinado tipo de doença.33 O escritor do
século IV, Isócrates, sem dúvida não estava sozinho ao atribuir a origem da
medicina e da farmacologia aos egípcios, embora seja possível imaginar quanto
seu tour de force retórico de elogio a um monarca morto há muito tempo foi
percebido por um público como uma referência histórica.34 O comentário ainda
mais enigmático de Heródoto referiu-se à inexistência de médicos na Babilônia,
e que os babilônios levavam os doentes para as ruas, a fim de receberem
conselhos úteis de pessoas que estivessem de passagem. Esse comentário
envolve uma série de mal entendidos e uma compreensão errônea, como as
recentes publicações de textos de medicina cuneiformes demonstraram.35A
medicina babilônica ainda florescia no Levante no século IV e continuou a se
desenvolver por mais algum tempo.36 As referências de Heródoto à medicina
egípcia e à da Babilônia, diferentes da medicina grega, inseriram-se no debate
complexo sobre a inter-relação delas e de como uma medicina “especificamente”
ocidental desenvolveu-se nos séculos VI, V e IV na Grécia. Ainda não temos
conhecimento suficiente para provar de maneira conclusiva a dependência, ou
ainda a questão mais complexa, da não dependência entre as diversas correntes
da medicina. Além disso, os argumentos usados em ambos os casos resultaram
da convicção da superioridade de uma civilização sobre a outra.37 A recusa em
acreditar em um Hipócrates núbio significaria negar o valor da medicina egípcia;
pensar na possibilidade da influência da Babilônia na medicina grega seria
equivalente a questionar a existência do milagre grego. Diante da dificuldade de
encontrar critérios adequados para julgar a interdependência entre as duas
tendências, corremos o risco de expor uma visão medíocre.38 É provável, é
claro, que os gregos tenham absorvido algumas ideias e práticas da medicina
com os vizinhos, assim como incorporaram o uso de suas plantas e ervas.39 Os
entrepostos comerciais e as colônias foram criados ao redor do Levante a partir
do século VIII a.C. e os estudiosos têm apontado as influências, em especial da
Babilônia, na literatura, na arte e na religião gregas nesse período.40 Alguns
gregos visitavam essas regiões, às vezes por períodos mais longos e, admirados
com o que viam e ouviam, assimilavam os novos conhecimentos em um estilo
grego. Talvez seja mais prudente não acreditar demais em Diodorus Siculus que,
ao escrever sua História Universal no final do século I a.C., disse que a prática
da incubação, uma das primeiras características de muitos cultos de cura na
Grécia, inclusive o de Esculápio, originou-se do culto a Ísis no Egito. Mas, por
sua vez, as oferendas ao santuário de Hera em Samos (no século VI a.C.)
incluíam estatuetas associadas às da deusa da cura na Babilônia.41 Havia
também paralelos entre as ideias sobre medicina na Grécia e às de regiões no
Oriente Próximo. A crença egípcia de que as doenças eram causadas por
resíduos que apodreciam dentro do corpo e que precisavam ser removidos pela
purgação tinha analogias com os textos de medicina gregos, assim como a ênfase
na medicina da Babilônia nos fluidos do corpo (que correspondiam aos
“humores”) como um fator decisivo das enfermidades.42 Nem seria justo rejeitar
qualquer corrente da medicina por falta de racionalidade ou a tendência a
explicações sobrenaturais. Embora os médicos egípcios e babilônios assistissem
aos trabalhos dos deuses nas curas de doenças, o autor do papiro de Edwin Smith
sobre cirurgia oferecia seus tratamentos sem referência aos deuses. Escritores de
textos cuneiformes diferenciavam nitidamente os dois tipos de tratamentos, ao
incluírem nas mesmas instruções a cura de uma doença por um sacerdote com
feitiçarias e remédios farmacêuticos, com a opção de escolha entre os dois. Até
os distúrbios psicológicos poderiam ser tratados na Babilônia com
medicamentos comuns e prescrições médicas, e as doenças oculares eram
discutidas com frequência em textos que continham fórmulas mágicas e
remédios tradicionais.43 No entanto, o fato de os gregos não terem interesse em
aprender línguas, de certa forma, afastou a hipótese de influência de outras
práticas médicas. Até mesmo o relato de Heródoto mostrou como um homem
inteligente poderia se desviar do caminho certo por sua culpa e por seus
intérpretes. Nesse sentido, uma visita ao Oriente poderia resultar apenas em um
conhecimento superficial da teoria médica estranha à medicina grega. A permuta
de substâncias não precisaria envolver uma troca profunda de ideias, além das
instruções básicas de uso. Além disso, no século V muitas substâncias
estrangeiras eram tão comuns que haviam perdido os vínculos com o contexto
original da medicina do Oriente Próximo. Do mesmo modo, as duas doutrinas
eram tão abrangentes que poderiam com facilidade se adaptar em mais de um
lugar e, com exceções quase imperceptíveis, nenhum autor grego de medicina
mencionaria uma dependência a elementos externos ou a possível origem de
uma fonte não grega. Anonymus Londinensis citou Ninyas, o Egípcio, por
acreditar que existiam dois tipos de infecção, a congênita e a adquirida. A
congênita era inata ao ser humano, ao passo que as adquiridas eram resultados
dos resíduos acumulados e do calor do corpo ao processar os alimentos, que não
haviam sido absorvidos de maneira adequada.44 Essa teoria constava de papiros
egípcios de medicina, e sentimos curiosidade em conhecer mais esse misterioso
Ninyas e a época em que viveu. Mas também é importante observar que sua
opinião não divergia muito da opinião de outros médicos gregos, assim como sua
abordagem geral não era especificamente egípcia.45 No entanto, sua presença na
lista de opiniões médicas indicou uma possível troca de informações. Talvez
tenha escrito em grego ou em egípcio e suas ideias foram transmitidas por
intermediários gregos.46 A teoria de Ninyas abordou uma série de variantes
sobre o mesmo tema. Assim como outros teóricos e médicos, ele acreditava que
as doenças eram causadas por resíduos de alimentos (oposto aos que
acreditavam na mudança dos elementos do corpo). A lista começava com
Eurifon de Cnido e Heródico de Cnido em meados do século V a.C., além de
nomes do mundo grego e da Itália ao norte do mar Egeu. Apesar da hipótese de
que sua visão das doenças fosse uma consequência de ideias do Egito, aceita
pelos médicos de Cnido e transmitida para o mundo grego, a dimensão
geográfica dos médicos citados e a diversidade de ideias sugerem que esse tipo
de explicação não tinha uma única origem.47 Um argumento ainda mais
instigante em relação ao desenvolvimento independente da medicina grega
referiu-se ao tipo de literatura médica da Grécia muito diferente da literatura de
outros lugares. Enquanto alguns tratados do Corpus Hippocraticum eram uma
lista de medicamentos e tratamentos, muitos outros tinham uma natureza
exploratória, com discussões e críticas a outros autores. Eles abordaram
problemas teóricos e práticos à medida que procuraram estabelecer fundamentos
de sua arte e, com frequência, tinham uma argumentação abrangente. No
raciocínio sofisticado exposto nesses tratados e, em grande parte, no âmbito da
medicina como a definiam, não havia espaço para a causa ou curas divinas.48
Enquanto alguns textos destinavam-se ao uso privado, por uma pessoa ou um
grupo pequeno de colegas e alunos, outras partes eram dedicadas a um público
maior, como transcrições e discursos públicos. Essa pluralidade da discussão
sobre os primeiros princípios da medicina não se limitava ao Corpus
Hippocraticum. A seção central do papiro de Anonymus Londinensis consistia
em uma lista de explicações diferentes para doenças nos séculos V e IV a.C.49
Não era um texto de medicina estático e inalterável. O Sentenças de Cnido, um
dos primeiros textos dos quais temos registro, já circulava de uma forma
revisada quando o autor de Regime em doenças agudas o criticou no final do
século V.50 É possível, é claro, que essas características de confronto também
estivessem presentes nos textos de medicina da Babilônia e do Egito. O fato de
não terem sido divulgados é resultado do acaso, porque existiam muitas listas de
prescrições médicas e técnicas cirúrgicas que pareciam muito com a estrutura e a
organização dos textos do Oriente Próximo e que omitiram qualquer discussão
em relação à teoria subjacente.51 No entanto, o número crescente de textos
disponíveis na Babilônia e, bem mais tarde, os textos de Uruk, enfraqueceram o
argumento do silêncio, e concluímos por tudo o que conhecemos da medicina e
da sociedade egípcias, que as discussões vigorosas da Grécia não existiam no
Egito. Se houve influência, é mais provável que tenha incidido em remédios
específicos e práticas, em vez de teorias. Além disso, o “estilo” da medicina
grega, assim como a ciência grega em geral, era muito diferente de outros
lugares.52 Não se trata, porém, de menosprezar a medicina que não fosse grega
no debate prioritário sobre a invenção e o pensamento da medicina. Em nosso
conhecimento atual, a prova de que a medicina grega tenha sofrido influência
externa é extremamente difícil de descobrir e, se houve influência, seus efeitos
desenvolveram-se de uma maneira muito diferente da Babilônia ou do Egito.
Essa competitividade relacionou-se a uma característica da medicina grega, que
a diferenciou da medicina de outras culturas – sua abertura. Embora, como
veremos, houvesse grupos de médicos e tentativas constantes de definir os
fundamentos da verdadeira arte da medicina (e, por consequência, a exclusão das
crenças e práticas que não se adaptavam a essa definição), o limite entre a
medicina e outras pesquisas era, e continuou a ser, extremamente fluido. As
ideias referentes à medicina eram discutidas sem cerceamento entre pequenos
grupos de conhecidos ou em locais públicos, e, quando a escrita popularizou-se
em 500 a.C., havia livros de medicina em cidades como Atenas, Corinto e
Mileto para qualquer pessoa que quisesse comprá-los. “Os médicos escreveram
muito”, comentou Xenofontes com certo esnobismo no início do século IV.53 As
contribuições importantes para as teorias e métodos que definiriam a prática da
medicina não se restringiram aos que tinham o título de “iatros”, os “médicos”.
Qualquer pessoa poderia participar do debate. A troca de ideias interessantes
tinha um caráter diversificado e peculiar, sem sectarismo. A arte da medicina foi
escrito para defender a medicina contra os que questionavam sua eficácia, ao
passo que o autor de A Medicina Antiga criticou com veemência os que haviam
introduzido hipóteses filosóficas na medicina.54 Seria impossível imaginar que o
autor ficaria muito impressionado com a tentativa de seu contemporâneo,
Metrodoro de Lampsaco, um aluno de Anaxágoras, de interpretar a Ilíada de
Homero como uma alegoria fisiológica e cosmológica gigantesca, na qual os
deuses e os heróis simbolizavam partes do universo ou do corpo humano: Apolo,
por exemplo, significava a bile; Demétrio, o fígado; Dionísio, o baço.55 Os
participantes desses debates foram chamados de pré-socráticos, uma
denominação de certa forma errônea, porque havia muitos contemporâneos de
Sócrates (469-399) e poucos eram filósofos no sentido atual do termo. No século
VI esses pioneiros tentaram explicar como o mundo surgira, em uma linha de
pensamento de “pesquisa na natureza”. Para um historiador de medicina suas
conclusões, que quase sempre enfatizavam uma única substância original, eram
menos importantes do que o método de abordagem e a origem geográfica.
Muitos tinham ligações com as cidades ricas e na época independentes da Jônia
(Oeste da Turquia), e os textos médicos, históricos e científicos a partir desse
período foram escritos com frequência no dialeto grego local deles, o jônico.
Apesar de os habitantes de Cós, terra natal de Hipócrates, usarem outro dialeto, o
dórico, e muitos dos escritores do Corpus Hippocraticum terem vínculos com
regiões gregas distantes da Jônia, as obras da coletânea de Hipócrates foram
escritas em jônico.56 Por sua vez, a língua do Corpus Hippocraticum continuou
a ser usada em textos médicos por muitos séculos, e os médicos usavam a
palavra jônica, iatros, ietros, para descrever a profissão deles nas lápides, embora
o resto dos epitáfios fosse escrito em koine, o grego “comum”.57 O método de
abordagem desses pensadores tinha o objetivo de procurar explicações naturais
para fenômenos, ou seja, explicações que não envolviam a intervenção arbitrária
dos poderes divinos. Eles interessavam-se pelas causas das doenças e
procuravam explicar o que percebiam ao redor. Ao usar o raciocínio e
argumentos, acreditavam que podiam penetrar, como o médico Arctinus, atrás do
visível para observar o invisível.58 Esses pensadores presumiam também que os
seres humanos, como parte do mundo natural, eram formados pelo mesmo
material e comportavam-se de acordo com as mesmas regras de tudo o que
estivesse contido nele, embora os paralelos entre o macrocosmo da criação e o
microcosmo da humanidade não fossem inteiramente explícitos.59 Esse desejo
de encontrar uma única explicação para o universo foi criticado com veemência
por Parmênides (c. 515-450 a.C.), um dos pensadores das regiões de língua
grega no Sul da Itália e da Sicília que contribuíram para os debates no mundo
grego.60 A lógica vigorosa de Parmênides ao negar o movimento e a mudança
do mundo físico incentivou os que queriam defender os dados empíricos a fazer
uma abordagem mais sutil do monismo ou de discutir a pluralidade eterna e
imutável das entidades, cujas combinações e recombinações explicavam a
mutabilidade e a diversidade de tudo o que podia ser visto ao redor. Algumas
hipóteses preferidas antecederam Parmênides: os pitagóricos, por exemplo,
acreditavam que a base do universo era numérica, enquanto o enigmático
Heráclito (c. 500 a.C.), em cujo sistema o fogo tinha um papel essencial,
defendia a necessidade permanente de mudança. Mas os pensadores depois de
Parmênides tinham mais percepção dos problemas resultantes de qualquer
explicação que envolvesse a mudança e ampliaram o escopo de suas pesquisas
para observar com atenção o corpo humano. Assim, Melisso de Samos (c. 450
a.C.), por exemplo, defendeu com vigor, em parte com base na fisiologia, a
crença na “unidade do ser” e que as explicações pluralistas só acrescentavam
fundamentos desnecessários do mesmo tipo que seu conceito de unidade do ser.
Nesse sentido, é quase certo que estava criticando Empédocles (c. 460 a.C.),
segundo o qual o mundo era constituído por quatro elementos estáveis – terra, ar,
fogo e água –, cujas combinações potencialmente instáveis produziam tudo o
que poderia ser percebido.61 Para Leucipo (c. 435 a.C.) e Demócrito (c. 420
a.C.) o mundo compunha-se de átomos (indivisíveis) e de vácuo. Anaxágoras,
um contemporâneo um pouco mais velho, argumentou que a mistura original do
universo continha uma imensa diversidade de ingredientes reunidos como
sementes, e cada uma das quais encerrava a parte do todo e, portanto, com o
potencial de crescer e mudar. Em meados do século IV a crença de que as
doenças resultavam da combinação inadequada de “elementos” era bastante
difundida e não se limitava mais aos filósofos. Embora a lista desses pensadores
preservada no papiro de Anonymus Londinensis começasse com Platão e Filolau
de Crotona, também incluía os médicos Políbio de Cós, Filistião de Locris e
Petrônio de Egina, assim como Menecrates, um sábio polêmico e excêntrico de
meados do século IV, e autor do tratado Sobre a medicina.62 Esses vínculos
entre a filosofia e a medicina remontavam pelo menos a Parmênides, ou talvez
aos pitagóricos, cujas ideias dietéticas incluíam a proibição de comer favas.63 A
doutrina numérica de Pitágoras também contribuiu para a teoria médica posterior
de dias críticos, dias especialmente difíceis durante uma doença, expressos com
frequência em termos de números desde o início da doença e que, pelo menos
nos números mais altos, se baseava em pouca evidência clínica. Mais tarde,
Parmênides foi homenageado em sua nativa Eleia com um belo busto e uma
inscrição no pedestal que o declarava ser um “estudante da natureza” (physikos).
O busto ficava em um prédio com um raro pórtico subterrâneo construído em
sua honra por um grupo médico e religioso, um pholeon, formado no período da
existência de Parmênides. Alguns líderes tinham a patronímia de Parmênides e
Ouliades (talvez conectados com o culto a Apolo, Oulios) e as inscrições (bem
posteriores) em suas estátuas indicavam que esses homens eram médicos. Outra
inscrição revelava a presença de um “médico vidente” (iatroma[ntis]), uma
expressão usada pela primeira vez pelo dramaturgo Ésquilo.64 Não temos
certeza se essa aparente combinação de filosofia, religião e medicina remontou a
Parmênides, porém, não é impossível, como revelaram as informações de
Empédocles. Mesmo se considerarmos uma feliz invenção as histórias da cura da
peste de Silanus, ainda existiam muitos fatos que indicavam o envolvimento de
Empédocles com a medicina em um nível prático e teórico.65 Não só ele
prometeu em um poema ensinar aos seus destinatários a “conhecer todos os
remédios para combater as doenças e a velhice”, como também disse que por
onde andava uma multidão o seguia. “Algumas pessoas queriam consultar
oráculos, enquanto outras que há muito tempo sofriam de dores terríveis pediam
para ouvir a palavra de cura para todos os tipos de doenças”.66 Atribuem a
Empédocles um tratado médico em verso e outro em prosa, e os fragmentos de
sua poesia preservada revelaram um profundo interesse por assuntos de
medicina.67 Empédocles foi um dos autores filosóficos criticados pelo escritor
de A Medicina Antiga por influenciar “médicos e sofistas” a acreditarem que um
conhecimento sólido da medicina exigia uma pesquisa especulativa sobre a
natureza da humanidade.68 De acordo com uma reconstrução atual de sua
carreira, ele assemelhava-se mais a um xamã, com seu ritualismo mágico-
religioso, do que com um médico tradicional ou um filósofo contemplativo, uma
interpretação que, mesmo exagerada, contesta pressupostos em relação a essas
atividades na Grécia antiga.69 Os novos fragmentos de Estrasburgo também
mostraram como ele conseguia incluir em um único poema ideias consideradas
incoerentes e desconexas pelos historiadores, o que justificaria a inserção de um
óbolo para indicar um trecho incompreensível ou pelo menos uma distribuição
entre obras diferentes.70 As teorias de Empédocles abrangeram a fisiologia do
ser humano e suas mudanças do berço ao túmulo. Ele acreditava em quatro
elementos básicos – terra, ar, fogo e água – cujas relações proporcionais e
diferentes entre si explicavam as diferenças entre as substâncias. O sangue era
um equilíbrio quase perfeito dos quatro elementos, e a carne se formava a partir
do sangue. Os ossos e os músculos tinham proporções diferentes, sendo que os
músculos não tinham ar em sua formação.71 Os olhos continham os quatro
elementos, mas a visão dependia em grande parte do fogo e da água.72 A
digestão era, em parte, um processo mecânico: a comida era cortada e triturada
pelos dentes antes de ir para o estômago, onde iniciava um processo de
putrefação, provavelmente sob influência do calor natural do corpo, antes de ser
enviada para o fígado, onde se transformava em sangue.73 O calor, que em
Parmênides igualava-se à vida, exercia um papel importante na visão de
Empédocles do corpo humano e definia as diferenças entre os sexos (os homens
eram mais quentes e cozidos do que as mulheres), e explicava o sono (como um
processo de resfriamento).74 O sangue era o agente da nutrição e o leite materno
resultava da decomposição do sangue supérfluo. Apesar de Aristóteles ter
criticado Empédocles por sua escolha de uma metáfora para descrever o
processo de cozimento em vez de putrefação, a ideia básica de Empédocles de
que o leite era formado pelo sangue residual tinha uma aceitação ampla.75 É
possível que pensasse que o sêmen se formava da mesma maneira, embora não
tenhamos uma ideia clara de como ele imaginava a organização interna do
corpo.76 Em seu interesse considerável e conhecimento de medicina,
Empédocles encontrou um complemento em um filósofo grego ocidental,
Alcmeão de Crotona (Sul da Itália). O período em que viveu, no final do século
VI a.C. ou uma geração depois ou mais tarde, no segundo quarto do século V, é
questão controversa. Segundo a tradição, ele foi aluno de Pitágoras “na velhice”,
mas as evidências textuais e históricas desse pressuposto não têm uma base
sólida e, além disso, os interesses de Alcmeão e a sofisticação de seus métodos
pressupõem uma data posterior.77 Seus interesses pela medicina destacaram-se
em sua teoria da saúde, que merece longas citações, mesmo que as palavras
possam não ser inteiramente dele: A distribuição por igual das forças da saúde –
umidade, secura, frio, quente, amargo, doce etc. – é um fator de sua preservação.
Por um lado, a predominância de qualquer uma delas gera a doença, porque o
predomínio é destrutivo. A doença atinge uma pessoa pelo excesso de calor ou
frio. Por outro, pelo excesso ou ausência de nutrientes, a doença localiza-se no
sangue, na medula ou no cérebro. A doença também pode ser causada por fatores
externos, como a qualidade da água, o meio ambiente, o excesso de trabalho,
adversidades ou algo semelhante. Já a saúde é resultado de uma combinação
harmoniosa das qualidades.78 Nesse trecho encontramos a mesma explicação
dada por Empédocles: a saúde dependia de uma mistura equilibrada, mas não em
uma harmonia baseada em uma proporção específica e, sim, em uma mistura
total de todas as forças do corpo. Não eram os elementos, mas as qualidades e os
poderes que precisavam se manter em equilíbrio. A formulação do pensamento
de Alcmeão também permitia uma flexibilidade maior. Se houvesse uma
desarmonia nas proporções cuidadosas de Empédocles, a mudança seria
negativa. Porém, a “igualdade” ou as “cotas justas” de Alcmeão não eram tão
rigidamente definidas. Em sua argumentação Alcmeão usou também uma
surpreendente quantidade de metáforas. A “harmonia” era um ideal de Heráclito,
assim como o dos matemáticos e músicos pitagóricos, com os quais Alcmeão
convivera no Sul da Itália, mas a “igualdade”, o “predomínio individual”, a
“monarquia”, os “poderes” ou “forças” também tinham mensagens políticas
explícitas. A “igualdade” era um dos slogans preferidos da democracia incipiente
de Atenas, e “monarquia” era seu oposto. Do mesmo modo, a batalha entre
forças internas do corpo simbolizava a guerra civil, que só provocaria
sofrimento.79 A analogia entre o corpo humano e o corpo político, como
veremos, continuou sendo uma identidade de relação para muitos pensadores, e a
noção de saúde como uma mistura equilibrada de opostos predominou na
medicina até o século XIX, ou talvez ainda prevaleça. Os interesses de Alcmeão
pela medicina estenderam-se à embriologia, à diferença entre os sexos e à
investigação prática da sensação. Ele concluiu que os órgãos do sentido tinham
uma ligação direta com o cérebro por meio de canais e que a perda de sensação
resultava do bloqueio desses canais, uma visão aceita por muitos historiadores,
embora não concordassem que esse bloqueio quase sempre era causado pela
mudança de posição do cérebro.80 Alcmeão alegou ter uma prova empírica para
sua noção de canais, ao mencionar o vácuo dentro (ou atrás) das orelhas, os
canais nasais e os poros na língua, mas não comentou nada a respeito do tato.
Em vez de explicar nesse texto como a sensação da visão era transmitida ao
cérebro, ele discutiu os elementos faiscantes, brilhantes e transparentes dos
olhos. Suas informações referentes à visão originaram-se quase com certeza de
seu conhecimento do nervo óptico, porque, segundo o comentarista de Platão,
Calcídio, “ele foi o primeiro a ousar fazer uma excisão do olho”.81 Não fica
claro o que Calcídio quis dizer com isso. É improvável que Alcmeão tenha feito
uma dissecção no sentido atual da palavra e em que Calcídio baseou-se para
afirmar que ele fora o primeiro a realizar uma excisão cirúrgica em um globo
ocular doente. É possível que tenha retirado o olho de um animal morto, embora
essa cirurgia já fosse uma prática comum a açougueiros. Mas Calcídio talvez
tenha feito uma interpretação de um procedimento anatômico bem posterior, a
partir da observação de Alcmeão dos nervos cranianos de função sensitiva, que
hoje chamamos de nervo óptico. Dois outros filósofos com interesse em
medicina viveram nas últimas três décadas do século V a.C., Diógenes de
Apolônia escreveu sobre assuntos semelhantes aos de Alcmeão, e tudo indica
que Galeno o considerava um médico e um filósofo.82 Diógenes acreditava que
tudo se originava do ar, inclusive o pensamento e a sensação. Aristóteles
guardou um longo relato de sua descrição das veias, assim o do desconhecido
Sinésio de Chipre, as descrições mais antigas preservadas na Grécia.83 Os dois
relatos são descritos em linhas gerais, com base no que podia ser deduzido da
anatomia superficial e da observação de vítimas de sacrifícios, e tinham o
objetivo de apoiar uma tese e de oferecer uma descrição detalhada e precisa.84 O
sistema de Diógenes consistia em dois dutos paralelos de cada lado do corpo
ligados aos testículos (ou ao útero). O alimento excedente, isto é, o sangue,
passava pela medula espinhal até chegar aos vasos sanguíneos do sêmen, onde
adquiria a aparência de uma espuma, provavelmente pela mistura com o ar.85
Em sua crença no calor inato, para Diógenes o sêmen era o veículo da alma. Sua
longa descrição dos vasos sanguíneos foi superada pela de Aristóteles e a dos
anatomistas alexandrinos, mas sua hipótese de uma relação entre a medula
espinhal e os testículos continuou a exercer influência por muitos séculos, pois
sugeriu, apesar de não ter garantido, uma ligação entre o cérebro, a alma e o
embrião. Leonardo da Vinci, o famoso desenhista de relações sexuais incluiu,
essa ligação hipotética em suas pinturas no início do século XVI.86 Demócrito
de Abdera, o segundo filósofo dedicado ao estudo da medicina no final do século
V, teve uma influência ainda mais duradoura do que a de Diógenes no campo da
medicina. Um catálogo alexandrino de suas obras incluiu trabalhos sobre
prognósticos e dietética, além de um livro interessante intitulado Opiniões
médicas, no qual não está explícito se as opiniões são suas ou de outras pessoas
que ele reuniu ou criticou. Ele teve muitos médicos adeptos de suas teorias no
Império Romano. Filo de Hyampolis, personagem no século I d.C. de uma
discussão sobre assuntos médicos à mesa de jantar de Plutarco, foi descrito como
seguidor de Demócrito.87 Uns 50 anos mais tarde, o sofista Timócrates de Ponto
dedicou-se ao estudo da medicina, especialmente das teorias de Hipócrates e de
Demócrito.88 Um pequeno resumo das regras das profecias de mortes iminentes,
o Prognósticos de Demócrito, difundiu-se nos manuscritos latinos da Baixa
Idade Média, o que lhe deu autoridade como vidente e médico.89 Ele conquistou
uma reputação sólida com estudos anatômicos da famosa (e apócrifa) história do
pedido de ajuda do povo de Abdera a Hipócrates para que curasse Demócrito de
sua suposta loucura, e de que o encontraram rodeado de vários cadáveres de
animais, que dissecara em uma tentativa de descobrir a natureza e a atuação da
bile, a causa da loucura.90 Não só Robert Burton publicou seu livro Anatomia
da Melancolia em 1621 sob o pseudônimo de Demócrito Júnior, como também
um dos mais importantes livros do início dos estudos modernos de anatomia
comparada, o livro Zootomia Democritea escrito por Marco Aurelio Severino
em 1645, fez uma referência clara ao seu exemplo. A ilustração requintada na
folha de rosto mostra Demócrito escrevendo as conclusões das dissecções de um
animal.91 A história tem fundamentos encontrados nos fragmentos preservados
de seus escritos. O interesse de Demócrito por anatomia animal, embora não
envolvesse a dissecção, revelou-se em um relato no qual disse que os animais
poderiam dar à luz de uma só vez mais de um filhote, porque tinham úteros
multíparos, uma teoria aplicada mais tarde à formação de gêmeos no ser humano
por um autor da tradição de Hipócrates.92 Em outro texto ele defendeu com
veemência um estilo de vida saudável, mais como prevenção do que como cura,
lamentando que a alma destruía o corpo com seu desejo por prazeres e vinho.93
Muitas de suas teorias deram continuidade a discussões anteriores. Assim como
Alcmeão, Demócrito escreveu sobre a visão, os sonhos e as sensações e, apesar
de acreditar em um mundo cujos elementos básicos eram os átomos e o vácuo,
atribuía muita importância ao pneuma (ou ar) como o veículo da vida
transmitido pelo sêmen. A semente era retirada de todas as partes dos corpos dos
pais, não só do homem, para gerar o embrião cujo sexo era determinado pela
semente mais poderosa. Esses debates entre filósofos tiveram uma importância
considerável para a história da medicina. Como veremos no capítulo seguinte, as
ideias dos filósofos contribuíram para discussões entre médicos e escritores de
textos de medicina, tanto sobre temas médicos específicos como embriologia,
quanto a assuntos mais abrangentes por meio de métodos de argumentação. Eles
interessavam-se pela mudança e suas causas. Leucipo, o professor de Demócrito,
dizia que nada era criado de uma maneira absurda, mas, sim, segundo a razão e a
necessidade e, portanto, cabia ao filósofo pesquisar ambos os aspectos dessa
criação.94 O uso da argumentação e da controvérsia refletia-se no vocabulário e
no estilo. A linguagem de Demócrito foi usada em mais de um tratado
hipocrático, e a gestação curta dos Aforismos e os menos conhecidos Dentição e
Prognoses de Cós tinham um paralelo com os ditos oraculares de Heráclito.95
Outros pensamentos filosóficos tiveram também influência, apesar de menor.
Pelo menos um tratado hipocrático, Respiração, revelou traços do estilo de um
sofista, Gorgias (c. 480-380), cujos méritos da educação retórica foram
ridicularizados pelo filósofo Platão.96 Nem devemos presumir que o fluxo era
sempre em uma só direção, dos filósofos para os médicos, ou os que abordaram
os problemas da doença e da saúde não seriam capazes de formular suas teorias
sem a ajuda filosófica, e que não davam nada em troca. O autor de A Medicina
Antiga rejeitou energicamente a relação de dependência dos médicos com a
filosofia natural, com o argumento de que o conhecimento claro do mundo
natural só poderia ser obtido pela medicina.97 Muitas das dificuldades
encontradas na criação de uma cosmologia ou de uma antropologia em larga
escala foram compartilhadas pelos pensadores que tentaram entender o pequeno
mundo do corpo. Como vimos, é difícil separar as preocupações médicas dos
interesses dos filósofos pré-socráticos e, ainda mais difícil, decidir o que seria
prioritário. As ideias e a terminologia médica não se restringiram aos médicos. A
opinião do historiador Heródoto sobre o processo histórico e a respeito dos
vários países com os quais a Grécia mantinha contato tinha paralelos fortes com
o Corpus Hippocraticum.98 A descrição de Tucídides da peste de 430 a.C.,
apesar de ter sido escrita na versão que temos 20 ou mais anos depois, revelou
um domínio considerável da técnica médica, e sua abordagem mais ampla da
causa histórica demonstrou um conhecimento das teorias da medicina
contemporânea.99 As tolices e a incompetência dos médicos tornaram-se um
elemento comum da comédia; no século IV diversas peças foram escritas em
torno desse tema.100 Os trágicos descreveram vários casos patológicos no palco
da cegueira de Édipo à loucura de Ajax e Agave, com o uso frequente de termos
técnicos de medicina.101 Medeia de Eurípedes foi chamada de
“esplenomegalia”, uma palavra com um significado obscuro na época de Galeno,
que a interpretou com a conotação da violência de seu temperamento.102 O
universo compartilhado das ideias médicas entre a tragédia e a medicina foi
observado na Antiguidade. No século II d.C., Clemente de Alexandria chamou
atenção para a semelhança entre o objetivo de Ares, Águas e Lugares e três
linhas de Eurípedes: quem quer que queira praticar bem a medicina, ao analisar
uma doença, deve observar o estilo de vida das pessoas que moram em uma
cidade e também suas terras.103 Mas as palavras e explicações dos dramaturgos
nem sempre coincidiram com as do Corpus Hippocraticum. Essa divergência não
surpreende, porque os autores tinham menos interesse no fenômeno da doença
em si do que na análise do seu papel psicológico, moral e filosófico na vida de
um ser humano. Assim, por exemplo, a tragédia Filoctetes de Sófocles, escrita
em 408 a.C., fez uma descrição detalhada e angustiante da doença. Filoctetes
explica que as pústulas em sua perna foram causadas por uma mordida de cobra,
como em Homero.104 Só mais tarde lhe revelaram que sua infelicidade era em
parte consequência do “acaso divino”, o resultado de uma violação inadvertida
de um santuário e, assim como o público, sabemos que fazia parte do plano dos
deuses para mantê-lo afastado de Troia.105 Ele usou uma erva medicinal para
aliviar a ferida até curá-la, como esperava.106 Mas ao final da peça ficou claro
que a intervenção humana não seria suficiente. Mesmo assim, Filoctetes rejeitou
a afirmação de Neoptólemo de que seria curado pelos filhos de Esculápio,
Podalírio e Macaão, quando fosse para Troia com o arco e a flecha que
permitiriam aos gregos conquistar por fim a cidade. Ele só se acalmou quando o
deus Héracles, um guerreiro com poder de cura, lhe disse que enviaria Esculápio
do céu para curá-lo.107 É tentador associar essa transição de uma doença com
causa natural à cura divina nas mãos do deus Esculápio com as crenças de
Sófocles, porque segundo a tradição ele estava envolvido no culto a Esculápio
em Atenas, a ponto de manter a serpente sagrada em sua casa.108 No entanto, é
também importante observar o espaço dedicado no início à explicação da causa
natural: só quando fica claro que a intervenção humana não seria suficiente
recorreu-se à cura divina. Na descrição da peste em Édipo rei, Sófocles
privilegiou as explicações religiosas em detrimento das naturais. O historiador
Heródoto atribuiu à impotência dos citas uma maldição da deusa Afrodite. Mas
para o autor de Ares, Águas e Lugares a impotência deles devia-se às longas
cavalgadas montados em selas. Essas divergências são menos importantes do
que o interesse que compartilhavam em entender o fenômeno.109 Assim como
nos debates dos filósofos, havia diversas abordagens que coexistiam, competiam
entre si e se opunham. A medicina fazia parte de uma discussão contínua, que
envolvia médicos e pessoas de outras áreas do conhecimento do mundo inteiro
grego, da Sicília e do Sul da Itália ao litoral do Levante. Por isso, não nos
surpreendemos com as opiniões de Fasila de Tenedo, uma ilha ao norte do mar
Egeu, citadas junto com as de Timóteo de Metapoto no Sul da Itália, de
Aegimius de Elis no Sudoeste da Grécia e de Trasímaco de Sardis (hoje no Oeste
da Turquia e possivelmente na época parte do império persa). O mesmo autor
não viu nada de estranho em dar mais espaço às opiniões de Platão sobre as
causas da doença do que as de qualquer outro autor, médico ou não.110 Mesmo
se não tivéssemos o Corpus Hippocraticum, seria fácil concluir que no século V
a medicina grega era um vigoroso tema de debate público, controvertido,
desafiador e multifacetado.


4 Hipócrates, Corpus Hippocraticum e a Definição de Medicina Com exceção da
Bíblia, não existe documento nem autor da Antiguida Criso de com a autoridade
no século XXI de Hipócrates de Cós e do Juramento hipocrático.1 Eles são
citados com regularidade em periódicos acadêmicos e na imprensa popular como
o padrão de conduta ética de todos os médicos. Em faculdades de medicina do
mundo inteiro os alunos seguem os princípios e as palavras atribuídos ao Pai da
Medicina. Aos olhos dos seus pacientes futuros o fato de não seguirem seus
preceitos de competência e moral é o pior de todos os pecados da medicina.
Revisto com a omissão de trechos considerados vulgares, transformado em
música e gravado em CD-ROM, atualizado ou criticado, o Juramento converteu
Hipócrates, a quem atribuem ser o criador da profissão atual da medicina, em um
nome familiar no mundo do século XXI.2 Talvez seja um choque saber que
desconhecemos quase tudo a respeito de Hipócrates, que não temos certeza se de
fato elaborou o Juramento e diversos trechos do Corpus Hippocraticum
descrevem práticas que envolviam a intervenção de um médico que,
provavelmente, não teria feito o Juramento.3 A divergência entre o que
acreditamos ter sido Hipócrates e o que possa ter dito ou feito é resultado de três
tendências convergentes. Em primeiro lugar, havia o desejo compreensível dos
gregos e dos romanos de conhecerem mais os grandes personagens do passado;
em segundo, os acréscimos graduais, deliberados ou acidentais, de tratados
anônimos ou supostos tratados, em mais quantidade do que textos genuínos; e,
por último, o aumento da tradição hipocrática de interpretação, que enfatizava o
valor de certos tratados em detrimento de outros e, em consequência, a crença de
que esses textos originavam-se da pena do mestre. Essas três tendências
estimularam a imaginação dos que queriam reconstruir a vida de Hipócrates,
com base nas informações contidas nos textos do Corpus Hippocraticum.4 O
hábito grego de fazer discursos imaginários ou escrever cartas de pessoas
famosas do passado nos exercícios escolares ou em peças de teatro aos poucos
obscureceu a distinção entre o genuíno e o falso. Um grupo de cartas e discursos
que, de acordo com o estilo, o conteúdo e os detalhes históricos, possa ter sido
escrito em torno de 350 a.C. ou talvez um século mais tarde, ajuda a preencher
as informações sucintas que temos sobre a vida de Hipócrates.5 Elas o retratam
como um sábio criterioso, que ao ser chamado para curar a loucura de Demócrito
não quis intervir, porque o julgou equilibrado; um patriota que recusou receber
ouro dos persas para servir ao rei deles, um inimigo da Grécia; e um médico
extraordinariamente versátil, capaz de tratar da paixão do monarca e, ao mesmo
tempo, da grande peste de Atenas (que Tucídides considerou incurável). Por sua
vez, essas histórias fizeram parte de uma descrição do Hipócrates histórico e,
assim, exerceram um papel predominante em moldar a opinião de Galeno sobre
o comportamento de um médico ideal. Além disso, foram enfatizadas na única
biografia da Antiguidade relevante de Hipócrates escrita por Sorano em torno de
100 d.C.6 Outras histórias surgiram a seu respeito, ergueram muitos bustos dele,
e Cós no período imperial romano tinha moedas cunhadas com seu retrato.7

Figura 4.1 Hipócrates curando a peste de Atenas. O ilustrador medieval de


Epidemias imaginou Hipócrates lancetando uma íngua na virilha, como se
estivesse tratando da peste bubônica. Dresden, Sächsische Landesbibliothek, Db
93, fol. 458r.
Figura 4.2 Hipócrates lendo, enquanto dois espectadores discutem. Ilustração do
início de um manuscrito do século XV de Aforismos em uma tradução para o
latim. Londres, Wellcome Ms. 353, fol. 3r. Cortesia da Wellcome Library,
Londres.

Figura 4.3 O sonho de Hipócrates. Um mosaico de Cós que mostra Hipócrates
sentado, enquanto um pescador cumprimenta Esculápio ao desembarcar. Séculos
II ou III d. C. Com o objetivo de desvendar a lenda, os historiadores adotaram o
princípio de dar mais importância aos testemunhos da época em que viveu
Hipócrates. Assim, por exemplo, o filósofo ateniense Platão em seu diálogo
Protágoras, escrito no início do século IV, mas ambientado 50 anos antes, por
volta de 430 a.C., confirmou que Hipócrates nascera em Cós e que tinha uma
excelente reputação como médico, comparável à de Políclito e à de Fídias na
escultura. Seu status paradigmático também é descrito por Aristóteles, ao
mencioná-lo na Política para mostrar a necessidade de precisão na definição de
palavras: Hipócrates era o “maior” em relação à medicina não por causa da
altura. Platão, em um trecho de Protágoras, disse que Hipócrates pertencia à
família Asclépio, que alegava ser descendente de Esculápio, e ensinava medicina
por dinheiro. Sem limitar seu conhecimento de medicina a uma família, como
sugerido no Juramento, Hipócrates é descrito como alguém que aceitava ensinar
medicina a qualquer pessoa que o pagasse.8 No entanto, é ainda mais difícil
definir o conteúdo de seus ensinamentos. Em um trecho de Fedro, escrito depois
de Protágoras, Platão mais uma vez usou Hipócrates como exemplo para revelar
suas preocupações referentes a um tema um pouco diferente, a retórica. Sócrates,
o principal interlocutor de Platão, disse que a retórica e a medicina tinham o
mesmo método; ambas precisavam usar um método lógico de divisão de seu
tema, a medicina no âmbito físico, a retórica na alma. Quando Fedro demonstrou
indiferença diante dessa premissa, Sócrates repetiu a pergunta de uma maneira
diferente: “Assim, você conseguirá entender racionalmente a natureza da alma
sem a natureza do conjunto?”.9 A resposta de Fedro foi de certa forma irônica:
“De qualquer modo, se acreditarmos em Hipócrates, não será possível conhecer
o corpo sem esse método.” Quando chegaram a um acordo, Sócrates exigiu mais
do que a autoridade de Hipócrates; perguntou qual era a “verdadeira razão”. Só
então definiu o verdadeiro método (ostensivamente hipocrático), que consistia
em determinar se o objeto era único ou múltiplo e, se fosse múltiplo, seria
preciso dividi-lo em partes e determinar a relação e as interações entre essas
partes. O significado desse pressuposto de Platão foi tema de discussões intensas
desde a época de Galeno, ou talvez antes.10 Ele não citou diretamente
Hipócrates, embora as palavras de Fedro pressupõem que Hipócrates tenha
mencionado a necessidade de entender a natureza do “conjunto”, porém, usou
esse personagem famoso em sua época para exemplificar o procedimento
adequado em uma disciplina, a medicina, paralelo ao que queria pesquisar.11 O
sucesso de Hipócrates na medicina demonstrou a validade de seu método na
prática: não se limitava a meras palavras. No entanto, Platão interpretou um
enunciado hipocrático em seu benefício e, em razão da inserção dos pontos de
vista de personagens históricos em seus diálogos, não é possível afirmar que sua
interpretação coincidisse com a intenção de Hipócrates. Para Platão, o ponto
crucial era o fato de Hipócrates usar o mesmo método lógico ao lidar com o
corpo, que o retórico ideal aplicava ao lidar com a alma, assim como a visão de
“conjunto” devia ser vista no sentido do conjunto do objeto em discussão.12
Como o foco da atenção de Platão direcionava-se para o método correto, é
impossível decidir se, ao considerar “o conjunto”, a inter-relação e a interação
entre suas partes, Hipócrates acreditava que a doença em uma parte do corpo só
poderia ser explicada examinando o corpo inteiro, a alimentação e as atividades
do doente. Ou que o corpo humano só poderia ser compreendido adequadamente
no contexto mais amplo do “conjunto da natureza”.13 Essas duas doutrinas (e
outras análogas) encontram-se no Corpus Hippocraticum, mas as evidências não
permitem afirmar que as doutrinas mencionadas na coletânea das obras de
Hipócrates tenham sido aprovadas por Platão, ou que poderiam ser usadas para
identificar um tratado genuíno de Hipócrates.14 Platão limitou-se a enfatizar o
método preciso usado por Hipócrates e de insistir que precisava do acréscimo da
“verdadeira razão”, caso quisesse ir além de um empirismo muito eficaz. Essa
menção a Hipócrates no Fedro, apesar de decepcionante no que revelou das suas
ideias, tem valor pela importância atribuída a ele como representante da
medicina, mesmo em vida.15 Ainda mais questionável é o comentário de Galeno
em Articulações que um contemporâneo mais jovem, o médico e historiador
Cresias de Cnido discordou de Hipócrates ao alegar que conseguia pôr no lugar
uma coxa deslocada, uma afirmação que, caso verdadeira, significaria que o
livro Articulações e, talvez Fraturas, tivesse sido escrito por ele.16 Mas é
possível que Galeno estivesse apenas interpretando um comentário de Cresias,
que um osso recolocado no lugar poderia se deslocar de novo rapidamente, de
acordo com sua crença na autoria hipocrática de Articulações, e transformou
uma observação geral em uma crítica específica a um texto em especial.17 O
último testemunho pré-alexandrino das crenças de Hipócrates é o mais longo e
controvertido, assim como era na Antiguidade. O escritor do papiro Anonymus
Londinensis pôs as opiniões de Hipócrates em terceiro lugar na lista dos que
acreditavam que as doenças eram causadas por resíduos nocivos de alimentos.
Talvez pela quantidade de alimentos ingeridos ou por causa de sua diversidade,
ou por serem pesados e difíceis de digerir, os resíduos produzem… Quando
ingerimos comida em excesso, o calor que produz a digestão não consegue
absorver e assimilar a quantidade de alimentos no organismo; sem o processo
digestivo os resíduos acumulam-se. Quando os alimentos são muito diferentes,
eles brigam entre si no estômago e, por isso, ocorre uma mudança nos resíduos.
Se são muito pesados e difíceis de digerir impedem a ação do processo digestivo,
e mais uma vez os resíduos alteram-se. Esses resíduos causam gases; quando
sobem dentro do corpo provocam doenças. Esse era o argumento de Hipócrates
influenciado pela seguinte convicção.18 A respiração é o componente mais
importante do organismo, porque a saúde é resultado de uma respiração livre e,
por sua vez, a doença é consequência de sua obstrução. Somos iguais às plantas:
assim como se enraízam na terra, enraizamo-nos no ar pelas nossas narinas e por
nosso corpo inteiro. Somos iguais às plantas (aquáticas) chamadas erva-
saboeiras. Assim como essas plantas enraizadas na água e que flutuam na
superfície de um lugar para outro, nós, enraizados no ar, estamos em constante
movimento. Por esse motivo, o ar é o componente mais importante. Nessa teoria,
no momento em que os resíduos são produzidos surgem os gases que causam
doenças. A diferença entre esses gases diferentes é responsável por diversas
doenças. Em grande quantidade (ou violentos) os gases provocam doenças;
mesmo em pequena quantidade também causam doenças. As doenças também
são consequência da respiração, tanto pelo excesso de calor quanto pelo excesso
de frio. As mudanças de temperatura resultam em enfermidades (diferentes).19
Esse é um testemunho surpreendente de uma fonte aparentemente correta e
erudita, preocupada em pesquisar o registro documental do passado do ponto de
vista cronológico, para interagir com as pessoas que ouviram o grande médico.
Embora as evidências não sejam tão claras como gostaríamos, há um consenso
de que essas seções remontam a Aristóteles e a seu discípulo Meno, que
compilaram uma lista de opiniões de médicos antigos.20 Por esse motivo, essas
seções têm grande autoridade. Mas apresentam uma série de problemas, mesmo
que tenham sido copiadas por Anonymus. Um médico culto e inteligente,
Anonymus opunha-se veementemente a essa caracterização de Hipócrates e
interrompeu a lista de opiniões com sua contestação ao argumento de
Aristóteles. Ele acrescentou uma série de citações, a primeira em uma parte bem
danificada do papiro, provavelmente em Doenças I, a segunda em Natureza do
homem, para mostrar que Aristóteles deveria ter colocado Hipócrates no campo
oposto entre os que acreditavam que as doenças eram resultado do desequilíbrio
do organismo.21 A resposta de Anonymus é interessante, porque enquanto
Natureza do homem tinha uma posição central na tradição hipocrática
representada por Galeno, e mais tarde aceita como uma obra de uma
confiabilidade incontestável, Doença não estava entre os tratados considerados
de autoria de Hipócrates e de seus seguidores mais próximos. Na verdade, ele
nunca foi citado nos textos genuínos de Galeno.22 O fato de a visão de
Aristóteles ser tão abertamente oposta ao galenismo hipocrático posterior pode
ser visto como um argumento vigoroso a favor do que o Hipócrates histórico
acreditava. Uma observação posterior de Galeno confirmou que Anonymus
interpretou corretamente sua fonte. Galeno observou que, embora Meno, o
discípulo de Aristóteles, tenha relacionado diversos autores que acreditavam que
o sangue era o único elemento do corpo, não incluiu nenhum autor que tivesse
mencionado a bile, a fleuma e a bile negra como elementos. Galeno não se
importou com as consequências dessa omissão em sua visão de Hipócrates como
o autor da teoria dos quatro humores corporais, e descartou a anomalia por achar
óbvio que Meno não poderia citar teorias que já haviam sido “esquecidas” ou
eram “inacessíveis” para ele.23 Mas os que querem aceitar o relato de
Aristóteles deparam-se com uma dificuldade básica: nada do que disse insere-se
em nenhuma obra preservada do Corpus Hippocraticum. Há trechos em Regime,
Aforismos e, em especial, em Respiração que se aproximam de suas ideias e, às
vezes, às suas palavras nessa passagem, porém, um doxógrafo teria de fazer uma
revisão meticulosa para criar um verbete sucinto.24 No entanto, mesmo se
resumisse os dados sobre medicina no livro Timeu, de Platão, seria muito difícil
acreditar que a descrição vívida da humanidade enraizada no ar, deslocando-se
de um lado para outro como uma planta aquática, é inteiramente sua ou se se
origina de trechos de ideias de Platão e Aristóteles.25 Isso sugere que esse
verbete é uma mistura de elementos diferentes, que não corresponde a nenhum
tratado, além de incluir uma seção de uma obra perdida.26 Porém, assim como
na passagem platônica, esse relato seja inútil para decidir qual, ou nenhum dos
tratados do Corpus Hippocraticum, foi escrito por Hipócrates, ainda é
extremamente valioso por duas razões: confirma sua importância pessoal e sua
obra na época em que viveu e, além disso, indica que Hipócrates não acreditava
na teoria dos quatro humores como apregoado pela tradição hipocrática.
Aristóteles, ao citar A natureza do homem, atribuiu essa teoria a Políbio,
supostamente aluno e genro de Hipócrates, cujo relacionamento com Hipócrates
ajudou a associar essa teoria ao mestre.27 O Corpus Hippocraticum compõe-se
de umas 60 obras escritas no dialeto jônico grego.28 A coletânea atual remonta a
1526, quando a gráfica Aldina, em Veneza, imprimiu a primeira edição das obras
completas de Hipócrates em grego. Mas nenhum manuscrito que sobreviveu aos
dias atuais contém todos os tratados da coleção, e muitos têm apenas uma
pequena seleção.29 No entanto, os manuscritos, assim como o trabalho dos
antigos comentaristas e compiladores dos dicionários hipocráticos, também
mostram que a grande maioria dos textos impressos em 1526 já circulava com o
nome de Hipócrates no século I d.C., ou talvez 300 anos antes.30 Mesmo assim,
as anomalias continuaram. Um dos textos, o Testamento, de Hipócrates, pode ser
visto em muitos manuscritos gregos e em diversas traduções, mas nunca o
incluíram nas edições impressas do Corpus. Por outro lado, Sevens, considerado
um texto hipocrático na Antiguidade, desaparecido até 1837, hoje insere-se no
Corpus Hippocraticum apenas como uma tradução do latim antigo. Do terceiro
tratado, Sobre o útero, comentado por Galeno e citado mais tarde por Oribasius,
só temos atualmente fragmentos dispersos.31 O número total de tratados no
Corpus é duvidoso, porque alguns formaram um conjunto e outros são obras
distintas. Muitos estudiosos, por exemplo, pensam que Reprodução e Natureza
da criança fizeram parte de uma mesma obra, e que os sete volumes de
Epidemias foram escritos em três épocas diferentes (os volumes 1 e 3 em torno
de 410 a.C.; os volumes 2, 4 e 6 por volta de 400 a.C.; e os volumes 5 e 7 entre
358 e 348 a.C.) e, provavelmente, por vários autores diferentes.32 Alguns
conjuntos de livros foram escritos pelo mesmo autor, como Ares, Águas e
Lugares e A Doença Sagrada. Outros livros foram reunidos na mesma coletânea:
um conjunto de relatos de casos do Epidemias 5 repetiu quase textualmente
todos os casos em Epidemias 7, embora nenhuma das versões tenha preservado
com exatidão as palavras dos relatos iniciais.33 Em outros lugares, trechos
cronológicos diferentes constam do mesmo tratado.34 A datação de tratados
individuais não é uma tarefa fácil.35 Existem poucas referências esparsas a
eventos cujas datas foram mencionadas em outras fontes, mas em geral a decisão
é tomada com base no estilo da linguagem (assim como um escritor atual usa
palavras e frases diferentes das usadas nas décadas de 1920 e de 1970); ou em
relações internas (ocasionais), nas quais o trecho X foi copiado do Y (por
exemplo, Aforismos é datado da primeira metade do século IV a.C., mas contém
escritos anteriores); e os estudiosos têm uma “percepção” de como inserir um
tratado em relação a evoluções específicas. Porém, essa percepção não é
infalível.36 É muito provável que a grande maioria dos tratados tenha sido
escrita no período de 420-350 a.C., o que corresponde aproximadamente à vida
ativa de Hipócrates. Outros, como O coração e Preceitos, foram escritos nos
séculos III ou II a.C.; Decoro tem uma data bem posterior, nos séculos I ou II
d.C. Quando e onde a maioria da coletânea se reuniu só pode ser uma suposição.
A hipótese tradicional como Hipócrates adquiriu suas informações sobre
medicina nos textos do templo de Esculápio em Cós é falsa; ainda mais
fantasiosa é a lenda de que, depois de adquirir esse conhecimento, Hipócrates
incendiou o resto da biblioteca para preservar sua superioridade.37 Um autor da
época de Galeno acreditava que, pelo menos parte da coletânea, fora escrita por
Hipócrates, para preservar as doutrinas transmitidas oralmente da família de
Esculápio ameaçadas de desaparecer.38 Cós é menos mencionado no Corpus do
que Cnido, e diversas cidades no Norte e no Centro da Grécia foram ainda mais
citadas, o que suscita dúvidas a respeito da origem em Cós.39 No entanto, é
provável que a coleção tenha sido reunida pela primeira vez de uma forma mais
abrangente em Alexandria, no Egito, na famosa biblioteca de Ptolomeu, quando
Cós fazia parte do império egípcio. Alguns textos foram estudados em Cós a
partir da década de 270 por Herófilo, que tinha ligações com Cós por intermédio
de Praxágoras. As discussões em torno de 250 a.C. de escritores de glossários de
medicina, como Bacchius e Zeuxis, mostram que o Corpus já era uma coletânea
de textos na época, embora não como o conhecemos hoje.40 A maneira aleatória
com que esse material foi reunido e guardado na biblioteca em Alexandria
poderia explicar, pelo menos em parte, a característica diversificada da
coletânea. Os livros de medicina empilhados na prateleira da biblioteca
poderiam com facilidade ser atribuídos a um único autor, sobretudo se mais de
uma obra estivesse incluída no mesmo papiro, ou que tivesse uma pequena
indicação do nome do autor original, mas às vezes não nenhuma indicação.41 A
inclusão de textos gregos posteriores no Corpus demonstrou que o processo de
acréscimo demorou séculos. A comparação entre o Corpus Hippocraticum e
outras obras atribuídas a Hipócrates em grego, latim e árabe comprovou que o
nome de Hipócrates continuava a atrair uma grande quantidade de textos
espúrios e com pseudônimos, que com frequência não tinham relação com o
material preservado dos séculos V e IV a.C.42 A atribuição de autoria de
Hipócrates feita deliberadamente ou por uma confusão acidental foi uma forma
de dar legitimidade ao conteúdo desses textos e sugerir que o tema abordado
remontava aos primórdios da medicina.43 A comprovação se algum dos textos
gregos preservados é de fato de Hipócrates, como já sugerido, é uma tarefa
difícil ou, até mesmo, impossível, e as opiniões dos estudiosos continuam
divergentes, assim como na Antiguidade. A opinião de Aristóteles é diferente do
ponto de vista de Anonymus Londinensis, assim como a seleção de tratados
usados pelos primeiros escritores de glossários de medicina também são um
pouco diferentes. A atribuição dos textos, que até meados do século XIX eram
considerados de autoria de Hipócrates, baseou-se na definição de Galeno no
século II d.C., fundamentada na tradição que conhecia e em suas pesquisas
sofisticadas sobre linguagem, estilo e conteúdo.44 Galeno apoiou seu
argumento, em especial, na autenticidade da maioria do conteúdo de A natureza
do homem e alegou ter identificado diferentes níveis do material escrito por
Hipócrates, por meio de trabalhos em colaboração e livros de seus alunos, de
textos que tinham apenas o espírito hipocrático. Mas apesar do cuidado
minucioso e do conhecimento de Galeno, isso foi uma pesquisa circular.
Aristóteles já tinha negado a confiabilidade de seu ponto de partida.45 Embora
possamos lamentar a falta de consenso em relação às obras genuínas do grande
médico, essa divergência, paradoxalmente, expôs o Corpus Hippocraticum a um
exame minucioso. Em vez de se concentrarem em um pequeno grupo de textos
“genuínos”, agora os estudiosos dedicam-se a analisar o Corpus em toda a sua
diversidade de formas, doutrinas e objetivos.46 Alguns textos, sobretudo,
Aforismos, Prognoses de Cós e Dentição, são apenas uma série de frases fáceis
de memorizar, talvez com a finalidade do ensino; outros, como Respirações e A
arte, são discursos públicos defendendo um ponto de vista médico específico;
alguns textos, em especial Humores, são propositalmente obscuros.47 Outros,
como A doença sagrada, sugeriram uma tese definitiva; já Doenças, a exemplo
de outros, era apenas uma lista de diversas doenças. Afecções foi escrito para
pessoas leigas; O uso de líquidos, para cirurgiões. Alguns, sobretudo Respiração,
foi escrito em uma prosa elegante; outros, como Epidemias, são anotações de
casos em diversas etapas da criação e seleção.48 Nenhuma generalização
abrange todos os textos e qualquer resumo só daria um indício da multiplicidade
(com frequência conflitantes) das teorias contidas nesses textos.49 Eles mostram
a criação gradual de uma forma de medicina, que predominou no pensamento e
na prática médica no Ocidente nos séculos seguintes, como uma fonte de teorias,
terapias e ideias em relação ao ensino, estudo e prática da medicina. Os poemas
de Homero mencionam médicos que viveram antes de Hipócrates e, sem dúvida,
alguns eram ricos e tinham certo prestígio. É suficiente olhar para a bela estátua
de Sombrotidas, filho de Mandrocles, de Megara Hyblaea na Sicília do início do
século VI a.C., ou o lindo alto-relevo de um médico desconhecido, agora exibido
na Basileia, para constatar que eram homens ricos e de posição social elevada
em suas comunidades.50 Do mesmo modo, os registros da literatura antiga e da
arte mostram como os médicos deveriam agir e quais eram os métodos a serem
usados.51 Eles eram retratados tocando nos pacientes e fazendo curativos,
enquanto no relevo da Basileia (ver p. 153) um médico está aplicando ventosas
para fazer uma flebectomia em um paciente.52 Os cortes e as cauterizações,
procedimentos conhecidos no mundo inteiro como dolorosos, eram duas técnicas
associadas a médicos por autores tão diferentes como Heráclito e o dramaturgo
Ésquilo, e Platão acrescentou a esses procedimentos os feitiços e substâncias
alucinógenas.53 Os textos literários também mostram que os médicos eram
apreciados por seus serviços, apesar de não termos a carreira de Demócedes
como paradigma. Antes de se tornar médico pessoal de Polícrates de Samos,
Demócedes trabalhou como médico no serviço público, isto é, um médico que
recebia sua remuneração de recursos públicos, na ilha de Egina e na cidade de
Atenas. Depois de fugir para a Pérsia, voltou para sua cidade natal, Crotona,
onde rico e respeitado casou com a filha de um atleta famoso, Mílon. Mais tarde,
por ocasião de uma guerra civil, voltou para o continente grego, no exílio em
Plateias com outros aristocratas derrotados.54 Mas antes do Corpus
Hippocraticum não tínhamos um testemunho da visão pessoal dos médicos em
relação à sua profissão e, só então, foi possível inserir o iatros no contexto mais
amplo de outras pessoas que ofereciam conselhos sobre saúde e cura. A partir do
estudo das inúmeras evidências, é óbvio que no final do século V a.C. havia
discussões importantes a respeito do que constituía a medicina e sobre a
autoridade do iatros, nem sempre aceita universalmente. O autor de A arte
precisou defender a medicina contra os que “criaram a arte ao criticarem as
artes” e que negavam a validade da medicina, porque algumas pessoas
recuperavam-se sem ajuda dos médicos, enquanto outras morriam apesar de
todos os esforços deles. Nesse sentido, seu argumento teve o objetivo de
demonstrar que a medicina era mais eficaz do que a mera confiança na natureza
e na sorte.55 Uma abordagem semelhante pode ser vista em Medicina antiga,
cujo autor, embora aceitasse o argumento que, se a arte da medicina não
existisse, o tratamento dos doentes dependeria da sorte ou do acaso, mostrou o
absurdo de confiar apenas na sorte, ao mencionar as descobertas da medicina
realizadas por meio de pesquisas cuidadosas. Em sua opinião, a arte da medicina
baseava-se na compreensão das causas e na capacidade de distinguir o que era
ou não importante.56 O iatros transmitia ao paciente sua profunda preocupação
com as causas da doença e de suas interligações. Depois que o paciente
conscientizava-se de seus sintomas, disse o autor de Respiração, era possível
fazer qualquer tratamento que o corpo precisasse para recuperar a saúde, um
sentimento amplamente compartilhado por outros escritores do Corpus.57 Nessa
visão de causa e efeito, a verdadeira cura significava mais do que a simples
aplicação de remédios e, sim, de um conhecimento epistemológico apropriado
referente à saúde e à doença. Existia a possibilidade de uma cura bem-sucedida e
um bom médico, ao contrário de um médico incompetente, observava as razões
subjacentes a uma doença e sua cura. Uma pesquisa sobre as causas da doença
resultava em conhecimento de como tratá-la. Quanto maior fosse esse
conhecimento, mais fácil seria definir o caminho para garantir a recuperação do
doente e evitar uma deterioração futura, ou se houvesse pouca esperança de vida,
preparar o paciente e a família para a morte.58 Por sua vez, o conhecimento do
funcionamento de um tratamento específico ajudaria o médico a escolher
terapias adequadas no futuro e, ainda muito importante, conscientizava o
paciente da importância de cuidar de seu corpo, agora visto sob uma nova ótica.
No entanto, esse argumento só definia em parte o conjunto de conhecimentos da
medicina referentes à manutenção da saúde, prevenção e tratamento de doenças.
Apesar de reivindicar sua superioridade em relação à mera sorte ou ao
empirismo, não indicava a diferença precisa dos médicos que acreditavam no
princípio da causalidade, mas que aplicavam métodos não hipocráticos, ou os
que tinham uma compreensão só parcial ou uma postura antiética, não
condizente com um médico da tradição de Hipócrates.59 Alguns dos tratados
mais famosos do Corpus abordaram esse problema, enquanto outros discutiram a
questão de uma maneira implícita ou com um comentário sucinto. Os filósofos
foram o alvo de Medicina antiga, que os criticou em geral, porém, citou o nome
de Empédocles, em razão de ele acreditar em hipóteses sem fundamentos ou
tolas.60 Seu autor rejeitou todas as teorias unitárias do corpo, porque a unidade
dificilmente sente dor ou alterna períodos de saúde com doença e vice-versa,
além de criticar as teorias dos elementos e opostos por não terem uma base
empírica. Em vez de basear as teorias da medicina em noções mais amplas sobre
a natureza do cosmos, ele acreditava que a compreensão do corpo por meio da
medicina proporcionava o melhor caminho para entender o mundo da
natureza.61 Havia uma conexão entre a natureza e o corpo, mas o processo de
pesquisa do autor opunha-se aos métodos dos filósofos. Em sua visão o corpo
era um campo de batalha onde forças hostis, o doce, o amargo, o ácido entre
outras, presentes em maior quantidade nos alimentos lutavam entre si dentro do
corpo.62 Apesar de aceitar a premissa de que em seus primórdios a medicina
baseava-se na experiência (um doente comia alimentos considerados benéficos
para melhorar sua saúde), uma ideia não muito diferente da culinária, porém, aos
poucos, depois de um longo período, os médicos começaram a pesquisar as
razões pelas quais um tratamento era superior a outro. É possível que os
resultados dessas pesquisas não fossem inteiramente precisos, mas não havia
motivo para rejeitar essa tendência da medicina.63 Bastava comparar seus
resultados obtidos por um método sólido, com os elaborados de uma maneira
diferente, para perceber se o médico seguia o caminho certo. Os médicos agiam
de acordo com o princípio de que um acontecimento inesperado ou incerto era
“em grande parte” melhor do que a inércia. Além disso, em razão da incerteza,
era sempre prudente deixar uma grande margem de segurança no tratamento.64
Pressupostos semelhantes foram formulados por autores que queriam diferenciar
sua teoria dietética dos estudos de dietas de médicos anteriores e da prática da
ginástica. O exercício físico e uma alimentação adequada faziam sucesso em
meados do século V a.C., quando Heródico de Selimbria introduziu o conceito
da ginástica com fins terapêuticos. O autor de Medicina antiga observou o
desenvolvimento dessa teoria como um fato positivo, um progresso em direção a
uma compreensão mais abrangente da saúde e da doença em termos médicos,
mas achava que Heródico e seus seguidores não avançariam o suficiente em seu
conhecimento do exercício físico e do regime alimentar com fins terapêuticos.65
Outros escritores no Corpus foram menos condescendentes: o estilo de vida
“artificial” dos atletas foi criticado em A natureza do homem e em Nutrição; em
Aforismos 1, 3 a palavra “perigoso” foi escrita quatro vezes para descrever esse
estilo em poucas frases.66 Galeno, bem mais tarde, também gostava de citar o
dramaturgo Eurípedes, que criticara as tolices do treinamento excessivo.67
Aristóteles compartilhava um pouco de seu desprezo, ao comentar se a conquista
da saúde perfeita e da forma física como recomendada por Heródico poderia ser
de fato chamada de vida saudável, porque exigia uma abstinência de tudo, ou de
quase tudo, que dava prazer aos seres humanos, uma crítica que se aplicaria
também às regras rígidas para a preservação da saúde pelo médico e autor de
Regime.68 O autor de A doença sagrada fez uma crítica ainda mais contundente
contra os que pensavam que a epilepsia, distúrbios mentais e outras psicoses
eram causados pelos deuses e, portanto, precisavam ser tratados pela religião.69
Ele criticou as pessoas que usavam feitiços, preces, cânticos e magias para se
comunicarem com os deuses, “os magos, purificadores, sacerdotes andarilhos e
charlatães”, que se vangloriavam de sua devoção e de um conhecimento
especial. Em alguns procedimentos aproximavam-se do que o médico faria:
recomendavam uma alimentação especial e banhos, e, é claro, disse o escritor,
atribuíam a recuperação do paciente aos alimentos que haviam ingerido e não a
uma intervenção sobrenatural.70 Alguns pareciam com médicos em seu estilo de
vida, perambulando pelas estradas da Grécia em busca de pacientes, assim como
com o médico a quem Ares, Águas e Lugares foi dedicado, além de observarem
os indícios e sintomas da doença, embora com uma interpretação diferente. Um
louco com a boca cheia de espuma adoecera por causa de Áries, o deus da
guerra; os pesadelos eram provocados pela intervenção de Hécate ou dos heróis;
o relincho estridente mostrava a influência de Posídon.71 Essa crítica do autor
de A doença sagrada teve três desdobramentos. Ele reconhecia a veracidade de
algumas curas de seus opositores, mas, ao mesmo tempo, negava a conexão
causal que alegavam: um paciente se curara com os remédios e o regime
alimentar que haviam receitado, e não pela vontade dos deuses. Os feitiços não
aumentavam a eficiência dos remédios receitados. Em segundo lugar, ele podia
dar uma explicação melhor e mais simples para essas doenças: excesso de bile
ou de fleuma que afetava o cérebro.72 Terceiro, acusou seus opositores de serem
ímpios e inimigos da religião, enquanto ao mesmo tempo proclamavam sua
convicção na natureza divina do universo.73 As afirmações deles de que o corpo
de um ser humano podia ser possuído e corrompido por um deus eram uma
blasfêmia, porque o papel dos deuses era purificar e não corromper. É verdade
que se orgulhavam do dom de trazerem a Lua para a Terra, ou de provocarem
tempestades e eliminar as secas (todas as atividades, como vimos, associadas a
Empédocles) e, por esse motivo, poderiam ser acusados de impiedade por
quererem perturbar a ordem natural do céu e por fingirem ter mais poder do que
os deuses. A prece aos deuses para que os ajudassem era uma tentativa
blasfematória de manipular os deuses por razões pessoais.74 Essa atitude
desacreditava o poder e a majestade do divino revelado, em especial, na
“necessidade” que unia tudo no universo e permitia que os médicos verdadeiros
entendessem o processo da doença, desde o início até o desenvolvimento.75
Esse autor não foi o único entre os autores do Corpus a se opor à nova
concepção da natureza e dos deuses quanto à visão tradicional da intervenção,
para o bem ou o mal, dos deuses no mundo.76 Em sua busca por causas naturais
ele se considerava um devoto e, com certeza, muito menos um ateu. Nesse
aspecto é possível compará-lo ao autor de Regime, que em seu último livro
investigou o significado dos sonhos na medicina. Alguns enviados pelos deuses
previam o bem e o mal, e deviam ser interpretados por pessoas que “tinham a
capacidade de transcender a natureza física das coisas”. Esses intérpretes
também explicavam o significado de sonhos relacionados a mudanças no corpo,
como excesso ou deficiência. Algumas vezes chegavam a conclusões certas. Mas
esses sonhos, disse o autor, pertenciam à esfera de ação do médico, que dava
instruções sobre as precauções adequadas a tomar. As preces aos deuses eram
válidas, porém, o homem também precisava estender a mão.77 Essa opinião não
significava uma rejeição aos deuses, mas, sim, uma demarcação das esferas de
uma atuação eficaz, que poderiam se sobrepor. O paciente deveria observar as
mudanças climáticas e evitar o frio e o sol quente e, ao mesmo tempo, rezar para
os deuses pedindo-lhes que afastassem a maldade futura.78 Neste livro e em A
doença sagrada, o autor ampliou o espaço disponível à intervenção do médico,
ao enfatizar sua competência específica no campo da medicina.79 Os médicos
usavam o apelo a considerações éticas e a sugestão que o conhecimento a ser
oferecido baseava-se em mais do que uma mera especialidade técnica, para
afirmar sua superioridade em relação a outros médicos.80 Na verdade, um dos
principais requisitos de um médico genuíno era o reconhecimento dos limites de
sua competência e, se fosse necessário, recomendaria voluntariamente médicos
mais aptos a tratar de seu paciente. A decisão de tratar ou não de um doente
cabia ao médico e, portanto, ele tinha de saber que casos poderiam ser ou não
curados. Em doenças graves o médico deveria dizer até que ponto um tratamento
poderia melhorá-la.81 Não existia um sentimento de culpa na recusa sensata de
não tratar de um paciente. Pelo menos um autor do Corpus acreditava que era
essencial rejeitar qualquer caso julgado incurável; outro autor disse que a
decisão de tratar de um doente deveria ser acompanhada de uma declaração de
um possível resultado.82 Acima de tudo, o médico deveria escolher o tratamento
mais eficaz, e não o mais drástico que criava uma impressão excelente, mas de
ação imediata. Não existia hipótese de pensar que uma cirurgia estivesse
terminada só com ótimos curativos, se o paciente ainda sentisse dor.83 Do
mesmo modo, era preciso aprender a falar com tato e firmeza, tanto em público
quanto à cabeceira do doente, e saber quais argumentos seriam aceitos e quais
seriam rejeitados. A maneira de mostrar a divergência em relação a outros
tratamentos oferecidos poderia causar uma boa impressão em quem procurava
um médico.84 As pessoas que não conseguiam viver de acordo com os preceitos
elevados da medicina ainda poderiam ser consideradas médicos, apesar de tolos;
alguns pacientes talvez preferissem chamá-los de charlatães ou impostores e os
ignorariam.85 Em nenhum texto a distinção entre um médico verdadeiro e o
falso é mais nítida do que no Juramento.86 Esse célebre documento divide-se em
duas partes, uma que detalha as obrigações de quem presta o Juramento na
aquisição e transmissão do conhecimento da medicina, e a segunda parte
descreve suas obrigações referentes à prática da medicina e aos seus pacientes.
Muitos preceitos éticos do Juramento são aceitos em todas as obras do Corpus;
por exemplo, a noção de que o médico deve agir com a máxima competência
possível “para curar ou, pelo menos, não causar dano”, e de manter em segredo
as informações obtidas no exercício da medicina.87 O Médico mencionou a
posição especial do médico em relação aos seus pacientes, em especial com
mulheres e crianças, e existem referências em outros textos à necessidade de
manter as “coisas sagradas” da medicina restritas aos que faziam parte da mesma
comunidade médica.88 Mas outras partes do Juramento estendem-se mais a
assuntos da medicina do que em outros tratados e, às vezes, os contradizem.
Enquanto o ato voluntário de transferir um paciente para quem seja mais
qualificado era visto como um aspecto importante do código de conduta do
médico, em nenhuma outra obra do Corpus há uma menção a uma divisão rígida
entre, por um lado, a dietética e a farmacologia e, por outro, a cirurgia. O
Juramento proibia rigorosamente o uso da faca, mesmo em uma cirurgia simples
como litotomia.89 A responsabilidade dos médicos, ao receitarem remédios
venenosos ou ao “darem um conselho”, seria criticada pela maioria dos médicos
antigos, porque significaria um assassinato, mas existem muitas provas da
participação voluntária deles em suicídios e eutanásia.90 Do mesmo modo,
apesar das recomendações do Juramento, A Natureza da Criança descreveu um
caso famoso de aborto, enquanto a prescrição de comprimidos, poções e
pessários para evitar a gravidez e provocar aborto foi citada na literatura médica
durante toda a Antiguidade.91 A religiosidade rígida do texto do Juramento o
diferencia de todos os documentos sobre ética e conduta médica na Antiguidade
(o que explica, em parte, por que a maioria dos estudiosos reluta em atribuir sua
autoria a Hipócrates, embora discordem de quando e em que circunstâncias eles
foram escritos).92 A religião unia as partes desconexas do Juramento: no início
os deuses são chamados para testemunhar e, no final, para punir o apóstata. A
frase no meio do texto, “Manterei a pureza e a santidade em minha vida inteira”,
usa palavras com um profundo significado religioso. A vida inteira do médico
deveria ser guiada por essa ética religiosa, dentro e fora do quarto do doente.93
Ele deveria evitar mexericos, assim como ter relações sexuais não só com o
paciente, como também com os membros da família, homem ou mulher, escravo
ou pessoas livres. O médico protegeria o paciente de qualquer “dano e injustiça”,
sendo que a injustiça era uma iniquidade ainda mais grave. O médico só
usufruiria de sua vida, de seu trabalho e teria uma eterna reputação entre os
homens (palavras mais familiares em uma lápide do que em um texto de ética
médica), se seguisse todos os preceitos do juramento.94 Em seu código de ética
médica, o Juramento definia a prática ou o estudo da medicina, distinguindo-a
das demais ciências. Mesmo que não tenha sido escrito por Hipócrates, sua
divulgação como parte do Corpus (e provavelmente por sua posição proeminente
entre os primeiros tratados do rolo de papiro), revelou que era visto como um
resumo da prática ética, nem sempre aprovada.95 Em meados do século II a.C.,
Catão, o Censor, via o juramento como uma prova de uma conspiração dos
médicos gregos, fortalecida por um juramento, para prejudicar seus pacientes
(romanos).96 Mas as inscrições nas lápides dos médicos na Antiguidade
atestavam seu prestígio e importância, e no século IV d.C. o Juramento
simbolizava o exercício da medicina.97 Só a partir dessa época começamos a ter
certeza de que o juramento hipocrático era uma promessa solene feita pelos
médicos de seguir os preceitos de sua conduta ética, porém, por muitos séculos,
ele não foi imposto em todos os lugares.98


Figura 4.4 Um papiro do Juramento hipocrático escrito em c. 275 d.C. Papiros
Oxirrinco 2547 = manuscrito Wellcome 574. Cortesia da Wellcome Library,
Londres. Na verdade, a tradição de escrever sobre ética médica na Antiguidade
seguiu, em grande parte, uma linha diferente.99 Enquanto o Juramento tinha um
fundamento ético e religioso e definia o que se esperava da conduta de um
médico, a maioria dos autores, sobretudo Galeno, adotou uma abordagem mais
pragmática. Uma prática eficiente significava uma prática com o melhor
resultado possível, qualquer recurso que contribuísse para essa eficácia era
aceitável, e o que a prejudicaria deveria ser rejeitado. Essas duas abordagens são
compreensíveis, porém, não diminuem a singularidade do Juramento.100 A
seção de abertura do Juramento, que descrevia as obrigações dos alunos em
relação aos professores e à arte da medicina, era ainda mais específica. O
aspirante a médico, depois de fazer o juramento de acordo com a lei da
medicina101 e de tê-lo assinado, ia morar na casa do médico onde era tratado
pelos membros da família como um filho ou um irmão. Seu aprendizado era
feito em livros e também em explicações orais, com um método “diversificado”
– ou seja, com um treinamento prático e conselhos – e, por sua vez, o aluno
sentia-se motivado a transmitir seu conhecimento aos membros de sua nova
família e aos que quisessem aprendê-lo e fazer o juramento. Esse documento
abrangia as obrigações do aprendizado da medicina, ao contrário de contratos de
aprendizado de outras profissões, e estendia-se muito além dos limites de sua
instrução.102 Impunha obrigações vitalícias, que se estendiam aos membros da
família do professor. Até mesmo quando, uma prática comum na época, alguém
quisesse aprender uma profissão – não podemos esquecer que os médicos na
Antiguidade tinham a mesma hierarquia dos artífices – reunia-se a família do
professor, não havia um compromisso de transmitir o conhecimento da profissão,
sem custo, à família do professor ou de apoiá-la na adversidade. É tentador
analisar o Juramento em um contexto, no qual o antigo padrão do ensino da
medicina aos poucos desapareceu. A medicina, antes restrita a membros de um
clã de médicos, agora estava disponível a quem quisesse aprendê-la. Os alunos
aprenderiam junto com os membros do clã (que não pagavam o aprendizado).
Não se sabe se esses clãs teriam de fazer o Juramento hipocrático; é provável
que por terem sido criados desde pequenos em uma família de médicos tivessem
assimilado os preceitos éticos essenciais da boa prática, sobretudo se fossem
“filhos de médicos” (uma frase usada a partir da Antiguidade durante séculos
para se referir aos médicos mais jovens), que faziam tarefas simples como
assistentes (curativos, aplicação de unguentos e preparação de remédios mais
comuns) desde pequenos, assim como em outras profissões.103 Platão disse que,
enquanto os escravos destinados a serem médicos tinham de aprender medicina
fora de seu ambiente habitual, para os filhos de médicos livres o aprendizado era
um processo natural, porque eram ensinados desde crianças por seus pais.104
Esse forte componente familiar no contexto da medicina antiga não causa
surpresa, porque até hoje um alto percentual de estudantes de medicina origina-
se de famílias de médicos. Hipócrates dizia que descendia de Esculápio, filho de
Apolo (segundo uma genealogia inventada, ele era a décima sétima, oitava ou
nona geração do deus, dependendo da história contada), assim como um
descendente de outra divindade com poder de cura, Héracles. Por esse motivo, as
lendas mencionavam muitos médicos renomados em sua família anteriores a ele.
O historiador Teopompo, que escreveu em torno de 330 a.C., confirmou a longa
tradição entre Cós e a família de Esculápio, e acrescentou que um ramo da
família, apesar de nunca ter saído da Ásia Menor, fez uma estadia em Cnido,
uma cidade situada em uma península do continente grego em uma direção
oposta a Cós. Supostamente, Ctésias pertencia a esse ramo da família. Uma
tradição posterior, citada por Galeno, dizia que três “grupos” de médicos haviam
morado em Cós, Cnido e na ilha vizinha de Rodes, mas o terceiro grupo
desaparecera. Essa história também foi mencionada por um antigo médico,
Andrômaco, e pelo contemporâneo de Galeno, o adorador hipocondríaco de
Esculápio, Aelio Aristides.105 A existência de uma tradição forte familiar, que
criava vínculos entre Cós e Cnido e os descendentes de Esculápio foi confirmada
em 1956, quando publicaram uma inscrição do santuário do grande oráculo de
Delfos. Escrita no século IV a.C. recomendava aos membros da “comunidade”
de Cós e da família de Esculápio de Cnido a se identificarem com um juramento,
a fim de obterem os privilégios concedidos em Delfos aos descendentes da
“linhagem masculina” de Esculápio.106 É possível duvidar da validade dessa
descendência divina, mas essa inscrição mostra que a crença nessa ascendência
era, de certa forma, longa e reconhecida além da região de Cós e de Cnido. No
entanto, os beneficiários desses privilégios eram os descendentes masculinos de
Esculápio, e não os médicos. Segundo o Corpus Hippocraticum e o Juramento,
nem todos os médicos eram descendentes do deus, assim como nem todos os
descendentes eram médicos. Só podemos supor que, em algum momento
obscuro e distante do passado, a medicina grega restringiu-se a poucas famílias,
como o Juramento sugere. Se esse tempo existiu, precedeu os poemas de
Homero, porque, apesar de se concentrarem nas atividades de dois membros da
família de Esculápio, também indicaram a existência de outros médicos que não
pertenciam à família. Na época do Corpus Hippocraticum a medicina não mais
se limitava a um grupo de clãs, caso tenha se limitado, e, sim, era tema de
debates públicos e podia ser ensinada a qualquer pessoa que quisesse aprendê-la
e tivesse condições de pagar o professor. Hipócrates de Cós foi o médico mais
famoso dessa época, cuja reputação estendeu-se pelo menos a Atenas e logo
geraria uma série de lendas e documentos para descrever os detalhes de sua
família e carreira. Mas, embora as realizações do Hipócrates histórico legitimem
a autoridade dos livros que circulavam com seu nome, na verdade, ele só poderia
ter escrito na melhor das hipóteses uma fração deles, porque, como veremos,
eles contêm uma multiplicidade de doutrinas diferentes. Entretanto, essas
diversas doutrinas mostram que a medicina estava sendo definida em termos do
que estava sendo feito e, ainda mais importante, do que não estava.107 Elas
abrangeram todos os aspectos da saúde pessoal, da mente ao corpo; suas
especulações foram além da mera sorte e do acaso; os autores acreditavam na
causalidade lógica independente da intervenção divina, para o bem e o mal;
sugeriram novas ideias sobre o corpo físico; evitaram cânticos, feitiços e
exorcismos; e basearam-se em fatos empíricos e práticas sólidas, que rejeitaram
as hipóteses filosóficas superficiais.108 Porém, alguns autores do Corpus
fizeram especulações ou discutiram assuntos de uma maneira inconvincente; e
muitos, se não a maioria dos médicos, e seus pacientes, ainda recorriam aos
deuses no processo da cura. Embora muitos escritores tivessem opiniões
divergentes em questões de mais ou menos importância, isso não diminui a
relevância da mensagem geral que a leitura do Corpus Hippocraticum
proporciona, ou pela existência como uma coletânea de textos. Um escritor de
medicina da Antiguidade tardia aproximou-se mais da verdade, ao elogiar
Hipócrates por ter reunido e entremeado ideias dispersas e observações de
médicos antigos em uma coleção completa e coerente da arte da medicina.109
Nesse sentido, a partir do início do século III a.C., o Corpus Hippocraticum
tornou-se um conjunto padrão de documentos sobre medicina, no qual outros
tipos de cura tinham de ser avaliados e, em seguida, aprovados ou rejeitados.110
Portanto, seu herói epônimo Hipócrates pode ser de fato chamado de Pai da
Medicina.

5 As Teorias Hipocráticas Em 1893, o papiro de Anonymus Londinensis foi


publicado pela primeira vez e provocou um grande tumulto, porque contradisse o
conhecimento milenar tradicional da medicina de Hipócrates.1 As discussões
imediatas concentraram-se em uma questão hipocrática, a identificação da fonte
ou das fontes das ideias atribuídas no papiro ao Hipócrates histórico, assim como
a autoria e, por conseguinte, a confiabilidade das seções doxográficas de autores
anônimos sobre Aristóteles.2 As discussões deram menos atenção às teorias
descritas nos papiros, apesar de muitos autores que as descreveram fossem
desconhecidos. Em razão de muitos desses autores terem se distinguido na
primeira metade do século IV, houve mais um motivo para omiti-los de um
estudo sobre a medicina de Hipócrates no século V. A justificativa dessa omissão
tornou-se mais pertinente, ao se examinar o Corpus Hippocraticum como um
conjunto de textos (porque muitos textos eram datados do século IV) e, por isso,
não poderiam ser incluídos em um estudo da medicina grega em geral. A seção
aristotélica do papiro começa com uma declaração inequívoca, provavelmente
do escritor, a respeito da divergência (stasis) sobre as causas das doenças.
Alguns pensavam que as doenças resultavam dos resíduos produzidos
patologicamente ou como secreções naturais do corpo, outros por causa de
alterações dos elementos do corpo.3 Essa ênfase na divergência talvez seja
apenas um recurso heurístico para ajudar na classificação das doenças e, além
disso, esse método de investigação pode ser visto em muitas listas semelhantes
de doutrinas filosóficas e médicas. Por esse motivo, existem diversas soluções
para a mesma pergunta: o que é doença ou enfermidade4 no papiro e no Corpus
Hippocraticum?. Mas, é claro, que também existiam muitas semelhanças entre
os autores, quaisquer que fossem suas teorias ou se ainda fossem pessoas
atuantes no campo da medicina. Todos os autores deram explicações naturais
para as causas universais das doenças, aplicáveis em todas ou na maioria delas.
Alguns autores pensavam em termos de diversas causas: Ninyas diferenciava a
doença congênita da não congênita, apesar de enfatizar os efeitos dos resíduos
prejudiciais produzidos pelos alimentos. Segundo Filistião havia três causas de
doenças: um desequilíbrio dos elementos do corpo, a deficiência do
funcionamento adequado do organismo e fatores externos como feridas, calor ou
frio excessivo, e uma alimentação ruim.5 Mas, mesmo se fossem uma única
causa ou várias, elas tinham uma aplicação universal e poderiam explicar todos
os tipos de doenças. A seção dedicada a Aristóteles contém opiniões de filósofos
e médicos. Embora os que atribuíam às causas das doenças a resíduos, quando
podiam ser identificados, fossem médicos, e os que acreditavam em elementos
eram na maioria filósofos, não seria possível fazer uma distinção rígida entre os
dois grupos em termos do nível de abstração de suas teorias. Todos se
preocupavam com os fenômenos naturais, mesmo se interpretassem a relação
entre o mesmo fenômeno de uma maneira diferente. Para Timóteo de Metaponto,
assim como para o autor de As doenças sagradas, algumas doenças originavam-
se do cérebro por causa do bloqueio de diversas passagens, e a coriza e os olhos
lacrimejantes do resfriado comum eram a maneira natural do corpo de
desbloqueá-las.6 Mas para Aias a limpeza do organismo era a causa das doenças,
porque, quanto menos fluidos corporais mais saudável era o paciente.7 Em uma
inversão dessa cadeia de causa e efeito, Petron (ou Petronas) de Egina na
primeira metade do século IV disse que a bile só se produzia quando o corpo
estava doente e, portanto, não era, como muitas pessoas acreditavam, a causa de
muitas doenças.8 Outros autores modificaram deliberadamente as opiniões de
seus predecessores. Eurifon de Cnido, talvez um dos autores citados mais
antigos, que viveu em torno de 450 a.C., dizia que as doenças eram resultado dos
resíduos acumulados no estômago, quando o corpo não conseguia absorver toda
comida ingerida.9 Seu contemporâneo, Heródico de Cnido, embora aceitasse a
teoria dos resíduos, negava sua relação com a capacidade de evacuação, e
afirmava que os resíduos se acumulavam por causa da falta de exercício e, em
consequência, a comida tornava-se indigesta e provocava dois tipos de um
líquido nocivo. As doenças diferenciavam-se segundo o tipo de líquido e o local
onde se depositara.10 Um interesse semelhante sobre doenças e sua diversidade
potencial é atribuído aos autores ainda mais antigos do Sentenças de Cnido pelo
autor de Regime em doenças agudas e por Galeno em seu comentário a respeito
do último livro citado. Galeno mencionou que esses autores haviam descrito sete
espécies diferentes de desequilíbrio da bile, 12 doenças da bexiga, quatro
doenças do fígado, quatro estrangurias, três de tétano, quatro icterícias e três
tuberculoses, uma classificação que tanto ele quanto o autor hipocrático acharam
precisa demais, sobretudo quando induzia os autores a não darem atenção a
sintomas importantes para o diagnóstico.11 Outros discordaram, porque existiam
diversos tratados no Corpus Hippocraticum, em especial Doenças 2 e 3 e
Afecções internas, que incorporaram essas subdivisões ou subdivisões
semelhantes. O autor de Afecções internas, por exemplo, citou quatro tipos de
icterícia, quatro doenças do fígado, três tipos de tétano e três formas de
tuberculose.12 Junto com os tratados ginecológicos, A natureza da mulher,
Doença da mulher, 1-2 e Doenças de meninas, esses tratados constituem um
grupo mais interessado na descrição geral de uma doença, do que em sua
manifestação no paciente. Os tratados citam uma lista objetiva de doenças, seus
sintomas, diagnóstico e tratamento, sem maiores considerações teóricas ou
profissionais. Pelo fato de esses tratados seguirem um padrão semelhante de
organização criticado por Galeno em Sentenças de Cnido e, por quase com
certeza, conterem um material semelhante, eram chamados com frequência de
cnídios associados à “escola” de medicina em Cnido, embora não tivessem
indicação de sua origem, autor e fontes. Se essa atribuição pode ser justificada,
sem mencionar o uso como fundamento para a construção de uma série de
polaridades entre a medicina de Coan e de Cnido (concentrada no
paciente/doença; etiologia/classificação; prognóstico/diagnóstico; organismo/
órgãos etc.), é um tema de uma discussão intensa.13 A história do
desenvolvimento dos dois grupos, ou “coros”, de médicos em Cós e Cnido (ver
p. 113-114) é uma invenção típica grega para explicar a presença de Esculápio
nos dois lugares (e o desaparecimento de Rodes) e não menciona diferenças
teóricas entre eles. Mas a distância pequena da faixa do mar que separava Cós de
Cnido não era um Muro de Berlim. O autor de Regime em doenças agudas que,
como vimos, conhecia e criticou o material de Cnido, revelou que seu uso e
influência não se limitaram a Cnido ou, se ele fosse de origem cnídia, que havia
divergências entre os médicos da escola de Cnido. Galeno não teve dificuldade
em perceber que Cresias de Cnido conhecia o trabalho de Hipócrates sobre
deslocamentos, e muitos textos do Corpus mencionam a importância e os tipos
de organização de Cós e Cnido.14 A maioria dos estudiosos modernos, portanto,
veem essa divisão nítida entre Cós e Cnido como uma criação de historiadores,
antigos e modernos, que projetaram seus conflitos no passado.15 Essa divisão
tem valor como um instrumento para classificar e analisar certos textos do
Corpus, mas seu valor histórico é bem limitado e pode dificultar a compreensão,
assim como esclarecem as discussões teóricas realizadas nos séculos V e IV na
Grécia. O Corpus Hippocraticum contém diversas teorias que se assemelham a
muitas teorias esboçadas por Anonymus Londinensis. Respiração tem o objetivo
de mostrar que todas as doenças eram consequências do ar, que exercia um efeito
profundo nas pessoas e no universo, mesmo quando à primeira vista não parecia
ser a causa óbvia, como nas hemorragias e na hidropisia.16 Por sua vez, Lugares
no homem aproxima-se da teoria de Heródico de Cnido na ênfase da importância
dos sete tipos de fluidos originários do cérebro e que provocavam doenças onde
se instalavam.17 A natureza do homem, como vimos, descreve a teoria dos
quatro humores atribuída no papiro a Políbio, cuja insistência na saúde como
uma forma de equilíbrio é compartilhada por muitos autores de outros tratados.
De uma maneira explícita ou implícita, todos os escritores do Corpus sabiam que
seus temas podiam ser explicados com os mesmos princípios da criação natural,
à qual a humanidade pertencia.18 No tratamento de um antebraço deslocado era
preciso colocá-lo em linha reta, porque era “mais semelhante à natureza”;
estender o braço em linha reta era uma “reação causada pela imposição da
natureza”.19 O autor de Medicina antiga insistiu que a melhor maneira de
conhecer a natureza era por meio do estudo do corpo humano, enquanto Regime
dedicou o primeiro livro praticamente à discussão de que a humanidade, assim
como o resto da natureza, era um produto da interação de duas substâncias
primordiais, o fogo e a água. Sem o conhecimento do corpo, qualquer tentativa
de proporcionar uma dieta alimentar adequada estava fadada ao fracasso.20 Do
mesmo modo, Cernes começa com a necessidade de relacionar a gênese da
humanidade à gênese do cosmos, mas escolheu duas substâncias básicas
diferentes, a gordura e o glúten.21 Essa correspondência entre o microcosmos e
o macrocosmos, em uma terminologia posterior, não deve ser sempre vista só em
termos fisiológicos limitados como o autor mencionou no final do tratado, onde
há uma explicação da importância do número 7 na criação e no desenvolvimento
do corpo humano.22 Especulações cosmológicas e de numerologia semelhantes
são descritas em Setes, um tratado com paralelos na literatura antiga do Oriente
Próximo, datada do final do século VI, início do século V a.C. e do século I da
era cristã.23 Os fenômenos específicos do mundo natural tinham uma influência
decisiva na saúde e na doença do ser humano.24 O autor de Regime declarou
que o médico precisava conhecer não só a constituição física do paciente, como
também as estações do ano, os ventos, o clima, a geografia da região, o nascer e
o pôr do sol, na verdade, tinha de conhecer o cosmos inteiro, “do qual se
originava as doenças dos seres humanos”.25 Ares, Águas e Lugares é o exemplo
mais famoso da medicina geográfica e meteorológica, embora seu autor tivesse
uma compreensão muitíssimo diferente da constituição do corpo do ser humano
da visão de Regime.26 Nesse tratado os médicos que viajavam para atender
pacientes sabiam que poderiam prever os tipos de doenças que encontrariam em
cada localidade a partir de sua situação geográfica e pelo clima. Os habitantes de
uma cidade ao norte, com ventos frios e uma água com alta concentração de
minerais, seriam mais fortes e mais magros, e qualquer doença afetaria mais o
baixo abdome, do que o peito. Eles teriam propensão a ter, entre outras
alterações biológicas, pleurisia, inflamações oculares e doenças graves: os
rapazes jovens tinham hemorragias nasais violentas no verão, as mulheres
poderiam ficar estéreis por causa da água, além de terem uma menstruação e
parto difíceis. Depois de darem à luz, com frequência ficavam tuberculosas e
seus filhos jovens contraíam hidropisia nos testículos.27 Esse determinismo
geográfico explicava as condições físicas, por exemplo, dos corpos flácidos e
brancos do Sul da Rússia e de problemas mentais. Segundo o autor de A doença
sagrada, os fatores psicológicos causavam não só problemas patológicos como
psicoses e epilepsia, como resultado, respectivamente, do excesso de bile e de
fleuma, mas também doenças mentais.28 A localização agradável dos habitantes
da Ásia, que viviam em um clima temperado sem grandes oscilações, nem muito
quente ou frio, em uma terra onde as colheitas e a criação de animais eram
abundantes, resultava em falta de coragem e energia. A vida deles era fácil
demais, o que ocasionava sua submissão aos reis. Mas, por outro lado, os
habitantes da Europa e, em especial, do continente da Grécia, criados em um
clima um pouco mais difícil e instável, desenvolveram uma combinação perfeita
de vigor marcial e independência política. Eles eram donos de sua vida, tanto
dos sucessos quanto dos fracassos. A chave dessa peculiaridade residia na
diversidade geográfica e climática da Europa, com colinas, planícies, rios e
estepes, o que explicava a grande diferença entre seus habitantes, embora todos
tivessem a mesma característica que os diferenciava dos asiáticos e dos
africanos.29 É possível que isso fosse eco de uma propaganda política de um
grego relembrando os sucessos das Guerras Médicas ou de especulações
engenhosas, em razão de ideias audaciosas, que extrapolaram seus limites,
baseadas em parte em observações precisas e perspicazes. A descrição da
esterilidade das mulheres da Cítia originava-se de um relato de uma testemunha,
provavelmente do autor, e talvez tenha uma explicação atual na alta taxa de ferro
presente em rios locais.30 As observações sobre o clima ainda mais precisas
incluíram Constituições na série de volumes de Epidemias.31 Os volumes 1 e 3
são os livros mais famosos e antigos de Epidemias, mas observações
semelhantes são citadas nos livros restantes, nos fragmentos ou nos relatos de
histórias pessoais. Esses livros foram uma tentativa singular de pesquisar as
doenças “habituais” em uma cidade específica ao longo de um ano e, em
seguida, de fazer uma analogia dessas doenças com mudanças climáticas. Assim,
por exemplo, o Livro 1 de Constituições começa com a descrição dos ventos,
tempestades e mudanças de temperatura na ilha de Tasos, no Norte do mar
Egeu.32 A mudança de direção dos ventos predominantes na primavera do Sul
para o Norte provocava no outono, pelo menos em parte, febres ligeiras,
hemorragias e edemas ao redor das orelhas e tosses secas. O autor comentou que
em um ano saudável os jovens que frequentavam a academia de luta livre e o
ginásio eram os mais afetados por edemas dolorosos nos testículos, que pelo
sintoma descrito talvez fosse caxumba. Em Epidemia 6, um relato minucioso da
“tosse de Perinto” (atual Eregli no mar de Mármara), começava com as
mudanças no padrão dos ventos: as tosses iniciavam-se no solstício de inverno,
15 a 20 dias depois das mudanças frequentes nos ventos do Sul, do Norte e os
trazidos pela neve.33 Algumas histórias de casos pessoais em Epidemias 1 e 3
contêm informações sobre uma visão mais ampla da doença mencionada em
Constituição; o autor da descrição da tosse de Perinto referiu-se,
especificamente, às suas percepções médicas durante o período da intensidade da
doença. As histórias pessoais, como vimos, pouco mencionam a época, o lugar e
as mudanças climáticas, mas talvez isso reflita a maneira pela qual esses casos
eram apresentados, e não ao conjunto de informações implícitas das doenças.34
Além disso, supondo que nem todas as pessoas tivessem interesse nesse
material, ou que fossem observadores ou compiladores cuidadosos como o autor
de Epidemias 1 e 3, existem muitas evidências no Corpus Hippocraticum de que
ele não era o único a acreditar nos efeitos do vento e do clima.35 Qualquer
pessoa que, como o autor de A natureza do homem, acreditasse que uma doença
epidêmica era resultado de algo desagradável que acontecia no ar, tinha de estar
atenta a alterações atmosféricas.36 Escritores tão diferentes como os dos livros
Regime e Humores enfatizaram que um médico deveria anotar tudo o que
acontecia ao seu redor, que pudesse afetar seu doente.37 A primeira parte da
terceira seção de Aforismos citou as doenças decorrentes das mudanças de
estação, com especial atenção aos ventos e sua influência na modificação do
padrão básico sazonal.38 O tratado hipocrático mais famoso dedicou grande
parte do texto à descrição das doenças sazonais e da influência do clima do que
às doenças que ocorriam em razão das mudanças físicas ao longo da vida. Em
geral, os médicos da escola de Hipócrates explicavam as doenças como resultado
de um mau funcionamento do sistema de fluidos e condutos do corpo. Embora a
anatomia de uma mulher fosse diferente da anatomia de um homem, mais
propensa a doenças e problemas, a teoria da ginecologia hipocrática não fazia
distinção entre os sexos. A observação do autor de Doenças das mulheres 2, de
que era preciso examinar com cuidado a natureza, as cores e a idade do paciente
e o ambiente em que vivia, aplicava-se também aos homens, assim como a
ênfase nos fluxos, no quente e no frio.39 Na verdade, o que acontecia no corpo
de uma mulher era visto como um bom indício de um processo menos visível no
homem. A observação das reações femininas apoiava as teorias referentes aos
homens.40 Apesar de não haver registros de dissecção sistemática em qualquer
dos escritores do Corpus, não há dúvida de que tinham um conhecimento básico
do funcionamento do corpo e de sua organização interna, mesmo que fosse
limitado e às vezes fantasioso, além de não haver consenso e precisão em sua
terminologia.41 Assim, por exemplo, a palavra que mais tarde foi usada para
designar “veia” significava qualquer vaso sanguíneo, e “nervo” poderia ser
usado para indicar ligamento, tendão e nervo.42 Mas há registros de que alguns
médicos examinaram elementos anatômicos de um organismo: as descrições de
costas com corcundas e dos tubérculos esponjosos de um tuberculoso
originavam-se da observação, talvez obtida em uma autópsia.43 Do mesmo
modo, entre as provas apresentadas pelo autor de A doença sagrada para
fundamentar sua teoria de que a epilepsia era causada pelo acúmulo de fleuma
na cavidade do cérebro, uma teoria proveniente do conhecimento de anatomia,
mencionou a presença de água com mau cheiro dentro do cérebro de um bode
“epiléptico”.44 A crença de que os bodes sofriam de epilepsia era generalizada
na Antiguidade, talvez por causa das “vertigens”, cujos sintomas pareciam com
uma crise epiléptica.45 A epilepsia também podia ser provocada pelo clima,
como se pensava na época, porque o vento quente do sul umedecia o cérebro,
assim como causava uma condensação ou umidade nas jarras de vinho.46 Os
escritores descreveram o que haviam visto dentro do corpo de um animal, às
vezes de um animal doente, para elucidar uma doença semelhante à de um ser
humano.47 Na embriologia, os ovos de uma galinha proporcionaram um modelo
para a compreensão do desenvolvimento do feto em seres humanos, e as antigas
descrições do útero de mulheres pareciam muito com as descrições de úteros de
animais.48 A fisiologia hipocrática baseava-se na observação e em uma ampla
gama de analogias com o mundo ao redor. A constituição do corpo e seus
processos relacionavam-se aos mesmos fenômenos visíveis em uma escala
maior, porque “as manifestações externas proporcionaram uma percepção para
desvendar o invisível”.49 Assim, por exemplo, o autor de Regime começa o
livro com uma longa série de comparações extraídas de profissões tão
diversificadas como bate-folhas e silvicultores para confirmar sua teoria de que
havia um movimento contínuo no corpo.50 Analogias semelhantes explicavam o
funcionamento do organismo. O estômago era visto como um forno gigantesco,
e a digestão, como uma espécie de culinária. O útero e a bexiga eram
comparados a ventosas, que sugavam os fluidos.51 A fabricação de queijo
explicava como os fluidos coagulavam-se ou se separavam no organismo.52 Os
escritores de livros de ginecologia usavam uma ampla série de semelhanças e
metáforas para se referirem ao útero, sobretudo às analogias referentes ao forno,
ao “cozimento” do embrião e a um jarro.53 O útero movia-se para cima e para
trás como se estivesse em um cano e, assim como um animal de estimação,
voltava para a casa por meio de estímulos (cheiros adocicados), ou ao contrário,
afastando-o com odores desagradáveis.54 É difícil julgar até que ponto essas
analogias tinham importância, porque nem sempre eram coerentes mesmo em
um único tratado. A função principal delas era dar um apoio imediato a qualquer
posição assumida. Elas eram argumentos retóricos e científicos elucidativos e
convincentes.55 Porém, não eram argumentos lógicos, como mais tarde
passaram a ser vistos e, em consequência da possível transmissão oral desse
material antes de ser divulgado, talvez seja melhor interpretá-los só em seu
contexto imediato. No entanto, essa ubiquidade também ajuda a explicar por que
um médico ideal deveria saber distinguir um bom argumento de um ruim, ou
quando as analogias davam resultado.56 As substâncias presentes nos condutos
do corpo humano (que não se referiam apenas aos nervos e ao sistema
cardiovascular) eram vistas como causas de doenças.57 Às vezes eram resíduos
nocivos que percorriam o organismo até se instalarem em um determinado lugar;
em outras era o ar, a fumaça e os gases; ou um fluido nocivo como o catarro, por
exemplo, produzido pelo corpo; ou o problema era causado por um excesso ou
deficiência de um fluido, em geral benéfico.58 Esses fluidos ou humores
exerceram um papel decisivo na medicina da tradição de Hipócrates, porque
foram excelentes como explicações para doenças. Em sua maioria, eram
manifestações visíveis em doenças como pus e catarro, ou em possíveis
causadores de doenças como fezes e urina, cujas variações poderiam ser
facilmente detectadas pela presença ou não da doença. Assim como uma
nascente de água, que fluía pelo corpo, o cérebro trazia o material que revelava o
estado interno invisível ao olhar.59 As manifestações desses sintomas (como
hemorragia nasal ou hemorroidas, vômito ou uma úlcera supurada) também
eram consideradas importantes como indicação do local de uma fraqueza
potencial do corpo. Assim como um riacho seguia seu caminho com poucos
obstáculos, o fluxo dos humores buscava a maneira mais fácil de sair do corpo.
Ainda mais importante, esses fluidos do corpo eram comuns e perceptíveis:
“todos nós temos esses fluidos em nosso organismo e continuaremos a ter”, disse
o autor de Medicina antiga.60 A aparência deles, tanto regular quanto irregular,
também sugeriu que o corpo tinha uma tendência natural para o equilíbrio em
termos de qualidade (o cheiro e a cor da urina variavam de acordo com uma
norma) e quantidade – o excesso de comida e bebida ingeridas era depois
eliminada pela urina e pelas fezes.61 Embora às vezes esse processo parecesse
artificial e perigoso, em outros momentos um fluido tão essencial como o sangue
era expelido regularmente do corpo sem efeitos prejudiciais aparentes, como em
pequenos sangramentos nasais e, sobretudo, na menstruação. A evacuação e a
menstruação eram fenômenos naturais no organismo humano e, por esse motivo,
a interrupção da menstruação era considerada um sintoma muito perigoso, e para
muitos médicos o início da menopausa era o prenúncio de problemas sérios,
porque o sangue que deveria ser eliminado estagnava-se e apodrecia no
organismo da mulher.62 Embora as mulheres nos períodos pré-menstruais se
queixassem de cansaço, dores de cabeça e dor de garganta, a menstruação era
vista como uma manifestação positiva do organismo, não só porque às vezes
aparentemente curava outras doenças.63 Não havia consenso nem um número
fixo de humores importantes, mas muitos autores do Corpus atribuíam uma
importância especial a dois fluidos: a fleuma e a bile. Como seu nome em grego
sugeria, a fleuma fora originalmente uma substância associada a queimaduras e a
doenças inflamatórias: seus cognatos eram “chama”, “combustão” e
“inflamação”, o que chamava atenção para o tom rubro de intumescências e
edemas. No século V seu sentido evoluiu e a palavra passou a significar algo
frio, branco e viscoso.64 “Todas as doenças do ser humano originam-se da bile e
da fleuma”, disse o autor de Afecções, uma opinião compartilhada pelo escritor
de Doenças 1, que acrescentou aos efeitos externos o esforço, os ferimentos, o
calor e o frio. Na opinião do autor de Doenças 1, a bile e a fleuma eram humores
corporais permanentes do organismo, porém, só causavam doenças sob a
influência dos alimentos e da bebida − calor e frio.65 Segundo o autor de Ares,
Águas e Lugares e A doença sagrada, a bile e a fleuma eram duas polaridades de
uma doença: os benefícios do clima seco e do frio do verão para os fleumáticos
em contraste com os perigos para pessoas irascíveis; a fleuma causava epilepsia,
a bile, psicose.66 O texto curto de Hemorroidas começava com a declaração
dogmática de que a hemorroida ocorria quando a bile ou a fleuma instalava-se
nos vasos sanguíneos do ânus, o que provocava um aquecimento e uma
tumefação desses humores, que saíam pelo ânus.67 Como Jouanna observou
com muita perspicácia, um exame cuidadoso dos vasos sanguíneos deu
prioridade a uma explicação que apenas elucidou o visível pelo invisível. Nem
indicou se as hemorroidas causadas por um determinado humor eram diferentes
das causadas por outro.68 Uma das razões da insistência dos escritores
hipocráticos na bile e na fleuma, mais do que em outro fluido, era a visibilidade
e a fácil associação a doenças. A aparência externa desses humores era sempre
desagradável e manifestava-se de uma maneira óbvia quando uma pessoa ficava
doente ou expelia um muco potencialmente perigoso para a saúde. A coriza
constante do nariz, a secreção provocada pela tosse, a saliva e as nuvens brancas
visíveis na urina eram facilmente associadas à doença, e seus efeitos no
organismo eram danosos. A secreção viscosa bloqueava a passagem do ar pelo
corpo, ou causava problemas em uma articulação do joelho ou artrite. Por sua
vez, a bile era expelida pelo vômito e pela diarreia e, na época, pensava-se que
destruía as superfícies internas do corpo, assim como interferia na boa digestão e
afetava as membranas mucosas. A bile e a fleuma também tinham períodos
sazonais de recorrência; o frio do inverno se oporia à disenteria do verão,
doenças comuns quase sempre mais fatais em idosos e crianças pequenas. As
mortes de idosos por doenças respiratórias durante o inverno eram tão comuns
na Antiguidade como são atualmente.69 Outros fluidos também se inseriam no
mesmo padrão de explicação. O autor de Medicina antiga, que rejeitava
veementemente a teoria dos elementos, acreditava em diversas forças físicas, que
se manifestavam em fluidos corporais.70 Trasímaco de Sardis acrescentou o pus
à fleuma e à bile, como fluidos danosos causados no sangue por causa dos
efeitos do excesso do calor e do frio.71 Esses humores eram sem dúvida
patológicos, e Trasímaco os via como deformações do sangue, mas em outros
autores essa opinião não era tão precisa. Filolau de Crotona disse que todas as
doenças originavam-se do sangue, da bile e da fleuma, mas sua opinião não
comprovou se a bile e a fleuma estavam presentes no organismo em uma
situação normal, ou se haviam se transformado em substâncias perigosas por
problemas físicos.72 No Corpus Hippocraticum, o autor de Ares, Águas e
Lugares mencionou que os habitantes do sul da Rússia eram suscetíveis, em
razão de fatores genéticos e do clima, a terem doenças fleumáticas. Mas
enquanto o excesso natural de fleuma os predispunha a terem determinadas
doenças e infecções, a presença de fleuma no organismo não era uma doença em
si. Além disso, os habitantes da Ásia e da Europa também tinham fleuma como
um humor normal em seus corpos, assim como uma quantidade moderada de
bile. Não era o fluido em si que causava doenças, mas, sim, seu excesso ou
deficiência.73 Já vimos esse tipo de explicação em Alcméon e outros filósofos
pré-socráticos, o que refletia com precisão seus conceitos de saúde e harmonia,
equilíbrio e ordem. Na verdade, esses conceitos eram tão interligados ao
pensamento grego, no qual a palavra grega “cosmos” poderia, dependendo do
contexto, significar “beleza”, “ordem”, “o mundo” ou a combinação dos três
significados. Portanto, não causa surpresa o fato de Platão em Banquete atribuir
ao médico Erixímaco o comentário que os médicos compreendiam mais o
conceito de “equilíbrio” na vida do ser humano do que qualquer outra pessoa.74
Nesse sentido, a saúde poderia significar “eukrasia” (boa mistura), “harmonia”
ou “simetria”; e doença, seu oposto.75 Os elementos individuais não eram os
culpados pela doença, embora alguns fossem mais perigosos do que outros,
porque eram naturais e, assim, faziam parte da ordem natural do universo. As
doenças, portanto, eram causadas pela maneira com a qual se combinavam.
Porém, essa concepção suscitou um problema quanto à definição de saúde e de
doença. Alguns textos hipocráticos mostraram uma ruptura clara entre saúde e
doença. Mesmo no caso de algum desequilíbrio dos humores, só quando o
elemento prejudicial à saúde instalava-se em determinado lugar do corpo, só no
momento em que a fleuma, por exemplo, bloqueava a passagem do ar no corpo,
o paciente adoecia.76 Mas em circunstâncias normais a saúde não era afetada.
No entanto, no terceiro Aforismos o conceito mudou: a saúde perfeita era uma
raridade, e não a doença. Até mesmo um atleta com um bom condicionamento
só permanecia pouco tempo no auge da forma física, porque qualquer mudança,
a menos que fosse cuidadosamente controlada, seria prejudicial. Assim que
atingisse o auge começaria o declínio. Mesmo o fato de estar no auge era
“perigoso” (a palavra repetiu-se seis vezes em poucos parágrafos) e, ainda mais
grave, no caso de pessoas com uma constituição menos perfeita. Qualquer
alteração era potencialmente nociva, e cabia ao médico e ao paciente prevenir, na
medida do possível, as consequências dessa mudança.77 Em A natureza do
homem, o autor deu uma explicação semelhante, na qual a doença iniciava-se no
momento preciso em que ocorria um desequilíbrio dos humores ou quando um
humor se isolava e começava a fluir sozinho.78 A saúde dos seres humanos
estava, portanto, sempre ameaçada. Porém muitos autores fizeram uma
abordagem diferente à ideia da saúde como equilíbrio. Na opinião deles não
existia um único ponto de equilíbrio, qualquer desequilíbrio provocava doenças,
não havia uma mudança súbita da saúde para a doença, mas, sim, um amplo
período de coexistência entre certo desequilíbrio e um equilíbrio perfeito. Só
quando o desequilíbrio era excessivo, só quando um fluido se separava dos
demais, as pessoas adoeciam. O autor de Regime, por exemplo, defendia a ideia
de que no corpo havia um fluxo perpétuo de dois elementos, fogo e água, e o
médico deveria manter esse fluxo nos limites apropriados. A longa série de
analogias que iniciava essa obra tinha o objetivo de mostrar como esse fluxo
constante era uma característica de todas as atividades naturais.79 A analogia
dessas ideias com as teorias do filósofo Heráclito é evidente, e algumas pessoas
sugeriram que essa teoria tinha uma associação especial com os gregos da Ásia
Menor.80 Um equilíbrio mais preciso e potencialmente mais estável era uma tese
defendida por médicos do sul da Itália e da Sicília influenciados, em especial,
por Empédocles. É uma sugestão instigante, mas sem uma informação do local e
data da elaboração da maioria desses tratados, corre o risco de ser uma
argumentação circular em sua aplicação.81 No entanto, é inquestionável o
impacto das teorias de Empédocles na medicina de sua época.82 O autor de
Medicina antiga o criticou, ao passo que A natureza do homem mencionou
muitas de suas ideias, no que mais tarde foi visto como uma teoria hipocrática, a
teoria dos quatro humores.83 A crença de Empédocles nos quatro elementos
cósmicos − terra, ar, fogo e água −, associados às quatro qualidades − quente,
frio, úmido e seco −, tem um grande potencial de elucidação e, por esse motivo,
não surpreende que as teorias das doenças baseadas só em três humores tenham
sido descartadas.84 Mas ainda se discutia quais seriam os quatro humores ou
elementos do corpo.85 O autor de Doenças 4 acreditava que os humores eram
constituídos por água, bile, sangue e fleuma, e a água em excesso, é claro,
causava doenças como hidropisia e diabetes, mas nenhum outro autor adotou sua
teoria.86 No início do século IV, Petron(as) de Egina e Filistião de Locri
enfatizaram o desequilíbrio dos quatro elementos, quente, frio, úmido e seco,
mas não dos humores. Petron, na verdade, considerava a bile como um resultado
e não a causa das doenças.87 Menecrates, que viveu em meados do século IV,
propôs uma teoria diferente, na qual o corpo fora criado por quatro elementos,
dois quentes – sangue e bile –, e dois frios – respiração (pneuma) e fleuma. A
harmonia dos elementos causava saúde, a desarmonia, a doença. Menecrates
também acreditava que a bile vermelha, segundo sua terminologia, quando se
estagnava e, em consequência, se putrefazia, transformava-se em bile negra, que
causava doenças diferentes dependendo de onde se instalasse em seu percurso
pelo corpo – pneumonia nos pulmões, ciática nos quadris, pleurisia nas costelas
e nos intestinos provocava uma febre altíssima, kausos, no corpo inteiro.88
Menecrates foi um dos primeiros autores de livros de medicina a pensar que a
melancolia ou “bile negra” era uma substância específica e que poderia se
degenerar em forma de bile (ou “bile vermelha”). Essa opinião seria uma reação
à teoria dos quatro humores descrita em A natureza do homem. Mas, assim como
em outros tratados mencionados neste capítulo, seu autor definia a saúde e a
doença em termos de equilíbrio e desequilíbrio dos humores: A saúde é resultado
da devida proporção de seus elementos com relação à sua mistura perfeita, poder
e quantidade.89 A dor ocorre quando um desses elementos é escasso ou
excessivo, ou está isolado no organismo e, portanto, não se mistura com os
outros. Quando um elemento isola-se, nem sempre o lugar que ele ocupava
adoece, e sim o local onde se instalou e flui em excesso é que provoca dor e
sofrimento.90 Esse desequilíbrio dos elementos que causava doenças podia
acontecer com qualquer pessoa independente da idade ou da estação do ano.91
Essa desarmonia tinha uma comprovação lógica de acordo com o funcionamento
do universo natural: a “necessidade” implicava aceitação que, por sua vez,
garantia às vezes o “mais seguro dos prognósticos”.92 Mas a saúde era sempre
instável, porque era afetada pelo ar que as pessoas respiravam, pelo estilo de
vida, pela comida, pela bebida, pelo sono, pelo exercício, entre outros fatores. A
saúde estava sempre sujeita a alterações, tanto em decorrência das mudanças de
estação quanto ao processo de envelhecimento.93 Esse estado de equilíbrio
dinâmico entre o organismo e seu ambiente era extremamente específico. Cada
pessoa tinha sua própria mistura que, provavelmente, não era compartilhada com
outras pessoas e essa mistura corria sempre o risco de sofrer mudanças
influenciadas por alterações nocivas à saúde do mundo ao redor. Mas muitas
dessas mudanças eram previsíveis e, assim, podiam ser evitadas com medidas
profilácticas. A maioria das febres resultava do excesso de bile e se a bile
predominasse no verão e no outono, poder-se-ia tomar precauções adequadas
para reduzir a quantidade de alimentos que causavam a bile; do mesmo modo o
aumento natural do sangue na primavera e no início do verão, que prejudicava o
organismo, podia ser evitado com medidas que compensassem esse aumento.94
Sem dúvida, a idade da pessoa e sua constituição física, assim como a estação do
ano, eram fatores que deviam ser considerados na prescrição do remédio e das
medidas profilácticas na prevenção e na recuperação do equilíbrio natural do
organismo. Apesar da complexidade da influência desses fatores no organismo,
não era impossível manter seu equilíbrio natural.95 Na verdade, qualquer pessoa
que quisesse preservar sua saúde, “o mais precioso dos bens”, tinha acesso a esse
conhecimento. O julgamento individual de cada pessoa do que lhe era adequado
ou não, de acordo com as recomendações do autor sugeridas nesse tratado, podia
preservar e recuperar a saúde por muito tempo.96 Nesse tratado, mais do que em
qualquer outro do Corpus, existia um sistema de regras com quase a mesma
precisão e previsibilidade da matemática. Além disso, a elegância simples de seu
enunciado conferia solidez aos seus argumentos.97 Embora o autor admitisse a
dificuldade de lidar com a doença e com a saúde das pessoas, porque era a
pessoa que adoecia e não seu intelecto, o autor estava convencido que seu
esquema de compreensão do corpo, se seguido corretamente, resultaria em um
grau significativo de certeza. Ele impunha duas tarefas difíceis ao médico e ao
paciente em potencial. O paciente sempre deveria tomar precauções adequadas
para prevenir as doenças; o médico precisaria entender a individualidade do
paciente à sua frente para lhe aconselhar e curar. Mas as tarefas não eram
impossíveis de realizar e o autor transmitiu sua confiança às futuras gerações de
médicos. Os médicos não percebiam a natureza problemática do quarto humor, a
bile negra ou a melancolia, porque se inseria com muita harmonia e discrição em
uma cosmologia que era (ou logo seria) amplamente aceita. Os quatro
elementos, as quatro estações, as quatro idades da humanidade e os quatro tipos
de febre se estenderiam quase indefinidamente para incluir os quatro gostos, as
quatro cores e, no final da Antiguidade, os quatro temperamentos, os quatro
pontos cardeais da bússola e os signos astrológicos nos quatro pontos do céu. (A
Idade Média acrescentou detalhes mais complexos, inclusive os quatro tons e os
quatro evangelistas.)98 Em razão da predominância desse esquema de quatro
elementos, a pergunta não se relacionaria ao motivo de serem quatro humores, e
sim porque o quarto humor seria a bile negra e não outro fluido. Como resposta
parcial poderíamos dizer que já havia uma forte associação de palavras relativas
à bile negra com a morte e a doença e, portanto, se referiria ao oposto ao sangue
que, em geral, estava associado à vida e à saúde. Porém, essa resposta não
explicava o conceito de bile negra, porque até a divulgação desse tratado as
referências à bile negra como substância específica quase não existiam, e quando
mencionadas serviam apenas para distinguir esse tipo de bile de biles de outros
tipos e cores. Os autores mais antigos não a consideravam um humor isolado.
Em vez de referências à bile negra, os tratados citavam palavras como
“melancólico”, “melancolia” ou um “estado melancólico” relacionados a alguma
doença. Essas palavras constavam de tratados do Corpus Hippocraticum e de
outros contextos médicos com uma conotação frequente de um estado
psicológico, como raiva ou uma forma de loucura. Em Aforismos 3, 20,
“melancolia” iniciou a lista de doenças típicas do outono e, em seguida, o autor
mencionou a loucura e a epilepsia; em 3, 22, a lista foi invertida e “melancolia”
concluiu a relação de doenças típicas do outono.99 No entanto, em Ares, Águas
e Lugares “melancolia” referia-se a estados físicos.100 Tanto na comédia quanto
na tragédia o termo “melancólico” descrevia uma raiva ou uma loucura
destrutiva.101 Em contextos hipocráticos e folclóricos, o termo “negro” era
usado para enfatizar a malignidade de uma doença.102 Não indicava a existência
de um humor isolado, mas apenas uma alteração na bile que a tornava
extremamente perigosa; a visão de Menecrates, já citada, de que a bile negra era
uma deformação da bile vermelha, correspondia à sua compreensão inicial. Do
mesmo modo, seu contemporâneo, Déxipo de Cós, que, no âmbito de doenças
causadas pela bile e a fleuma, via a bile negra como o resultado de mudanças
que aconteciam na mistura de sangue e fleuma.103 O conceito de bile negra
como um humor isolado era relativamente novo no final do século V, como
demonstrado pela maneira com a qual o autor de A natureza do homem referia-
se à “assim chamada bile negra”, uma formulação que indicava que a expressão
não era usual.104 Isso se concilia com a conclusão de muitos estudiosos de que a
bile negra surgiu para explicar “doenças da bile negra”, e sua designação como
um humor isolado, oposto a um tipo de bile, surgiu ainda mais tarde.105 No
momento em que esse conceito se materializou, sua existência pôde ser
“provada” por diversas observações empíricas (embora, é claro, nenhuma delas
relacionada à bile negra em sua forma pura, mas apenas indicações de sua
presença na mistura de fluidos corporais). Ao pensarmos na cor escura das
verrugas e dos sinais de nascença, na maneira como o sangue mudava de cor e
de consistência ao se coagular na superfície negra de uma ferida e o sangue preto
vomitado concluímos que o corpo continha algo escuro e misterioso. Seus
efeitos podiam ser explicados por um esquema claro de antíteses. Comparado ao
seu oposto, o sangue vermelho e brilhante que simbolizava a vida, a bile negra
tinha uma conotação profundamente destrutiva. Mas assim como o sangue podia
ser nocivo às vezes, ao se estagnar ou ao se acumular em excesso, a bile negra
podia relacionar-se ocasionalmente a coisas boas – no século III a.C. o homem
de temperamento melancólico era comum e essa tendência prolongou-se por
muitos séculos.106 Mais tarde os autores hipocráticos, em especial Rufus de
Éfeso e Galeno, escreveram livros sobre suas opiniões referentes à bile negra e
seu significado para a medicina. No entanto, apesar de a importância da bile
negra como um humor do organismo ter desaparecido no século XVII, assim
como a teoria dos humores, a melancolia continuou a ser um tema de discussões
médicas até o século XX.107 Em razão de sua longa história e influência, a
teoria dos quatro humores – sangue, bile, bile negra e fleuma – dominou a
história da medicina grega. Por esse motivo, A natureza do homem ocupou uma
posição de destaque não só na obra de Hipócrates e no Corpus Hippocraticum
em geral, como também na medicina grega em qualquer período. A obra tinha
muitas características que a faziam merecedora de uma posição tão elevada. O
texto era claro e coerente; tinha uma argumentação bem estruturada e instigante,
ao usar a lógica e as evidências do mundo natural para contestar seus opositores;
mostrava uma cadeia de causa e efeito associada às estações, à humanidade e aos
pacientes; valorizava a individualidade de cada paciente; admitia as incertezas
do diagnóstico e do tratamento, mas, ao mesmo tempo, oferecia um método
abrangente que, se seguido corretamente, proporcionava a possibilidade de
diagnósticos e tratamentos mais precisos; abordava questões sobre anatomia,108
assim como o ambiente em que vivia o paciente; e reivindicava a autonomia e a
superioridade do médico em comparação, por exemplo, com os filósofos, que
elaboravam teorias especulativas e atraentes, porém, sem fundamento. Ao
enfatizar que a saúde era um estado de equilíbrio precário, destacou o interesse
dos gregos pela ordem e beleza e afirmou a importância do papel do médico na
prevenção e na cura de doenças. O texto em grego era muito mais elegante e
acessível do que a maioria dos antigos tratados de medicina, a exemplo do
Corpus Hippocraticum. Todos esses fatores justificavam a reverência prestada
pela história ao autor desse tratado. Porém, como vimos neste capítulo, essa
história não é conclusiva. Aristóteles e seus seguidores, que tinham uma posição
mais privilegiada do que a nossa para ter acesso à verdade, não acreditavam que
Hipócrates fosse o autor do tratado e o atribuíam ao seu aluno Políbio.109
Embora mais tarde o tratado tenha sido associado com mais firmeza a
Hipócrates, estudiosos como Sabino e Galeno acreditavam que alguns trechos
haviam sido escritos por outro autor muito menos confiável.110 A importância
subsequente desse tratado e a descrição da teoria dos quatro humores não
escondiam o fato de que essa era a visão de uma minoria, mesmo no contexto do
Corpus e, como veremos, será reivindicada por muitos autores posteriores.
Apesar de ter muitas características de outros tratados dos séculos V e IV, não
podemos esquecer que também revelou muitos traços específicos da teoria
hipocrática sobre noções de anatomia e dos quatro humores. A visão de A
natureza do homem como apenas um tratado entre muitos enfatizou a
diversidade de ideias sobre a saúde e a doença no conjunto das obras do Corpus
Hippocraticum, assim como dos médicos escritores ou que discursavam à época.
Essa pluralidade de ideias revelou um debate contínuo, uma nova compreensão,
ou talvez uma nova descoberta em relação ao corpo humano, com autores
desenvolvendo ou refutando conceitos de outros, ou elaborando novas teorias.
Alguns escritores tinham uma tendência mais filosófica do que outros; havia
alguns que condenavam essas especulações inúteis. Alguns defendiam
concepções muito estranhas; outros tinham opiniões que correspondiam às ideias
modernas da homeostasia e da resistência individual à doença; alguns davam
mais importância à quantidade do que a um paciente em especial. Mas juntos
ofereceram uma percepção do mundo intelectual vibrante da Grécia clássica,
onde autores de lugares tão distantes como Metaponto, Sardis, Cós e Crotona
discutiam os mesmos temas e formulavam suas respostas. A diversidade de
pontos de vista mencionados na literatura médica do final do século V e início
do século IV é, sem dúvida, maior do que qualquer coletânea comparável de
obras literárias da Grécia clássica. Porém, ao se concentrar em uma teoria ou em
teorias mais próximas ao homem, Hipócrates ofuscou o brilho da característica
mais significativa de sua medicina, a vitalidade intelectual e a diversidade.

6 As Práticas Hipocráticas Apesar dos enunciados teóricos, o médico hipocrático


foi, sobretudo, um artífice no exercício da medicina.1 Os médicos, quase sempre
homens, podiam trabalhar em casa, que funcionava como uma “oficina médica”
ou cirúrgica e, em geral, permaneciam em sua comunidade, ou poderiam, assim
como o médico artífice de Homero, viajar à procura de pacientes.2 Ele tinha a
opção de trabalhar sozinho ou junto com outros médicos, viajando por lugares
conhecidos ou mais distantes como um total desconhecido.3 A renda dos
médicos dependia de encontrar pacientes dispostos a pagar por seus serviços,
além dos rendimentos de seus bens ou de propriedades rurais, caso tivessem. A
única exceção era o serviço prestado ao Estado, como médico do Exército ou da
Marinha em campanha, ou como um “médico público”. Segundo a fonte
discutível de Heródoto, havia um sistema de médicos públicos na região do mar
Egeu e em Atenas no final do século VI, porque Demócedes ocupou esse cargo
nos dois lugares.4 Mas existe uma lacuna histórica de um século ou mais, e as
evidências mais detalhadas só surgiram na época helenística. De acordo com
essas informações, a presença do médico público não representava um serviço de
assistência social prestado pelo Estado avant la lettre. Em Atenas, alguns
médicos escolhidos pela assembleia recebiam uma remuneração para morar na
comunidade e estar disponível para tratar dos cidadãos.5 Se seu contrato os
obrigava a trabalhar sem remuneração é uma questão controvertida: suas lápides
e os decretos que homenageavam os notáveis serviços prestados revelaram que
às vezes tratavam de pacientes sem remuneração, porém, é mais provável que o
tratamento gratuito ficava a critério dos médicos, em vez de ser uma imposição
legal.6 As pressões sociais em uma pequena comunidade obrigavam os médicos
a atenderem às pessoas mais pobres sem pagamento, mas seria pouco provável
que fizessem o mesmo com cidadãos ricos, ou que não pertenciam à
comunidade. Nem tinham no século V a obrigação contratual de assistir a
inquéritos ou a outras ocasiões oficiais em que a presença de um médico seria
necessária (situações ocorridas no Egito no período greco-romano), ou que a
tarefa de testemunhar como peritos nos tribunais limitava-se aos médicos
públicos.7 No entanto, o serviço prestado ao Estado era uma opção reservada a
poucos médicos; os outros médicos, assim como as parteiras, os especialistas no
tratamento de fraturas, herboristas, entre outras especialidades tinham de
sobreviver com os ganhos de seu trabalho. Eles enfrentavam competição, como
vimos, de várias áreas, e nem sempre os pacientes procuravam um médico assim
que adoeciam.8 Nessas circunstâncias era essencial que o médico causasse uma
boa impressão em seu paciente potencial. Ele precisava se expressar bem, tanto
em conteúdo quanto em estilo – o último texto de Preceitos dizia em tom de
brincadeira que o médico deveria evitar os floreios da poesia, porque poderiam
ser vistos como um desperdício de tempo, sem nenhuma associação com a
medicina. As palavras tinham de transmitir confiança, para evitar que os
médicos fossem superados por outros que só tinham um bom discurso.9 A
primeira impressão era fundamental: uma cirurgia realizada com competência e
um bom estoque de instrumentos cirúrgicos, um curativo bem feito em outro
paciente, uma opinião sólida sobre o tipo de doença endêmica em determinada
região, trajes e comportamentos apropriados, uma boa vontade evidente de
ajudar, mas, ao mesmo tempo, uma relutância em fazer procedimentos radicais
que poderiam prejudicar ou matar o paciente.10 O poeta cômico Alexis dizia que
o dialeto do médico era importante: um médico ateniense que receitasse raiz de
beterraba com o nome no dialeto ático seria desprezado, enquanto um médico
não ateniense que usasse a forma jônica ou dórica seria muito respeitado.11
Todos esses fatores ajudavam a criar confiança no paciente e a confiança, como
enfatizou o autor de Prognóstico, era um elemento essencial no combate à
doença. Nessa luta havia três protagonistas: a doença, o paciente e o médico.12
Caberia ao paciente escolher entre colaborar com o médico ou combater a
doença sozinho. Por sua vez, o médico só teria sucesso se contasse com a
cooperação do paciente, tanto por suas informações relativas à doença quanto
pela confiança depositada em seus conselhos.13 Como essa confiança era criada
e mantida? Ludwig Edelstein, em um famoso capítulo, destacou a importância
do prognóstico na medicina grega nos séculos V e IV como a principal maneira
pela qual o médico demonstrava seus méritos e, ao mesmo tempo, o protegia de
ser acusado de negligência médica.14 Ao prever as consequências prováveis de
uma doença, anunciando-as previamente aos parentes do doente e aos seus
amigos, ele conquistava a confiança depositada na cura, em especial se o curso
da doença seguisse seu prognóstico. Além disso, se o paciente morresse, ele
poderia se defender com o argumento sólido de que havia informado sobre os
possíveis resultados da doença. O sucesso em casos duvidosos acrescentaria
ainda mais crédito à sua prática; o fracasso na cura seria mais bem tolerado pela
família do doente se já estivesse preparada para o pior.15 No entanto, mesmo no
Corpus Hippocraticum existia uma crítica quanto ao uso “tático” do prognóstico
na previsão das consequências de uma doença e na conquista de confiança do
paciente e de seus familiares.16 O autor de Prorrhetic 2 iniciou o tratado com um
relato irônico de casos extraordinários de prognósticos, que ele testemunhara ou
que lhe haviam contado. Ele descreveu a chegada de médicos ao quarto de um
doente para dar uma segunda opinião e imediatamente previam uma
recuperação, porém, acompanhada por paralisia ou cegueira, ou, quando
passavam pelo mercado contavam a um comerciante que morreria ou
enlouqueceria.17 Os médicos atribuíam uma doença grave a um erro
insignificante no programa de treinamento de um atleta. O autor rejeitava esse
tipo de previsão e explicação acusando-as de ser meras “mânticas”,
“adivinhações”, não um diagnóstico verdadeiro, e negava com veemência as
insinuações de que se comportava dessa maneira.18 Ele admitia que algumas
previsões extravagantes se realizavam, mas só porque quem as fazia identificara
e interpretara corretamente os sinais importantes, que qualquer médico
competente detectaria. Ou porque a doença, quando o primeiro médico viu o
paciente ainda não se manifestara e evoluíra e, portanto, era mais fácil
diagnosticá-la em uma segunda consulta. Em sua opinião, o importante era fazer
uma previsão rigorosa, entender os sinais mais relevantes e, a partir de então,
tirar conclusões racionais.19 Assim, a maneira como alguém fazia uma previsão
era tão importante quanto o que previa, e o paciente ficava sutilmente prevenido
contra as previsões sem o fundamento de resultados.20 Esse autor, assim como o
autor de Prognóstico, admitia a possibilidade de distinguir entre a previsão de
um prognóstico no sentido estrito do termo e de uma profecia, mas considerava
essa distinção irrelevante para a prática da medicina. Ninguém poderia fazer uma
afirmação sólida sobre o futuro sem uma previsão com fundamentos, e só uma
pessoa tola se influenciaria pela maneira como foi feita a afirmação e não por
sua precisão potencial.21 Como mencionado pelo autor, o prognóstico era mais
do que uma tática para impressionar os pacientes: era um elemento essencial da
prática da medicina, como afirmaram muitos escritores do Corpus. Era um fator
vital para a compreensão e o tratamento de um doente, uma garantia de que
qualquer que fosse a recomendação seria apropriada para o paciente e para seu
estado de saúde.22 Não se limitava a prever como a doença poderia evoluir e se
o resultado seria favorável ou não. O prognóstico proporcionava uma maneira de
controlar a doença e, se necessário, de modificar o tratamento de acordo com um
padrão previsível, além de direcionar o tratamento segundo as especificidades de
cada paciente. Ele também diferenciava o médico de outros tipos de curandeiros
e, se executado corretamente, permitia que o médico verdadeiro interviesse com
eficiência e rapidez, mesmo em doenças perigosas e em estado crítico.23 Em
resumo, o médico que exercia a arte do prognóstico dizia que sua técnica
específica abordava o passado, o presente e o futuro do paciente, uma afirmação
ousada do que hoje chamamos de histórico do caso, seu diagnóstico e
prognóstico.24 Os conselhos sobre a maneira de fazer prognósticos são
mencionados de diversas formas diferentes no Corpus. Às vezes, como em
Aforismos, Prognoses de Cós, Dentição e Prorrhetic 1, os conselhos são
apresentados em aforismos curtos, frases memoráveis e apotegmas, que se
aplicavam em geral para todos os casos.25 Prognóstico e Ares, Águas e Lugares
são guias mais longos para a prática do prognóstico, o primeiro com uma
abordagem em termos gerais, o segundo, direcionado especificamente para a
preparação da chegada de um médico viajante a uma nova cidade. Epidemias
representou uma etapa intermediária, na qual as observações sobre casos
médicos foram escolhidas e organizadas segundo a utilidade potencial para o
prognóstico. Histórias de casos individuais foram reescritas para serem
incorporadas ao texto de Constituições e servirem de um banco de dados para
comparação futura.26 Além disso, o autor especificou o que o médico deveria
considerar como as características mais importantes de qualquer doença, os
indícios, os quais o autor de Prorrhetic 2 também julgou ser uma base eficaz em
relação à evolução de uma doença e o tratamento de um paciente.27 O autor de
Epidemias 1 fez uma longa lista dessas características: a natureza comum de
todas as coisas e a natureza específica de cada pessoa; a doença e o paciente; a
dieta prescrita e quem a prescrevia; o conjunto dos elementos que formavam o
céu e a região, em geral e de maneira específica; o hábito, o estilo de vida, as
práticas e a idade; o modo de falar, o comportamento, o silêncio, pensamentos,
sono ou insônia; sonhos, cabelos arrancados, coceira, arranhões; circunstâncias
agravantes da doença, fezes, urina, saliva, vômito; os estágios da doença e as
possíveis crises e a morte; e suor, rigidez, calafrios, tosse, espirro, soluço,
flatulência, hemorroidas e hemorragias.28 Esses sintomas ficavam no “limiar do
visível e do oculto”.29 Alguns sintomas a serem pesquisados inseriam-se nos
diagnósticos modernos e envolviam uma observação perspicaz, minuciosa e
precisa em todos os sentidos: o padrão da diminuição e da recaída das febres;
qualquer mudança súbita, sobretudo em alterações de consciência;30 o som,
tanto em quantidade quanto em qualidade da respiração de um paciente; a
possibilidade de que um golpe de um lado da cabeça tivesse ocasionado uma
lesão no outro lado;31 sinais de abscesso e descoloração que indicavam uma
infecção grave em um ferimento; e mudanças nos movimentos dos dedos. A
chamada facies Hippocratica (a “face hipocrática”), que foi descrita em detalhes
minuciosos no Prognóstico, ainda era um excelente indício da morte iminente.32
Outros sinais ficaram obsoletos, em especial a “carfologia”, os movimentos
automáticos e contínuos das mãos, que um doente fazia para pegar objetos
imaginários à sua volta, apesar de o fenômeno ainda ser visto em hospitais e
casas de repouso para idosos.33 Outros sinais estavam mais sujeitos a
preconceitos subjacentes do que em um julgamento clínico. Com frequência,
havia a crença, que se prolongou até há pouco tempo, de que as crianças
nascidas com oito meses de gravidez tinham grandes chances de morrer,
enquanto as que nasciam com sete meses de gravidez em geral tinham uma
expectativa de vida. Uma crença insustentável com base em estatísticas
modernas de mortalidade infantil e em uma sociedade em que a duração e o
início da gravidez não têm uma opinião de consenso, nem é fácil de
determinar.34 Embora os números exercessem um papel essencial na definição
de um prognóstico, nesse caso serviam como uma justificativa: não era culpa de
ninguém se o bebê morrera, porque havia nascido em um período extremamente
desfavorável da gestação.35 A ênfase em uma observação minuciosa dos sinais e
sintomas, que resultava na compreensão da causa da doença e de registro para
orientar acontecimentos futuros, não se limitava à literatura médica. O
historiador Tucídides seguiu esse padrão em seu relato abrangente sobre a peste
em Atenas e demonstrou, ao mesmo tempo, um amplo conhecimento das
técnicas e vocabulário da medicina contemporânea.36 Na verdade, sua história
com ênfase na procura de uma compreensão das causas da doença e seu desejo
de fazer um registro para futuras consultas em circunstâncias semelhantes
revelaram que as ideias sobre medicina haviam tido impacto entre os
intelectuais, que transcenderam o tema específico da medicina.37 Do mesmo
modo, Platão atribuiu ao verdadeiro estadista a mesma capacidade de entender o
passado e controlar o futuro como o médico, e fez com frequência analogias
entre a medicina e a política.38 No entanto, seria imprudente atribuir essa
influência a apenas Hipócrates, a um único tratado ou a uma coletânea de
tratados, porque a tendência do prognóstico como elemento tático permeou as
obras do Corpus, como em Prorrhetic 2, e era uma prática usual entre outros
médicos que não deixaram registros por escrito.

Figura 6.1 Lápide de mármore do médico ateniense Jason, examinando o
estômago intumescido de uma criança. British Museum, Reg. Nº 1865,0103.3 ©
The Trustees do British Museum. IG 22 45 13. Mas a procura do conhecimento
do prognóstico tinha suas limitações, como vimos nos casos mencionados em
Epidemias. Apesar dos diversos sintomas descritos no livro, que se prolongaram
por vários meses, um dos objetivos do autor foi buscar padrões de diminuição e
de recaída de febres. Seu foco recaiu em momentos de crise, quando o destino de
um paciente era decidido, pelo menos temporariamente, e as tentativas de medir
o número de dias entre as crises, provavelmente, como um guia para reunir os
diversos sintomas de febre.39 Mas não era um estudo de caso: o passado não
remontava ao momento em que o paciente adoecera, e não havia preocupação
em examinar outras doenças do paciente em épocas diferentes, que poderiam ter
consequências de longo prazo. Nem havia um diagnóstico realizado de acordo
com padrões modernos. Atualmente, o médico procura sintomas diferentes para
identificar a causa da doença, até descobrir um sintoma específico e, assim,
eliminar ou prevenir suas consequências.40 O médico hipocrático interessava-se
menos em diferenciar as doenças e a identificar uma causa específica do que
separar sintomas importantes dos sintomas irrelevantes, para descobrir as
mudanças internas subjacentes do organismo do paciente que causavam a
doença. Ele se preocupava com o estado de saúde individual, e não com a causa
individual. A diferenciação ocorria no nível do paciente e não da doença, porque,
embora os seres humanos reagissem da mesma forma a mudanças de clima e de
alimentação, o médico precisaria ser capaz de separar o geral do individual e
verificar o que havia de errado com o paciente.41 Ao examinar o passado, o
médico não comparava as doenças anteriores com a atual, e sim como era o
estado físico saudável comparado à doença: quanto maior fosse a divergência
mais grave era a doença.42 Assim que o médico diagnosticava a doença, ele
tinha de decidir se trataria ou não do doente. Embora os opositores da medicina
dissessem que os médicos deveriam tratar de todos os pacientes, mesmo os de
estado grave, muitos, ou talvez todos os escritores do Corpus Hippocraticum,
não viam nada de errado em recusar o tratamento.43 O autor de Prorrhetic 2
proibia a intervenção médica quando o paciente estava inconsciente em
consequência de um ferimento, ou delirando, ou tinha sofrido uma ferida tão
profunda que havia poucas chances de se recuperar.44 O autor de A arte também
pensava que o médico nada poderia fazer na mesma situação, assim como
deveria evitar um dano desnecessário com uma intervenção inútil.45 Platão via
essa recusa como um excelente exemplo do verdadeiro artífice, uma percepção
criteriosa dos limites de sua arte.46 Mas essa decisão ainda admitia a
possibilidade de outro médico julgar que a doença poderia ser curada, ou que
pelo menos haveria um tratamento paliativo. Alguns pensavam que valia a pena
correr o risco de uma intervenção, porque o paciente poderia se recuperar e, caso
contrário, teria morrido de qualquer forma. Além disso, havia sempre a pressão
da sociedade para que o médico oferecesse um tratamento.47 Até mesmo em
casos de fratura cominativa, nas quais o fator de sucesso era extremamente raro e
uma cirurgia só agravaria a situação, o médico poderia ser obrigado a intervir
para não ser julgado incompetente.48 Porém se o tratamento fosse correto, os
escritores do Corpus pensavam que a morte do paciente não era culpa do
médico. Nem seria culpado se o paciente não quisesse esperar até a fratura
consolidar e começasse a andar cedo demais e, em consequência, a cura seria
parcial.49 Depois que decidisse tratar de um paciente o médico teria de escolher
os métodos adequados, inclusive a hipótese da cirurgia. As incisões e a
cauterização eram as principais armas dos médicos e o alto-relevo do século VI
exposto no Museu da Basileia mostra as ventosas que um médico utilizava nos
tratamentos (Figura 6.2).50 Apesar da proibição do uso de incisões no Juramento
e a tendência do autor do Médico em transferir essa prática a outros médicos
com experiência no tratamento de ferimentos de guerra, esses procedimentos
eram comuns a muitos médicos.51 A hemospasia era um procedimento normal
para o autor de natureza do homem, e ele fez uma lista de recomendações do uso
das ventosas, embora tenha aconselhado a aplicá-las no lugar mais distante
possível do local da dor ou da intumescência, para evitar o choque nesse local,
além de evitar o acúmulo de sangue nesse mesmo lugar.52 No entanto, a
hemospasia tinha riscos e esse recurso terapêutico só era utilizado por
profissionais competentes. Mas, quando necessário e como último recurso, um
paciente poderia sangrar profusamente até desmaiar.53 Os benefícios
terapêuticos da hemospasia eram um tema discutido mesmo na Antiguidade, e
estudos modernos baseados em doenças relativamente raras não acrescentaram
informações valiosas.54 Porém a limpeza da área a ser cortada com vinho, como
os antigos médicos recomendavam, diminuía a possibilidade de infecções na
ferida, e uma pequena incisão seguida da aplicação de uma ventosa seria uma
técnica segura.55 A cauterização com substâncias cáusticas ou ferro em brasa era
o último recurso terapêutico, embora tenha sido recomendado pelo autor de
Doenças 2 para combater dores de cabeça recorrentes, e da afirmação do autor
de Afecções internas de que 12 cauterizações em diferentes pontos do corpo
parariam o fluxo prejudicial da bile e da fleuma. Alguns médicos usavam a
cauterização para tratar de problemas oftalmológicos, outros, para colocar um
ombro deslocado no lugar.56 Mas os riscos eram enormes. O uso excessivo da
cauterização poderia causar cicatrizes, ou impedir que o úmero se articulasse
com a escápula.57 O resultado dessa terapia poderia ser fatal. Eupolemus de
Oeniadae morreu coberto de cicatrizes depois de várias tentativas fracassadas de
cauterizar um abscesso; o autor lamentou que outras tentativas de parar o fluxo
de pus poderiam ter salvado sua vida.58
Figura 6.2 Alto-relevo grego (c.480 a.C.) que mostra um médico e duas
ventosas. Basileia, Antikenmuseum Basel und Sammlung Lugwig, inv. BS 236.
Fotografia: Andreas F. Voegelin.

Figura 6.3 Galeno recomenda a aplicação de um enema. Dresden, Sächsische


Landesbibliothek, Db 93, fólio 392v. Articulações descreveu a linha precisa
entre o risco criterioso e a negligência médica. Neste livro, assim como em
Fraturas e Método de redução, o autor demonstrou um amplo conhecimento dos
princípios da ortopedia.59 Ele deu conselhos bem fundamentados referentes à
fixação de fraturas simples e à redução de luxações. Aborrecia-se com os que
confundiam uma fratura dolorosa, mas temporária, da epífise da coluna vertebral
com o caso mais problemático do deslocamento de vértebra, porque seu
conhecimento da coluna vertebral baseava-se na longa experiência de tocar,
sentir e massageá-la. O tratamento de deslocamento de vértebras e de luxações
de ombros era uma questão de técnica, mas às vezes exigia força, tanto do
médico quanto do assistente, com a ajuda de instrumentos como uma viga de
madeira ou o banco hipocrático.60 O paciente era colocado em um banco
grande, onde o amarravam enquanto moviam o membro deslocado para cima e
para os lados até encaixá-lo em seu ponto de articulação normal. Esse banco
pesado dificilmente poderia ser transportado nas estradas precárias da Grécia, o
que revelou a urbanização da cirurgia ortopédica.61 O autor de Articulações
recomendava o uso desses instrumentos, mas tinha sérias dúvidas sobre o
procedimento de tração. Com o objetivo de reduzir a curvatura da coluna
vertebral o paciente era amarrado de cabeça para baixo em uma escada, que, em
seguida, era jogada perpendicularmente de um telhado alto, com a ajuda de
assistentes ou com uma roldana, porém, era uma técnica pesada e cara. Esse
procedimento atraía multidões ansiosas para assistir ao espetáculo e sem
preocupação com o resultado. Mas, observou o autor com amargura, nunca vira
benefício nesse tipo de tratamento, que não passava de um mero
charlatanismo.62 Um alto nível semelhante de especialização foi mencionado
em Head Wounds, no qual o autor revelou o conhecimento de uma ampla gama
de fraturas no crânio e da técnica cirúrgica da trepanação (para remover osso do
cérebro). O autor conhecia os ferimentos típicos causados por diversas armas e
instrumentos, assim como os perigos se o golpe atingisse a cabeça na frente, ao
lado ou atrás.63 Ele cobria o crânio com uma solução preta, deixava absorver e
depois a limpava para ver as linhas da fratura, um método inteligente e eficaz
quando a extensão do ferimento fosse difícil de avaliar, porém não se sabe se
essa técnica foi de sua autoria.64 Mas, embora fosse experiente, o autor
considerava seus leitores médicos menos eficientes em operar na prática e
escolheu trabalhar junto com um especialista em trepanação e cirurgia de
ferimentos.65 Seu leitor seria capaz de realizar diagnósticos, de fazer curativos e
cataplasmas, mas não saberia fazer uma cirurgia com facilidade. Portanto, o
tratamento principal dele consistiria na recomendação de uma dieta alimentar e
na prescrição de remédios. A insistência na alimentação como um fator
terapêutico essencial era uma característica específica da medicina grega.66 Na
verdade, o autor de Medicina antiga sugeriu que a medicina começara na
cozinha e desenvolvera-se por um longo período com uma observação cuidadosa
das reações a determinadas comidas, apesar de a arte da medicina atual ser bem
mais abrangente.67 A forma inicial da dieta alimentar consistia em grande parte
na administração de alimentos em uma hierarquia de líquidos, mingau e
alimentos sólidos de acordo com o grau de gravidade perceptível da doença, e
existiam indícios de que na medicina da Babilônia e do Egito o paciente no
início ficava em jejum ou com uma dieta bem leve.68 Porém, as noções
terapêuticas da medicina desenvolveram-se muito além dessas ideias iniciais em
meados ou final do século V a.C.69 Platão associava esse desenvolvimento das
noções terapêuticas da medicina a Heródico de Selímbria, cuja experiência como
treinador de ginástica levou-o a aliar a comida ao exercício físico, com o
objetivo de melhorar e preservar a saúde.70 É possível que Heródico de
Selímbria tenha sido citado no papiro de Anonymus Londinensis, mas de
qualquer modo Heródico conhecia as ideias filosóficas e médicas
contemporâneas e, portanto, seria capaz de articulá-las de uma maneira aceitável
para intelectuais.71 Platão desaprovou essa “invenção moderna da medicina
cozida em banho-maria”, mas muitos autores logo seguiram essa moda, inclusive
Demócrito.72 Na realidade, autores posteriores acreditavam que Hipócrates fora
aluno de Heródico e que desenvolvera suas ideias.73 Sem dúvida, os textos
preservados no Corpus Hippocraticum como Regime, Nutrição e Regime em
doenças agudas valorizavam a alimentação como um procedimento seguro para
tratar uma doença e recomendavam que os médicos a adotassem desde o início
da doença, como parte do processo terapêutico.74 O autor de A arte comentou
que o médico capaz de curar uma doença com uma dieta alimentar era a prova
mais definitiva de que a medicina era uma arte, porque equilibrar elementos
conflitantes era uma tarefa muito difícil.75 Mas, apesar de a esfera de ação da
dieta alimentar ter mudado muito durante a vida de Hipócrates, as diversas
posições teóricas assumidas pelos autores desses tratados sugeriram precaução
em atribuir essa mudança exclusivamente à influência de Hipócrates e, ainda
mais importante, em usar essa evidência para provar que ele estudara com
Heródico. Porém, as novas teorias alimentares também exigiam uma
compreensão da alimentação em um contexto muito maior do que antes. Agora,
abrangia mais do que os alimentos em si e, na verdade, envolvia quase todos os
aspectos do estilo de vida de uma pessoa, inclusive os sonhos.76 Essa
abrangência criava regras detalhadas e complexas pelas quais uma pessoa
pautaria sua vida ao longo do ano.77 As novas teorias alimentares exigiam um
amplo conhecimento da cosmologia e da medicina para serem aplicadas de
maneira adequada e seus requisitos para privilegiar a saúde acima de tudo só
poderiam ser postos em prática por uma classe social rica e com tempo de lazer,
embora muitos defendessem a ideia de que todos poderiam segui-los.78 O
médico ou seu paciente precisavam conhecer em detalhes como os alimentos
funcionavam e como se encaixavam em um cenário maior. Nesse sentido, o
autor de Regime fez uma longa lista de alimentos, que em sua opinião esfriava
ou aquecia o corpo, que eram de fácil digestão ou causavam flatulência. No
Livro 3 descreveu as ocasiões em que a dieta poderia ser usada para tratar de
doenças provocadas por um excesso de exercício e, do mesmo modo, como o
exercício ajudaria a corrigir os erros de dietas inapropriadas.79 As teorias
terapêuticas da dieta alimentar ainda faziam parte do estudo da medicina, da
cirurgia e da farmacologia, mas logo se tornariam uma disciplina independente.
Os princípios terapêuticos subjacentes ao uso da dieta eram os mesmos da
flebotomia e dos remédios: às vezes uma substância era chamada de alimento ou
de remédio quase sempre por razões subjetivas. Como um organismo doente
estava de certa forma em desequilíbrio, era preciso equilibrá-lo retirando o
excesso ou suprindo as deficiências. A cura era obtida com um tratamento
alopático, que provocava efeitos contrários aos da doença.80 Por esse motivo, as
listas de qualidades dos alimentos do autor de Regime e os inumeráveis
“poderes” atribuídos às comidas em Medicina antiga são muito importantes.81
Os efeitos dos remédios só contribuíam para a cura da doença, quando ajudavam
a restabelecer o equilíbrio do organismo associados a outras terapias específicas
para o paciente. A frase convencional “Se você quiser usar” ou “Pode usar” e a
recomendação de que o paciente poderia recusar uma terapia por causa dos
efeitos colaterais dava muita liberdade ao médico para decidir os remédios que
iria receitar. Esse relativismo diferenciava-se do tratamento oferecido pelos
“dogmáticos” ou pelos “farmacologistas”, que receitavam remédios para uma
doença sem a distinção da idade ou do sexo do paciente. Em razão dessa não
diferenciação da especificidade do doente, a palavra em grego para fármaco,
phármakon, tinha o sentido ambíguo de um medicamento que poderia matar ou
curar.82 No entanto, a farmacologia hipocrática tem vários problemas de
interpretação.83 Esses problemas não eram causados pela dificuldade de
identificar os nomes de mais de 380 plantas e um número bem menor de
substâncias animais e minerais citados no Corpus, porque a maioria poderia ser
classificada taxonomicamente, pelo menos de uma maneira genérica.84 Os
efeitos dessas substâncias também eram conhecidos: a escamônea, por exemplo,
tinha um efeito purgativo, a casca da romã era adstringente, o aneto combatia os
gases intestinais, “relaxava o estômago”.85 O suco de pepino-do-diabo continha
elaterina, um poderoso purgativo, que também poderia ser receitado para
acelerar o parto ou como um abortífero.86 Mas às vezes a adaptação da prática
antiga ao uso moderno de ervas medicinais era menos precisa. Algumas
substâncias nem sempre eram receitadas com os mesmos objetivos que um
herborista moderno recomendaria: o óleo de linhaça, um laxativo conhecido, era
recomendado no Corpus Hippocraticum como uma infusão para “sufocação
uterina”, como um enema para “doenças uterinas” e como unguento para
lubrificar o orifício uterino, com a finalidade de combater a esterilidade.87 Em
nenhum desses casos o óleo de linhaça produziu o efeito desejado: talvez
lubrificasse ou amolecesse o orifício uterino, mas não curaria a esterilidade ou
doenças uterinas. Muitas das substâncias animais recomendadas também não
causariam um benefício direto ou de longo prazo: a ingestão do fígado de um
bode para curar a menorragia restauraria os níveis de ferro e diminuiria a
anemia, mas não imediatamente.88 Essas recomendações eram muito
importantes no tratamento de doenças femininas, porque os tratados de
ginecologia continham uma longa série de remédios para amenorreia e outras
enfermidades uterinas.89 Nesse aspecto, esses tratados eram muito diferentes de
outros tratados de medicina, nos quais a lista de doenças e de seus tratamentos
era extremamente limitada. O tratamento farmacológico das doenças femininas
também divergia muito do tratamento de doenças masculinas, que continham
ingredientes bem mais exóticos chamados em alemão Dreckapothek –
substâncias repugnantes, com frequência excrementos. Enquanto o valor de
muitos remédios citados nos tratados não ginecológicos poderia ser comprovado
com a ajuda da farmacognosia moderna, o mesmo procedimento não se aplicava
aos tratamentos das doenças femininas. Nesse caso, a função simbólica
prevalecia: o mesmo tipo de planta usado em um ritual de purificação, como a
cebola-albarrã e o agnocasto, fumigavam e limpavam o útero. O esterco, uma
matéria orgânica poluente, também tinha um poder mágico e era receitado para
eliminar o fluxo menstrual poluente.90 Até mesmo o pepino-do-diabo, cujas
propriedades purgativas eram bem conhecidas, também era usado como
emenagogo ou como oxitócico por razões simbólicas e práticas: sua capacidade
de expelir sementes o tornava uma planta apropriada para interromper uma
gravidez indesejada, expulsar secundinas ou provocar a menstruação.91 As
substâncias com fins terapêuticos eram usadas por razões que não seriam
aprovadas por um farmacologista moderno, mas, tendo em vista seu efeito de
placebo, mesmo as substâncias que eram, em termos atuais, inócuas quanto a
efeitos farmacológicos poderiam ser importantes se receitadas (e aceitas) no
meio ambiente correto.92 A noção antropológica no mundo antigo do ato de
curar referia-se, em vez de diagnóstico e tratamento, a rituais e expectativas de
ambas as partes e, em especial, à associação de medicamentos e feitiços.93 As
ideias modernas de efeitos químicos, embora não possam ser desprezadas, pouco
revelaram sobre a eficácia das curas e ainda menos a respeito dos méritos
relativos das diversas sugestões para curar a mesma doença. Colocar uma garrafa
com água quente na testa de uma pessoa era um remédio caseiro corriqueiro para
a dor de cabeça, porém, a flebotomia e a cauterização poderiam também
ajudar.94 Outros tratamentos com remédios associavam-se a um raciocínio
simbólico. Dores lombares (atribuídas ao excesso) poderiam ser curadas,
segundo Prognoses de Cós, com doses de heléboro, um violento emético: o
paciente vomitaria com frequência uma enorme quantidade de uma “baba
espumosa”, apropriada para a região próxima à genitália.95 Mas mesmo quando
uma planta ou um mineral tinha valor terapêutico havia muitas variáveis, que
reduziam seu efeito. Como o autor de Epidemias 2 comentou de maneira
enigmática: Conhecemos as características das substâncias medicinais e sua
origem. Nem todas são boas, mas características diferentes são boas em
circunstâncias diferentes. Em lugares diferentes as substâncias medicinais foram
reunidas mais cedo ou mais tarde; as preparações também divergiam quanto à
maneira de secá-las, esmagá-las ou fervê-las e assim por diante + (omiti a
maioria das coisas) +; e divergiam em relação a cada pessoa, à doença, ao
estágio da doença, à idade, à aparência, à dieta alimentar, à estação do ano e ao
seu desenvolvimento, entre outros fatores.96 Esse texto mostrou como um
médico precisava ter um conhecimento específico para receitar com precisão um
medicamento direcionado ao paciente, além da percepção de que poderia existir
muitos obstáculos para atingir seu objetivo. Essa percepção das limitações do
tratamento com remédios explicava diversas características da medicina
hipocrática. Em geral, o médico usava várias categorias de substâncias –
purgativos, agentes cauterizantes, emolientes, entre outras – que ofereciam uma
ampla gama de alternativas específicas de tratamento.97 A dosagem raramente
era precisa: “como e quando necessário” era uma recomendação habitual e a
quantidade a ser aplicada nem sempre poderia ser expressa em um sistema
numérico moderno de gramas e grãos.98 O tamanho de um “grão” variava tanto
quanto a quantidade da mistura de óleo e vinho na qual o carbonato de sódio, o
castóreo, o sagapeno e o alcatrão misturavam-se antes de ser usada para expulsar
secundinas após um parto complicado.99 Mas dois pontos destacaram-se aqui.
As receitas antigas de remédios no Corpus sugeriram que havia uma margem de
erro significativa e que os tratamentos para diminuir essa margem eram
considerados muito perigosos, mesmo quando ainda eram mencionados na
literatura. O tratamento recomendado por Petron(as) para combater a febre (ver
p. 118-119), por exemplo, foi criticado por autoridades posteriores, embora
continuassem a registrá-lo.100 A maioria das ervas medicinais usadas, com
poucas exceções como o heléboro, não tinha uma ação tóxica imediata, e seus
efeitos colaterais surgiam aos poucos depois de um tratamento prolongado.101
Em doenças graves, o foco de interesse dos médicos hipocráticos, a avaliação
desses efeitos colaterais era desnecessária e irrelevante, porque o paciente teria
morrido ou se recuperara bem antes que se manifestassem. No entanto, os
médicos tinham consciência da possibilidade de fracasso e do desastre
iatrogênico, qualquer que fosse a causa, e às vezes expunham seus erros à
censura.102 Mas até que ponto a função do médico estendia-se à comunidade
livre, escrava e não cidadã de uma cidade grega? Apesar da distinção teórica
feita por Platão em Leis de médicos escravos e livres, que tratavam seus próprios
grupos, ele também admitia que os médicos livres por nascença tratassem
escravos, uma situação confirmada nos textos do Corpus.103 Os casos relatados
em Epidemias mencionaram a história de um escravo recém-comprado e outro
relato no qual o paciente fora marcado com ferro em brasa por ser um
fugitivo.104 Sócrates, segundo Xenofonte, pensava que um proprietário de
escravos chamaria um médico sempre que um dos escravos adoecesse.105
Epidemias também relatou casos em que membros de todas as classes sociais
foram tratados por um médico, desde um oleiro, um marceneiro, um vinhateiro,
um marinheiro ou o capitão de um navio, ou o magistrado local.106 Nos
(últimos) textos do Corpus referentes aos pagamentos de serviços médicos,
quando os pacientes mais humildes só podiam pagar uma quantia pequena, ou
em casos em que não tinham como remunerar o tratamento, o médico os tratava
de graça, porque eram gentis, generosos e amavam sua arte.107 Em Epidemias
as mulheres eram tratadas por médicos homens, e os tratados de ginecologia do
Corpus foram quase com certeza escritos por homens. O autor de Doenças 4, que
abordou a digestão, revelou ser também autor de Geração e A natureza da
criança, e foi a fonte de muitas informações contidas em Doenças das mulheres
1.108 Ao mesmo tempo, havia uma relutância compreensível da parte das
mulheres de falar de problemas íntimos diretamente com o médico.109 Na peça
Hipólito de Eurípedes a enfermeira de Fedra faz a distinção entre uma
enfermidade que Fedra deveria discutir com o médico e uma doença mais
especificamente feminina, que ela e as outras mulheres do coro poderiam
ajudar.110 Porém, a existência de médicas e o que esse fato significaria no
contexto dos séculos V e IV na Grécia são temas extremamente controvertidos.
A história da primeira obstetrix, Hagnodike, citada pelo autor romano Higino em
150 d.C., é um mito etiológico óbvio.111 De acordo com Higino, não havia
obstetras em Atenas, porque as mulheres e as escravas não podiam aprender a
arte da medicina, até que Hagnodike, “uma aluna de Herófilo”, disfarçou-se de
homem. Quando mais tarde foi julgada por seu crime e ameaçada a ser
condenada à morte, foi salva pelos protestos das mães atenienses a quem havia
ajudado. Os maridos no areópago apiedaram-se de sua sorte e a lei mudou.112
As dificuldades cronológicas, legais e sociais no relato de Higino, impedem que
seu relato seja considerado um fato histórico. Além disso, era irrelevante o fato
de Hagnodike ter estudado com um professor famoso em uma sociedade na qual,
assim como em outros lugares, ajudar nos partos não era uma ocupação de
tempo integral e essas habilidades poderiam ser adquiridas pela presença,
observação e experiência sem necessidade de estudos específicos. O comentário
mais fundamentado de Platão de que as mulheres idosas, com filhos e sem idade
mais de procriar, eram as únicas parteiras, maiai, no final do século V em
Atenas, e que tinham um conhecimento especial de ervas, cânticos e sortilégios
para ajudar nos partos ou fazer abortos.113 A segunda parte de seu comentário é,
sem dúvida, verdadeira, mas a primeira não é consistente com os relatos do
Corpus Hippocraticum. Havia muitas evidências de médicos que faziam partos
(e não só em casos difíceis, porque relataram experiências com gestações
“normais” para orientar no diagnóstico de qualquer anormalidade), assim como
em exames vaginais.114 Mas os médicos faziam uso regular do conhecimento e
da experiência de mulheres como Fanostrate, “maia e médica”, cujo mausoléu
datado do final do século IV era uma obra-prima de elegância e um sinal
evidente de riqueza.115 A experiência de Phanostrate como “médico” (iatros, a
mesma designação de um médico do sexo masculino) foi vista pelos construtores
do mausoléu como uma extensão de sua atuação como maia (embora seja um
argumento duvidoso). É também plausível pensar que outras mulheres que
prestavam atendimento “médico” a pacientes tinham outras funções além de
ajudar em partos, como atendimento a mulheres e crianças. Assim como os
médicos do sexo masculino, as mulheres exerciam diversas atividades desde
parteiras em tempo parcial, como também conselheiras nos primeiros estágios da
gravidez ou tratando de várias doenças, que não se limitavam a mulheres e a
crianças. A esposa na peça Administração do lar de Xenofonte tinha a tarefa de
cuidar da saúde e do tratamento médico dos escravos do marido e,
provavelmente, não fazia distinção entre eles quanto ao gênero.116 A
diferenciação entre um maia e um “médico” era uma questão pessoal, porque
não havia leis que definiam as duas profissões. No entanto, é mais difícil definir
o âmbito de ação de Fanostrate referente ao tratamento médico exclusivo de
mulheres, crianças e membros de uma família. É provável que os homens
também a procurassem, porque evidências romanas e helenísticas posteriores
sugeriram que algumas mulheres também tratavam de homens, embora as
pressões sociais e as expectativas restringissem o número de pacientes
masculinos.117 A esposa, na peça de Xenofonte, e talvez muitas outras, tinha a
responsabilidade de cuidar da saúde de todos os membros da família e seria a
primeira a ser chamada para tratar de pequenos ferimentos e doenças “normais”.
Mais tarde houve também referências a mulheres que faziam e vendiam
remédios em público, não só para “doenças femininas”. Se a dona de casa da
peça de Xenofonte soubesse ler, com certeza extrairia informações sobre os
procedimentos terapêuticos descritos e discutidos nos tratados do Corpus
Hippocraticum.118 Ela usaria em casa muitas de suas analogias, como a dos
fluidos corporais borbulhantes, congelados e misturados como se estivessem em
uma cozinha;119 a analogia do médico, como um bom cozinheiro, que sabia o
momento crucial de uma crise, em que deveria intervir; dos procedimentos do
tratamento em parte escritos, mas também de conhecimentos empíricos
aplicados à família; e das miríades de acontecimentos negativos do fato de lidar
com um material refratário. A personagem de Xenofonte, assim como muitos
escritores do Corpus, teria uma expectativa otimista de que os eventos
aconteceriam de acordo com um padrão regular, e exercitaria todos os seus
sentidos para administrar bem a casa. A grande diversidade de práticas
terapêuticas descritas nos tratados do Corpus é surpreendente, assim como as
explicações teóricas e a liberdade concedida ao médico de escolher entre as
muitas sugestões. Embora houvesse uma hierarquia de tratamentos preferidos,
não existiam ainda as estratificações rígidas posteriores. A dieta alimentar ainda
não ocupava o lugar central nos tratamentos terapêuticos como ocuparia um
século ou mais depois, e a decisão de fazer ou não uma cirurgia dependia da
consciência individual e da habilidade do médico com instrumentos cirúrgicos. A
filantropia e uma margem generosa de segurança estimularam o médico a
intervir mesmo quando não poderia oferecer nenhum benefício duradouro. Mas,
acima de tudo, havia a percepção da individualidade do paciente. Para muitos
autores a parte mais difícil da medicina referia-se à capacidade de julgar com
precisão o caso específico de cada paciente, de distinguir a singularidade em
meio a uma função genérica e, a partir dessas observações, o médico escolheria a
terapia mais adequada a cada paciente. Essa especificidade também era resultado
da reação diferente dos seres humanos em contraste com as sugestões apontadas
nos livros. Além disso, mesmo o melhor tratamento poderia fracassar por causa
de erros ou negligência do paciente. Os escritores hipocráticos sabiam que o
sucesso do atendimento médico dependia da qualidade do tratamento e da
qualidade do paciente.

7 A Religião e a Medicina nos Séculos V e IV na Grécia Em uma colina distante


no sul da Grécia localizava-se um dos mais belos templos antigos. O templo de
Apolo Epicuro, em Bassae, foi construído pelo arquiteto Ictinos, com recursos
financeiros da pequena cidade de Figaleia, em torno de 425 a.C.1 O custo da
construção desse templo, desde o transporte do mármore a uma distância
considerável no pico da colina, as esculturas e a decoração sublime, foi enorme,
como previsível, muito mais do que os recursos disponíveis de uma cidade
insignificante em meio à guerra. Pausânias, nosso antigo informante, associou o
culto a Apolo Epicuro (o Portador da Ajuda) à adoração em Atenas na mesma
época a Apolo Alexikakos (o Guardião para Afastar o Mal) para eliminar a
grande peste.2 A intuição de Pausânias, não seus argumentos, era sólida.3 A
peste, como o historiador Tucídides observara, teve um impacto tanto na religião
quanto na medicina. Assim como o doente pedia ajuda à divindade, os líderes da
comunidade afetada pela epidemia também recorriam à ajuda divina ou a
conselhos. Em 426, quando Atenas foi mais uma vez assolada pela peste, as
autoridades pediram conselho a um oráculo e purificaram a ilha de Delos, local
do santuário de Apolo, com a retirada de todos os cadáveres, a proibição de
futuros funerais na ilha e a promoção de um festival há muito tempo decadente
em homenagem a Apolo e Ártemis.4 Na mesma época, o santuário das filhas de
Leos, que salvara Atenas há séculos de uma peste, foi reformado após anos de
abandono. Nos arredores da cidade, construíram um santuário no burgo de
Melite em homenagem a Hércules Alexikakos (o Guardião para Afastar o Mal),
cuja estátua foi esculpida por Ageladas, um dos escultores mais famosos da
época.5 E, uma década depois, surgiu em Atenas um novo deus com poder de
cura, Asclépio.6-7 O florescimento do culto a Asclépio no final do século V a.C.
significou um importante desenvolvimento na história da medicina, com a
elaboração de teorias médicas que mais tarde foram incluídas no Corpus
Hippocraticum. Asclépio foi o deus da cura par excellence, e os métodos usados
para promover curas estimularam seu culto, sobretudo quanto à incubação (a
busca de visões durante o sono nos templos), considerada com frequência pelos
historiadores um elemento típico de todas as religiões de cura na antiga Grécia e
em Roma. Mas como discutiremos neste capítulo, seria errôneo classificar esse
desenvolvimento como uma reafirmação conservadora de valores tradicionais,
em um mundo onde as explicações religiosas para as doenças foram substituídas
por outras, que enfatizavam a ligação com o mundo natural. A relação entre a
cura religiosa e a secular e entre seus praticantes é complexa demais para
demonstrar a oposição entre a religião e a medicina, porque, como já vimos,
Asclépio e sua família eram descritos na literatura como curandeiros seculares. E
se Ludwig Edelstein estiver certo em suas especulações, eles ascenderam à
posição de divindade justamente por causa das habilidades de curar pessoas.8 As
primeiras histórias a respeito de Asclépio são confusas e conflitantes. Homero
mencionou o herói Asclépio e seus dois filhos, Podalírio e Machaon, na Ilíada, e
referiu-se aos irmãos como governantes das cidades de Tricca, Ithome e
Oechalia.9 Hesíodo, um escritor contemporâneo, e o autor um pouco posterior
dos 16 hinos dos Hinos Homéricos, também associaram Asclépio à Tessália,
onde Tricca localizava-se.10 Mas em épocas históricas Ithome e Oechalia eram
lugares muito conhecidos em Messênia, ao sul do Peloponeso, e uma tradição
sem data precisa dizia que a mãe de Macaão era de Messênia, ou talvez fosse
também mãe de Asclépio.11 Existia um grande santuário de cura ao lado do
túmulo de Machaon, em Gerenia, e um santuário dedicado aos seus filhos em
Fáris, outra cidade de Messênia.12 Estudiosos antigos e modernos tentaram
solucionar essa divergência, alguns com a descoberta de uma antiga Tricca em
Messênia, outros com a transferência dos dois nomes para Tessália, ou com a
multiplicação do número de divindades chamadas Asclépio. Nenhuma dessas
soluções apresentou um resultado satisfatório, e seria mais prudente presumir
que a lenda desenvolveu-se no período arcaico em dois lugares diferentes.13
Existia ainda uma terceira tradição que associou Asclépio à Arcádia no norte do
Peloponeso, onde teria sido criado como uma criança abandonada pelos pais.14
Essa questão não foi solucionada nem com a intervenção divina, porque, apesar
de um poema que circulou na Antiguidade tardia afirmar que Asclépio dissera
que nascera em Tricca, o oráculo de Apolo mencionara séculos antes que,
embora sua mãe Coronis fosse da Tessália, ele nascera em Epidauro. Essa
decisão resultou da dúvida de um arcadiano e foi formulada provavelmente logo
depois de 369 a.C., quando Messênia passou a ser uma cidade-Estado após
décadas de dominação de Esparta.15 Embora a decisão de Apolo tenha agradado
a maioria dos gregos, que agora conheciam bem Epidauro como o maior centro
do culto a Asclépio, as antigas tradições continuaram, em especial em Messênia,
onde o santuário de Asclépio situava-se no meio da cidade como se ele fosse um
cidadão e não um forasteiro.16 O oráculo de Delfos escolheu Epidauro como
centro do culto a Asclépio, em resposta a uma nova situação que se desenvolvera
ao longo de meio século ou mais atrás. A cidade de Epidauro não fora
mencionada nas primeiras versões das histórias a respeito de Asclépio e o relato
da lenda de Epidauro feito pelo viajante romano Pausânias tem todos os sinais de
uma versão posterior para explicar por que Coronis, filha de um rei da Tessália,
daria à luz um filho a centenas de quilômetros de distância de seu país natal.17
Segundo o geógrafo romano Estrabão, Tricca foi o primeiro e o mais famoso
templo de Asclépio, e Epidauro foi apenas um célebre santuário de cura.18 Mas,
embora haja indícios de uma expansão anterior do culto, talvez associado a
outros cultos de cura – Estrabão mencionou um santuário de Asclépio na cidade
de Gerenia, em Messênia. Herondas, um escritor e mímico, que viveu em torno
de 275 a.C., disse que Asclépio viera para Cós direto de Tricca e que o santuário
de Tricca tinha um foco na clientela local.19 Com base nessa evidência, o culto
inicial a Asclépio na Tessália, embora voltado para a cura, permaneceu em
grande parte em um contexto local. Por outro lado, a partir de meados do século
V o culto em Epidauro expandiu-se, com óbvios benefícios para a cidade e, em
consequência, o principal santuário do deus enriqueceu ainda mais. Trasímedes
de Paros esculpiu a imagem do deus em marfim e ouro em torno de 375 a.C. e
com metade do tamanho da escultura de Zeus em Atenas. O prédio circular em
mármore de Tholos abrigou duas pinturas do famoso pintor Pausias. Por volta de
350 a.C. Epidauro era tão rica que contratou o arquiteto Policleto, construtor de
Tholos, para projetar, na opinião de Pausânias, o teatro mais elegante e o maior
do mundo antigo que conhecia.20 Os jogos em homenagem ao deus, com
espetáculos musicais e dramáticos, e competições de atletismo, atraíam
competidores da Grécia inteira.21 Atenas e Ática foram as fontes mais
detalhadas da disseminação do culto a Asclépio. O santuário de Zea no porto do
Pireu foi construído em torno de 420 a.C., porque o plano de Bdelicleon na peça
de Aristófanes, Vespas, de enviar Filocleon à ilha de Egina a fim de ser curado
se passa em 422 a.C., quando a peça foi encenada pela primeira vez. Além disso,
esse templo era o mais perto de sua casa.22 Não se conhece a data da criação do
santuário de Egina, mas é provável que fosse relativamente recente, ou se fosse
muito antigo, a data era irrelevante porque o culto difundiu-se até Atenas. O
santuário de Asclépio em Atenas foi criado em 420/419 a.C. e pouco depois
fundaram o santuário de Higeia, ao sul da Acrópoles, embora o prédio e o
projeto de um pequeno bosque só tenham sido concluídos uns seis anos
depois.23 Cidadãos notáveis da cidade foram os primeiros a apoiar o novo culto,
como o dramaturgo Sófocles, que compôs um famoso peã em homenagem ao
deus. Segundo a tradição popular, Sófocles introduziu o culto em Atenas e foi o
anfitrião do deus na cidade.24 Em 399 a.C. Sócrates disse pouco antes de morrer
diante de seus amigos que ainda devia um galo a Asclépio. Apesar das razões e
do sentido obscuros da frase, não causou surpresa, como se fosse uma oferenda
normal de Sócrates ao deus.25 Embora o entusiasmo inicial em introduzir o
culto de Asclépio em Atenas tenha sido ostensivamente uma iniciativa de
Telêmaco, um cidadão comum, o envolvimento civil foi evidente desde o
início.26 A decisão quanto ao local do novo santuário exigiu a aprovação oficial
diante de um protesto dos arautos da cidade, e apesar da primeira evidência de
um controle oficial do santuário só ter se revelado na década de 340 a.C., esse
controle foi exercido muito antes.27 Atenas não foi a única cidade receptiva ao
novo deus e aos diversos membros de sua família como Higeia, Panacea e
Epione. Em meados do século IV o culto ao novo deus estendeu-se a várias
partes do mundo de língua grega, de Cirene, na costa da África, à ilha de Tasos,
ao norte do mar Egeu, à Ásia Menor, no Oriente, e à Sicília, no Ocidente.28
Associações de adoradores de Asclépio surgiram no mundo grego nos séculos IV
ou III a.C. e continuaram a existir até o século III d.C.29 Nenhuma outra
divindade na Grécia clássica fez uma transição tão rápida e eficaz de um culto
local para um deus pan-helênico. É também surpreendente a maneira com a qual
o culto a Asclépio coexistiu com outros cultos e como os suplantou. Em Atenas
criou vínculos com os ritos de iniciação dos Mistérios de Elêusis antes de chegar
à cidade. O deus parou em Elêusis no caminho para Atenas a fim de ser iniciado
nos Mistérios de Elêusis e, talvez em 400 a.C., um festival chamado Epidauria
foi incluído no festival dos Mistérios.30 Os adoradores de Asclépio associaram-
se a duas divindades de cura atenienses, Dexion e Amynos; o fato de já existir
um santuário de Amynos em Atenas incentivou a construção do santuário de
Asclépio ao lado.31 Mas em outros lugares essa coabitação ou cooperação foi o
prelúdio da anexação. O culto a Atena Hígia na Acrópole de Atenas, por
exemplo, cessou em torno de 420 a.C.32 Em Creta, o santuário de Asclépio em
Lebena fora dedicado antes a Aqueloo e às Ninfas e, é possível que antes o
prédio do grande templo de Cós no século IV fizesse parte do templo de Apolo
Ciparisso, ou ficasse próximo a ele.33 Em Gortina, na Arcádia, cujos santuário e
história mostraram o desenvolvimento do culto a Asclépio, a construção do
santuário do deus começou no século IV em uma área identificada como um
local de cura. Arqueólogos encontraram perto do templo um prédio mais antigo,
provavelmente datado do século V, que fora dedicado às divindades da fonte
medicinal.34 Em Epidauro, o santuário de Apolo Maleatas, a divindade original
da cidade, situava-se em uma colina próxima ao santuário de Asclépio. Mas em
500 a.C. o culto a Asclépio predominou.35 O mesmo padrão das funções de cura
do filho de Apolo em substituição ao pai foi visto em Corinto, Eritrea (na costa
da Ásia Menor) e na ilha de Paros.36 Temos apenas uma ideia muita vaga do
motivo, da época e de como essa substituição ocorreu; embora o culto a Asclépio
em Corinto possa ser um dos mais antigos cultos conhecidos, datado do início do
século V, em Eritrea começou um século depois, e em Paros ainda mais tarde.
No entanto, não se deve exagerar a predominância de Asclépio. Em primeiro
lugar, Asclépio foi um recém-chegado em comparação com outras divindades,
como demonstram seus templos. Quase não havia templos nas principais áreas
religiosas das cidades. Às vezes, no Pireu e em Delos, localizavam-se à beira-
mar; em outros lugares situavam-se na margem de um rio fora das muralhas da
cidade, ou a quilômetros de distância. Os grandes templos de Cós e Pérgamo
ficavam distantes do centro das cidades, mas situavam-se em meio a bosques
lindos e tinham uma vista panorâmica. O templo de Epidauro ficava ainda mais
longe da cidade e os poucos turistas que visitam as ruínas do santuário conhecem
a existência da cidade, ou sabem que podem viajar 10 a 11 quilômetros para vê-
la. O isolamento dos templos de Asclépio levou Plutarco a perguntar por que
haviam sido construídos em lugares tão remotos e sugeriu que os locais tinham
sido escolhidos por razões de saúde, com o objetivo de isolar os doentes dos
moradores da cidade.37 Só em Messênia havia um grande templo de Asclépio
no centro religioso da cidade cercado por instituições públicas. Mas nessa
cidade, como já vimos (ver p. 170-172), o deus era um concidadão, que
supostamente nascera na cidade e era homenageado pelos outros cidadãos no
centro da cidade reconstruída. Seu papel era de um deus que protegia os
cidadãos locais, em vez de um curandeiro universal, o que justificava a ausência
de prédios dedicados especificamente à cura de doentes.38 Asclépio coexistiu
com muitos cultos de divindades com poder de cura. Apolo, em especial, nunca
perdeu suas funções de deus da saúde e da cura. Os habitantes de Figaleia
construíram um novo templo em homenagem a Apolo, o Portador da Ajuda,
embora já houvesse uma tradição de adoração a Asclépio nessa região da
Arcádia.39 O culto a Apolo Iatros (Médico) predominou na região do mar Negro
nas colônias fundadas em Mileto, antiga cidade jônica da Ásia Menor.40 Na
verdade, quase ao mesmo tempo da expansão do culto a Asclépio no continente
grego, o culto a Apolo Médico foi introduzido em Roma em 433 a.C.41 Mais ao
sul, na Itália, o culto a Apolo Oulios (uma palavra de origem duvidosa, mas com
certeza vinculada a assuntos médicos) floresceu, sobretudo em Eleia/Velia, onde
acreditavam que o filósofo Parmênides tinha descendência divina, e diversos
médicos chamavam-se Oulis.42 Na Ática várias divindades de cura continuaram
a atrair suplicantes. Em 348 o oráculo de Apolo em Delfos recomendou aos
atenienses que fizessem sacrifícios a Zeus, “rei dos deuses”, Hércules e Apolo o
Protetor, pedindo-lhes proteção contra as doenças.43 Meninas e jovens faziam
votos a Ártemis, irmã de Apolo, em Brauron, enquanto um personagem obscuro
chamado Herói Curandeiro era venerado em diversos santuários em Atenas e ao
redor de Ática, Maratona, Ramnous e Elêusis.44 A existência dessa figura
obscura baseava-se em conjecturas, porque o chamaram de Amphiloque,
Aristômaco, Oresinius e Anfiarau. No entanto, Anfiarau tinha um santuário, com
salas de incubação, a nordeste da Ática, perto de Oropus. A proximidade e o
fácil acesso a esse santuário impediram que o culto a Asclépio se disseminasse
na Boécia.45 Embora os deuses locais com frequência se associassem a Asclépio
e à sua família, é importante lembrar que qualquer divindade tinha o poder de
proteger e curar e, portanto, as pessoas doentes tinham uma ampla escolha de
divindades a quem recorrer. O autor de Regimen mencionou Zeus, Atena, Apolo,
Hermes, a Terra, o Sol e os heróis como curandeiros, que poderiam ser evocados
para prevenir doenças.

Figura 7.1 Uma oferenda votiva feita a Ilitia, a deusa grega dos partos, Paros, IG
12,5, 193. Londres, Science Museum, A163983. Fotografia © Science
Museum/Science & Society Picture Library. Porém a expansão expressiva do
culto de Asclépio e de sua família no final do século V foi surpreendente, assim
como a grande fortuna recolhida em alguns de seus santuários.47 Esse
desenvolvimento foi estimulado por uma das autoridades religiosas mais
importantes da Grécia, o oráculo de Delfos, e significou uma ruptura em muitos
cultos de cura locais. Embora a devastação causada pela peste de Atenas possa
ser considerada um elemento catalisador, a expansão do culto a Asclépio não se
limitou a esse fato, porque houve pestes antes e ainda haveria.48 É possível
também atribuir o desenvolvimento do culto à propaganda eficiente em
Epidauro, assim como ao espírito competitivo entre as cidades que se
rivalizaram na criação de santuários. No entanto, apesar de importantes esses
fatos não são suficientes para explicar o fenômeno da súbita expansão do culto a
Asclépio.49 Acima de tudo, não podemos subestimar o efeito das supostas curas
atribuídas a um deus, não só nos pacientes, como também nas pessoas que os
haviam visto recuperar a saúde, ou que leram seus testemunhos escritos nas
tabuletas penduradas nas paredes do santuário. Apesar de as inscrições gravadas
nas paredes dos santuários em Epidauro serem as mais numerosas, elas
representaram apenas uma pequena seleção de relatos feitos aos sacerdotes e
guardiães, em uma longa sucessão de histórias.50 Esses testemunhos tinham
como objetivo estimular, convencer e advertir. A saúde era obtida por intermédio
do deus, em circunstâncias tão inacreditáveis que mesmo os crentes riam ao
pensar na situação.51 O deus, assim como outros deuses, poderia punir quem o
ofendesse ou ao seu santuário, mas também curava aqueles a quem havia
punido.52 A maioria das inscrições relatava casos de doenças crônicas curadas
pela intervenção divina: paralisia, manchas no rosto, cegueira, “infestação de
piolhos”, intumescências e infertilidade foram casos citados, mas uma inscrição
contou a história de uma taça quebrada que o deus consertara e a narrativa da
descoberta de uma criança que se perdera.53 Asclépio também monopolizou a
cura de gestações durante três a cinco anos.54Inscrições posteriores encontradas
em santuários em Roma, Pérgamo e Lebena narraram histórias semelhantes.55
As paredes dos santuários também tinham tabuletas penduradas e representações
de partes curadas do corpo, algumas em terracota ou pedra, outras em bronze,
prata e ouro – mãos, pés, pernas, braços, orelhas, seios, genitálias, assim como
imagens de inválidos.56 Muitas imagens também sugeriram doenças crônicas,
mas seria incorreto concluir que esses doentes crônicos foram tratados ou se na
primeira manifestação da doença haviam recorrido à ajuda do deus. Estudos
antropológicos mencionaram muitos paralelos sugestivos de outras culturas, para
explicar o motivo pelo qual uma pessoa escolhia ser tratada por um deus ou por
um curandeiro e, por esse motivo, não poderíamos fazer uma divisão rígida entre
as curas religiosas e as seculares.57 Os suplicantes purificavam-se na fonte
sagrada antes de oferecerem um sacrifício apropriado e, depois, vestidos com
túnicas brancas, faziam uma segunda purificação antes de entrar no abaton ou no
adyton, “o inacessível”, palavras que enfatizavam a existência de um prédio
proibido a um visitante comum.58 Só as pessoas preparadas para encontrar o
deus ou a servirem ao deus como sacerdotes poderiam entrar e descobrir o que
acontecia dentro do santuário. Um homem chamado Esquines subiu em uma
árvore para ver o que estava acontecendo enquanto os suplicantes dormiam e,
por isso, foi punido ao cair em uma cerca e quase perdeu a visão.59 O abaton era
um prédio extenso com um pórtico e aposentos individuais: antes da existência
desse tipo de prédio, nos primórdios da cidade de Atenas, as pessoas dormiam
no templo ou em seus arredores.60 Se os suplicantes tivessem sorte, receberiam
a visão de Asclépio enquanto dormiam. Às vezes, o deus aparecia e curava os
suplicantes como se fosse um médico ou um cirurgião. Em outras ocasiões
surgiam serpentes sagradas ou cachorros para lambê-los ou penetrar no corpo
deles; algumas vezes o sonho era um enigma que precisava de ajuda para ser
entendido. Ao acordar, o suplicante poderia estar totalmente recuperado, sem
paralisia ou intumescências, mas às vezes o deus dava instruções, que tinham de
ser interpretadas por um sacerdote ou pelo guardião de um templo antes da cura.
Muitos tratamentos têm paralelos com a medicina contemporânea, porém outros
eram escolhidos para exibição pública talvez por causa das diferenças marcantes
entre eles.61 Mas ao pensarmos em um encontro de cura apenas em termos de
técnicas médicas, omitimos o contexto propício à cura em que se realizavam – o
ambiente do local, a fonte sagrada, o bosque sagrado (mesmo que no templo de
Asclépio em Atenas o bosque só tivesse três ou quatro árvores),62 os sacrifícios
e a confiança oferecidos nesse ambiente, seja pelas inscrições seja pelos ritos do
culto.63 As inscrições em Epidauro indicavam que os pacientes só passavam
uma noite no santuário, porém seria precipitado confirmar essa indicação,
porque os textos relatavam o momento da cura, não o tempo que o doente ficara
no santuário. Certa vez, dois doentes partiram de Epidauro depois de sua
primeira visita sem estarem curados, e um deles, uma mulher, foi quase
carregada até sua casa em Fáris (ao norte da Grécia) antes que o deus a curasse
pessoalmente. Em outra ocasião, em torno de 300 a.C., uma poetisa famosa
partiu de Epidauro a pedido do deus, para entregar uma tabuleta com uma
inscrição a um homem cego que vivia a muitos quilômetros de distância em
Naupauctus, do outro lado do golfo de Corinto. Quando o homem recebeu a
tabuleta conseguiu ler a inscrição e fundou um santuário em homenagem a
Asclépio em sua cidade natal.64 Mas, em geral, as tabuletas destacavam a
atividade do deus dentro do seu templo. Os muitos peregrinos que visitavam
Epidauro eram provenientes das cidades de Tasos, Lampsacus (atual noroeste da
Turquia), Mitilene, Cnido e Épiro a quilômetros de distância e, às vezes, de
lugares menos distantes.65 Em 300 a.C., segundo as tabuletas de Epidauro, o
santuário já tinha uma reputação pan-helênica: pouco mais de um século depois
o santuário perdeu a característica local e tornou-se o maior santuário de cura da
Grécia clássica. As inscrições, oferendas e ruínas arqueológicas testemunharam
a onipresença dos santuários de cura na Grécia clássica, assim como o
florescimento do culto a Asclépio depois de 421 a.C. O padrão do tratamento de
cura do deus, com a incubação e os sonhos, não era específico ao culto a
Asclépio: o viajante Pausânias comentou que os procedimentos que vira no
santuário do oráculo de Trofônio em Lebadea, no norte da Grécia, e o culto do
santuário oracular e de cura de Anfiarau perto de Oropus eram quase iguais ao
culto de Epidauro.66 Porém não podemos esquecer que havia muitas opções de
divindades de cura para escolher, e os votos, as preces e os sacrifícios feitos em
um templo local eram bem mais comuns, do que uma longa peregrinação ao
santuário distante de Asclépio. Mas, sem dúvida, a singularide de Asclépio
residiu na concentração do poder de cura; Asclépio era um especialista no
domínio da cura por excelência.67 Uma leitura rápida de A doença sagrada
sugeriu que a introdução do novo culto provocou uma acirrada competição entre
os praticantes da cura secular. Os médicos viram a chegada de Asclépio com a
mesma preocupação que sentiam em relação aos exorcistas, que viajavam pelas
cidades e vilarejos. A quase total ausência de referências a médicos nas
inscrições de Epidauro é bem conhecida – o único registro foi feito
possivelmente no período romano por um sacerdote.68 Mas a ausência de
testemunho epigráfico em Epidauro era irrelevante: as inscrições relatavam
quem havia sido tratado, não quem curara o doente, e as poucas inscrições
funerárias nos arredores do santuário mencionavam a ocupação do falecido.69
Não é totalmente fantasioso sugerir que os médicos eram convidados a assistir
aos grandes festivais em Epidauro, assim como em outras cidades, para cuidar de
doentes que haviam viajado por longas distâncias, mas é provável que isso fosse
deixado aos cuidados do poder do deus.70 Mas se as inscrições de Epidauro não
mencionavam o relacionamento dos médicos com o santuário, as evidências em
Atenas sugeriram um expressivo grau de cooperação. No século III a.C., já havia
um “hábito ancestral” dos médicos que trabalhavam para o Estado de fazerem
um sacrifício duas vezes por ano a Asclépio e a Higeia, em benefício deles e de
seus pacientes.71 O pressuposto de que um lindo alto-relevo do templo de
Asclépio, datado de meados do século IV, tivesse relação com o sacrifício feito
duas vezes por ano tem sido muito discutido.72 O alto-relevo mostrava seis
homens em atitude de prece diante de Asclépio, Demétrio e Koré (as duas
últimas eram divindades associadas aos Mistérios de Elêusis): os nomes dos
cinco homens e de seus patronímicos estavam escritos nas coroas na parte
inferior do alto-relevo e, originalmente, os mesmos nomes haviam sido também
escritos acima do alto-relevo.73 Um deles era um famoso médico de Atenas,
Mnesitheus, e dois eram filhos de outro médico, Dieuches.74 O alto-relevo
mostrava oferendas, sem relação com médicos que trabalhavam para o Estado e,
portanto, seria melhor considerá-lo apenas como uma placa destinada a
consagrações e oferendas ao deus. O inventário do santuário, com uma lista de
oferendas de instrumentos cirúrgicos, ventosas e tabuletas com textos de
medicina, mostrou que os médicos faziam oferendas ao deus (que ao longo do
tempo se tornou o santo patrono da profissão de medicina).75 Duas oferendas
referiam-se explicitamente a médicos, um deles oferecendo um anel corneliano
de ouro, um objeto de grande valor.76 É possível que as duas oferendas tenham
sido feitas por sacerdotes do santuário, mas, embora os médicos fossem também
sacerdotes do deus em períodos posteriores e em outros lugares, esse fato não
parece ter acontecido em Atenas, além de existirem outros candidatos ao cargo
que não eram médicos. No entanto, existem fundamentos mais sólidos que
associavam os médicos ao culto de Asclépio. Quando o rodiense Feidias foi
oficialmente homenageado em Atenas por seu trabalho como médico público em
304-303, o secretário de Estado encomendou uma placa de mármore para o
templo de Asclépio.77 Esse não foi um exemplo isolado, como tudo indica, e as
paredes do santuário e seus arredores formariam um verdadeiro “Canto do
Médico”, onde se poderiam ler os nomes dos médicos notáveis do passado. As
escavações no templo de Asclépio em Cós também revelaram uma coleção
extraordinária de decretos em homenagem a médicos, alguns promulgados pela
cidade de Cós, outros por pequenos locais na ilha, e alguns promulgados em
cidades mais distantes em gratidão aos médicos coanos, que haviam prestado
serviços relevantes às comunidades.78

Figura 7.2 Asclépio e duas deusas. Final do século V a.C. Inventário número
1346, Museu Arqueológico Nacional, Atenas (fotografia: Kostas Xenikakis). ©
Ministério da Cultura e Turismo da Grécia/Fundo da Sociedade Arqueológica. P.
113 Tudo isso sugeriu que a ideia de hostilidade entre os curandeiros e os deuses
fora bastante exagerada. O autor de A doença sagrada, em vez de negar aos
deuses o papel exercido nas curas, demonstrou um sentimento profundo de
devoção em relação a eles. Ele aprovava os tipos de purificação oferecidos pela
maioria dos santuários, nos quais a divindade eliminava as impurezas, os erros e
as impiedades da vida cotidiana. Pensou até mesmo em fazer uma oferenda a um
deus se o estado de saúde de uma pessoa fosse resultado de um castigo divino
(talvez por violar um santuário involuntariamente), embora, é claro, suas
pesquisas sobre epilepsia e psicoses tenham-no convencido de que essas doenças
tinham uma causa natural. Estava preparado para sacrificar, rezar e suplicar aos
deuses, enquanto ao mesmo tempo rejeitava a purificação por meio do
derramamento de sangue ou outros sacrilégios semelhantes, ou de enterrar um
objeto de purificação no chão, em uma montanha isolada ou jogá-lo no mar.79
Sua crítica não se direcionou a templos e santuários, porque eram locais onde a
decisão de curar ou não dependia da divindade, mas, sim, contra as pessoas que
diziam serem capazes de expulsar os demônios e forçavam os deuses a
obedecerem à sua vontade por meio de cânticos e feitiços.80 Ele criticou os
curandeiros que viajavam de um lugar para outro oferecendo curas sagradas, sob
pretexto de que tinham uma relação pessoal e não institucional com os deuses. A
afirmação deles de que poderiam de alguma forma fazer com que os deuses
obedecessem a seus desejos era um sacrilégio terrível, porque depreciava a
majestade e o poder dos deuses.81 O contexto explícito de A doença sagrada de
que um antigo conceito da relação entre os deuses e poder de cura contradizia as
novas opiniões que enfatizavam a organização, a ordem e a beleza do mundo
natural e as possibilidades que existiam agora para uma compreensão racional de
seus processos.82 Como vimos, não foi um ataque ateu à hipótese da cura
divina. O autor de A doença sagrada aceitava a divisão, proposta pelo
dramaturgo Eurípedes, de doenças causadas pelos deuses das que surgiam
espontaneamente, enquanto ao mesmo tempo procurava aumentar a abrangência
da compreensão do médico em relação à segunda categoria.83 É possível que
tivesse concordado com o autor do Regime, que dividiu os sonhos entre divinos,
que precisavam de interpretações religiosas e os que pertenciam à esfera dos
médicos.84 A afirmação do autor de que a “prece é válida, mas ao evocar os
deuses é preciso estender a mão”, não significava um desprezo cínico no tocante
à prece e, sim, coadunava-se com sua última recomendação de evocar
curandeiros divinos adequados e de seguir uma dieta alimentar para prevenir
doenças.85 Ao longo do tempo, esse desenvolvimento assistiu à criação de uma
nova ortodoxia no contexto da medicina. No século VI e início do século V, a
exemplo de Empédocles, os curandeiros agiam como xamãs que andavam pelas
cidades e vilarejos, e os limites entre magia e medicina eram quase
inexistentes.86 No entanto, em 350 a.C. as barreiras surgiram. Não que os
médicos tenham rejeitado completamente algumas terapias, que outros médicos
consideravam mágicas, porque cânticos, feitiços, magia branca com rezas ou
uma simples simpatia continuaram a ser usados, em maior ou menor extensão,
na medicina.87 As purificações religiosas ajudaram, sem dúvida, os pacientes a
reagir aos remédios e aos purgantes da medicina tradicional, independente da
opinião de seus médicos.88 Mas agora os médicos que acreditavam basicamente
nesses procedimentos em suas curas foram marginalizados, ou pelo menos
excluídos da nova concepção de medicina e da denominação de iatros.89
Embora fosse possível traçar um limite entre magia e medicina, seria preciso
analisar pessoa por pessoa, caso a caso, mas a retórica da ortodoxia insista que a
linha de delimitação poderia e, deveria, ser traçada entre as atividades de um
mágico e as de um médico. Porém não sabemos até que ponto essa distinção foi
seguida na prática e é mais importante destacar que a magia foi usada na
definição dos limites do comportamento apropriado de um médico. “Eu não sou
um adivinho”, declarou o autor de Prorrhetic 2, ao diferenciar seu método de
previsão médica da prática dos adivinhos.90 Nessa perspectiva o Corpus
Hippocraticum e a expansão do culto a Asclépio fizeram parte do mesmo
fenômeno, a definição da ortodoxia em oposição à alternativa mágica. Na
religião a magia tinha o poder potencial de desestruturar o relacionamento entre
os deuses e os homens. A magia funcionava fora dos canais religiosos formais de
comunicação com o divino e, portanto, significava uma ameaça à ordem civil.91
A ascensão do culto a Asclépio foi uma maneira de canalizar o poder divino em
benefício da cidade e dos doentes. As pessoas que praticavam a cura por meio da
religião fora desses canais, como o sacerdote que viajava pelas cidades e
vilarejos e o exorcista, ficaram marginalizadas e suas credenciais religiosas e
idoneidade foram questionadas. Mesmo quando demonstravam que tinham o
poder de interferir no funcionamento natural de um mundo criado pelo divino,
esse fato era criticado por seu caráter individualista em detrimento de uma visão
comunitária. As habilidades tão poderosas e privilegiadas de acesso aos deuses
teriam de se restringir à estrutura da vida civil. Assim, a iniciativa de Telêmaco
de construir o santuário de Asclépio em Atenas foi, aos poucos, assimilada ao
ambiente religioso oficial da cidade, além de ter sido submetida ao controle civil
desde sua fundação. Nesse processo Asclépio simbolizou não só o poder dos
deuses para curar e salvar, como também a arte da medicina em oposição a
alternativas diferentes de cura. Asclépio tinha a capacidade, o talento e os
atributos de um bom médico.92 A rejeição de um médico a Asclépio e às suas
curas significava o repúdio da essência da medicina. Nesse sentido, houve um
fortalecimento mútuo da cura religiosa e secular, em vez de oposição.

8 De Platão a Praxágoras O autor romano Celso elogiou Hipócrates por ter sido
o primeiro a separar a medicina do studium sapientiae, isto é, o estudo da
sabedoria, ou, como diríamos, da “filosofia”.1 Se com essa observação ele quis
sugerir que depois de Hipócrates a medicina e a filosofia seguiram caminhos
diferentes, sem uma troca de conhecimentos, enganou-se profundamente.2
Enquanto alguns dos textos do Corpus Hippocraticum estavam sendo escritos, o
filósofo Platão usou informações médicas para elaborar sua filosofia, assim
como formulou uma explicação para a doença, que teria um impacto prolongado
no mundo intelectual. Já vimos que Platão referiu-se diversas vezes em seus
diálogos a Hipócrates como o representante máximo da medicina à sua época e,
na Segunda Carta, ele mencionou que conhecia o médico Filistião de Locris.3
Sua carta exprimiu a esperança de que o senhor de Filistião, o tirano Dionísio II
de Siracusa, permitiria que Filistião fosse a Atenas, porém, não sabemos se essa
viagem foi de fato realizada.4 Platão foi ao sul da Itália e da Sicília em 387, 367
e 362 a.C. e, provavelmente, conheceu Filistião em uma dessas ocasiões. No
entanto, a autenticidade dessa carta tem sido questionada e um vínculo entre os
dois poderia ser uma racionalização posterior sobre a maneira como as teorias de
Platão aproximaram-se das teorias de Filistião, a exemplo do relato no papiro de
Anonymus Londinensis. Filistião acreditava que as doenças eram provocadas,
em geral, por três causas. A primeira causa (interna) era o excesso ou deficiência
de um dos quatro “elementos”, quente, frio, úmido e seco. A segunda causa
(externa) era a presença de feridas ou supurações, ou o resultado de um excesso
ou deficiência do calor e do frio externos, de mudanças inoportunas de um ou de
outro sintoma, ou apenas de uma alimentação errada. A terceira e última causa
era o bloqueio do fluxo de ar dentro e fora do corpo.5 Em Timeu, Platão deu
duas explicações muito semelhantes à primeira e à última teoria das causas das
doenças de Filistião: os desequilíbrios e irregularidades dos quatro elementos e o
bloqueio do fluxo de ar no corpo. Sem respirar o corpo apodrecia; com a
respiração excessiva o fluxo de ar penetrava onde não devia e, por esse motivo,
causava intumescências dolorosas, suor e distorções.6 Mas Platão não estava
apenas repetindo as palavras de Filistião; além da respiração e do ar Platão
mencionou os humores tradicionais, a bile e a fleuma. A segunda causa era mais
elaborada e, aparentemente, independente do que outros pensadores haviam dito
antes dele. O corpo platônico era formado pelos quatro elementos, terra, ar, fogo
e água, que constituíam a estrutura a partir da qual tudo era criado. A carne e os
tendões eram formados pelo sangue, que, por sua vez, era um produto direto da
comida “digerida”; seus componentes e a “substância viscosa e oleosa produzida
pelos tendões e a carne” nutriam a parte externa dos ossos, enquanto uma
substância pura alimentava a medula óssea.7 Quando esse processo funcionava
corretamente o paciente era saudável. Mas poderia acontecer o contrário. A
carne apodreceria, o sangue se azedaria, e a bile, o soro sanguíneo, a fleuma
entre outros humores corporais destruiriam o corpo. Em vez de nutrirem o corpo
e se beneficiarem entre si, esses elementos circulariam pelas veias, disseminando
destruição e deterioração causadas pelo conflito e desarmonia entre eles.8
Quando o fluido que unia a carne e os ossos secava, a substância deteriorada
desintegrava-se e a carne e os ossos separavam-se. No momento em que a
medula óssea fosse afetada, por excesso ou deficiência, doenças mais graves
surgiam. Quanto mais profundo e avançado fosse o processo degenerativo,
menos chance havia de recuperação.9 Não é claro se esse conceito de doenças de
putrefação era de Platão ou se fora inspirado em antigos filósofos ou médicos.10
Esse conceito criava uma imagem poderosa do corpo fazendo um movimento
oposto de uma maneira quase espontânea. Platão explicara antes que o
crescimento e a decadência eram o resultado do vigor dos triângulos que, em seu
universo matemático, se inseria na essência da matéria. Quando os triângulos
eram jovens e vigorosos, suas extremidades eram aguçadas e capazes de superar
os triângulos resultantes da comida e da bebida e, portanto, os cortariam em
constituintes básicos, que se distribuiriam pelo corpo em forma de sangue para
nutri-lo. Os novos triângulos prendiam-se nas partes adequadas do corpo e
provocavam seu crescimento. Por sua vez, à medida que envelheciam, os
triângulos perdiam a capacidade de cortar; dividir-se-iam com facilidade e o
corpo envelhecia. Quando as ligações dos triângulos que formavam a medula
óssea separavam-se, os vínculos da alma soltavam-se. Esse era o processo
normal do envelhecimento e da morte. Em que extensão esse mesmo processo
ocorria em doenças degenerativas é uma questão menos óbvia, e Platão não
explicou o que causava essas doenças.11 As descrições dessas doenças eram
ainda mais surpreendentes, porque revertiam a construção do corpo organizada
com tanta determinação e cuidado pelo artesão de Platão (o Demiurgo ou o
Criador). A medula óssea, o tecido mais importante, formava o cérebro, e outras
partes encerravam-se nos ossos para formar a coluna vertebral; depois que os
ossos formavam a carne, ela distribuía-se cuidadosamente pelo corpo de acordo
com os desígnios do Criador. Como a solidez do osso e a espessura da carne
inibiam a sensibilidade, o Criador diminuiu a espessura dos ossos da cabeça ao
redor do cérebro, o cerne do intelecto. A perda de proteção e a possibilidade de
aumentar a dor eram mais do que compensadas pelo aumento da sensibilidade.12
O pescoço, por meio do qual canais minúsculos subiam em direção à cabeça,
protegia o cérebro dos efeitos deletérios e poluidores dos elementos mortais da
alma situada mais abaixo no corpo.13 A descrição do corpo humano de Platão no
Timeu, que exerceu uma poderosa influência em pensadores posteriores, deveu-
se menos ao conhecimento da anatomia interna do corpo (ou do conhecimento
dos escritores antigos) do que a seus pressupostos a respeito da alma. Na
República ele descreveu uma série complexa de analogias, que se fortaleciam
mutuamente entre a cidade e a alma, e mencionou que a alma compunha-se de
três partes referentes, respectivamente, à razão, espírito ou energia, e ao desejo.
Mais tarde em Leis Platão traçou paralelos com o conhecimento e as práticas dos
médicos, para apoiar a autoridade de um filósofo em elaborar leis para uma
cidade doente.14 Assim como em uma cidade saudável, seus cidadãos
trabalhavam juntos, cada um fazendo sua tarefa e, na opinião de Platão,
orientados pela sabedoria dos governantes filósofos, em uma pessoa saudável
todas as partes da alma tinham de cooperar entre si sob a orientação da razão. Do
mesmo modo que uma terceira parte mais numerosa do Estado sempre ameaçava
seu bom funcionamento, o desejo incontrolável do corpo tinha um efeito nocivo
na razão e, por fim, em seu bem-estar. No Timeu, um relato mítico da realidade,
essa tripla divisão estendia-se mais além ao localizar cada parte da alma em um
lugar específico do corpo.15 A parte superior da alma situava-se no cérebro, a
parte enérgica, no coração, e a parte inferior, a do apetite, localizava-se no
abdome, onde estavam o fígado, o estômago e o baço. Platão não descreveu com
clareza a fisiologia detalhada desses órgãos, embora o fígado dominasse os
outros, assim como a descrição do coração e seus vasos sanguíneos é
extremamente simplificada. O trabalho de correlacionar a alma tripartida aos três
sistemas independentes do corpo humano, o cérebro e os nervos, o coração e as
artérias, o fígado e as veias, foi feito por estudiosos posteriores, em especial por
Galeno. Platão não foi tão minucioso, talvez porque uma distinção nítida entre os
sistemas venoso e arterial ainda não tinha sido elaborada. O vínculo entre a alma
e o corpo descrito no Timeu também introduziu uma ênfase física na explicação
das doenças da alma. Por estar localizada no corpo, a atividade da alma imortal
ficava prejudicada, assim como a natureza e a educação a afetavam. Alguns
distúrbios psíquicos originavam-se de uma educação insatisfatória, mas outros
tinham uma origem física. Humores mórbidos, sobretudo bile e fleuma,
exalavam vapores, que tinham efeitos diferentes dependendo da parte da alma
que atingissem. A loucura (psicose) e a estupidez originavam-se de mudanças no
corpo: alterações na medula óssea, por exemplo, afetavam a percepção do prazer
e da dor. Portanto, a correção dessas aberrações mentais ou psíquicas envolveria
um tratamento do estado físico subjacente. Nesse sentido, desde seus primeiros
anos de vida uma pessoa deveria receber uma educação adequada, tanto do
ponto de vista físico quanto mental, além de uma dieta alimentar apropriada e
exercícios físicos, com o objetivo de manter o corpo tão saudável como a mente.
Platão não recomendava o uso de remédios, exceto como último recurso.16 As
seções de medicina de Timeu são muito interessantes. Elas mostram como um
filósofo, Platão, ao usar ideias do Corpus Hippocraticum e de Anonymus
Londinensis, ficou na vanguarda do debate sobre medicina na época, quando
escreveu seu relato da criação do corpo humano e descreveu algumas
imperfeições mentais e físicas. A influência que exerceu divulgou essas ideias
para um público maior, e essas ideias, por sua vez, foram desenvolvidas por
comentaristas que acrescentaram mais discussões e evidências médicas.17
Galeno, como veremos, tinha certeza de que Platão estudara medicina com
Hipócrates e que o conhecimento do corpo humano de Platão era mais revelador
dos ensinamentos de Hipócrates do que muitos textos obscuros do Corpus
Hippocraticum.18 Mas, além da crença de Galeno de que Platão havia estudado
medicina ter sido um produto de sua imaginação, comentaristas mais realistas
revelaram que suas informações sobre medicina baseavam-se em problemas
filosóficos.19 A famosa (e discutível) passagem sobre a introdução da anatomia
por Alcmeón, por exemplo, foi preservada porque um comentarista latino de
Timeu, Calcídio, usou a noção de anatomia de Alcméon para explicar o relato de
Platão no tocante à visão (em 67d-e).20 Ao contrário de historiadores de
medicina modernos, Calcídio não se interessava pelo que Alcmeón fizera
(mesmo que pudesse descobrir, mas, sim, pela importância de suas teorias em
comparação com as teorias de Platão). Aristóteles, aluno de Platão, era filho de
um médico da corte do rei da Macedônia e um asclepíade por parte da mãe e do
pai. Aristóteles manteve o interesse de Platão por assuntos médicos, embora de
uma maneira bem diferente de seu professor.21 Ele pressupôs um continuum
entre médicos e filósofos naturalistas: a maioria dos relatos desses filósofos em
relação ao mundo abordava a medicina, ao passo que os médicos mais
ponderados baseavam suas teorias médicas nos princípios da filosofia
naturalista. Aristóteles abordou problemas da esfera da medicina, sobretudo em
relação à psicologia, enquanto, ao mesmo tempo, usava informações médicas
para exemplificar e apoiar sua posição nas discussões com os filósofos.22 Ele
conciliou as teorias médicas dos opostos e as ideias dos filósofos a respeito dos
elementos e, em especial, à teoria dos quatro elementos básicos, quente, frio,
úmido e seco. No universo aristotélico a teoria médica, principalmente, a teoria
dos quatro elementos descrita em A natureza do homem, encontrou um ponto de
apoio seguro. O corpo humano compunha-se dos quatro elementos e seu
processo natural poderia ser explicado pelos princípios físicos de Aristóteles. O
calor interno de um animal era, por assim dizer, um “fogo interno”, e a principal
função do ar ou do pneuma era a de esfriar esse calor e evitar que fugisse ao
controle e prejudicasse o organismo. Aristóteles pensava que o cérebro agia
como um refrigerador, que diminuía a temperatura de um coração febril, o local
da alma indivisível.23 Aristóteles, assim como Platão, criou sua escola, o Liceu,
em Atenas, onde ele e seus alunos dedicaram-se a um programa abrangente e
ambicioso de pesquisa empírica. Eles reuniram e estudaram informações do
mundo da natureza e do esforço do ser humano, desde registros da formação das
cidades-Estado, opiniões de médicos, botânica e mineralogia.24 Esse
empreendimento foi apoiado por patronos influentes. Aristóteles trabalhou
primeiro na pequena corte de Assos (atual Turquia), antes de ser nomeado tutor
do futuro Alexandre o Grande. Com o apoio de Alexandre Aristóteles estudou as
conquistas de seu exército, ao atravessar o império persa até as montanhas
distantes do Afeganistão e as planícies do Punjab, de 334 à morte de Alexandre
em 323. As tropas vitoriosas eram acompanhadas por estudiosos que faziam
anotações, mediam distâncias e enviavam a Aristóteles espécimes de novos
minerais e plantas que encontravam.25 Aristóteles interessava-se
apaixonadamente desde jovem por assuntos que chamaríamos hoje de biologia e
zoologia. Ele reuniu informações sobre diversas espécies de animais, aves e
peixes, além de fazer dissecações sistemáticas em pelo menos 50 espécies
diferentes de animais. Estava bem informado a respeito do desenvolvimento do
pintinho dentro do ovo, assim como dos hábitos das abelhas e os pés do
avestruz.26 Aristóteles tinha um interesse profundo, como demonstrado no
tratado As partes dos animais, em pesquisar o mundo natural, “porque todos os
reinos da natureza revelam algo maravilhoso”.27 O interesse em conhecer os
componentes dos corpos, do sangue, da carne, dos ossos, das veias, entre outros,
poderia parecer repulsivo e vergonhoso, mas só se fosse visto por um
determinado ângulo dos componentes do corpo humano, e não do organismo ou
da forma como um todo. Essa integridade física revelaria a beleza da arte da
natureza e nos deleitaríamos em descobrir e perceber as verdadeiras causas das
coisas. E, em especial, perceberíamos logo que “no funcionamento da natureza,
o objetivo e não o acaso predomina”. Aristóteles queria estudar biologia de
acordo com seus princípios filosóficos gerais, e o principal objeto de estudo não
eram os detalhes dos elementos, mas, sim, sua composição como um todo. Em
especial, a abundância de suas informações confirmou uma das doutrinas
centrais de Platão no Timeu, a teleologia, ou nas palavras de Longrigg, a
doutrina da finalidade interna da natureza, embora Aristóteles não tenha adotado
a crença abrangente e a concepção consciente da natureza de seu professor.28 Os
pensadores estudavam o mundo natural, não só por sua essência, mas também
para apreender um material mais acessível, apesar de transitório, do que seria
possível apenas com a observação dos preciosos e divinos corpos celestiais. Esse
conhecimento era muito mais prazeroso, porém inevitavelmente parcial;
precisaria ter o acréscimo do estudo empírico dos elementos da terra. Esses
elementos incluíam animais, seres vivos, dos quais os seres humanos eram só um
espécime. O projeto de Aristóteles destinava-se a abranger todos os seres vivos,
“nobres e ignóbeis”. Portanto, não existia uma antropologia específica em suas
obras, nenhum tratado dedicado ao exame do corpo humano. Isso teria sido uma
tarefa extremamente difícil, como ele admitiu, porque “desconhecemos as partes
internas do corpo, sobretudo, as do homem”, mas também seria desnecessária,
uma vez que a informação que contribuía para uma compreensão geral da
natureza poderia ser obtida por outros meios. A analogia com outros animais
demonstrou que “existem animais com partes semelhantes aos seres
humanos”.29 Já nessa época havia tabus rígidos na Grécia contra a interferência
no corpo humano, mais ainda contra a ideia de dissecá-lo, e o estudo da
anatomia do corpo humano era impensável. Mas a anatomia dos animais, aves e
peixes não era um tabu e Aristóteles referia-se com frequência à sua
organização, estrutura e, sobretudo, às suas funções em suas pesquisas (e de
outros estudiosos, inclusive, é muito provável, Diocles).30 Suas conclusões eram
muito mais detalhadas e abrangentes do que as de seus predecessores, embora às
vezes seu relato fosse complexo. A descrição de Aristóteles, por exemplo, do
sistema vascular incluiu novas observações e omitiu (ou interpretou mal) muitas
informações que consideraríamos óbvias. Sua observação de que o coração tinha
três câmaras dividiu a opinião de intérpretes modernos, entre os que acreditavam
que Aristóteles enganara-se ao fazer a dissecação e outros que disseram que o
ponto de partida da descrição de Aristóteles era divergente do nosso e não sua
observação.31 Sua opinião de que o coração de animais de grande porte, como
cavalos, tinha um osso interno e de que o número de câmaras no coração
relacionava-se ao tamanho era um ponto de vista tanto factual quanto um
equívoco.32 Mas houve momentos em que Aristóteles fez observações absurdas.
Como não conseguira encontrar uma veia sanguínea que se estendesse até o
cérebro, concluiu que o cérebro de todos os animais não tinha sangue.33 Sua
crença de que as fêmeas tinham menos dentes do que os machos e menos suturas
entre os ossos do crânio baseou-se em observações incompletas, porém, também
foi influenciada por sua concepção subjacente da mulher como um ser inferior e,
de certa forma, uma versão incompleta do homem.34 No entanto, seus erros
foram relativamente poucos comparados às descrições precisas dos fenômenos
do mundo vivo; e essas descrições não depreciaram o valor da pesquisa empírica
transmitido a outros estudiosos (e aos seus patronos). Ele fez questionamentos
importantes sobre o processo de vida, do movimento e da sensação de
envelhecer e dormir, embora quase tudo o que escreveu a respeito de medicina
tenha desaparecido.35 Sua influência, apesar de significativa, assumiu formas
muito diferentes. Em seus ensinamentos de lógica no Liceu, Aristóteles criou o
embrião dos futuros debates intelectuais, com a ênfase no argumento lógico e
preciso, assim como da importância de uma definição apropriada em termos de
qualquer exposição de um material médico ou científico. Por sua vez, ao inserir
a medicina e o corpo humano em um sistema amplo do cosmos proporcionou um
diálogo sobre as causas dos processos naturais do corpo em um nível mais
profundo de explicação. Existe uma série de debates de Aristóteles referente à
interpretação de fenômenos médicos com seus alunos mais próximos citados por
Galeno, cuja sistematização dependia basicamente da epistemologia aristotélica
e da associação de informações extraídas do Corpus Hippocraticum, de Platão e
do mundo aristotélico da medicina.36 Teofrasto (c.371-287), sucessor de
Aristóteles à frente do Liceu, não só incluiu muitas plantas medicinais em seu
Investigação sobre as plantas como também escreveu tratados pequenos sobre
temas médicos como suor, cansaço e vertigem. Outros filósofos da escola
peripatética como Estrabão de Lampsaco pesquisaram assuntos que
influenciariam médicos posteriores, quando as noções de medicina referentes ao
cérebro exerceram um papel vital nas discussões filosóficas a respeito da
alma.37 Aristóteles referiu-se diversas vezes em seus tratados sobre zoologia a
um livro que escrevera intitulado Dissecções, com imagens e desenhos de
animais dissecados.38 A associação desse livro à obra escrita por seu
contemporâneo, Diocles de Caristo, é uma questão discutível. Na opinião de
Galeno, Diocles foi o primeiro estudioso a escrever um tratado específico sobre
anatomia (animal), e usou sua dissecação de mulas para fazer inferências a
respeito do útero das mulheres.39 Porém, não é fácil determinar quando Diocles,
“o seguidor em idade e fama a Hipócrates” e um “jovem Hipócrates” viveram e
trabalharam, porque tudo o que temos de suas obras são fragmentos e relatos
preservados por autores bem posteriores.40 Estudos mais recentes sugeriram que
fosse contemporâneo de Aristóteles, mas o relacionamento preciso deles é
incerto.41 Nenhum dos dois mencionou o outro. É verdade que a ideia de
Diocles de que no útero havia “protuberâncias semelhantes a seios… criados
pela natureza para que gerassem o hábito do embrião de sugar os mamilos dos
seios” em parte assemelhava-se à teoria expressamente criticada por Aristóteles,
mas ele não atribuiu a autoria a Diocles.42 Por outro lado, a declaração em
Anonymus Bruxellensis 44 de que o coração tinha quatro câmaras foi
interpretada como uma crítica de Diocles à visão de Aristóteles de que só tinha
três câmaras, embora, mais uma vez, Diocles não fora mencionado e a hipótese
de a crítica ser sua não foi provada.43 Mesmo uma citação clara de Aristóteles
em uma crítica à sua teoria de semente também é problemática, porque a
passagem importante poderia ser o trabalho de um compilador, e não de
Diocles.44 No entanto, o trabalho de Diocles como anatomista e estudioso de
embriologia sobrepõe-se ao de Aristóteles, e Aristóteles tinha acesso a algumas
de suas obras, enquanto outras foram escritas como uma reação a ele.45 Mas a
anatomia era apenas uma parte de sua atividade e talvez não a mais conhecida de
seus contemporâneos. Os títulos dos livros como, por exemplo, Ginecologia,
Bandagem, Tratamentos, A Cirurgia, Afecções, Causa e Tratamento, dão apenas
um pequeno indício da diversidade e da abrangência de seu conteúdo. As obras
que se preservaram indicam que ele abordou todos os aspectos da medicina e,
em razão dessa abrangência, o compararam a Hipócrates. Diocles introduziu um
instrumento cirúrgico especial em forma de colher para retirar pontas de flechas
de uma ferida.46 Ele escreveu sobre venenos e legumes, assim como o
Rhizotomikon, um tratado sobre plantas com propriedades medicinais; um de
seus remédios foi encontrado há pouco tempo em uma receita egípcia escrita no
século VI d.C.47 Suas discussões a respeito de febres enfatizaram a importância
dos dias críticos, os dias em que a febre poderia melhorar ou se agravar, na
diminuição ou na recaída, com uma atenção especial as que duravam sete dias.48
Existem aqui paralelos óbvios com a obra hipocrática Epidemias, e o livro
Prognóstico de Diocles seguiu a tradição do tratado hipocrático com o mesmo
título, mas a prova direta com o conhecimento de um tratado específico do
Corpus é elusiva

Figura 8.1 Banho antigo como tratamento para a febre em uma ilustração fictícia
de um artista medieval. Dresden, Sächsische Landesbibliothek, Db 93, fol. 581 v.
A teoria de Diocles sobre saúde e doença, típica da medicina culta do século IV,
distinguiu-se por uma sofisticação metodológica crescente. Ele acreditava com
convicção no princípio de causa e efeito, e atribuía às causas internas das
doenças um excesso ou deficiência no organismo dos quatro elementos e das
quatro qualidades básicas.50 Ele admitia a existência dos quatro humores,
sangue, fleuma, bile amarela e bile negra, que se originavam dos alimentos e
diferenciavam-se nas veias sanguíneas por meio de um processo de alteração do
calor inato.51 Diocles deu uma atenção especial ao pneuma (“respiração” ou “ar
refinado”), que se espalhava pelas veias em um movimento voluntário. O
bloqueio do pneuma era especialmente grave e a causa de diversas doenças. Se
sua passagem pelo corpo fosse bloqueada pela fleuma congelada na artéria aorta,
provocaria epilepsia e apoplexia.52 A interrupção do fluxo do pneuma dentro do
corpo pelos poros da pele em consequência do excesso de bile ou fleuma era
mais frequente. A fleuma esfriava e compactava o sangue, enquanto a bile o
fervia e coagulava. Essa obstrução causava não só febres e dores de cabeça,
como também melancolia, se afetasse o coração, a fonte do “pneuma psíquico”
do organismo.53 O interesse de Diocles no pneuma, apesar de muitos detalhes
obscuros, confirmou a importância dessa substância entre os escritores de temas
filosóficos e científicos no século IV, porque conectava estados mentais a
distúrbios físicos. Porém ainda não havia uma doutrina sistemática a respeito do
pneuma, como a que surgiu no século seguinte.54 Assim como muitos escritores
do Corpus Hippocraticum, Diocles enfatizou a individualidade do paciente, a
mudança do corpo ao longo do tempo, com as estações do ano, o clima e o
processo de envelhecimento. A saúde significava a recuperação do equilíbrio
natural de uma pessoa com tratamentos adequados.55 Mas nem sempre era fácil
recuperar o equilíbrio: por exemplo, como o esperma masculino era secretado
pelo cérebro e pela medula espinhal, as relações sexuais frequentes eram
potencialmente perigosas, porque o corpo poderia não ser capaz de substituir
esse fluido vital com facilidade e rapidez.56 As mulheres corriam ainda mais
riscos, porque tinham, é claro, suas próprias doenças, além das que
compartilhavam com os homens.57 Embora Diocles escrevesse sobre
farmacologia e curativos, seu interesse principal concentrou-se na dieta
alimentar e no exercício como processo terapêutico – Galeno tinha um
entusiasmo especial pela ginástica, e se considerava um especialista no
assunto.58 É possível que Diocles tenha herdado esse conhecimento do pai,
porque expôs suas ideias do uso de óleo para friccionar e massagear o corpo no
livro intitulado Arquidamus, nome de seu pai.59 Em Higiene, seu maior tratado
acerca desse tema, ele abordou também de uma maneira sofisticada os
problemas da prescrição de dietas.60 Os efeitos dos alimentos nem sempre
podiam ser previstos pelo conhecimento de suas propriedades e, vice-versa, nem
sempre era possível explicar por que uma determinada comida produzira
determinado efeito. Em termos gerais, a experiência era um guia melhor do que
a teoria, e cometeríamos poucos erros se presumíssemos que, em geral, o que
acontece quando se prescreve um alimento ou um remédio é provocado pela
natureza de sua substância, isto é, pela interação específica de seus constituintes.
A experiência demonstrou que alimentos aparentemente com propriedades
semelhantes, por exemplo, de calor ou acidez, nem sempre funcionavam da
mesma forma.61 Diocles não rejeitou a possibilidade de uma pesquisa sobre o
princípio de causa e efeito, como os céticos e os empiristas fariam mais tarde,
mas enfatizava as dificuldades práticas de realizar constantemente esse
procedimento na alimentação. Enquanto em algumas ocasiões essa pesquisa
poderia acrescentar dados novos para a compreensão e plausibilidade de
prescrições de dietas alimentares, em grande parte seria desnecessária para o
tratamento adequado a ser prescrito ao paciente. Diocles e seus contemporâneos,
os atenienses Mnesitheus e Dieuches, os coanos Praxágoras, Filotimo e
Pleistônico, formaram um grupo de médicos e escritores cujas crenças, segundo
Galeno, eram essenciais para qualquer médico competente.62 Nenhuma de suas
obras preservou-se intacta e não se sabe ao certo quantos livros escritos por eles
Galeno tinha em sua biblioteca. Com certeza, um médico comum de Roma teria
pouca chance de comprar exemplares das obras completas de Mnesitheus e é
provável que Galeno pensasse que ele usara um manual com um resumo
doxográfico das opiniões de médicos antigos sobre doenças específicas. Uma
ideia do conteúdo desse manual poderia ser obtida em um tratado anônimo a
respeito de doenças graves e crônicas intitulado Anonymus Parisinus, porque foi
editado pela primeira vez a partir de um manuscrito do acervo da Biblioteca
Nacional de Paris.63 Escrito provavelmente no século I ou no início do século II
d.C., o tratado citou as opiniões dos médicos “antigos”, em especial Hipócrates,
Diocles, Praxágoras e Erasístrato sobre a causa ou as causas de diversas doenças
como epilepsia, obstrução total do intestino e tétano. Ao discutir a pleurisia, por
exemplo, o autor mencionou que Erasístrato acreditava que era resultado de uma
inflamação da membrana do lado interno da caixa torácica, enquanto Diocles
pensava que era causada por uma obstrução nas veias ao redor da pleura. No
entanto, Praxágoras acreditava que era uma inflamação das extremidades do
pulmão. Essa precisão anatômica opunha-se à visão hipocrática de Lugares no
homem que atribuía a pleurisia a um fluxo que descia da cabeça em direção ao
tórax.64 Em seguida à explicação das causas, havia uma descrição dos sintomas
e das recomendações de tratamento. O tratado tinha uma organização clara e
simples, com um texto conciso e relativamente fácil de usar.65 Nesse sentido,
esse tratado preenchia os requisitos de Galeno, no que se referia ao
conhecimento que um médico competente (e um paciente instruído) deveria ter
das principais ideias dos grandes autores “antigos”. A crença na razão para
determinar a cadeia de causa e efeito era o elemento de ligação dos escritores
clássicos de Galeno e o motivo pelo qual os comentaristas posteriores os
rotularam com frequência de “dogmáticos” ou “médicos lógicos”.66 Mnesitheus,
por exemplo, o “seguidor de sua prática metódica”, supostamente adotou o
método de Hipócrates da divisão para definir as causas das doenças.67 Eles
acreditavam na importância dos humores e das qualidades básicas, embora o
significado desses elementos para eles nem sempre fosse claro, apesar de
Galeno, nossa principal fonte, insistisse que compartilhavam suas opiniões.
Mesmo quando aceitaram, assim como Diocles, a validade dessa teoria dos
quatro humores, nem sempre concordavam com Galeno a respeito do que eram
esses líquidos secretados pelo corpo e como eram produzidos.68 Outros autores
atribuíam significados muito diferentes para a mesma palavra grega. Mnesitheus
usava a palavra “humores” ou “quimos” para referir-se aos sabores, e chamava
os fluidos corporais de “quilos”, sem diferenciação aparente.69 Praxágoras
identificou 11 humores diferentes, inclusive o “humor vítreo”, responsável, entre
outros fatores, por febres com tremores; Filotimo mencionou ainda mais
humores.70 Com a intenção de chamá-los de precursores, Galeno explicou que
eles estavam apenas formulando com exatidão o pensamento de Hipócrates. Por
sua vez, Rufo de Éfeso, outro seguidor da escola hipocrática, julgava que as
ideias deles eram divergentes.71 Galeno pesquisou as ideias desses “antigos”
também para apoiar suas opiniões sobre a necessidade de tratar o paciente como
um todo, em vez de só a parte afetada. É possível que tivesse razão ao recorrer às
suas ideias, apesar de seus comentários posteriores de que davam importância à
flebotomia e ao prognóstico não tivessem fundamento.72 Até mesmo Galeno
admitiu que os “antigos” confiavam no prognóstico apenas para decidir quem
tinha ou não a chance de se recuperar. Mnesitheus, por exemplo, declarou que a
ânsia de comer cebolas no início da “pneumonia” indicava uma recuperação
futura, enquanto o desejo de comer figos indicava a morte.73 Mesmo se
aceitarmos o argumento de Mnesitheus (e de Galeno) de que esses desejos
revelavam o conjunto de características físicas subjacentes do paciente, ainda
haveria um longo caminho a percorrer até a teoria galênica do prognóstico, como
uma orientação essencial para o diagnóstico e o tratamento. Além disso, a base
do fundamento desse pressuposto de Mnesitheus é duvidosa. Os “antigos”
também eram admirados por suas práticas terapêuticas. Atribuiu-se a Dieuches a
descoberta, elogiada por Praxágoras e seus alunos, de meios de prescrever
remédios perigosos de uma maneira relativamente segura, a exemplo do
heléboro, um poderoso emético, tanto por via oral quanto como um pessário.74
Apesar dos riscos de seu uso, as variedades do heléboro branco e do negro
continuaram a ser receitadas até o século XX, não só por causa de seus efeitos
óbvios, como também porque poderiam funcionar quando todas as outras
prescrições tivessem falhado.75 Mas o heléboro era menos perigoso do que o
tratamento de Praxágoras para a obstrução total do intestino, que, em casos
extremos, poderia envolver a prescrição de mais eméticos a fim de remover os
resíduos bloqueados, uma “morte planejada” como mais tarde o escritor
metodista Célio Aureliano a descreveu com uma crítica rigorosa.76 Apesar de
um autor posterior ter afirmado que Praxágoras aperfeiçoou o processo
terapêutico da dieta alimentar, sua contribuição foi citada apenas de maneira
sucinta nos fragmentos de seus escritos, ao contrário de Mnesitheus e
Dieuches.77 Assim como Diocles, os “antigos” colocavam em primeiro plano a
dieta alimentar no processo terapêutico da medicina de uma forma muito mais
sofisticada e com uma argumentação mais sólida do que os comentários sucintos
do Corpus Hippocraticum, assim como revelaram um conhecimento do mundo
bem além da região do mar Egeu. Suas obras e exemplos práticos contribuíram
muito para o desenvolvimento da terapia alimentar, que a igualou à eficácia da
cirurgia e da farmacologia no combate à doença; na verdade, em algumas obras a
dieta alimentar as superou, com o fundamento de que a medicina dietética tinha
um papel preventivo, assim como o poder de curar doenças.78 Mnesitheus ficou
famoso por sua descrição minuciosa de um regime alimentar para crianças,
enquanto Dieuches foi citado no verbete da enciclopédia de Oribásio e, em mais
detalhes, na preparação e uso de alimentos.79 Alguns de seus conselhos ainda
são atuais. É inútil receitar a uma pessoa que faz uma viagem marítima pela
primeira vez um remédio contra vômitos. Na realidade, se a pessoa se sente
enjoada, vomitar poderia ajudar, mas o recomendável era ingerir alimentos leves
e suaves. Até se acostumar com o balanço do mar não seria aconselhável olhar o
movimento das ondas. Mas a melhor maneira de evitar o enjoo seria levar para o
navio um galho de tomilho ou outra substância com o cheiro adocicado para
compensar o mau cheiro a bordo.80 Suas áreas de interesses continuaram a ser
estudadas por Diphilus Siphnius, um contemporâneo um pouco mais jovem, cujo
livro Dieta para os Doentes e os Sãos abrangeu uma ampla variedade de
alimentos como cerejas, ameixas, nozes e cogumelos, no estado natural ou
cozidos. Seus comentários sobre mexilhões, ostras e peixes defumados, aos
quais dedicou uma seção inteira, ou talvez um livro separado, eram menos
entusiastas quanto ao seu valor nutritivo.81 No entanto, seu tratado não foi
citado por nenhum autor de livros de medicina, ao contrário de Filotimo, que
escreveu pelo menos 13 livros e recomendou uma série de dietas alimentares
para serem usadas no caso de doenças ou em períodos saudáveis.82 Filotimo
preferia maçãs a peras, e alho-porro cozido em vez de cru, porque continha
menos fibra e era mais fácil de mastigar. Ele dedicou menos tempo às azeitonas.
As azeitonas pretas eram muito oleosas, de, difícil e causavam às vezes uma
sensação de náusea, enquanto as azeitonas brancas conservadas em salmoura,
apesar de mais digestíveis, causavam um humor cáustico e amargo, como a
gema do ovo.83 Além desse interesse em dietética havia o interesse pela
anatomia, apesar de não sabermos exatamente o que Dieuches fez em suas
dissecações para obter a aprovação de Galeno.84 No entanto, a evidência é mais
clara em relação a Praxágoras e seus alunos. Não só eles estudaram o processo
no organismo (Pleistonico acreditava que a digestão era uma espécie de
putrefação), mas também examinaram sua estrutura, a exemplo do útero, do
coração e das veias sanguíneas. Essas dissecações, provavelmente em animais,
proporcionaram uma ligação importante entre os estudos de anatomia do corpo
humano de Aristóteles e dos alexandrinos.85 Praxágoras, por exemplo, embora
fosse professor de Herófilo e tivesse sofrido uma grande influência das ideias de
Aristóteles, não havia provas de que estudara no Liceu em Atenas.86 Nem
deveríamos supor que isso tivesse acontecido. Assim como Filotimo, que mais
tarde se tornou o principal magistrado de Cós, ele originava-se de uma família de
médicos importante em Cós, que se dizia descendente de Asclépio e que teria um
papel preponderante na vida pública da ilha por muitas gerações.87 Cós era e
continuou a ser o centro do estudo e do exercício da medicina no mundo.88 A
influência de Aristóteles refletiu-se não só na decisão de Praxágoras de dissecar
animais e de escrever pelo menos um livro sobre suas descobertas, mas também
em sua crença de que o coração era o cerne da alma e o cérebro era uma mera
proeminência da medula espinhal, uma doutrina da prova anatômica
compartilhada com seus alunos.89 Praxágoras defendia a ideia de que as artérias
dividiam-se aos poucos à medida que passavam pelo corpo, até suas paredes se
fundirem e transformarem-se em “nervos” minúsculos.90 Ele tentou fazer a
distinção entre veias e artérias (que antes eram chamadas de phlebs, uma palavra
mais tarde usada apenas para veias), as artérias que começavam no coração e as
veias no fígado. Em seguida, sugeriu que as veias transportavam sangue,
enquanto as artérias, só pneuma.91 Essas descobertas e teorias talvez não sejam
todas de autoria de Praxágoras. Galeno, nossa principal fonte de suas crenças,
mencionou que seu pai, Nicarco, também acreditava que as artérias carregavam
só pneuma e Diocles, como vimos, interessava-se pelo papel exercido pelo
pneuma.92 Mas mesmo se essas ideias fossem apenas em parte de sua autoria,
tudo indica que Praxágoras foi quem desenvolveu e justificou suas implicações.
A distinção entre artérias e veias, assim como a ligação entre as artérias e os
nervos fizeram com que Praxágoras e seus alunos elaborassem perguntas
posteriores sobre o movimento das artérias, que chamavam de pulso arterial, e a
respeito da fonte de pneuma dentro dele.93 Todos esses fenômenos eram
produzidos no coração? Ou também eram produzidos no corpo inteiro? Como se
produzia o batimento do pulso?94 Qual era a relação do batimento do pulso com
os batimentos do coração? Para Praxágoras esses batimentos eram independentes
e a pulsação divergia de movimentos semelhantes das artérias, como tremor ou
palpitação, porque era natural e não um resultado de algum distúrbio.95 Ainda
mais importante para a evolução futura da medicina, Praxágoras foi o primeiro a
observar que os batimentos do pulso eram uma ajuda valiosa para o diagnóstico,
assim como usou os movimentos das artérias como um sinal de mudanças no
corpo. As fontes não esclarecem com precisão como ele utilizava o pulso arterial
para identificar doenças, e o conhecimento antigo sobre as pulsações ou a
esfigmografia sugeriu que o aperfeiçoamento do diagnóstico e da terminologia
só foi realizado por seu aluno Herófilo.96 No entanto, as descobertas de
Praxágoras tiveram consequências profundas e, talvez por essa razão, foi
considerado na Antiguidade como uma das grandes figuras da medicina. Pelo
menos uma estátua foi erguida em sua homenagem, e em torno de 30 a.C. um
literato renomado, Crinágoras de Mitilene, dedicou uma epigrama a ela. Suas
sete linhas enaltecem a imagem do grande médico: Filho de Apolo, com a mão
coberta de unção que Tudo cura, esfregou a ciência lenitiva de sua arte em seu
peito, oh! Praxágoras. Assim, apesar dos muitos sofrimentos causados por
longas febres, mesmo com a carne ferida, aprendeu com a gentil Epione a usar
remédios. Se os mortais tivessem médicos como esses, o barco nunca teria
transportado cadáveres.97 Com Diocles, Mnesitheus e outros escritores de
medicina discutidos neste capítulo, vimos pela primeira vez médicos que eram
conhecidos por seus nomes e identidades, em vez dos autores anônimos ou com
pseudônimos do Corpus Hippocraticum. Esses médicos conscientemente
construíram e desenvolveram ideias da herança da medicina que haviam
recebido. Apesar de desconhecermos muitas de suas doutrinas e das relações
entre eles, além das informações que temos a seu respeito talvez não
correspondam exatamente ao que disseram e escreveram, a história da medicina
a partir de agora poderia ser escrita com mais facilidade em termos de
realizações pessoais e personalidades.98 Eles nos fazem lembrar que a medicina
na Grécia clássica não terminou com o Corpus Hippocraticum, e a relação entre
medicina e filosofia foi muito mais produtiva do que as críticas do autor de
Medicina Antiga.

9 Alexandria, Anatomia e Experimentação Poucos episódios na história da


medicina antiga foram tão estudados como o início e o desenvolvimento da
anatomia do corpo humano na primeira metade do século III a.C.1 Herófilo e
Erasístrato ficaram famosos por suas pesquisas pioneiras que, pela primeira vez
na tradição ocidental da medicina, revelaram muitas estruturas ocultas no corpo
humano.2 Mas essas pesquisas e as realizações mais abrangentes desses dois
homens no que se refere à anatomia e à fisiologia foram arriscadas. Havia uma
tendência a esquecer que as dissecações deles eram realizadas no contexto do
padrão mais amplo da atividade de médicos e, ainda mais importante, o que
poderia ser definido como uma anatomia investigativa ou experimental baseada
em seres humanos era realizada apenas por um período limitado e em uma área
restrita.3 Embora a demonstração anatômica por meio de um esqueleto ou da
superfície de um músculo tenha continuado por mais tempo no ensinamento da
medicina, em especial em Alexandria, a experimentação anatômica em seres
humanos ou em animais terminou antes do final do século III a.C. e só foi
retomada no final do século I ou início do século II d.C.4 Quando as discussões
sobre anatomia e, sobretudo, fisiologia surgiram em textos helenísticos
posteriores, em grande parte, ou inteiramente, baseavam-se na observação
ocasional ou em dados fornecidos por esses anatomistas. As realizações de
Herófilo, Erasístrato e do menos conhecido Eudemo não só marcaram o início
do estudo de anatomia na Grécia como também, paradoxalmente, seu final, e,
por esse motivo, os historiadores só têm um relato restrito de seu
desenvolvimento temporal e geográfico. Como vimos, houve um profundo
interesse na segunda metade do século IV a.C. em descrever e interpretar uma
ampla variedade de fenômenos naturais. Aristóteles e seus seguidores, assim
como Diocles, dissecaram animais, aves e peixes para adquirir uma compreensão
maior do mundo da natureza, enquanto as pesquisas e as especulações de
Praxágoras sobre o pulso arterial resultaram em considerações posteriores a
respeito dos processos fisiológicos do corpo humano.5 Euenor, um médico
acarnânio residente em Atenas na década de 320, chamou a tuba uterina de
“espiral”, embora não se saiba se essa denominação foi resultado das dissecações
de animais com chifres ou sua experiência com partos difíceis.6 As teorias
médicas desses pensadores foram elaboradas com a ajuda da razão, mas em um
novo espaço epistemológico visível.7 É possível supor com facilidade a
influência desses desenvolvimentos nos anatomistas nos primórdios da
Alexandria. Herófilo foi aluno de Praxágoras, talvez em Cós, e tradicionalmente
Erasístrato tinha uma ligação com a escola de Aristóteles por intermédio de seu
diretor, Teofrasto de Eresus.8 Então, em determinado nível, a decisão de dissecar
um corpo humano era uma extensão compreensível da pesquisa relativamente
comum nos círculos intelectuais gregos; após examinar as estruturas internas de
uma ave ou de um carneiro, a dissecação do corpo de um ser humano tornou-se
factível.9 Porém, era uma decisão bastante problemática, não só porque rompia
um longo tabu grego de tocar em um cadáver de um ser humano, como ainda
mais grave a ideia de mutilá-lo. As leis religiosas proibiam a interferência em
um cadáver e essa proibição continuou na Grécia depois do início do estudo da
anatomia do corpo humano.10 Apesar da visão moderna aceita amplamente,
sobretudo entre intelectuais, de que a alma era transitória e imaterial, com uma
passagem temporária no corpo e que, após a morte, partia deixando uma concha
vazia, essa visão não era aceita pela maioria dos gregos, para os quais o cadáver
continuava a representar um ser humano.11 Estudos sobre dissecação do corpo
humano na Europa durante o Renascimento e em outros lugares demonstraram a
força da relutância em relação à interferência em um cadáver de um ser humano,
uma repugnância também disseminada entre os gregos.12 Mas havia uma região
no mundo antigo onde esse tabu aparentemente não existia. Desde a época de
Heródoto, ou talvez antes, os gregos sabiam que os egípcios retiravam os
principais órgãos dos cadáveres e os guardavam em grandes jarras antes de
embalsamá-los. Heródoto exprimiu uma mistura de fascínio e aversão diante
desse procedimento estranho, e outros viajantes fizeram relatos semelhantes.13
A conquista de Alexandre o Grande do Egito em 332-331 a.C. sujeitou os
egípcios às leis gregas e a criação da cidade de Alexandria “pelo Egito”, a oeste
de uma foz do Nilo, foi o símbolo da dominação grega. Alexandria era uma
cidade grega, fundada como uma base militar e política no novo território
conquistado. Embora mais tarde tenha se transformado em uma metrópole
cosmopolita, nos primeiros anos da ocupação da colônia grega o relacionamento
entre os gregos e os egípcios não era harmonioso. Os gregos controlavam com
firmeza a administração, a economia e a cultura da cidade; e por um longo
período os egípcios foram proibidos de obter a cidadania alexandrina.14 Além
disso, o preconceito do grego urbano contra as pessoas que viviam e
trabalhavam na região rural criou uma mentalidade de segregação racial, um
apartheid, sobretudo em relação aos camponeses egípcios, considerados de uma
raça quase sub-humana. Se os egípcios não demonstravam aversão pelo que, aos
olhos dos gregos, era uma mutilação e uma profanação de seus mortos, os gregos
não tinham motivo para se preocuparem com o que acontecia com os cadáveres
egípcios.15 A questão se Herófilo e Erasístrato aprenderam algo com os
embalsamadores egípcios, além de se libertarem do tabu grego é assunto
controvertido. Os que procuravam uma origem não grega do estudo da anatomia
do corpo humano e da compreensão dos órgãos internos do corpo poderiam citar
a terminologia anatômica sofisticada e a técnica de dissecação dos
embalsamadores egípcios.16 Porém, não existe uma evidência clara de que os
embalsamadores egípcios fizessem pesquisas sistemáticas nos órgãos que
removiam ou que a dissecação tinha outro objetivo além do ritual de preparação
do funeral.17 Autores de medicina egípcios e médicos, se for possível julgar
pelos poucos textos médicos que se preservaram, não usavam a informação
fornecida pela remoção dos órgãos para criar novas teorias ou justificar teorias
antigas. Embora os anatomistas gregos tivessem a liberdade de observar o
trabalho dos embalsamadores egípcios, sem um intérprete para explicar o que
estavam fazendo (os gregos resistiam à ideia de aprender a língua de outros
povos), muitos detalhes dos procedimentos ficariam obscuros.18 Os contatos
entre os intelectuais gregos e egípcios proeminentes em Alexandria eram um
pouco melhores e, mesmo ao longo do tempo, não existiu uma evidência da
ligação entre a medicina e o embalsamamento. Os embalsamadores e os médicos
formavam grupos profissionais separados.19 Na melhor das hipóteses a prática
de embalsamamento egípcia teria estimulado a romper o tabu grego na busca de
um desafio intelectual, que fora previsto nas discussões médicas e científicas
pelo menos há uma geração. No reinado da dinastia dos Ptolomeus Alexandria
proporcionou um ambiente notável para a inovação intelectual.20 O exemplo de
Aristóteles que, em sua relação íntima com Felipe da Macedônia e Alexandre,
incentivou esses monarcas a investirem em cultura e ciência é sintomático. As
novas cortes, em especial em Alexandria, Antioquia e mais tarde Pérgamo
atraíam intelectuais de todos os tipos: poetas, escultores, matemáticos e médicos.
A presença deles nas cortes não significava um amor desinteressado pela cultura
por parte do governante: os intelectuais tinham um papel mais prático como
meio de propaganda, na guerra e na supervisão geral da saúde do governante.21
Por ocasião das perseguições selvagens aos alexandrinos por Ptolomeu VIII em
145-144 a.C. muitos intelectuais exilaram-se, e foram acolhidos com entusiasmo
no mundo grego inteiro e, em consequência, como um contemporâneo disse,
Alexandria transformou-se no professor dos gregos e dos bárbaros.22 Em torno
de 300 a.C. Ptolomeu I criou duas instituições culturais que conferiram à
Alexandria sua grande reputação como um centro cultural, um museu e uma
biblioteca (ou bibliotecas, porque havia mais de uma na cidade). Se Galeno for
uma fonte confiável, Ptolomeu tentou obter por meios justos ou ilícitos cópias de
tudo o que fora escrito. Assim que os documentos chegavam à Alexandria eram
depositados nas bibliotecas reais, onde eram catalogados por renomados
estudiosos e bibliotecários. É provável que a coletânea de obras que compõe o
Corpus Hippocraticum tenha sido reunida pela primeira vez em Alexandria.23
Ainda mais importante foi a criação do museu por Ptolomeu I, o “Templo das
Musas”, perto do palácio real. O museu abrigava uma comunidade de estudiosos
e intelectuais, que, em troca de cumprirem suas obrigações com as Musas (e com
o monarca), ganhavam alojamentos e refeições grátis vitalícios.24 Essa
comunidade tinha poetas, críticos, matemáticos e geógrafos e, embora séculos
mais tarde seus membros incluíssem funcionários do governo, ainda manteve o
prestígio como um centro cultural.25 Havia uma troca de ideias entre os
membros do museu: o poeta Calímaco conhecia algumas descobertas médicas
contemporâneas, enquanto, como veremos, as teorias de Herófilo e Erasístrato
originaram-se em parte de novas pesquisas científicas e tecnológicas de outros
estudiosos.26 Embora nada indique que os membros do museu fossem obrigados
a ensinar ou fazer palestras, a presença deles atraía alunos que queriam
conversar e estudar com os grandes homens da época em uma atmosfera
intelectual vibrante.27 Os alunos de Herófilo eram a sua “família”, o que indica
que viviam em comunidade, mas não necessariamente no museu.28 Não se sabe
ao certo se Herófilo fazia pesquisas anatômicas. Se aceitarmos a atraente
sugestão de Longrigg de que ele realizava dissecações dentro das muralhas
protetoras do museu, os cadáveres deveriam então ser uma espécie de sacrifício
às Musas (o caráter religioso do museu revelou-se pelo fato de ser dirigido por
um sacerdote designado pelo governante) e qualquer oposição violenta ao
desempenho deles seria talvez diminuída.29 O envolvimento do rei
(provavelmente sob Ptolomeu I e Ptolomeu II, que governaram de 282 a 246)
estendia-se mais além da mera proteção, porque os trabalhos de anatomia
dependiam da permissão oficial mesmo se os cadáveres fossem de criminosos
condenados. Se, como Celso relatou, os criminosos estivessem vivos ao serem
entregues aos anatomistas pelas cadeias do reino, a aprovação superior ainda era
imprescindível.30 No entanto, é difícil provar a história de Celso, porque muitos
relatos associavam dissecações de seres humanos a vivissecções de animais.
Galeno, que deveria ter mencionado a vivissecção praticada em Alexandria, não
só porque escrevera um tratado específico a respeito das técnicas de dissecação
(animal), omitiu qualquer comentário sobre essa prática em seres humanos.31 A
maioria dos galenistas posteriores, tanto em Bizâncio quanto em países
mulçumanos, nunca se referiu à dissecação de corpos de seres humanos, e as
exceções, como João de Alexandria e Agnello de Ravena, dependeram
indiretamente de Celso ou de sua fonte.32 A condenação mais séria à prática da
vivissecção do teólogo cristão Tertuliano feita no início do século III pode ser
ignorada com facilidade como um grande exagero de um opositor da dissecação
de animais e de seres humanos.33 Mas, em geral, Celso conhecia as práticas de
anatomia e de cirurgia helenística, e seus comentários foram feitos em um
contexto do debate acadêmico na Grécia sobre o valor da anatomia. Em razão
também das experiências farmacológicas posteriores de Átalo de Pérgamo e
Mitrídates VI de Ponto feitas em seres vivos, não existe um motivo a priori para
rejeitar a possibilidade de pesquisas anatômicas em seres humanos, sobretudo,
em criminosos que haviam infringido as leis morais e sociais, a dissecação
significava uma forma de expiação e uma compensação para o bem-estar
geral.34 Apesar de os relatos sobre vivissecção terem sido rejeitados por seu
exagero polêmico, não há dúvida de que a pesquisa sistemática referente à
anatomia interna do corpo humano foi realizada pela primeira vez por Herófilo
de Calcedônia.35 Não há registro da vida de Herófilo quando criança e jovem,
exceto por um período de estudo com Praxágoras, que talvez lhe tenha mostrado
as obras de Hipócrates.36 No entanto, apesar da familiaridade com essas obras
que levou mais tarde alguns médicos a acreditarem que era autor do tratado
hipocrático Nutrição, ele não se limitou às ideias de Hipócrates. Herófilo fez
uma leitura crítica do conceito de prognóstico hipocrático e, embora tenha
baseado suas noções de fisiologia e patologia na teoria dos humores, sua
interpretação divergiu do A natureza do homem.37 O interesse dele pelo
significado das palavras hipocráticas e dos termos técnicos refletiu sua tendência
a dar nomes estranhos a algumas estruturas anatômicas que descobriu. A fossa
romboide (um sulco em forma de cone no cérebro), o tórculo (“lagar”, a
confluência das veias do cérebro), o plexo coroide (assim chamado por se
assemelhar às membranas que envolviam o feto), a forma “estiloide” da cabeça,
o duodeno (“com o comprimento de 12 dedos”) e talvez o corpo pineal (“a
glândula pineal”) foram termos cunhados por Herófilo.38 Seus estudos de
anatomia abrangeram o corpo inteiro, desde a enumeração minuciosa das
camadas do olho e a primeira descrição detalhada do fígado ou talvez do
pâncreas, até os sistemas reprodutivos dos homens e das mulheres.39 Herófilo
continuou os estudos de Praxágoras dos sistemas nervosos e vasculares e fez a
distinção anatômica e funcional das veias e das artérias, ao observar a espessura
maior das camadas arteriais.40 Ele foi o primeiro a reconhecer a importância do
sistema hepático da veia porta, assim como conhecia, pelo menos em parte, o
sistema das válvulas do coração.41 Herófilo rejeitou a opinião de Praxágoras de
que as artérias transportavam só pneuma, o espírito, o veículo da sensação, em
detrimento da crença da mistura de sangue e pneuma.42 Séculos depois, Galeno
ficou impressionado com seu trabalho sobre o sistema nervoso, no qual
descreveu as diversas camadas do cérebro, fez a distinção entre os ventrículos
cerebrais, assim como revelou um conhecimento minucioso de vários nervos do
crânio.43 Embora grande parte de suas experiências anatômicas fossem
realizadas em animais – sua descrição do útero correspondia à de um animal,
enquanto a do rete mirabile baseou-se em um ungulado – diversos comentários
seus e as comparações ao falar do fígado, mostraram que havia dissecado
também seres humanos.44 O destaque de autores posteriores a respeito de suas
descobertas anatômicas ocultou o fato de que essas investigações constituíam
apenas uma parte de sua atividade como médico e escritor. Seus estudos
forneceram informações de caráter mais prático, e a dissecação, por exemplo,
contribuiu para o livro sobre parteiras, no qual discutiu, inter alia, os partos
múltiplos e o prolapso uterino.45 Sua divisão dos nervos em motores e
sensoriais e a pesquisa da cooperação deles com o movimento voluntário foram
muito importantes para a medicina nos casos de paralisia.46 Acima de tudo, seus
estudos proporcionaram uma justificativa anatômica e uma explicação dos
batimentos do pulso, que ele considerava essencial para o diagnóstico.47 Com
esse objetivo construiu um relógio de água portátil para medir o batimento do
pulso e elaborou uma série de tipos diferentes de pulsos, classificando-os por
tamanho, velocidade, intensidade e ritmo, com o uso de uma terminologia que
tinha muitos paralelos com a teoria da música dessa época.48 Por sua vez, suas
pesquisas anatômicas e suas teorias terapêuticas tinham características
tradicionais e não radicais, sem dúvida em comparação com as ideias de
Erasístrato. Segundo Galeno, suas descobertas anatômicas confirmaram as
verdades terapêuticas inspiradas em Hipócrates. Herófilo defendia a flebotomia e
o tratamento por opostos, embora recomendasse a precaução de sempre
identificar com segurança a causa correta.49 Mas, de acordo com Galeno, sua
recusa em discutir terapias em termos das quatro qualidades básicas, quente, frio,
úmido e seco significou uma diminuição drástica e desnecessária do número de
opções disponíveis para um médico.50 Ele acreditava com convicção no uso
liberal de medicamentos, “as mãos dos deuses”, como os chamava, para quase
todas as doenças e contribuiu para a criação de uma tradição alexandrina de uma
farmacologia complexa.51 Seu remédio mais famoso e o mais perigoso era o
potente heléboro, que comparava a um general muito corajoso pela capacidade
de estimular todos os órgãos internos do corpo antes de seguir à frente.52 Porém
também elogiava outras maneiras de manter o bem-estar físico, porque “sem
saúde uma pessoa era uma força inútil, uma riqueza sem valor, e um discurso
sem poder”, e uma estátua erguida em sua memória era decorada com
equipamentos de ginástica.53 Em resumo, as terapias usadas por Herófilo e a
diversidade dos tópicos sobre os quais escreveu eliminaram a ideia que dedicara
o tempo inteiro, ou grande parte dele, à dissecação. Suas experiências de
dissecação faziam parte de um tópico de sua medicina, ao qual ele definia como
“a ciência das coisas relacionadas à saúde ou à doença, ou a que se referia a
nenhuma dessas alterações”.54 Nesse sentido, a medicina abrangia uma ampla
gama de estados de saúde e proporcionava os meios para preservar e restaurar o
bem-estar. Ao contrário do veredicto favorável que Herófilo recebeu na
posteridade, seu contemporâneo Erasístrato de Ceos era, e permaneceu, uma
figura muito mais controvertida. Não se sabe ao certo quando ou onde viveu.
Supostamente foi submetido à lei local de sua ilha que condenou à morte as
pessoas com mais de 60 anos. A observação de Galeno de que ele realizou
dissecações anatômicas mais precisas só no final da vida, quando pôde se
dedicar totalmente à anatomia, apesar de plausível, também não tem um
fundamento objetivo.55 Embora seu pai, Cleômbroto, e o professor, Crisipo de
Cnido, tivessem ligações com a corte selêucida, não existem provas de que
Erasístrato tenha trabalhado nessa corte ou em Alexandria.56 Apesar de mais
tarde ter ficado famoso como o médico que tratou da rainha selêucida Stratonice,
doente de paixão, seu nome só apareceu em um estágio posterior na evolução da
história.57 A história tradicional de que fora, de certa forma, aluno de Teofrasto
em Atenas, ou de outro peripatético, Metrodoro, também não tem bases sólidas e
talvez seja apenas uma tentativa de explicar o uso de ideias e práticas inspiradas
em filósofos e cientistas.58 Dos seus escritos só restaram fragmentos, poucos
deles copiados palavra por palavra. Mesmo quando citados diretamente, em sua
maioria os textos foram alterados em debates posteriores para provar ou
discordar do caso. Galeno, nossa única fonte extensa, no mínimo tinha uma
opinião ambivalente a seu respeito. Por outro lado, elogiava um pouco seu
trabalho de dissecação do cérebro e do coração, citando com aprovação a
comparação de Erasístrato de um pesquisador neófito a um atleta sem preparo
físico: Assim que sua mente começava a trabalhar, ficava confuso e perplexo,
pronto para desistir de sua pesquisa em um estado de cansaço e exaustão mental,
como um maratonista em uma corrida. Mas com uma prática constante, uma
pesquisa contínua, não só por uma hora ou pouco mais, e sim com um trabalho
incessante durante a vida inteira, ele conseguiria se aprofundar em qualquer tema
que escolhesse, e atingiria sua meta com uma investigação persistente de
qualquer assunto relevante.59 Erasístrato foi o primeiro estudioso a descobrir as
valvas do coração e examinou seu funcionamento em minúcias até concluir que
a função delas era evitar um refluxo, quando o coração expandia-se ou se
contraía “como o fole de um ferreiro”.60 Ele traçou os caminhos das veias e das
artérias e concluiu que cada sistema dividia-se em vasos sanguíneos cada vez
menores que por fim se uniam, mas de paredes tão estreitas que o sangue não
conseguia, em circunstâncias normais, passar de um sistema para outro.61 Sua
pesquisa sobre o cérebro humano mudou sua opinião quanto ao ponto de origem
dos nervos que, primeiro, se localizava na dura mater, mas depois concluiu que
ficava no cérebro.62 Galeno também se impressionou com seus experimentos, e
até mesmo repetiu alguns deles para confirmar ou rejeitar suas conclusões.
Erasístrato às vezes usou seus experimentos para solucionar problemas.63 Ele
inseriu uma cânula em uma artéria a fim de descobrir se o batimento era uma
característica inerente da membrana arterial, ou o resultado do pneuma seguindo
pelas artérias em direção ao coração.64 Em outra ocasião ele mostrou que
existiam eflúvios invisíveis de animais obtidos ao manter um pássaro em um
recipiente sem comida por algum tempo e depois pesá-lo junto com as fezes
visíveis, a fim de comparar o resultado com o peso original.65 Mas, por outro
lado, Galeno rejeitava com desprezo muitas conclusões de Erasístrato baseadas
em suas dissecações e experimentos e usou divergências entre seguidores de
Erasístrato para indicar falhas e inconsistências do professor. Às vezes suas
discussões eram injustas e devastadoras. Segundo Galeno, a relutância de
Erasístrato em acreditar na teoria dos humores descrita por Hipócrates em A
natureza do homem significou uma rejeição indiscriminada à teoria dos
humores; Erasístrato recusou-se também a aceitar a aplicação universal da
teleologia platônica “direcionada”, o princípio explicativo fundamental para
descobrir uma organização objetiva do corpo.66 Embora outras fontes, como
Anonymus Parisinus, o tenham incluído na lista de médicos que mereciam ser
citados por suas opiniões a respeito de diversas doenças, não foram suficientes
para neutralizar a crítica dura de Galeno e garantir a sobrevivência de seus
escritos pouco além do século II d.C.67 Em parte essa crítica resultou do fato de
que, ao contrário de Herófilo, Erasístrato não se inseria na linha de
desenvolvimento que seguia direto de Hipócrates aos professores de Galeno. Ele
não fez comentários a respeito de Hipócrates e, na medida em que é possível
discernir influências, ele inspirou-se muito mais em Aristóteles e em sua escola
do que em Platão.68 A exuberância intelectual de Erasístrato levou-o a fazer
pesquisas amplas e a contestar conclusões, nem todas fáceis de conciliar com as
ideias iniciais sobre o corpo humano. Ainda mais surpreendente era sua
tendência natural em incorporar em sua medicina diversos conceitos e técnicas e
colocá-los em prática por meio de cientistas e engenheiros contemporâneos. Em
vez de apenas se basear ou repetir os textos escritos sobre medicina de seus
predecessores, ele criou uma visão própria do corpo humano em parte inspirada
em ideias de homens que não eram médicos. Ao contrário de Herófilo, cujas
descrições do corpo humano davam a impressão de algo estático, Erasístrato
descreveu o corpo humano como um organismo vivo e em funcionamento, que
se podia explicar em termos da mecânica e da física.69 Os textos de Erasístrato
contêm muitas analogias com a mecânica.70 Os rins, o fígado e a bexiga agiam
como filtros.71 O estômago triturava e esmagava a comida ingerida como um
moinho de farinha, causando uma sensação de fome se continuasse a triturá-la
depois que estivesse bem moída.72 O crescimento e a nutrição eram processos
mecânicos, pelos quais o alimento essencial e o pneuma distribuíam-se pelo
corpo por meio de uma corda tripla invisível de vasos sanguíneos, nervos, veias
e artérias que se fortaleciam e ficavam flexíveis em razão do entrelaçamento.73
Ossos, carne e a substância do cérebro eram produzidos como parenchyma a
partir desse nutriente, e uma parte distribuía-se por um processo de vácuo. Para
preencher o vazio deixado pelo nutriente que fora absorvido, mais nutrientes
eram ingeridos, porque um vazio permanente era impossível.74 O corpo humano
tinha fluidos humorais, mas eles prejudicavam o organismo por meio de
bloqueios ou pelo excesso, em vez de mudanças qualitativas induzidas.75
Portanto, muitas doenças resultavam de uma falha mecânica e, por esse motivo,
os tratados de, sobre febres, paralisia ou talvez alguns que abordaram a
hidropisia e a flebotomia também incluíram uma descrição de informações
anatômicas importantes.76 A hidropisia, por exemplo, era resultado da cirrose,
uma doença crônica do fígado, que caía como uma pedra e permitia apenas que o
sangue fino e aquoso fluísse para as veias.77 A experiência de Erasístrato de
tratar de doentes com paralisia e problemas mentais estimulou-o a pesquisar a
anatomia do cérebro e ficou encantado com suas descobertas.78 Ainda mais
controvertida era sua crença de que a febre e a inflamação resultavam do sangue
infiltrado nas veias pelas artérias, que, em um organismo saudável, continha só
pneuma.79 Em relação ao óbvio comentário que, ao serem cortadas, as artérias
sangravam, Erasístrato retrucou com uma interpretação inteligente baseada na
física de sua época. Assim como a passagem do sangue ou do pneuma da artéria
aorta para o ventrículo cardíaco, a presença do sangue nas artérias poderia ser
explicada pelo princípio de vácuo.80 Do mesmo modo que o sangue ou o
pneuma movia-se de uma câmara para outra e, em seguida, para o lado externo
quando as valvas do coração abriam-se para que fluísse pelo espaço vazio do
material expelido, quando uma artéria era cortada, o pneuma escapava e o
sangue entrava nas veias para preencher o vácuo.81 A hipótese de Erasístrato ter
baseado sua teoria em Estratão de Lampsaco ou na observação de algumas
máquinas criadas por Cresibius é menos importante do que o fato de que ele via
o funcionamento do corpo humano como um processo mecânico de um sistema,
que conectava as veias e as artérias por minúsculos vasos capilares.82 Em geral,
em estado saudável o sangue não circulava de um sistema para outro. Mas
quando a artéria era cortada, o pneuma soltava-se, um vácuo era criado e o
sangue fluía para encher o espaço vazio. Em outras circunstâncias o excesso de
material, e não a ausência, provocava a passagem do sangue para as veias e as
artérias. A pressão do sangue nas veias “movia-se como o mar agitado por um
vento forte” e circulava pelos capilares até as artérias.83 Erasístrato concluiu que
esse vazamento de sangue causava febre ou, na verdade, segundo outro relato de
suas opiniões, todos os tipos de doenças.84 Para Galeno essa teoria de infiltração
era ridícula e desnecessária, uma perversão de uma observação anatômica sólida,
uma distorção do ponto de vista clínico. Essa teoria poderia ser contestada, tanto
pela lógica (e Galeno sem piedade mostrou muitos pontos fracos em sua base
teórica) quanto por experimentos. A repetição da inserção experimental de uma
cânula em uma artéria unida feita por Galeno demonstrou, segundo ele, a
falsidade de qualquer crença nos batimentos como um processo mecânico dentro
das artérias, oposta a algo transmitido dentro das camadas das artérias.85 Ele
também criticou Erasístrato pelo fracasso em conciliar suas terapias às teorias,
ao não mencionar a flebotomia como um meio rápido e eficaz de retirar o
excesso de sangue.86 Em vez da prática da flebotomia, Erasístrato privilegiava a
dieta alimentar, remédios e curativos para remover o sangue de uma
intumescência e evitar mais acúmulo de sangue.87 Mas, ao mesmo tempo,
quando pressionado, Galeno reconheceu a preocupação de Erasístrato com seus
pacientes, sua atenção cuidadosa com a dieta e os remédios (inclusive o
desagrado em relação a purgantes fortes) e sua relutância em recorrer a uma ação
drástica que poderia ter consequências mais sérias.88 No entanto, Erasístrato
estava preparado para correr riscos. Se fosse necessário realizar um tratamento
ousado em um paciente com hidropisia ele não relutava em fazer uma remoção
profunda do líquido seroso no corpo, um procedimento, como admitiu, que às
vezes causava a morte do doente.89 Em outra ocasião fez um procedimento
“audacioso”, ao remover a carne e as membranas para aplicar remédios
diretamente no fígado.90 Porém, em geral, ele enfatizou tratamentos com mais
possibilidade de sucesso por meios graduais, aos quais o paciente se
acostumaria, do que uma intervenção drástica.91 Erasístrato suscitou
controvérsias já na sua época. Entretanto, foi também uma figura respeitada
cujos escritos e influência perduraram durante séculos.92 Galeno teve acesso a
vários livros dele, aparentemente com uma experiência direta, e os usou para
criticar os seguidores de Erasístrato em Roma por falta de fidelidade aos
ensinamentos do mestre.93 Mas apesar da sobrevivência de sua terapia, mesmo
com uma interpretação errada, não se tem certeza até que ponto seus
experimentos e dissecações foram realizados por outras pessoas durante e depois
de Herófilo e Erasístrato. Existe um pequeno texto no Corpus Hippocraticum, O
Coração, que contém uma descrição do coração cujas membranas ocultas, “uma
peça artística digna de ser descrita”, incluía pelo menos a valva aórtica e a
pulmonar.94 Não se sabe com certeza quando e onde esse tratado foi escrito. A
linguagem sugere o período helenístico, mas o fato de o autor mencionar um
conjunto de valvas e não as valvas de “entrada” descobertas por Erasístrato, e de
descrevê-lo em termos de “hastes”, de “teias de aranha” e “fibras” e não de
pequenas portas, sugere que escreveu antes dessas descobertas.95 Nem existem
evidências de uma conexão com Herófilo ou qualquer outro alexandrino, e as
indicações da influência da filosofia estoica são na melhor das hipóteses
sugestivas.96 Embora seja tentador imaginar o autor fazendo um programa
aristotélico de dissecação animal (porque a descrição do coração correspondeu à
de um animal, assim como recomendou uma experiência com um porco para
demonstrar como sua epiglote era apertada), essa não é uma informação
segura.97 Não existem associações óbvias a escolas, nem referências a trabalhos
de outras pessoas. Tudo o que se pode dizer é que autor dizia ser um anatomista
muito habilidoso que pensava nas consequências mais abrangentes de seu tema,
e que, qualquer que fosse a época, trabalhava distante de um centro conhecido.
Porém seria implausível que esse homem desconhecesse as descobertas de
Herófilo e Erasístrato e, portanto, a data da década de 270 é a mais provável.
Mas, é importante dizer que nosso conhecimento de medicina e dos grupos de
médicos desse período é tão fragmentado, e a compreensão do processo pelo
qual as novas ideias e descobertas eram transmitidas tão precária, que na melhor
das hipóteses essa é uma conclusão muito frágil.98 Eudemus, outro anatomista
contemporâneo de Herófilo e Erasístrato, embora não se saiba ao certo onde
viveu e escreveu um tratado sobre anatomia. Galeno elogiou-o por ser um hábil
anatomista, mas apesar da capacidade técnica suas conclusões eram
discutíveis.99 Eudemus fez uma descrição dos ossos e pesquisou o pâncreas e os
nervos, assim como a passagem das veias do cordão umbilical do feto para o
útero.100 Ele viu e descreveu as tubas uterinas, embora seja mais provável que
Galeno estivesse se referindo a outro médico, Euenor.101 A autoria de um trecho
de um papiro do século I a.C. atribuída a ele por Wellmann é ainda mais
discutível. Sua divisão de nervos motores e sensoriais é posterior a Herófilo,
enquanto sua menção aos nervos no cérebro e aos nervos da medula espinhal
continuou uma discussão iniciada por Erasístrato.102 Mas é impossível afirmar a
partir de um documento tão deteriorado se era um relato independente de novas
dissecações ou, mais provável, um pequeno resumo dos resultados alcançados
muito antes. A prova de um interesse intenso pela dissecação investigativa na
primeira metade do século III a.C. realizada em animais ou, na Alexandria, em
seres humanos é um contraste profundo com os desenvolvimentos posteriores. A
lista de anatomistas de Galeno tem uma grande lacuna entre Eudemus e Marino,
que floresceu no final do século I d.C.103 Rufus de Éfeso, que visitou
Alexandria, lamentou que, em sua época, no final do século I d.C., só se
conhecia as partes do corpo humano pela observação da anatomia superficial de
um escravo e pela dissecação de animais, enquanto “antigamente esse
conhecimento era ensinado com mais precisão em seres humanos”.104 No
entanto, a falta de interesse em uma dissecação sistemática não pode ser vista
como um desprezo pelo conhecimento anatômico. A discussão de Celso a
respeito da dissecação em seu prefácio baseava-se em um escritor anterior (ou
escritores) para quem a questão de dissecar ou não ainda era uma possibilidade
prática.105 Do mesmo modo, no início do século I a.C. Apolonio de Cítia
criticou Hegetor e os seguidores de Herófilo contemporâneos pela inconsistência
ao afirmar a importância da anatomia, apesar do fracasso em aplicá-la na
prática.106 Ele preferia a experiência em vez da dissecação, dele e de outros,
contradizendo a explicação anatômica de Hegetor de um quadril deslocado
apenas por uma interpretação minuciosa de passagens de Hipócrates.107 Embora
Celso e Apolonio participassem do debate sobre a importância da anatomia, a
opinião deles mostrou uma mudança no foco investigativo e experimental da
dissecação. Eles não relataram novas descobertas nem novos experimentos.
Mesmo para as pessoas que consideravam o conhecimento anatômico essencial,
esse conhecimento subordinava-se a um objetivo mais abrangente da medicina,
que proporcionou uma base para progressos referentes aos batimentos do pulso e
a cirurgia.108 O argumento de seus defensores era pragmático: se alguém
conhecesse bem anatomia, essa pessoa seria capaz de tratar de doenças e de
receitar remédios. A objeção ética de que a dissecação do ser humano era
desnecessariamente cruel opunha-se apenas ao argumento que beneficiava o
futuro livre do dano causado por alguns criminosos.109 As dificuldades
epistemológicas suscitadas pelos empíricos (ver p. 246-254) e confirmadas por
Cícero não são solucionadas no prólogo de Celso: a questão da anatomia
continuou no nível de um benefício prático.110 A visão da dissecação como um
ato cruel, irrelevante e desnecessário, uma visão “aceita pela maioria das
pessoas” segundo Celso, ajuda a explicar o declínio da anatomia praticada por
Erasístrato, sobretudo, porque foi acompanhada por mudanças sociais e políticas
que aos poucos eliminou o “espírito de fronteira” dos primeiros anos da criação
de Alexandria. Não houve na Antiguidade uma institucionalização formal da
ciência, inclusive da medicina, comparada às universidades e faculdades de
medicina na Idade Média e no Renascimento, que proporcionaram uma
estabilidade e garantiram a continuação de ideias e práticas de gerações de
pesquisadores. Era raro que um interesse em um aspecto específico da pesquisa,
por exemplo, em mineralogia ou estática, continuasse a ser pesquisado com
profundidade por mais de uma geração ou duas. O desinteresse pela anatomia
em 250 a.C. é um exemplo dessa tendência, embora haja outros fatores que
motivaram essa indiferença.111 É pouco provável que a proteção real tenha
terminado formalmente, mas os argumentos passíveis de justificar o apoio aos
que queriam fazer experiências em criminosos enfraqueceram-se cada vez
mais.112 Assim que uma informação importante fosse estabelecida por Herófilo
e Erasístrato diminuía a necessidade de repetir investigações desumanas para
apenas confirmar o que já se sabia. Algumas pessoas alegavam que novas
informações sobre anatomia poderiam ser descobertas por acaso e sem
dificuldade, do mesmo modo que pela prática sistemática da anatomia, porque
um observador perspicaz não deixaria de perceber os mínimos detalhes.113 Por
sua vez, era possível adquirir todo o conhecimento necessário a respeito da
anatomia por meio da leitura e se tornar, como lamentou Galeno, um timoneiro
que navegava perigosamente só com o que aprendeu em um livro.114 Outros, a
maioria, discordavam de sua crítica do aprendizado apenas com a leitura de
livros, e suas objeções ainda continuam a ser discutidas hoje em relação ao papel
e à metodologia da dissecação anatômica do corpo humano no treinamento de
um estudante atual de medicina. Os que defendiam a necessidade de fazer
dissecações em cadáveres de seres humanos, a fim de entender o corpo humano
e ser um médico mais competente agora encontram resistência dos que
argumentam que muitas habilidades antigas dos médicos tornaram-se obsoletas
com os recursos da tecnologia moderna e que a realidade simulada por um vídeo
interativo de um corpo humano ensina muito mais do que uma dissecação em
um cadáver. O dilema helenístico ainda continua.

10 A Medicina Helenística Dedicar um capítulo à história da medicina no mundo


helenístico grego, como um tema à parte da anatomia e da introdução da
medicina grega em Roma, parece uma ideia no mínimo extravagante. Poucos
tratados originais haviam sido preservados, uma situação em geral característica
da literatura grega desse período. O sucesso dos estudiosos helenísticos ao
recomendar como modelos as obras dos historiadores, poetas e oradores gregos
antigos influenciou a sobrevivência dessas obras. A produção intelectual
posterior à Idade de Ouro era decadente, sem originalidade ou um propósito
sério, escrita por pedantes encastelados em torre de marfim, como o gorjeio de
pássaros presos em gaiolas e tão inúteis como eles.1 No campo da filosofia, os
últimos triunfos da doutrina aristotélica e do neoplatonismo deixaram pouco
espaço para seus opositores, os epicuristas e estoicos.2 Na medicina, o
galenismo estreitou o vínculo com Hipócrates em detrimento de outros
desenvolvimentos teóricos no mundo helenístico e, em razão de os escritores
pensarem que os resultados mais importantes do trabalho dos farmacologistas e
dos cirurgiões helenísticos poderiam ser incorporados com facilidade a tratados
mais atuais, não houve motivo para preservar os livros originais. A literatura
médica do período helenístico teve, portanto, de ser quase toda reconstruída a
partir dos fragmentos preservados por outras pessoas, com o constante perigo de
deturpação ou má interpretação do sentido. As aptidões tradicionais dos
filólogos, a decodificação e a interpretação de um texto antigo eram exercidas
em um material que raramente garantia segurança. No entanto, em uma
perspectiva diferente esse empreendimento histórico tem um aspecto menos
sombrio. Embora muitos detalhes tenham se perdido, novas tendências, novos
desenvolvimentos e novas oportunidades surgiram, sem os quais a história da
medicina greco-romana não poderia ser compreendida de maneira adequada.
Novos tipos de evidências começaram a aparecer em grande quantidade, em
especial nos papiros egípcios e nas inscrições gravadas nas cidades ao redor do
mundo grego, sobretudo na Ásia Menor. Nos séculos V e IV a informação
dependia basicamente de tratados médicos, discursos, histórias e peças teatrais,
mas no período helenístico essa dependência direcionou-se para a evidência não
literária. Não existia o predomínio de uma cidade; mesmo a medicina
alexandrina adquiriu uma característica diferente ao ser observada de uma cidade
a centenas de quilômetros de distância do vale do Nilo. Nem havia uma coleção
de material contemporâneo, como o Corpus Hippocraticum, no qual a atenção
poderia se concentrar com facilidade. O padrão resultante era bem mais
diversificado e com uma visão mais impressionista.3 No século IV a.C. a teoria
da dieta alimentar desenvolveu-se quase como uma parte independente da
medicina, e no período helenístico a farmacologia sofreu um processo idêntico.
As conquistas de Alexandre e o crescimento de Alexandria como o principal
entreposto de importação e exportação de mercadorias raras da África e da Índia
resultou em um aumento maciço da comercialização de ervas e especiarias.4 O
aluno e sucessor de Aristóteles, Teofrasto (c. 371-287), interessava-se por vários
aspectos da biologia e escreveu muitas obras sobre plantas, inclusive as
medicinais, associando informações obtidas com pessoas que colhiam raízes às
suas observações e experiências.5 Sua lista de plantas é muito mais extensa do
que a relação de plantas do Corpus Hippocraticum, e o número de novas
substâncias registradas em textos de medicina e de botânica continuaram a
aumentar ao longo dos séculos. Esse interesse por novos fármacos foi
acompanhado por uma compreensão mais sofisticada de seu funcionamento.
Atribui-se a Diocles a introdução do conceito importante de que os remédios
funcionavam de acordo com suas propriedades, ou potencialidades como
Aristóteles referia-se ao sentido da palavra.6 Em um veneno, por exemplo, a
secreção venenosa transmitida, mesmo em pouca quantidade, tinha o potencial
de causar enormes mudanças no organismo infectado. Erasístrato aperfeiçoou
esse conceito ao discutir antídotos em um tratado intitulado Sobre as causas ou, é
mais provável, em um grande trabalho sobre as propriedades dos venenos.7 Ele
descobriu o efeito exato da mordida de uma cobra venenosa, a cêncrines, ao
realizar uma autópsia.8 Mas o desenvolvimento da botânica aplicada à medicina
deveu-se mais aos seguidores de Herófilo do que aos adeptos de Erasístrato.9
Embora nenhuma de suas obras tenha sobrevivido na íntegra, Andreas de Caristo
(+217 a.C.), um dos médicos pessoais de Ptolomeu IV do Egito, e Mantias (fl.
120-100) foram figuras representativas da medicina, e seus retratos estão entre
os dos grandes farmacologistas nas páginas iniciais do manuscrito Dioscórides
de Viena (c. 512 d.C.). Andreas foi elogiado por Dioscórides em seu prefácio
como um dos dois melhores escritores de raízes e plantas medicinais − o
segundo era Crateuas − embora outros acreditassem menos em sua experiência
pessoal.10 Mantias especializara-se na preparação de remédios feitos com
substâncias diferentes, apesar de não ter sido o primeiro a fazer essas
preparações.11 Outro farmacologista, Apolodoro (fl. 280 a.C.), foi considerado
por escritores posteriores como o autor do primeiro estudo específico sobre
venenos. É provável que tenha sido uma das fontes consultadas pelo poeta
Nicandro de Cólofon, cerca de 100 anos depois, para escrever seus dois poemas
sobre farmacologia, Teríaco e Antidotos.12 Escritos com um estilo floreado e
pomposo, esses dois poemas descreveram venenos de animais e de plantas.
Antidotes descreveu em detalhes extremamente precisos o efeito específico de
plantas tóxicas, mas os efeitos dos venenos de animais não têm uma
diferenciação clara ou são menos compreendidos.13 A transposição de um
material sobre medicina para um poema didático − e Nicandro não foi o primeiro
nem o último a fazer essa adaptação −,14 revelou o contexto cultural no qual a
medicina culta desenvolvia-se. Nicandro precisava de público que soubesse
apreciar seu tour de force linguístico, assim como a informação técnica
interessante contida em seus poemas.15 Em sua virtuosidade ele seguiu o
exemplo de um poeta importante de Alexandria no século III, Calímaco, que
incorporou em sua poesia algumas ideias de autores de obras de medicina e de
médicos. Seu contemporâneo, o epigramatista Posidipo, dedicou uma parte de
seus poemas a descrições minuciosas de curas médicas, a Iamatika.16 A
farmacologia também encontrou patronos entre os reis e médicos. Átalo III de
Pérgamo (que governou de 138 a 133 a.C.) supostamente fez experimentos
farmacológicos com venenos em seus escravos.17 Mitrídates VI de Ponto (132-
63 a.C.) celebrizou-se por, hipoteticamente, se proteger de envenenamento
ingerindo pequenas doses de veneno até se habituar ao efeito. Mitrídates batizou
um remédio famoso com seu nome, o mitridato, que prometia uma cura
universal porque incluía todos os antídotos conhecidos.18 Pompeu Leneu, um
escravo liberto do general romano Pompeu, após a conquista de Ponto levou
seus remédios para Roma.19 Mitrídates mantinha contato com o médico e
botânico, Crateuas (fl. 90 a.C.), cujo longo livro foi um dos primeiros a ter
ilustrações de plantas.20 A grande quantidade de novos remédios e novas
técnicas de botânica resultou em problemas para quem os usava. Em torno de 70
a.C., Heráclides de Tarento escreveu um tratado dedicado especificamente à
preparação adequada de remédios e de como testá-los, e o ofereceu a Antíoco,
provavelmente a mesma pessoa da médica homenageada com uma estátua na
praça principal de sua cidade natal de Tlos, no sudoeste da Turquia, por seu
conhecimento notável de medicina.21 Heráclides foi autor de outra coleção de
receitas de remédios intitulada O soldado, que abordou a medicina militar.22
Outros autores escreveram livros sobre cosmética e embelezamento, entre os
quais o mais famoso foi, supostamente, escrito por Cleópatra, rainha do Egito
(que governou de 51 a 30 a.C.), embora essa autoria seja tão pouco provável
como a tradição posterior, segundo a qual ela ensinara farmacologia a Galeno.23
A cirurgia foi outro campo da medicina no qual os principais progressos não são
muito claros. As descobertas anatômicas de Herófilo e Erasístrato resultaram em
novas técnicas e instrumentos, e os cirurgiões de Alexandria ficaram famosos
pelo trabalho com fraturas e deslocamentos.24 A cirurgia paliativa, sobretudo
quanto às deformações congênitas como pé torto, não tinha o objetivo de curar a
doença, e sim de permitir que o paciente tivesse uma vida relativamente normal
e sem dor.25 Mas se também diminuía o estigma da deformidade é uma questão
mais complexa.26 O autor romano Celso fez descrições detalhadas de talas para
fraturas e outros dispositivos mecânicos descobertos em sua época para ajudar
na recuperação de uma cirurgia ou de ferimentos e, por esse motivo, é tentador
situar também nessa época o início de um comércio especializado em
instrumentos de medicina, embora a maioria continuasse a ser fabricada pelo
ferreiro local.27 O comentário de Apolonio de Cítia no tratado hipocrático
Articulações revelou um pouco da complexidade da cirurgia praticada em
Alexandria.28 Apolonio, que trabalhou na corte de um dos Ptolomeus em Chipre
ou no Egito em torno de 90 a.C., discutiu em seu texto hipocrático os
deslocamentos de quadril e ilustrou a discussão com desenhos e diagramas.29
Nos manuscritos preservados de sua obra, sobretudo no códice Nicetas de c. 900
d.C., os desenhos foram refeitos, mas a relação com os originais de Apolonio e
seu texto é clara.30 O livro de Apolonio é mais uma reflexão sobre o tratado
hipocrático do que um comentário no sentido estrito da palavra. Algumas
passagens não têm comentários; em outras Apolonio fez discursos. Mas ao
escolher Articulações como ponto de partida, Apolonio seguiu uma tendência
inspirada nas obras de Hipócrates. Essa tendência remontava pelo menos a
Herófilo, que discutiu seções do tratado hipocrático Prognóstico, embora não em
forma de comentário.31 Alguns de seus alunos escreveram glossários,
dicionários de palavras encontradas no Corpus Hippocraticum difíceis de
entender, com o objetivo de interpretar textos considerados confiáveis. Outros
tentaram dar sentido aos sinais e abreviaturas de alguns manuscritos de
Epidemias. No entanto, não se sabe se esses estudiosos de medicina também
fizeram comentários detalhados explicando o texto no sentido literal como parte
do ensinamento dos alunos e nada sugere que estivessem preocupados com que
os estudiosos modernos chamaram de questão hipocrática, ou seja, a
identificação das obras escritas por Hipócrates.32 Porém sem dúvida o interesse
crescente por Hipócrates não se resumiu a um pequeno grupo de seguidores de
Herófilo.33 Um fragmento de um papiro de Tebtunis no Egito, escrito no final
do século III a.C., citou Regime, e talvez tenha se inspirado em uma discussão
anterior desse tratado.34 Heráclides, assim como outros seguidores da escola
empírica antes dele, também usaram palavras misteriosas de Hipócrates para
reivindicar a posição dos verdadeiros seguidores de seus ensinamentos e de que
ele valorizava a evidência empírica acima de tudo.35 A idealização de
Hipócrates como uma autoridade médica nesse período também provocou e, por
sua vez, foi influenciada por uma invenção biográfica. As cartas e os discursos
da coleção hipocrática são todos espúrios, descrevendo pretensos incidentes da
vida de Hipócrates nesse período. Os textos enfatizavam sua sabedoria (a
história da recusa em tratar de Demócrito), sua perspicácia (a cura do rei
Pérdicas da Macedônia) e, sobretudo, seu patriotismo.36 Hipócrates defendia sua
ilha nativa de Cós contra os atenienses que a queriam escravizar e puni-la; ele
interveio em Atenas para curar a grande peste (um incidente que Tucídides
ignorava); e recusou a recompensa substancial que lhe ofereceram para tratar do
rei da Pérsia, porque assim iria ajudar o inimigo dos gregos.37 Essa criação de
uma biografia de um personagem do passado é típica do meio acadêmico e
literário do período helenístico e só há pouco tempo a fragilidade dessa
“evidência” sedutora foi avaliada com precisão.3
Figura 10.1 A redução da coluna vertebral deslocada por tração. De Apolonio de
Cítia, Universidade de Bolonha, ms. 3632, fol. 428v., uma cópia do códice
Nicetas do século XV. A explicação do uso de uma maneira mais geral dos textos
hipocráticos e a referência ao processo de formação de um novo consenso sobre
as doutrinas do Hipócrates histórico podem ser consultadas em Problemas,
atribuído a Aristóteles, uma obra de um gênero bem diferente, com citações
diretas de Ares, Águas e Lugares, e que inclui outras alusões hipocráticas às
discussões de medicina, que ocupavam uma grande parte da obra.39 Não se sabe
ao certo quando essa coletânea de perguntas e respostas científicas foi reunida.
Parte da coleção remonta à época de Aristóteles, ou ao próprio Aristóteles.40
Mas se foi totalmente reunido no terceiro quartel do século IV a.C. o uso
sofisticado do material hipocrático, por mais surpreendente que fosse, situaria o
trabalho em uma data ainda mais posterior e exigiria uma reflexão total a
respeito do crescimento e desenvolvimento do hipocratismo.41 Na verdade, é
bem mais provável que as considerações de linguagem e as influências
filosóficas indiquem uma data em torno de 250 a.C. para grande parte de
Problemas. Isso demonstraria a importância das teorias hipocráticas e, ao mesmo
tempo, daria tempo para a formação do Corpus Hippocraticum e seu uso no
contexto helenístico de Alexandria e talvez de Atenas.42 Mas qualquer que seja
a data precisa, Problemas proporciona uma rara percepção dos conceitos da
medicina no período após o Corpus Hippocraticum. Só a primeira seção,
segundo o subtítulo, é dedicada à medicina, porém, isso é um equívoco, porque
os temas médicos ocupam as primeiras 14 seções, e reaparecem com frequência,
às vezes repetidos em um contexto diferente ou examinados de uma perspectiva
diversa. Alguns problemas são citados de uma maneira muito brusca e são
respondidos com uma segunda pergunta: por que o excesso provoca doenças? É
porque a doença em si consiste em excesso ou em deficiência?43 Outros são
pequenos tratados. Eles explicam por que o repolho é usado para eliminar a dor
de cabeça; e por que doenças como tuberculose, oftalmia e escabiose, ao
contrário da hidropisia, eram transmitidas com facilidade por contatos
suscetíveis.44 Quanto à pergunta por que as pessoas proeminentes em arte,
música, filosofia e áreas afins são melancólicas ou têm um temperamento
atrabiliário, o autor respondeu com uma longa explicação sobre os efeitos da bile
negra e do significado de temperamento, uma explicação adotada a partir de
então por diversos autores da Antiguidade.45 O conjunto da coletânea revelou
uma abordagem consistente da teoria e da prática da medicina.46 O corpo
humano inseria-se no universo aristotélico das quatro qualidades básicas e dos
quatro elementos. A doença era resultado em grande parte do excesso ou da
deficiência, o que explicava também por que os médicos paravam o tratamento,
assim que o paciente recuperava a saúde com a correção do desequilíbrio.47 A
atenção constante à dieta e ao exercício era importante, porque permitia que o
corpo reduzisse os excessos potencialmente perigosos e, portanto, diminuía as
chances de contrair doenças.48 O corpo tinha sempre tendência a desequilibrar-
se como consequência da mistura natural ou do temperamento, e cada
temperamento tinha a predisposição de contrair determinados tipos de doenças e
estados de saúde mentais e físicos. Em especial, o corpo era afetado pelas
estações do ano, pelo lugar, por ventos e todos os tipos de mudanças conhecidas
de qualquer leitor de Epidemias e Ares, Águas e Lugares. Assim, os etíopes e os
egípcios tinham pernas arqueadas e cabelo crespo porque eram queimados pelo
sol, enquanto os povos do norte eram mais belicosos e corajosos do que os povos
do sul. Era potencialmente mais perigoso viver em uma planície ou em um lugar
pantanoso do que na montanha − bastava observar a palidez do rosto dos
moradores de locais pantanosos − e uma cidade onde soprava uma brisa salutar
era mais saudável do que uma cidade com o ar confinado e estagnado.49 A única
exceção a essa explicação da doença baseada em humores era a peste, que
afetava todas as pessoas que de certa forma tinham uma ligação com os que
sofriam com os efeitos da peste e que, por esse motivo, não se inseriam com
facilidade no esquema fundamentado no temperamento individual. O autor não
mencionou a possibilidade de existir uma doença a qual todas as pessoas tinham
propensão de contrair, independente da constituição física, e sim preferiu sugerir
uma solução um pouco diferente. A peste afetava todas as pessoas em estado de
saúde precário: ela beneficiava-se de uma situação preexistente.50 Em
Problemas a concepção da doença e do tratamento era fundamentalmente
alopática: a restauração do equilíbrio reduzia o excesso e corrigia a deficiência.
As ervas e outras terapias eram indicadas porque produziam efeitos especiais.
Então, os compiladores faziam uma série de perguntas a respeito do
funcionamento de determinadas categorias de remédios e procedimentos como,
por exemplo, remédios que provocavam a constrição e a cauterização. Além
disso, discutiam como e por que os médicos receitavam outros medicamentos e
terapias que, à primeira vista, pareciam contradizer a regra geral ou que eram
opostos.51 Talvez pareça estranho que na febre quartã, uma elevação óbvia da
temperatura do corpo, o médico recomendaria a ingestão de mais alimentos. Na
verdade, explicou o autor, o tratamento tinha como objetivo extinguir a chamada
febre porque, assim como um grande incêndio em uma floresta destruiria focos
menores de fogo, ao esquentar ainda mais o corpo alimentando-o, seu calor
eliminaria o fogo da febre. Em seguida, a temperatura cairia à medida que a
quantidade de comida se reduzisse.52 Outra pergunta referia-se a dois
tratamentos diferentes para a mesma doença. Uma contusão, por exemplo,
poderia ser curada com a aplicação da resina de tápsia como emplastro logo
depois, ou uma concha fria de bronze mais tarde. Segundo a explicação, os dois
tratamentos tinham o mesmo resultado por meios diferentes. Ambos tinham o
objetivo de impedir que o sangue se congelasse e formasse uma intumescência: a
tápsia esquentaria o corpo imediatamente e, assim, o sangue não teria tempo de
congelar; uma concha fria esfriaria a superfície da pele de tal modo que ela se
solidificaria pela ação do frio e, por esse motivo, evitaria que o calor da
intumescência se desprendesse. Ao voltar para dentro do corpo, o calor
congelava o sangue, que se liquefazia de novo e desobstruía a contusão. Mais
tarde, o autor fez outra sugestão: a concha de bronze precisaria ter traços
imperceptíveis de ferrugem em sua superfície, porque a ferrugem tinha um efeito
medicinal.53 A série de perguntas e respostas era extremamente abrangente.
Algumas vezes abordavam detalhes da vida prática. Como diagnosticar um
abscesso? Resposta: talvez derramando água fervendo em cima da inflamação, o
que mostraria se era de fato um abscesso ou outra reação inflamatória (às vezes
uma solução desesperadora e dolorosa, como se poderia imaginar).54 Ou dever-
se-ia retirar os cataplasmas em intervalos regulares? Seria para evitar que
perdessem o efeito?55 Algumas vezes as perguntas e respostas referiam-se à
fisiologia das atividades normais do corpo humano − a atividade sexual, a visão,
a fala, o tato e as consequências de deitar em uma posição desconfortável.56 O
texto discorria sobre o clima, remédios, mudanças no cheiro da urina depois de
comer certos alimentos ou de consumir determinados tipos de bebidas, assim
como aberrações mentais.57 Algumas perguntas eram banais, coisas que todos
deveriam saber; outras eram perguntas inteligentes sobre fenômenos que o autor
havia observado e que tinham de ser explicadas se estivessem no mesmo nível
do esquema total de explicação. Em geral, formavam um contexto familiar com
as doutrinas dos humores e as teorias alopáticas das obras do Corpus
Hippocraticum e dos autores citados por Anonymus Londinensis.58 As
perguntas mostravam como essas noções gerais eram difundidas e como
anomalias aparentes provocavam pesquisas e explicações. O livro aristotélico
Problemas também agia como um lembrete salutar de que a reflexão a respeito
da medicina não se estagnara com a coleção hipocrática, nem se restringia aos
médicos. Os seguidores de Aristóteles e Teofrasto continuaram a discutir
fenômenos médicos como respiração, enquanto os filósofos epicuristas e
estoicos usaram e, provavelmente, desenvolveram novas teorias médicas ao
explicar a inter-relação entre corpo e alma. Os médicos epicuristas eram
chamados para explicar o fenômeno do contágio.59 O poeta latino epicurista
Lucrécio dedicou grande parte do último trecho de seu poema “Sobre a natureza
das coisas” a uma discussão sobre doenças, em especial em relação à peste.
Segundo ele a peste era causada pelo ar putrefato, que tinha um efeito direto em
uma pessoa ou envenenava as águas, as colheitas e os animais nos quais a
humanidade confiava, mas sua explicação do motivo da putrefação do ar
envolvia noções epicuristas de “sementes”, algumas dando origem à vida, outras
provocando destruição e doença.60 A questão se Lucrécio recorreu a epicuristas
mais antigos como Demétrio de Lacônia (fl. 120 a.C.), que teria discutido temas
sobre medicina para apoiar sua tese, ou a médicos mais recentes em Roma é
controvertida, porém, é uma questão menos importante comparada ao uso
sofisticado de exemplos médicos para explicar e justificar sua filosofia.61 O
crescimento de grupos e seitas filosóficos no período helenístico foi
acompanhado por um progresso da medicina, porque os médicos na Antiguidade
tardia descreviam com frequência o desenvolvimento da medicina em termos de
escolas e seitas. Mas não se sabe ao certo o que esses termos significavam.62
Alguns seguidores de Herófilo constituíam uma “família”, de caráter
individualista, ao passo que algumas “escolas” cultuavam a tradição de
determinado lugar, como as escolas filosóficas de Atenas.63 Alguns grupos
tinham uma vida efêmera, outros prolongaram mais suas atividades: os médicos
que seguiam as teorias de Demócrito e de Erasístrato continuaram ativos até o
período romano.64 Entretanto, quase sempre a palavra “seita” era mais bem
interpretada como uma ideologia compartilhada e não uma instituição oficial e
hierárquica. Mas, assim como na filosofia, não havia meios fáceis de garantir a
adesão à doutrina de uma seita específica e existiam muitas oportunidades de
interpretações individuais de palavras de predecessores notáveis.65 O empirismo
foi a seita médica mais extensa e duradoura do período helenístico.66 A doutrina
empirista foi criada por um aluno dissidente de Herófilo, Filino de Cós, em torno
de 260 a.C., embora a criação da doutrina possa ser atribuída a Acrão de
Agrigento na Sicília, um contemporâneo de Empédocles em meados do século
V.67 Os principais seguidores do empirismo no período helenístico viviam em
diversos lugares do mundo de língua grega, desde Alexandria, cidade natal de
Serapião (fl. 225 a.C.), que algumas pessoas acreditavam ser o verdadeiro
criador da doutrina, a Antioquia, Cirene, Tarento e Nápoles, o que nos faz
lembrar que mesmo depois da conquista da Itália pelos romanos, os gregos do
sul da Itália continuaram a participar ativamente da vida intelectual da região a
leste do Mediterrâneo.68 Mais tarde no mundo romano alguns empiristas
associaram-se à filosofia cética, mas apesar da contribuição dos céticos para as
discussões dos empiristas com outros médicos, os fragmentos dos textos dos
empiristas mais antigos mostraram que recorriam a uma série muito mais ampla
de escritores.69 Os empiristas ficaram famosos por suas teorias e não pela
adesão a um mestre específico, como Hipócrates, Erasístrato ou Praxágoras.70
Eles rejeitaram, em especial, qualquer pesquisa referente às causas das doenças
por serem apenas dogmas inúteis e irrelevantes.71 Era inútil porque os que
queriam curar uma doença eliminando sua causa com frequência discordavam
sobre o que deveriam estar procurando, e irrelevante, visto que mesmo se um
paciente pudesse ser curado com a decisão, por exemplo, de restaurar o
equilíbrio de seu organismo, o mesmo resultado, a recuperação do paciente, seria
atingido com muito mais rapidez e eficácia por outros meios.72 Os empiristas
admitiam que algumas doenças tinham uma causa física ou natural que indicaria
o tratamento adequado, mas outras curas bem-sucedidas eram apenas resultado
do acaso, de uma decisão pessoal ou uma ação irrefletida − um súbito desejo de
beber água, ou no caso de estar sozinho e desamparado em uma montanha, dar a
folha de uma planta próxima a um animal ou a um inseto para que mordesse.73
Nessas circunstâncias pesquisar uma cadeia de causa e efeito seria uma tarefa
complexa, demorada e talvez inútil. O importante era um tratamento eficaz. Às
vezes a solução era óbvia e imediata, em outras poderia ser uma súbita
inspiração, mas em muitos casos o tratamento adequado baseava-se em
experiências anteriores. Depois de diversas curas bem-sucedidas o médico teria a
certeza do valor “em grande parte” de um tratamento específico e um exame
minucioso de todas as circunstâncias da cura garantiria uma precisão maior no
futuro. Quanto mais experiência o médico tivesse, mais garantia teria de sucesso;
assim como o marceneiro ou o sapateiro, a prática era essencial para atingir a
perfeição.74 A experiência não se limitava ao médico. As histórias de casos e o
registro codificado de sucessos anteriores exerciam um papel importante como
um banco de dados abrangente para uso futuro.75 Os empiristas tinham um
interesse especial em registrar informações sobre remédios e sua eficácia,
inspirados e, algumas vezes com uma visão crítica, nos trabalhos dos seguidores
de Herófilo.76 A falta de experiência deles, como os opositores diziam, referia-
se ao fato de abordarem apenas o passado: diante de, aparentemente, uma nova
doença ou novas circunstâncias (a exemplo de como tratar de uma doença
durante a viagem de uma pessoa distante de casa ou sem um suprimento regular
de remédios) o médico empírico tinha de recorrer à intuição para depois aplicar
um método de tentativas e erros. Essa crítica era refutada pelo princípio de que,
por ter observado minuciosamente as condições de um novo caso, o médico
escolheria o tratamento mais adequado em circunstâncias “semelhantes”. Sem
dúvida, esse método baseava-se na experiência e na observação, e não na certeza
obtida ao lidar com um caso idêntico, mas proporcionava um bom ponto de
partida. Uma ação rápida executada com precaução poderia trazer mais
benefícios do que um raciocínio demorado.77 A eficácia do tratamento
dependeria de três fatores, o chamado “tripé”: observação minuciosa, uma boa
biblioteca ou, com mais frequência, na memória coletiva de sucessos no passado
e na percepção das virtudes e limitações das analogias.78 Se as equivalências
não fossem suficientemente expressivas, as chances de uma transição bem-
sucedida diminuiriam bastante.79 Era precisamente essa compreensão das
dificuldades epistemológicas das analogias que permeava a rejeição dos
empiristas à investigação anatômica proposta por Herófilo e Erasístrato. Os
empiristas não negavam as descobertas da anatomia; eles apenas questionavam
sua importância e a necessidade de repeti-la. Não viam justificativa para a
crueldade de mutilar um cadáver se o conhecimento anatômico poderia ser
obtido por outros meios, como a observação de um cadáver ou durante o
tratamento de um paciente.80 Na verdade, uma observação cuidadosa dos
pacientes evitava um problema mais sério ocasionado pela anatomia, porque o
resultado de uma autópsia em um cadáver poderia ser irrelevante para a cura de
um paciente. Um organismo vivo funcionava de uma maneira diferente de um
cadáver e corria-se o risco de cometer um erro ao usar a informação obtida em
um cadáver no tratamento de um paciente. Portanto, não havia mais necessidade
de fazer esse procedimento bárbaro, visto que a maioria das informações úteis
havia sido obtida por antigos dissecadores.81 Apesar da denominação, os
empiristas eram mais do que empíricos. A filosofia deles, a insistência em fazer
uma observação minuciosa, a “autópsia” (ver por si mesmo), o registro de
sintomas, indícios e síndromes, a abertura a novas ideias e técnicas, além do
respeito por Hipócrates, o observador empírico por excelência, indicam que seus
membros proeminentes foram os médicos mais cultos de sua época.82 Galeno
reconhecia os grandes méritos de Heráclides de Tarento, um elogio plenamente
justificado, embora tenha usado as divergências de Heráclides com outros
empiristas em relação ao significado do batimento do pulso ou à importância das
observações para lançar dúvidas a respeito de seu empreendimento.83
Heráclides escreveu livros importantes sobre dieta alimentar, tratamentos
internos e externos e pelo menos duas grandes coletâneas de receitas de
remédios, obras que correspondiam a um homem que se dizia ter estudado com o
renomado farmacólogo Mantias da escola de Herófilo.84 Heráclides foi mais do
que um cirurgião competente. Segundo Celso, ele inventou uma técnica para
separar suavemente com a faca uma pálpebra colada no globo ocular, embora
Celso nunca tenha visto alguém ser curado com sucesso com essa técnica.85
Suas prescrições para a cura de diversas doenças continuaram a ser citadas na
Antiguidade tardia, apesar de Célio Aureliano, nossa maior autoridade, só as ter
mencionado para advertir outros médicos sobre as consequências perigosas
desse procedimento e é provável que tenham sido citadas muito antes como
fonte secundária por Sorano de Éfeso.86 E as explicações de Heráclides
referentes às citações hipocráticas que associaram o conhecimento médico ao
sentido sofisticado do estilo grego nem sempre são verdadeiras na visão de
outros comentaristas.87 Os comentários de Heráclides a respeito de seu
predecessor, Andreas de Caristo, a quem comparou a Hipócrates, revelaram sua
percepção quanto às dificuldades e aos perigos de sua terapia. Hipócrates, como
demonstrado por suas obras, era extremamente experiente e tinha paixão pela
verdade; Andreas, por sua vez, era bombástico e inexperiente, um charlatão que,
irresponsavelmente, anotava detalhes de plantas que nunca vira. Em um relato
análogo, Heráclides comparou Andreas e outros como ele a pregoeiros públicos,
que fizeram uma descrição detalhada de um escravo fugitivo sem jamais tê-lo
visto. Eles anotaram os detalhes mencionados por pessoas que conheciam o
escravo, mas que não conseguiriam reconhecê-lo, mesmo se estivesse ao lado
delas. Suas palavras nada mais eram do que um produto da imaginação.88
Galeno, que concordava com esse comentário cáustico de Heráclides, associou
Andreas a duas ovelhas negras, o gramático Pânfilo de Alexandria (fl. 60 d.C.),
cuja relação de plantas e animais continha uma mistura de remédios com
fórmulas conhecidas e remédios populares.89 Galeno rejeitou com desprezo esse
trabalho chamando-o de tolice e um contrassenso, e recusou-se a associar seu
nome a uma lista de remédios originários de basiliscos, elefantes e jacarés. Sua
aversão a essas misturas estranhas fora compartilhada por seu predecessor,
Erasístrato, que advertira contra o uso imprudente de produtos de animais
estranhos como a bile de um elefante ou de um jacaré.90 Mas outros estudiosos
não menos importantes, como Andreas e seu quase contemporâneo, o empirista
Serapião de Alexandria, tinham uma opinião diferente quanto ao que era
aceitável ou não. Em razão do compromisso teórico de registrar os remédios que
funcionavam ou os que haviam funcionado no passado, é fácil entender por que
Serapião anotou um tratamento para epilepsia que incluía o cérebro e a bile de
um camelo, o coração de uma lebre, o sangue de uma tartaruga-do-mar e o
excremento de jacaré.91 Existiam remédios semelhantes na tradição culta, assim
como nos papiros com relatos de magia. A maioria dessas tradições foi descrita
por escritores de farmacologia como Sextius Níger (fl. 20 a.C.) e reapareceu, em
especial, nas seções de medicina de História natural de Plínio o Velho.92 É bem
provável que grande parte desse material remonte, pelo menos, aos círculos
gregos em Alexandria na primeira metade do século III a.C. e que tenha uma
ligação com supostos trabalhos, a exemplo de Sobre a Antipatia e a Simpatia, de
Demócrito.93 Esse livro incluía tradições egípcias e persas, com um apelo à
longa tradição de magia, e seria um erro excluir um componente grego nesse
amálgama.94 A tradição de magia difundiu-se amplamente, como constatado
pelos papiros com narrativas de magia (embora muitos fossem de períodos bem
posteriores) e pela circulação de textos atribuídos a figuras exóticas como o
escritor Bolos de Mende e Ostanes, o mago persa.95 Essas tradições serviram
para mostrar que agora o mundo helenístico incluía, no contexto administrativo e
político grego, outras culturas que preservavam suas tradições de cura. A crença
arraigada bizantina no poder dos demônios para provocar doenças foi registrada
em textos cuneiformes do período helenístico e, sem dúvida, contribuiu para as
noções de possessão demoníaca encontradas em escritos judaicos e do início do
cristianismo.96 Havia a crença de que os profetas judeus, “homens sagrados”,
tinham o poder de curar, e os curandeiros que andavam pelas cidades e vilarejos
eram comuns na Palestina no período helenístico.97 Junto com um vínculo mais
ascético entre a cura e a crença e a prática religiosas existiam histórias judaicas
atribuídas ao conhecimento de ervas, cânticos e feitiços a alguns dos grandes
personagens do passado, em especial o rei Salomão.98 No Egito os
embalsamadores continuaram a remover os principais órgãos do cadáver e a
especialidade deles na aplicação de enemas tinha seguidores e profissionais. Em
um contrato de aprendizado do final do século I escrito em grego havia uma
cláusula que previa uma renda vitalícia a um aprendiz de aplicação de enemas,
caso fosse bem-sucedido em aprender essa técnica.99 Embora houvesse diversas
tradições e uma troca de conhecimento entre elas, pelo menos no âmbito dos
remédios, entre gregos e povos não gregos, não se conhece a natureza precisa
dessa inter-relação. Apesar de existirem evidências referentes à influência dos
gregos em alguns textos de medicina egípcios guardados nos principais templos,
os textos de medicina cultos gregos e dos papiros sofreram pouca influência da
medicina egípcia.100 A menção de Galeno a dois remédios originários de um
templo egípcio no sítio religioso de Mênfis é um raro exemplo dessa inter-
relação.101 Mas em vez de sugerir uma procura sistemática de remédios nativos
eficazes, essa citação mostrou apenas a grande diversidade de fontes consultadas
por Galeno e outros como ele para pesquisar os supostos remédios eficazes.
Galeno não fez a distinção entre o remédio de um templo egípcio dos
medicamentos atribuídos a Euschemus o eunuco, Órion o cavalariço, Farnaces o
colhedor de raízes persa, Aristócrates o professor, Epafrodito de Cartago, Protas
do Pelúsio egípcio e Simmias que atraía um grande público.102 A questão ainda
mais enigmática refere-se à apropriação das instituições de medicina do mundo
não grego pelos sucessores de Alexandre. A evidência abundante só foi
preservada no Egito e indicou que havia uma organização centralizada de
médicos no período dos faraós. Conhecemos a existência de Tatas, “um médico
do rei”, que assim como o “escriba real” poderia ser um funcionário distrital, que
atendia aos gregos e funcionários do rei em sua localidade.103 Os colonizadores
gregos que haviam recebido terras depois da conquista de Alexandre pagavam
um imposto médico especial, talvez para remunerar médicos como Tatas, mas as
provas quanto à continuação desse pagamento após a conquista romana são
muito discutíveis.104 O historiador Diodoro, que, apesar de ter escrito no final
do século I a.C., se baseou em escritores bem mais antigos, disse que “os
médicos” recebiam subsídios da comunidade em troca do tratamento sem
remuneração de soldados e, possivelmente, de oficiais em visita à
comunidade.105 Existia um imposto semelhante em algumas cidades gregas
(embora não fosse universal), mas como os papiros registravam os honorários
dos médicos e outras fontes de renda do salário do “médico do rei” é provável
que fosse relativamente baixo e seria suplementado por outras fontes. Além
disso, uma leitura cuidadosa de Diodoro revelou que o tratamento sem
remuneração não era uma prática universal, e sim restrita a grupos de oficiais
distantes de seu quartel-general. Em torno de 140 a.C. um cortesão, Crisermo,
foi registrado como ὲΠΐ ΤώѴ їΆΤϘών em Alexandria. Alguns estudiosos
pensaram que ele era “encarregado dos médicos”, porém, há pouco tempo,
Fridolf Kudlien, ao enfatizar que não havia outra evidência de que Crisermo
fosse um médico, interpretou o título como o encarregado dos “impostos
médicos”. Os dois significados são factíveis em grego.106 Se Crisermo fosse de
fato encarregado dos médicos ele seria considerado o equivalente ptolemaico de
“médico chefe” ou “chefe dos médicos do Alto e Baixo Egito”, que era o título
máximo na hierarquia médica no período dos faraós. Esse cargo continuou sob o
domínio dos gregos em razão do tom com que Atenágoras, o archiatros, ou o
“médico chefe”, escreveu para os encarregados de vestir as múmias e sacerdotes
da cidade de Faium em algum momento do século I a.C., pedindo que liberassem
o corpo de um assistente que não queria que fosse embalsamado.107 Mas
Atenágoras, em sua posição de médico proeminente, com quase certeza a serviço
da corte, deve ter adotado esse tom de autoridade superior com todas as pessoas,
e não confiava em nenhum código oficial de controle para atingir seus objetivos.
Em todos os lugares do mundo helenístico, o título de archiatros era usado para
designar os médicos pessoais do governante. O exemplo mais antigo de seu uso
que conhecemos até agora se referia à homenagem religiosa prestada a
Apolofanes, médico chefe da corte de Antíoco III, o governante selêucida.
Apolofanes trabalhou na corte de pelo menos três monarcas e foi amigo e tutor
do jovem Antíoco. Ele era membro do conselho real e exerceu um papel vital ao
desmascarar a conspiração de Hermias no início do reino de Antíoco. Um
fragmento de uma carta de Antíoco para o povo de Cós, talvez datada de 197-
192 a.C., elogiou os serviços prestados por Apolofanes como seu médico pessoal
e exaltou seu mérito como médico.108 É possível que Apolofanes tenha sido o
inventor de um antídoto complexo feito de plantas usado por Antíoco contra a
ameaça de envenenamento mencionada por Plínio e Galeno. Segundo Plínio, sua
fórmula foi escrita em versos nas paredes do templo de Asclépio em Cós, uma
história encantadora, caso seja verdadeira.109 A carreira de Apolofanes
assemelhou-se à de outros médicos nas cortes de governantes. Já vimos a
história de Andreas morto na tenda do rei Ptolomeu IV à véspera da batalha de
Ráfia em 217 a.C.; e de Papias de Amisos, médico chefe, conselheiro e
secretário de Mitrídates VI de Ponto em 102-101 a.C.110 Cratero, um pouco
mais velho do que Papias, foi o “melhor amigo, médico chefe e guardião dos
aposentos da rainha” no reinado de Antíoco VII da Síria.111 Existem muitas
histórias de seu envolvimento com a política, desde o envenenamento de um
monarca ou, de um relato famoso e com muitas versões, da descoberta do amor
de Antíoco pela madrasta Stratonice, ao tratá-la da doença causada pela paixão
pelo enteado e da subsequente aceitação de uma regência compartilhada com seu
pai em torno de 294-292 a.C.112 Esses médicos da corte eram os membros mais
privilegiados de um conjunto extremamente diversificado de médicos. Os
médicos viajantes representavam o outro extremo, andando a esmo pela Grécia e
a Judeia, à procura de pacientes e mostrando suas habilidades. Mas a maioria dos
médicos tinha um estilo de vida entre esses dois opostos e, em geral, moravam
em um lugar por muito tempo, e o usavam como base para pequenas viagens ou,
em uma tendência crescente, fundando pequenas dinastias de médicos.113 Os
papiros registraram médicos pagando impostos como fazendeiros em seus
vilarejos, e uma inscrição em grego e latim do sul da Itália no século I a.C. citou
a propriedade rural e o pomar de um médico.114 Segundo os papiros e as
inscrições, os médicos tinham a mesma posição social dos artesãos do vilarejo.
Em torno de 200 a.C. duas pequenas cidades no centro da Grécia, Myania e
Hypnia, concordaram em pagar os serviços de “um médico e outros artesãos”,
que antes eram pagos apenas pelos habitantes de Hypnia.115 Em razão do
pequeno tamanho dessas comunidades não surpreende que o médico raramente
fizesse parte da classe social mais rica em uma área maior, exceto se trabalhasse
para o rei. Porém, também não pertencia a uma classe social inferior. Em Cirene
em c. 300 a.C. o médico com funções públicas ocupava uma posição igual à de
um professor, de um treinador de tiro com arco e flecha, de cavalaria e de armas
de infantaria pesada a serviço do Estado, rico o suficiente para estar entre os 10
mil cidadãos com direitos plenos, mas bem abaixo da elite política.116 Mesmo
em Cós, onde as famílias de médicos descendiam de várias gerações, só um
médico pagava o imposto elevado epidosis. Os outros pertenciam à “classe
média”, pessoas respeitáveis, mas sem destaque na sociedade.117 Além disso,
em uma sociedade na qual os ricos viviam da renda proveniente de outros, como
proprietários de terras ou senhores de escravos, o fato de trabalhar para pagar
suas despesas significava que uma pessoa não pertencia à elite. Cícero, o
filósofo, orador e político romano, elogiou a medicina por ser uma arte liberal,
superior à de um fabricante de sapatos, o que qualifica a posição social adequada
de um médico na sociedade.118 Visto da perspectiva da subsistência de um
fazendeiro, a vida de um médico poderia parecer muito desejável; mas na visão
de um cidadão proeminente de Atenas ou de Alexandria, era pouco melhor do
que a de um comerciante.119 O número excessivo de médicos e a falta de
pacientes ricos para pagá-los foi um dos motivos responsáveis pela posição
social e a visão do exercício da medicina, além da competição com outras
formas de cura. Esse excesso de médicos, às vezes organizados em associações
médicas, não era uma característica apenas de Antioquia ou de Alexandria, mas
também de cidades bem menores.120 Em torno de 250 a.C. em Metaponto, no
sul da Itália, pelo menos 17 médicos “ativos”, todos membros da “primeira
oficina”, foram amaldiçoados por uma pessoa desconhecida, talvez um paciente
descontente ou um ex-colega, ou como “primeira” indicava que havia mais de
uma oficina, um membro rival. Uma pesquisa arqueológica da cidade e da região
ao redor revelou que em seu auge, por volta de 350 a.C., havia uns 40 mil
habitantes, e é possível que dois terços morassem fora da cidade.121 Um século
depois a cidade entrou em declínio, talvez com metade desse número de
habitantes. Mesmo com o número elevado a proporção de médicos em relação
aos pacientes em potencial era alta e cresceu ainda mais na proporção de um
médico para cada 1.200 habitantes. No século XVII essas proporções revelaram-
se plausíveis como as estatísticas na Toscana e na Inglaterra no período
elisabetano demonstraram.122 Mas impuseram um limite para a renda que
poderia ser obtida com a medicina. Só um médico que tivesse acesso a pacientes
mais ricos, na corte ou em uma grande metrópole, poderia enriquecer tratando de
doentes. Como o exemplo de Myania e Hypnia mencionado acima demonstrou,
era também possível que alguns médicos fossem pagos pela comunidade, assim
como pelos pacientes. Esse sistema de “médicos públicos” remontava ao século
V, ou ao século VI, como vimos, mas as referências antigas fragmentadas agora
têm o acréscimo da enorme evidência de inscrições do mundo grego (e mais
tarde do mundo romano) da Crimeia ao Egito, e do sul da Itália à Sicília. As
inscrições datadas mais antigas são de Atenas, em torno de 322/321 a.C.; a
última inscrição descoberta até agora foi gravada nos planaltos selvagens da
Turquia 700 anos mais tarde.123 Embora muitos detalhes continuem obscuros,
as principais características do sistema são claras. Um médico poderia ser
nomeado para exercer uma função pública depois de um período de moradia em
um lugar ou após ter dado provas do exercício da medicina em outro local.124
Dr. Antipater foi durante algum tempo médico público na pequena cidade de
Halasarna, na ilha de Cós, antes de ser chamado para assumir um cargo
semelhante na cidade de Cós.125 A ilha foi o centro de uma rede de médicos,
porque muitos dos médicos que tinham funções públicas no período helenístico
tinham conexões com Coan.126 Hermias, por exemplo, foi escolhido pelos
coanos e enviado para a cidade de Gottyn em Creta, que havia pedido os
serviços de um médico.127 Outros médicos públicos foram enviados a convite
de uma embaixada de uma cidade ou por uma carta.128 Quando o cirurgião
Arcagato de Lacônia foi convidado para ir a Roma, onde recebeu os direitos de
cidadão e fez uma cirurgia custeada por fundos públicos, essa cidade italiana
estava agindo da mesma maneira que as cidades gregas contemporâneas.129 A
extensão do serviço prestado por um médico à comunidade era diversificado:
algumas cidades ofereciam um contrato anual, mas havia sempre a possibilidade
de renovação. O recorde foi obtido por Menócrito de Samos que, depois de
algum tempo em Rodes, foi para a ilha de Cárpatos, onde viveu mais de 20 anos
exercendo o cargo de médico público.130 Outros médicos viam na nomeação
para o cargo de médico público apenas um passo em uma carreira que resultaria
em um emprego lucrativo em uma cidade maior ou mais dinheiro com o
tratamento de pacientes ricos. No momento do afastamento do cargo o médico
em geral recebia um testemunho oficial na forma de um decreto honorífico do
conselho de habitantes. Em uma linguagem com frequência idêntica à dos textos
de medicina com instruções para os médicos de como se comportar, o decreto
elogiava seu conhecimento, sua diligência e sua boa conduta.131 O documento
citava os diversos privilégios que o médico recebera, como o direito de ter sua
própria terra (uma raridade para um estrangeiro), isenção de pagamento de
impostos locais, um lugar nas fileiras da frente de um teatro, uma coroa de ouro
ou até mesmo uma estátua.132 Em uma sociedade ávida por honrarias e posição
social, esses privilégios não eram considerados triviais e exprimiam a aprovação
da comunidade com tanta ênfase quanto um salário.133 Os decretos honoríficos,
quase por definição, destacavam os acontecimentos inusitados na carreira do
médico, como o serviço em uma campanha militar, a ajuda a uma cidade por
ocasião de uma epidemia desastrosa ou palestras públicas no ginásio da
cidade.134 No entanto, as palestras públicas nem sempre eram recebidas com
aprovação total. Alguns autores, em geral pacientes, mostravam-se cautelosos
em relação ao que pensavam ser mera propaganda, advertiam seus leitores a
desconfiarem de instrumentos vistosos, mas superficiais, e de desconfiarem
também de floreios retóricos e da eloquência dos palestrantes. Mesmo o autor de
Preceitos, embora encorajasse os médicos a terem um bom desempenho e a
falarem bem em público, aconselhava evitar o excesso de citações poéticas
rebuscadas por ser uma forma incorreta de ensinar.135 Essas honrarias não eram
concedidas apenas aos médicos com funções públicas. Outros médicos que
haviam prestado um serviço longo e meritório a uma comunidade, ou a um
grupo específico, poderiam também ser recompensados com um decreto ou,
mais raramente, com uma estátua pública. O aluno do Dr. Antipater, e mais tarde
seu assistente, Onasander, o acompanhou em sua ida para Cós, onde tratou de
antigos pacientes de Halasarna que o procuraram, e continuou a tratá-los mesmo
depois de ter aberto seu consultório em Cós. Apesar de não ter nascido em
Halasarna, ele foi homenageado pelos moradores da cidade por tudo o que fizera
pelos seus cidadãos. Os serviços prestados à comunidade incluíam o tratamento
de doentes sem remuneração (embora recebesse dinheiro e pagamento
antecipado de outros pacientes), o que era considerado extremamente virtuoso,
porque diversas pessoas estavam muito doentes e precisavam de uma atenção
especial e, por esse motivo, ele poderia ganhar bastante dinheiro. Essa gentileza,
aliada a um tratamento eficaz, mereceu a recompensa de um decreto honorífico
erguido no templo de Apolo ao lado do decreto de seu professor.136 O mais
surpreendente em relação a esse decreto não era só seu tamanho e detalhes, e sim
a maneira como seus sentimentos e vocabulário assemelhavam-se aos três
tratados posteriores do Corpus Hippocraticum, O Médico, Preceitos e Decoro.
Esses tratados, em razão do conteúdo e do estilo, foram escritos não antes de 250
a.C. ou talvez bem mais tarde. Mas qualquer que seja a data, eles fizeram uma
diferença marcante dos textos deontológicos dos séculos V e IV.137 Esses
tratados abordaram normas de conduta no exercício da medicina, não só as
referentes à remuneração e às consultas em conjunto. O médico precisava se
comportar de uma maneira digna, nem agressiva ou insensível, porque uma
aparência carrancuda, a aspereza, a arrogância e a vulgaridade eram
características desagradáveis. Ele teria de demonstrar um sentimento
filantrópico, bondade e gentileza, consciente dos benefícios que recebera.138
Em determinadas circunstâncias ele deveria dispensar o pagamento de quem não
tinha condições de pagar, um ato de caridade que o recompensaria de duas
formas. Aumentaria sua reputação e criaria uma imagem positiva na mente de
seus pacientes propícia à recuperação deles. Do mesmo modo, discutir
honorários no início de um tratamento era uma péssima conduta, porque
aumentava as preocupações do paciente, sobretudo em casos graves.139 Como o
autor mencionou em um aforismo sugestivo, onde há amor pelo ser humano
existe também o amor pela arte.140 A atitude espontânea de pedir uma segunda
opinião e a recusa de discordar diante do paciente também diferenciavam o bom
médico do ruim.141 Decoro (uma tradução mais literal seria “Compostura”)
talvez seja o último texto da coleção hipocrática. Segundo o texto, o verdadeiro
médico era um homem virtuoso e sábio: na realidade, “entre a medicina e a
sabedoria não havia um abismo”. Em consequência, o verdadeiro médico era
“igual a deus”, e mantinha sua prática direcionada ao “decoro e boa
reputação”.142 O texto tinha como objetivo mostrar ao médico o
comportamento que o diferenciaria de um charlatão exibicionista, que passeava
pelos mercados de cidade em cidade com roupas e pertences extravagantes.143
A maneira de se comportar só trazia benefícios; o médico deveria ser sério, mas
cortês, prudente diante de um confronto, moderado em tudo, delicado em sua
conduta e capaz de ficar calado quando necessário. Ele não conversava com
médicos que não fossem seus colegas, e falava apenas o que a situação requeria,
de maneira clara e firme. O médico demonstrava respeito em relação aos deuses,
porque tinha consciência dos poderes frágeis da medicina − ao contrário do
charlatão, que com muita facilidade atribuía uma cura espontânea à sua
intervenção.144 Em seguida, o autor ofereceu conselhos referentes às atividades
que resultavam em uma boa reputação. O médico deveria sempre estar bem
preparado, com uma série de receitas de remédios memorizada para que pudesse
receitá-los no mesmo instante. As visitas a um paciente precisariam ser
frequentes, a fim de observar com rapidez as possíveis mudanças e tomar
medidas adequadas para solucioná-las se fosse preciso. O médico tinha de tentar
ficar alegre ao lado do paciente e, se necessário, deveria esconder alguns
detalhes do caso, porém, teria de estar preparado para repreender ou consolar.
Seria importante anunciar as previsões aos pacientes interessados em conhecê-
las, porque assim o médico não poderia ser julgado culpado em caso de fracasso.
Na verdade, como os pacientes com frequência seguiam as recomendações do
médico, era aconselhável encarregar um aluno bem treinado ou um assistente
para acompanhar o tratamento. Desse modo, o médico se sentiria mais confiante
para descobrir quaisquer mudanças importantes, assim que acontecessem e
garantiria que o paciente seguiria suas prescrições. Com uma ação metódica,
qualquer culpa pelo fracasso diminuiria e as chances de sucesso seriam bem
maiores e, como resultado, beneficiaria a reputação do médico.145 Não se sabe
quando ou como esses tratados pequenos sobre comportamento no exercício da
medicina foram incluídos no Corpus Hippocraticum, ao contrário de outros
textos como o Testamento de Hipócrates identificado com facilidade.146 Mas é
evidente que os pressupostos dos autores refletiram as instituições de medicina
criadas no período helenístico: cargos oficiais, seitas, associações médicas e a
formação de corpus de conhecimento considerados essenciais para um médico,
que incluíam muitas ideias e técnicas novas. A figura de Hipócrates surgiu como
o representante da profissão médica por excelência, embora, como vimos, não
houvesse um consenso universal em relação ao que Hipócrates representou.
Outros médicos ofereceram formas alternativas de cura e, sem dúvida, o número
de médicos e a diversidade de suas teorias aumentaram durante esse período;
porém isso não alterou o fato de que os médicos e cirurgiões helenísticos
constituíram um grupo mais definido e consciente do que nos séculos V e IV,
com obrigações mútuas, assim como para seus pacientes. É possível perceber
esse desenvolvimento, que talvez tenha começado antes, graças ao novo enfoque
da pesquisa de evidências não mais nos tratados médicos e nos textos literários, e
sim em documentos epigráficos e papirológicos, que revelaram a evolução mais
abrangente da vida cívica burguesa no mundo helenístico. No entanto, ainda
mais importante, foi no período de 330 a 30 a.C. que a medicina grega antes
limitada ao mundo grego da região do mar Egeu, sul da Itália e da Sicília se
tornou o sistema médico predominante em toda a região do Mediterrâneo.
11 Roma e a Transplantação da Medicina Grega A transplantação da medicina
grega no mundo de língua latina na região central da Itália e, ao longo do tempo,
na Europa ocidental, foi um dos desenvolvimentos mais importantes na história
da medicina. Um sistema (ou um conjunto de sistemas) da medicina de uma
sociedade foi assimilado por outra com uma língua, uma cultura e uma estrutura
política totalmente diferente e, no entanto, se tornou a base da tradição da
medicina no Ocidente. Sem esse desenvolvimento a medicina grega teria
permanecido no mesmo nível de importância da medicina da Babilônia e do
Egito, um objeto de estudo histórico interessante, mas de certa forma tangencial.
As teorias médicas gregas continuaram a ser estudadas, aplicadas, contestadas e
defendidas em latim na Europa ocidental até o século XIX. Na Idade Média os
europeus só conheciam as obras de Hipócrates e de Galeno escritas em latim e,
mesmo quando foram editados textos bilíngues em grego a partir do século XVI,
em geral, as leituras e os comentários baseavam-se nas versões em latim, e não
em grego. Alguns autores gregos de medicina, apesar da divulgação de suas
obras entre os médicos cultos na Europa ocidental a partir do século XVI, só
tiveram seus textos publicados na íntegra na língua original no século XX, e
quase sempre foram estudados na tradução latina.1 Alguns aspectos do processo
original de assimilação não se situam em um contexto histórico preciso, porém,
isso não justifica um exame superficial dessas questões. A evolução da
terminologia técnica em latim, essencial para a difusão de ideias, tem sido
descrita por muitos historiadores recentes, que mostraram as diversas maneiras
pelas quais as palavras gregas foram vertidas para o latim por transcrição,
tradução, equivalência ou pela criação de um modelo existente de uma palavra
latina com um significado ou forma semelhante. Os historiadores analisaram
como os autores latinos descreviam e classificavam as doenças e seus
tratamentos; ou mostraram as nuances complexas do estilo da medicina grega
com uma gramática e uma sintaxe menos flexíveis. Eles examinaram os
diferentes registros do uso de termos, tanto em tratados médicos quanto de outra
área do conhecimento, em prosa e verso, a fim de avaliar a extensão do uso
dessa linguagem técnica na sociedade latina em diversas épocas do século III
a.C. ao século VI d.C.2 Algumas das conclusões desses historiadores foram
muito importantes para a história da medicina. Eles descreveram o
desenvolvimento regular da terminologia técnica ao longo dos séculos paralelo
ao uso contínuo de textos gregos como modelos ou, com frequência, como a
base da interpretação latina. O processo de adaptação quase sempre envolvia
uma interpretação e uma reorganização inteligentes do original grego para
produzir mais do que uma simples paráfrase em latim.3 Existem também
indícios de que alguns autores escreviam em latim e em grego.4 Em segundo
lugar, apesar do contexto técnico de algumas palavras, muitos termos de
medicina e ideias foram citados em diversos textos literários e históricos, o que
indica uma abertura e acessibilidade do aprendizado de medicina no mundo de
língua latina, assim como fora na Grécia. Embora o grau no qual os termos
técnicos de medicina tenham sido usados por diversos escritores sejam bem
diversificados – Cícero, por exemplo, apesar da admiração e amizade que sentia
por seus médicos, conhecia bem menos as teorias e terminologias referentes à
medicina do que Sêneca um século mais tarde – um conhecimento também
demonstrado por autores de todos os tipos e condições.5 A conclusão dos
linguistas de que já existia uma terminologia técnica de medicina significativa,
sofisticada e abrangente em latim no final do século III a.C., quando o
dramaturgo Plauto incluiu sátiras referentes à medicina em suas peças, foi uma
conclusão ainda mais importante para os historiadores.6 Na época em que Catão
o Velho escreveu Sobre a agricultura, o mais antigo manual com informações
específicas sobre medicina em latim, escrita em torno de 160 a.C., o autor usou
palavras de origem grega inconscientemente, em razão de sua hostilidade
pública a tudo referente à Grécia. Segundo as evidências atuais, é impossível
determinar se o material grego foi assimilado em latim só em uma geração
anterior a Plauto ou se originava de contatos bem anteriores com o mundo de
língua grega, mas pelo menos impõe cautela quanto à aceitação das histórias
romanas sobre a assimilação da medicina grega em Roma.7 Como veremos,
essas histórias excluem o resto da Itália e concentram-se na troca de ideias e
informações entre Roma e a região oriental da Grécia. Elas não mencionam a
medicina praticada nas cidades de língua grega do sul da Itália, da baía de
Nápoles e mais ao sul, embora na época de Pitágoras, Parmênides e Heráclides
de Tarento e em um período posterior, médicos e pensadores dessa região
tiveram uma enorme influência no desenvolvimento da medicina grega.8 No
século I a.C. romanos ricos visitavam essa região como lazer e iam a Velia e Elia
para curas medicinais.9 Mas muitos outros aspectos da medicina na península
italiana são desconhecidos. O tipo de medicina praticado pelos dois As(h)onii
em Perúgia no século I a.C. pode ser deduzido em parte pela lápide bilíngue em
latim e em etrusco.10 Pouco também se pode deduzir do famoso Fígado de
Piacenza, um artefato etrusco que sugere certo grau de conhecimento de
anatomia na arte etrusca dos haruspices, mas que não prova que fosse mais do
que uma carnificina sofisticada.11 Nesses lugares o médico típico era, como
Lucio Clodio de Ancona, um circulator, que viajava de cidade em cidade
vendendo suas mercadorias, ou alguém que associava a atividade de médico à de
fazendeiro e outras ocupações.12 No entanto, no século II d.C., essas regiões
agora mais prósperas e urbanizadas, refletiam um ambiente típico do resto da
Itália: alguns médicos recebiam um salário do Estado por seus serviços; outros
ocupavam cargos municipais, como o de sevir, um membro de uma congregação
religiosa inferior; poucos, ou talvez nenhum médico, pertenciam à elite
urbana.13 No entanto, os planaltos da região central da Itália, a terra natal dos
marsos, cuja reputação de encantadores de serpentes e curandeiros prolongou-se
por muitos séculos, tinham peculiaridades significativas. Os marsos eram
conhecidos por seus poderes mágicos; faziam uma cobra dormir com seu canto e
depois extraíam o veneno dela, ou deixavam a cobra descansar embaixo da
túnica sem que o animal os atacasse. Os marsos desceram dos planaltos e foram
para Roma, onde cortavam as cabeças das cobras e preparavam remédios
exóticos. Eles eram especialistas em seus conhecimentos, como Galeno
reconhecia, e as pessoas os consultavam com respeito e até mesmo medo.14 Os
marsos praticavam um tipo diferente de cura do fazendeiro de Catão, mas não
menos eficiente. Outros povos no mundo romano, como os tíbios, os psilos e os
nasamões, povos selvagens das florestas remotas da Paflagônia e dos arredores
do deserto africano, faziam proezas extraordinárias com serpentes e antídotos.15
Essa medicina rural distante das ofertas da cultura urbana ainda existe em
condições semelhantes nas montanhas da Itália.16 As referências mais antigas ao
envolvimento romano com o mundo grego da saúde e da cura não tinham
relação com a cura secular, mas, sim, com a importação de novos deuses para
defender a nação romana durante uma epidemia. Já vimos a introdução do culto
a Apolo como deus da cura em 433 a.C., porém, a chegada de Esculápio atraiu
mais atenção dos escritores posteriores.17 Em 293 a.C. depois de três anos de
pestes consecutivas em Roma, uma consulta sacerdotal aos livros da Sibila de
Cumes revelou que a epidemia só seria eliminada se trouxessem Esculápio do
santuário de Epidauro. No ano seguinte uma delegação formal liderada por
Quintus Ogulnius foi enviada a Epidauro pelo Senado romano; o próprio deus
consentiu em partir, e na forma de uma serpente seguiu para a Itália. Quando o
barco com os membros da delegação chegou ao porto de Antium, ao sul de
Roma, a serpente nadou até a margem e refugiou-se no templo de Esculápio com
seu bosque sagrado. Valerius Maximus, a fonte histórica mais detalhada que
temos, mencionou que os embaixadores temeram que a serpente continuasse em
Antium, mas três dias depois ela voltou para o barco. Assim que chegaram a
Roma a serpente mais uma vez fugiu e refugiou-se na ilha de Tibre, onde
construíam um templo em sua homenagem. A peste, é claro, cessou “com uma
velocidade miraculosa”.18 Diversos detalhes desse relato merecem ser descritos.
Primeiro, a introdução de Esculápio e seu culto em Roma por um ato formal do
Estado romano, e não por uma iniciativa privada ostensiva, como a de Telêmaco
em Atenas ou de Archias em Pérgamo.19 O conselho de procurar a ajuda do
deus foi oferecido de uma maneira surpreendente com a consulta aos livros da
Sibila de Cumes, e interpretada por sacerdotes. Em segundo lugar, a história
romana omitiu comentários de possíveis desenvolvimentos na Itália; o relato
enfatizou a relação direta entre Roma e Grécia. A epidemia em Roma era um
assunto restrito aos romanos e as decisões deles referiam-se apenas à cidade de
Roma. Só quando o deus refugiou-se em Antium percebe-se um indício de que o
culto a Esculápio já existia nas regiões vizinhas da Itália.20 Sem a evidência
arqueológica não saberíamos que os visitantes de um templo de cura em
Fregellae (região central da Itália) eram numerosos, apesar de não termos certeza
se nessa data já havia um centro de culto a Esculápio, em vez de um santuário
dedicado a um deus mais local.21

Figura 11.1 O templo de Esculápio foi construído com a forma da proa de um


navio por onde o deus descia transformado em serpente. O templo situava-se no
ponto mais elevado da ilha de Tibre. Terceiro, a posição do santuário na ilha de
Tibre correspondia com precisão à posição liminar de muitos santuários de
Asclépio na Grécia. Não fora construído na cidade, estava rodeado de água por
todos os lados, nem havia sido construído fora da cidade; na verdade, o status
ambíguo da ilha era um lugar apropriado para uma divindade estrangeira
cultuada com ritos diferentes.22 O santuário também era um lugar
compartilhado: de acordo com Ovídio, o Senado mandou construir no mesmo
dia dois templos na ilha, um em homenagem a Esculápio e outro dedicado a
Júpiter.23 As oferendas votivas e as poucas ruínas do prédio revelam que era um
santuário muito popular no período republicano tardio, embora fosse menos
conhecido nos séculos seguintes. Em 50 d.C. escravos doentes eram enviados
para a ilha por seus senhores, que não queriam ter problemas ou gastar dinheiro
para tratá-los; o imperador Claudio promulgou um decreto proibindo essa prática
desumana.24 A falta de informações de nossas fontes literárias foi suprida em
parte pelas descobertas arqueológicas, que revelaram que santuários de cura
semelhantes eram comuns na região central da Itália, com frequência perto de
nascentes. E em muitos deles os doentes faziam oferendas votivas com objetos
de terracota representando a parte do corpo afetada – pés, mãos, olhos e, em
especial, órgãos sexuais. A incubação era praticada em um santuário em Lavínio,
não muito longe de Roma. Além do culto a Esculápio em Roma ter
características gregas, a chegada de Esculápio também pode ser interpretada
como um sinal da assimilação do mundo grego pela Itália romana.25 A história
romana da introdução da medicina tem muitos paralelos com a história de
Apolo, o deus da cura e da proteção, e de Asclépio. Essa história enfatizou dois
fatos inter-relacionados: a medicina era grega e fora importada para Roma só
com a aprovação e autoridade do Senado romano. Esse movimento de
assimilação realizou-se praticamente em um vácuo histórico, porque a ausência
de conhecimento anterior dificulta a compreensão da chegada do “primeiro
médico”, o peloponense Archagathos, filho de Lisânias, em 219 a.C. Ao citar
Cassius Hemina, um historiador que escreveu Anais em torno de 150 a.C.,
Plínio, 200 anos depois, mencionou que Archagathos recebeu os direitos de
cidadania, assim como seu local de trabalho foi comprado com recursos públicos
no cômpito de Acilium. Bem-sucedido no início, chamaram-no de “o homem
dos ferimentos”, mas em razão da violência dos seus cortes e cauterizações, logo
o apelidaram de “carrasco”, e a arte da medicina passou a ser detestada, assim
como os médicos. Archagathos abandonou a medicina e voltou para a Lacônia.
E, segundo Plínio, foi responsável pela péssima reputação bem merecida da
medicina em Roma, uma imagem que se prolongou até sua época.26 Mais uma
vez os romanos agiam em conjunto e de uma maneira que correspondia à reação
de uma cidade grega quando contratava um médico público, embora Plínio não
tenha atribuído esse título a Archagathos.27 É impossível saber se Hemina
estava certo ao chamá-lo de “o primeiro médico”, porque, assim como Plínio,
queria contrapor as práticas de cura romanas às práticas gregas.28 Já existiam
curandeiros em Roma que um historiador moderno poderia classificar de
“médicos”, mas Hemina reservou esse epíteto aos praticantes da medicina
grega.29 Ele não queria fazer uma distinção entre o teórico e o artesão, porque
Archagathos foi chamado de – homem dos ferimentos e um curativo inventado
por um Archagathos foi mencionado por autores latinos posteriores e em uma
carta grega ao médico Dionísio no Egito.30 Ao contrário, Hemina enfatizou a
distinção entre romanos e gregos: quaisquer que fossem as aptidões de cura dos
romanos, não poderiam ser consideradas medicina, uma vez que era uma
importação genuína grega. Hemina conhecia os discursos públicos de Catão, o
Velho (c. 234-149 a.C.), que fez carreira política demonstrando uma hostilidade
agressiva a tudo o que fosse estrangeiro, sobretudo, grego.31 Em um de seus
textos em que escreveu para o filho, talvez entre 180 e 173 a.C., Catão preveniu-
o contra a influência perniciosa dos gregos, em especial dos médicos, que
haviam feito um juramento para matar estrangeiros com sua medicina; e, ainda
mais grave, cobravam honorários dos pacientes antes de matá-los.32 O conselho
de Catão para o filho, “fique distante dos médicos”, não representou a
condenação de todas as formas de medicina ou dos que tinham habilidades de
cura, mas só dos gregos ou das pessoas que os seguiam. Ele aprovava as práticas
de cura romanas, nas quais o chefe da família assumia a responsabilidade pela
saúde de todos os seus membros, inclusive dos animais. Catão tinha um caderno
de anotações no qual escrevia receitas médicas e dietas para sua família. Essa
medicina restringia-se à família: não era difundida em outros lugares, nem
comercializada. E, como afirmava Catão, era eficaz para mantê-lo e à sua família
com saúde e boa disposição por muitos anos.33 A medicina praticada por Catão
é descrita no tratado Sobre a agricultura, um manual que abrangeu todos os
aspectos da administração de uma fazenda, desde o cultivo da terra à saúde dos
escravos e dos animais.34 Os tratamentos consistiam em grande parte em
remédios feitos de ervas, às vezes acompanhados por cânticos, feitiços e rituais:
a cura para vermes no estômago baseada em flores de romã, erva-doce, olíbano,
manjerona selvagem e vinho terminava com a recomendação de que o paciente
deveria subir em uma coluna quadrada e pular dela 10 vezes antes de dar um
passeio a pé.35 Em um contraste nítido com a medicina hipocrática, com suas
referências acerca da sacralização da arte e da necessidade de o paciente
consultar um bom médico, esses remédios eram acessíveis a todas as pessoas. O
poder da cura residia no remédio e nos procedimentos que o acompanhavam, e
não na competência do médico; as regras dos feitiços ou da medicina poderiam
ser usadas por qualquer pessoa, desde o chefe da família até seu escravo pastor.
Nesse contexto, essa medicina era a típica medicina popular em muitas
sociedades e seria precipitado afirmar que o mesmo tipo de remédio receitado
por Catão ou por um autor hipocrático indicava que Catão o adotara dos gregos.
Mas havia muitos detalhes que poderiam confirmar essa assimilação da medicina
grega, não só na escolha de Catão de palavras para medidas e plantas, como
também em passagens ocasionais baseadas, pelo menos em parte, em fontes
médicas gregas. Apesar de sua retórica veemente, Catão adotou conceitos, usou
palavras e práticas gregas ao se referir aos cuidados com o corpo e aos
tratamentos de doenças. Em seu texto ao filho, Catão quis proteger essas ideias
da assimilação grega. No entanto, essa incorporação de ideias gregas ajudou a
inocentar Catão de hipocrisia, porque em vez de responsabilizá-lo pela
incorporação das ideias gregas em latim, é mais fácil acreditar, do ponto de vista
da evidência linguística, que o processo de assimilação começara há algum
tempo.36 Além disso, ao divulgar remédios eficazes citados por escritores
gregos ele os tornava acessíveis para seus conterrâneos, que, assim, não
precisariam mais pedir ajuda de charlatães ou de assassinos em potencial. A
introdução da medicina grega em Roma fez parte de dois amplos
desenvolvimentos, a helenização da cultura italiana em geral e a urbanização, em
especial quanto ao crescimento de Roma, de uma pequena cidade em torno de
300 a.C. a uma grande metrópole em 100 a.C.37 O estereótipo do camponês
agricultor e soldado apresentado com convicção por Catão começou a se
distanciar da realidade da vida fervilhante e plebeia da cidade de Roma. Os ricos
tinham jardins privados e os pobres, em seus conjuntos habitacionais de casas
modestas, podiam cultivar ervas em jardineiras ou colhê-las nas áreas cultivadas
fora (ou mesmo dentro) das muralhas da cidade, um cenário que ainda existe.38
Mas era um estilo de vida muito diferente de uma fazenda ou de um vilarejo nas
colinas do Lácio. Catão e, depois dele, Plínio lamentaram o declínio das antigas
virtudes romanas, o colapso da moral e o final em potencial dos fatos
importantes que tinham engrandecido Roma. Suas queixas em relação ao mundo
que haviam perdido fortaleceram-se justamente por causa da distância crescente
da Era Dourada, o que contrastava com mais vigor com um passado ideal e a
realidade sem grandeza atual.39 Ao mesmo tempo, essas queixas também
minimizaram a extensão do uso de remédios fabricados com ervas em
determinadas áreas da Itália (e em outros lugares mais distantes), além da prática
da medicina doméstica e do contato ocasional com um médico competente (no
sentido de um especialista), que continuaram a ser uma norma na época.40
Apesar de o envolvimento político e militar de Roma com o mundo grego ter
começado apenas no final do século IV ou início do século III a.C., quando os
romanos e seus aliados participaram dos conflitos no sul da Itália e da Sicília, os
contatos culturais e comerciais já existiam há muito tempo. A ampliação
posterior do interesse de Roma além do Adriático, em Épiro e na Macedônia e,
no século II a.C., para o resto da Grécia, Ásia Menor, Síria e Egito, por fim,
expôs a cultura e a política romanas ao impacto total da helenização. Quando os
exércitos romanos conquistaram ou dominaram o mundo grego, a cultura
romana assimilou mais e mais características gregas, tanto na incorporação
literária de temas gregos e de peças teatrais, quanto na importação de estátuas e
mobiliário gregos, ou na contratação de médicos gregos. Mas esse processo foi
paradoxal: “a conquista da Grécia capturou o vencedor selvagem, mas introduziu
as artes no Lácio rústico”, escreveu Horácio, e outros repetiram suas palavras.41
Roma, na verdade, embora tenha vencido a guerra do ponto de vista militar,
perdeu a paz. Por esse motivo, Catão e seus seguidores criticaram com tanta
veemência os responsáveis pelo seu fracasso e pelas novas tensões da sociedade
política romana, em consequência da enorme riqueza acumulada pelos que
haviam comandado tropas ou apenas serviram ao exército no Oriente.42 A
crítica de Plínio é ainda mais dura ao dizer que, mesmo depois de os romanos
terem expulsado os gregos da Itália, muito depois da morte de Catão, não
conseguiram fazer o mesmo com os médicos gregos.43 A oposição de Catão à
medicina grega inseria-se na sua crítica mais abrangente aos filelenos e, mais
ainda, aos romanos que se interessavam pela medicina grega ou que contratavam
médicos gregos, pessoas opostas à política defendida por Catão. O local de
trabalho de Archagathos localizava-se no cômpito das propriedades dos Acilii,
uma família importante no apoio à assimilação grega (e mais tarde opositora a
Catão) e de dois cônsules no ano 219 a.C., L. Aemilus Paullus e M. Livius
Salinator, que tinham interesses semelhantes.44 Governadores, generais e
romanos ricos conheceram seus médicos pessoais em visitas ao Oriente que, por
sua vez, se tornaram mediadores entre os conquistados e os conquistadores.
Atenágoras de Larisa, um membro da elite local de sua cidade, foi homenageado
em Cós por ser o médico do cônsul Otavio que fora enviado em 168 a.C. para
solucionar os problemas da Grécia depois da guerra com Perseu.45 Um decreto
semelhante foi promulgado em Atenas em homenagem ao médico Ammonius,
que acompanhou a comitiva do cônsul Espúrio Postúmio Albino Magno em uma
missão idêntica na Grécia uma geração depois.46 Em meados do século I a.C.
havia o costume quase de rigueur de contratar um médico grego. Artemidoro,
um médico de Perge, logo depois de obter a cidadania romana em torno de 80
a.C. por intermédio de C. Cornelius Dolabella, governador da Cilícia, a
província onde se localizava Perge, reuniu-se ao grupo de pessoas que
trabalhavam para Verres, o governador da Sicília em 80-79 a.C.47 Dr. Asclapo
de Patras, “um homem gentil, culto e leal” foi recomendado por Cícero ao seu
amigo Sulpicius Rufus como um valioso colaborador em Acaia em 46 a.C.48
Outros médicos foram para a Itália em consequência das campanhas no Oriente.
L. Manneius Menecrates, “o que oferecia vinho”, um médico registrado em uma
lápide em Atinum no sul da Itália no século I a.C., nascera em Trales na Ásia
Menor, mas depois foi perfilhado por um cidadão romano em Atinum, Q.
Manneius.49 Só podemos supor onde e quando esses dois homens encontraram-
se, mas o relacionamento deles mostra que a introdução da medicina grega não
se limitou às metrópoles. Histórias anteriores em cidades gregas helenísticas
influenciaram a decisão de Júlio César de conceder a cidadania romana, talvez
em torno de 49 a.C., aos médicos que trabalhavam na cidade de Roma e, quase
uma década depois, influenciou também a concessão a todos os médicos e
professores no império inteiro da isenção do alistamento militar e da obrigação
de alojar soldados.50 Em 23 a.C., ou pouco depois, em seguida à extraordinária
cura do imperador Augusto por um ex-escravo, Antonius Musa, o imperador
concedeu isenção de impostos a todos o praticantes de medicina.51 Não se sabe
o número de médicos imigrantes que aproveitaram essa generosidade para obter
direitos plenos de cidadania, nem os procedimentos para provar as qualificações
como médicos ou professores. Entretanto, a repetição frequente de concessões de
isenção por diversos imperadores indicou que essa generosidade nem sempre era
apreciada pelos cidadãos, que arcavam com o pagamento do imposto do qual os
médicos eram isentos.52 Esses acontecimentos tiveram uma consequência
importante para a prática da medicina em Roma e, sem dúvida, no mundo latino.
Eles criaram uma imagem duradoura da medicina de origem grega, ou se não
totalmente grega, externa ao mundo romano de imigrantes, estrangeiros,
escravos e antigos escravos.53 Apesar da aprovação de Cícero em relação à
medicina e seus elogios aos médicos gregos, por toda a riqueza que poderia ser
adquirida com o tratamento de um senador rico ou, mais tarde, da família
imperial, a medicina não era uma carreira para um romano respeitável.54 Ao
contrário da medicina grega do Oriente, onde havia dinastias de médicos e, às
vezes, os médicos descendiam de famílias ricas, os médicos em Roma eram na
melhor das hipóteses novos-ricos e, com muito mais frequência, originavam-se
do que por lei representava as camadas mais inferiores da sociedade, os escravos
e ex-escravos. Embora os números estejam um pouco distorcidos em razão da
informação abundante de inscrições de escravos e ex-escravos da residência de
um imperador romano, apenas 10% dos médicos registrados em inscrições na
Itália e nas províncias ocidentais latinas do império antes de 100 d.C. eram
cidadãos romanos; mais de 75% dos médicos eram escravos e ex-escravos; e
menos de 5% tinha um nome não grego. Apesar de o percentual de cidadãos e de
nomes não gregos ter aumentado nos dois séculos seguintes, o padrão geral
manteve-se o mesmo.55 As referências literárias confirmaram as evidências das
inscrições. Os médicos provenientes das províncias orientais eram comuns em
Roma e mais ao oeste, e continuaram a imigrar para essas regiões durante a
Antiguidade. Um médico de Frígia, que passara muitos anos na Gália, foi
martirizado em Lyon em 177 d.C.; Galeno, um imigrante, atacou sem piedade
seus compatriotas que imigraram para Roma, a fim de que não percebessem os
crimes médicos deles; e um médico grego foi para a Espanha no final do século
IV.56 Mesmo depois do desaparecimento do grande número de famílias que
tinham escravos e homens libertos, que caracterizou a Roma imperial no início
do século I, os escravos e ex-escravos ainda representavam uma faixa expressiva
da população. Um imperador, talvez Domiciano, em 93-4 d.C., censurou as
pessoas que, com o objetivo de ganhar dinheiro, enviavam seus escravos mal
treinados para exercer a medicina nas ruas e proibiu essa prática.57 Durante
séculos, as leis romanas continuaram a fixar preços para escravos treinados na
prática da medicina, embora no século VI o número desses escravos fosse muito
reduzido.58 A probabilidade de os médicos serem escravos ou ex-escravos
causou um raro ato legal ridículo. Em torno de 170 o jurista romano Juliano
decretou que os vínculos formais entre o proprietário e o ex-escravo não
deveriam estimulá-lo a ficar sempre doente, a fim de monopolizar os serviços
médicos do homem liberto sem remuneração.59 Essa posição legal inferior dos
praticantes de medicina na Itália e nas províncias ocidentais, além da percepção
geral de que a medicina era estrangeira, não estimulou o prestígio da arte da
medicina nesses lugares, apesar de poucos pacientes em potencial terem lido o
relato extremamente maldoso de crimes e leviandades da profissão médica de
Plínio, o Velho, inclusive de Hipócrates. Plínio não negava que alguns romanos
tinham interesse pela medicina como Rubrii e Calpetani, por exemplo, mas
estava convencido de que o tipo de medicina deles era diferente e superior ao da
medicina grega.60 Seu herói era o centenário Antonius Castor, que ainda
caminhava pelo seu jardim de ervas, uma prova viva do valor da medicina
fitoterápica romana.61 Mas, assim como Catão antes dele, Plínio fazia a
distinção entre os remédios e quem os oferecia. As longas seções relacionadas ao
corpo e aos remédios na História natural basearam-se muito mais em fontes
gregas do que em latinas, e tinham o objetivo de transmitir esse conhecimento
para seus colegas romanos.62 Isso não foi um sinal de esquizofrenia
compilatória da parte de um autor cujas declarações variavam de acordo com os
dados que pesquisava. Ao contrário, ao extrair essas informações
exclusivamente dos médicos gregos, Plínio eliminou os perigos do uso desse
conhecimento pelos romanos, cujo ponto de vista moral garantiria uma
utilização adequada e eficaz. A posse do conhecimento grego pelos romanos
produziria um tipo de medicina melhor. Essa tensão transparece nos oito
volumes de Sobre a medicina, escritos em latim pelo rico romano Aulus
Cornelius Celso como parte de sua enorme enciclopédia, Artes.63 Celso
reconheceu os méritos da medicina desenvolvida pelos gregos durante séculos e
agora introduzida na Itália. Essa “profissão que promovia a saúde” fora exercida
por “homens de raro talento” a partir de Hipócrates, em uma cadeia contínua até
sua época.64 A cirurgia, que se tornara uma parte independente da medicina
depois de Hipócrates, fora desenvolvida pelos alexandrinos antes de chegar a
Roma, onde Tryphon, Euelpistus e Meges, os cirurgiões mais competentes desse
período, fizeram contribuições importantes.65 Mesmo quando se opunha a
algumas doutrinas da medicina grega, em especial às de Asclépio e Themison,
Celso não as criticou verbalmente por serem gregas. Celso conhecia
profundamente a medicina e a cirurgia gregas, sobretudo do período helenístico,
citava diversos autores desconhecidos e usava em sua terminologia um grande
número de termos técnicos originários do grego.66 Suas noções de anatomia,
patologia e terapêutica eram, sem dúvida, gregas, embora não hesitasse em
expressar sua opinião ao descrever uma abordagem “racional” da medicina. No
entanto, ao mesmo tempo, apesar de sua cultura literária e experiência em tratar
de doenças, ele nunca assumiu o papel de médico nem se identificou com a
profissão. Além disso, Celso não disse como adquiriu o conhecimento da
medicina nem citou os nomes dos médicos com os quais presenciara alguns
casos mencionados em suas obras.67 Existiam razões sociais e intelectuais que
justificaram essa relutância. A prática verdadeira da medicina era incompatível
com a perseguição condenável do “quaestus”, o ganho monetário: apesar de seu
conhecimento, Celso e grande parte de seu público compunha-se de pessoas da
classe alta ou da nobreza, que se interessavam mais pela guerra e agricultura do
que pela medicina.68 Assim como Catão, Celso pensava que as atenções e os
cuidados médicos deveriam se limitar à família e aos amigos, e que os médicos
não deveriam tratar de diversos pacientes na cidade inteira, porque seria
impossível dar a eles uma atenção individual tão necessária para uma cura.69
Segundo ele, os analfabetos poderiam obter o conhecimento de plantas e ervas
úteis para a medicina; na verdade, esse tipo de cura era uma norma, o produto do
conhecimento popular consolidado na tradição, que poderia contradizer e superar
a evidência da palavra escrita. Mas esse conhecimento não era suficiente em si: o
mais importante era a racionalidade.70 Celso reconhecia que a arte da medicina
fora criada pelos gregos e, que, ao separá-la do estudo da filosofia, os gregos
permitiram que a medicina se desenvolvesse como uma disciplina independente.
Tinha consciência também dos benefícios que essa mudança acarretara, mas ao
mesmo tempo mantinha um distanciamento desse fato.71 Não receava criticar ou
tratar as autoridades gregas com um espírito independente e certo ceticismo,
sobretudo, porque as variáveis individuais tornariam inúteis até a mais
convincente de suas generalizações. Porém, suas objeções teóricas suscitaram
uma questão ética fundamental. Para Celso a medicina grega era um produto da
imoralidade, a consequência da degeneração do luxo e do ócio, necessária
apenas porque o mundo tornara-se corrupto. Por sua vez, suas palavras
enfatizavam as virtudes romanas, o “sentido de decência” e a moderação.72 Seu
livro, embora baseado em um conhecimento considerável de fontes gregas, foi
escrito em um contexto romano: apresentou os resultados da prática e da
experiência dos gregos, mas de uma maneira que revelou alguns preconceitos de
Catão e de Plínio. Apesar de seu profundo conhecimento e compreensão da
herança grega, Celso exprimiu um ponto de vista romano diferente. No entanto,
as dúvidas e indecisões de Celso em relação à medicina, mesmo de alguém tão
erudito como ele, não devem induzir ao erro. A medicina praticada e discutida
pelos gregos introduziu-se em Roma no final do século II a.C. Apesar da
relutância evidente dos romanos, os pacientes romanos queriam ser tratados por
médicos gregos quando adoeciam, e médicos da região leste do Mediterrâneo
imigraram em grande número para Roma.73 A imigração mais influente no
período republicano tardio foi a do médico Asclepíades de Bitínia. Nascido em
Cius (Prusa ad Mare) na Bitínia (região noroeste da atual Turquia), segundo
Plínio, ele foi um professor de retórica fracassado antes de se interessar pela
medicina.74 Em seguida, foi para Roma, onde usufruiu de um enorme prestígio
em razão de conselhos perspicazes e, aparentemente, de curas surpreendentes.75
Não se sabe ao certo quando chegou a Roma. No diálogo Sobre o Orador, de
Cícero, escrito na data crítica de 91 a.C., seu personagem, o orador L. Crassus,
mencionou ter usufruído de seus serviços como amigo e médico no passado,
quando Asclepíades derrotava seus competidores com sua eloquência e, em
especial, com a competência.76 Esse comentário significa que Asclepíades já
morrera em 91 a.C. por causa do silêncio de Cícero a seu respeito nas cartas
escritas nas décadas de 60 e 50 e, como se supõe que tenha morrido bem idoso, é
provável que tenha chegado em Roma na década de 120, ou talvez antes.77 Mas
com isso Themison, seu aluno, se situaria em uma data bem anterior, o que
ocasionaria um grande intervalo de tempo entre ele e outros seguidores de
Asclepíades, como Antonius Musa na década de 30 a.C. Essa lacuna seria ainda
maior entre ele e Thessalos, que modificou as doutrinas de Themison em torno
de 50 d.C.78 Em uma interpretação mais antiga da passagem de Cícero, Crassus
referiu-se só ao seu tratamento, e seu comentário a respeito do que Asclepíades
costumava dizer (dicebat) não significa que Asclepíades não fosse mais ativo em
Roma e sim apenas ao período em que esteve mais próximo de Crassus. Nessa
cronologia Asclepíades poderia ter vivido na década de 70, 60 ou 50 a.C., “a era
de Pompeia”, na qual Plínio o situou.79 Mas as datas controvertidas de sua
atividade em Roma no final do século II a.C. ou 30 ou 40 anos depois, não
interferem com o impacto de sua presença na cidade ou com a importância de
suas teorias. Plínio atribuiu seu sucesso extraordinário à credulidade dos
pacientes romanos e ao poder de sua retórica, que acordava os mortos, ou
moribundos, porém outros, especialmente Celso e Célio Aureliano, adotaram um
tom mais condescendente.80 Sua presença em Roma atraiu alunos da região do
Mediterrâneo, da Sicília, da região do Épiro e Síria.81 Nas fontes gregas ele é
citado com regularidade como o último representante dos médicos dogmáticos
antes de Galeno, e os médicos que seguiam as teorias de Asclepíades
disseminaram-se pela Gália e até mesmo na distante Ásia Menor nos séculos III
e IV.82 No entanto, só temos acesso a fontes secundárias referentes ao que disse
e ensinou e, com frequência, por intermédio de testemunhos hostis.83
Asclepíades acreditava que o corpo era formado por partículas invisíveis e que a
saúde era uma função do movimento livre e equilibrado dessas partículas através
de poros teóricos no corpo. A doença resultava de um desequilíbrio, um bloqueio
ou o excesso de líquido. Assim que descobriam a causa, o tratamento era
prescrito com lógica sem a necessidade de uma nosologia ou uma sintomatologia
complexa. Porém, esse método exigia uma observação e uma descrição
minuciosas, porque Asclepíades gostava de citar os erros de outros médicos no
diagnóstico de determinadas doenças. Enquanto alguns médicos acreditavam que
a inflamação dos nervos era muito mais perigosa e dolorosa, porque os nervos
eram bem mais sensíveis do que a carne, ele negava que os nervos tinham
sensibilidade, um típico exagero, segundo Galeno.84 Asclepíades julgava
absurda a crença dos empiristas nos méritos da observação sem teoria, assim
como criticava as explicações de outros teóricos. Embora conhecesse muitos
textos do Corpus Hippocraticum, estudos escritos, e talvez comentários sobre
Aforismos e A Cirurgia, além da crítica feita a autores antigos pela interpretação
errônea da linguagem de Hipócrates, Asclepíades usou o Corpus mais como um
banco de dados de informações práticas do que de teorias.85 Elogiou a descrição
de um deslocamento espontâneo em Articulações, que correspondia ao que vira,
mas rejeitou as explicações de doenças em termos de desequilíbrio ou de uma
mistura inadequada de humores. Asclepíades também se opôs às ideias dos que
diziam que as funções eram determinadas por um objetivo teleológico; a
natureza, disse, com frequência agia perigosamente. Enquanto Galeno mais tarde
falou da atração e expulsão de nutrientes no corpo em termos de propriedades
naturais organizadas propositalmente pela natureza no corpo, Asclepíades deu
uma explicação mecânica referente a uma evolução de corpúsculos em direção a
um estado mais puro, quente e rarefeito. Sua explicação mecânica e materialista
das funções do rim e da bexiga inspirou-se muito em pensadores helenísticos
mais antigos, sobretudo em Erasístrato e em Heráclides de Ponto, e Galeno, com
razão o incluiu na escola dos epicuristas por causa da semelhança entre suas
ideias e a concepção deles do universo atômico.86
Figura 11.2 Um exercício suave em um balanço recomendado por Asclepíades
de Bitínia. Uma ilustração de Da arte da ginástica de H. Mercurialis, Amsterdã,
A. Frisius, 1672, p. 217, um tratado do Renascimento, que reintroduziu antigas
ideias na medicina como exercício e fisioterapia. Cortesia da Wellcome Library,
Londres. Mas Asclepíades adquiriu sua reputação em Roma menos por suas
teorias do que pelos tratamentos. Seu lema “rápido, seguro e agradável”, uma
adaptação das ideias do Corpus Hippocraticum, e o uso liberal do vinho e da
recomendação de um exercício suave foram criticados por seus adversários
posteriores, em razão da ideia implícita de que eram tratamentos apropriados aos
pacientes. Asclepíades ficou célebre por defender cinco tipos de tratamentos
básicos: o equilíbrio da ingestão de comida e de vinho; a massagem; o
tratamento que não forçava o doente a ficar na cama; o uso do balanço,
exercícios passivos para quem não pudesse fazer uma atividade mais vigorosa;
banhos que considerava muito importante; e uma espécie de “banho pendurado”
para hidroterapia passiva que inventou.87 Esses tratamentos não eram novos –
Celso criticou-o por se comportar como se fosse o único inventor da massagem
terapêutica –, mas a combinação dessas terapias e a confiança depositada nelas
contestaram a prática antiga, que ele condenou como um estudo da morte.88
Alguns de seus conselhos eram extremamente sensatos: aconselhou evitar o
excesso de banhos muito frios, recomendou música no tratamento de doenças
mentais e insistiu que o médico deveria ficar atento ao processo de
convalescença, após o tratamento. Outras terapias, em especial o uso liberal do
vinho, eram consideradas por seus opositores como uma demonstração de
indulgência em relação aos seus pacientes ricos.89 Essa acusação é um exagero,
porque Asclepíades usava diversos remédios em seus tratamentos. Embora
tivesse cuidado ao receitar remédios fortes como heléboro e restringia o uso de
um remédio comum, o oximel, uma mistura de vinagre e mel para curar mordida
de cobra, não se opunha rigidamente em usá-los, como seus opositores
afirmavam.90 Asclepíades ainda usava enemas em caso de obstrução intestinal,
não com tanta frequência e violência de seus predecessores. Mas seus
tratamentos poderiam ser dolorosos se necessário. Celso descreveu as etapas
iniciais do tratamento da febre como muito parecidas à tortura.91 Mesmo Célio
Aureliano, um metodista que não tinha motivo para desacreditar seu predecessor,
mencionou que ele usava eméticos e enemas, flebotomia, a remoção do excesso
do líquido seroso na hidropisia e até mesmo a faringectomia em seus
pacientes.92 Para um autor como Asclepíades, que escreveu sobre ferimentos e
seus tratamentos, essas prescrições eram razoáveis, e seria pouco provável que
tivesse evitado o uso da faca para sempre.93 Asclepíades foi uma figura
exponencial da medicina grega em Roma. Ele escreveu em grego, embora
direcionasse sua mensagem para um público em grande parte romano, e suas
habilidades superaram a divisão linguística. Conquistou um enorme e
indiscutível sucesso, em parte pela força e independência de sua personalidade.
Seu exemplo, sem dúvida, incentivou outros médicos a irem para Roma e Itália
em busca de fortuna. A atividade de Asclepíades em Roma marcou o momento
efetivo da transferência da medicina grega para o mundo romano. Portanto,
apesar das diferenças de ênfases teóricas, das estruturas legais e sociais, a
medicina no mundo grego e romano fez94 parte do mesmo universo intelectual.

12 As Consequências do Império Farmacologia, Cirurgia e o Exército Romano A


transformação do mundo romano no governo de Augusto (31 a.C.-14 d.C.), o
herdeiro de Júlio César, não foi apenas uma transição política da república para o
império, do governo efetivo do Senado e do povo de Roma, para uma autocracia
encoberta por uma terminologia tradicional. Foi também uma revolução social e
geográfica quando o poder imperial romano estendeu-se ao Reno, ao Danúbio e
ao Eufrates. Tanto no norte da Itália, na Gália ou na Ásia Menor, as elites locais
foram assimiladas de diversas formas ao amplo sistema do governo romano e da
cultura. A cidade de Roma sofreu uma mudança a ponto de ficar quase
irreconhecível, quando os prédios públicos de mármore substituíram os de tijolos
e no lugar das pequenas casas foram construídos blocos de apartamentos. A
população da cidade teve um crescimento extraordinário e os limites da cidade
estenderam-se com as devidas pompas religiosas e cerimônias. Em meio ao
fluxo de imigrantes (um verdadeiro rio Orontes, disse com mordacidade um
escritor de sátiras), havia médicos gregos de Tebas (não é claro se era a cidade
de Tebas na Beócia ou no Egito), de Niceia, Laodiceia, Esmirna e de outras
cidades menos importantes da região leste do Mediterrâneo.1 Esses médicos
procuravam fama e fortuna na metrópole, na Itália, e nas províncias mais
romanizadas no Ocidente e, em poucos casos, nas fronteiras do império
ocidental.2 Com a transferência da medicina grega para o mundo romano houve
uma assimilação das mesmas teorias e, com frequência, remédios iguais
circulavam em latim e em grego. Após a conclusão desse processo de
assimilação a medicina romana difundiu-se pelo império sem distinção de
língua. A casa imperial, o imperador, sua família, amigos, conselheiros e, em
especial no século I d.C., os ex-escravos (ou homens libertos), que exerciam a
função de secretários imperiais constituíram o auge das ambições dos médicos.
Ser médico pessoal de uma dessas pessoas importantes era, como veremos, o
caminho seguro para conquistar fortuna e influência, tanto para sua família
quanto para si próprio. Mas mesmo a sugestão da aprovação imperial poderia ser
usada para promover uma teoria ou defender um novo remédio. Paccius
Antiochus em seu leito de morte em c. 30 d.C. citou seu maravilhoso analgésico
em uma carta ao imperador Tibério, que providenciou para que o remédio
estivesse disponível nas bibliotecas públicas para que todos lessem a bula.3 Uma
geração depois, Thessalos de Trales enviou uma carta arrogante e vaidosa para o
imperador Nero, denunciando as teorias nocivas de Hipócrates e proclamando as
virtudes de sua nova seita médica.4 O funcionamento dessas conexões imperiais
na prática e o impacto da expansão do Império Romano na medicina são
ilustrados pela carreira e pelas obras de um escritor latino de farmacologia,
Escribonio Largo. Largo dedicou seu livro Receitas de Drogas a um dos homens
libertos mais poderosos do império, C. Julius Callistus, no final do ano 47 ou
início de 48.5 Embora talvez não fosse um dos médicos do imperador, Largo
tinha boas relações na corte – ele deu detalhes dos dentifrícios preferidos da irmã
de Augusto, Otávia, e da imperatriz Messalina, assim como remédios usados por
Augusto, Tibério e pela mãe e a avó do imperador Claudio – e participou em 43
da expedição de Claudio à Grã-Bretanha.6 Ele descreveu uma erva que
encontrou perto de Luni na Etrúria enquanto esperava o embarque junto com as
tropas do imperador. Não se sabe se era médico do exército contratado por um
breve período, ou se viajava como médico pessoal de um general ou de um
cortesão importante.7 Suas ligações eram ainda mais fortes com a Sicília. Largo
referiu-se ao remédio exótico contra mordida de cobra que os caçadores
sicilianos carregavam com eles em suas caçadas, e à rara espécie de trevo que
crescia na região. Ele anotou uma receita de remédio antirrábico apresentado à
cidade de Centuripae por seu professor, um renomado médico local. Apesar de
ter dúvidas quanto à sua eficácia para combater a raiva, mencionou que usara
com sucesso em outras mordidas e picadas.8 Largo era um siciliano culto e
fluente em latim e grego. Assim como em seu livro de receitas de remédios em
latim e nos livros de medicina também em latim, que desapareceram,
apresentados em seu nome por Callistus ao imperador, algumas receitas em
grego preservaram-se em meio às citações de Galeno de outros farmacologistas
gregos do final do século I. Ainda se discute se essas receitas fizeram parte de
um trabalho escrito em grego por Largo ou se foram traduzidas do latim, mas,
qualquer que seja a origem, essas receitas mostraram a facilidade com que a
troca de informações em latim e grego se produziu.9 O livro despretensioso de
Largo é muito interessante. As 271 Recipes dividem-se em três seções
principais. O primeiro e maior grupo (1-162) é organizado de acordo com as
doenças do corpo inteiro, desde dor de cabeça, epilepsia e gota; em seguida, há a
descrição de 37 antídotos contra venenos, mordidas e picadas; e o livro termina
com emplastros, curativos e bálsamos – os remédios típicos usados por
cirurgiões.10 Largo mencionou 249 vegetais, 45 minerais e 36 substâncias
animais originários da região mediterrânea ou importados da África através da
Alexandria.11 Os itens citados incluíam desde a humilde cenoura até à exótica
babosa, do feno-grego ao gengibre, da manteiga à arraia e ao peixe-elétrico
recomendado para dores de cabeça constantes (talvez enxaqueca), porque a
aplicação contínua de choques elétricos diminuía e, por fim, eliminava a dor. Um
tratamento semelhante em que o peixe dava choques elétricos nos pés e nas
pernas do paciente, enquanto ele nadava no mar até a região dolorida ficar
dormente tinha a fama de ter curado um funcionário da corte do imperador
Tibério de dores nas pernas.12 A maioria das substâncias utilizadas por Largo
ainda é encontrada em ervas modernas e tem propriedades fitoterápicas. A
mistura dos remédios revelava uma combinação criteriosa de ingredientes que
beneficiava o doente. O remédio receitado para o tratamento de amigdalite, por
exemplo, à mãe do imperador Claudio, demonstrou ser um bom analgésico; seus
dentifrícios continham abrasivos, e agentes branqueadores e nardo para melhorar
o hálito.13 Estudos de química recentes de receitas de outros autores ou
remédios encontrados em escavações confirmaram que essas combinações de
ingredientes não eram fortuitas. Um pote de creme para o rosto encontrado na
cidade de Londres ocupada pelos romanos, ainda com as marcas dos dedos do
dono, era um cosmético eficaz, e sua composição tinha traços do unguento
preservado nas jarras romanas de remédios da Mogúncia.14 Uma receita de
Galeno de unguento escuro para cortes, equimoses e hematoma ocular “usado
por um campeão de jogos olímpicos” comparava-se a alguns remédios caseiros
de boxeadores, porque continha substâncias que eliminavam a dor, diminuíam a
intumescência e tinham propriedades cicatrizantes que estancavam o sangue.15
Os comprimidos e unguentos encontrados em um naufrágio na costa da Toscana
continham uma mistura de ervas domésticas e outras espécies mais exóticas.16
Grande parte das receitas de Largo resultou de pesquisas em fontes confiáveis,
como as de seu professor Vettius Valens e Meges, o cirurgião, e consultas em
manuais de medicina; outras receitas tinham uma origem mais exótica ou
discutível.17 Largo pagou uma grande soma de dinheiro a “uma senhora idosa e
pequena da África”, que curara muitos habitantes de Roma de dor de estômago
com uma mistura de chifre de veado, mirra, pimenta e vinho. Em outra ocasião
ouviu falar de um remédio extraordinário para combater a epilepsia, que estava
sendo elogiado na ilha de Creta por um estrangeiro de um barco naufragado. Ele
pediu a um amigo, um médico cretense da cidade de Gortyn, que procurasse
saber mais informações a respeito do remédio; depois de gastar muito dinheiro o
médico descobriu que o remédio maravilhoso nada mais era do que um pedaço
da pele de hiena enrolada em um tecido. Largo astuciosamente disse que ainda
não experimentara o remédio nem gostaria de experimentar, embora houvesse
conseguido, com dificuldade, uma hiena e a tivesse escalpelado, porque era
melhor estar preparado para qualquer eventualidade.18 É possível que essas
histórias deem a impressão de que Largo era tolo e crédulo, incapaz de distinguir
a charlatanice de uma farmacologia honesta, mas esse julgamento seria injusto.
Ele queria descobrir remédios eficazes e criticava com severidade o que
chamava de “superstição” e “conduta antiética”. Ambrosius, um médico de
Pozzuoli, perto de Nápoles, era autor da receita de um remédio para quebrar um
cálculo na bexiga até transformá-lo em fragmentos de areia, que seriam
eliminados com facilidade pela urina. Ambrosius recomendava que o remédio
fosse preparado por uma pessoa que não estivesse usando um anel de ferro, e
sim só um pilão de pedra.19 Segundo Largo, esse simbolismo de pedra e ferro
era “mera superstição”. Do mesmo modo, quando um homem recomendou um
remédio contra epilepsia preparado com o cérebro de um veado jovem morto
com uma adaga que fora usada pouco antes para matar um gladiador, Largo, é
óbvio, sentiu repugnância, apesar de ter incluído a recomendação entre suas
anotações.20 Largo criticava os remédios contra epilepsia nos quais a pessoa
tinha de beber seu próprio sangue ou o sangue da cabeça de um gladiador morto
ou, ainda pior, comer um pedaço do fígado do gladiador, como uma
“transgressão dos princípios da professio de medicina, mesmo se trouxesse
benefício a alguém”.21 A frase incisiva, a “professio de medicina”, atrai a
atenção, porque ao longo da coletânea de receitas, sobretudo, no extenso
Prefácio, Largo defendeu a ideia de que a farmacologia fazia parte da medicina,
que fizera, sem dúvida, uma contribuição especial à ética médica.22 Em sua
opinião a medicina era uma unidade e, portanto, não existiria a cirurgia sem a
dietética, e vice-versa, nem essas especialidades poderiam ser praticadas, exceto
em detrimento da “professio” de um médico se a farmacologia fosse excluída.
Um médico precisava conhecer os remédios por razões pragmáticas e teóricas.
Enquanto os médicos procuravam fazer um diagnóstico criterioso, homens de
menor envergadura, “sem reputação e distantes da disciplina da medicina e, de
modo algum, próximos da professio da medicina”, ganhavam fama por sua
eficiência. Além disso, a promessa de um tratamento que não envolvesse
cauterização ou o uso de faca atraía pacientes dispostos a pagar. Os médicos
discutiam por diversas razões a eficácia dos remédios nos tratamentos; talvez por
terem interpretado de uma maneira equivocada ou deturpado as opiniões de
autoridades antigas; é possível que desconhecessem a composição dos remédios;
ou, ainda pior, é provável que quisessem manter em segredo seu conhecimento
dos competidores.23 Mas qual era o significado de “professio” para Largo?
Embora seja tentador traduzir a palavra como “profissão” no sentido atual, seu
significado inicial era de declaração pública.24 Era uma declaração
compartilhada que remontava a Hipócrates, “o fundador da profissão” e ao
juramento hipocrático. Assim como o soldado fazia um juramento de lealdade
que o obrigava a cumprir determinadas obrigações, o médico impunha-se, com
sua declaração pública, sua “professio”, deveres no âmbito da disciplina da
medicina. Diante do compromisso solene do “juramento legal” da medicina, o
médico não daria um veneno ao inimigo na guerra; mas poderia matá-lo na
batalha como um bom cidadão. Acima de tudo, o dever do médico era curar e
não prejudicar. Se Hipócrates proibia que os médicos causassem qualquer dano a
um feto, “a esperança incerta do pai”, quais seriam os cuidados que um médico
deveria ter com seres humanos depois do nascimento? Apesar de algumas
pessoas terem dito que um médico deveria evitar qualquer contato com venenos
ou substâncias tóxicas, isso era um exagero. O verdadeiro médico precisava
conhecer os nomes e a aparência deles, para evitá-los ou combatê-los; porém,
saber como prepará-los se opunha a tudo o que era justo e correto na
profissão.25 Os comerciantes de remédios, os pharmacopolae, que conheciam
profundamente os remédios, assemelhavam-se aos médicos, mas, ao mesmo
tempo, estavam mais distantes de seus ideais de virtude.26 Essa dicotomia era
compreensível, porque em todas as artes e ciências existe sempre um adversário
em uma profissão semelhante à sua. Largo adotou um tom de superioridade em
relação a esses rivais. Chamou-os de “pessoas humildes”, úteis quando os
remédios funcionavam, “execráveis” quando não funcionavam ou causavam a
morte.27 Nesse sentido, por trás da descrição otimista de Largo do médico como
uma espécie de santo percebe-se as linhas gerais de um problema conhecido e
menos virtuoso de uma disputa entre profissões. O prefácio de Largo foi um
apelo à ética hipocrática no âmbito da medicina. O texto traduziu o juramento
hipocrático para o latim dentro de um contexto latino específico.28 Não se sabe
se seu apelo foi jamais ouvido. Além de citações de suas receitas de remédios
em grego, só Marcelo de Bordeaux, um escritor do final do século IV, conhecia
seu livro, e os manuscritos do livro são muito raros.29 O destino de outro
escritor contemporâneo de farmacologia, Pedanius Dioscórides de Anazarbo
(sudeste da Turquia), autor dos cinco volumes em grego do livro Sobre a matéria
médica considerado um cânone na Antiguidade tardia, foi muito diferente.30
Dioscórides estudou farmacologia em Tarso, a principal cidade de sua região,
onde havia uma forte tradição de ensino de farmacologia, que se prolongou pelo
menos por mais 50 anos.31 Suas referências aos hábitats específicos de plantas
ou aos principais entrepostos concentraram-se no mundo de língua grega da
região do mar Egeu ao Levante. As poucas menções a outros lugares mais
distantes, como as ilhas Baleares, a Índia e a Grã-Bretanha (com referência ao
hidromel), possivelmente se basearam mais em relatos de outras pessoas do que
em suas viagens. A distribuição dos locais citados é problemática para quem
queira interpretar a referência no Prefácio às inúmeras viagens que fez durante
“a vida de soldado”, o que indica que serviu o exército por algum tempo.
Dioscórides disse que aproveitou as viagens para observar plantas nativas, mas,
caso seja verdade, seu conhecimento de plantas das regiões onde o Exército
romano alojava-se ao longo do Reno e do Danúbio, na Espanha ou norte da
África. No entanto, é possível que tenha servido ao exército na Síria ou, menos
provável, no Egito, ou talvez tenha participado das guerras armênias de 55-63.32
Dioscórides tinha o objetivo de elaborar uma lista a mais completa possível de
substâncias médicas baseada não só na leitura de autores antigos como Crateuas
e Sextius Niger, como também, quando possível, em sua experiência ou em
relatos de pessoas a quem entrevistara pessoalmente.33 Sua experiência revela-
se nos comentários a respeito de colher as ervas, prepará-las e guardá-las para
obter a máxima eficácia.34 Seu principal interesse concentrava-se no valor
intrínseco das substâncias para a medicina e, portanto, não tinha a intenção de
escrever, como Escribonio Largo, apenas um manual de remédios para doenças
específicas. Sua lista era muito mais extensa: incluía mais de mil substâncias,
das quais cerca de 700 plantas. Dioscórides fez uma descrição sucinta de cada
planta, sua aparência, propriedades e usos, tanto na medicina de seres humanos,
de animais e de uso na casa.35 O perrixil (também chamado critmo), por
exemplo, provavelmente identificado como funcho-do-mar, era um pequeno
arbusto de cerca de uns 30 centímetros, com folhas espessas, que crescia em
rochas em áreas marítimas. As folhas abundantes eram brancoróseas como as da
beldroega, porém mais largas, longas e com um gosto salgado. Suas flores
brancas e o fruto macio pareciam com alecrim: o perfume era adocicado e tinha
uma forma ovoide. Depois de seco o fruto do perrixil assemelhava-se ao trigo. O
arbusto tinha três a quatro raízes grossas como um dedo, perfumadas e com o
gosto agradável. A bebida preparada com a semente, as raízes e as folhas
fervidas no vinho era eficaz para combater a micção dolorosa e curava a
icterícia; também provocava a menstruação. A planta podia ser usada como um
vegetal, tanto cozida quanto crua, e também poderia ser conservada em
salmoura.36 O livro de Dioscórides apresenta primeiro as categorias de animais,
minerais e plantas (divididas em raízes, hortaliças, frutas, árvores e arbustos) e,
em seguida, descreve o efeito dessas substâncias no organismo, porque, como
explicou, as pessoas que procuravam um remédio para uma doença específica o
encontrariam com mais facilidade em uma seção sobre remédios eficazes, do que
na consulta a uma longa lista de plantas em ordem alfabética.37 No entanto, sua
ênfase incomum em afinidades dos remédios não foi sempre bem recebida.
Enquanto autores posteriores, como Galeno, elogiaram a abrangência e a riqueza
dos detalhes práticos da obra de Dioscórides, muitos acharam sua organização
confusa. Alguns copistas reverteram a prática familiar e reescreveram o livro
inteiro com as substâncias em ordem alfabética dentro das divisões maiores.
Outros reuniram listas de sinônimos ou traduziram os nomes das plantas em
diversas línguas, como Daciano. Essas modificações ajudaram Dioscórides e seu
livro de ervas a se tornarem uma bíblia da medicina botânica, que exerceu uma
enorme influência na farmacologia e na botânica até o século XVII.38 O
conhecimento sofisticado de medicina e farmacologia de Dioscórides faz um
contraste nítido com Plínio, o Velho, que incluiu ainda mais informações sobre
remédios na História Natural. Esse livro, uma compilação evidente de diversas
fontes gregas e latinas, foi escrito para um público mais amplo e ofereceu
informações interessantes e noções práticas de uma medicina de autoajuda.
Gerações posteriores de médicos, começando por Niccolò Leoniceno (1428-
1524), exasperaram-se com os erros de cópia e má interpretação de Plínio, em
contraste com a precisão de Dioscórides e Galeno.39 Mas Leoniceno e seus
sucessores tinham acesso aos gregos e a textos gregos, uma situação diferente do
público-alvo de Plínio ou de seus leitores no período latino tardio e na Idade
Média.40 Para esse público o importante era a acessibilidade de Plínio e sua
aparente abrangência.41 Sua lista de remédios originou-se de todos os tipos de
fontes confiáveis, desde botânicos como Teofrasto, escritores de textos de
medicina como Heráclides e Sextius Niger, ou os herdeiros menos respeitáveis
do mágico persa, cujos métodos criticava tanto quanto as especulações teóricas
dos médicos gregos.42 A série de substâncias descrita no livro é ainda maior do
que a de Dioscórides, com a inserção de ervas de lugares tão distantes como a
Grã-Bretanha e a Etiópia.43 Plínio via com uma mistura de orgulho e precaução
esse conhecimento mais amplo. Em sua opinião a medicina, como vimos, fora
introduzida em Roma só no século III a.C., o conhecimento de remédios de
origem mineral ainda mais tarde e a arte de preparar remédios só no século I a.C.
em seguida à derrota de Mitrídates por Pompeu e a tradução para o latim de
algumas receitas do rei por Pompeu Leneu.44 O poder romano possibilitou esse
acréscimo de conhecimento, mas, ao mesmo tempo, introduziu luxos perigosos
que resultariam no esquecimento das generosidades mais simples, mais eficazes
e moralmente puras da natureza.

Figura 12.1 O ruibarbo de Dioscórides. Uma ilustração do Renascimento da
tradução para o italiano de Pietro Andrea Mattioli de Dioscórides, ed. 3, Veneza,
V. Valgrisi, 1568, p. 675. Cortesia da Wellcome Library, Londres. Os
comentários de Plínio sobre o desenvolvimento de remédios preparados com
várias substâncias nesse período foram confirmados por fragmentos de escritores
contemporâneos referentes à farmacologia, como Andrômaco, o Velho, um
cretense que se tornou médico pessoal de Nero.45 Esse médico ficou famoso por
seu antídoto universal, Galene, que substituiu o mitridato de Mitrídates na
preferência popular. Esse antídoto continha ainda mais ingredientes, 64
comparados aos 41 do mitridato, com uma proporção mais elevada de opiatos e
minerais, e a carne de lagarto foi substituída pela carne de víbora. Andrômaco
escreveu a receita em forma de poema com 87 estrofes, possivelmente, como
outro poeta farmacologista comentou, porque o verso era um meio melhor para
preservar detalhes precisos do que a prosa, mas também porque era uma prova
evidente das aspirações culturais e habilidades do autor.46 Os versos de
Andrômaco foram mais tarde transformados em prosa pelo filho, também
chamado Andrômaco, talvez um médico da corte imperial no século I. Galeno
fez uma crítica áspera ao jovem Andrômaco por ser um mero compilador, sem a
inteligência do pai e a precisão e a clareza de seu professor, Asclepíades
Fármaco, cujos 10 livros de remédios externos e internos Galeno considerava o
melhor livro de medicamentos disponível.47 Porém, isso não impediu, é claro,
que Galeno tenha se apropriado, com frequência, de uma forma literal, de
grandes seções dos três livros do jovem Andrômaco sobre remédios externos,
internos e de oftalmologia.48 Statilius Crito, outro farmacologista e médico da
corte, foi também uma fonte importante de muitas receitas recomendadas por
Galeno, não só com fins cosméticos, porque Crito inspirara-se para escrever seu
livro em um tratado de cosmetologia supostamente escrito pela grande beleza de
sua época, a rainha Cleópatra do Egito.49 A coletânea de textos de Galeno
também contém um exemplo de texto farmacológico raro, que no período em
que foi escrito era um texto considerado comum. O autor anônimo, um grego da
Ásia Menor que emigrara para a capital, descreveu para o irmão as virtudes
quase miraculosas de uma planta, a centáurea, adequada para praticamente todas
as doenças, desde dor de cabeça e dores estomacais, ferimentos e raiva. A planta
poderia ser usada, tanto como um remédio interno quanto externo, e era uma
verdadeira panaceia. Na realidade, até ver os resultados ele duvidou se seria tão
eficaz como diziam. Mas ao contrário de Dioscórides, ele não fez distinção entre
as duas espécies principais da centáurea e fez apenas uma descrição botânica
sucinta.50 Esses homens que moravam em Roma, com acesso a redes de
informações eficientes e a remédios importados de diversos lugares do império,
alguns recolhidos especialmente por funcionários imperiais, constituíam uma
elite farmacológica. Tratados como Substitute Drugs, que citava os remédios
alternativos a serem receitados se os originais prescritos não estivessem
disponíveis, mostraram que o grau de eficácia deles e a complexidade de suas
composições dificilmente seriam alcançados nas províncias.51 Crito,
Dioscórides e Escribonio Largo tinham mais em comum do que o interesse pela
farmacologia: os três haviam servido no Exército romano.52 Depois das guerras
de conquista no último século a.C., em especial sob Augusto, as tropas romanas
espalharam-se por um império que se estendia do Reno ao Danúbio ao norte, ao
Eufrates a leste e ao vale do Nilo e ao Saara ao sul. Campanhas posteriores no
século I e no início do século II resultaram na conquista da Grã-Bretanha e da
Dácia (atual Romênia), e a fronteira do Império Romano expandiu-se mais a
leste até o rio Tigre. Embora tenha havido conquistas semelhantes no passado
realizadas pelos persas e Alexandre o Grande, citando apenas dois grandes
conquistadores, e cidades como Cartago e Atenas mobilizaram grandes
exércitos, a situação militar no final do século I a.C. era totalmente diferente. As
tropas civis recrutadas apenas por ocasião das campanhas e que lutavam perto
das cidades onde habitavam eram substituídas por tropas profissionais
experientes compostas por legionários e tropas auxiliares, que não eram cidadãos
romanos. As campanhas realizavam-se a centenas de quilômetros de distância de
Roma e da Itália, com frequência em regiões onde os povos nativos, além de
hostis, viviam em povoados que um habitante da região mediterrânea
dificilmente chamaria de cidade. Já não era mais possível seguir o procedimento
habitual de levar os feridos, depois do tratamento no campo de batalha, de volta
às suas casas ou deixá-los em uma cidade que tinha uma relação amistosa com
Roma.53 Novas medidas precisavam ser adotadas. Em 14 d.C. o novo Exército
romano envolvido com a pacificação dos territórios conquistados e com futuras
conquistas alojava-se em fortalezas legionárias ou em fortes de apoio menores e
mais expostos.54 As tendas e quartéis temporários foram substituídos por bases
permanentes construídas de madeira e pedra. A construção das fortalezas seguiu
um projeto arquitetônico padrão com um valetudinarium ou hospital situado em
setores mais tranquilos do campo. Em geral era um prédio retangular (que em
Neuss, oeste da Alemanha, media 89m por 50m) ao redor de um pátio central
com pequenas salas, que abriam em ambos os lados para um corredor que
rodeava o prédio. Havia também duas ou três salas maiores que funcionavam
como um teatro, depósitos ou cozinhas.55 As ruínas dessas fortalezas mostraram
a atenção cuidadosa dada à iluminação, aos vasos sanitários e ao suprimento de
água; em Inchtuthil, na Escócia, as camas ficavam em cubículos para evitar as
correntes de ar o máximo possível.56 Os hospitais destinavam-se às legiões
romanas, as tropas civis. Os fortes das tropas de apoio de não cidadãos eram bem
menores, adequados para unidades militares pequenas (mil ou menos,
comparados com 5.600 soldados em uma legião), e nem sempre tinham um
hospital. Os hospitais ocasionais dos fortes assemelhavam-se aos hospitais das
legiões, mas em menor escala, como em Housesteads na Muralha de Adriano
(norte da Inglaterra), ou, com mais frequência, eram uma construção retangular
com uma sala de cirurgia e cubículos ao longo do lado de um corredor, como em
Fendoch (Escócia).57 Images

Mapa 12.1 O hospital legionário em Novaesium (Neuss, Alemanha). Construído


em pedra em c.50 d.C., o hospital atendia aos 5.600 soldados civis da décima
sexta legião. Os doentes eram levados para um dos grandes vestíbulos onde
havia uma sala de cirurgia e farmácia. Os doentes dormiam em pequenos
cubículos no corredor, porque evitava as correntes de ar e o barulho. Algumas
plantas medicinais podiam ser cultivadas no jardim do hospital ou colhidas em
lugares próximos, mas outros remédios e materiais eram supridos por locais mais
distantes.58 Os selos nos barris de vinho (uso medicinal?) encontrados em
Aquincum, perto de Budapeste, declaravam que haviam sido importados “com
isenção de imposto para o hospital da 2ª Legião Adiutrix”. O vinho temperado
com marroio-branco foi importado para a fortaleza de Carpow, na Escócia,
durante as campanhas no início do século III, assim como o vinho italiano
importado para Caerleon, no sul do País de Gales, em torno de um século
antes.59 Um papiro egípcio registrou um contrato de 138 d.C. para fabricar
cobertores, “brancos, seis cúbitos por quatro… com bainhas costuradas”, para o
hospital de uma legião localizada em Capadócia, na fronteira oriental.60 As
informações referentes aos pacientes tratados nesses hospitais são escassas. A
planta arquitetônica de Neuss e Fendoch indica que o número de cubículos
coincidia com o número de centuriões em uma legião ou coorte; dependendo do
número de camas em cada cubículo, isso daria uma taxa de ocupação de 2,5% a
5% em circunstâncias normais, e talvez o dobro em uma emergência. Em Hod
Hill, em Dorset, Inglaterra, o prédio construído durante a fase inicial da
conquista romana em 43 d.C., quando havia a expectativa de mais combates, a
escavação revelou que entre 12% a 20% das tropas poderiam se acomodar no
prédio pressupondo que funcionasse como um hospital.61 Mas nem todos os
pacientes sofriam de ferimentos causados pelo inimigo. A ideia de que o exército
tinha um sistema de triagem no campo de batalha, tratando os soldados com
ferimentos leves no local, outros em tendas montadas atrás do campo de batalha,
e os feridos mais graves no hospital da fortaleza legionária, é uma ficção
agradável.62 Os combates raramente se realizavam perto de um hospital militar.
As fortalezas permanentes na África, em Lambaesis (sul da Argélia) e na Grã-
Bretanha, em Caerleon, Chester, York e, por menos tempo, em Gloucester e
Inchtuthil, ficavam muito distantes dos locais das hostilidades. Mesmo no Reno
e no Danúbio, onde as fortalezas ficavam mais perto da fronteira, as legiões e as
tropas de apoio em geral combatiam em lugares bem mais distantes. Em geral,
os soldados seriamente feridos morriam no caminho de volta, antes de chegarem
ao conforto do hospital para fazer uma cirurgia ou convalescer.63 E, de qualquer
modo, o afastamento de um soldado do campo de batalha não resultava apenas
dos combates travados. Em Vindolanda, um forte auxiliar perto da Muralha de
Adriano, a lista de plantão de 18 de maio de 90 d.C. (?) revelou que 31 dos 752
soldados estavam incapacitados de lutar: 15 estavam doentes, seis feridos
(uolnerati) e 10 tinham problemas oculares.64 Nem os ferimentos haviam sido
causados pelo inimigo: acidentes durante uma manobra da tropa em campanha,
ou na patrulha da Muralha inseriam-se nessa categoria. Havia também outros
perigos. Claudius Terentianus ficou cinco dias doente a bordo de um navio, o
Netuno, de uma frota egípcia, em razão da comida estragada.65 No forte de
Künzing, na Alemanha, encontraram vestígios de um parasita do intestino, o
nematódeo, em geral associado à carne de porco contaminada, em resíduos de
um vaso sanitário.66 É possível supor que a assistência médica era também
oferecida aos moradores do canabae, as cidades paupérrimas ao redor de muitos
fortes onde comerciantes e as mulheres e filhos dos soldados rasos viviam.
Mesmo se Wilmanns estiver certo em sua opinião de que o tratamento cuidadoso
dos doentes em uma fortaleza legionária era falho quanto ao aspecto da
precaução e da ocupação excessiva de camas e serviços, esse risco era inerente
ao alistamento no exército, e nem sempre a assistência médica era oferecida à
população civil.67 Diversos médicos trabalhavam nos hospitais e nos serviços
médicos do Exército e da Marinha, inclusive no atendimento aos animais das
unidades militares. Uma legião tinha vários médicos, talvez um para cada
destacamento (vexillatio), enquanto cada regimento de apoio, de cavalaria e de
infantaria, tinha um médico dedicado apenas ao regimento. Roma tinha uma
organização semelhante para atendimento às tropas, à polícia (as coortes
urbanas) e aos bombeiros. Muitos médicos da Marinha mencionaram o navio em
que haviam servido, mas não é claro se isso significa que cada navio tinha um
médico específico ou que a trirreme citada era a nau capitânia de uma flotilha.68
A responsabilidade de administrar um hospital legionário recaía em um ou dois
oficiais sem formação médica, dos quais um deles logo seria transferido para
administrar um campo de prisioneiros.69 Dois médicos, um a serviço das coortes
urbanas aquarteladas em Lyon e outro com a tropa de elite da cavalaria, foram
registrados como “médicos de acampamento militar”; é possível que esse título
também tenha sido atribuído aos médicos com postos mais elevados em
fortalezas legionárias, mas não existem provas desse fato.70 Os encarregados
dos curativos, os farmacêuticos, veterinários e recrutas que aprendiam sua
especialidade, pertenciam às posições inferiores da hierarquia militar.71 A
posição ocupada pelos médicos (medici) no Exército e na Marinha é uma
questão complexa e controvertida. Do ponto de vista técnico, não tinham a
obrigação de cumprir as tarefas cansativas do serviço militar e podiam receber
um pagamento maior por seu trabalho. Os médicos da Marinha recebiam
regularmente o dobro do salário de um tripulante, e metade ou o dobro do
pagamento dos “médicos soldados”.72 Segundo as evidências escassas, talvez
tenham sido homens recrutados pelo exército e que adquiriram experiência e
treinamento na unidade militar em que serviram. Ao mesmo tempo, havia outros
médicos que se denominavam “medici ordinarii”, membros de um ordo de
centuriões, com um salário pelo menos 10 vezes maior do que o de um oficial
comissionado.73 Esse assunto polêmico pode ser solucionado ao pressupor que
alguns médicos serviam o exército por algum tempo e depois retomavam a
carreira civil. Não tinham a obrigação usual de fazer o serviço militar por 20 ou
25 anos e, com frequência, pertenciam a famílias de classe alta e tinham uma
educação melhor do que a de um soldado comum. Marcus Valerius Longinus,
um médico da 7ª Legião, era membro do conselho municipal de sua cidade natal,
Drobeta (Turnu Severin, Romênia), quando morreu aos 23 anos.74 Numísio, que
pediu ao imperador Caracala que evitasse a perda em potencial da isenção de
impostos que usufruía em sua cidade natal enquanto servia o exército na 2ª
Legião Adiutrix, era um homem rico e o imperador queria que ele voltasse à
vida civil.75 O culto requintado em grego a Asclépio, Hígia e Panacea na
fortaleza legionária de Chester (Inglaterra) e, possivelmente, também no hospital
pelo médico Antiochus indicou um nível elevado de educação literária.76
Homens como ele ou Callimorphus, o médico e historiador das guerras partas na
década de 160, tinham uma posição social bem mais elevada do que a de um
soldado comum, compatível com os regimentos dos centuriões, que em geral
retornavam à vida civil como conselheiros municipais ou administradores do
governo.77 Um período de serviço militar, mesmo por poucos anos, tinha suas
atrações. Um médico provinciano poderia ter contato com alguns líderes do
Império Romano, assim como abria novos horizontes de um mundo mais amplo.
Médicos com nomes gregos tinham a oportunidade de viajar mais do que o
habitual para lugares distantes de suas cidades. Antiochus e Hermógenes
serviram o exército em Chester, Marcus Aurelius [Habr]ocomas ainda mais ao
norte em Binchester (Durham), Cladius Hymnus em Vindonissa (Suíça) e Flavio
Onesiforo em Lambaesis. Marcus Rubrius Zosimus, de Óstia, o porto de Roma,
construiu um altar votivo no forte em Obernburg (Alemanha) para Apolo,
Asclépio, Salus e Fortuna em agradecimento por ter curado o oficial comandante
de seu regimento.78 Os textos escritos preservados e as evidências arqueológicas
de cirurgias praticadas no exército indicam que Zosimus e outros cirurgiões não
mereceram as críticas de Galeno por falta de iniciativa. De acordo com Galeno,
eles perderam a oportunidade de dissecar os cadáveres dos alemães abandonados
no campo de batalha nas campanhas de Marco Aurélio na década de 170 e, em
consequência, o conhecimento que tinham do corpo humano não era melhor do
que o de um cozinheiro.79 Mas os instrumentos cirúrgicos encontrados em
Neuss ou em Bingen, uma cidade alemã com conexões militares, são típicos de
um cirurgião do exército, e sugerem uma grande diversidade de cirurgias e
instrumentos especializados para realizá-las.80 A colher inventada por Diocles
de Caristo e o “esticador de luva” foram encomendados por Paulo de Egina para
remover pontas de flechas e projéteis maiores. A técnica de extrair pontas
pequenas de flechas com uma abertura do lado oposto e, em seguida, puxá-las
com delicadeza, foi também descrita por Celso.81 Plutarco, que escreveu em
torno de 90 d.C., relatou um caso semelhante de uma pequena espinha de peixe
extraída da garganta de um paciente dessa maneira, embora ele tenha morrido,
provavelmente de infecção.82 A cirurgia militar continuou a evoluir com o
desenvolvimento de novas armas, como mencionado no capítulo dedicado a
ferimentos causados por projéteis escrito por Paulo de Egina no século VI, com
o relato de diversas cirurgias não registradas em nossas fontes.83 Images

Figura 12.2 Os instrumentos de um litotomista romano, que inclui colheres


especializadas, facas, fórceps e ganchos. Acredita-se que são originários de um
lugar perto de Roma. Museum of Classical Arqueology, Cambridge.

Figura 12.3 Uma cirurgia de cálculo de bexiga citada por Celso, Sobre a
medicina 7, 26, desenhada em um manuscrito medieval de cirurgia. Roma,
Biblioteca Casanatense, Ms. 1382, fol. 25. Celso e Galeno também detalharam
formas de tratar ferimentos de corte de espada e facas, causados no campo de
batalha ou nas lutas de gladiadores a quem Galeno atendia. Era essencial ter uma
reação rápida para recolocar intestinos pendurados por causa de um ferimento;
limpar, dar pontos e fazer um curativo firme na ferida poderia funcionar se os
intestinos não tivessem sofrido nenhum trauma. Plutarco mencionou uma
intervenção semelhante e bem-sucedida feita por Cleanto nas guerras civis no
início da década de 40 a.C.84 Um século depois de Plutarco, Galeno criticou as
incisões na linha mediana nesses casos, em razão da dificuldade de dar pontos e
as complicações decorrentes de uma linha de sutura pouco resistente,
comentários que provocaram um título exagerado e errôneo em um periódico
moderno de cirurgia citando-o como “o Pai das Suturas de Categute”.85
Segundo Galeno, um cirurgião comum seria capaz de fazer uma cirurgia
cuidadosa nos olhos ou em uma fístula, e de tratar de vários tipos de ferimentos e
úlceras, assim como de hérnias e aneurismas.86 Ele era ainda mais hábil, a
exemplo da remoção bem-sucedida do esterno supurado de um escravo que
pertencia a um dramaturgo conhecido.87 Mas Galeno não era o único em suas
aspirações ou habilidades com a faca. A descrição de procedimentos cirúrgicos
no tratado contemporâneo Introdução à medicina, atribuído à sua autoria,
confirma que, pelo menos em teoria, outros médicos fizeram cirurgias
igualmente complexas.88 Descobertas arqueológicas indicaram que muitos
médicos tinham um conjunto básico de instrumentos cirúrgicos com alguns
bisturis, ganchos, sondas, fórceps e alavancas de ossos, mas alguns especialistas
ainda usavam mais instrumentos.89 Em 257-8 um cirurgião em Rimini, uma
metrópole plutocrata, tinha mais de 150 instrumentos cirúrgicos, muitos dos
quais com diferenças sutis de outros do mesmo tipo, o que indica um alto grau
de especialização e técnica.90 Embora muitos autores de livros de cirurgia
recomendassem uma atenção extrema para estancar hemorragias, o cuidado em
evitar as inflamações e de unir bem os tecidos cutâneos de uma ferida, nem
sempre os cirurgiões conseguiam evitar as consequências desagradáveis de
ferimentos que não reagiam aos tratamentos ou a morte. Galeno disse que 16
gladiadores pagos por um sacerdote importante da Ásia morreram sob os
cuidados de seu predecessor, enquanto ele no início de sua carreira como médico
só perdera dois pacientes e, quando retomou suas atividades, ainda menos
pacientes morreram sob seus cuidados.91 Mesmo cirurgias comuns, como a
remoção de cálculo na bexiga, a extração ou o esmagamento de uma úvula
infeccionada e a extração de um dente podre tinham o risco de infecção, ao
passo que a limpeza do ferimento com vinho ou óleo reduziria esse risco de
infecção.92 A cauterização, por sua vez, causava cicatrizes desagradáveis, e um
paciente submetido à remoção de cálculo na bexiga, segundo a recomendação de
Celso e de seus sucessores durante séculos, também poderia sentir dor e ter uma
infecção se a incisão no períneo não cicatrizasse completamente.93 O fato de
alguns médicos se especializarem no tratamento de fístula também era uma
indicação de que essas ulcerações poderiam ser crônicas e demoradas.94 Em
alguns casos era preciso amputar um membro, de preferência, disse Celso, com
um corte circular, que permitiria fechar a ferida.95 O membro amputado poderia
ser substituído por um membro ou um aparelho artificial. O marceneiro local
poderia fazer com facilidade uma muleta ou uma perna de pau, mas outros
substitutos exigiam uma técnica mais sofisticada. Diziam que um soldado tinha
uma mão de ferro que substituía a mão que perdera em uma batalha, enquanto
um esqueleto encontrado em Capua, no sul da Itália, havia sido enterrado em
torno de 300 a.C. com uma perna de bronze com o centro feito de madeira. Presa
com habilidade ao redor do coto da coxa amputada, a perna artificial estendia-se
do joelho ao tornozelo, mas não tinha articulações.96 Outros membros artificiais
foram encontrados em túmulos no norte da Europa no início da Idade Média, o
que indica uma continuação da prática romana.97 Apesar de nenhum tratado
preservado do período romano ter se dedicado inteiramente à cirurgia, e temos
apenas fragmentos de textos de cirurgiões competentes como Heliodoro e
Antillo, as seções disponíveis referentes à cirurgia em pesquisas sobre medicina
de Celso, Galeno, do pseudogalênico Introdução até os enciclopedistas da
Antiguidade tardia, mostram que os progressos dos cirurgiões no período
helenístico de Alexandria foram mantidos até o final da Antiguidade.98 Ionicos
de Sardes, que lecionou em Alexandria por volta de 380, tinha uma grande
reputação como cirurgião, e a chegada de um cirurgião de Alexandria em
Cartago no início do século V para tratar de um problema de fístula de um amigo
de Santo Agostinho, Inocêncio, foi recebida com uma grande expectativa. Um
século mais tarde o bispo e historiador João de Éfeso descreveu o sofrimento de
um dos seus colegas, o presbítero Aarão, que tinha uma ulceração grave, uma
“gangrena” na área genital. Os médicos removeram a carne infeccionada,
colocaram emplastros no local, fizeram curativos e inseriram uma sonda para a
passagem do líquido. Aarão viveu ainda mais 18 anos.99 Os soldados do
Exército romano beneficiaram-se com esses aperfeiçoamentos no campo da
cirurgia em geral, assim como com os hospitais, os médicos e os auxiliares de
enfermagem. Eles usufruíram desses benefícios não só pela importância que
tinham no combate contra o inimigo e na preservação das fronteiras do império,
mas também porque a sobrevivência do imperador dependia da lealdade e do
bem-estar de suas tropas.100 No final do império a organização do exército
mudou e começou a recrutar cada vez mais soldados locais apoiados por uma
enorme força móvel controlada pelo centro do poder, os hospitais militares
perderam poder, assim como os fortes e as fortalezas. Em seus livros didáticos
sobre assuntos militares escritos no século IV, Vegetius ainda mencionou a
existência de fortalezas, de seus hospitais e das obrigações dos superintendentes
médicos, mas dedicou mais espaço aos acampamentos temporários.101 Os
registros epigráficos também terminaram nessa época e, por esse motivo, não
sabemos quais foram as consequências para a medicina da transição de um
sistema militar para outro sistema de organização. No entanto, não resta dúvida
de que o grau de sofisticação detalhista alcançado pelos serviços médicos do
Império Romano nos três primeiros séculos da era cristã só foram alcançados de
novo na Europa nos séculos XVII ou XVIII.

13 A Ascensão do Metodismo Na História Natural, escrito em torno de 70 d.C.,


Plínio, o Velho, descreveu a evolução da medicina e fez uma acusação grave aos
seus compatriotas romanos e aos médicos gregos. Como vimos, segundo ele a
transferência da medicina grega para Roma foi um sinal de decadência moral, o
triunfo do luxo em detrimento das antigas virtudes romanas.1 Agora,
entusiasmados como sempre pelos modismos efêmeros, os cidadãos romanos
depositavam sua fé em médicos que ofereciam uma novidade, em vez de sólidas
perspectivas de cura. As curas com águas frias foram seguidas por dietas
astrológicas apregoadas como o tratamento da moda que, por sua vez, evoluiu
para banhos frios.2 Todos os médicos divulgavam sua teoria preferida a fim de
conquistar pacientes. O mais desacreditado de todos, aos olhos de Plínio, era
Thessalos de Trales, um médico metodista, cujo memorial construído em meio
aos mais importantes túmulos da Via Ápia tinha o epíteto de iatronikes, o
“médico campeão”. Tanto em público quanto ao lado do paciente, o confronto
superava a cooperação, a divergência de um diagnóstico compartilhado era
constante, e a moral pública desapareceu junto com a saúde pessoal.3 A retórica
de Plínio baseava-se na realidade: a expansão da população da capital abriu um
mercado fértil para todas as teorias e práticas médicas. Os seguidores de
Demócrito, de Asclepíades, da antiga doutrina do pneumatismo, das teorias de
Hipócrates e dos empiristas focaram sua atenção em Tiberius Claudio
Menecrates, que apregoava a criação de uma “escola clara e lógica”, e em
Leônidas de Alexandria, cujo apelido, o “epissintético”, indicava que reunira os
melhores “ensinamentos” de médicos de outras escolas.4 Mas, ao concentrar sua
retórica em pessoas e seus fracassos, além da instabilidade constante das teorias
médicas, o relato de Plínio omitiu a ascensão disseminada de grupos, ou seitas,
importantes no campo da medicina, com tradições duradouras, em especial a
escola metodista.5 Sua crítica a Thessalos, aliada ao desprezo por diversas
características do metodismo e de seus seguidores, teve um efeito prolongado.
Ao contrário do hipocratismo, que remontava à época áurea da Grécia, o
metodismo era visto com frequência como uma doutrina que alcançara
subitamente a notoriedade, um novo-rico romano, nascido em uma sociedade
que pouco conhecia ou dava a devida importância a uma medicina de qualidade.
A reavaliação da contribuição romana mais importante à medicina descrita neste
capítulo se baseará nas teorias dos metodistas. As principais teorias resultaram
de uma reação racional a uma situação nova, sobretudo quanto ao tamanho da
cidade de Roma, e a insatisfação com as abordagens hipocráticas e empiristas
em relação ao diagnóstico. Essas ideias sugeriram uma nova epistemologia da
medicina como um processo contínuo de conhecimento fundamentado em uma
correlação evidente entre observações e uma pequena série de possíveis doenças
subjacentes. Apesar de seus opositores terem acusado os metodistas de um apego
doutrinário a um sistema rígido, que negligenciava o paciente como indivíduo,
suas práticas terapêuticas tinham um grau considerável de liberdade de ação ou
expressão. Além disso, diversos tratamentos dos metodistas divergiam pouco dos
tratamentos de seus adversários. O metodismo, assim chamado porque dizia
seguir um método especial e bem-sucedido de cura, foi, sem dúvida, a teoria
médica predominante no mundo romano por pelo menos três séculos, apesar da
referência de certa forma desdenhosa de Galeno chamando-o de “terceira
seita”.6 Embora tenha se originado de médicos de língua grega de Roma e da
Itália, e apesar da observação de Plínio e de Galeno de que seu sucesso devia-se
ao apelo às classes mais baixas e menos sofisticadas desses locais, sua influência
estendeu-se por todo o império. Em Alexandria, na década de 150, Juliano, um
aluno de Apolonides de Chipre, escreveu 48 livros (de palestras?) sobre o tratado
hipocrático Aforismos e Filo, uma grande exposição da doutrina metodista.7
Statilius Attalus, o rival de Galeno como médico imperial na década de 170, era
um metodista que pertencia à mesma família da Ásia Menor de Statilius Crito.8
O professor de Attalus, Soranos, apesar da experiência em Roma, achava isso
aviltante do ponto de vista de um médico proeminente da Ásia Menor, nascido
em Éfeso, uma das cidades mais ricas, vibrantes e cultas da Antiguidade.9 Seu
contemporâneo, Marcus Modius Asiaticus, o “Defensor do Método”e o “médico
metodista”, contemplava do alto de seu busto magnificamente entalhado com a
hauteur de um intelectual importante de Esmirna (Izmir, oeste da Turquia),
Éfeso, a cidade vizinha e rival em assuntos culturais e políticos.10 O metodismo
era bilíngue. Uma das obras monumentais preservadas do metodismo, o enorme
tratado Doenças crônicas e agudas escrito por Célio Aureliano, nascido no norte
da África, foi escrito em latim, enquanto Soranos escreveu o livro Ginecologia
em grego. O livro de Soranos teve uma grande e duradoura influência no norte
da África na Antiguidade tardia, assim como Célio Aureliano, influenciou muito
mais o início da medicina medieval no Ocidente do que o hipocratismo de
Galeno. As origens e as doutrinas gerais do metodismo são temas controvertidos,
em grande parte, porque, com exceção das obras de Sorano e Célio Aureliano,
nenhum grande tratado escrito por um metodista foi preservado. Em
consequência, só temos a história dos antigos metodistas contada por seus
opositores, mesmo por alguém tão condescendente como Celso. As vantagens de
seu sistema de medicina foram minimizadas, e sua teoria inseriu-se em um
contexto intelectual árido. Os estudiosos modernos não mais repetem as críticas
superficiais ao metodismo feitas por Plínio e Galeno, mas, mesmo assim, eles
mantêm as antigas opiniões em relação à inconsistência de suas teorias. Ao
tentarem defender o metodismo, sem perceber, caíram na armadilha de lutar em
um campo de batalha já definido pelos seus opositores.11 No entanto, como este
capítulo irá mostrar, quando os metodistas tinham a oportunidade de se
expressarem, eles descreviam um sistema de tratamentos sem nenhuma
conotação filosófica ingênua, com relatos precisos dos problemas e das
consequências do exercício da medicina em um ambiente urbano.12 Mas para
Galeno o que parecia incerteza e confusão, eles viam como indiferença ao tratar
de um paciente; o que Galeno considerava essencial em um médico, para os
metodistas era uma questão periférica na luta contra a doença. Além disso, os
opositores do metodismo criticavam seus seguidores com os mesmos
argumentos obscuros do desenvolvimento histórico do metodismo. Mesmo as
listas aparentemente neutras, por exemplo, de uma sucessão de líderes da escola
foram examinadas em minúcias por não serem confiáveis, tanto por suas
omissões quanto pela tendência de criar uma linha nítida de autoridade baseada
na sucessão direta de nomes importantes, que remontavam ao fundador. As
diferenças e hesitações eram minimizadas para sugerir uma profunda coerência
que, na realidade, nunca existiu. Este capítulo procura reabilitar o metodismo
com a tentativa de vê-lo na perspectiva de seus seguidores ao longo de dois
séculos ou mais. A antiga doxografia do metodismo conta uma história simples:
como na genealogia bíblica, os nomes tinham uma sucessão aparente. Themison
de Laodiceia começou a seita inspirado no racional Asclepíades; Thessalos de
Trales concluiu seu trabalho; em seguida temos Mnaseas, Dionísio…13 Mas
essa aparente sequência sem interrupção de professores e alunos tinha o objetivo
de conferir mais autoridade às opiniões dos metodistas modernos do que de
relatar a história do metodismo.14 Não só sugere uma doutrina imutável
compartilhada por todos os metodistas, como também evita discutir dificuldades
de cronologia e geografia. Se Asclepíades já tivesse morrido em 91 a.C., como
alguns pensavam, o intervalo de tempo entre ele e Thessalos, cujos triunfos em
Roma aconteceram nas décadas de 50 e 60, não poderia ser preenchido por
Themison, sobretudo se tivesse sido aluno de Asclepíades.15 Mesmo uma
cronologia que situe a principal atividade de Asclepíades em 40 ou alguns anos
depois, a distância entre Themison e Thessalos seria muito grande. Em segundo
lugar, Cornelius Celso, nossa melhor evidência contemporânea para o
desenvolvimento do metodismo no século I, dissociou as ideias de Themison das
teorias dos metodistas de sua época, embora alegassem que ele era o fundador e
a fonte confiável de suas doutrinas.16 Celso nunca citou o nome de Thessalos,
seja por ter escrito antes de Thessalos ter se tornado famoso ou por não querer
travar uma polêmica com ele. Sem dúvida, suas referências ao metodismo
moderno indicaram que a escola já era famosa antes de Thessalos entrar em
cena. Thessalus era notoriamente dogmático e criticava todas as outras doutrinas,
exceto a dele, e é quase certo que introduziu mudanças no ensinamento de
Themison.17 Galeno, nossa única fonte com relação ao início do metodismo,
usou Thessalos como objeto de ataque contra o metodismo e os metodistas (“os
idiotas de Thessalos”) em geral. Apesar de ter admitido que as ideias de
Themison constituíam a base do metodismo de Thessalos, em especial quanto à
doutrina da existência de atributos comuns, ele justificava sua opinião ao atribuir
grandes mudanças de Thessalos. Desse modo, podia afirmar que o metodismo
fora criado de novo por Thessalos e, mais tarde, foi associado aos metodistas,
inclusive seus competidores, com a linguagem bombástica e a fanfarronice de
um homem que considerava um grande charlatão.18 O autor mais humilde de
Introdução sobre a Medicina propôs um esquema semelhante, porém, menos
polêmico: Themison afastou-se de Asclepíades para fundar a seita metodista,
mas foi Thessalos que a aperfeiçoou. No entanto, nem a estratégia retórica de
Galeno ou a aparente precisão do autor anônimo ofereceu uma base sólida para
afirmar (ou negar) o papel de Thessalos como fundador do metodismo, ou de ter
feito uma escolha entre ele e Themison.19 A discussão a respeito dos fundadores
do metodismo inseriu-se no amplo contexto da influência de Asclepíades de
Bitínia, ao defender a teoria da mecânica corpuscular na medicina (ver p. 285).
Seus seguidores difundiram essa teoria no mundo romano, desde o vale do
Ródano no sul da Gália a Tarso no sudeste da Turquia.20 Alguns médicos que
viveram nos séculos III e IV ainda se diziam adeptos de Asclepíades, embora
nessa época a pequena Cibira, a leste de Pamphylia (sul da Turquia), onde o
médico da escola de Asclepíades, Aurelius Varianus Pantauchus, foi
homenageado, dificilmente estaria na vanguarda do progresso.21 Mas nos
últimos anos do período republicano romano e nos primeiros anos do império a
importância intelectual e social dos seguidores de Asclepíades era considerável.
M. Artorius foi médico da corte de Augusto em 23 a.C.; Laecanius Arius de
Tarso, amigo e mentor de Dioscórides, foi um escritor famoso de
farmacologia.22 Julius Bassus, Nicerato, Petrônio Musa, Diodotus e Sextius
Niger, criticados por Dioscórides no prefácio de Materia medica pela relutância
em experimentarem as ervas que descreveram, eram pessoas de renome além de
escritores de farmacologia respeitados.23 Eles compartilhavam a crença de
Asclepíades em um mundo material constituído de partículas em oposição à
teoria dos elementos defendida pelos aristotélicos e estoicos. Nesse aspecto
assemelhavam-se ao médico seguidor de Demócrito, Filo de Hyampolis, um
interlocutor, segundo Plutarco, a quem atribuiu mudanças na teoria relevante dos
“canais“ (“poros”) do corpo.24 Existem também ligações com a filosofia
corpuscular dos epicuristas, exemplificada pela discussão da peste no poema de
Lucrécio, Sobre a Natureza das coisas.25 É preciso examinar Themison e suas
teorias no contexto dos antecedentes filosóficos e médicos. Segundo Celso e
Plínio, no fim de sua vida Themison, um imigrante de Laodiceia, na Síria,
divergiu dos ensinamentos de seu professor Asclepíades, mas nenhum desses
autores esclareceu totalmente a natureza dessa divergência.26 Ela envolveu a
mudança da ênfase clínica e da reorganização teórica.27 Themison declarara que
a medicina de qualidade era apenas uma prática eficaz; portanto, não havia
necessidade de classificações nosológicas complexas (apesar de a nosologia e a
observação minuciosa dos sintomas serem essenciais), e menos ainda de uma
pesquisa sobre as causas ocultas da doença.28 Mas só a observação empírica não
era suficiente. Era preciso saber que todas as doenças tinham características
“comuns”, e assim que essas características fossem definidas a escolha do
tratamento seria fácil. O exame do paciente proporcionaria uma boa indicação do
atributo comum. Não havia necessidade de repetir o exame, nem de fazer uma
demonstração lógica ou uma pesquisa anatômica:29 a doença do paciente era um
indicador objetivo e imediato para sua classificação. Um exame mais
aprofundado e uma pesquisa precisa da causa dessas características comuns,
como os hipocráticos defendiam, era irrelevante; investigar casos passados
comparáveis em todos os detalhes, como os empiristas defendiam, era uma perda
de tempo e, na ausência de um princípio que direcionasse a busca, seria uma
atividade aleatória. Na opinião de Themison havia três categorias principais de
doenças baseadas em “estreitamento“ e “alargamento” ou um estado
intermediário entre esses dois princípios. Asclepíades fizera formulações
semelhantes, mas a mudança teórica realizada por Themison estendeu a visão da
doença de Asclepíades ao conceito de que a doença dependia basicamente do
tamanho e da organização dos corpúsculos e dos poros pelos quais fluía. Às
vezes os corpúsculos eram grandes demais, em outros casos, os canais eram
muito pequenos; em ambos os casos o resultado era igual, estreitamento.30 Ao
mesmo tempo, dividia as doenças de acordo com a classificação de graves e
crônicas, a primeira, resultado do estreitamento, a última, de alargamento.
Apesar de essa distinção ser uma característica implícita de textos muito mais
antigos, Themison, segundo Célio Aurelia-no, foi o primeiro autor que escreveu
um tratado com essa organização explícita.31 Os primeiros metodistas também
dividiam o tratamento de todas as doenças de acordo com três etapas comuns e
universais: um aumento inicial, um período médio no qual a doença era
constante e uma etapa final, em que a doença diminuía.32 Themison foi um dos
primeiros, ou o primeiro, a enfatizar a importância do diatritos, cada um dos três
dias, como uma etapa importante do tratamento.33 As doutrinas de Themison
eram alvo de críticas por diversos motivos. Celso admitia que poderiam ter
alguma utilidade na medicina, mas as ridicularizava porque eliminava um
elemento que, aos seus olhos, era crucial no exercício da medicina, o encontro
do médico com o paciente, que resultava na compreensão do tratamento a ser
prescrito. Mais de uma vez Celso fez uma distinção entre a medicina praticada
em um valetudinarium ou em uma grande cidade, e a atividade de um verdadeiro
médico capaz de diagnosticar a doença e recomendar um tratamento para cada
caso específico. Ele sabia que, diante de muitos pacientes ao mesmo tempo, a
atenção às características comuns seria o máximo que o médico poderia oferecer,
mas, por sua vez, disse que esse não seria o procedimento que escolheria. O
melhor, pensava, era dar atenção a poucos pacientes, apesar do risco potencial de
uma renda menor, do que tratar todos os doentes com uma terapia sem um
objetivo específico.34 No entanto, do ponto de vista do paciente, um médico da
escola metodista que fazia um diagnóstico rápido e prescrevia um tratamento,
que poderia funcionar tão bem como qualquer outro, tinha muitas vantagens
comparado a um competidor caro, que demorava a chegar a uma conclusão. Até
mesmo Celso admitia que, se um médico desconhecesse a doença de um
paciente, o exame das características comuns era um procedimento adequado,
porém, era muito melhor ter um médico como amigo do que um estranho.35 É
difícil determinar a coerência do sistema de medicina dos antigos metodistas.
Existem discussões a respeito do significado de termos como “fluido” (seria uma
referência a um estado de fluidez do corpo inteiro ou de uma parte?; seriam
todas as secreções do corpo ou algumas?), mas diferenças teóricas tinham pouco
efeito na prática.36 Do mesmo modo, Galeno sentia prazer de criticar a
inconsistência dos metodistas quando falavam indiscriminadamente de
“doenças” e “enfermidades”, porque isso demonstrava que não havia lugar no
sistema deles para o que ele julgava ser uma distinção fundamental.37 Por outro
lado, Thessalos também exagerava as diferenças entre ele, Themison e outros
médicos da escola de Asclepíades, por suas reivindicações retóricas de serem os
fundadores de sua seita e de criarem um novo tipo de medicina. Seu
comportamento destacava essa singularidade. As multidões o acompanhavam
em qualquer lugar que fosse; ele se correspondia com o imperador Nero; e
censurava com entusiasmo as tolices praticadas pelos médicos que o
precederam.38 O desprezo de Galeno e a divulgação de suas próprias ideias
obscureceram a maneira como as teorias de Themison evoluíram. Suas origens,
na rica cidade de Trales, na Ásia Menor, famosa por sua indústria de lã, foram
usadas por Galeno para sugerir que nascera em uma família humilde de
operários das fábricas de lã, tradicionalmente um trabalho executado por
mulheres. Thessalos então podia ser acusado de ser efeminado, assim como seus
seguidores.39 Segundo Galeno, a estupidez intelectual era resultado de uma
posição social inferior e do status moral deles. O argumento de que poderiam
ensinar tudo a respeito da medicina em apenas seis meses para quem quisesse
aprender, escravos, ex-escravos ou aqueles que não tinham recursos para arcar
com nada melhor, era mais uma prova da falta de educação e senso de
responsabilidade social.40 A descrição satírica de Galeno do horror de Themison
diante da transformação de sua teoria da existência de atributos comuns por
Thessalos indicou que foi Thessalos quem desenvolveu esse conceito central do
metodismo de diversas maneiras.41 Esses atributos dividiram-se cada vez mais:
os referentes à dietética diferenciavam-se dos da cirurgia; a cirurgia dividia-se
em anormalidades externas do corpo como, por exemplo, um espinho que
precisava ser removido, e internas. As internas subdividiram-se em anomalias de
lugar, por exemplo, uma distensão ou fratura, que seria curada com a reposição
do osso deslocado; de tamanho, como um tumor ou uma excrescência, a ser
removido com a abertura do local ou extração; e de insuficiência, por exemplo,
uma fístula ou uma úlcera, que precisava ser preenchida. A quinta característica
cirúrgica comum, a profilática, referia-se aos venenos.42 Tipos semelhantes de
feridas requeriam tratamentos parecidos; nos ferimentos que provocavam
cicatrizes, por exemplo, era preciso remover o que causava a cicatriz.43 Na
dietética, os atributos comuns eram divididos em ativos e passivos no caso de
induzirem o fluxo ou apenas fluírem.44 Assim que as indicações ou sinais desses
atributos comuns fossem identificados, o tratamento seguia um caminho usual
sem variação. Mas as diferentes partes do corpo exigiam tratamentos
diferenciados: inflamações da mão ou do pé eram doenças secas; as da boca ou
dos olhos, uma mistura. As variações na dosagem não dependiam da
individualidade de cada paciente, e sim da intensidade da doença, que poderia
variar de acordo com a estação do ano, a idade do paciente e o estágio da
doença.45 Com esse procedimento os metodistas deram mais flexibilidade ao
tratamento sem ter de descobrir a doença específica do paciente e o grau de
divergência dessa norma de todas as doenças, uma tarefa para eles impossível.
Ao mesmo tempo, ao afirmarem que sintomas comuns requeriam uma forma
idêntica de tratamento, eles reduziram a série de terapias em potencial a
proporções de fácil controle. Às vezes, o resultado do tratamento era bem
semelhante à terapia recomendada por um médico hipocrático como Rufus para
a mesma doença, embora o curso do raciocínio pelo qual o médico tomou sua
decisão fosse muito diferente. O médico metodista enfatizava as características
comuns dos sintomas; o médico hipocrático baseava sua decisão na percepção
do que precisava ser restaurado no organismo do paciente.46 Uma segunda
inovação atribuída a Thessalos foi a noção de “metasynkrisis”, a modificação
dos poros do corpo, tanto durante a doença quanto no processo de recuperação
por meio da aplicação de remédios. Esse processo exigia uma atenção cuidadosa
ao longo do tratamento e, por sua vez, permitia modificar o tratamento de acordo
com os sinais visíveis da doença.47 O plano fixo de tratamento proposto pelos
empiristas e hipocráticos, que, uma vez decidido, seria seguido durante a doença
inteira, era evitado pelos metodistas, que preferiam modificar o tratamento de
acordo com a evolução da doença e a opinião pessoal deles. Métodos
aparentemente opostos poderiam ser usados um após o outro se as características
comuns indicassem que seria apropriado.48 Galeno divertia-se com essa teoria,
sobretudo, com a insistência de Thessalos de manter o paciente em jejum
durante o primeiro diatritos, ou seja, até o terceiro dia. A ideia de que o paciente
deveria ficar em jejum e depois ser alimentado lhe parecia estúpida, uma
perversão do método, e em seus contatos com os metodistas ele sentia prazer em
apontar a tolice e os perigos de seguir essa norma.49 Porém, a noção de diatritos
como uma diretriz geral não é, de modo algum, uma tolice. Ela divide o controle
de uma doença em períodos de tempo longos o suficiente para mostrar alguma
mudança, ou a ausência dela, mas não extensos demais para que possam surgir
problemas sérios. A ideia de diatritos constitui um equilíbrio entre o tratamento
constante e a doutrina hipocrática dos dias críticos, que resultava em dias ou
mesmo semanas entre mudanças importantes, que exigiam uma atenção
cuidadosa por parte do médico. Na teoria hipocrática a observação das crises
tinha o objetivo de confirmar a precisão do diagnóstico feito e do padrão do
tratamento prescrito; o diatritos metodista era um processo constante de
observação e decisão. Os dois procedimentos podem ser acusados de
inflexibilidade, mas o diatritos metodista não expunha mais os pacientes a
perigos graves, do que a crença de seus opositores na rigidez do diagnóstico da
doença e da escolha de um tratamento que se mantinha inalterado ao longo da
doença. As objeções de Galeno aos metodistas foram também de caráter
epistemológico.50 Segundo Galeno, a ideia de características comuns
intrinsecamente evidentes era simplista e inconsistente, como demonstravam as
discussões entre os metodistas se a existência de atributos comuns era
responsável por determinada doença, ou se uma doença específica que se
manifestava em uma parte do corpo afetava o corpo inteiro.51 Mas, embora
esses argumentos pudessem ser absurdos para seus opositores, metodistas como
Soranos e Célio os julgavam periféricos ou irrelevantes para o tratamento. Para
eles não havia muita diferença se a doença afetava apenas uma parte do corpo ou
se os sinais da doença manifestavam-se em áreas mais extensas; muitos
remédios prescritos pelos metodistas, apesar de serem usados em geral
diretamente na parte afetada, não tinham o efeito alterado quando aplicados em
outros lugares ou só no ponto da aplicação.52 Os metodistas comportavam-se de
uma maneira semelhante em relação às definições. Para Galeno a incapacidade
dos metodistas de chegar a uma conclusão da definição da doença era um indício
de fracasso, porém, o leitor das descrições minuciosas das doenças de Célio
Aureliano, baseadas com frequência explicitamente em Soranos, perceberia a
semelhança entre essas descrições e as de outros autores de diversas escolas.53
A essência dessa divergência residia na atitude subjacente de aquisição de
conhecimento. Para Galeno e outros autores da tradição hipocrática, a medicina
era uma ciência, um conjunto de informações e princípios sólidos; para os
metodistas, embora usassem a palavra “ciência”, a medicina era mais um
processo de compreensão, aberto a modificações de acordo com os fenômenos
sensoriais.54 A ciência deles era temporária, embora na prática seguissem
algumas doutrinas e procedimentos, e admitissem o princípio de causa e efeito.
Nesse aspecto, comparados aos empiristas, poderiam ser considerados
dogmáticos, porque não recorriam ao raciocínio. No entanto, ao mesmo tempo
recusavam-se a atribuir uma certeza total em relação ao raciocínio, priorizando
as indicações de fenômenos visíveis, que excluíam a necessidade de uma análise
lógica.55 Essa temporalidade os tornava, como o filósofo Sextus Empiricus
observou, companheiros adequados para os filósofos céticos, que criticavam
com veemência as pessoas que procuravam uma verdade supostamente
irrefutável e evidente, ou viam inconsistências entre o que os metodistas diziam
acreditar e sua prática às vezes mais rígida.56 Nas polêmicas frequentes com os
metodistas Galeno criticou a insistência deles em aplicar doutrinas inapropriadas
em casos individuais e ridicularizou os esforços de tratar as diferentes doenças
da mesma forma, como alguém que quisesse usar o mesmo sapato nos dois pés.
Os argumentos filosóficos dos metodistas eram ingênuos e tolos e, em especial
nos dois primeiros volumes de Método de curar, apontou sem dificuldade o que
lhe pareciam erros grosseiros de lógica. Mas, por sua vez, os metodistas
poderiam dizer que do ponto de vista deles as recomendações de Galeno eram
sofisticadas demais, demasiado longas e irrelevantes para o que era mais
importante, o tratamento eficaz do paciente. É evidente que Galeno distorceu as
ideias do metodismo com o objetivo de criar polêmicas, como comprovam os
textos metodistas preservados, sobretudo os de Soranos de Éfeso. Embora
Galeno tenha admitido que o metodismo sofreu alterações ao longo dos anos,
especialmente com Menemachus, Olympicus e Soranos no final do século I,
instigado pela paixão da controvérsia acusou o metodismo de Thessalos de ser
normativo.57 Assim, pôde censurar seus opositores pelo apego a doutrinas
erradas e obsoletas quando concordavam com Thessalos, e de inconsistência
quando discordavam. Soranos, a julgar pelos seus textos preservados, foi o único
metodista que Galeno respeitava.58 Existem poucos detalhes preservados a
respeito da vida e da carreira de Soranos.59 O verbete no léxico bizantino Suda
citou os nomes de seus pais e o lugar de nascimento, Éfeso, e as províncias onde
viveu em Roma nos governos de Trajano e Adriano no primeiro quartel do
século II. Ele conhecia Roma, como demonstrou a referência à prática de
flebotomia em casos de pleurisia e por seu comentário depreciativo sobre os
motivos da predominância de crianças com pernas tortas em Roma: elas eram
incentivadas a andar cedo demais nas ruas pavimentadas e duras; a água era
extremamente fria; e as mães cuidavam muito menos dos filhos do que os
gregos.60 Outras observações sugeriram que conhecia Cária, Creta e Egito:
talvez uma estadia em Alexandria para estudar medicina, porque outros jovens
da Ásia Menor, inclusive Galeno, tinham feito essa viagem, o que poderia ter
contribuído para seu conhecimento de anatomia.61 O relato posterior de Marcelo
de Bordeaux mencionou que viajara para Aquitânia, no sudoeste da França, a
fim de cuidar de 200 pessoas que sofriam de uma doença de pele contagiosa.
Mas a fonte de Marcelo é desconhecida e possivelmente é tão pouco confiável
como as histórias posteriores que conectavam Soranos à rainha Cleópatra como
especialista em cosmética.62 Seus textos abordavam desde temas de filosofia,
gramática, etimologia a tratados de medicina especializados em curativos,
esperma, enemas e atributos comuns. Além de tratados gerais de cirurgia (dos
quais se preservou uma seção sobre fraturas) e de higiene, ele também escreveu
uma série de biografias de médicos antigos e de suas obras, a exemplo de Vida
de Hipócrates segundo Soranos, que ainda existe.63 Seus interesses históricos
revelaram-se nos registros minuciosos das opiniões de antigos escritores
preservadas por Célio Aureliano nos tratados Doenças Agudas e Crônicas.64
Célio inspirou-se em um grande trabalho de mesmo nome de Soranos, porque o
citou com frequência e percebe-se em suas citações que consultou o original
grego. Mas a questão da fidelidade ao texto de Soranos é um tema mais
controvertido. Muitos estudiosos atuais atribuem certo grau de independência no
pensamento de Célio, mas reconhecem que as linhas gerais e a organização de
seu trabalho refletem a obra de Soranos. Ele fez uma redação e não uma
tradução de Soranos, embora no primeiro volume de Doenças agudas referente a
uma só doença, frenite, tenha se mantido mais fiel ao original grego do que em
outros trechos.65 Mas Soranos se tornou mais famoso por seus tratados
Ginecologia e Doença das mulheres.66 Não só porque, com exceção de
pequenos textos sobre ginecologia no Corpus Hippocraticum e nos capítulos
enigmáticos de Metrodora, foi o único tratado referente a esse tema que temos
do período clássico.67 Galeno abordou tópicos específicos de ginecologia, em
especial em Sobre a semente, Sobre a formação do feto e em Sobre a anatomia
do útero, mas só de um ponto de vista restrito e muito teórico. Autores
posteriores, sobretudo o enciclopedista Aécio, Célio Aureliano, nos fragmentos
de Ginecologia e o influente Mustio/Moschion, preservaram mais alguns
detalhes da antiga prática, porém, basearam seus textos nas informações de
Soranos.68 Sem Soranos desconheceríamos quase tudo referente a partos e à
obstetrícia, e escreveríamos uma narrativa fundamentada em descobertas
dispersas de instrumentos, como o espéculo vaginal, e comentários sobre aborto,
a criação de filhos e os perigos de deixar um médico perto das mulheres da
família.69 Soranos iniciou seu livro com uma descrição resumida da parteira
ideal – culta, perspicaz, diligente e forte (porque tinha de carregar o “peso
duplo” da mãe e da criança). Além da boa memória precisava ter a mente e os
membros sólidos; deveria ter uma boa aparência e ser limpa e, alguns
recomendavam, dedos finos e longos e unhas curtas para não machucar o útero
ou qualquer órgão em um exame interno. Como o ideal, disse Soranos, nem
sempre era alcançado, ele fez uma distinção entre uma parteira competente, com
um bom conhecimento de todos os aspectos práticos da obstetrícia, e a ainda
mais competente, que conhecia a teoria, assim como os aspectos mais amplos da
medicina, da cirurgia e da farmacologia. Recusou-se a definir a idade ideal da
parteira ou se deveria ou não ter filhos. A força e a simpatia não eram
suficientes, e seria bem melhor procurar qualidades morais, honestidade,
sobriedade, tato e aversão à ganância e à superstição, além do trabalho de
tecelagem de lã, porque deixava as mãos ásperas.70 As recomendações de
Soranos suscitaram imediatamente duas perguntas importantes: até que ponto
essas recomendações correspondiam à realidade das parteiras na Antiguidade? E
qual era a relação da parteira com Soranos e outros médicos semelhantes? As
inscrições registraram os nomes de muitas mulheres chamadas de obstetrix,
medica ou palavras gregas equivalentes, mas, no mundo grego do Corpus
Hippocraticum (ver p. 166), decidir o significado preciso de palavras que se
sobrepunham era impossível.71 Nem todas as obstetrix limitavam suas
atividades à gestação e ao parto; nem as médicas tratavam só de mulheres e de
crianças pequenas. A posição social e a educação de Antiochis de Tlos, o
correspondente de Heráclides de Tarento, homenageado pelos serviços prestados
à medicina em sua cidade natal de Tlos, na Lícia, era muito superior aos de
Hígia, uma escrava liberta obstetrix da família de Marcella, um parente do
imperador Augusto, ou de Restituta, que construiu um monumento em Roma em
homenagem ao marido e professor, Ti. Claudius Alcimus.72 A lápide de Valeria
Berecunda dizia que ela fora a “primeira parteira médica dos arredores onde
morava” em Roma, uma propaganda sua em vez de uma posição oficial; outras
parteiras mais humildes não foram dignas de serem lembradas com um
memorial.73 As mulheres que atenderam a esposa de Flavio Beócio tinham
conhecimento e experiência suficientes para conquistar o respeito de Galeno,
quando, por fim, o chamaram para tratá-la, do que a princípio parecia um aborto
espontâneo incompleto. Mas é menos provável que tenha sido tão respeitoso
com o misto de criada e parteira que fez o parto do grande filósofo e sofista
Ablabius.74 O abismo entre os criados da casa de um senador e o cidadão
comum, sua esposa ou filha, era enorme. No entanto, a criada com conhecimento
de obstetrícia, que interrompeu suas atividades para assistir a um parto, era usual
na maioria das comunidades do mundo antigo.75 Às vezes a parteira adquiria
conhecimento assistindo aos partos com outras mulheres ou ao fazer parte de
uma “rede de conhecimentos femininos”. Mas desconhecemos o conteúdo do
seu conhecimento, bem como a tradição da ginecologia culta. Portanto, seria
ingênuo supor que as fontes masculinas preservadas sejam mais precisas e
rigorosas do que podemos entrever. A enorme quantidade de respostas a dúvidas
a respeito da concepção e da possível duração da gravidez, temas importantes
que ultrapassavam os limites dos círculos médicos restritos, não nos estimula a
acreditar na exatidão das opiniões femininas ou masculinas.76 Porém, isso não
significa que escritores como Soranos e Galeno não vissem a posição de
subordinação da parteira em relação ao médico. Segundo Soranos, a parteira
podia fazer um parto, mas sob a supervisão de um médico, a quem recorreria se
houvesse problemas.77 Nas descrições de Galeno de casos ginecológicos, é
claro, ele assumia sempre a responsabilidade. As fontes de Soranos, desde
Euriphon de Cnido no século V, Diocles e Herófilo, a outros metodistas como
Dionísio e Mnaseas, são todas masculinas, e as recomendações da parteira ideal
indicam que ela deveria ter todos os predicados possíveis de um médico. Além
disso, apesar de haver doenças específicas femininas diferentes das que afetavam
os homens, o tratamento não ficaria a cargo das mulheres.78 Os tratados de
higiene e as coletâneas de receitas médicas escritos por homens incluíam seções
sobre amenorreia, calvície, problemas uterinos e do pênis. O conhecimento
teórico do corpo feminino era universalmente descrito em tratados de autores
masculinos e, é muito provável, que alguns médicos tenham adquirido esse
conhecimento também na prática.79 Mas poucos médicos dedicaram grande
parte de seu tempo à obstetrícia. C. Julius Epianax e Heliconias, da ilha grega de
Paros, que se intitulavam maioi, ao fazerem uma homenagem à deusa do
nascimento, eram provavelmente parentes responsáveis pela criação de um
bebê.80 Mas limitar as atividades das mulheres à ginecologia e a doenças
infantis (e discuti-las no contexto da ginecologia romana) é um equívoco.81
Uma mulher como Restituta ou Aurelia Alexandria Zosime de Adada na Pisídia,
que adquiriu experiência na convivência com o marido ou o pai, teve um
treinamento semelhante ao da maioria dos homens. Glycon, o médico tagarela de
Pérgamo do século I ou II, elogiou sua esposa falecida, Panteia, porque
aumentara a glória compartilhada da medicina e, embora fosse uma mulher, não
era inferior a ele na arte da medicina. Antiochis de Tlos, o correspondente de
Heráclides de Tarento, foi homenageada por seus conterrâneos com uma estátua
por suas realizações.82 A esposa de C. Julius Vettianus, em cuja lápide lia-se a
inscrição “mulher médica”, chamava-se sugestivamente Empeiria,
“Experiência”.83 Metilia Donata, uma médica de Lyon que ajudou a construir
um prédio ou um monumento na cidade com seu dinheiro nos séculos I ou II,
não era uma senhora que se pudesse menosprezar.84 Existem também indícios
nas descobertas arqueológicas de mulheres que praticaram cirurgia.85 A
subordinação das mulheres aos seus colegas masculinos e a aparente restrição de
suas atividades à obstetrícia subestima o âmbito da atuação delas e a qualidade
do trabalho, em um eco da afirmação habitual dos homens de que o corpo
feminino era uma versão inferior do corpo masculino.86 Os quatro volumes do
tratado de Soranos dividem-se em dois: os primeiros abordam a fisiologia
natural das mulheres e o processo normal da concepção, gravidez e nascimento;
o terceiro volume descreve as anormalidades fisiológicas e patológicas, a serem
tratadas com dieta alimentar e, o último volume é dedicado à cirurgia e aos
remédios. Soranos conhecia bem a anatomia feminina, embora houvesse negado
a existência do hímen e tivesse traçado o caminho de um “canal seminal” ao
redor dos ovários que se estendia até o colo da bexiga.87 Conhecia também
diversos problemas associados à gravidez e aos primeiros meses de vida da
criança, desde pica, tornozelos inchados, abortos espontâneos, início da
intumescência dos seios, dentição e os riscos de contratar uma ama de leite que
gostasse de beber.88 Sem dúvida, conhecia os assuntos que escrevia, porque seus
erros, do ponto de vista atual, são pouquíssimos. Suas recomendações
conflitavam às vezes com o metodismo rígido.89 Embora concordasse com a
opinião dos metodistas de que a inflamação deveria ser tratada da mesma
maneira não importa a causa ou o órgão atingido, Soranos modificou essa teoria
ao dizer que o tipo e o local da inflamação podiam implicar escolhas específicas
de terapias para atingir melhores resultados.90 Do mesmo modo, o uso da
flebotomia para aliviar a compressão e soltar o sangue preso por um problema de
menstruação nem sempre era prudente, porque às vezes era mais prejudicial do
que benéfico e debilitava o paciente.91 A menstruação, ao contrário do que
Herófilo pensava, era sempre prejudicial à saúde, mesmo se os problemas
fossem mais visíveis em mulheres sensíveis à dor. As mulheres que não
menstruavam mais eram saudáveis, e as meninas em fase pré-menstrual não
eram em geral menos saudáveis do que as irmãs mais velhas, o que sugere que a
menstruação contribuía mais para a procriação do que para a saúde.92 Essa
opinião concordava com o pressuposto geral do tratado (e com as sociedades
gregas e romanas) que a função principal de uma mulher era ter filhos e que uma
das obrigações do médico de uma mulher era capacitá-la a gerar crianças de uma
forma tão eficiente quanto possível. Nesse sentido, segundo Soranos, uma
menina deveria ficar virgem até o início da menstruação, o que ocorreria em
torno dos 14 anos, porque isso era uma indicação natural de que seu corpo estava
pronto para procriar. O desvirginamento na puberdade poderia causar
dificuldades, assim como a demora excessiva em iniciar a atividade sexual,
porque o colo do útero ficava flácido em razão da falta de relações sexuais,
“como acontecia com os órgãos genitais masculinos”.93 Mas Soranos sabia que
o processo natural da concepção, nascimento e início do crescimento da criança
(se fosse a mãe ou, como recomendava aos seus leitores ricos, a ama de leite que
amamentasse o bebê) nem sempre transcorria sem problemas. A gravidez
poderia ser difícil e, é possível, que as consequências do parto fossem fatais para
a mãe e a criança. O trabalho de parto difícil e o aborto poderiam resultar em
hemorragia ou paralisia, enquanto o fluxo contínuo de sêmen feminino ou
sangue no útero era um risco comum, aliado ao prolapso uterino.94 A mente
poderia também ser afetada. A “satiríase”, o desejo constante de relações
sexuais, resultava em “alienação mental e ausência de vergonha” por causa da
relação do sistema nervoso simpático do útero com as meninges do cérebro.95 A
“asfixia histérica”, semelhante à epilepsia e à apoplexia, e a “afonia causada por
vermes” eram definidas como uma obstrução da respiração que resultava na
incapacidade de falar, em colapso e contração. Em geral associavam-se aos
abortos, longos períodos de viuvez e ao final da menstruação. Os conselhos de
Soranos nesses casos incluíam cataplasmas suaves, banhos de assento, leitura em
voz alta, seguidos de um regime mais eficaz. Porém, rejeitava muitos conselhos
mencionados em nossas fontes – relações sexuais, água extremamente gelada,
entrada forçada de ar na vagina com um fole de ferreiro, substâncias que
provocavam espirros violentos, tinir de pratos (“que possivelmente causariam
dor de cabeça em uma pessoa saudável”) ou qualquer substância nociva
queimada embaixo ou dentro do útero para soltar o ar que causava a asfixia. As
palavras usadas nesses procedimentos eram sábias: “o útero não é igual ao de um
animal selvagem que sai de sua toca atraído por odores adocicados ou se afasta
em razão do mau cheiro”.96 O médico também tinha de enfrentar o problema
potencial de um parto difícil, por causa de uma posição não habitual da criança
no útero, ou em razão do parto de uma criança morta. Às vezes bastava
manusear o local para verificar se a criança estava em uma boa posição na
vagina; em outras circunstâncias era preciso usar uns ganchos untados de óleo
para puxar a criança.97 Mas em algumas ocasiões o médico tinha de tomar
medidas drásticas que poderiam causar a morte da criança. As instruções de
Soranos para a aplicação de embriotomia ou a melhor maneira de esmagar o
crânio de feto hidrocefálico para extraí-lo morto ou à morte eram acompanhadas
de advertências, que qualquer tração brusca ou sem o devido cuidado no feto
vivo resultaria em ferimentos horríveis e, era bem provável, que causasse a
morte da criança.98 Um parto difícil inevitavelmente causaria uma lesão no
útero e o médico teria de cuidar desse problema o mais rápido possível para
salvar a vida da mãe.

Figura 13.1 Um espéculo vaginal com três válvulas do período romano


encontrado no atual Líbano. Londres, Science Museum. Fotografia © Science
Museum/Science & Society Picture Library. A impressão que o autor de
Ginecologia transmite é de um metodista culto, cuidadoso e minucioso. Outros
textos seus, sobretudo em Célio Aureliano, confirmam essa impressão. Soranos
aconselhou a não fazer cirurgias perigosas, quando houvesse outros recursos
disponíveis, a exemplo da laringotomia para amigdalite ou a intervenção
purgativa de Praxágoras para desobstruir o intestino, assim como o que chamava
de superstição, como o uso da pele de um animal selvagem para curar a raiva,
sangue humano para a epilepsia, ou puxar com a mão esquerda a cabeça de um
bebê em posição pélvica no útero, “porque era a maneira de levantar
serpentes”.99 Mas isso não o impedia de prescrever um amuleto se o paciente
pensasse que poderia ajudá-lo, ou de fazer recomendações que julgaríamos
supersticiosas como proibir a cor vermelha no quarto de um doente com
hemorragia, amarelo em um paciente com icterícia, apesar de suas explicações
em termos da ciência contemporânea (emanações nocivas) ou explicações
psicológicas (um lembrete da doença que obrigou o paciente a ficar no
quarto).100 Soranos continuou a tradição metodista da atenção minuciosa às
doenças crônicas, com conselhos meticulosos para o tratamento da paralisia com
fisioterapia, jatos fortes de água no corpo com finalidades terapêuticas e natação,
mesmo se fosse preciso ter a bexiga inchada para flutuar.101 Seu tratamento
para doenças mentais associava um pragmatismo semelhante à preocupação com
o ser humano. Seria melhor concordar a princípio com os delírios de um louco e,
depois aos poucos, fazê-lo aceitar a situação real, em vez de tentar convencê-lo
imediatamente de sua insensatez e de negar suas percepções.102 Assim como
Themison e Asclepíades, ele se preocupava com todos os aspectos da
convalescença, com a recomendação para exercitar a mente, a leitura, jogos e
peças teatrais – as comédias eram saudáveis para os deprimidos, a tragédia, para
os tolos. Os tratamentos que poderiam prejudicar o paciente deveriam ser
evitados a qualquer custo: condenar um paciente que sofria de “elefantíase” ao
exílio ou ao desterro era contrário à ética da medicina e aos princípios
humanos.103 O tratamento recomendado por Soranos e a aplicação de suas
teorias metodistas aos pacientes impressionaram muitos escritores de livros de
medicina ao longo dos séculos. Seu conservadorismo cauteloso e humano, um
conservadorismo que não excluía medidas drásticas quando necessário,
contradizia a imagem apresentada pelos opositores do metodismo. Segundo
Galeno e outros, a precipitação, a ambiguidade e a falta de lógica eram as
características principais de sua doutrina e prática. Por um lado, o metodismo era
tão simples que até mesmo um idiota do vilarejo poderia dominá-lo, por outro,
tão complexo que não havia consenso entre os metodistas, o metodismo era uma
doutrina vista como uma aberração e uma fraude por seus adversários. Mesmo
os opositores menos hostis à sua teoria, como Celso, lamentavam a falta de
sutileza do diagnóstico de seus praticantes e um raciocínio preciso capaz de
perceber a individualidade de cada paciente, que precisava de atenção e
tratamento diferenciados. No entanto, para os metodistas a capacidade deles de
ver mais além do individual e de perceber os atributos comuns era motivo de
orgulho. Isso permitia que trabalhassem com facilidade em grandes cidades
como Roma e Éfeso, e de oferecer ajuda rapidamente sem o longo processo
complicado e contraproducente do diagnóstico ou da pesquisa de histórias de
casos passados. Os tratamentos prescritos por eles, como já mencionado, eram
bem flexíveis e, em termos práticos, não estavam tão distantes de seus opositores
no que se referia aos diagnósticos e recomendações.104 Galeno não teve
escrúpulos em usar receitas de remédios elaboradas por metodistas como
Soranos e Mnaseas, ou dos seguidores de Asclepíades criticados por
Dioscórides, apesar de ter sido treinado nessa tradição. Em seus textos Soranos
mostrou o que os metodistas eram capazes de fazer, embora alguns tivessem
todas as qualidades de um médico. Muitos romanos importantes, inclusive
imperadores e suas famílias, contratavam médicos metodistas para tratá-los, e
seria precipitado supor que a escolha deles era tola ou era apenas um meio para
garantir tratamentos menos dolorosos ou mais rápidos, que poderiam ser
eficazes. Nos dois primeiros séculos do Império Romano o exercício da
medicina converteu-se em um próspero mercado de trabalho, com a
demonstração de conhecimento e competência, experiência prática e eloquência
de médicos de diversas doutrinas – pneumatistas, dogmáticos, metodistas e
hipocráticos. A riqueza ou o ócio de quem fazia a escolha permitia, como no
caso do escritor e político Sêneca, conhecer a teoria médica de qualquer médico.
Não há motivo para concordar com a queixa reiterada de Galeno que esses
pacientes, ao escolherem os metodistas e outros médicos rústicos, charlatães e
vigaristas como eles, revelaram a degeneração de sua época e o declínio da
verdadeira medicina.105 Os preconceitos de Galeno repercutiram durante
séculos, mas, hoje, não fazem mais sentido.

14 Alternativas Humorais A hostilidade de seus inimigos dificultou a


reconstrução das ideias e opiniões dos metodistas, mas não há dúvida a respeito
da extensão de seu sucesso e importância no Império Romano nos séculos I e II.
As realizações de seus rivais, que privilegiavam as teorias dos humores, são
ainda mais difíceis de definir pelo motivo oposto. A personalidade sufocante de
Galeno reuniu todas as pessoas que concordavam com suas opiniões
hipocráticas, o que sugere um consenso na resistência às novidades dos
metodistas e empiristas. As diferenças eram subestimadas e os precursores de
Galeno raramente tinham voz própria, até mesmo para serem contestados. A
retórica egocêntrica de Galeno encobre os débitos em relação aos seus
professores e aos desenvolvimentos no contexto do hipocratismo. Portanto, é
difícil obter uma visão abrangente do que os escritores de medicina posteriores
chamavam de ponto de vista dogmático. Até há pouco tempo, os historiadores só
tinham acesso a fontes fragmentadas e escassas em grego e alguns tratados, mas
a redescoberta de mais textos de Rufus de Éfeso traduzidos para o árabe, assim
como textos de Galeno, permitiu compreender melhor o papel de Galeno na
tradição humoral. Ele não mais parece tão isolado como alegava ser e diversas
de suas metodologias médicas notáveis foram herdadas de professores e de
predecessores imediatos. Ao mesmo tempo, surge uma visão mais clara da
aplicação das teorias dos humores por médicos, que não acreditavam nas teorias
corpusculares. O pneumatismo foi uma das doutrinas rivais do metodismo mais
influente nos séculos I e II. O nome pneumatismo originou-se da grande ênfase
que os pneumatistas davam ao pneuma, ou espírito vital, como um elemento de
controle da saúde e da doença.1 Um trecho preservado só em traduções
posteriores de um texto de Galeno revelou que o fundador do pneumatismo,
Ateneu de Atália (sudoeste da Turquia), foi aluno de Posidônio.2 Caso o
Posidônio citado tenha sido o famoso filósofo estoico e cientista Posidônio de
Apamea, e se Galeno quis dizer que Ateneu sentou aos seus pés (nenhuma das
hipóteses é comprovada), a doutrina foi fundada no último século a.C., talvez em
60 a.C.3 Mas nem Plínio ou Celso mencionou essa data, e as datas mais precisas
referem-se aos seus seguidores mais importantes, que viveram antes de meados
do século I d.C. Com base nesse argumento do silêncio, Ateneu teria vivido nos
primeiros anos do Império Romano, e sua adesão às doutrinas de Posidônio
resultou de suas leituras, e não da presença em conferências filosóficas.4 As
opiniões de Ateneu eram um misto de estoicismo e de dogmatismo helênico, e
de medicina hipocrática. Ele rejeitava as opiniões atomistas de Asclepíades em
relação ao cosmos da matéria, que agia pelo calor e frio (as qualidades mais
ativas), unido ao pneuma, um espírito etéreo.5 Ateneu analisou com cuidado os
paralelos entre o microcosmo do corpo e o macrocosmo. Assim como um ser
vivo não existe sem o pneuma, o universo era uma entidade viva impregnada de
pneuma. Mudanças de pneuma no corpo indicavam alterações na mistura
corporal e em suas propriedades, que ao se desequilibrarem causavam doenças.
O coração era o cerne do pneuma dominante e do calor inato do corpo, e os
pulmões forneciam sem cessar um novo suprimento de pneuma frio introduzido
externamente.6 Ateneu deu uma atenção especial ao meio ambiente, inclusive às
estações do ano, à urbanização das cidades e à arquitetura das casas, como uma
contribuição à manutenção do pneuma apropriado e ao equilíbrio saudável do
corpo.7 Ateneu escreveu a respeito de uma grande variedade de temas, desde o
suprimento de água de boa qualidade, embriologia, dietética e o melhor método
de medir os batimentos ritmados do pulso e de interpretar esses batimentos.8
Boethemata, Conselhos úteis, com pelo menos 30 volumes, sua obra mais
importante, foi elogiada por Galeno como o melhor tratado geral de medicina de
um autor moderno.9 Tanto nesse tratado quanto em textos clínicos mais
especializados, Ateneu com frequência começava com a definição simples e
clara da doença, antes de acrescentar detalhes e características para expor uma
ideia mais diversificada.10 Embora, na opinião de Galeno, Ateneu nem sempre
estivesse certo, pelo menos tinha o grande mérito de relatar as ideias de seus
predecessores com precisão. Esse respeito pelos seus antecessores era condizente
com um médico que recomendava o estudo universal da medicina e sua história,
não apenas por razões práticas, mas também por ser uma atividade intelectual,
igual à filosofia, que proporcionava o prazer de se comunicar com as mentes
notáveis do passado.11 Os dois principais escritores de livros de medicina,
Claudius Agathinus e Arquígenes de Apamea, eram adeptos de suas teorias.
Agathinus, originário de Esparta, usou fontes empiristas e metodistas, além do
que aprendera com Ateneu. Os fragmentos de seus textos preservados
abordaram, entre outros temas, a pulsação e as febres, um tópico que escolheu
para aprovação de Galeno.12 Em razão da paixão dos romanos por banhos, não
surpreende que Agathinus tenha dedicado bastante espaço aos aspectos
saudáveis do banho.13 Seus comentários sobre esse tema têm às vezes uma
conotação curiosamente moderna (ou pelo menos vitoriana).14 Em sua opinião,
apesar de o banho aliviar o cansaço e ajudar a digestão em curto prazo, os
banhos quentes eram recomendados para pessoas debilitadas, as que tinham
medo de água fria ou que não gostavam de uma massagem revigorante.
Enquanto os banhos frios eram extremamente benéficos, até para os que não se
preocupavam muito com a saúde, porque tonificavam o corpo, aguçavam os
sentidos e conservavam a pele mesmo em uma idade mais avançada, os banhos
quentes provocavam flacidez, causavam palidez e uma digestão difícil.
Agathinus comparava o vigor dos bárbaros, que mergulhavam com frequência os
filhos em água fria, com o hábito moderno de dar banho em crianças pequenas
com água quente, principalmente por amas de leite, que queriam que as crianças
caíssem em uma letargia profunda para não incomodar à noite. Agathinus
preferia dar uma massagem revigorante no filho antes de colocá-lo na cama,
porque acreditava que banhos poderiam provocar crises de epilepsia ou doenças
piores. Os banhos frios, ao contrário dos quentes, poderiam ser tomados em
qualquer época do ano, desde que a água não estivesse gelada demais,
enlameada ou suja. A água do mar era excelente, porque o sal dava uma
vantagem adicional. A combinação de banhos frios com o exercício era ótima
para a saúde, sobretudo pouco antes do jantar. As pessoas deveriam tirar a roupa
ao ar livre, em um lugar protegido do vento, mas se tivessem medo do ar frio
seria aconselhável fazer exercícios antes de se despir, dar um passeio a pé rápido
ou uma corrida enquanto estivessem semidespidas. Uma massagem forte dada
por um escravo com luvas de tecido (mas com cuidado para evitar queimaduras
por causa das costuras das luvas) deveria anteceder o primeiro banho de imersão.
Esse banho não poderia ser demorado e, em seguida, era recomendável fazer
uma caminhada curta. O segundo banho podia ser mais longo, talvez com
movimentos de natação, mas o banho deveria ser interrompido antes que ficasse
frio demais. No terceiro banho era aconselhável pôr a cabeça e a parte de cima
do tórax embaixo de uma fonte de água fria ou, na hipótese de não haver uma
fonte disponível, a pessoa deveria encher as mãos várias vezes com água e jogar
na cabeça. Com uma massagem revigorante e a retirada em seguida do excesso
de óleo da pele com um estrigil afiado, a sensação de bem-estar era enorme, em
especial em um dia quente e úmido. Agathinus gostava de tomar banho todas as
noites, porque lhe proporcionava uma boa noite de sono. O único problema que
um banho frio poderia ocasionar era a entrada de água nos ouvidos, que
possivelmente prejudicaria os canais da orelha e, por isso, era preciso protegê-
los o máximo possível. Nesse trecho os conselhos sensatos baseavam-se na
experiência pessoal e na resistência dos bárbaros comparada à delicadeza
excessiva dos romanos. Nesse texto e em outros fragmentos, Agathinus
enfatizou a moderação, o melhor conselho de todos, e a atenção que se deveria
dar aos medos e às preferências do paciente, sobretudo, se tivessem medo de
remédios fortes. Arquígenes de Apamea, que viveu na Síria na época de Trajano,
em torno de 100 d.C., e morreu aos 63 anos, foi um dos mais brilhantes alunos
de Agathinus.15 Arquígenes escreveu uma extensa obra sobre pulsação e,
embora Galeno tenha criticado sua descrição das oito características diferentes
de pulso, pela sutileza excessiva, que impediu seu uso prático. Mas alguns
nomes usados para descrever os diversos tipos de pulso como, por exemplo, o
martelo duplo, a cauda de um camundongo ou o pulso como de uma gazela, são,
apesar da crítica, bem escolhidos.16 Seus tratamentos revelaram uma
preocupação semelhante com uma diferenciação precisa, a exemplo de tipos de
dores, insônia e banhos com águas minerais. Ele também escreveu um extenso
trabalho sobre patologia; e ainda uma coletânea de cartas escritas em 11 livros,
nas quais reuniu conselhos para os amigos; e livros a respeito de febres,
sintomatologia, cirurgia e nosologia. Por fim, os dois volumes de Lista de drogas
pelo tipo foram muito citados por Galeno em seus textos sobre farmacologia,
com frequência reproduzindo palavra por palavra.17 Seus remédios incluíam
amuletos, remédios preparados com ervas e substâncias minerais, embora a
proporção das substâncias seja desconhecida em razão da relutância em citar
suas fontes.18 Apesar das críticas frequentes, Galeno extraiu mais informações e
tratamentos eficazes de Arquígenes do que de qualquer outro autor do período
romano, com exceção de Rufus de Éfeso. O interesse de Arquígenes pela
nosologia refletiu-se também no tratado Doenças agudas e crônicas de Aretaeus
de Capadócia. Não se sabe quando e onde Aretaeus escreveu o tratado. Em uma
opinião mais antiga, baseada na ausência de seu nome das páginas de Galeno, os
dois autores foram quase contemporâneos, ambos atuantes na segunda metade
do século II. O silêncio de Galeno então poderia ser explicado pelo
desconhecimento ou a relutância em admitir a existência de autores
contemporâneos ou de predecessores imediatos, de quem extraiu informações.
Em uma visão mais recente, em seguida à nova datação de Ateneu e de outros
pneumatistas, é provável que Aretaeus tenha vivido há cerca de um século antes,
em torno de 50 d.C.19 Arataeus não se referiu a autores do período romano em
suas obras, embora tenha sido influenciado pelas doutrinas pneumatistas e
estoicas. As citações de seus textos são bem posteriores ou com datas
controversas. Um tratado sobre febres atribuído a Alexandre de Afrodisias (final
do século II) mencionou um trabalho de Arataeus dedicado à profilaxia, mas o
período em que esse autor viveu é bastante impreciso.20 Duas referências,
ambas de Galeno, tiveram consequências mais significativas para definir tanto a
época em que Aretaeus viveu quanto para comprovar a veracidade das
referências de Galeno. Ao discutir a “elefantíase”, Aretaeus contou uma história
encantadora de um doente, abandonado na floresta pelos amigos, que,
inesperadamente, se curou ao beber vinho de um barril onde uma víbora se
afogara.21 Galeno contou uma história idêntica em um dos seus primeiros
trabalhos, mas sem citar a fonte e a data.22 Trinta anos depois, na década de 190,
Galeno repetiu a história, mas dessa vez disse que assistira a esse incidente em
sua juventude na Ásia Menor.23 Se a segunda versão estiver correta, o incidente
ocorreu nas décadas de 140 ou 150 e fixa a data em que Aretaeus viveu em torno
dessas duas décadas. Por outro lado, e talvez seja uma hipótese mais plausível,
ao longo do tempo uma história que Galeno leu ou ouviu transformou-se em
uma história da qual participou. A fonte ainda poderia ser Aretaeus ou outro
autor que ambos consultaram, porém esse comentário de Galeno tem pouco
valor para definir a época em que Aretaeus viveu. No entanto, quanto mais cedo
definirmos o período de atuação de Aretaeus, mais o silêncio do onívoro Galeno
precisa de explicação. Embora Aretaues tenha escrito textos sobre cirurgia e um
tratado específico a respeito de febres, só temos acesso aos quatro volumes de
Sobre as causas e sintomas das doenças agudas e crônicas, além de quatro livros
referentes às curas dessas doenças.24 Os livros foram escritos em um dialeto
grego hipocrático extremamente estilizado, com muitas alusões ao Corpus
Hippocraticum, e, de acordo com os médicos, foram os melhores estudos
nosológicos da Antiguidade.25 Os textos associam uma observação detalhada e
precisa a uma exposição clara e bem estruturada. Cada doença é descrita com
detalhes e de uma maneira sistemática: primeiro, o local da doença, com uma
informação anatômica importante; em seguida, o significado do nome; os
sintomas; e as causas, em especial em relação à idade e ao sexo do paciente e à
estação do ano. Os tratamentos recomendados por Aretaeus eram tipicamente
hipocráticos: dieta simples, flebotomia e hemospasia; poucas vezes recomendou
a cirurgia. Suas descrições de doenças como, por exemplo, epilepsia, síncope e
diabetes são clássicas, associando uma observação crítica, uma descrição
minuciosa e uma exposição clara.26 Em seu relato sobre a asma (ou “ortopneia,
em razão de o paciente ter vontade de se levantar para respirar melhor”),
Aretaeus observou a predominância da asma na infância e o desaparecimento
frequente na adolescência.27 Mas a asma na idade adulta era potencialmente
muito perigosa. Sua causa, disse, originava-se do esfriamento e umidade do
pneuma, que poderia ser evitado ou corrigido pelo calor. Esse fato explicava por
que pessoas com profissões que envolviam calor, como caiados, forjadores de
peças de bronze ou ferro, ou que trabalhavam em fornalhas nos banhos viviam
muito mais de que a média dos asmáticos, mesmo se tivessem problemas
respiratórios. (Essa explicação está errada em termos modernos, porém faz uma
diferenciação correta entre a asma congênita e a dispneia causada pela exposição
a fumaças nocivas.) Aretaueus descreveu o início de uma crise de asma com um
relato vívido: contração do tórax, vermelhidão do rosto, olhos esbugalhados, a
tentativa desesperada para ficar em pé e respirar ar fresco, como se o ar no
quarto não fosse suficiente. Ele comparou a crise de asma ao ataque epiléptico,
com o suor frio do asmático e a espuma na boca. Aos poucos a crise desaparecia,
o corpo relaxava e o doente sentia um alívio profundo, mas só até a vez seguinte,
porque os doentes sempre guardavam a lembrança dos “símbolos”, ou
momentos, de sua doença. A divisão de Aretaeus de doenças agudas e crônicas
foi mencionada também em um trabalho anônimo escrito no século I ou II, com
uma intenção mais didática. O texto expôs de uma forma sistemática as opiniões
a respeito de uma série de doenças de médicos renomados, sobretudo dos
séculos IV e III.28 O interesse do autor pela causa e o tratamento das doenças foi
compartilhado pelo escritor do papiro Anonymus Londinensis, que na seção
final descreveu ideias que poderiam ser consideradas “pneumatistas”.29 Mas a
fluidez das doutrinas pneumatistas e a tendência óbvia para o ecletismo
manifestada, entre outros, por Agathinus e Arquígenes dificultam a avaliação
clara da extensão e da influência do pneumatismo. Na verdade, existem muitas
dúvidas a respeito de sua existência como uma doutrina no sentido estrito do
termo.30 Seus seguidores mais famosos tinham ligações com Roma, mas o local
onde Aretaeus escreveu suas obras é desconhecido e o autor de Anonymus
Londinensis (caso possa ser considerado um pneumatista) escreveu no Egito.31
O surgimento subsequente do hipocratismo galênico reuniu com facilidade
muitas de suas ideias e tratamentos e, ao mesmo tempo, encobriu o papel que
exercera nos primeiros séculos imperiais, como uma alternativa ao metodismo.
Os pneumatistas, os metodistas e empiristas concordavam em um ponto:
Hipócrates, suas obras ou as que foram atribuídas a ele, mereciam muita atenção
e respeito. Histórias difamatórias diziam que Hipócrates baseara sua medicina
copiando tratamentos registrados nas tabuletas de cura penduradas nas paredes
no templo de Asclépio em Cós ou, ainda pior, que ele queimara propositalmente
seu arquivo, com o objetivo de impedir que outras pessoas contestassem sua
superioridade.32 Porém, em geral, o “fundador de nossa profissão”, como o
chamava Scribonius Largus, era bastante respeitado.33 Muitos papiros do
Corpus Hippocraticum do período greco-romano no Egito preservaram-se mais
do que as obras de qualquer outro autor de livros de medicina.34 As referências
a Hipócrates e ao Corpus são citadas em obras de autores de todos os gêneros,
desde o filósofo Demetrius Lacon no século I a.C. ao grandiloquente
epigramatista Glycon de Pérgamo e ao teólogo Clemente de Alexandria três
séculos depois.35 Representações mais tangíveis do grande médico são também
numerosas, tanto públicas quanto privadas. A ilha do Cós cunhou moedas com
seu retrato, e um lindo mosaico de uma casa do período romano o retratou
conversando com Esculápio (ver Ilustração 4.3). Em Óstia, a cidade portuária de
Roma, seu busto − agora, infelizmente, bastante destruído − foi colocado no
mausoléu do médico (da corte?) Demetrius.36 Na distante Tomi, na costa do
Mar Negro, a inscrição na lápide de um dos seus filhos, Kladaios, citava com
orgulho que ele praticara a arte de seu mestre divino, Hipócrates.37 Em Corcira,
um aluno registrou seus agradecimentos ao professor falecido Theagenes em um
epitáfio repleto de alusões hipocráticas.38 Memoriais de outros médicos do
Império Romano proclamavam a antiguidade hipocrática da profissão deles, ao
escreverem a palavra médico no dialeto jônico, apesar de o resto da inscrição ter
sido escrito no dialeto comum “koine”.39 Como vimos, alguns médicos, em
especial Aretaeus (ver p. 210), escreveram seus livros em grego hipocrático, o
que dificulta definir se alguns dos textos posteriores do Corpus Hippocraticum
foram incorporados à coleção hipocrática por acaso, ou se eram imitações,
pastichos ou falsificações intencionais.40 Os estudiosos fizeram exegeses, com o
objetivo de esclarecer ou interpretar essas obras com frequência obscuras. Com
base em seus predecessores helenísticos, Erotiano dedicou seu glossário
hipocrático, com analogias a poetas e médicos, a um médico da corte,
Andromachus, na expectativa de que sua atitude estimulasse outros autores a se
interessarem pelo Corpus como literatura e de comparar o conhecimento deles
com o de Hipócrates.41 Em torno de 160, o antiquário Aulus Gellius não hesitou
em incluir um trecho de Nutrição em uma de suas miscelâneas de textos
literários, com a finalidade de esclarecer ou interpretar textos obscuros em uma
discussão erudita.42 Gellius encontrou uma explicação melhor no comentarista
Sabinus, que mais tarde foi considerado por Galeno o expositor mais completo
de Hipócrates, apesar da tendência em tentar explicar tudo, inclusive o
inexplicável.43 Havia também a crença generalizada de que Hipócrates fora o
fundador da teoria dos quatro humores e autor de A natureza do homem. O autor
de Anonymus Londinensis reagiu com veemência à visão alternativa aristotélica
de Hipócrates ao confrontar sua citação desse texto como prova da verdadeira
crença de Hipócrates.44 O consenso a respeito da autoria hipocrática de alguns
tratados resultou em discussões sobre a autenticidade de outros textos mais
complexos. O comentário de Erotiano no prefácio do seu livro, que Hipócrates
não era o autor de Prorrhetic 2, foi a referência mais antiga a esse debate, mas
não é provável que Erotiano tenha sido o primeiro a discutir a autoria desse
tratado.45 Em torno de 120, Artemidorus Capito uma pessoa até então
desconhecida, publicou uma edição de Hipócrates muito respeitada pelo
imperador Adriano.46 Fundamentado na obra de seu contemporâneo e parente
Dioscórides (não o famoso farmacologista), Artemidorus produziu uma grande
edição de muitos rolos de livros, com a inserção nas margens de comentários e
observações textuais diferentes do texto original de estudiosos alexandrinos.
Apesar de não ser um comentário no sentido estrito, Artemidoro discutiu a
autenticidade de determinados tratados, ou partes de tratados, e rejeitou, por
exemplo, a última parte de Regime em doenças agudas e dividiu a autoria de
Epidemias entre diversos autores. Ele fez muitas mudanças de estilo, demasiadas
na opinião de Galeno, em uma tentativa de refazer os textos em seu dialeto
jônico original. Galeno considerava as edições de Dioscórides e de Artemidorus
textos padrões em sua época e, é provável, que o trabalho deles seja a base da
tradição manuscrita do Corpus Hippocraticum atual.47 Outros tentaram superá-
los ou igualar-se a eles como Rufus de Samaria, um judeu que se mudou para
Roma em torno de 150, e que reuniu diversas leituras e interpretações sugeridas
por estudiosos antigos para escrever sua edição de Epidemias. De acordo com o
relato extremamente tendencioso de Galeno, o trabalho de Rufus era uma
mistura de informações banais e sem critério tiradas de sua grande biblioteca,
apesar de Galeno não ter escrúpulos em basear seus trabalhos em preferências
textuais de estudiosos anteriores.48 É mais difícil determinar como esse material
hipocrático volumoso foi usado. Nos 48 volumes de comentários sobre o tratado
Aforismos de Hipócrates, Juliano o Metodista interpretou muitas frases de uma
forma bem diferente do hipocrático Sabinus.49 Apesar de aprovar em geral as
obras de Sabinus, Galeno fez uma lista de erros e equívocos cometidos por ele,
que, como muitas críticas de Galeno a outros comentadores, significam apenas
que Sabinus tinha uma opinião diferente da de Galeno. Do mesmo modo, as
queixas de Galeno de que, em sua época, poucas pessoas seguiam os
ensinamentos de Hipócrates, sobretudo quanto ao prognóstico, são discutíveis
em razão da existência de grupos como os dos pneumatistas, cuja medicina,
embora fosse diferente em muitos tópicos importantes da sua, citava com
frequência os precedentes hipocráticos.50 As interpretações dos pneumatistas
dos ensinamentos de Hipócrates, mesmo que fossem ridicularizadas por Galeno,
não eram ingênuas nem infundadas. Na verdade, grande parte da evidência
proposta por Galeno das teorias de Hipócrates, em especial, a primazia da
anatomia e da divisão tripartida dos sistemas do corpo, fundamenta-se pouco no
Corpus Hippocraticum, e é muito mais um produto da imaginação de Galeno
para servir aos seus propósitos do que uma representação precisa da grande
figura do passado.51 Uma visão mais equilibrada do hipocratismo no período
romano pode ser obtida nas obras de um dos mais influentes escritores de livros
de medicina da Antiguidade (e um dos poucos que Galeno aprovava), Rufus de
Éfeso. Assim como outros escritores de medicina e médicos, as datas em que
viveu são conflitantes. O léxico Suda mencionou que era contemporâneo de
Statilius Crito na época de Trajano, ou seja, em torno de 100 d.C. No entanto,
Servilius Damocrates, autor de um poema farmacológico, que, segundo Plínio,
vivera por volta de 50 d.C., citou o farmacologista Rufus como se já fosse
famoso.52 Mas existiam outros médicos ou autores de livros de medicina com
esse nome na época, inclusive um farmacologista, Menius Rufus, e não se pode
afirmar que o médico de Damocrates fosse, de fato, o prolífico Rufus de
Éfeso.53 Assim como Sorano, Rufus passou algum tempo no Egito, talvez
estudando em Alexandria, porque seus comentários em relação à saúde em geral
do país e às doenças específicas, como o verme da Guiné, originaram-se da
observação pessoal. As outras referências que fez a pacientes e do que
presenciara referem-se ao sul da Ásia Menor e não há indícios de que tenha
visitado Roma.54 Seus textos preservados em grego, seja na forma original ou
em citações posteriores, dão apenas uma ideia da enorme abrangência de sua
obra.55 Rufus escreveu sobre tratamentos em Sobre a gota, Sobre as doenças da
bexiga e dos rins, Sobre a satiríase e a gonorreia, bem como acerca da
nomenclatura para os iniciantes no aprendizado de medicina – “para que o
ferreiro, o sapateiro e o marceneiro aprendam os nomes de metais, ferramentas,
entre outras palavras. Por que deveria haver diferença nas artes mais nobres?”56
Seu pequeno tratado Questões médicas, no qual aconselha um médico como
obter com mais eficácia informações de um paciente por meio de perguntas,
proporciona uma rara visão da capacidade de exame clínico de um médico da
Antiguidade.57 Existem fragmentos admiráveis de um longo poema botânico
escrito em quatro volumes de hexâmetros, além da sua opinião sobre a peste, que
incluiu a referência mais antiga aos bubões causados pela epidemia.58 Outros
livros só se preservaram em textos traduzidos: Sobre a gota, em latim, Sobre a
icterícia, em latim e em árabe e algumas histórias de casos em árabe. Outros
textos foram citados em enciclopédias de medicina da Antiguidade tardia e em
escritores de medicina árabes, para quem Rufus era a autoridade suprema em
medicina depois de Galeno.59 O mais surpreendente nas obras de Rufus é
praticamente a ausência de discussão teórica e argumentos.60 Seu
comprometimento com a teoria dos quatro humores evidencia-se mais com os
resultados de seus tratamentos do que pela exposição fisiológica. A base da
medicina de Rufus pode ser descrita de maneira sucinta: não somos iguais, ao
contrário, somos bem diferentes uns dos outros. Portanto, era preciso descobrir a
individualidade de cada paciente de todos os modos possíveis. A doença de um
paciente poderia ser deduzida apenas pelas manifestações externas, mas essa
dedução seria uma etapa preliminar no tratamento, porque a verdadeira terapia
consistia em receitar um remédio adequado ao paciente. O processo de descobrir
o remédio exato era demorado e difícil, e envolvia perguntas a respeito de todos
os aspectos da vida do doente, desde alimentação, bebidas, hábitos e sonhos.
Mesmo quando um médico descobria o problema e conseguia prever o resultado
provável, ele teria de garantir que o tratamento era adaptado especificamente ao
paciente, porque “nenhuma substância era tão constante em seus efeitos que o
médico poderia classificá-la em uma única categoria”.61 Embora Galeno
elogiasse seu profundo conhecimento do Corpus Hippocraticum e tenha se
referido várias vezes a Rufus como um comentarista de Hipócrates, não se sabe
ao certo se ele escreveu comentários formais, ou se apenas discutiu determinados
trechos ao longo de suas obras.62 Mas, apesar “da profunda afeição pelo homem
e sua arte”, Rufus sabia que o progresso da medicina estendera-se além dos
limites dos ensinamentos de Hipócrates.63 Seu tratado Sobre a melancolia,
considerado por Galeno o melhor livro sobre o assunto antes do dele,
desenvolveu o esboço sucinto descrito em A natureza do homem em uma
exposição detalhada das consequências terapêuticas do excesso ou da deficiência
desse humor misterioso.64 Do mesmo modo, a seção final de Questões médicas
é uma extensão e não uma crítica das opiniões de Hipócrates em Ares, Águas e
Lugares. Rufus mencionou a hipótese de que as circunstâncias geográficas e
ambientais forneciam remédios locais, assim como as doenças típicas do lugar
eram causadas por esses mesmos fatores ambientais. Por esse motivo, conversar
com as pessoas nativas de uma região resultava com frequência em descobertas
muito valiosas.65 Ao longo de sua obra Rufus adotou uma abordagem
pragmática, em vez de um confronto. As críticas a outros autores eram discretas
ou evitadas. Ele lamentava que a anatomia interna tivesse sido mais bem
ensinada no “passado”, quando era permitido examinar anatomicamente seres
humanos, mas se satisfazia em recomendar a dissecção de animais mais
próximos do homem e a demonstração da anatomia externa em escravos.66
Embora a maioria de seus tratados se dirigisse aos seus colegas médicos, autores
árabes preservaram muitas citações importantes e detalhadas de um manual de
autoajuda, Para o leigo, ou, como alguns autores traduziram seu título, Para os
que não têm doutor a mão.67 O manual abordou uma ampla série de doenças,
desde dor de cabeça, visão deficiente a problemas de rim e bexiga, com
conselhos, tanto para a saúde quanto em relação à doença, porque a dietética
profilática era uma especialidade hipocrática.68 Rufus também se dirigia a
grupos na sociedade cujas necessidades específicas nem sempre eram citadas em
textos médicos − viajantes, idosos e crianças pequenas (com um sólido conselho
sobre cuidados com crianças e pediatria, além do que uma ama de leite poderia
fazer sozinha e quando deveria chamar um médico).69 Rufus escreveu um
tratado específico, Sobre a compra de escravos, no qual relatou o exame que
fizera em um escravo com um defeito no crânio e advertiu quanto aos riscos de
comprar um escravo com pus supurado proveniente de uma inflamação no
ouvido: um problema sério de saúde do escravo e um prejuízo do investimento
do comprador.70 A simpatia que sentia pelos doentes revelava-se nos
comentários a respeito de pessoas com disfunções sexuais ou doenças crônicas,
nos quais enfatizou o que seria necessário fazer para eliminar a causa dessas
doenças em cada paciente. Nesses comentários Rufus fez uma crítica mais
contundente aos metodistas.71 É uma pena que Rufus tenha ficado à sombra de
Galeno, porque, apesar da eloquência da crítica às crenças de seus opositores,
era bem reticente em mostrar a quantidade de informações que se apropriara de
pessoas com as quais concordava. A aprovação em geral de Galeno pouco
revelou os talentos de Rufus, que causaram admiração nos árabes. O material
preservado durante o processo de seleção ao longo dos séculos destacou sua
praticidade como médico ao lidar com diferentes tipos de pacientes. No entanto,
o ensinamento subjacente às suas ideias só se percebe de uma maneira quase
imperceptível nos conselhos mencionados em Questões médicas ou nas
referências (nem todas dele) para explicar a terminologia anatômica em Sobre os
nomes das partes do corpo. Mas é suficiente para demonstrar seu discernimento
como um observador clínico e para que lamentemos a perda de uma parte
significativa de seus escritos. A longa sombra de Galeno, sempre crítico em
relação aos pontos fracos dos outros, também obscureceu a vitalidade das
discussões e dos desenvolvimentos no contexto da medicina no século II d.C.
Esse período representou o auge econômico e intelectual da cultura grega no
mundo romano. Cidades como Éfeso e Esmirna rivalizavam-se para patrocinar a
construção de templos maiores e mais belos, de construir monumentos
imponentes e de promover jogos espetaculares. Esses jogos incluíam
competições atléticas, musicais e poéticas. Em Éfeso, durante os dois dias do
Grande Festival de Asclépio, havia competições anuais de medicina e cirurgia
entre médicos. Os resultados, nas quatro categorias, eram inscritos na pedra para
mostrar sua perpetuidade.72 Os “museus” e o “templo das Musas” imitavam os
de Alexandria, locais onde intelectuais de todos os tipos, desde poetas, médicos
a funcionários do governo se encontravam.73 Os escritores de prosa da época
eram as glórias da literatura grega antiga: o biógrafo moralista Plutarco e o
satirista Luciano, historiadores como Arriano e Cassio Dio, oradores como Dio
Crisóstomo ou Aelio Aristides, e filósofos como Alexandre de Afrodisias, ou o
médico cético Sextus Empiricus.74 Os médicos participavam ativamente do
mundo cultural. O médico Heráclito de Rodiapólis (sudoeste da Turquia), “o
Homero da poesia médica”, fez uma visita triunfal às mais famosas cidades da
Grécia oriental, e recebeu em troca de exemplares de seus trabalhos sobre
medicina e filosofia homenagens dos alexandrinos, dos rodienses, dos
atenienses, do areópago em Atenas, dos epicuristas em Atenas e do Sínodo
Sagrado do Tímele (a guilda universal de teatro). Heráclito usou sua fortuna para
promover jogos em homenagem a Asclépio em sua cidade natal.75 O médico
Hermógenes escreveu a história de Esmirna, sua cidade natal, em dois volumes,
além de diversos livros referentes às instituições civis mais antigas da Europa e
da Ásia, um tratado a respeito do local de nascimento de Homero e outro acerca
de sua sabedoria, e 77 livros de medicina.76 Em Corinto ocupado pelos
romanos, o médico Thrasippus foi elogiado como o segundo em importância
entre os gregos por sua medicina e poesia, enquanto só a morte prematura
impediu que o jovem médico Barbas de Gangra no Ponto (noroeste da Turquia)
conquistasse uma magnífica reputação, por seu conhecimento e pelo exercício da
medicina na Roma imperial.77 Essa explosão de energia criativa também
envolveu a literatura médica. Havia tratados de todos os tipos, de livros didáticos
de perguntas e respostas, como Definições médicas, e manuais pequenos, como
Introdução à medicina, a livros enormes sobre todas as espécies de febres, nos
quais o autor (que desconhecemos) descreveu em detalhes todos os possíveis
tipos e combinações. Galeno, em um tour de force, reduziu-o a um simples
resumo de poucas linhas.78 Exemplares de cerca de 40 livros sobre medicina
(em verso), Quironides (As filhas de Quíron), de Marcelo de Side, foram
colocados nas bibliotecas de Roma por ordem de dois imperadores, Adriano e
Antonino Pio.79 Com conotações filosóficas, os gregos e os romanos discutiram
se o ser dentro do útero seria um ser vivo ou como o feto se apossava da alma,
enquanto outros autores mais práticos examinaram os enormes livros de
remédios de Asclepíades o Farmacologista.80 Havia um mercado receptivo para
cópias de textos de medicina, pelo menos nas grandes cidades: Galeno viu em
Sandalmakers St., o local de atividades dos vendedores de livros em Roma, dois
homens discutindo a autenticidade do tratado O Doutor, que fora vendido como
se fosse de autoria de Galeno. Um deles tentava provar que o outro havia
comprado uma falsificação, porque o estilo não era o do grande homem.81 A
reação de Galeno contra esse ato de pirataria de seus textos variava de um
desprezo orgulhoso (nunca assinava seus textos e menosprezava a fama, porque
não tinha utilidade para os mortos e era um estorvo para os vivos), de resignação
(na expectativa de que suas obras fossem tratadas como uma criança órfã por um
bando de bêbados), e uma preocupação excessiva com a hipótese de sua
reputação fosse denegrida por erros e confusão causados por autores, que
escreviam utilizando seu nome.82 Os comentários e críticas de Galeno permitem
que analisemos dois aspectos desses debates sobre medicina. Ele tinha
consciência de que pertencia à exegese da tradição hipocrática, apesar de
mencionar seus predecessores mais imediatos só quando não concordava com
eles.83 A interpretação desses predecessores a respeito de Hipócrates abrangia
diversas formas literárias. O professor de Galeno em Esmirna, Pelops, escreveu
um texto sucinto, Introdução a Hipócrates, mas, em geral, eles explicavam o
sentido das palavras de Hipócrates com palestras comentadas.84 Alguns
professores, como Lycus da Macedônia, publicaram suas palestras em um grande
número de rolos de papiro; os comentários de outros professores, como os de
Quintus, só podem ser reconstruídos a partir do testemunho, com frequência
divergente, de seus antigos alunos. Outros, a exemplo de Numisiano e Pelops,
nunca conseguiram publicar as anotações de suas palestras, que permaneceram
nas mãos negligentes de seus herdeiros.85 Por isso, Galeno teve dificuldade em
descobrir o que os renomados professores haviam ensinado. Os alunos de
Quintus, além de contarem histórias peculiares a respeito dos hábitos excêntricos
do professor, desenvolveram seu hipocratismo de formas muito diferentes.
Aeficianus era um estoico (ou um pneumatista?), Martialis (ou Martianus) era
um seguidor importante de Erasístrato em Roma, Satyrus e Lycus (essa “seita
hipocrática bastarda”) inclinavam-se mais em direção aos empiristas.86 Era
quase impossível atribuir a autoria da interpretação a um determinado professor
e, por esse motivo, não causa surpresa que Quintus não tenha preenchido os
requisitos rigorosos de Galeno em relação à precisão hipocrática. No entanto,
essa divergência da verdadeira doutrina hipocrática, em vez de merecer uma
crítica severa, deveria ser elogiada, porque revelava o vigor intelectual e o
interesse por parte dos médicos de desenvolverem ideias, que haviam resistido
ao teste do tempo. É ainda mais difícil definir em detalhes como esses médicos
aplicaram suas teorias hipocráticas, visto que suas teorias eram transmitidas
apenas por intermédio do crítico mais implacável, Galeno, mas os textos que
restaram de dois comentários hipocráticos muito diferentes mostraram um
conhecimento e uma inteligência iguais aos dele. O autor de um comentário a
respeito de Oath, atribuído a Galeno, associou citações de uma poesia rara a uma
discussão erudita sobre as origens da medicina. Um médico de Pérgamo, talvez
professor de Galeno, usou os atributos de uma estátua do culto a Asclépio em
Pérgamo para exemplificar as qualidades do médico ideal − modéstia,
perspicácia, conhecimento, inteligência, equilíbrio, observação cuidadosa e uma
atenção constante. As histórias referentes a Hipócrates mostram que ele era o
exemplo dessas qualidades, não só por sua determinação em garantir o futuro da
verdadeira medicina, ameaçada pelo desaparecimento gradual da família de
Asclépio, por meio da escrita.87 Se esse comentário revela a elegância e o
conhecimento típicos da época, outro autor, Sabinus, reinterpretou as teorias
hipocráticas dos efeitos do meio ambiente no contexto do período imperial
romano. Em poucos fragmentos preservados em uma enciclopédia posterior,
Sabinus não só comentou a salubridade ou a insalubridade de alguns lugares em
geral, como também mencionou as vantagens da localização em direção ao sul e
de uma casa iluminada pelo sol, além de intercalar seus comentários com
observações sobre a melhor maneira de planejar uma cidade.88 Sua cidade ideal
tinha ruas retas que seguiam para o norte e o sul, o leste e o oeste, sem
obstáculos e com estradas retas que ligavam os arredores da cidade. Ventos
suaves, quase imperceptíveis, eliminavam a fumaça e os gases nocivos, enquanto
o sol iluminava todas as casas, independente da localização. Por outro lado, se as
ruas fossem estreitas ou sujeitas a ventanias, os ventos causariam turbulências,
ao encontrarem obstáculos em seu caminho e teriam de mudar de direção. Nessa
batalha de ventos o infeliz pedestre teria a sensação de estar sendo arremessado
ao mar. Em vez de provocar a circulação de um ar renovado por toda a cidade,
que eliminaria o ar nocivo, os ventos, sem controle, iriam limpar o ar e poluí-lo
ao mesmo tempo. Por sua vez, o sol não penetraria em algumas áreas e, assim,
essa exalação, anathumiasis, não poderia ser dispersa. O ar ficaria pesado e
difícil de respirar. Esse fenômeno aconteceria, disse Sabinus, em uma cidade
localizada em uma planície. Mas em uma cidade situada em uma colina não era
aconselhável ter ruas retas, porque o vento sopraria o ar nocivo direto para a
parte mais alta. As ruas com curvas proporcionavam uma ventilação melhor.
Havia um pressuposto sociológico em sua argumentação, esclarecido em uma
passagem de Galeno alusiva a Pérgamo: as classes mais ricas viviam “mais
acima da colina”, em vez de morar nas ruas com muito movimento. Sabinus
recomendava que seus moradores se protegessem com odores adocicados,
insulados, ou seja, opostos aos odores nocivos da cidade mais abaixo.89
Sabinus, Galeno, Rufus, Ateneu de Atália e Antillo, que fizeram observações
semelhantes sobre poluição urbana, escreveram na mesma tradição da medicina
meteorológica hipocrática.90 Algumas observações de Galeno basearam-se no
comentário que fizera sobre o tratado hipocrático Ares, Águas e Lugares, e é
tentador associar o interesse de outros médicos pelo planejamento urbano a esse
tratado, cujo objetivo era ensinar o médico viajante a perceber no primeiro olhar
quais eram as doenças mais prováveis de serem encontradas em uma cidade.91
Mas Sabinus desenvolveu mais a discussão desse tratado, sem se apoiar muito
no exemplo romano. Sua argumentação mostrou que existiram hipocráticos
inteligentes antes de Galeno e que o tema da saúde pública não havia sido
descoberto pelos romanos. O interesse renovado pela anatomia manifestou-se na
virada do século, “na época de nossos avós”, antes de Galeno aparecer em
cena.92 Esse ressurgimento da anatomia precisa ser discutido com cuidado. É
verdade que Sabinus, de acordo com Galeno, pouco sabia ou talvez
desconhecesse os conceitos de anatomia, quando escreveu seus comentários
hipocráticos em torno de 100 d.C., uma falha grave em suas tentativas de
explicar o Corpus Hippocraticum. Porém Rufus recomendou com convicção o
estudo da anatomia (ver p. 214) e Sorano beneficiou-se com seus estudos de
anatomia nas décadas de 70 ou 80, mesmo que não a considerasse útil no
exercício da medicina (ver p. 199). Galeno atribuiu o interesse renovado pela
anatomia a Marino, um médico e professor em Alexandria nas primeiras décadas
do século II.93 Ele era um médico hipocrático, porque Galeno mencionou duas
vezes a interpretação dele de trechos do tratado Aforismos de Hipócrates, talvez
em um comentário, e elogiou-o por mostrar que, em uma passagem em
Epidemias 2, a teoria anatômica de Hipócrates estava correta.94 Tudo o que
restou do importante trabalho de Marino sobre anatomia foram os títulos da
seção de cada livro, como registrado por Galeno. Marino escreveu uma obra
enorme, uma coleção de 20 livros, abordando o corpo inteiro, além de dedicar
um espaço considerável à descrição da anatomia das veias e dos músculos.95 É
também bastante provável que Marino tenha descrito longamente como se
deveria fazer uma dissecção, que serviu de modelo a Galeno ao escrever
Procedimentos anatômicos.96 Mas Marino, na opinião de Galeno, não era
apenas um dissecador competente; ele era também um propagandista eficiente da
anatomia e transmitiu esse interesse aos seus alunos, como Quintus em Roma e
Numisianus em Alexandria. As obras de Numisiano foram destruídas em um
incêndio após sua morte, mas sua reputação como anatomista era tão notável que
Galeno viajou para Corinto e depois para Alexandria, com o objetivo de tê-lo
como mentor. Infelizmente, ao chegar o grande homem já havia morrido, e
Galeno não teve acesso aos seus livros e papéis em razão da proibição do filho,
também anatomista.97 O outro aluno de Marino, Quintus, herdou as anotações
de Marino sobre a anatomia de macacos e outros animais, porém, além de
estimular a paixão de seus alunos pela anatomia, fez pouco uso dessas
anotações.98 Esses registros dispersos de pedagogos do passado revelam que já
havia interesse pela anatomia em Roma, quando Galeno chegou à cidade em 162
d.C. Martianus (ou Martialis), o seguidor de Erasístrato, tinha uma excelente
reputação entre os médicos como um dos melhores anatomistas de sua época, em
especial pelos dois volumes de Dissecções. No entanto, Galeno o considerava
um charlatão incompetente, sempre disposto a provocar uma briga apesar de ter
mais de 70 anos, e criticou-o não só nos três livros sobre a anatomia de
Erasístrato, como também em um enorme tratado com seis volumes referentes à
anatomia de Hipócrates.99 Mas Lycus da Macedônia, que chegou a Roma alguns
anos antes de Galeno, e cujos trabalhos sobre Hipócrates e anatomia competiram
sem trégua com seus escritos, foi a verdadeira bête noir de Galeno. Ele foi ainda
mais severo com o hipocrático e herege Lycus, do que com Juliano o Metodista,
e poucas vezes perdeu a oportunidade de criticar seus erros. Entretanto, em
determinado momento Galeno se interessou tanto pelo tratado principal sobre
anatomia de Lycus que o resumiu em dois livros. Mas o tratado de Lycus não era
um resumo casual, e sim consistia em 19 volumes. Embora abordasse
principalmente o mesmo tema de Marino, estendeu-se mais além em um
importante aspecto.100 Enquanto Marino abordou o útero, os testículos e os
sistemas urogenitais masculinos e femininos em um único livro, Lycus dedicou
seis livros a esse tema, inclusive um livro inteiro sobre a anatomia do útero e,
talvez ainda mais surpreendente, três livros de anatomia fetal. O Livro 16
descreveu a anatomia de um útero com um feto morto, o Livro 17, a anatomia de
um feto vivo, e o Livro 18, a anatomia de um feto morto. Apesar de serem
descrições de dissecções de animais, elas mostram que Lycus realizou uma
dissecção posterior à morte de uma mulher grávida e, talvez ainda mais
importante, esse trabalho fazia parte de um programa sistemático de pesquisa
anatômica, sem dúvida superior ao pequeno tratado Sobre a anatomia do útero
escrito por Galeno, quando era estudante em Pérgamo no final da década de
140.101 Mais evidências de vivissecções e dissecções posteriores à morte
realizadas por Lycus são fornecidas por sua divisão da anatomia dos pulmões
nos Livros 6 e 7, de acordo com a condição de os seres humanos ou animais
estarem vivos ou mortos.102 O sucesso de Lycus como anatomista em Roma
explica a amargura do jovem Galeno recém-chegado à cidade em 162, e sua
obstinação implacável de eliminar as lembranças de seu predecessor
recentemente falecido. Apesar de Galeno ter enfrentado a oposição de médicos
respeitáveis, que acreditavam na superioridade de Lycus em relação a todos os
outros anatomistas e que pouco poderia ser acrescentado ao que fizera, Galeno
precisava também conquistar sua reputação, o que obteve ao fazer exibições
públicas de anatomia e ao publicar títulos tendenciosos, a exemplo de O que
Lycus nunca soube sobre Dissecção. Sempre que Galeno aparecia no Templo da
Paz no fórum, o local de encontro dos intelectuais romanos, pediam-lhe para
provar seu caso médico pela dissecção e não pela argumentação, e lhe faziam
perguntas incessantes.103 Sua afirmação de que respondera a todos os seus
detratores espetacularmente não encobria o fato de que Galeno não era o único
médico em Roma com interesse em anatomia e em Hipócrates, cujo
conhecimento ele apregoava ser o detentor exclusivo. A competência dele como
divulgador de suas próprias ideias, o vigor de sua retórica, o alcance de seu
conhecimento e a produção literária prolífica (a maioria ditada para escribas, em
vez de escrita a mão na escrivaninha) impressionaram gerações sucessivas a tal
ponto que hoje é difícil definir quem foi Galeno, exceto em seus próprios
termos. Os triunfos dos últimos anos de vida de Galeno, como médico da corte
imperial e um filósofo respeitado, foram obtidos com sua inserção em um
contexto da medicina e da cultura contemporâneas. As dívidas em relação aos
outros se escondiam atrás da fachada de uma infalibilidade categórica. No
entanto, como mencionado neste capítulo, as dívidas eram significativas, apesar
de raramente reconhecidas, o que nos permite situá-lo no contexto dos
desenvolvimentos já iniciados, em vez de atribuirmos os progressos na medicina
apenas a ele.

15 A Vida e a Carreira de Galeno Galeno de Pérgamo foi um personagem


essencial na história da medicina ocidental. Assim como a coletânea de obras do
Corpus Hippocraticum no período helenístico antigo deu um novo formato à
medicina grega, ao reunir textos passíveis de estimular a reação favorável ou não
de estudiosos, 400 anos depois Galeno, com seu exemplo e suas obras,
transmitiu aos médicos cultos posteriores o conceito da verdadeira medicina (e,
ao mesmo tempo, a sua antítese), que se prolongara por mais de um milênio.
Como vimos no capítulo anterior, muitos de seus conceitos não eram exclusivos
dele, mas Galeno os desenvolveu de uma maneira incisiva e crítica a partir de
outras ideias; além disso, suas frequentes afirmações da superioridade de uma
determinada técnica e de uma metodologia intelectual, e o poder absoluto da
prolificidade de sua obra imprimiram um selo galênico na medicina posterior em
Bizâncio, no Oriente Médio e no Ocidente medieval.1 Claudio Galeno nasceu
em agosto ou setembro de 129, filho de uma família rica de Pérgamo (Bergama,
oeste da Turquia).2 A cidade estava no auge da prosperidade: pórticos, templos e
casas magníficas estavam sendo construídos dentro da cidade, enquanto do lado
de fora de suas muralhas reformavam um enorme templo em homenagem ao
deus Asclépio com o apoio do imperador romano.3 A família de Galeno
beneficiava-se com essa atividade de construção. O bisavô havia exercido a
profissão de agrimensor, o avô e o pai, Nicon, eram arquitetos ricos e grandes
proprietários rurais.4 A profunda afeição que Galeno sentia pelo pai opunha-se
aos comentários sobre a mãe, que durante as explosões emocionais violentas
fazia grosserias com o marido e mordia os criados por erros mínimos, como
Galeno lembrava-se com desgosto.5 Nicon era um homem extremamente culto,
um especialista em geometria, astronomia e arquitetura, e que realizava
experimentos nas plantações e vinhedos para melhorar a qualidade das
colheitas.6 É pouco provável que houvesse dois arquitetos com o mesmo nome
em Pérgamo nesse período, e que ambos tivessem feito inscrições complicadas
“com números iguais” para locais públicos, nas quais todas as letras tinham
equivalentes numéricos e a soma total de cada linha era idêntica. A inscrição de
Iulius Nicodemus, “chamado de Nicon o jovem”, ornamentou um pórtico no
mercado; a de Aelio Nicon a base da estátua de um sátiro. Não se sabe ao certo
onde o segundo poema de Aelio em homenagem ao sol fora inscrito, mas ele era
visível ao público. O prazer do autor em aplicar sua técnica para descrever em
versos um cubo, uma esfera, um cilindro ou a organização do universo, revelou-
se nos comentários de Galeno em relação ao pai e, portanto, Aelio era um
candidato mais provável que Iulius a ser seu pai. Mas quem quer que fosse o pai
de Galeno, tanto Aelio quanto Iulius haviam obtido a cidadania romana e, por
esse motivo, Galeno também deveria ser um cidadão romano, embora nunca
tenha mencionado esse fato.7 A influência de Nicon sobre Galeno foi enorme.
Não só ele deu o exemplo de rigor moral e intelectual como também orientou
sua carreira desde o berço. Galeno aprendeu desde criança o grego clássico, e
Nicon, além de escolher seus professores, o acompanhava nas conferências sobre
filosofia em Pérgamo, quando tinha 14 anos.8 Nicon o ensinou a fazer pequenas
carroças de madeira, com as quais brincava e o incentivava a estudar dia e noite.
A história, preservada em árabe, da surpresa e aborrecimento dos alunos diante
da atitude de Galeno, que nunca tinha tempo para se divertir com eles, tem um
cunho de verdade, assim como sua resposta indiferente à crítica dos alunos, que
preferia adquirir mais conhecimento a se divertir, e que detestava prazeres
infantis.9 A influência de Nicon na educação do filho foi consequência,
sobretudo, de um sonho (ou sonhos) que Asclépio lhe enviara dizendo que
Galeno aos 16 anos começaria a estudar medicina.10 A morte de Nicon, três
anos depois, além de proporcionar uma renda independente e substancial a
Galeno, afetou-o profundamente. Galeno partiu de Pérgamo para estudar em
Esmirna, e após uma visita inútil a Corinto, em Alexandria, só voltou a Pérgamo
depois de quase uma década.11 Conhecemos muito pouco os detalhes dos
estudos de medicina de Galeno com Aeschrion, Satyrus, Stratonicus e
Aeficianus em Pérgamo, com Pelops (e Philippus) em Esmirna, e com vários
palestrantes em Alexandria, exceto que a maioria dos professores seguia a
tradição hipocrática e interessava-se pela anatomia.12 Na verdade, ele fora a
Alexandria para estudar anatomia, embora sua descrição desdenhosa do que
encontrou lá, a comida, o clima, as pessoas nativas e a qualidade do ensino, não
explica por que passou quatro, cinco e até mesmo seis anos na cidade. A
excelente reputação da cidade, “o alicerce da saúde para todos os homens”,
como um escritor posterior de geografia a chamou, e o fato de a maioria de seus
professores ter estudado em Alexandria, estimulou-o a fazer o mesmo. Mas nem
o privilégio de assistir palestras na cidade o deteria por tanto tempo no local, se a
realidade fosse tão horrível como dizia.13 Ele achou os palestrantes que faziam
conferências sobre Hipócrates tediosos, pedantes ou cometiam erros e, segundo
o que escreveu, nunca foi à famosa biblioteca ou ao museu. Ainda mais
interessante do que observar os hábitos belicosos de uma doninha ou os métodos
egípcios de resfriar a água, era a oportunidade oferecida pelo grande entreposto
comercial de Alexandria de conversar com transportadores de mercadorias do
mundo mediterrâneo e de outros lugares mais distantes, e aprender com eles
noções de navegação astronômica, e conhecer os remédios raros e as substâncias
minerais que transportavam.14 É possível também que tenha aprendido as
técnicas mais recentes de cirurgia alexandrinas, porque conseguiu seu primeiro
emprego ao voltar para Pérgamo no segundo semestre de 157, como cirurgião de
um grupo de gladiadores que pertencia a um alto sacerdote. Estivera ausente da
cidade por muito tempo. A importância da educação de Galeno não deve ser
superestimada, apesar de ele ter estabelecido, para sua reiterada satisfação, os
princípios básicos da medicina de excelência como ele a entendia. No entanto,
sua formação foi peculiar por diversas razões. Em primeiro lugar, Galeno foi
uma presença tardia e rica na medicina. Já havia médicos mais humildes que
haviam morrido mais jovens do que Galeno, quando ele começou sua odisseia
educacional, que foi mais longa e geograficamente mais extensa do que a de
qualquer outro médico que conhecemos.15 Existiam médicos que estudavam
medicina com médicos locais ou que viajavam para cidades famosas, em
especial se, como Galeno, fossem originários de classes sociais ricas da Ásia
Menor.16 Mas o tempo que Galeno dedicou aos estudos antes de começar o
exercício da medicina, especificamente em Alexandria, não tem precedente na
história da medicina até o ponto em que a conhecemos. A educação de Galeno
foi também bastante acadêmica. Ele seria um ótimo sofista profissional, um
intelectual público como Polemo de Laodiceia ou Herodes Atticus, expondo sua
competência como um homem culto e seu estilo grego. Mas, por outro lado,
talvez optasse por viver como um cavaleiro culto que dividia seu tempo entre as
propriedades rurais e a vida agitada dos teatros, clubes e conversas polidas, nas
quais sua capacidade de citar poetas há muito falecidos, ou de comentar com
uma graça sedutora os antigos hábitos de jantar dos atenienses, lhe garantiria
convites para jantar com pessoas importantes.17 Em Éfeso, e talvez em outros
lugares, os médicos reuniam-se a outros intelectuais em um museu, e as decisões
oficiais referentes aos seus privilégios fiscais os situavam no mesmo contexto
dos sofistas, gramáticos e filósofos.18 Todos haviam tido uma educação baseada
nos clássicos antigos, em Homero e nos dramaturgos, em Tucídides, Platão, em
oradores atenienses e em autores menos conhecidos atualmente. Embora Galeno
fosse capaz de participar dessas atividades intelectuais − seus livros continham
descrições de coloquialismos obscuros da comédia ateniense e uma resposta à
pergunta se uma pessoa poderia ser um gramático e um crítico ao mesmo tempo
− ele não era pedante. Desprezava as pessoas que dedicavam o tempo inteiro à
paixão pela etimologia, e tentava seguir uma linha de pensamento equilibrada
entre os que estavam sempre ávidos por novidades e aqueles que não ousavam
dizer uma palavra, a menos que tivesse sido dita há 500 anos por Demóstenes.
Galeno preferia a clareza em vez de hipérboles linguísticas, e escreveu um
tratado, com seis volumes, contra aqueles que criticavam outros autores pelo uso
de solecismos.19 Seu estilo grego confirmava suas argumentações, apesar da
prolixidade e da redundância, em especial de textos originários de uma
apresentação oral. Em Sobre os movimentos problemáticos, por exemplo, os
tópicos se sucedem em uma sequência rápida e, depois, terminam de forma tão
abrupta no capítulo 10, que alguns manuscritos dividem a obra em dois livros
separados.20 Mas seu entusiasmo pelos livros, pois, como vimos, Galeno tinha
uma biblioteca riquíssima, além de ser um autor extremamente prolífico,21
levou-o a expandir o conhecimento da literatura a um nível bem superior ao de
outros autores que tiveram menos sorte do que ele em suas carreiras
profissionais. Por exemplo, nesse livro Galeno escreveu que se um paciente à
procura de um médico fosse informado de que não existia uma recomendação
pessoal no momento, seria recomendável que fizesse perguntas extensas a
possíveis candidatos se conheciam as teorias dos grandes médicos do passado
(um conselho que exigia do paciente um conhecimento tão profundo da literatura
médica importante como o médico).22 Galeno usou esse livro como uma arma
contra seus concorrentes: ele seguia a doutrina hipocrática com mais precisão do
que eles, visto que podia interpretar as palavras do mestre por meio de um
conhecimento exato da linguagem hipocrática. Esse era um argumento que atraía
o mundo intelectual em uma época de intelectuais e ajudou a aumentar o
prestígio de Galeno acima dos insolentes e desprezíveis sapateiros, tintureiros,
marceneiros e coletores de impostos que julgava serem seus competidores.23 Do
mesmo modo, esse textualismo pedante chegou às mãos de médicos menos bem
dotados do que Galeno. Esse conhecimento era essencial, na opinião de Galeno,
para entender a maior autoridade médica de todos os tempos, Hipócrates. Esse
compromisso com a doutrina de Hipócrates lhe foi inspirado por seus
professores, mas não sabemos se algum professor seguira essa tradição com
tanta profundidade como Galeno no processo de autoidentificação com
Hipócrates.24 Galeno discutia ética médica com o Hipócrates prático de
Epidemias e Cartas em mente, elogiando a Grécia e desprezando o ouro persa.25
Ele encontrou provas no Corpus Hippocraticum de que o grande homem
praticara a anatomia (apesar de não ter tido tempo de escrever sobre suas
descobertas), e os comentários de Platão foram usados para demonstrar os
interesses lógicos e filosóficos de Hipócrates. Não só Galeno encontrou provas
no Corpus Hippocraticum para justificar e aprovar suas ações, como também
atribuiu ao seu herói teorias, crenças e práticas que Hipócrates não teria
compartilhado.26 Algumas dessas ideias inspiraram-se em seus professores: a
primazia de A natureza do homem, a teoria dos quatro humores, a importância
do prognóstico e uma abordagem holística ao tratamento individual. Mas Galeno
foi mais além em sua criação da imagem de um Hipócrates infalível. Galeno
realizou essa missão por intermédio de suas obras, mas principalmente por seus
comentários que o ocuparam de uma maneira intermitente por 20 anos ou mais,
de meados da década de 170 até pelo menos o início da década de 190. No total
ele comentou 17 tratados dos quais, segundo sua opinião, Prorrhetic não era
inteiramente de autoria do mestre.27 Seus comentários tinham como objetivo
mostrar aos leitores inteligentes o que Hipócrates quis dizer em seus textos, sem
necessariamente fazer longas discussões sobre a verdade ou inexatidões de cada
passagem.28 Ele alcançou com frequência seu objetivo, ao explicar com clareza,
quase sempre de maneira sucinta, o significado do hipocratismo grego,
vinculando-o às suas experiências clínicas e à de outros médicos e, às vezes,
reconheceu a impossibilidade de dar um sentido a anotações sem contexto. Mas,
inevitavelmente, às vezes suas boas intenções desapareciam em meio às
especulações intelectuais. Os últimos comentários a respeito de Epidemias
discutiram as diversas interpretações e questões sobre autenticidade; algumas
linhas referentes a Hipócrates estenderam-se a discussões a respeito de temas
médicos contemporâneos; e comentaristas que discordavam de Galeno foram
criticados, às vezes em longas passagens. Seus comentários revelam erudição,
porém ocasionalmente desviou-se de seus propósitos educacionais, ao decidir
escrever os comentários. Images

Figura 15.1 Um fragmento do comentário de Galeno sobre o tratado hipocrático
Aforismos escrito no Oriente Próximo (Chipre?) no século XIII ou XIV, e
preservado em um Evangelho árabe. São Petersburgo, Instituto de Estudos
Orientais, C 263. Questões referentes à prática médica boa ou má são, como
previsíveis, discutidas, porque Galeno queria esclarecer passagens obscuras.
Galeno estava convencido do objetivo didático dos textos hipocráticos que
selecionara para comentar, com destaque para Aforismos, que, em sua opinião,
era a súmula de todo o conhecimento hipocrático.29 O pequeno aforismo
exprime de uma maneira sucinta e, ainda mais importante, mostra a verdadeira
essência da doutrina hipocrática, na qual Galeno estava profundamente
envolvido. Porém nem sempre essa essência tem no momento atual ou teve no
passado uma definição clara. O significado das palavras no Corpus era
controvertido, ou não correspondia ao exercício cotidiano da medicina há meio
milênio. Galeno solucionou o primeiro problema com a compilação de listas de
palavras do dia a dia dos escritores de prosa literária e de dramaturgos
contemporâneos a Hipócrates, sobretudo, de escritores de comédias como
Aristófanes, para definir o significado das palavras usadas no dia a dia na época,
porque um dramaturgo cujas piadas não fossem entendidas pelo público seria, na
realidade, um escritor medíocre.30 Ele defendeu a interpretação de seus
professores com uma erudição prolífica e com um tom de desaprovação e
censura que provou, para sua satisfação, que nenhuma outra opinião era
factível.31 Galeno solucionou o segundo problema dividindo o Corpus segundo
os diversos graus de autenticidade.32 Embora tenha citado a maioria dos textos
do Corpus em seu Glossário hipocrático, alguns deles, além de algumas seções
dos textos, não foram escritos por Hipócrates.33 Esses textos haviam sido
escritos por membros de sua família, como Tessalo e Políbio, ou de seus alunos,
a exemplo dos universitários atuais, que nem sempre são cuidadosos ao copiar os
textos dos professores. Outras obras refletiram o espírito hipocrático, mesmo se,
como Prorrhetic e Medicina antiga, abordassem temas diferentes do que Galeno
considerava ser a verdadeira doutrina hipocrática.34 Quanto mais erros Galeno
descobrisse em um tratado, mais provável que não tivesse sido escrito por
Hipócrates e, portanto, seria excluído de seu texto de medicina.35 Assim,
Galeno, como um estudioso e médico, criou uma imagem de um Hipócrates
infalível que, por sua vez, justificava e inspirava Galeno. A identificação da
adoração com o herói e o próprio herói é quase total. Outra característica
importante da formação intelectual de Galeno referiu-se ao seu compromisso
com a filosofia. Como vimos, a inter-relação da medicina e da filosofia
remontava há séculos, e os interesses filosóficos de Galeno encontraram
paralelos contemporâneos no médico cético Sextus o Empirista e no cosmopolita
Heráclito de Rhodiapolis.36 A produção de obras filosóficas de Galeno
estendeu-se por toda a sua vida adulta. Sobre a experiência médica foi resultado
de seus anos de aprendizado em Esmirna; Sobre a minhas próprias opiniões, seu
último livro, foi escrito quase 60 anos depois.37 As obras abrangeram uma
extraordinária série de temas discutidos sob diversos ângulos. Galeno escreveu
sermões moralistas curtos de como se beneficiar com as atitudes dos inimigos ou
de como seria possível evitar um sofrimento excessivo, além de estudos
tecnicamente sofisticados de lógica das proposições.38 Ainda mais importante,
ele tinha a firme convicção de que ninguém poderia ser um bom médico sem um
fundamento filosófico, embora admitisse que alguém seria capaz de ser um
excelente médico sem perceber que também era um filósofo. Como sempre,
Galeno mencionou a autoridade e os precedentes hipocráticos para justificar sua
opinião. O exercício efetivo da medicina exigia um raciocínio lógico para fazer
um diagnóstico, além de princípios éticos na relação com os pacientes, mesmo
que não fossem princípios perceptíveis durante o tratamento.39 Seus estudos,
quando jovem em Pérgamo com filósofos das quatro principais doutrinas,
estoicos, platônicos e epicuristas, não só lhe deram um conhecimento detalhado
das divergências entre essas doutrinas como também causaram uma profunda
incerteza epistemológica, da qual se recuperou com a verdade eterna da
matemática e da geometria.40 Nesse sentido, até o final de sua longa vida,
Galeno teve consciência da futilidade de preceitos supostamente incontestáveis −
o mundo eterno, a natureza da divindade, a existência de outros mundos além do
nosso −, porque as provas apresentadas pelas diversas correntes filosóficas não
eram nem mesmo plausíveis, além de incertas.41 Galeno dedicou-se então ao
que chamou de “demonstração científica”, a aplicação do pensamento lógico e
da prova comprovatória. Apenas alguns fragmentos dispersos de seu tratado
mais extenso sobre esse tema, Sobre a demonstração, preservaram-se, e só temos
os títulos de muitos textos mais curtos com uma crítica a diversos dogmas das
escolas filosóficas, mas Introdução lógica e Sobre as ambiguidades na fala são
suficientes para revelar seu conhecimento notável nessa área.42 Os árabes lhe
atribuíram o mérito da descoberta da quarta premissa do silogismo, embora não
se possa afirmar que tenha sido uma evolução do estudo da lógica anterior ou um
novo desenvolvimento.43 Sua filosofia era eclética, uma vez que considerava
um sinal de fraqueza adotar teorias inequívocas de qualquer doutrina (como a
cristã e a judaica, cujo apego rígido aos textos sagrados e a crença em milagres
era de uma ingenuidade extraordinária), e incentivou todos os ouvintes a terem
um pensamento independente.44 Sua metodologia era simples: primeiro, era
preciso observar os “fenômenos óbvios” ou assuntos em que houvesse consenso
e, em seguida, as conclusões seriam tiradas com um raciocínio lógico a partir da
observação desses fenômenos e temas. Assim, ao começar com uma definição de
termos de consenso geral, seria possível fazer com que um adversário chegasse a
uma conclusão “firme”, “certa” e “precisa”, em especial, se seguisse o método
de Galeno da sequência de etapas lógicas e rigorosas. A inconsistência dessa
abordagem, no entanto, era resultado da natureza dos pressupostos iniciais, que
com frequência não eram óbvios ou de consenso universal, como pensara
Galeno.45 O ecletismo de Galeno refletia-se em sua visão do universo e do
microcosmo do corpo humano. Galeno inspirara-se muito em Aristóteles para
formular seus conceitos, especialmente quanto à sua teoria dos elementos,
qualidades e misturas no contexto do cosmos organizado.46 Sua opinião
referente às faculdades, à capacidade do corpo de realizar funções normais, cada
uma delas originária da combinação específica de elementos e qualidades no
nível mais básico (uma antecipação interessante das noções atuais do DNA e da
estrutura das proteínas), só podia ser compreendida no contexto da física
aristotélica. Mas sua linguagem e conhecimento do corpo sofreram uma
influência profunda do platonismo, em especial do Timeu, que, segundo Galeno,
continha doutrinas médicas análogas às de seu herói da medicina, Hipócrates.
Ele rejeitava a teoria da unidade da alma de Aristóteles e dos estoicos, por
acreditar na alma tripartida de Platão, mas era ainda mais crítico com os que
negavam a existência da alma (embora se recusasse a aderir à ideia de sua
natureza) ou quem se recusasse a admitir que o funcionamento do corpo exercia
um efeito direto no comportamento psíquico.47 Do mesmo modo, acreditava
com convicção na existência de um criador divino (apesar de não ter a pretensão
de conhecer a essência divina) e na organização intencional do mundo natural, e
discutia a teleologia com argumentos que, sem dúvida, eram superiores aos de
Aristóteles.48 Sua filosofia e a medicina interagiram ao longo de sua vida. O
início dos livros de Método de curar é um exercício de lógica aplicada aos
conceitos básicos da medicina, e os procedimentos de seus diagnósticos são
modelos de raciocínio dedutivo e minucioso.49 Por sua vez, suas descobertas
anatômicas proporcionaram um sólido fundamento, tanto para a teoria do criador
premeditado de Aristóteles exposta em Sobre o uso das partes do corpo quanto
para o sistema corporal tripartido de Platão descrito em Sobre as opiniões de
Hipócrates e Platão. Os livros de Galeno sobre o princípio da causalidade, um
tema favorito entre os estoicos e os aristotélicos, fizeram contribuições
importantes para o discurso filosófico e como guias práticos para o médico com
bom senso e equilíbrio.50 Suas discussões referentes ao papel da experiência no
contexto da medicina deram uma importância maior às reflexões sobre a
natureza da ciência como um todo na análise de um estudioso moderno.51 Em
outro campo da filosofia antiga, suas ideias em relação à ética e à psicologia
estimularam e contribuíram para sua experiência e conhecimento de casos de
distúrbios mentais, raiva e sofrimento e até mesmo de casos de perversidade
infantil, porque algumas crianças “nasciam perversas”.52 O comportamento dos
animais também contribuiu para a compreensão do comportamento do ser
humano. A tentativa de separar sua filosofia da medicina é impossível, mesmo
suas atividades cotidianas. Não só Galeno mantinha contato com filósofos, como
Arria, a filósofa platônica, e se beneficiava com essa troca de ideias, como os
recebia em suas demonstrações anatômicas, na cabeceira dos doentes e escrevia
tratados a pedido deles.53 Quaisquer que tenham sido os erros dos seus
argumentos filosóficos durante sua longa vida − e existem muitos exemplos de
inconsistência, evasivas e intimidações arrogantes −, Galeno mostrou de uma
maneira extraordinária a importância da reflexão do médico em relação ao seu
trabalho, seu paciente e seu universo moral. Porém não foi a filosofia que
conquistou o primeiro grande reconhecimento em seu retorno a Pérgamo em
157, e sim o conhecimento da cirurgia e, é possível também suspeitar, as
relações de sua família com cidadãos ricos de Pérgamo e da província da Ásia.54
Galeno foi contratado pelo alto sacerdote para ser o médico oficial de um grupo
de gladiadores, que lutava na arena nos principais festivais.55 As lutas de
gladiadores era uma forma de entretenimento muito popular entre os gregos no
Império Romano e Pérgamo tinha um magnífico anfiteatro. Mas os gladiadores,
sobretudo, os bons lutadores eram caros para manter, porque os responsáveis
pela organização dos grandes festivais não podiam mais confiar em escravos
capturados e prisioneiros para aumentar o número de gladiadores.56 Galeno
tinha a obrigação de manter os gladiadores vivos, não só logo depois do combate
na arena. Ele cuidava da dieta, limpava e costurava seus ferimentos,
principalmente nas coxas, nos braços e nas nádegas (que sangravam muito, mas
não necessariamente demoravam a curar), e supervisionava a saúde deles em
geral.57 Segundo Galeno, sob sua supervisão só dois gladiadores morreram no
primeiro período em que exerceu o cargo de médico, comparado com 16 que
haviam morrido sob os cuidados de seu predecessor e que fora recontratado pelo
novo alto sacerdote sete meses e meio depois, e por seus três sucessores.58 Ele
também tratou de pacientes em Pérgamo, porém não temos detalhes precisos
dessa atividade. No entanto, Galeno partiu no verão de 162 para Roma, com sua
reputação já consolidada, embora acreditasse que ainda não aprendera todos os
métodos dos médicos na região. Não se sabe se foi direto para Roma ou, menos
provável, aproveitou a oportunidade para visitar fontes interessantes de remédios
raros.59 Embora fosse inevitável que um homem tão talentoso, rico e ambicioso
quisesse fazer carreira no centro do império, existe um indício de um motivo
mais urgente para ele se mudar de Pérgamo. A conclusão de Galeno de que o
final de uma stasis em Pérgamo facilitaria o retorno à cidade natal em 165 ou
166 sugere que ele, como membro da classe governante em Pérgamo, fizera
oposição aos conflitos políticos locais, que afetaram até mesmo as cidades mais
prósperas da Ásia Menor.60 Qualquer que tenha sido a razão de sua partida,
assim que chegou a Roma Galeno começou a trabalhar para conquistar uma
reputação na cidade, com demonstrações públicas de anatomia e uma disputa
declarada com médicos importantes de Roma. Mas é importante mencionar que
seu primeiro paciente, seu antigo professor de filosofia Eudemus, acreditava que
Galeno viera para Roma com a intenção de conquistar sua reputação como
filósofo, e não como médico. A cura de Eudemus, no inverno de 162-163,
mostrou que Galeno não era um forasteiro sem amigos em uma Roma hostil.61
Antigos conhecidos como Epigenes e Teuthras haviam chegado a Roma antes
dele, e suas relações com Eudemus resultaram em um contato com senadores
importantes e membros da família imperial. Cônsules como Sergius Paullus e
Flavius Boethus pediram-lhe que escrevesse seus debates ou os patrocinasse, o
tio e o genro do imperador assistiam às suas demonstrações de anatomia em
público, mas, depois que a hostilidade a Galeno encerrou essas atividades,
começou a exercê-las em locais privados.62 Galeno dedicou um pequeno tratado
sobre dieta hipocrática ao prefeito da cidade, C. Aufidius Victorinus, enquanto o
rico e respeitável L. Martius, curado de melancolia por Galeno, declarou que
Galeno falava como um oráculo “de um trípode dourado”.63 Portanto, não
surpreende que corressem boatos sobre a possível nomeação de Galeno como
médico do imperador, ou que outros médicos menos talentosos e com menos
sorte, mas não menos ambiciosos tivessem raiva do sucesso de Galeno e da
maneira inescrupulosa e provocativa que proclamava sua superioridade. Por sua
vez, Galeno dizia ser uma vítima e não um vilão, constantemente atacado por
opositores que queriam obter vantagem com a bajulação e alcovitando desejos
indecentes dos ricos. Ele traçou um paralelo entre sua situação e a do grande
Hipócrates Quintus, expulso de Roma por concorrentes hostis, e, ainda mais
terrível, a história de um jovem provinciano assassinado por causa de seus
talentos. Em razão dessa hostilidade incessante, Galeno decidiu partir em
segredo no verão de 166 para Campânia, na Sicília, e de lá seguiu para
Pérgamo.64 No final da vida, ele deu outro motivo para sua fuga repentina, o
desejo de evitar a peste (provavelmente varíola) em Roma. Esse motivo, apesar
de prudente, poderia ser julgado como um ato de covardia ou ainda uma atitude
pior por parte de um médico. Mas é possível que Galeno tenha se enganado,
porque a peste Antonina trazida da Pérsia pelo retorno do exército do imperador
Lúcio Vero só chegou a Roma muitos meses depois da partida de Galeno. De
qualquer modo, na viagem de retorno Galeno sem dúvida passaria por regiões já
contaminadas pela epidemia, sem esperança de cura para o ser humano.65 Não
se sabe o que Galeno fez assim que chegou à sua cidade natal. Segundo ele,
fizera “coisas triviais”, talvez tivesse escrito ou cuidado dos seus pacientes, ou
tivesse viajado para a Lícia ou Chipre à procura de substâncias minerais raras.66
No final de 168 chamaram-no para tratar da saúde dos imperadores Marco
Aurélio e Lúcio Vero no norte da Itália, quando se preparavam para partir em
campanha contra as tribos germânicas, que tinham atravessado a região central
do Danúbio e invadido o império. Logo após sua chegada os imperadores
partiram abruptamente com medo da peste. Poucos dias depois Vero morreu de
repente e Marco Aurélio e sua comitiva voltaram a Roma para assistir ao funeral
de Estado.67 Galeno não os acompanhou, e só depois de muitos meses o
imperador e parte do exército chegaram a Roma.68 Como um dos médicos da
corte, Galeno deveria acompanhar Marco Aurélio quando iniciou uma nova
campanha nesse mesmo ano, mas, pela segunda vez em sua vida, a carreira de
Galeno mudou por intervenção divina. Seu “deus ancestral”, Asclépio, apareceu
e proibiu-o de partir. O piedoso Marco Aurélio não teve escolha, a não ser
concordar.69 O pouco corajoso Galeno então recebeu a incumbência de cuidar
do herdeiro presumido do trono, o jovem Cômodo. Não foi uma tarefa fácil,
porque o príncipe e sua comitiva passeavam pelos palácios na Itália e quando o
jovem adoeceu, revelou uma petulância e uma teimosia que se refletiriam uma
década ou mais depois, como o único imperador.70 A partir desse ponto, a
cronologia dos detalhes biográficos fica ainda mais incerta. A vida de Galeno
concentrou-se na corte e em Roma, em escrever e cuidar dos inúmeros pacientes,
pobres e ricos, escravos e libertos, de pessoas assustadas com a ideia de serem
assassinadas por Cômodo, a atletas feridos em treinos de boxe.71 Galeno
afirmava que nunca tinha cobrado honorários de pacientes, porém isso não
impedia que aceitasse presentes caros de pacientes agradecidos por seus
cuidados, e que nunca recebeu pagamento de seus alunos, como Glaucon e
Epigenes, que o acompanhavam à cabeceira dos doentes junto com amigos e
colegas.72 Não se sabe quantos alunos ele teve e quem eram esses alunos, pelo
fato de dirigir seus comentários e dedicar os livros aos “amantes da medicina”,
assim como para médicos contemporâneos. É irônico que o único homem que
afirmou ter estudado com Galeno fosse um charlatão com talento para conluios.
E Galeno tinha raiva dele tanto por sua presunção como pelo charlatanismo.73
Exceto por uma visita a Pérgamo na década de 190, de duração incerta, Galeno
viveu em Roma ou nos arredores como um dos médicos da corte pelo menos na
primeira década do século III.74 Mas é quase impossível escrever sua biografia
durante esses anos, porque Galeno só se referia ocasionalmente a
acontecimentos mais importantes. Seu elogio à coragem dos escravos de Sextux
Tigidius Perennis, ao serem torturados para revelar detalhes da conspiração
contra o imperador Cômodo em 185, só veio a público após a morte de Cômodo
no final de 192.75 Esse também foi um período difícil para Galeno. Seus
protetores e pacientes desapareceram durante o que chamou do pior reino no
registro da história e, por isso, não surpreende que tenha se afastado de Roma
para um aparente descanso em sua casa na Campânia. O livro Evitando o
sofrimento é quase um grito audível de alívio depois do assassinato do tirano.76
Pronunciamentos públicos sobre o reino de Pestina, que, infelizmente, não se
preservou, sugeriu que ele permanecesse em Roma durante os acontecimentos
turbulentos de 192-193 e aceitou a reivindicação de Lúcio Sétimo Severo de ter
vingado o imperador assassinado Pertinax, e de ter restaurado um governo justo
e equânime.77 A última data mencionada em um dos tratados preservados é uma
referência em Sobre o Teríaco para Piso de um acidente que aconteceu durante
os Jogos Seculares em 204.78 Mas poucos casos médicos descritos em suas
últimas obras têm uma data mesmo aproximada e, além disso, à medida que
Galeno envelhecia, o limite espacial e temporal entre o que havia lido e o que
fizera ficou nebuloso.79 Suas inúmeras referências cruzadas proporcionam uma
cronologia em linhas gerais de seus textos, indicando, por exemplo, o interesse
renovado pela farmacologia na década de 190, mas talvez isso seja resultado dos
seus acréscimos e revisões e, também, da coerência que afirmava ter. Com a
exceção do comentário sobre as etapas da formação dos órgãos em um feto,
Galeno afirmou que nunca mudara de opinião em relação a qualquer doutrina
importante após a adolescência e, portanto, uma abordagem para entender
Galeno e para datar seus tratados é uma tarefa frustrante.80 As mesmas ideias e,
com frequência, as mesmas palavras, foram citadas com anos de diferença.
Galeno decidiu escrever os últimos livros do volumoso Método de cura 20 anos
ou mais depois que desistira do projeto, em seguida à morte da pessoa a quem
dedicaria o livro, mas existe uma coerência até mesmo no estilo entre as duas
partes.81 A data da morte de Galeno é controvertida. O verbete sucinto no léxico
bizantino, Suda, diz que morreu aos 70 anos, ou seja, em 199-200, mas uma
forte tradição em autores árabes, possivelmente influenciada por cronologistas
bizantinos, afirma que morreu com 87 anos, isto é, em 216-217, e que passou 17
anos estudando e 70 anos exercendo a medicina. Embora as circunstâncias de
sua morte segundo esses autores, em Perama no Egito, quando fazia uma
peregrinação a Jerusalém, sejam fantasiosas, a origem da data tem fundamentos,
tanto na coleção galênica quanto em obras externas.82 Os biógrafos árabes
influenciados por um comentário de Alexandre (de Alexandre Afrodisias?)
dizem que Galeno passou 80 anos de sua vida até concluir que era ignorante,
uma referência evidente ao segundo capítulo de Sobre minhas próprias opiniões,
no qual Galeno admite sua incapacidade de chegar a qualquer conclusão sobre os
temas básicos conflitantes das escolas filosóficas.83 Além disso, é difícil
imaginar que os inúmeros tratados, alguns deles com vários volumes, escritos
por Galeno após a morte de Cômodo, tenham sido concluídos em um período de,
no máximo oito anos, mesmo para um autor tão prolífico como Galeno. O
problema de certa forma ficou mais fácil quando se evidenciou que, exceto pela
data de morte citada no Suda, não havia argumentos sólidos para duvidar da
autenticidade de Sobre o Teríaco para Piso, um livro que não poderia ter sido
escrito antes de 204 ou talvez não antes de 207.84 A linguagem, o estilo e o
conteúdo indicam um autor cuja carreira, idade e atitudes refletem as
características de Galeno. Portanto, é extremamente tentador estender o período
de vida de Galeno até o século III. É muito fácil avaliar a carreira de Galeno com
o pressuposto da imagem que ele projetava de si mesmo ou pelos cumprimentos
que recebia, conciliando-os com suas obras. Seu comentário de que o imperador
Marco Aurélio o elogiara por ser um verdadeiro cavaleiro, “o primeiro entre os
médicos e o único filósofo entre os filósofos”, é discutível pelo fato de não
existir qualquer referência a Galeno no livro Meditações de Marco Aurélio.85
Do mesmo modo, sua história do encontro com Herodes Atticus é questionável
em razão do silêncio de Aulus Gellius e de Filostrato, escritores que conheciam
bem Herodes e seu círculo de amigos.86 Mesmo alguns detalhes autobiográficos
suscitam dúvidas. As histórias de casos eram apresentadas por Galeno com
sutileza e um raciocínio ardiloso, com o objetivo de mostrar sua competência e
os fracassos dos outros e, às vezes, para conectar suas ações às dos grandes
nomes do passado. É possível que as diferenças entre Galeno e seus colegas
fossem enfatizadas nessas histórias de casos para torná-las mais interessantes e a
fim de mostrar a imagem filantrópica, filosófica e a competência médica
infalível de Galeno. Ele raramente errava ou quase nunca cometia erros: quando
o paciente Theagenes o Cínico morreu, Galeno disse que sua morte fora
resultado de sua recusa obstinada de seguir seu conselho ou de conhecer as
circunstâncias que levaram Galeno a modificar sua prescrição médica.87 No
entanto, isso não significa que a procura do Galeno verdadeiro deva ser
abandonada diante da perspectiva de um esforço inútil, pelo fato de existirem no
mínimo dois fatores que podem ajudar a examinar seu autorretrato. Primeiro, as
evidências proporcionadas pelas obras de Galeno são tão abundantes que um
leitor atento que leia nas entrelinhas, terá uma visão diferente dos
acontecimentos. Como vimos, os metodistas não eram tão ingênuos ou
incompetentes como Galeno os acusava, e que outros médicos precederam
Galeno em sua devoção a Hipócrates e a paixão pela anatomia. Em segundo
lugar, as inscrições e as obras de autores gregos como Plutarco ou Luciano
proporcionaram uma inter-relação de circunstâncias na qual Galeno iniciou sua
carreira. Esse universo específico indicou sem sombra de dúvida que sua
ascensão profissional foi semelhante à de qualquer médico da corte imperial,
como a de seu colega e concorrente, o metodista Statilius Attalus. Esses autores
mostraram também que outros jovens de famílias ricas da Ásia Menor estudaram
em Alexandria e exerceram um papel proeminente em suas comunidades, além
de criarem vínculos com a aristocracia provinciana e até mesmo senatorial.88
Apesar de sua longa estadia em Roma, o mundo de Galeno, assim como o desses
médicos, continuou a ser o da Grécia oriental. Os autores favoritos de Galeno
eram os gregos clássicos e, embora soubesse latim, sua confiança nos escritores
latinos era na melhor das hipóteses mínima.89 Galeno era essencialmente grego
e não romano e, como revelado em Evitando o sofrimento, ele manteve contato
por muitos anos com amigos em Pérgamo.90 Com uma única exceção, as
expressões “conosco”, “em nosso passado”, “no lar” e frases semelhantes
referem-se aos amigos de Pérgamo e à Grécia clássica, e não à Itália e à cidade
de Roma, onde viveu a maior parte de sua vida.91 Assim como muitas pessoas
no exílio, Galeno referia-se com nostalgia às paisagens, aos sons e aos cheiros de
seu lar: ao gosto adocicado do mel colhido em uma colina pouco distante da
estrada costeira, ao barulho dos caçadores quando partiam para caçar em uma
manhã fria de inverno ou o gosto do vinho local da colina de Tmolus, muito
melhor do que o vinho falerno que bebeu pela primeira vez na Itália.92 Só no
final da vida Galeno se sentiu mais como um romano, e elogiou as obras
públicas feitas pelos “mais notáveis imperadores”, Severo e Caracalla, que
reinaram juntos de 198 a 211, como os aquedutos de Roma e o programa de
construção de estradas de Trajano na Itália.93 Como previsível, o último
exemplo é um paralelo ao que acreditava estar fazendo na medicina, recuperando
a grandeza do passado e realinhando-a para o maior benefício da humanidade.
Esses detalhes pessoais permitem criar uma imagem íntima de Galeno, que só
pode ser comparada à de Cícero ou à de Sêneca entre as figuras extraordinárias
da Antiguidade clássica. Combativo, obstinado, presunçoso, pedante, prolífico,
até mesmo inescrupuloso, todos esses adjetivos aplicam-se a ele, mas havia
também momentos em que era pacifista, tinha uma mente aberta e prática, com
capacidade de síntese e generosidade. Sua filosofia apoiava-se no mundo real e
em fatos naturais; o uso de evidência empírica com frequência deu oportunidade
para muitas acusações de teorizações vazias. No entanto, a quantidade de obras
preservadas e o vigor de seus textos estimulavam o público a segui-lo em suas
conclusões e, de uma maneira mais sutil, de interpretar o que dizia como
característico dos antigos médicos. O historiador precisa ser mais cauteloso,
porque a carreira de Galeno, do berço ao túmulo, foi muito diferente da maioria
dos médicos, dos quais poucos foram para Roma e ainda menos se tornaram
médicos da corte imperial, como ele.94 A extensão do sucesso de Galeno é
inegável, mesmo que seu autorretrato de um provinciano humilde bem-sucedido
na metrópole seja exagerado; afinal, ele começou sua ascensão profissional e
social na escada da prosperidade muitos degraus acima da maioria dos
concorrentes. Mas as inúmeras referências aos pacientes importantes, como a
esposa do cônsul Boethus ou Diodorus, o gramático que desmaiou quando
ensinava no fórum, não são fantasiosas, mesmo que Galeno tenha se referido
mais a eles por causa do prestígio conquistado por tê-los tratado, e não em razão
da complexidade ou do interesse médico de seus casos.95 Os numerosos
pacientes mencionados em suas obras mostram que era um médico incansável no
exercício da medicina e que, às vezes, também cuidava de doentes por
correspondência.96 Pacientes ricos com doenças oculares escreviam pedindo-lhe
conselho da Espanha, da Gália, da Ásia Menor, da Trácia e de outros lugares, e
depois de receber o diagnóstico e a receita do “remédio amargo sagrado”,
recomendavam Galeno para seus amigos.97 As provas do respeito que outras
pessoas lhe manifestaram no final da vida eram bem diferentes. Ateneu de
Naucratis o incluiu entre os “sofistas em um jantar”, como um homem que
escrevera mais obras sobre filosofia e medicina do que qualquer outro antes dele,
embora seja provável que as opiniões referentes a vinhos e pães atribuídas a
Galeno tenham sido inventadas por Ateneu, em vez de serem citações de textos
de Galeno que desapareceram.98 O filósofo aristotélico Alexandre de Afrodisias
escreveu pelo menos dois tratados criticando-o e, apesar de julgá-lo um filósofo
medíocre, citou Galeno junto com Platão e Aristóteles como exemplos do que
significava ser “um homem de reputação”.99 Em torno de 210, um grupo de
cristãos em Roma liderado por Teodoro, o sapateiro, respeitou tanto as críticas
de Galeno à fé cristã como exemplar no aspecto ético, mas ingênua do ponto de
vista filosófico, que esses cristãos modificaram suas crenças de tal forma que
mais tarde foram chamados de hereges.100 Outro teólogo, o grande Orígenes,
que escreveu por volta de 240, mencionou que Galeno era um anatomista com
capacidade de explicar com precisão por que a Providência criara cada parte do
corpo com um objetivo específico.101 A disseminação geográfica das obras de
Galeno é um fenômeno notável. Uma geração depois de sua morte o tratado
Sobre as opiniões de Hipócrates e Platão foi copiado no Alto Egito e Gargilius
Martialis, um oficial do exército aposentado que morreu em 260 em Auzia (atual
Marrocos), citou-o como uma fonte conclusiva em 13 capítulos de seu pequeno
manual em latim, Medicina a partir de vegetais e frutos.102 Pouquíssimos
autores antigos alcançaram um sucesso tão rápido em tantos temas distintos e em
regiões tão diferentes. Sem dúvida, Galeno não imaginou ou exagerou o impacto
que causaria em seus contemporâneos.

16 A Medicina Galênica As imposições de Galeno quanto à maneira correta de


praticar a medicina eram onipresentes. Essas ordens precisas e formais eram
descritas em poucas linhas ou em livros inteiros, e dirigiam-se a pacientes e
médicos com mais maturidade e experiência, assim como a médicos que
iniciavam suas carreiras. A recomendação de Galeno, de que seguissem seu
conselho e exemplo como um médico hipocrático, era constantemente enfatizada
por exemplos de suas intervenções bem-sucedidas ou fracassos de outros
médicos. Ele insistia que não bastava ter lido os livros certos ou ter um
conhecimento teórico da medicina; era preciso também ter um conhecimento
prático que, por sua vez, se fortalecia com um embasamento filosófico. Na
verdade, suas teorias às vezes aproximavam-se mais da visão dos empiristas,
com suas informações práticas, do que de estudiosos que formulavam teorias
instigantes do ponto de vista intelectual, mas que se baseavam em pouco ou
nenhum conhecimento dos fatos cotidianos ou práticos da medicina.1 Galeno
esforçou-se para criar uma arte unificada da medicina, na qual o tratamento
eficaz de um paciente dependia de uma profunda compreensão do
funcionamento do corpo humano aliada a um conhecimento amplo de diversos
tipos de terapias. Embora soubesse que existiam médicos especializados em
diversos campos da medicina, sobretudo em grandes cidades como Roma e
Éfeso, os médicos para quem escrevia eram generalistas e, portanto, precisavam
conhecer a arte da medicina, se possível, em todas as suas especialidades.2 A
medicina de Galeno baseava-se na suprema importância da anatomia. Uma
incisão mal executada poderia com facilidade provocar a morte do paciente, e
um equívoco em relação aos caminhos dos nervos poderia atrasar ou frustrar
uma cura.3 Mas as considerações sobre prudência na medicina e observações de
utilidade prática eram apenas parte da justificativa da importância da anatomia.
Em sua opinião, só por meio da dissecção um médico teria um conhecimento
adequado da organização e do funcionamento do corpo, tanto na doença como na
saúde. A partir desse pressuposto, Galeno escreveu diversos tratados sobre temas
anatômicos, desde pequenos textos a respeito de ossos, nervos, veias, artérias e
músculos a um grande manual de dissecção, Procedimentos anatômicos.4 Ele
repetiu suas conclusões em dois outros grandes tratados, com o objetivo de
mostrar o valor da anatomia para filósofos interessados no corpo humano. Em
Sobre o uso das partes ele discutiu suas descobertas em termos aristotélicos,
enquanto em Sobre as opiniões de Hipócrates e Platão defendeu as ideias de
Platão referentes à fisiologia e à psicologia opostas às ideias dos estoicos.5
Assim como nesse tratado e em discussões a respeito de Timeu, Galeno disse
que Platão conhecia muito bem a teoria médica contemporânea, mas poucos
estudiosos atuais concordariam com sua opinião de que a anatomia teleológica
de Platão baseava-se nos ensinamentos de Hipócrates.6 Porém nenhum
conhecimento adquirido em livros ou uma noção teórica substituía a dissecção
para que um médico assimilasse todos os detalhes do corpo humano.7 Um bom
médico não poderia prescindir da prática constante da medicina. O fracasso de
um “excelente empirista” em salvar a vida de um colegial, que fora ferido no
braço por um buril, foi transformado por Galeno em uma advertência que, apesar
de toda a literatura disponível, só com experiências anatômicas realizadas
diversas vezes, um médico poderia conhecer os detalhes do sistema nervoso do
corpo humano.8 Galeno explicou minuciosamente como fazer uma dissecção em
Procedimentos anatômicos e em mais dois tratados, cuja versão em grego não se
preservou, mas na versão em árabe Galeno descreveu detalhes práticos de
dissecção e vivissecção.9 Galeno sabia que era impossível realizar dissecações
sistemáticas com seres humanos; o exame no esqueleto de um escravo ou uma
observação anatômica superficial em um escravo era o máximo que havia sido
feito nas melhores escolas de medicina.10 No entanto, isso não impedia que o
médico aproveitasse qualquer oportunidade que surgisse – um cadáver exposto
depois de o túmulo ter sido aberto após uma enchente, um criminoso pendurado
na forca, ou alemães mortos espalhados no campo de batalha após uma das
vitórias de Marco Aurélio.11 Um médico inteligente aproveitaria essa chance
para adquirir conhecimento e experiência da organização interna do corpo
humano. Embora fosse possível fazer vivissecções em animais, vivos ou mortos,
Galeno tinha plena consciência de que não se deveria aplicar a informação ou a
conclusão de experimentos em animais em seres humanos e, com frequência,
aconselhava sua plateia a não tirar conclusões precipitadas baseadas apenas em
vivissecções de animais. Entretanto, apesar desse cuidado, Galeno cometeu
erros.12 Em sua visão anatômica, o útero de um ser humano tinha cotilédones
como o de um ruminante; a cartilagem da tireoide parecia com a de um porco; e
sua crença de que o rim esquerdo era mais baixo do que o direito aplicava-se a
macacos, mas não a seres humanos.13 Porém, a vivissecção de animais também
tinha suas vantagens, pelo fato de permitir que o médico fizesse experimentos
em animais vivos e mortos. A súbita interrupção dos guinchos estridentes de um
porco quando a passagem livre dos nervos ao longo da medula espinhal era
interrompida por uma ligadura ou por um corte, sempre tinha um efeito
impressionante na plateia. Embora também escolhesse carneiros e cabras para
fazer vivissecções em público, Galeno preferia macacos, como o macaco-de-
gibraltar, porque parecia mais com o homem.14 Porém, a expressão de dor e
sofrimento no rosto de um macaco durante a vivissecção era insuportável e, por
esse motivo, carneiros, porcos e cabras também eram usados nos
experimentos.15 Galeno aproveitava todas as oportunidades que surgissem
diante dele para fazer experiências anatômicas. Em uma ocasião, conseguiu que
o cozinheiro do imperador lhe desse o coração de um elefante e, curioso,
começou a dissecá-lo para ver se havia um osso no meio. Se encontrasse uma
estrutura óssea no coração, seria possível concluir que esses animais gigantescos
tinham um osso no coração. Mas ele não sabia que nos elefantes idosos os
triângulos fibrosos, que separavam a aorta dos ventrículos ossificavam com
frequência e davam a impressão de ser um osso.16 Suas dissecções diárias,
algumas no início em público, não só lhe deram a destreza necessária para fazer
intervenções cirúrgicas como também permitiram ampliar mais sua prática e
conhecimento em comparação com os alexandrinos e seus predecessores
imediatos.17 Suas descrições dos ossos do corpo seriam aceitas hoje, e os erros
nos relatos sobre o coração e o sistema vascular foram muito mais resultado de
experimentos com animais e de uma interpretação equivocada do que erros de
um dissecador incompetente. Seus estudos sobre nervos e músculos são de uma
precisão notável, em especial porque foram feitos sem os recursos modernos e,
às vezes, envolviam estruturas difíceis de ver a olho nu. Galeno fez descobertas
importantes relativas aos dutos das glândulas sublinguais, ao tendão de Aquiles
(apesar da descrição mais parecida com a do tendão de macacos), e dos
músculos do rosto. Ele não opunha resistência a mudar de opinião se lhe
apresentassem uma nova evidência anatômica. Os músculos que flexionavam a
articulação dos dedos das mãos e dos pés, o musculi interossei, descobertos
depois de muitos anos de pesquisa, foram descritos em minúcias nos livros
Sobre a anatomia dos músculos, Sobre o uso das partes e Procedimentos
anatômicos, escritos a partir de meados da década de 160.18 Suas descrições dos
nervos são fascinantes. Em uma série complexa e difícil de experimentos ele
traçou o caminho dos nervos que desciam do cérebro ao longo da medula
espinhal e, nesse processo, identificou o nervo laríngeo recorrente e estabeleceu
a relação entre os músculos intercostais e os nervos responsáveis pela emissão de
voz.19 Essa lista de descobertas é extraordinária, comparável em extensão, até o
ponto que conhecemos, às descobertas anteriores de Herófilo e Erasístrato.20
Galeno usou seus experimentos anatômicos não só para ampliar seu
conhecimento do corpo humano, como também em uma tentativa de encontrar
soluções para problemas apresentados por seus predecessores.21 Assim, por
exemplo, refutou as teorias de Asclepíades referentes às funções da bexiga e da
uretra por meio de uma série de dissecções, que provaram que a urina fluía em
uma única direção.22 Essa tradição de demonstração anatômica que remontava
ao período helenístico não se originara em Hipócrates.23 Galeno repetiu os
experimentos de Erasístrato acerca do fluxo sanguíneo, com a inserção de uma
cânula em uma artéria para verificar se a pulsação continuava além da cânula e o
que aconteceria se o médico fizesse uma ligadura na artéria.24 Galeno dissecou
o coração e os pulmões para examinar os batimentos do coração e das artérias,
assim como para pesquisar o que aconteceria se o coração fosse contraído.25
Sua conclusão incorreta, de que os batimentos do pulso eram um movimento que
se produzia dentro das camadas das artérias e não o resultado do sangue
bombeado pelo coração para as artérias, é um erro justificável, em razão das
dificuldades de realizar esse experimento sem os recursos da tecnologia
moderna.26 Essas dissecções confirmaram a teoria de Galeno de que o corpo
consistia anatomicamente em três sistemas separados. Segundo Galeno, esses
sistemas poderiam se desenvolver ao mesmo tempo nas fases iniciais do
crescimento do feto ou, talvez o coração ou, como concluiu no final da vida, o
fígado seria o primeiro órgão a se formar, mas Galeno não chegou a nenhuma
conclusão, apesar das dissecações minuciosas feitas de acordo com as
orientações pioneiras de Aristóteles.27 Mas Galeno rejeitava o conceito
aristotélico e estoico da primazia do coração como o centro do poder dominante
do corpo e insistia que os resultados das dissecações comprovavam que Platão
tinha razão ao afirmar que o fígado, o coração e o cérebro eram a origem dos três
sistemas paralelos, cada qual com uma função diferente.28 O fígado era
responsável pela nutrição. O fígado “digeria” ou “cozinhava” o alimento
recebido do estômago e dos intestinos e o transformava em sangue nutritivo que,
em seguida, era transportado pelas veias para fornecer o nutriente essencial, que
fluía pelo corpo inteiro.29 Todos os seres vivos, tanto plantas quanto animais,
recebiam do Criador quatro “faculdades naturais” de atração, assimilação,
excreção e crescimento. Como consequência dessa organização básica, cada
parte do corpo tinha a capacidade de absorver esse sangue nutritivo, de assimilar
tudo o que fosse preciso para crescer e funcionar, e de expelir resíduos
potencialmente nocivos, que não eram mais necessários.30 O corpo era um
universo vivo, que reagia às mudanças e procurava sem cessar meios para existir
e exercer suas funções vitais. A abordagem vitalista de Galeno opunha-se ao
conceito mecanicista do corpo proposto por Erasístrato e Asclepíades, no qual,
por exemplo, a excreção de resíduos pelo rim e pela bexiga não exigia uma
participação ativa dos órgãos, e sim a obediência às leis da física.31 O sangue
venoso nutritivo produzido pela carne do fígado fluía para as diversas partes do
corpo, de acordo com suas necessidades.32 O sangue venoso, depois que
alcançava o lado direito do coração, atravessava as perfurações do septo
interventricular à esquerda, onde se reunia ao espírito vital, o pneuma, expelido
pelos pulmões através das veias pulmonares. Galeno sabia que a artéria
pulmonar transportava sangue do coração para os pulmões e que determinada
quantidade desse sangue voltava para a veia pulmonar, mas considerava esse
meio de circulação de sangue secundário ao caminho do septo.33 Sua crença
nessa teoria fortaleceu-se com a descoberta de que o feto tinha uma conexão
direta com os dois lados do coração, por meio dos ductus arteriosus e dos
foramen ovale, que se fechavam no nascimento, e por sua observação correta dos
sulcos no septo. Teria sido simples para Galeno concluir que uma conexão
substituía a outra depois do nascimento, apesar de nunca ter mencionado essa
hipótese.34 Do mesmo modo, embora aceitasse a teoria de Erasístrato de que os
sistemas arteriais e venosos eram ligados por capilares invisíveis, para Galeno
eles apenas transferiam uma pequena quantidade de sangue venoso nutritivo e
pneuma entre os dois sistemas, que só abriam totalmente em circunstâncias
incomuns ou anômalas.35 Apesar das inúmeras informações anatômicas de
Galeno, nas quais, 15 séculos depois, William Harvey basearia sua teoria da
circulação do sangue, as descobertas de Galeno não sugerem essa conclusão, e
podem ser explicadas com facilidade por suas teorias fisiológicas.36 Em razão
de sua convicção das funções separadas dos três sistemas, é pouco provável que
Galeno tenha procurado meios de unificar só dois dos três sistemas em uma
única circulação do sangue. Segundo Galeno, a mistura de sangue e pneuma no
lado esquerdo do coração era, em seguida, cozinhada pelo calor do coração e se
convertia em um sangue vermelho mais fino, que fluía dentro das artérias para
energizar ou estimular o corpo com seu “espírito vital”.37 As artérias que
continham sangue foram tema de uma de suas demonstrações de anatomia,
destinada a refutar os argumentos dos seguidores de Erasístrato, que acreditavam
que as artérias só continham pneuma.38 Assim como o sangue venoso, só uma
pequena proporção do sangue arterial era transferida entre os sistemas e depois
formava uma rede vascular na base do cérebro para produzir um “pneuma
psíquico”, que circulava pelos ventrículos do cérebro e pelo sistema nervoso.39
Esse “pneuma psíquico”, alimentado também pelo ar expelido pelas narinas
(comprovado pela rapidez com que as pessoas morriam sem respirar), era
responsável pela consciência, sentimento e movimento voluntário.40 Galeno
afirmou que esse sistema fisiológico tripartido, que poderia ser demonstrado
anatomicamente e com base nas descobertas dos alexandrinos, tinha muitas
vantagens. Essa teoria do sistema tripartido opunha-se ao conceito de Aristóteles
e dos estoicos, que acreditavam em um único órgão dominante, que preservava a
unidade do ser humano. Ele unia o corpo e a alma, além de explicar a influência
das mudanças físicas na alteração do equilíbrio mental e do comportamento, e
vice-versa. Apoiado nos fundamentos da teoria dos quatro humores descrita em
A natureza do homem, Galeno admitiu a existência de nove misturas ou, como
intérpretes latinos as denominaram, temperamentos: uma mistura em equilíbrio
exato com as quatro qualidades básicas de Aristóteles – quente, frio, úmido e
seco – as outras com a predominância de uma ou duas qualidades, o que
indicava uma predisposição a determinados tipos de doenças, sem
necessariamente ser uma pessoa doente. Cada ser humano tinha sua mistura
natural e era essa mistura que um médico competente procuraria restaurar com
seus tratamentos.41 Essa mistura determinava não só o bem-estar físico e a
suscetibilidade a certas doenças, como também o estado mental.42 Mais tarde os
galenistas desenvolveram essa teoria e hoje palavras como “fleumático” e
“sanguíneo” aplicam-se ao comportamento e à atitude, e não a uma condição
física.43 A relação entre o corpo e a mente também explicava certos movimentos
que a princípio pareciam involuntários (a respiração) e voluntários (a fala). Às
vezes, como em um tique nervoso ou a incapacidade de controlar os movimentos
da língua, esses movimentos eram resultado de uma debilidade física; em outros
casos, como na ereção do pênis ou no bocejo, o cérebro fora estimulado por
fenômenos externos, como pensamentos e imaginação que tinham consequências
físicas.44 As experiências anatômicas de Galeno comprovaram, sobretudo, a
sabedoria e a presciência do Criador ou da Natureza (porque Galeno em sua
descrição do corpo usava indiscriminadamente essas palavras junto com
“Deus”).45 A partir da observação do olho de um inseto, da tromba de um
elefante ou da obra-prima suprema da mão de um ser humano, era inevitável
concluir que tudo tinha sido criado com um propósito, como Platão e Aristóteles
haviam concluído muito tempo antes.46 Cada parte, mesmo a minúscula, fora
criada com sua função definida, com o equilíbrio preciso de elementos,
qualidades e humores para cumprir essa função, e a alteração desses fatores
resultava em uma anomalia funcional. As pessoas, como os judeus e cristãos,
que acreditavam em milagres e em um deus que poderia mudar a ordem do
universo por um simples capricho, não reconheciam a suprema majestade e a
atenção aos detalhes da criação divina.47 Portanto, não é uma coincidência que
Galeno tenha intitulado o último livro de sua grande obra sobre anatomia
teleológica de Sobre o uso das partes, um epodo, um hino ao Criador ou a
Natureza intencional.48 O corpo masculino foi o padrão seguido por Galeno
para descrever o corpo humano. A mulher era um ser racional, isto é, capaz de
adquirir conhecimento (uma definição interessante), mas era inferior ao homem
em todas as atividades e formas de aprendizado. A mulher era, na verdade, o
sexo fraco, com a temperatura do corpo mais fria do que a do homem, preparada
por natureza à gravidez e para se adaptar à alma que a habitava.49 Por esse
motivo, as mulheres não precisavam ter barba, porque não tinham o caráter
majestoso dos homens e necessitavam menos de proteção contra o frio, pois em
geral ficavam dentro de casa.50 Existiam doenças específicas de mulheres
relacionadas aos órgãos reprodutores femininos e funções, quando não
resultavam de uma imperfeição natural do corpo feminino comparado ao do
homem.51 A predisposição a doenças diferenciava as mulheres dos homens e
influenciava os tipos de remédios a serem usados. As mulheres precisavam ser
tratadas com mais delicadeza do que os homens, não porque eram mulheres tout
court, mas, sim, porque eram seres frágeis como crianças, eunucos e homens
apaixonados por banhos. Esses homens estavam excluídos da classificação de
homens comuns de Galeno, a exemplo dos camponeses rudes e marinheiros e,
assim como outros pacientes, precisavam ter tratamentos adequados à sua
constituição física.52 A atitude de Galeno em relação às mulheres era complexa.
Embora às vezes parecesse condescendente, não obrigatoriamente tinha desprezo
pelas mulheres por serem mulheres: Galeno aceitava sem dificuldade as
informações transmitidas por assistentes de médicos.53 Mas havia limites para a
interferência das assistentes: Galeno, o médico, era quem fazia o diagnóstico e
prescrevia o tratamento, e sua amizade com Arria, a filósofa, era um raro
contraste com seu desprezo habitual por senhoras que gostavam do luxo e
fugiam diante do cheiro da tintura de cabelo de uma jovem camponesa asiática, e
com a relação ambígua com a voluntariosa Annia Faustina, parente da família
imperial.54 A superioridade masculina era, para Galeno, um simples fato da
natureza. O conhecimento de Galeno do corpo humano ajudou-o a prescrever
tratamentos, ao mostrar indícios que de outra forma passariam despercebidos.
Quando o sofista sírio Pausanias perdeu a sensibilidade de três dedos depois de
cair de uma biga, Galeno, com seu conhecimento dos caminhos dos nervos,
diagnosticou o problema e tratou-o com sucesso.55 Galeno sabia explicar por
que pacientes com delírios provocados pela febre continuavam a agir
normalmente – um professor declamando um poema de Safo ou de Baquílides,
um orador fazendo um teste de oratória, um matemático solucionando problemas
– ou se comportavam de uma maneira totalmente estranha (como um cidadão
respeitável falando grosserias e obscenidades).56 Segundo Galeno, a mente e a
alma poderiam ser afetadas por mudanças no organismo, um conceito
universalmente aceito, independente da visão da natureza da alma.57 Mas assim
como a febre ou o excesso de álcool afetavam a mente, o distúrbio psíquico
também tinha efeitos físicos no corpo. A ideia de que as emoções afetavam o
estado físico de uma pessoa era um tema frequente na literatura, pelo menos
desde o século VI a.C., quando Safo descreveu os efeitos de olhar um ser amado,
um rubor súbito, zumbido nas orelhas, suor, tremores e palidez.58 Dois séculos
depois, o poeta cômico Filemon disse um lugar-comum ao falar a seguinte frase
perante uma plateia: “o sofrimento causou inúmeros distúrbios mentais e muitas
doenças incuráveis em diversas pessoas”.59 Mas, embora Galeno dissesse que
não era difícil entender os efeitos das emoções, ele não incorporou essas noções
populares à sua prática clínica, nem deu uma explicação médica para alterações
psíquicas. Galeno especializou-se em doenças causadas por estresse. Citava
sempre o precedente de Hipócrates ao estudar essas doenças, e, em seu último
livro de comentários sobre o tratado hipocrático Epidemias 6, relatou uma série
de casos de pessoas que haviam adoecido ou morrido em consequência de
distúrbios mentais – sofrimento familiar pela perda de um parente ou de uma
propriedade, medo do futuro ou da cólera do imperador.60 Certa vez, frustrado
com a incapacidade de um jovem paciente de se recuperar, notou sinais de
estresse e descobriu que o rapaz estava se alimentando escondido e, em seguida,
descobriu onde ele escondera a comida proibida e como a mãe que o amava em
excesso havia trazido a comida.61 Em uma repetição de um famoso diagnóstico
atribuído a Erasístrato entre outros, Galeno descobriu que a esposa de Justus
estava apaixonada por um ator famoso da época. Mas Galeno acrescentou sua
versão à história, ridicularizando as pessoas que acreditavam que a paixão era
uma doença específica, e enfatizou que os sintomas físicos de um paciente
apaixonado não eram diferentes de qualquer outra pessoa que sofresse de
estresse.62 No tratamento de distúrbios psicossomáticos Galeno estendia o papel
do médico a áreas nas quais outros médicos com certeza questionariam. Ele
admitia a relação contínua entre o médico e o filósofo, que Aristóteles havia
postulado, mas agora era o médico que intervinha em questões morais, um tema
tradicionalmente do domínio de atuação dos filósofos. Não era suficiente o
médico agir como um amigo franco e mostrar as consequências das paixões e
erros da alma, uma tarefa que Galeno se julgava com competência para executar,
em razão de sua leitura e releitura diária do livro Palavras de Ouro, de
Pitágoras.63 Agora, ele podia oferecer um conselho médico que eliminaria ou
atenuaria os problemas da alma, e recuperaria o bem-estar físico e moral dos
pacientes. O exemplo de sua imperturbabilidade depois da perda dos livros no
incêndio de 192 confirmou o comentário de um antigo conhecido, que ele
praticava o que pregava.64 Galeno vangloriava-se de conhecer o funcionamento
do corpo humano melhor do que seus concorrentes, uma atitude habitual para
ostentar sua superioridade. Sua cultura acadêmica, a retórica poderosa e o
raciocínio lógico também contribuíram para a impressão de uma extraordinária
eficiência, que ele transmitia aos pacientes potenciais. Porém, havia outros
fatores mais importantes do ponto de vista médico, que também ajudaram a
construir essa imagem de competência. Galeno mantinha uma postura de
autoridade ao visitar os pacientes, ou quando tratava deles em público ou em sua
casa, apesar de nem sempre seguir em todos os detalhes suas próprias
recomendações de um comportamento médico apropriado. Seu médico ideal
deveria manter um equilíbrio entre uma atitude brusca e uma suposta arrogância;
cada paciente exigia um estilo de roupa, assim como um tom de voz e uma
linguagem apropriada; as piadas inconvenientes, as explicações técnicas
confusas e os erros gramaticais deveriam ser evitados. Era preciso escolher o
melhor momento e a maneira de se aproximar da cabeceira do doente, porque
nada seria mais desagradável do que irromper no quarto de um paciente
adormecido com pisadas fortes e a voz alta demais. A aparência pessoal era
importante – roupas limpas, unhas bem cuidadas, cabelo penteado com um corte
conservador e um aspecto limpo e agradável. Recomendações opostas ao
comportamento de Quintus, que certa vez visitara um paciente rico com cheiro
de bebida, ou um médico da Ásia cujo mau cheiro nas axilas afugentava os
pacientes.65 Muitas recomendações de Galeno assemelhavam-se aos conselhos
mencionados nos tratados hipocráticos Preceitos, Decoro e Testamento de
Hipócrates, além de ser uma reação às críticas contemporâneas aos médicos que
usavam instrumentos vistosos demais e tinham uma retórica pedante ou, em
outro extremo, médicos com um comportamento grosseiro e roupas surradas.66
Galeno enfatizava sem cessar a importância de conquistar a confiança do
paciente na luta contra a doença, apesar de ter reformulado o conceito
hipocrático do médico, paciência e doença, para garantir o predomínio do
médico.67 A arte do prognóstico como concebida por Hipócrates era o melhor
caminho para conquistar essa confiança. Mas, infelizmente, embora Galeno
achasse que esse conhecimento não tinha mistérios, poucos dos seus
contemporâneos o praticavam, pelo menos em um nível satisfatório para seus
padrões. Como consequência, quando fazia um prognóstico bem-sucedido,
olhavam-no surpresos como se fosse produto de um milagre.68 É possível que
essa ideia que seria capaz de realizar milagres o agradasse, sobretudo expressa
pelos pacientes, mas Galeno não poupou esforços em dissociar sua imagem de
qualquer sugestão de vidência ou de tolerar a prática de magia, ressaltando, ao
contrário, o fundamento lógico de seus procedimentos e a ignorância de seus
opositores.69 A observação era fundamental em qualquer prognóstico, e todos os
sentidos deveriam estar alerta para perceber a individualidade do paciente e as
anomalias de sua doença. Embora usasse o artifício da retórica e o autoelogio em
seus exemplos de histórias de casos, como um elemento de persuasão, não há
dúvida de que Galeno era um brilhante observador, atento a mudanças físicas no
organismo do paciente e nos objetos em seu quarto, como um vaso com hissopos
no peitoril de uma janela ou um travesseiro áspero em cima de uma cama baixa
de rodas. Ele ouvia com cuidado os pacientes, amigos e assistentes de médicos,
porque, mesmo se por fim não concordasse com o que acreditavam, suas
informações poderiam ser cruciais para fazer o diagnóstico.70 Sempre
examinava o rosto do paciente, com atenção especial à cor, ao cheiro e à
consistência, e à urina para verificar qualquer alteração de cor ou limpidez, uma
vez que as irregularidades apresentadas seriam um indício de debilidade ou
anomalias nos órgãos do corpo.71 Assim, por exemplo, ele atribuía a diabetes,
uma doença que diagnosticou poucas vezes, a uma falha dos rins em reter ou
transformar um fluido.72 O exame dos batimentos do pulso era de extrema
utilidade, porque o ritmo dos batimentos era um sinal preciso de mudanças no
organismo, embora, como vimos, Galeno acreditasse que os batimentos do pulso
produziam-se dentro das camadas das artérias, e não pela passagem do sangue
bombeado pelo coração. Com base na doutrina helenística da pulsação, abordada
no pequeno tratado sobre batimentos ritmados do pulso de Marcelino, um quase
contemporâneo seu, Galeno tentou associar os diferentes tipos de pulsos a
determinadas doenças (e vice-versa).73 Ele observou uma série de
características, como velocidade, ritmo e tensão, e fez descrições metafóricas de
tipos de pulso (inspiradas em predecessores como Herófilo e Aristoxenus),
como, por exemplo, o pulso de gazela, o pulso cauda de um camundongo, o
pulso de formiga e o pulso martelo duplo (considerado corretamente por ele
como uma indicação de uma doença com consequências fatais).74 Como
sempre, Galeno atribuiu sua superioridade no exame dos batimentos do pulso ao
“tato muito sensível”, resultado de uma longa prática, que lhe permitia sentir as
várias fases da dilatação e da contração de uma artéria.75 Sugeriu também que a
precisão e a clareza seriam obtidas com a descrição das proporções entre os
batimentos do pulso e as frequências musicais e verbais.76 Depois de anotar
suas observações e de reunir o máximo de informações possíveis, Galeno fazia o
diagnóstico e a previsão da evolução da doença. A partir de um raciocínio
lógico, Galeno realizava um diagnóstico diferencial, classificando a doença do
paciente com uma exatidão crescente, até identificar o que havia de errado em
seu organismo e atribuí-lo a uma causa.77 Mas tinha plena consciência da
ambiguidade inerente à palavra “causa” e seguiu o exemplo de Ateneu e dos
estoicos diferenciando as causas iniciais (ou protocatárticas), das causas que
precediam a doença e das causas imediatas. O primeiro grupo originava-se de
fatores externos ao corpo, como um golpe ou uma comida estragada, o segundo
grupo revelava a predisposição do organismo a determinadas doenças e, por fim,
os efeitos da doença, como a contração da membrana coroide, que reduzia a
intensidade da pupila do olho.78 Assim que o diagnóstico estivesse pronto e o
princípio de causalidade fosse identificado, o médico escolheria um tratamento
adequado para restaurar o equilíbrio funcional e dos humores. Com esse método,
o médico poderia prever com confiança a evolução e o resultado da doença.79
Não havia motivos de preocupação diante de cada mudança no corpo, assim
como não havia necessidade de modificar o tratamento prescrito, porque um
prognóstico “acurado” e “exato” (duas palavras favoritas de Galeno) havia
revelado o que aconteceria e, portanto, o médico manteria sua prescrição
inicial.80 Ao seguir esse método de prognóstico com atenção o médico nunca
fracassaria e, se fracassasse, não seria por sua culpa. Às vezes, o paciente
desobedecia às ordens ou não contava a verdade, em algumas ocasiões
propositalmente, em sua consulta ao médico. Em outras vezes, o médico perdia o
controle dos acontecimentos, ou a intervenção inábil de criados ou de amigos
provocava mudanças que não haviam sido previstas.81 Theagenes o Cínico não
teria morrido se não houvesse seguido o conselho dos metodistas de ignorar a
recomendação de Galeno. A cena teatral protagonizada por Galeno ao lado do
leito de morte do médico da corte, Attalus, para explorar ao máximo sua perda,
também mostrou sua falta de escrúpulos em beneficiar-se de situações em que
poderia tirar o melhor proveito possível.82 O crédito do sucesso era então
atribuído a Galeno e aos que o seguiam; a responsabilidade do fracasso, aos
outros médicos. A remoção do esterno do escravo de Marulo, o escritor e
mímico, não foi uma tarefa fácil. Os treinadores de ginástica em Roma e na
cidade portuária de Ostia enviavam com frequência pacientes com luxações
complicadas para serem examinados por Galeno.83 Os comentários de Galeno
nos textos hipocráticos Fraturas e Articulações revelaram sua competência como
cirurgião e seu aprendizado na tradição alexandrina.84 Mas a intervenção
cirúrgica era o último recurso usado no tratamento de pacientes. Galeno
privilegiava a flebotomia no tratamento de diversas doenças, com uma variação
da técnica utilizada por seus concorrentes, em especial pelos seguidores de
Erasístrato. Quando Galeno chegou a Roma pela primeira vez, na década de 160,
criticaram-no pelo uso da flebotomia, um procedimento que, segundo os adeptos
de Erasístrato, fora condenado por seu mestre. Galeno defendeu-se das críticas
com o argumento de que eles haviam feito uma interpretação equivocada dos
textos de Erasístrato e que uma leitura minuciosa indicaria a recomendação do
uso da flebotomia em tratamentos de diversas doenças. Ao voltar a Roma pela
segunda vez constatou que seus argumentos a favor da flebotomia haviam
exercido uma grande influência nos atuais defensores desse procedimento que,
infelizmente, o usavam sem discriminação. Sentiu-se, então, motivado a escrever
um novo tratado sobre Erasístrato, desta vez com ênfase em suas contradições.85
Só os que eram fortes o suficiente para resistir à flebotomia, o que excluía as
pessoas idosas e os muito jovens, deveriam ser submetidos a esse tratamento
praticado de acordo com as peculiaridades das estações do ano, o tipo de doença
e o uso de terapias alternativas. Afinal, os melhores médicos se distinguiam por
serem capazes de tratar casos cirúrgicos com outros recursos da medicina,
sobretudo, com dietas e remédios.86 A dieta, para Galeno, não se limitava à
comida e à bebida, e abrangia também o exercício, o sono e o ambiente onde
vivia o paciente. Embora fosse verdade o ditado que dizia as pessoas eram o
produto do que comiam, os que se alimentavam de jumentos, leões e camelos
assimilavam suas características,87 e a dieta em seu sentido mais amplo
determinava se uma boa saúde transformava-se em uma pré-condição de uma
doença. Por esse motivo, as mulheres ricas de Roma adoeciam e não suportavam
nem as mais leves restrições, devido ao luxo em que viviam.88 Em outro
extremo, Galeno descreveu o costume dos camponeses da Ásia Menor, que
comiam carne de jumentos e cavalos por não terem outra opção e, em mais de
uma passagem, mencionou que, apesar de rústicos, não haviam assimilado as
características dos jumentos que comiam.89 Galeno lembrava-se de uma viagem
que fizera na juventude pela região da atual Turquia, onde o mingau de cereal
grosseiro, o único alimento que encontrou, lhe provocou flatulência, prisão de
ventre e dor de cabeça, e mesmo as pessoas locais diziam que era uma comida
indigesta.90 Bastava olhar a pele áspera dos egípcios esqueléticos para perceber
as consequências de uma dieta de peixe defumado, lesmas, favas, lentilhas e
grãos de leguminosas, além da ingestão de carne de víboras, camelos e jumentos
acompanhada de vinho ácido e cerveja de cevada. Por sua vez, havia poucos
casos de doenças de pele entre os povos germânicos e os mísios, e quase nenhum
caso nos citas, que tinham o hábito de beber leite.91 Assim como uma
alimentação inadequada provocava doenças, o paciente poderia manter e, até
mesmo, recuperar a saúde com uma dieta apropriada. Galeno escreveu diversos
tratados sobre alimentos e o papel que exerciam em relação à saúde e, portanto,
não surpreende que Galeno seja um dos interlocutores em Sofistas no jantar de
Ateneu de Naucratis.92 Mas enquanto os personagens de Ateneu estavam
interessados em especial na história da comida e competiam entre si com
citações cultas de comédias e oratória da Ática, Galeno, embora fizesse citações
ocasionais, interessava-se mais pela importância da alimentação para a saúde.
Em seus tratados Galeno fez uma extensa pesquisa sobre os alimentos
disponíveis na época, com o acréscimo de muitos detalhes de suas observações:
a torta de marmelo exportada da Espanha para Roma, a forma engenhosa como
os egípcios limpavam e mantinham gelada a água que tiravam do Nilo, e a
substância adocicada segregada por determinado tipo de plantas, a “chuva de
Zeus”, que cobria os arbustos e as árvores nas colinas atrás de Pérgamo no
verão.93 Segundo Galeno, o mel da região era excepcional, apesar de não ser
famoso. Perto do vilarejo de Britton umas rochas produziam um mel com um
sabor adocicado e uma textura delicada, mas a ingestão em excesso provocava
vômito. Ele conhecia um local onde havia arbustos de tomilho selvagem, e uma
pequena colina à esquerda da estrada de Pérgamo para Eleia, produzia um mel
perfumado muito melhor do que o de Tasos ou o de Hymettus.94 Galeno
também descreveu os diversos tipos de cereais nativos da Ásia Menor e do norte
da Grécia, assim como o verdadeiro catálogo de vinhos da região do
Mediterrâneo, embora preferisse os vinhos de lugares perto de Pérgamo, de
Titacaza, da região do Mar Egeu, de Perperene e da colina de Tmolus.95 Como
vimos, seu pai tinha um vinhedo e fazia experiências para testar a duração
máxima de uma colheita.96 Galeno tentou estabelecer uma relação entre as
propriedades das comidas e os quatro humores, com suas características
específicas. Alguns alimentos eram quentes, outros frios, úmidos ou secos; uns
engrossavam os humores, outros afinavam, o que os tornava mais fáceis de
expelir e, com isso, podiam ajudar a emagrecer. A descrição dos alimentos e de
suas propriedades de acordo com a digestibilidade, força e adequação para os
seres humanos diverge um pouco das descrições dos escritores antigos.97 Carne
branca, frango e peixe eram mais fáceis de digerir do que carne vermelha; vinho
branco era mais adequado para pessoas doentes do que o vinho tinto mais forte.
A carne de porco era a mais fácil de digerir, porque parecia com a carne dos
seres humanos, como comprovava o costume dos estalajadeiros desonestos, que
serviam carne humana como se fosse guisado de porco.98 No início as pessoas
doentes deviam tomar só sopas, em especial sopa de cevada e, aos poucos,
voltavam à dieta normal.99 A maioria das recomendações de Galeno seria
aprovada pelos nutricionistas atuais, com uma exceção importante. Ele
praticamente proibia a ingestão de frutas frescas, que, segundo sua opinião, eram
uma causa frequente de doenças. Seu pai o prevenira dos perigos de comer
frutas, mas certa vez uns amigos o convenceram a comer muitas frutas no
outono. Em consequência, ficou seriamente doente. No ano seguinte, comeu
frutas com moderação e não adoeceu, porém, depois da morte do pai as dores
voltaram até que, aos 28 anos, decidiu não comer mais frutas, só um pouco de
figos e uvas. Outros, como seu compatriota Protas, que adoeceu depois de comer
maçãs e peras que não estavam maduras, contavam histórias semelhantes, e a
dificuldade de manter as frutas frescas em climas quentes talvez seja um dos
motivos de provocarem doenças. Portanto, o fato de os camponeses asiáticos
darem maçãs para os porcos não surpreendeu Galeno.100 Em sua defesa do
exercício físico, Galeno seguia a mesma tendência de moderação. Seus heróis
eram Telephus, o gramático que viveu até quase os 100 anos, e o Dr. Antíoco,
que caminhava 805 metros todos os dias de sua casa ao fórum romano e visitava
os pacientes a pé; quando moravam longe, ia de liteira ou de carruagem, até
depois dos 80 anos.101 O exemplo deles mostrava os benefícios do estilo de
vida ativo, porém, moderado. Mas Galeno desprezava os atletas profissionais,
porque a paixão pelo treinamento, com o objetivo de ter uma forma física
esplêndida era contraproducente. Como era melhor fazer pesquisas intelectuais,
em vez de suar e lutar no ginásio! As citações de Galeno referentes ao
dramaturgo ateniense Eurípedes revelaram que seu desprezo pela atividade física
em excesso, em detrimento de uma atividade intelectual, tinha raízes muito
antigas.102 Mas Galeno não se opunha a que os pacientes assistissem a
atividades físicas, e permitia que vissem espetáculos de luta livre e fossem ao
teatro caso isso os ajudasse na recuperação da convalescença.103 Mas se alguém
quisesse se exercitar Galeno recomendava o uso de bolas de ginástica para
tonificar o corpo.104 Galeno foi extremamente sucinto em seus comentários
sobre banhos, uma prática tradicional do estilo de vida dos romanos. Os
moralistas denunciavam os perigos dos banhos e mesmo os que tinham o hábito
de se banhar com frequência diziam que, junto com vinho e sexo, o “banho
arruinava os corpos”.105 No entanto, também era um hábito prazeroso, como
testemunharam os textos literários e os sítios arqueológicos da Antiguidade.106
Às vezes Galeno recomendava banhos como parte do processo terapêutico,
sobretudo, em fontes de água mineral como a Aquae Albulae, perto de Roma,
mas era muito prudente ao relatar seus efeitos.107 Os banhos em excesso
deixavam a pele suave demais, branca e flácida, além de provocarem infecções
vaginais. Como sempre, Galeno recomendava a moderação.108 Se o tratamento
dietético fracassasse, Galeno recorria aos remédios, na tentativa de curar a
doença com o uso de um medicamento de qualidade ou ação oposta, para
restaurar o equilíbrio original do organismo. Mas a escolha do remédio adequado
exigia o conhecimento de sua composição e do efeito que causava. Galeno
concordava com a prática dos empiristas de usar em casos semelhantes um
remédio que já demonstrara sua eficácia, porém diante de um paciente
desconhecido e de uma doença sem diagnóstico preciso, que pudesse ser
comparada a casos anteriores, o médico teria de confiar mais na sorte do que em
seu julgamento. O verdadeiro médico não só receitava remédios específicos para
um paciente (ao contrário dos metodistas com seus medicamentos genéricos),
como também sabia por que um remédio funcionava melhor do que outro.109
Com essa premissa, Galeno, na medida em que podemos julgar, revelou uma
visão mais moderna da medicina do que outros escritores antigos. Galeno
também tinha o hábito de associar as diversas abordagens de Dioscórides e
Escribonius em um contexto médico específico.110 Ele estudou minuciosamente
as propriedades dos remédios (sobretudo as propriedades simples, em vez dos
compostos químicos) e relacionou-as às qualidades elementares do organismo e
do universo físico aristotélico. A maioria dos remédios, concluiu, agia no
organismo por meio de uma ou mais qualidades básicas, quente, frio, úmido e
seco, mas havia outro tipo de medicamentos cujos efeitos não eram facilmente
detectáveis pelas qualidades básicas, apesar da longa comprovação de sua
eficácia.111 Segundo Galeno, esses remédios funcionavam por meio de sua
“substância total”, e seus componentes individuais misturavam-se e produziam
uma nova combinação mais eficiente.112 A maioria dos remédios “mais fortes”
de Galeno, inclusive laxantes, venenos e venenos mais suaves, recaía nessa
categoria, o que proporciona uma maneira de avaliar os remédios que eram
usados empiricamente. Ao contrário dos remédios que contrabalançavam o
excesso ou as deficiências das mesmas qualidades em um paciente, esses
medicamentos agiam diretamente na parte afetada com a qual tinham afinidade.
O fleumagogo, por exemplo, atraía e expelia a fleuma, e um colagogo expelia o
excesso de bile do organismo com rapidez e eficácia.113 Images
Figura 16.1 Galeno explica a teoria dos remédios para os alunos. Seus opositores
como Asclépio, Arquígenes e Erasístrato não acreditavam tanto como ele na
eficácia dos medicamentos. Dresden, Sächsische Landesbibliothek, Db 93, fol.
390r. A teoria dos remédios de Galeno reuniu dois aspectos da farmacologia. Em
tratados como Sobre as propriedades dos simples ele pesquisou como e por que
as substâncias individuais funcionavam. Já nos dois enormes tratados
Composição das drogas ele examinou a adequação dos remédios em tratamentos
a partir de duas perspectivas complementares, a da parte do corpo afetada e a dos
tipos de medicamentos disponíveis.114 Assim, a mesma receita médica poderia
ser descrita como um remédio para dor de cabeça e um exemplo de curativo,
comprimido ou loção, enquanto seus componentes individuais eram analisados
teoricamente em outra passagem. Galeno não considerava que essas perspectivas
fossem metodologias diferentes. Ao contrário, elas constituíam uma concepção
geral do tratamento e de um projeto que o ocupou por mais de 50 anos. O tratado
anterior, Drogas, destruído no incêndio do Templo da Paz em 192 foi, em
seguida, reescrito em uma versão bastante ampliada. Porém, Galeno tinha a
extraordinária capacidade de interromper o trabalho sobre farmacologia e
retomá-lo décadas mais tarde sem grandes inconsistências no conteúdo.115 A
avaliação das milhares de páginas de suas obras sobre farmacologia é uma tarefa
imensa. Mas a pesquisa moderna conseguiu definir pelo menos as linhas gerais
dessa extensa produção.116 Hoje, não resta dúvida de que mais da metade das
receitas médicas citadas foi extraída diretamente e, com frequência, no sentido
literal, de um pequeno número de fontes intermediárias, como Dioscórides e
alguns escritores de livros sobre farmacologia do século anterior, a exemplo de
Heras da Capadócia, Servilio Damocrates, Asclépio o Farmacêutico, Statilius
Crito, Arquígenes e os dois médicos de Nero e Trajano chamados
Andrômaco.117 Mas Galeno sempre reproduzia o que haviam dito com um
comentário. Com frequência corrigia uma prescrição médica ou sugeria uma
alternativa que lhe parecia melhor, seja de outra fonte ou de sua criação. A Hiera
de Galeno – (“Remédio Sagrado”), um laxante amargo recomendado para quase
todas as doenças desde dores de cabeça a cólicas menstruais, era um remédio
mais conhecido dos médicos do início da Idade Média na Europa do que seus
tratados médicos.118 E Galeno não seria Galeno sem o acréscimo de suas
opiniões às informações que recebia de outras pessoas. Ele sempre insistia que
estava introduzindo um “método” mais apropriado, um “argumento” ou um
“raciocínio” a um tema conhecido abordado por muito tempo de uma maneira
empírica.119 Mas suas inovações teóricas não se limitavam a essas introduções,
porque expressou seu descontentamento em relação a um modelo que, assim
como Dioscórides, descrevia o funcionamento dos remédios apenas em termos
da propriedade de ação de uma maneira específica. Essa sugestão era ambígua e
inútil, porque não era precisa o suficiente para avaliar os resultados diferentes
obtidos, por exemplo, ao receitar um laxante em vez de outro, nem se detinha em
detalhes do paciente a quem tinha sido recomendado o remédio. Um médico da
escola de Hipócrates, que estivesse à procura de um tratamento adequado para
um paciente, analisaria com mais profundidade a ação do remédio, em vez de se
contentar com a simples afirmação, por exemplo, de que o efeito purgativo da
escamônea eliminava a bile. Para solucionar esse problema apresentado por
Galeno seria preciso classificar a ação dos remédios em quatro categorias
principais ou graus de intensidade – fraca, óbvia, forte e maciça – cada qual
subdividida em três categorias, pequena, moderada e substancial.120 No final do
espectro havia substâncias cáusticas e venenos tão fortes que a mais leve
aplicação resultava na destruição de parte do corpo afetada ou morte do paciente.
Havia também ervas simples cuja ação era quase imperceptível, mas que
deveriam ser usadas em casos nos quais o tratamento exigia uma extrema
delicadeza ou precisão. Outras substâncias inseriam-se ao longo desse espectro
de acordo com a intensidade de sua ação qualitativa. Mas essa classificação das
propriedades de todos, ou da maioria dos remédios, era uma tarefa complexa,
como Galeno admitiu. Na pesquisa de 475 plantas e ervas, Galeno só detalhou os
graus de intensidade de 161 espécies.121 No entanto, a associação da
intensidade da ação do remédio com a doença do paciente era ainda mais difícil.
Não existiam recursos que permitissem classificar os remédios com a precisão
exigida pelo esquema de Galeno, além da dificuldade inerente à classificação das
doenças dos pacientes. Por esse motivo, Galeno apresentou ao longo dos anos
uma série de sugestões aparentemente conflitantes. Ao escrever na década de
160 a primeira parte do Método de curar, ele mencionou que existiam 15 graus
diferentes de umidade.122 Trinta anos depois, em Arte da medicina, Galeno
disse que, se uma parte específica do corpo estivesse 10 vezes mais quente do
que o normal e sete vezes mais seca, seria preciso receitar um remédio 10 vezes
mais frio e sete vezes mais úmido do que o habitual.123 Não é fácil perceber
como nesse raciocínio as 12 categorias de ação dos remédios enquadravam-se
em seus estudos dos medicamentos simples, que constituíram a base da
farmacologia galênica, sobretudo, no mundo islâmico. Porém, Galeno não era
um mero teórico. Na verdade, a característica mais marcante da farmacologia
galênica era a ênfase na observação empírica e a grande abrangência de
tratamentos alternativos, inspirados em livros ou em conversas com outras
pessoas. Na década de 160 Galeno soube que um médico no interior da Bitínia
(atual noroeste da Turquia) havia descoberto uma erva que afinava tanto o
sangue que dissolveria qualquer coágulo. Depois de ter encontrado o médico e
de conhecer a fórmula do remédio, Galeno, sem nenhum escrúpulo, entregou-o
às autoridades, que o torturaram. Quando ele confessou que era uma erva que
crescia em profusão no local e que fizera experiências com seres humanos,
executaram-no para que não começasse uma epidemia de assassinatos. Galeno, é
claro, manteve um silêncio prudente sobre o que aprendera, enquanto acusava os
rivais de negligência por incluírem informações potencialmente fatais em seus
livros.124 Sua coleção de receitas médicas destruída no incêndio em 192 era, em
sua opinião, a melhor do mundo. Além das duas grandes coleções importantes
que ganhara, Galeno inventou algumas receitas e obteve outras com a troca de
suas raridades com diversas pessoas.125 Galeno também comprou muitos
remédios para vários tipos de doença na região do mar Mediterrâneo.
Entrevistou pessoas que transportavam mercadorias em Alexandria, barganhou a
venda de um lote de medicamentos com um homem que o transportava em um
camelo, visitou o mar Morto e a costa da Lícia à procura de minerais raros, que
poderia usar ao longo da vida e, por ser amigo do superintendente, lhe
permitiram descer em uma mina em Chipre em busca de cobre.126 Em 168, na
viagem para a Itália, parou na ilha de Lemnos para recolher amostras da famosa
argila, que tinha propriedades medicinais.127 Por falta de sorte ou
desconhecimento geográfico, ele desembarcou do lado errado da ilha e teve de
esperar 20 anos ou mais até retornar. Desta vez teve mais sorte e chegou no
momento em que os sacerdotes de Diana abençoavam a colina de onde a argila
era extraída. Sempre atento às oportunidades de comprar coisas importantes e
raras, Galeno comprou 20 mil amostras da argila medicinal com a efígie de
Diana, que usou com sucesso para tratar ferimentos e como purgante em casos
de envenenamento pelos moluscos lebres-do-mar ou besouros que segregavam
cantaridina, uma substância que provocava vesículas na pele. Descobriu
vendedores da carne de víbora e de um tipo de cordas finas para fazer ataduras,
importadas da Gália e vendidas na Via Sacra, que fazia o trajeto do templo de
Roma ao fórum principal.128 Por ser um dos médicos do imperador, Galeno
tinha a permissão de visitar as lojas do palácio, onde as cestas com ervas raras
enviadas pelos ceifadores imperiais do jardim botânico de Creta eram guardadas,
às vezes por décadas.129 Galeno encontrou um arbusto de cinamomo, com 2
metros de altura, que havia sido trazido para Roma havia 50 anos, quando a
teriaga, um antídoto complexo atribuído originalmente a Mitrídates VI, era
muito usado, e o imperador Marco Aurélio tomava uma pequena dose todos os
dias como uma espécie de tônico.130 Galeno guardou 36 quilos de teriaga, mais
canela do que poderia ser encontrada em todas as farmácias de Roma, e muitos
outros ingredientes, que foram destruídos no incêndio de 192.131 Quando
Sétimo Severo foi proclamado imperador em 193 e pediu a Galeno para preparar
um pouco de teriaga para seu uso pessoal, os ingredientes mais modernos não
foram tão eficazes. Porém, isso não impediu que algumas pessoas copiassem o
exemplo imperial, e pelo menos, como Galeno observou, com o pressuposto de
que o bem-estar social deveria ser objetivo do governo, os novos imperadores
desvendaram um segredo dos cognoscenti e o remédio tornou-se acessível ao
povo.132 Galeno enfatizava com frequência a necessidade de ter um
conhecimento rigoroso a respeito da composição dos remédios e das fontes
primárias, que os descreviam.133 Só assim seria possível perceber as artimanhas
de vendedores inescrupulosos, que vendiam produtos de qualidade inferior como
se fossem o mel genuíno das montanhas de Hymettus ou o óleo de nardo da
Laodiceia, enchiam os talos das plantas com substâncias inócuas e colocavam
ervas daninhas ou mesmo terra no fundo das cestas de remédios.134 Um médico
de uma região rural distante de uma grande cidade, sem condições de comprar
uma quantidade maior de remédios e que precisava fazer uma pequena seleção
que pudesse levar nas viagens, era aconselhado a confiar em produtos locais. Por
esse motivo, teria de contar com a sorte inesperada, tanto do ponto de vista
literal quanto do metafórico, de encontrar bons produtos.135 Mesmo em Roma,
o conhecimento sólido das plantas e ervas dos bosques e campos próximos à
cidade era muito útil e benéfico no tratamento dos pacientes, embora alguns
pacientes ricos e esnobes não quisessem ser tratados com os remédios locais
mais baratos.136 Assim, segundo Galeno, o médico precisava saber como
acrescentar especiarias inócuas, perfumes e outras substâncias para aumentar o
preço, sem eliminar a eficiência do remédio.137 As obras farmacológicas de
Galeno revelaram a combinação típica de um raciocínio inteligente, observação
minuciosa e testes empíricos, além de uma compulsão para corrigir erros alheios
e demonstrar sua superioridade. Segundo Galeno, seus tratamentos e a cura dos
doentes eram o resultado de uma série de outras aptidões como lógica,
capacidade de argumentação, conhecimento e experimentação. O médico ideal, a
exemplo de Hipócrates, associava a razão à experiência, ao aprendizado dos
livros, às aptidões pessoais, ao conhecimento de anatomia e especulações sobre
o mundo natural em geral, à intuição e a um julgamento imparcial.138 Apesar de
suas opiniões bombásticas, do pedantismo, do egocentrismo e do desejo
constante de demonstrar sua superioridade que podem nos irritar, assim como
irritaram alguns de seus leitores bizantinos, o conjunto de suas obras mostra por
que adquiriu com tanta rapidez a reputação de ser um excelente médico.139
Galeno é um personagem marcante e contestador e, por esse motivo, é tão fácil
admirar sua retórica poderosa, ou de rejeitar seus elogios a si mesmo e
argumentos tendenciosos. Uma pesquisa sobre as atividades de outros médicos,
como descreveremos a seguir, é essencial para ter uma visão equilibrada e
racional, não só de Galeno, como também da medicina no Império Romano.

17 A Diversidade da Prática da Medicina, sobretudo no Universo Masculino É


essencial, ao analisar o papel e a posição social dos médicos e dos praticantes de
curas na Antiguidade, que se tenha em mente que eles não formavam um grupo
coeso cujo status, reputação e ideologia podiam ser definidos com clareza.1
Alguns autores antigos referiram-se à “profissão da medicina” e procuraram
estabelecer padrões universais de comportamento, mas suas opiniões com
frequência não tiveram a importância devida, em razão da inexistência de
instituições de apoio à profissão de medicina.2 Por outro lado, a definição mais
abrangente de um médico, como uma pessoa que se oferecia para tratar de
doenças por dinheiro, não descarta a hipótese de que o médico ou médica
exercesse outras atividades lucrativas ao mesmo tempo, ou que antes de praticar
a medicina tivesse uma ocupação diferente.3 Até mesmo os adjetivos como
“superior” e “inferior”, “formal” e “informal” não captaram o contexto histórico
de uma época cuja característica principal era a fluidez de todas as fronteiras
definidas. Na realidade, em vez de empregar uma série de dicotomias
distinguindo bons médicos de profissionais incompetentes, profissionais de
amadores, religiosos e laicos, em uma tentativa de definir o papel exercido pelos
médicos na Antiguidade, seria melhor adotar a metáfora de uma série de
contextos superpostos nos quais é possível mapear a grande diversidade de
informações referentes a riqueza, posição social, educação, ideologia e métodos
de trabalho dos médicos, em especial nos três primeiros séculos da era cristã.
Mas não há dúvida de que existiam diferenças entre os que eram chamados, ou
que se autointitulavam “médicos”, iatroi ou medici, e os que eram charlatães.
Mas essas linhas de demarcação, como veremos, dependiam de uma escolha ou
de um contexto individual. A opinião de Galeno a respeito das qualidades de um
verdadeiro médico, ou do que os médicos seriam capazes de fazer no exercício
da medicina, era totalmente diferente da opinião de Thessalo de Tralles, e a visão
desses dois médicos que exerceram a medicina em metrópoles, por sua vez,
divergia do julgamento de um paciente ou de um médico da Inglaterra, do vale
do Nilo e das montanhas da região central da Ásia Menor. Além disso, o título
de médico não era uma garantia de sua competência.4 Como escreveu o judeu
alexandrino Filon em 50 d.C.: No campo da medicina existem médicos que têm
um amplo conhecimento de como tratar infecções, doenças e enfermidades, mas
não sabem explicá-las, nem de uma maneira minuciosa ou plausível. Por outro
lado, médicos que conhecem profundamente os sintomas, as causas e os
tratamentos que constituem a arte da medicina, não têm conhecimento prático e,
portanto, nada têm a oferecer ao doente na fase inicial da doença, nem para
contribuir em sua recuperação.5 Uma das principais causas dessa fluidez é, sem
dúvida, a ausência de um critério legal de quem poderia ou não ser chamado de
médico. Embora houvesse leis, sobretudo em Roma, que definiam certas práticas
médicas como ilegais, a exemplo de envenenamento, preparo de feitiços e
poções de amor, ou castração de pacientes, essas leis não definiam quem poderia
ser intitulado médico no sentido estrito da palavra.6 Mesmo quando alguém se
adequava às qualidades e competências de um médico, as regras do jurista
Ulpiano dificultavam sua prática. Ao dar sua opinião sobre quem poderia cobrar
honorários como médicos, ele incluía especialistas em tratamentos de ouvidos,
fístulas e dentes, assim como parteiras que tinham conhecimento de medicina.
Mas fez uma nítida distinção entre os que usavam feitiços, rogavam pragas e
faziam exorcismos, “mesmo quando os que haviam sido tratados com esses
métodos sentiam-se melhor”.7 Ulpiano definia o medicus como alguém que
usava métodos físicos para tratar os pacientes, embora, ao mesmo tempo,
soubesse que a cura poderia ser obtida por outros meios. A linha divisória
poderia ser traçada de uma maneira diferente para os que se concentravam nos
resultados, e não nos meios de intervenção. Só em dois aspectos, impostos e
salários de funcionários civis, seria possível encontrar sinais do sistema de
exame público, que ajudaria a diferenciar os médicos aprovados ou não nos
critérios do exame. A nomeação de um médico pelo conselho municipal, comum
no mundo helenístico, como vimos, dava a oportunidade aos possíveis pacientes
de pesquisar quem seria seu futuro médico, e os decretos honoríficos concedidos
com frequência ao final de um contrato de trabalho eram um testemunho dos
notáveis serviços prestados. Porém, sempre havia médicos que não tinham um
bom desempenho diante dos conselheiros municipais ou que não se
candidatavam a um cargo com funções cívicas. Os privilégios de isenção total ou
parcial de impostos aplicavam-se a uma gama mais ampla de profissionais. Um
fragmento de um decreto da década de 30 a.C. registrava a concessão de certo
grau de isenção do pagamento de impostos para militares convocados e para
todos os médicos com funções cívicas do Império Romano. Não era uma ideia
nova, embora tenha se estendido ao Império Romano inteiro, e sim uma prática
disseminada nas cidades helenísticas, além das menções nos decretos honoríficos
preservados.8 Sua aplicação em todo o império poderia ser comparada ao
decreto promulgado por Júlio César 15 anos antes, no qual concedia cidadania
aos médicos que trabalhavam em Roma, um decreto mais tarde confirmado por
seu herdeiro, Augusto.9 Esse era um enorme privilégio, porque não só
significava uma posição social superior, bem como a liberdade de não cumprir
os rituais religiosos (liturgias) na cidade natal do médico.10 Essas concessões
deveriam ser regulamentadas, porém não se sabe com clareza como ou por
quem. As referências ao Egito no período romano sugerem que era preciso fazer
uma declaração perante um magistrado de ser um médico, talvez junto com um
certificado, para obter os privilégios de isenção total ou parcial do pagamento de
impostos. Os critérios eram fáceis de atender. Em 142 um médico local, Psasnis,
procurou o governador do Egito para protestar contra a imposição ilegal de
obrigações por parte de moradores do vilarejo onde vivia, das quais estava isento
por ser médico. A resposta do governador foi objetiva: provavelmente eles
acharam que seu tratamento fora inútil. No entanto, se retornasse à sua região
natal e fizesse uma declaração apropriada recuperaria seus privilégios.11 A
isenção de impostos, ao que tudo indica, não era uma garantia de competência.
No entanto, os privilégios concedidos a algumas pessoas significavam uma carga
adicional para outras, e essa liberdade foi restringida por uma decisão do
imperador Antonino Pio, talvez no início da década de 140, que limitou o
número de médicos com isenção de impostos a cinco, sete ou dez, dependendo
do tamanho e da posição da cidade.12 A escolha era feita pelo conselho
municipal composto por pessoas laicas e pacientes em potencial, e só depois da
criação em 358 do Colégio de Médicos, uma instituição superelitista com sede
em Roma, houve referências legais quanto à escolha dos médicos.13 Uma série
de decisões posteriores estabeleceu os critérios nos quais os conselhos baseariam
suas escolhas, “em princípios morais sólidos e no conhecimento da arte da
medicina”, sem intimidação ou favorecimento.14 A criação de um “grupo seleto
autorizado a receber os benefícios concedidos aos médicos” excluiu outros
grupos que também tinham direito a receber benefícios, sobretudo, porque
Antonino Pio queria aumentar o número de pessoas dispostas a cumprir as
liturgias. Alguns privilégios permaneceram em vigor para os excluídos da
seleção, visto que os códigos legais mostraram a luta constante dos menos
privilegiados para preservar os poucos privilégios, que lhes restaram durante os
quatro séculos seguintes, enquanto seus colegas mais bem relacionados, os
médicos das cidades e os médicos da corte imperial, obtinham honrarias e
autoridade ainda maiores.15 Mas a lei não era o único meio de definir um
médico no sentido estrito. A partir do século I, os “colégios”, confrarias e clubes,
às vezes compostos apenas por médicos, ou também por outros profissionais,
como professores, exerceram um papel importante no exercício da medicina. Em
Roma e em Éfeso, os médicos se reuniam em prédios imponentes ornamentados
com estátuas e placas dos decretos honoríficos.16 Algumas de suas atividades
eram apenas sociais ou religiosas: participar do banquete anual, proteger os
túmulos dos antigos membros ou fazer sacrifícios a Esculápio.17 Em Esmirna,
os médicos fizeram importantes contribuições para a reconstrução do farol.18
Porém outras atividades tinham características mais voltadas à medicina. Em
Éfeso, o Templo das Musas era decorado com registros de vitórias nas
competições médicas realizadas anualmente durante dois dias no grande festival
de Esculápio.19 Pelo menos dois nomes dos vencedores exerciam funções de
magistratura ou sacerdotais, e é provável que diversos médicos ricos e
proeminentes da cidade tivessem recebido honrarias semelhantes.20 Porém não
se sabe se só os ricos eram aceitos no colégio, ou, assim como em Florença na
Idade Média, qualquer praticante de curas também poderia ingressar nessas
confrarias. Em 7 d.C. o plethos de médicos em Alexandria uniu-se para
homenagear a estátua de Caius Proculeius Themison, o archiatros, mas não seria
possível afirmar que o grupo incluía todos os cirurgiões, os massagistas ou
outros praticantes de curas, que se aglomeravam nas ruas estreitas da cidade ou
se era um grupo mais restrito.21 Embora fosse mais provável que só os médicos
com uma formação sólida e bem-sucedidos poderiam se reunir a esse grupo, é
possível que os ricos e poderosos exercessem sua liderança e que o preconceito
inerente da evidência epigráfica em relação aos ricos, nos privou de informações
sobre seus membros mais modestos. Com certeza, em Roma diversos médicos
participavam do Quinquatrus, um festival em homenagem a Minerva, que se
realizava anualmente de 19 a 23 de março, quando tecelões, pisoeiros,
tintureiros, sapateiros, médicos, professores, pintores e gravadores desfilavam
juntos ao redor da cidade.22

Figura 17.1 Lápide em mármore do médico Claudius Agathemerus e sua esposa


Myrtale (ANMichaelis, 155), Roma, c. 100 d.C. Ashmolean Museum,
Universidade de Oxford. Essa afirmação pública de pertencer a um grupo
profissional ajudou a definir quem era um medicus, pelo menos quem assistia
aos desfiles ou lia os resultados de competições médicas, porém, não impedia
que pessoas externas a esse grupo oferecessem serviços médicos, ou se
intitulassem ou fossem chamados de medici. Já vimos o charlatão da Síria citado
por Galeno, os profetas nômades da Palestina, que curavam as pessoas, Marsi o
encantador de serpentes, e seus equivalentes mais exóticos, os psilos e os
nasamones.23 Em Atenas, um homem que praticava a medicina e “exibia
cobras” teve um acidente com terríveis consequências durante uma apresentação
para seus colegas médicos. A jarra de água derramou e ele não conseguiu limpar
imediatamente o veneno de uma víbora de sua boca, que sugara de uma mordida
do braço. Seu organismo não resistiu ao processo infeccioso generalizado e
morreu em profundo sofrimento dois dias depois.24 Outros seguiam
especialidades menos perigosas, sob uma série de denominações. No Egito e no
Levante havia médicos especializados em circuncisões; no Egito o “médico que
fazia circuncisão” tinha um cargo oficial após a década de 120.25 A cidade de
Eleia, no sul da Itália, com sua pholeon (uma organização semirreligiosa) de
médicos, que seguia a doutrina do filósofo Parmênides, também teve “médicos-
profetas” no início do império.26 Não se pode esquecer o curandeiro que
perambulava pelas feiras com seu estoque limitado de remédios, ou os
oftalmologistas na Inglaterra e nas províncias a noroeste, cujos instrumentos
cirúrgicos indicaram que sua expertise era maior do que o simples tratamento de
doenças oculares com pomadas.27 Uma lista de nomes citados nos livros de
remédios de Galeno, com receitas específicas, oferece uma indicação cuidadosa
dos diversos profissionais que se ocupavam com a saúde do ser humano: Áquila,
o oftalmologista; Antônio, o comerciante de remédios; Apolônio, o
farmacêutico; Axius, médico na frota inglesa; Celer, o centurião; Diogas, o
treinador; Euschemus, o eunuco; Flávio, o boxeador; Orion, o cavalariço;
Fárnaces, o ceifador persa; Philoxenus, o professor; e Simmias, o que atraía
multidões (ou o médico charlatão).28 Aquillia Secundilla, outro nome citado na
lista de Galeno, e que tinha uma receita especial para o tratamento da ciática,
revelou a importância da medicina caseira e do papel das mulheres no tratamento
da família.29 Seu nome de origem romana também sugere que ela pertencia a
uma classe social, na qual era possível ter um interesse intelectual pela medicina
sem praticá-la, exceto com a família. Muitos autores importantes do período
imperial romano escreveram obras detalhadas sobre medicina e esperaram que
seus leitores também se interessassem pelo tema. Cornelius Celso, como vimos,
escreveu os oito volumes de Sobre a medicina como parte de uma grande
enciclopédia intitulada Arts and Science, que se destinava ao aprendizado de
seus colegas. Em torno de 110, o moralista grego Plutarco de Queroneia
descreveu em seu livro Conversas na mesa a conversa dos personagens do livro
sobre diversos assuntos de medicina, desde anatomia a novas doenças.30
Cinquenta anos mais tarde, Aulus Gellius, ao se lembrar dos debates de sua
juventude em Atenas na época de Herodes Atticus, afirmou que seria uma
vergonha um homem educado desconhecer a diferença entre veias e artérias.31
Esse seria um engano que dificilmente os senadores, ex-cônsules e parentes do
imperador, que assistiam às exposições de anatomia de Galeno ou o
acompanhavam ao quarto do doente e mais tarde lhe pediam cópias de suas
palestras, cometeriam.32 O orador Apuleio, julgado por feitiçaria em torno de
140, mencionou uma série de argumentos médicos e citou as teorias de Platão,
Aristóteles e Teofrasto a respeito da epilepsia, para mostrar que seus acusadores,
ao contrário do juiz instruído, eram uns camponeses ignorantes que confundiam
medicina com magia.33 L. Annaeus Sêneca (c. 4 a.C.– 65 d.C.), tutor do
imperador Nero, demonstrou um conhecimento tão profundo de medicina, que
um historiador de medicina do século XIX convenceu-se de que havia sido um
médico experiente.34 No entanto, o conhecimento de Sêneca originava-se dos
livros que lera e da luta contra a asma e uma saúde delicada, sob orientação do
médico (“cujas atenções constantes o transformaram em um amigo, além de
médico), ou da experiência do ginásio onde tentava seguir as instruções de seus
treinadores impiedosos.35 A existência desses homens e mulheres cultos,
descritos por Galeno em seu tratado sobre como escolher o melhor médico, é
uma característica que distingue a medicina grega e romana da medicina
praticada em outros lugares.36 Porém é preciso mencionar um detalhe
importante: os praticantes da arte da cura raramente pertenciam às classes sociais
mais elevadas. Os elogios melífluos de Sêneca ao seu médico mostraram o
pouco que esperava dele no início, enquanto o comentário elogioso de Cícero
que a medicina era uma “arte liberal e requintada”, embora fosse de sua autoria e
não extraído de um autor grego, tem uma conotação sutil de ironia. Na verdade,
a medicina era uma arte nobre, mas só em comparação com o trabalho dos
coletores de impostos, marceneiros, cozinheiros e dançarinos; seu nível era
inferior à oratória, à política e à agricultura das propriedades rurais, e só era
apropriada para pessoas de “determinada classe social”.37 Cícero, é claro, não
pertencia a essa classe. Esse desprezo pelo exercício da medicina foi duradouro.
O ex-cônsul e historiador Cassio Dio considerava a ousadia de Gellius Maximus,
o filho de um médico da corte, de se proclamar imperador em 219 como a prova
máxima da decadência da sociedade.38 Essa opinião era típica de uma sociedade
que dava um valor considerável ao otiom, a independência ociosa de um senhor
proprietário de terras na área rural. Portanto, Galeno orgulhava-se de ser
chamado de “senhor” por seu paciente agradecido, o imperador Marco Aurélio,
porque era uma evidência de sua posição social e independência de pensamento.
Ao chamá-lo de senhor, o imperador elevou o status de Galeno de um médico
comum, que, é óbvio, tinha o mesmo nível social de um artesão, sem riqueza ou
importância.39 A tentativa de Galeno de incluir em Exortação à medicina os
advogados no círculo dos profissionais com um status superior, “cuja arte não
falha mesmo quando envelhecem”, foi um argumento sem nenhuma base sólida,
porque os médicos em geral não eram nem ricos, ou tinham a importância
política e social dos advogados.40 Em muitas cidades pequenas e vilarejos do
Egito no período romano, o médico, se não fosse isento, pagava o mesmo
imposto do marceneiro, e raramente pertencia à elite das grandes cidades.41 Os
manuais de astrologia, uma fonte de informações com uma distribuição
geográfica mais ampla, mencionam padrões semelhantes de posição social. Seus
autores citavam longas listas de profissões associadas à mesma estrela ou
planeta. Sob a proteção, por exemplo, de Mercúrio, estavam médicos,
advogados, professores, gramáticos, retóricos, arquitetos, sacerdotes, profetas,
astrônomos, intérpretes de sonhos, escultores, tecelões, músicos, magos
nômades, muitos dos quais desfilavam juntos em Roma no Quinquatrus.42 Essas
listas são pouco elucidativas, mas associadas aos comentários dos autores
ofereciam uma ideia mais precisa da sociedade onde viviam os médicos. Para
Vettius Valens, um contemporâneo de Galeno, os médicos eram inteligentes, mas
volúveis, e adoravam novidades e viagens ao exterior (xeniteia). Os médicos
eram citados em meio aos nomes dos que tinham profissões sofisticadas ou que
proporcionavam prazer e luxo, como os perfumistas, os ourives e os esgrimistas
e, por pouco, não tinham a mesma posição de classes menos respeitáveis, como
os caixeiros-viajantes, os charlatães, os cambistas, os impostores, os cunhadores
de moedas e os ferreiros.43 Dois séculos mais tarde, o médico tinha quase a
mesma posição social de um cozinheiro, do embalsamador e do agente funerário.
O medicus tinha uma vida modesta, afinal, era uma pessoa simples de classe
média. A pobreza sempre o ameaçava, com a perspectiva de descer ao nível dos
encantadores de serpentes, dos vendedores de venenos e dos mitomaníacos.
Segundo Firmicus Maternus, um escritor do século IV, bastava uma mínima
mudança na posição de um astro no momento do nascimento para determinar se
alguém seria famoso, um líder político, um juiz, entre outras posições de
destaque, ou um simples médico, um cirurgião, um soldado ou um gladiador.44
Pouquíssimos médicos conseguiam enriquecer ou exercer influência na
sociedade onde viviam, como os advogados e administradores. Esse pequeno
grupo era enviado como representante de suas cidades à corte dos imperadores;
conquistavam a amizade dos reis, porém, com um alto custo. Esses médicos,
depois de trabalhos árduos e viagens tediosas, às vezes tinham um final terrível
por terem ofendido o monarca.45 O mapa astrológico feito por Firmicus da
carreira de um médico tem semelhanças com as inscrições dos médicos nos
primeiros três séculos do Império Romano. No topo da pirâmide estavam os
médicos que atendiam ao imperador, à sua família mais próxima, aos membros
proeminentes da corte, ao Senado e aos burocratas do império. No século I os
médicos estrangeiros obtinham a cidadania romana em troca de serviços
prestados à corte ou em Roma, mas, em geral, eram originários de famílias
respeitáveis da Grécia ou de Marselha, o posto avançado da cultura grega além
dos Alpes.46 O acesso direto ao imperador significava, ou presumia-se que
significava, o acesso direto ao poder e ao que ele envolvia − riqueza, prestígio e
apoio. Antonius Musa recebeu honrarias e dinheiro pela cura de banhos frios de
Augusto na crise de 23 a.C., e a ilha de Samos o homenageou como benfeitor
mesmo quando caiu em desgraça por não ter conseguido curar o sobrinho e
sucessor de Augusto, C. Cláudio Marcelo.47 Mas a proximidade do imperador
também atraía hostilidade. A acusação de Plínio, o Velho aos principais médicos
de Roma é uma prova da ambição direcionada à riqueza material e ao poder. Ele
criticava Arruntius, Charmis, Crinas e Alcon por cobrarem honorários
excessivos, embora gastassem o dinheiro em obras públicas, reconstruindo a
muralha da cidade ou construindo um belo templo. Eudemus e Vettius Valens
foram acusados de um crime ainda mais grave, o adultério com as pacientes da
corte imperial.48 Os comentários mordazes dos satíricos gregos e latinos sobre a
propensão dos médicos de terem relações sexuais com suas pacientes e de
assassinarem os maridos para encobrir o adultério têm aqui um contexto
histórico.49 Todas as mortes súbitas na família imperial eram cercadas por
suspeitas de envenenamento, com ou sem razão. A morte do imperador Cláudio
em 54 d.C. foi atribuída aos truques de uma herbolária e envenenadora, Lucusta,
ajudada pelo principal médico do imperador, C. Stertinius Xenofonte.50
Xenofonte, um membro de uma família rica de Cós, que se dizia descendente de
Héracles e Asclépio, era o exemplo da nova elite de médicos. Imensamente rico,
porque só o exercício da medicina em sua cidade lhe rendia 500 mil sestércios
por ano,51 Xenofonte trabalhou na corte imperial por pelo menos 15 anos. Em
razão de ter acompanhado o imperador Cláudio à Inglaterra em 43 d.C., recebeu
condecorações militares apropriadas aos seus títulos (honoríficos) de centurião e
“Superintendente dos Engenheiros” (praefectus fabrum). Dez anos mais tarde
seus cuidados médicos curaram o imperador Cláudio de uma grave doença.
Xenofonte também trabalhou como um dos secretários gregos do imperador,
além de ter sido um dos “amigos e conselheiros” dos imperadores Cláudio e
Nero. As moedas cunhadas em Cós e as inúmeras inscrições dedicadas a ele e à
sua família testemunharam as benfeitorias que recebeu em sua ilha natal, como a
chefia de uma missão diplomática para garantir a isenção do pagamento dos
impostos romanos, entre outras honrarias, assim como lhe atribuíram a função de
sacerdote vitalício do culto imperial. Sua devoção a Esculápio foi demonstrada
pelo exercício do sacerdócio no grande santuário e, sobretudo, pela construção
de uma biblioteca, um pequeno templo e casas de banhos com um sistema mais
moderno de tubulações de água no local.52

Figura 17.2 Moeda de bronze cunhada na ilha de Cós em torno de 50 d.C. O
anverso mostra o busto de C. Stertinius Xenofonte, médico do imperador
Cláudio, além do nome Xenofonte. No reverso, a deusa Higeia alimenta a
serpente sagrada de Esculápio. Museu Britânico, Reg. Nº 1850, 1128.56. ® The
Trustees of British Museum.

Figura 17.3 Moeda de bronze cunhada na cidade de Heraclea Salbace entre 150 e
161 para comemorar a doação à Associação dos Jovens feita pelo metodista
Statilius Attalus, colega e rival de Galeno na corte imperial romana (ver p. 258).
O anverso mostra o busto do futuro imperador Marco Aurélio e o reverso
Hércules e sua clava. Museu Britânico, Reg. Nº 1844,0425.184.® The Trustees
of the British Museum. Cinquenta anos depois outro médico da corte imperial,
Statilius Crito, seguiu uma carreira semelhante. Membro de uma família rica da
pequena cidade de Heraclea Salbace na Cária (região central da Turquia), Crito
mudou-se para Roma, onde foi nomeado médico do imperador Trajano em torno
de 100 d.C. Um renomado historiador, Crito escreveu um livro sobre as “guerras
góticas”, um relato das campanhas de Trajano ao norte do Danúbio na região
atual da Hungria e da Romênia. Das obras preservadas que escreveu a maioria
refere-se aos estudos de farmacologia, dos quais extraiu em parte um tratado
sobre cosmética atribuído erroneamente, com quase certeza, à grande beleza da
época, a rainha Cleópatra do Egito.53 Ele também recebeu honrarias e cargos
prestigiosos: foi nomeado procurador romano, pelo menos hierarquicamente, e
ao se aposentar foi homenageado com diversas funções sacerdotais em sua
cidade natal. As cidades de Heraclea e a metrópole de Éfeso, onde os “médicos
que faziam sacrifícios ao ancestral Asclépio e aos imperadores o homenagearam
com um memorial”.54 Crito pertencia a uma família de médicos de Heraclea,
entre os quais Statilius Attalus, talvez seu sobrinho-neto, porque não se sabe ao
certo o parentesco, foi médico da corte imperial na década de 150, e um
importante benfeitor de sua cidade natal.55 Um contemporâneo mais jovem de
Attalus e médico da corte imperial, L. Gellius Maximus, também foi nomeado
procurador romano, além de ter sido generoso em suas doações para a cidade
natal, Antioquia, na província romana de Pisídia.56 Os médicos com um
relacionamento tão íntimo com o imperador exerciam um papel de
intermediários das aspirações de ascensão de suas cidades e das famílias. Eles
tinham boas relações com os senadores, eram convidados a se hospedarem nas
casas das famílias mais importantes da cidade, e exerciam poder e influência,
embora não se saiba se os imperadores sentiam-se mais interessados por sua
posição social ou pela competência profissional.57 Mesmo os médicos de uma
posição social mais modesta beneficiavam-se da relação com o imperador,
apesar de mais distante. Por ordem do imperador Trajano, Calpurnius
Asclepiades, um médico de Prusa (noroeste da Turquia) obteve a cidadania
romana para ele, seus pais e quatro irmãos, além do emprego para uma sobrinha
como uma das assistentes dos magistrados por ocasião de eleições em Roma e na
Ásia Menor.58 O apoio do imperador era útil como no caso de Calpurnius, que
se vangloriava que seu “conhecimento e virtudes morais haviam sido
reconhecidos por homens notáveis” e pelas cartas preocupadas de Plínio, o
Jovem em seguida à sua doença em 98.59 Plínio havia pedido ao imperador
Trajano que concedesse a cidadania romana ao seu massagista egípcio,
Harpocras, um ex-escravo de uma egípcia. Pouco depois de o seu pedido ter sido
atendido, Plínio descobriu que os egípcios só receberiam a cidadania romana se
fossem cidadãos de Alexandria. O pedido de desculpas e a solicitação de
cidadania de Alexandria foram recebidos com irritação pelo imperador. O
procedimento fugia às normas, mas como já havia concedido a cidadania romana
a Harpocras, o imperador viu-se forçado a atender à solicitação de Plínio. Alguns
meses depois Plínio fez outro pedido de cidadania, desta vez para diversos
parentes de seu médico grego, Marino.60 Harpocras, um simples massagista
egípcio que não era cidadão de Alexandria, tinha uma posição social inferior à
de muitos médicos de famílias tradicionais de médicos do leste da Grécia e com
raízes profundas em suas localidades, como as famílias Statilia da cidade de
Heraclea na Cária, Philaletha em Men Karou e Acilia de Claudiopolis. Pelo
menos três gerações da família de Moschianus trabalharam como médicos em
Thyateira (Ásia Menor).61 Por serem pessoas ricas da cidade, eles contribuíram
para a construção de santuários e a realização de festivais, foram nomeados
magistrados, fizeram missões diplomáticas e participaram da vida cultural de
suas comunidades.62 Em geral, esses médicos casavam-se com jovens de
famílias ricas com relações na corte imperial e na administração romana, ou um
homem importante da cidade permitia que o filho seguisse a carreira de médico
como Lucius, membro de uma família medianamente rica de Maeonia, na Lídia,
que morreu enquanto estudava com um médico local, Tatianus.63 Se houvesse
vivido mais do que 19 anos teria viajado para lugares mais distantes, como os
jovens de famílias semelhantes, que viajavam quilômetros para aperfeiçoarem
seus estudos de medicina, em lugares como Tieium no Mar Negro a Esmirna, ou
de Pérgamo e Adada na Frígia para Alexandria.64 Mas esses médicos
pertenciam à elite da profissão e não podemos esquecer que havia muitos
médicos pobres na Grécia, que forneciam ingredientes alternativos para as
receitas médicas de Galeno por um preço mais barato, assim como instrumentos
e livros mais apropriados aos médicos ricos.65 Esses médicos de origem mais
humilde só tinham condições de fazer pequenas viagens para aprimorar seus
estudos e, às vezes, nem mesmo tinham oportunidade de viajar. A maioria
aprendia medicina com os ensinamentos de membros de sua família, o pai, um
mestre, o marido nos casos das mulheres que praticavam a medicina, ou eram
autodidatas. Esse padrão social da Ásia Menor era radicalmente diferente da
sociedade de Roma, da Itália e, embora com menos evidências, das províncias de
língua latina. Nesses lugares poucos medici tinham seus cargos municipais, ou
funções sacerdotais citados em inscrições. Só um médico, C. Julius Rogatianus,
de Sufetula, na África, foi nomeado magistrado, e não há registros de médicos
com funções sacerdotais, exceto por alguns seviri Augustales, sacerdotes que
prestavam culto ao imperador Augusto, entre os quais a maioria compunha-se de
ex-escravos.66 Poucos médicos pertenciam a famílias com ligações antigas com
uma cidade específica, e a grande maioria tinha nomes que indicavam uma
origem estrangeira. Uma estimativa aproximada sugere que 90% dos médicos
citados nas inscrições do século I do Império Romano tinham nomes gregos e
esse percentual de mais de 60% manteve-se nos dois séculos seguintes.67 Nesse
período, mais de 90% dos médicos em Roma tinham nomes gregos e só no norte
da África o número de nomes não gregos equivalia aos nomes de origem
grega.68 Nas pequenas pedras usadas para fazer pomadas para os olhos
descobertas na Gália, na Inglaterra e na Alemanha os nomes gregos também
predominavam.69 Os países do Ocidente tinham um maior número de médicos,
ou praticantes de medicina de ambos os sexos, escravos ou pessoas libertas do
que o Oriente. Essa diferença quantitativa poderia ser explicada em parte pelas
divergências epigráficas: os decretos públicos eram mais comuns no leste da
Grécia e Roma tinha mais cemitérios que abrigavam túmulos de familiares do
imperador ou de senadores ricos. A maioria dos escravos e libertos que vivia na
corte imperial ou na casa dos senadores era atendida por médicos da mesma
posição social organizados em “decúrias”, grupos de 10 pessoas com ocupações
diversas em meio à família. Alguns médicos, ou praticantes de medicina, dos
sexos feminino e masculino, eram criados ou treinados para exercer essa
profissão dentro do palácio imperial.70 Mas esses fatores não são os únicos
responsáveis pelas diferenças marcantes entre o Oriente e o Ocidente, sobretudo,
porque são confirmados pela evidência literária. Mesmo com uma visão
cautelosa da afirmação de Galeno, que Roma atraía como um ímã os médicos
incompetentes das províncias da Grécia oriental, assim como alguns muito
talentosos, os médicos nas obras de Sêneca e nas cartas de Plínio eram todos
estrangeiros. A inclusão do satírico Juvenal do médico, o massagista, o
professor, o pintor, o vidente, o mágico e o funâmbulo como profissões típicas
dos “gregos de classe inferior”, não é um sinal de distinção.71 A percepção de
que a medicina era de certa forma uma profissão exercida por imigrantes, ex-
escravos e praticantes ocasionais estrangeiros, contribuiu para a ausência relativa
de médicos com cargos públicos no Ocidente, mesmo que alguns observadores
os desprezassem tanto como Catão e Plínio. A experiência atual da Grã-Bretanha
com médicos provenientes da África, da Índia e do Paquistão (ou dentistas do sul
da África) proporciona uma visão interessante desses costumes da Antiguidade,
mesmo sem a complexidade social do atendimento médico por escravos e ex-
escravos. Esse fato sugere que o processo de assimilação era lento e que esses
estereótipos continuaram a definir o padrão de comportamento durante várias
gerações. Images Figura 17.4 Uma placa minúscula com um texto referente a um
médico escravo, Tyrannus, que trabalhava no palácio da imperatriz Livia em
Roma. CIL 6, 3985. Cortesia dos Museus do Vaticano. Images Figura

Figura 17.5 Uma longa e prolixa inscrição em grego em homenagem ao médico
e filósofo Asclepíades (fl. 300 d.C.). IG 14, 1424. Cortesia dos Museus do
Vaticano.
Figura 17.6 Lápide de um médico imigrante grego em Roma, c.AD20. O nome
de Sosicrates, filho de Sosicrates, de Niceia, é espremido no fundo de uma
inscrição de túmulo que registra dois ex-escravos da família de Munatius. Roma,
Museu delle Terme. Porém isso não significa que os médicos no Ocidente não
ganhassem dinheiro; uma das atrações de Roma e da Itália era a possibilidade de
encontrar pacientes mais ricos do que em uma pequena cidade da região central
da Ásia Menor. O mausoléu do médico grego Patron e de sua família em Roma
era decorado com belos afrescos do estilo em voga da época de Augusto.72 A
descoberta recente da casa de um médico em Rimini revela a riqueza de seu
dono, bem como a casa de um cirurgião em Pompeia, embora não tão luxuosa
como outras na cidade.73 Assim como o personagem Trimalquião do livro
Satiricon de Petrônio, o ex-escravo P. Decimius Merula Eros, “clínico,
oftalmologista e cirurgião”, pagou 2 mil sestércios pelo cargo de sevir e doou 30
mil sestércios para construir as estátuas do templo de Hércules em Assis e 37 mil
para pavimentar as estradas, além de ter deixado uma herança de 800 mil
sestércios. Sua liberdade e ambição lhe custaram caro: os 50 mil sestércios pagos
para ser um escravo liberto estavam acima do padrão da época de 20 mil
sestércios.74 Em Benevento, no século II, um médico, filho de um imigrante
grego (talvez também médico), exerceu funções cívicas depois de nomeado pelo
conselho municipal e ganhou dinheiro suficiente para ascender à posição de
cavaleiro. Mas foi seu filho que, quase com certeza não era médico, ocupou o
cargo de magistrado e foi um grande benfeitor de seus concidadãos.75

Figura 17.7 A lápide de Valeria Berecunda, “a primeira parteira da sua região”,


que morreu aos 34 anos, CIL 6, 9477. Roma, cortesia dos Museus do Vaticano.
Havia outras dificuldades para ganhar dinheiro, além da competição. No mundo
de Galeno existiam inúmeros curandeiros, que se reuniam nos quartos dos
doentes para oferecer seus conselhos.76 Esses curandeiros são citados em
registros epigráficos de lugares diferentes. Um médico de Niceia na Bitínia foi
enterrado no minúsculo vilarejo de Perrhaebia na Tessália “depois de viajar para
muitos lugares por terra e por mar”, ao contrário de Zeuxippus, homenageado na
pequena cidade de Ciparisso como “um cidadão excelente na tradição de seus
ancestrais e que continuava a praticar”. Nas montanhas dos Abruzzi, Q. Peticius
L.f. Chirurgus preparou um túmulo para ele e sua família, enquanto em Ameria
na Umbria um ex-escravo que, segundo tudo indica, era médico, adotou o nome
profissional de Hipócrates, o homem liberto de Zeuxis.77 Sem dúvida, era mais
prudente que um vinhateiro com um corte na ponta do dedo procurasse um
cirurgião na cidade, do que esperar que um médico aparecesse em sua
vizinhança. Além disso, muitos viajantes ricos achavam que era mais seguro e
útil ter um médico entre seus acompanhantes.78 Mas os médicos também eram
encontrados em lugares minúsculos como Daldis, na Ásia Menor, ou Tithorea no
sul da Grécia, que de acordo com o viajante Pausânias, dificilmente poderia se
chamar de cidade por causa dos prédios públicos decadentes e com a única
vantagem de ter uma fonte de água mineral no sopé da colina.79 Uma cidade de
porte médio como Pompeia tinha um excesso de médicos, como revelado no
número aproximado de 25 casas onde foram encontrados instrumentos
cirúrgicos; as cidades vizinhas de Sorrento e Stabiae, recomendadas por Galeno
como cidades apropriadas ao tratamento de tuberculose, também tinham seus
médicos locais.80 Os médicos poderiam viver com o que ganhavam, mas era
preciso ter acesso a pacientes ricos para cobrar honorários mais caros. Os
padrões de riqueza e posição social também dependiam do parâmetro de
comparação. A opinião dos doentes depois dos tratamentos como, por exemplo,
se achavam que estavam curados ou se apenas tinham melhorado, era essencial
na valorização do médico. Mas essa opinião também dependia da expectativa
inicial de cura, da avaliação das habilidades reais ou supostas do médico e da
existência de alternativas. Todas essas considerações eram extremamente
subjetivas e, portanto, variáveis. Muitas doenças eram difíceis, ou impossíveis de
serem tratadas com sucesso e, nesse caso, as expectativas do médico e do
paciente tinham de estar em sintonia. Mas mesmo se um médico comum não
fosse um plutocrata, sobretudo em uma cidade pequena, ele viveria com mais
conforto do que a maioria da população. Entre 15 a 27 dos 97 médicos
registrados nos papiros egípcios dos séculos I e II d.C., obtiveram a cidadania
romana antes da concessão universal de cidadania por Caracalla em 212; e
muitos dos que não eram cidadãos romanos não caíam na categoria inferior das
pessoas obrigadas a pagar impostos, e eram respeitados em suas comunidades.81
É preciso também ter em mente que as expectativas e as atitudes divergiam de
acordo com os lugares. A lápide construída em torno de 200 d.C. do túmulo do
médico Fadianus Bubbal em Cesareia, na Mauritânia, o retrata vestido com uma
túnica rústica e uma machadinha em uma das mãos, uma imagem bem menos
elegante do que o belo busto do metodista M. Modius Asiaticus em Esmirna, ou
do médico romano Claudius Agathemerus e sua esposa dois séculos antes.82
Porém esses julgamentos estéticos indicam a diferença existente entre as noções
de riqueza e beleza nas províncias e metrópoles. Na comunidade de Fadianus
não era comum ter lápides com desenhos esculpidos e, portanto, ele deveria ser
um homem medianamente rico por ter sido retratado. A lápide de um túmulo na
ilha de Citera, no extremo sul da Grécia, é um excelente exemplo da importância
da perspectiva local na definição dos padrões de valores da época. Um homem
jovem teria tido uma carreira gloriosa, dizia o epitáfio, se depois de concluído os
estudos de medicina não tivesse escolhido morar em Boiae, no continente à
frente da ilha e, em seguida, em Esparta.83 Boiae era um pequeno vilarejo e
Esparta, apesar de Archagatus e Leônidas, e de ser uma cidade maior, não era
um centro médico prestigioso. Mas a mudança para o continente e, em seguida,
para Esparta deve ter sido um desafio para um jovem que vivia em uma ilha, e
que poderia ser recompensador, a exemplo das migrações de Galeno para os
centros respeitados de ensino de medicina. Images
Figura 17.8 Memorial de um médico romano na Ásia Menor. A bela lápide fora
feita em Atenas em torno de 375 a.C. Cerca de 400 anos depois ela foi
reutilizada para homenagear um médico desconhecido, com um desenho
esculpido de uma caixa aberta com instrumentos cirúrgicos e rolos de papiro.
Freiburg im Breisgau, Museu de Arqueologia Clássica. Os níveis de diferença de
riqueza, posição social e educação entre os médicos dificultam qualquer
generalização sobre metodologias terapêuticas e procedimentos. Os médicos
itinerantes tinham recursos limitados devido à quantidade de remédios e
instrumentos que podiam carregar, e pelo tempo que dispunham antes de
recomeçar as viagens. “Como curar um doente com mudanças constantes de
lugares?”, perguntou Sêneca em tom de desaprovação, porque “as viagens não
preparam os homens para serem médicos”.84 Por sua vez, o médico que vivia
em uma cidade poderia transformar sua casa em um hospital para realizar
cirurgias ou em um local onde os doentes podiam se internar sob sua observação
e de seus assistentes.85 Esse médico teria muitas oportunidades de conquistar
pacientes e prestígio social. Alguns médicos eram contratados pelas associações
de jovens, os “efebos”, em Atenas e talvez em outros lugares.86 Outros
acompanhavam as procissões formais ao santuário do oráculo em Claros e, às
vezes, ofereciam serviços médicos às multidões reunidas para assistir aos Jogos
Olímpicos.87 Alguns médicos faziam palestras para o público, que se
surpreendiam com suas ideias.88 Na Espanha alguns médicos eram contratados
por grandes empresas de mineração para cuidar da saúde de seus operários.89
Na Grécia, pelo menos até o século IV a.C., os médicos examinavam os escravos
que seriam vendidos e seus sucessores em Roma também os examinavam para
diagnosticar sinais de epilepsia ou sintomas de um ouvido supurado.90 No Egito
no período romano os “médicos públicos” testemunhavam casos de morte ou de
ferimentos perante as autoridades policiais. Eles também escreviam suas
recomendações equivalentes aos atestados médicos atuais. Em 316 d.C. um
funcionário do governo pediu a dois “médicos públicos” de Oxirrinco que
fossem examiná-lo para verificar se estava doente.91 Não se sabe ao certo se só
os “médicos públicos” podiam fazer relatórios de perícia forense ou confirmar se
uma pessoa estava tão doente que não tinha condições de cumprir suas
obrigações do pagamento de impostos, ou se esse sistema existia em outros
lugares além do Egito.92 Em meio às inúmeras informações um fato se destaca.
A prática de medicina era uma arte pública. Apesar da imposição de segredo de
Hipócrates e da existência de remédios “secretos” e técnicas, os doentes eram
tratados em público diante de espectadores curiosos. Em Atos dos apóstolos, o
apóstolo Lucas contou as histórias de curas que se realizavam nas ruas, do lado
de fora de um templo ou de uma casa repleta de pessoas. Diversas testemunhas
repetiam as histórias das curas milagrosas para outras pessoas que, por sua vez,
iam ver o novo prodígio trabalhar e tocar na bainha de suas vestes.93 O local
onde o médico fazia cirurgias, assim como o salão do barbeiro ou oficina do
sapateiro, era um ponto de encontro; na verdade, era um ergasterion, uma
“oficina”, cheia de criados, escravos, clientes e talvez o médico da família.94 Os
pacientes olhavam admirados enquanto o médico exibia os instrumentos que iria
usar na cirurgia e alguns conversavam animados com ele.95 Os médicos
artesãos, assim como outros artistas, gostavam de exibir seus talentos à frente
dos expectadores, muitos dos quais não suportavam a visão do sangue das
cirurgias.96 Às vezes, era mais prudente mentir que a cirurgia seria adiada e
realizá-la em segredo, sobretudo, se o médico percebesse que o paciente poderia
ficar assustado ou envergonhado ao mostrar as nádegas ou os órgãos genitais
para uma multidão curiosa. Mas, mesmo assim, era impossível evitar a presença
de outras pessoas na sala de cirurgia e ao médico só restava a opção de sussurrar
para o paciente que se esforçaria para ser o mais discreto possível.97 Nessa
arena pública, a postura era tão importante como o conteúdo, e o médico
descrevia suas ações até o resultado final.98 Nesse contexto da medicina como
uma arte pública, era comum que as lápides dos túmulos de alguns médicos os
retratassem em ação com uma atitude orgulhosa ou indicassem sua profissão
com um conjunto de instrumentos cirúrgicos.99 Um baixo-relevo de Ostia
esculpiu a figura de um médico lendo em frente à sua estante de livros.100 Mas
a extensão e a natureza do conhecimento da literatura médica é difícil de
precisar. Galeno, que sempre destacava a importância do aprendizado adquirido
nos livros, insistia que seus colegas deveriam conhecer as principais doutrinas de
alguns grandes médicos, de Hipócrates a Asclepíades da Bitínia.101 Não se sabe
se os colegas de Galeno (ou seus pacientes) tinham acesso aos originais dessas
obras, apesar do comércio próspero de livros de medicina em Roma. É mais
provável que lessem resumos, quase sempre com perguntas e respostas que
facilitavam a assimilação do texto, do que seguir as opiniões dos grandes
mestres a respeito de determinadas doenças e seus tratamentos.102 Outros
autores escreveram Introdução à Medicina com pequenas definições de palavras,
às vezes referindo-se a opiniões de antigos médicos, seguidas de indicações
sucintas de um tratamento adequado. As mesmas definições foram usadas ao
longo dos séculos, de diversas formas, em textos com uma orientação doutrinária
diferente em latim e grego. Mas, embora isso sugira coerência, os textos tinham
variações significativas de conteúdo, mesmo em versões supostamente de um
único trabalho.103 Além disso, nem sempre professores e alunos que seguiam
uma doutrina médica a interpretaram da mesma maneira. Não havia meios de
preservar a fidelidade de uma doutrina e, como vimos, as doutrinas dos
metodistas e dos hipocráticos antes de Galeno evoluíram no decorrer do tempo e,
em consequência, as características de determinados princípios alteraram-se
entre as diferentes gerações e autores. Nem a atribuição de uma obra a um
médico famoso do passado garantia que as ideias descritas no texto
correspondiam às do suposto autor, como Galeno descobriu em mais de uma
ocasião.104 A suposta carta de Diocles ao rei Antígono (também atribuída a
Hipócrates e dirigida de diversas formas ao rei Antígono, a Ptolomeu e a
Mecenas, amigo do imperador Augusto) dividia as doenças físicas em quatro
grupos, que afetavam a cabeça, o tórax, o estômago e a bexiga.105 Apesar de o
autor concordar com a doutrina hipocrática de associar as diferentes doenças às
estações do ano e à teoria dos quatro humores principais (embora não usasse
essa terminologia), ele dividia o sangue em soros sanguíneos “suaves” e
“amargos”, e sua analogia dos humores predominantes com as estações do ano
não correspondia à do Natureza do homem ou ao esquema de Galeno. A
afirmação que esse autor pertencia à escola hipocrática é no mínimo discutível; e
identificá-lo com o histórico Diocles, com quem compartilhava apenas um
interesse em dietética seria uma ideia ainda mais improvável. Apesar das
diferenças consideráveis de interpretação em relação à teoria da medicina, sua
prática é ainda mais diversificada. Essa diversidade não era resultado apenas de
uma enorme série de doenças, com as quais os médicos poderiam se deparar. A
lista de Galeno de doenças que, em sua opinião, um médico competente teria
condições de tratar com remédios e dieta estendia-se de gota a enxaqueca, e de
um acidente vascular cerebral a hemoptise. A lista era surpreendentemente
longa, sobretudo, porque representava as mínimas exigências de Galeno quanto à
competência de um médico.106 A lista abrangia as doenças descritas por Celso e
as mencionadas no tratado sucinto pseudogalênico, Introdução à medicina. Mas
a especialidade escolhida pelo médico era uma opção pessoal. Alguns, em
especial nas grandes cidades, poderiam se especializar em um tipo de doença;
outros ofereciam curas para todas as enfermidades. Galeno enfatizava com
frequência a unidade da medicina em toda a sua abrangência, assim como
pensava que um médico deveria conhecer os remédios e as técnicas de cirurgia
com a mesma profundidade, que ele conhecia a dietética. Seu contemporâneo, o
autor com um nome fictício de Introdução a medicina, incluiu muitas
informações a respeito de algumas cirurgias, às vezes bastante complexas.107
Mas, assim como a insistência de Scribonius Largus de que o médico deveria ter
um conhecimento profundo dos remédios e de seu funcionamento, essa menção
a cirurgias significava também que essa especialidade estava sendo realizada por
médicos mais hábeis ou audaciosos. Se a prudência do médico o aconselhasse a
não fazer um determinado procedimento, sua precaução não era criticada. A
opinião de um dos primeiros seguidores de Erasístrato, Strato, de que a
flebotomia deveria ser evitada, em razão da dificuldade em se distinguir as veias
das artérias, e da possibilidade de um paciente morrer de medo ao pensar que lhe
iriam fazer uma sangria venosa, foi aceita por muitos médicos e pacientes.108
Porém existiam outras diferenças na prática da medicina que dependiam bem
menos de considerações prudentes, e sim da convicção de que determinadas
crenças e métodos não deveriam ser incluídos na medicina. Em 162-163 Galeno
foi criticado pelo uso de determinadas práticas contrárias aos princípios da
medicina. Um importante seguidor de Erasístrato em Roma acusou-o de usar a
magia para prever o curso da doença de seu antigo professor, o filósofo
Eudemus. Previsões como essas, disse, só poderiam ser feitas com outras formas
de adivinhação − observação do voo de pássaros, o exame das vísceras de
vítimas de sacrifícios, acontecimentos fortuitos ou horóscopos. Em sua resposta
irritada, Galeno declarou que nunca encontrara em Roma um profeta que
houvesse feito uma previsão correta e, como nunca fizera uma profecia, não
poderia ser acusado de copiar os métodos dos adivinhos. Além disso, seus
diagnósticos baseavam-se na observação e na análise racional, e não em
previsões, como um adivinho ou um astrólogo que tentava prever o futuro sem
mudar as circunstâncias.109 Quando escolhia a referência ao céu, seu objetivo
não era o de calcular a posição das estrelas no início de uma doença, mas, sim,
como Hipócrates, de usar a astronomia em benefício da compreensão das
mudanças climáticas tão importantes como causas de doenças. Os que tinham
outro tipo de comportamento eram tolos. Os adivinhos que interpretavam o voo
e o canto das aves para fazer profecias poderiam discutir entre si e escrever obras
cultas. Mas, apesar de muitos testemunhos que legitimaram suas previsões, seus
métodos, segundo Galeno, eram extremamente falhos e mais adequados a
explicar o poema astronômico de Aratus do que de contribuir para a medicina.
Quando acertavam em suas previsões era por outros motivos do que supunham:
nos dias de céu límpido as profecias decorrentes da observação do voo dos
pássaros ou de outras indicações, seriam provavelmente mais corretas do que em
dias chuvosos, como dissera Hipócrates há séculos.110 Porém, mesmo nas obras
de Galeno, a linha divisória entre as conclusões plausíveis e as absurdas a partir
da posição das estrelas era muito sutil. Ele repetiu, sem escrúpulos aparentes,
uma receita médica contra hidrofobia, que deveria ser preparada “depois do
nascer da estrela Sirius, quando o Sol tivesse se movido em direção à
constelação de Leão e a Lua houvesse atingido seu décimo oitavo dia de
órbita.111 Havia semelhanças metodológicas entre a medicina e a astrologia, que
favoreciam a associação cognitiva. O astrônomo e astrólogo Ptolomeu, elogiado
por seu contemporâneo Galeno, usou a medicina como um modelo da arte da
conjectura análogo ao da astrologia; segundo Ptolomeu, os astrólogos egípcios
tinham o supremo mérito de terem unido as duas artes.112 Por sua vez, no Livro
3 de Sobre os dias críticos Galeno demonstrou um grande conhecimento dos
detalhes técnicos da astrologia, da posição dos planetas, dos decanos, entre
outras teorias da astrologia, além de pressupor que seus leitores também os
conhecessem.113 Galeno também admitiu que muitas observações dos
astrólogos egípcios eram corretas, sobretudo, nas discussões sobre a influência
da Lua, enquanto seus comentários a respeito dos efeitos benéficos ou malignos
dos planetas na hora do nascimento não sugeriram oposição ao conceito da
astrologia como arte da adivinhação. Mas rejeitava qualquer insinuação do uso
da astrologia em sua prática médica, assim como duvidava da capacidade dos
egípcios de prever o curso de uma doença apenas com o estudo da configuração
do céu, embora admitisse que muitas pessoas acreditavam que eles tinham esse
dom.114 Ele reconhecia a solidez dos argumentos dos astrólogos sobre o que
haviam visto e calculado, mas dava um interpretação diferente do significado
desses pressupostos. A saúde e a doença não eram determinadas pelas mudanças
constantes da posição dos astros no zodíaco e sua influência nos seres humanos,
mas, sim, pelas mudanças no ambiente causadas por essas alterações no céu. A
recusa em admitir esse fato significaria uma oposição à experiência, como
qualquer “sofista desprezível” faria.115 No entanto, apesar de suas convicções, a
batalha de Galeno era árdua. A crença nas habilidades dos astrólogos egípcios na
previsão da saúde e da doença era disseminada, embora seja uma hipérbole
artística a afirmação do satírico Juvenal (c. 110 d.C.), que quando uma mulher
rica romana adoecia só comia e bebia no momento prescrito por Petosiris, o
famoso fundador da astrologia egípcia.116 Muitos textos de astrologia antiga
que se preservaram tinham informações médicas, descritos em geral em seções
referentes aos momentos mais adequados para fazer uma flebotomia ou tomar
um remédio, ou se uma doença seria longa ou rápida e, em especial, se a doença
seria ou não fatal.117 Um fragmento de um papiro egípcio datado do século IV
contém uma página de um tratado escrito por um médico e matemático com a
descrição de ervas com poderes mágicos, amuletos e pedras preciosas, bem
como instruções para tratar ferimentos de acordo com a posição do zodíaco.118
Sua ênfase no poder das ervas e das pedras em um determinado encontro de
astros sugere que o autor não se estendeu em comentários a respeito de uma
teoria astrológica, que distribuía as partes do corpo pela sequência dos signos do
zodíaco: o signo de Câncer era responsável pelo tórax, o de Peixes, pelos pés, e
assim por diante.119 Mas nem todos os médicos opunham-se à medicina
astrológica como Galeno e os metodistas. A epigrama do túmulo de um médico
rico de Nápoles, Decimus Servilius Apollonius, um “descendente do deus Ápis”,
ou seja, um egípcio, termina com o comentário de que morrera aos 93 anos,
“como havia sido previsto”. A astrologia médica também era uma atividade
lucrativa. Crinas de Marselha, segundo Plínio, enriqueceu com o uso de
calendários de astrologia para receitar remédios nos momentos mais
apropriados.120 A astrologia médica inseriu-se no corpus galênico apenas em
um pequeno tratado, Prognose feita no leito de alguém, de um autor com um
nome fictício e talvez de origem egípcia. O tratado mostrou como usar a
conjunção dos astros no momento em que o paciente adoecia, não só para prever
se a doença seria ou não possível de ser curada, como também para diagnosticar
a causa: “Se uma pessoa adoece quando a Lua está em Câncer com Saturno no
mesmo alinhamento, em oposição ou em ângulo reto, a doença foi provocada por
banhos ou pelo doente ter se resfriado… então remédios quentes serão
benéficos.”121 Os argumentos do autor baseavam-se na teoria estoica da
astrologia como parte de uma ordem divina do universo, assim como na visão
dos médicos mais antigos, não só de Diocles, que faziam seus diagnósticos de
acordo com a passagem da Lua.122 O autor também incluiu uma suposta citação
de Hipócrates, na qual ele dizia que os médicos que não praticavam a
fisiognomonia estavam condenados à ignorância e à perplexidade. Porém esse
elogio à fisiognomonia não constava da coletânea de obras do Corpus
Hippocraticum.123 Mas o autor faz uma afirmação ainda mais fantasiosa e
extravagante, ao dizer que a fisiognomonia, a arte de interpretar o caráter de uma
pessoa por meio dos delineamentos do rosto, era a divisão mais importante da
astrologia e, portanto, esse elogio à fisiognomonia também se aplicava à
astrologia. Embora Galeno tenha mencionado a importância das observações das
feições de uma pessoa em Epidemias 2, 5-6, além de ter admitido que existia um
vínculo entre a aparência física e a constituição interna do corpo, não
concordava com o entusiasmo da aplicação da astrologia à medicina de seu
apologista e, sem dúvida, daria outra explicação.124 Por ironia, pelo menos um
dos exemplares em latim de Prognósticos de Galeno publicado na Idade Média
foi influenciado por esse tipo de medicina profética.125 As analogias
metodológicas entre as previsões baseadas nos humores corporais e nas profecias
fundamentadas na posição dos astros eram, na verdade, muito próximas. O
médico e o astrólogo recorriam aos fatos concretos da experiência e ambos
confiavam nas interpretações complexas dos especialistas, embora fossem
óbvias, como o movimento dos planetas e dos fluidos corporais. A doutrina
hipocrática dos dias críticos assemelhava-se muito à crença do astrólogo em
climatérios, épocas específicas, até mesmo horas e dias, cruciais para determinar
o resultado de uma doença e, por esse motivo, não é por coincidência que a
discussão mais longa de Galeno sobre a importância da astrologia foi feita em
sua exposição dos princípios subjacentes à noção dos dias críticos.126 Os
argumentos de Galeno de que a medicina astrológica era rústica demais para
prever as variações inevitáveis nos acontecimentos ou nas pessoas poderiam ser
contestados pela insistência do astrólogo, de que uma profecia correta só poderia
ser feita por um especialista extremamente competente e com um grande
conhecimento do ser humano. Na verdade, em razão do reconhecimento de
Galeno da base factual subjacente a algumas teorias dos astrólogos, a medicina
astrológica tornou-se muito popular entre os médicos galênicos na Antiguidade
tardia e na Idade Média. Ao discutir a interpretação das observações dos
astrólogos referentes aos fenômenos celestiais, e não sua precisão, Galeno
contribuiu, embora involuntariamente, para conciliar a astrologia com a
medicina.127 Galeno opunha-se com mais veemência ao misticismo e à
farmacologia baseada nas noções de magia, que, em sua opinião, não tinham
uma base científica, assim como na influência de Atena e de Apolo no campo da
medicina. Segundo Galeno, não havia motivo para tratar das febres semanais
associando o tratamento à influência das sete Plêiades, das sete estrelas das
constelações da Ursa Maior e da Ursa Menor, e dos sete portões de Tebas. Ou à
influência das sete bocas do Nilo que, pelo menos, eram reais, visto que os
astrônomos e filósofos haviam provado há muito tempo que nenhuma
constelação tinha só sete estrelas.128 A opinião de Galeno quanto à
farmacologia apoiada em noções de magia também era radical. Ele distinguia os
remédios apropriados e os inadequados com base em três amplos critérios.
Rejeitava todos que continham excreta, “Dreckapotheke”, embora um
farmacologista culto como Asclepíades o Farmacólogo (fl. 90 d.C.) tivesse
escrito bastante a respeito das virtudes terapêuticas do excremento animal.129 A
proeminência de Asclepíades salvou-o da fúria de Galeno, ao contrário de
Xenocrates de Afrodisias (fl. 70 d.C.), a quem criticou por usar remédios
imundos feitos com suor, sangue da menstruação, ossos e carne de seres
humanos (apesar da oposição de Xenocrates ao canibalismo), assim como partes
de elefantes e cavalos do Alto Nilo e, supostamente, até mesmo de basilisco.130
No entanto, muitas das receitas de remédios citadas por Plínio na História
Natural usavam esses componentes, e os escrúpulos de Galeno não eram
compartilhados por muitos ou, talvez, a maioria dos médicos. O segundo critério
baseava-se nas fontes usadas pelos escritores de farmacologia. Galeno
desprezava o livro de remédios de Pânfilo por ser uma mistura de relatos de
mulheres idosas e de magia egípcia, e comparou o autor a um mensageiro lendo
uma lista de escravos fugidos, incapaz de identificar os nomes citados, apesar de
estarem à sua frente. Pânfilo confiara em textos extremamente questionáveis,
como o tratado de Conchlax sobre mordida de cobra e um panfleto dedicado ao
planeta Mercúrio, que citava 36 ervas, cada qual com seu signo do
horóscopo.131 No último critério Galeno afirmava que o funcionamento de um
remédio deveria ser explicado em termos da medicina e da física. Por esse
motivo, ele rejeitava magias, feitiços e amuletos, que em sua opinião não
acrescentavam nada às propriedades dos remédios.132 A linha divisória de
Galeno é bem exemplificada no relato de um amuleto feito com um jaspe verde e
recomendado no tratamento de problemas de estômago. Segundo sua fonte, um
longo trabalho atribuído ao faraó e mágico egípcio Nechepso, era preciso
esculpir a pedra com a imagem de uma cobra com os raios de sol incidindo nela
antes de colocá-la na boca do estômago.133 Na opinião de Galeno, isso era uma
sofisticação desnecessária; o amuleto era muito eficaz em sua forma não
lapidada. Em outra ocasião um informante confiável lhe contou que um amuleto
feito com caroço de uva curava mordida de cobra, mas para Galeno essa
superstição não se baseava na “aplicação de um verdadeiro método”, uma
opinião que se estendia ao uso da pedra olho de falcão vermelha no tratamento
de hemorroidas.134 A oposição de Galeno à inclusão desses remédios nos
tratados tradicionais de medicina era compartilhada por muitas pessoas, a
exemplo das objeções de Scribonius Largus ao uso do sangue do gladiador e ao
conselho impregnado de magia de Ambrosius de Puteoli.135 Mas outros
também discordavam. O tratado de medicina astrológica baseado em ervas
atribuído a Thessalos começa com um prefácio no qual o autor, um homem sem
dúvida rico e culto, descreveu como seus estudos de filosofia e medicina em
Alexandria o levaram a se interessar pelas ervas medicinais e como encontrara
nas bibliotecas da cidade o tratado de magia e astrologia do faraó Nechepso, que
decidiu copiar.136 Apesar das críticas de Galeno, escritores como Pânfilo e
Xenocrates tiveram seguidores e seus remédios continuaram a ser imitados e
consultados muitos séculos depois. De acordo com Max Wellmann, um
conhecido de Galeno tinha um livro sobre medicina mágica, Remédios médicos,
naturais e antipatéticos do autor do século II, Aelius Promotus.137 Essa obra
dedicada a um imperador, provavelmente Adriano, citava remédios feitos de
ervas, entre os quais um remédio para tratamento de catarro nos pulmões
aprovado por Trajano para uso no exército, bem como amuletos e remédios
feitos com excrementos.138 Em torno de 225, Julius Africanus, em seus
conselhos a um médico do exército de como tratar de ferimentos e de técnicas de
amputação de membros, recomendou o uso de instrumentos pontiagudos
(“menos dolorosos do que os instrumentos sem corte”), feitiços e de colocar uma
placa de metal com símbolos mágicos em cima da ferida.139 O livro das Pedras
de Xenocrates de Éfeso escrito no final do século I, ao ser traduzido para o árabe
no século IX, exerceu uma grande influência nos tratados árabes sobre o uso de
pedras preciosas.140 É provável que um trabalho semelhante tenha influenciado
as discussões acerca da importância do uso das pedras preciosas com
propriedades medicinais na coletânea grega Kyranides, inspirada em uma
antologia mais antiga de Marcelo de Side.141 Seu quase contemporâneo
Arquígenes de Apamea incluiu muitos amuletos médicos em seus diversos livros
sobre farmacologia.142 Com tantas referências elogiosas, não surpreende que a
história tenha rotulado os que se opunham ao uso de amuletos para evitar as
doenças de loucos.143 O uso de remédios ligados a magia, feitiços e cânticos era
disseminado no Império Romano, como comprovado pelas evidências
papirológicas em Roma, Egito, em fontes literárias e descobertas arqueológicas,
a exemplo de um amuleto de pedra preciosa com a imagem do deus da cura
Sárapis e uma inscrição mencionando que o deus era uma “fonte confiável de
cura”.144 Embora Galeno criticasse com veemência as práticas mágicas e
lamentasse a interpretação equivocada quando o comparavam a um feiticeiro, os
que precisavam de ajuda em momentos de doença tinham uma opinião mais
liberal. Elymas e Simão Mago citados em Atos como feiticeiros que atraíam uma
grande clientela ansiosa por suas curas, e as advertências de Plínio, o Velho em
relação aos remédios duvidosos do mágico persa Ostanes, mas ao mesmo tempo
os recomendava caso demonstrassem ser eficazes.145 Por isso, não causa
surpresa que o historiador Ammianus Marcellinus, ao descrever uma série de
perseguições à feitiçaria no final do século IV, tenha criticado o fato de um
homem ser julgado por usar antigos feitiços para aliviar a dor, que médicos
renomados haviam permitido, e que o simples ato de usar um remédio para febre
quartã ou outra doença ao redor do pescoço era passível de ser punido com a
pena de morte.146 Só uma repressão rigorosíssima conseguiria eliminar essas
práticas, mas poucas vezes foram combatidas por muito tempo ou com sucesso
prolongado. Como resultado das práticas que associavam a medicina à magia,
havia uma medicina pluralista, uma mistura de muitos tipos concorrentes de cura
tão abrangentes como a posição social de seus praticantes e da diversidade das
doutrinas em que acreditavam. Um contra-argumento diria que essa conclusão
era um equívoco, porque subestimava o grau de coerência existente entre o iatroi
e o medici. As diferenças doutrinárias em meio às seitas eram relativamente
pequenas; os opositores inescrupulosos, em especial Galeno, exageravam as
mudanças insignificantes como uma prova de divergência. A distância social que
separava Stertinius Xenofonte de um médico de um vilarejo egípcio não era
muito maior do que a de um especialista de Harley Street atual e um clínico
geral na cidade de Bradford ou na região rural do País de Gales. O mundo da
cura astrológica ou mágica tinha tão pouca importância para as ideias e
tratamentos dos médicos gregos e romanos como a acupuntura, a aromaterapia e
o galenismo astrológico de um médico atual em Torquay, Londres e Lyon.147
Apesar da presença crescente de terapias alternativas, sobretudo no Egito e no
Oriente Próximo, a medicina culta e racional da Grécia continuou a prosperar.
Os antigos gregos e romanos pensavam em homens como Dioscórides, Rufus,
Sorano e Galeno, herdeiros confiáveis de uma longa tradição de medicina,
quando usavam a palavra “médico”. Qualquer outra opinião significa uma
interpretação equivocada do que os antigos entendiam como medicina e do valor
das inscrições e dos papiros preservados. Entretanto, como as evidências
reunidas neste capítulo mostraram, a existência de uma linha divisória entre os
médicos e outros praticantes de curas não encobre a superposição de seus estilos
e métodos. Muitos médicos, mesmo os que seguiam uma abordagem
rigorosamente racional ou filosófica da medicina, aceitavam as diversas teorias e
métodos diferentes das regras de Aristóteles e da lógica de Hipócrates. Os
tratamentos criticados por Galeno poderiam ser aceitos por Lycus ou Xenocrates
e, sem dúvida, por seus pacientes. Apesar da condenação vigorosa de Galeno ao
uso do sangue do gladiador como remédio para epilepsia, esse uso continuou a
ser citado na literatura médica durante séculos como “um excelente remédio com
comprovações sólidas”, mesmo depois que o último gladiador morreu na
arena.148 Por sua vez, os praticantes de curas astrológicas recorriam à
autoridade de Hipócrates ou dos estoicos para explicar ou justificar suas curas.
Além disso, apesar das tentativas de autores como Scribonius Largus e Galeno
de definir padrões profissionais, a ausência de um apoio legal delegava a decisão
de quem era ou não médico, ou a quem consultar em caso de uma tosse ou de
uma fístula ao paciente. As associações de médicos, desfiles e exibições públicas
ofereciam formas de reivindicar uma identidade corporativa, mas a
recomendação pessoal ou a necessidade influenciava muito mais a escolha do
médico do que reafirmações profissionais. Porém existiam limites, e alguns
tratamentos, doutrinas e praticantes de curas eram rejeitados ou excluídos
embora, como observou Ulpiano, fossem considerados eficientes.149 Mas a
característica principal desses limites era a fluidez. As alusões espirituosas e
mordazes sobre como se transformar em um médico da noite para o dia, ou
desistir rápido da profissão de médico para trabalhar e viver como um artesão,
ou de ter qualquer atividade na qual pudesse ganhar dinheiro fora das cidades,
como era costume no Egito, com frequência associava a prática da medicina ao
trabalho em uma pequena fazenda. E as queixas reiteradas de Galeno referentes
à ignorância da medicina hipocrática de seus contemporâneos sugerem, na
verdade, que eles consideravam muitas das ideias e práticas de Hipócrates
desnecessárias ou supérfluas. As características de um médico “comum” no
Império Romano dependiam da perspectiva com que eram vistos. Se
escolhermos como critério de julgamento o padrão de excelência, a tradição da
medicina hipocrática seria representada por Galeno, mas, assim, grande parte das
evidências mencionadas neste capítulo seria irrelevante ou não teria valor para a
medicina. Porém essa opinião não era compartilhada pelos pacientes que
procuravam ajuda e conselho de qualquer médico ou praticante de curas que
julgassem eficientes, sem que obrigatoriamente fosse erudito. O médico
igualava-se aos artesãos competentes, cuja riqueza, posição social e, é provável,
a expertise variasse de acordo com a prosperidade e o tamanho das comunidades
em que trabalhavam. Em metrópoles como Roma ou Esmirna os médicos
poderiam ganhar bastante dinheiro com os tratamentos sofisticados dos
habitantes ricos, não só o imperador e sua corte. No entanto, a perspectiva de
vida de um médico na ilha grega de Citera ou na cidade de Tarragona na
Espanha era bem diferente.150
Mapa 17.1 Santuários de cura no mundo romano. 1. Poço de Coventina, Muralha
de Adriano; 2. Lydney; 3. Bath; 4. Foz do Sena; 5. Faimingen; 6. Roma; 7. Eleia;
9. Epidauro; 10. Lebena; 11. Tricca; 12. Pérgamo; 13. Abonuteichos; 14. Egeu;
15. Alexandria.

18 A Medicina e as Religiões do Império Romano O mundo do Império Romano


era permeado pelo sentido do divino em uma extensão quase inimaginável em
um mundo laico moderno.1 Os deuses eram onipresentes, tanto como criadores
bondosos quanto vingadores furiosos, como patronos de cidades e de
associações profissionais e, às vezes, também como ancestrais notáveis. O
médico C. Stertinius Xenofonte de Cós, por exemplo, orgulhosamente declarava
ser descendente de Asclépio e de Hércules.2 Poucos ousavam duvidar da
existência dos deuses, embora estendessem os limites da autossuficiência
humana ao enfatizar as causas naturais em vez das sobrenaturais e, assim como
os epicuristas, negavam o envolvimento direto dos deuses nos assuntos dos seres
humanos. Por sua vez, poucos acreditavam, como Teofrasto, um homem
supersticioso, que a ira divina era uma ameaça constante, a menos que o cuidado
em tomar todas as precauções possíveis fosse rigoroso, com a consulta aos
especialistas corretos − intérpretes de sonhos, profetas, sacerdotes, astrólogos,
entre outros. Só assim alguém poderia ter uma certeza relativa das consequências
de uma ação.3 Mas entre esses dois extremos havia espaço para a ação de um
agente divino e humano. Embora houvesse às vezes divergências e incertezas em
relação aos limites entre os dois, no contexto da medicina não existia conflito
entre a intervenção divina e a laica. Como já mencionado, o autor hipocrático de
A doença sagrada enfatizou sua devoção ao reconhecer a natureza divina de toda
a criação e a recusa em recorrer ao poder de exorcismar dos deuses para intervir
em doenças suscetíveis de uma explicação natural.4 Sua atitude era
compartilhada por muitos médicos, não só do devoto Galeno, e eliminava a
dicotomia entre a abordagem laica e religiosa à saúde e à cura.5 Nem pareceria
uma atitude contraditória alguém perguntar ao oráculo se iria se recuperar de
uma doença e, ao mesmo tempo, procurar ajuda de um praticante de curas
laico.6 No entanto, como iremos mostrar neste capítulo às vezes as diferenças
entre as diversas religiões do Império Romano e, em consequência, a visão
divergente em relação à medicina, tiveram um grande impacto na maneira como
a prática da medicina se desenvolveu ao longo dos séculos. Um equívoco muito
comum precisa ser elucidado logo no início. Em razão da onipresença das
divindades como protetores e salvadores, é incorreto dizer que os “deuses da
cura” formavam uma categoria distinta, à qual seria possível fazer uma prece
com um pedido de ajuda em caso de problemas de saúde a um só deus.7 A
divindade poderia ser local, como Coventina, patrona de uma fonte em
Carrawburgh na Muralha de Adriano ou universal, como Apolo.8 As divindades
poderiam ter uma forma humana específica a exemplo de Asclépio, ou serem
uma abstração anônima, como o Deus Supremo, “um título que quase todos os
homens honestos poderiam usar em total consciência” para se referir a um deus
considerado um ser supremo.9 Existiam diferenças regionais e cronológicas
importantes. Os antigos romanos, ao contrário dos gregos, atribuíam muitos
fatos que ocorriam no campo e na agricultura, bons ou ruins, a um poder
específico e o único responsável pelo acontecimento. Assim faziam preces para
os fungos que atacavam as colheitas e à deusa da Febre, a fim de evitar uma
possível catástrofe.10 Essas divindades surgiram no contexto grego sob
influência romana exercida diretamente por colonos e comerciantes, ou
indiretamente.11 Os povos do Levante, por sua vez, atribuíam com frequência as
doenças à maldade dos demônios, que se apoderavam das pessoas e precisavam
ser apaziguados ou exorcizados para que a saúde fosse recuperada. Embora no
Novo Testamento os demônios se associassem em especial às doenças mentais,
como na história dos porcos gadarenos, a maioria dos textos do Levante não faz
distinção entre doença mental e física.12 O demônio Barsafael causava “aos que
estavam sujeitos à sua hora” dores de cabeça, assim como o demônio feminino
Antaura, mencionado em uma tabuleta do final do século I ou do início do
século II encontrada em um acampamento militar romano em Carnuntum (atual
Áustria). Essa tabuleta, com um pequeno relato da derrota de Antaura infligida
por Ártemis de Éfeso, era usada como uma proteção às crises de dor de cabeça.
Versões da mesma história são encontradas em textos cristãos e do período
bizantino.13 Essa tabuleta escrita em grego com algumas palavras em hebraico,
achada em um acampamento às margens do Danúbio, revela outra característica
das crenças e cultos religiosos no período de 100 a.C. a 300 d.C. no Império
Romano. Em parte devido à diversidade étnica do exército romano, às vezes os
novos cultos eram introduzidos em uma região, em outras se fundia no culto
local equivalente.14 Em Bath, Sulis, a deusa das águas termais, equivalia à deusa
romana Minerva; em Severn, Lydney, uma dedicatória escrita em uma placa
homenageou o deus Marte Nodens, uma fusão de uma divindade celta com uma
romana.15 A partir do século III a.C., ou talvez antes, o culto a Asclépio
assimilou-se a diversas divindades de cura locais; por exemplo, no Egito a
Imhotep/Imouthes, e na Fenícia a Eshmun.16 Nas Dolomitas, o deus veneziano
Trumusiatis ou Tribusiatis identificou-se a Apolo, com os rituais e homenagens à
sua fonte sagrada inalterados do século I a.C. ao século IV.17 As fontes termais
em especial, ou as que tinham uma cor, cheiro ou gosto pouco usual, quase
sempre tinham suas divindades específicas.18 Como mais tarde Virgílio
comentou, “a fonte não divina inexiste”.19 Alguns desses santuários tinham uma
reputação regional ou eram conhecidos em todo o império. Um canteiro de
Chartres e soldados de licença do exército, ou pessoas que passavam pelo local,
prestavam homenagem a Sulis na tranquila Bath, enquanto o templo de Dea
Sequana na nascente do rio Sena atraía adoradores da Gália inteira e de outros
lugares mais distantes.20 Em 213-215 o imperador Caracalla, “que sofria de
doenças visíveis e ocultas físicas e mentais”, foi pessoalmente pedir ajuda a
Apolo Grannus em Faimigen, no sul da Alemanha, de Asclépio em Pérgamo e de
Sárapis em Alexandria.21 Sua presença e os presentes suntuosos, segundo o
historiador Cassio Dio, não foram mais bem-sucedidos do que as preces,
sacrifícios e as doações que os criados haviam feito em seu nome. A
peregrinação de Caracalla também sugeriu que alguns deuses eram mais famosos
do que outros, como protetores eficientes e fontes de cura.22 A lista inclui Deae
Matronae, Marte, Minerva, Diana, Hércules, Men (um deus frígio, que tinha o
epíteto de “aquele que ouve”), os deuses egípcios Isis e Sárapis e, os mais
importantes, Apolo e Asclépio.23 Embora as páginas seguintes sejam dedicadas
principalmente a Asclépio, a onipresença das divindades de cura locais e dos
santuários não pode ser esquecida, nem a proteção oferecida por qualquer
divindade aos seus adoradores.24 A abundância de moedas e inscrições
comprova a universalidade do culto a Asclépio nos primeiros três séculos do
Império Romano, de Lusitânia à Muralha de Adriano, no oeste, e a leste da
Mesopotâmia.25 Templos foram construídos, reconstruídos e aumentados, e os
festivais e as competições atléticas homenageavam o deus. O templo de Asclépio
em Cós foi quase todo reconstruído nas décadas de 50 e 60, em grande parte à
custa do médico da corte imperial Stertinius Xenofonte, e o conjunto de
construções isoladas transformou-se em um prédio com uma arquitetura
majestosa.26 Em Lebena, Creta, o templo dedicado a Asclépio construído na
mesma época beneficiou-se da generosidade da família de Sosarchus e atraía
suplicantes do norte da África e de Creta.27

Figura 18.1 O templo de Asclépio em Cós. Uma reconstrução de T. Meyer-


Steineg. Pouco se conhece a respeito da história dos principais santuários antes
de 100 d.C., ou mesmo mais tarde. O templo de Asclépio no Egeu na Cilícia (sul
da Turquia) atraía visitantes de uma grande área no final do século I, embora a
maioria das informações disponíveis refira-se aos séculos III e IV.28 No século
II o senador Antoninus, possivelmente o imperador Antonino Pio, promoveu um
amplo programa de edificações em Epidauro, com a construção de uma casa de
banhos e um templo dedicado a Asclépio e a Apolo, e os deuses da cura
egípcios. Nos arredores do pátio principal do templo restaurou-se a colunata de
Cotys, onde os doentes poderiam ser levados para morrer e as mulheres para
darem à luz, porque ambos eram proibidos no interior da área sagrada.29 O
santuário de Pérgamo voltou a atrair visitantes na década de 80, mas só no século
II o santuário aumentou de tamanho e expandiu sua influência, convertendo-se
no “mais famoso santuário de cura em todo o Império Romano”.30 No início da
década de 120 ou de 130, um rico senador, C. Cuspius Pactumeius Rufinus, com
o apoio do imperador Adriano, “o novo Asclépio”, iniciou um programa maciço
de reconstrução, que transformou o complexo do templo em uma das maravilhas
da Antiguidade.31 Nessa época Pérgamo era o centro do culto a Asclépio, com
Delfos o de Apolo e Éfeso o de Ártemis, e rivalizava com o grande templo de
Zeus em Olímpia.32 Novos prédios foram construídos dentro do pátio, entre os
quais um belo templo circular dedicado a Zeus Asclépio o Salvador
ornamentado com diversos tipos de mármore e nichos com estátuas.33 Uma
entrada monumental dava acesso a outro grande prédio circular, a um pequeno
teatro, uma biblioteca e uma série de pórticos espaçosos. Só o templo helenístico
e as salas de incubação permaneceram intactos.34 Além da alameda com colunas
que se estendia por mais de um quilômetro da cidade ao templo de Asclépio, o
complexo simbolizava riqueza, beleza e poder. O santuário de Pérgamo atraía
turistas e pessoas doentes e logo se tornou um centro intelectual e religioso, onde
se poderia encontrar a esposa de uma banqueiro de Éfeso e um atleta
campeão.35 No meio do complexo situava-se o templo do deus, com a famosa
estátua de Asclépio Pergameno, e os prédios ao redor da fonte sagrada e do túnel
subterrâneo. Nesse santuário, como séculos antes em Epidauro, os doentes
purificavam-se antes de dormir na esperança de receber uma visão do deus. De
manhã seguiriam as instruções do deus diretamente ou, se a mensagem
precisasse de interpretação, pediriam ajuda a um dos guardiões do templo.36

Mapa 18.1 O santuário de Asclépio em Pérgamo na época de Galeno. 1. O


caminho sagrado; 2. A biblioteca; 3. O portão do cerimonial; 4. O templo de
Asclépio; 5. O prédio circular; 6. O túnel; 7. As salas de incubação; 8. O teatro;
9. O pórtico. Essas mensagens foram registradas nas inscrições do santuário e
em Narrativas Sagradas de Aelius Aristides (de 117 a depois de 177).37 Um
famoso orador, Aristides, sofreu anos de uma doença crônica e, por esse motivo,
visitava ou se hospedava em diversos santuários de seu deus protetor, Asclépio, e
de outros deuses, como Sárapis e Apolo. Galeno, que o encontrara em Pérgamo,
comentou que nunca vira uma mente tão vigorosa triunfar em um corpo tão
frágil.38 Não causa surpresa, portanto, que os médicos de Aristides tenham
ficado preocupados com sua decisão de mergulhar em um rio caudaloso em
meados do inverno e suspeitaram que sua obediência ao deus contribuíra não só
para sua doença, como também para a recuperação.39 Os seis volumes de
Narrativas Sagradas (Discursos 47-52) de Aristides eram um relato de sua luta
contra a doença, superada com a ajuda de Asclépio e outros deuses.40 Mas,
apesar de ter se baseado em diários e artigos, os livros devem ser lidos com
atenção, porque são muito rebuscados, retóricos e, às vezes, fazem uma
descrição tendenciosa da relação do orador com o deus ao longo de sua vida.41
Na verdade, os livros são uma narrativa da proteção e apoio divinos, e não só de
doença. A batalha de Aristides contra a doença é descrita com a simbologia de
um salvamento de um suposto naufrágio, de sua inspiração para escrever
discursos e poesias, e de sua luta bem-sucedida para preservar a isenção do
pagamento de impostos, apesar das imposições de seus concidadãos; Aristides
atribui sempre o sucesso de suas lutas à orientação dos deuses, em especial, a de
Asclépio. Por meio de sonhos ou de incidentes que mais tarde se revelaram
importantes, Aristides recuperou a saúde, apesar da alternância de crises com
períodos tranquilos, e conquistou a reputação do mais importante orador do
mundo grego na época. As descrições de sua doença são longas e detalhadas.
Tosses, vômitos, intumescências, dores de cabeça, dores em geral, incapacidade
intermitente de respirar e andar de maneira apropriada e até mesmo um ataque
da peste em 165 d.C. são minuciosamente registrados.42 A escolha das palavras
e as explicações de algumas das causas e curas de sua doença não destoariam de
um texto galênico. Na verdade, algumas das curas prescritas pelo deus
adquiriram mais autoridade por serem descritas com uma terminologia médica
conhecida, ou correspondiam a tratamentos recomendados por escritores de
medicina contemporâneos. Mas a recomendação do deus da flebotomia como
tratamento da doença de Aristides, por exemplo, extrapolava o que um médico
diria. Em vez de se opor que lhe fizessem sangrias venosas várias vezes,
Aristides orgulhava-se do sofrimento imposto pelo deus, com a observação de
que nenhum outro suplicante fora submetido a tantas flebotomias por ordem
divina, exceto por Ischuron, o que era um “caso muito raro”.43 No entanto, a
relação de Aristides com os médicos não era hostil; ele não agia como algumas
pessoas que em princípio se recusavam a obedecer às instruções dos médicos, a
menos que fossem sancionadas pelo deus.44 Na peste de 165 muitos médicos de
Esmirna foram atendê-lo e aos seus criados, quando adoeceram na casa nos
arredores da cidade. Quando a filha de sua irmã adotiva adoeceu, ele enviou
imediatamente um médico para tratá-la; e Heracleão, descrito como um amigo,
era, na realidade, um dos muitos médicos que foram atendê-lo, por curiosidade
ou amizade, quando Aristides obedeceu à recomendação do deus de se banhar no
rio em Esmirna em meados do inverno.45 Em outra ocasião em que Aristides
adoeceu em sua propriedade rural, um médico chamado para tratá-lo demorou
pelo menos um dia para chegar à sua casa em razão do inverno rigoroso.46
Mesmo quando os conselhos dos médicos eram descritos como inúteis, isso não
significava que Aristides os rejeitasse completamente. O professor de Galeno,
Satyrus, visitou Aristides quando estava de cama em Pérgamo.47 Depois de
examiná-lo, Satyrus insistiu que não fizesse mais sangrias venosas, e
aconselhou-o a colocar um emplastro no abdome. Aristides recusou-se a
desobedecer à ordem do deus de não fazer mais flebotomias, mas decidiu
experimentar o emplastro recomendado por Satyrus no momento que achasse
oportuno, porque não significava uma desobediência às ordens do deus e poderia
ser benéfico para sua cura. O emplastro não funcionou e os músculos do seu
rosto enrijeceram. Aristides pediu ao pai adotivo que perguntasse ao oráculo de
Apolo em Colophon como poderia se curar. Zosimus voltou com a notícia de que
Asclépio iria curá-lo. Segundo Aristides, o deus “curou sua tuberculose, catarro
e problemas de estômago” e ainda enviou a recomendação para um membro de
sua família de ingerir óleo de oliva sem sal três vezes ao dia.48 Em outra
ocasião, Aristides aceitou sem protestar a prescrição do médico de comer
hortaliças.49 O pai adotivo Zosimus tinha conhecimento de medicina e morreu
depois de uma queda da carruagem, quando estava a caminho para atender um
escravo doente; sua capacidade e sacrifício no cumprimento do dever foram
elogiados por Aristides.50 Quando as prescrições dos médicos e de Asclépio
divergiam, Aristides não tinha outra escolha senão obedecer ao deus, mesmo que
fosse criticado por sua credulidade ou covardia diante da faca ou do ferro
quente.51 Por sua vez, os médicos de Aristides, embora a princípio tivessem
dúvidas, por fim reconheceram o poder indiscutível do deus.52 O que o deus
ordenava era regra, tanto em sonhos nos quais as ordens eram transmitidas como
enigmas que exigiam interpretação ou consulta como na indicação de cirurgia de
um médico. Esses sonhos e visões podiam acontecer em qualquer lugar, em casa
ou em uma viagem, não só a Pérgamo ou em um santuário semelhante. Eles
poderiam ocorrer antes, durante e depois do pedido de conselho de médicos; a
maneira de transmiti-los e o momento eram determinados pela vontade do deus.
As curas com intervenção divina e humana eram, portanto, complementares, e
como e quando um doente deveria recorrer aos deuses ou aos médicos era uma
questão de decisão pessoal. Assim como a mulher que sofria de hemorragia nos
Evangelhos tocou a borda do manto de Jesus em uma tentativa de se curar,
algumas pessoas procuravam a ajuda divina depois que os médicos
fracassavam.53 Em Sora, perto de Roma, em torno de 150 a.C., um homem
“desesperado por causa de seus sofrimentos” prometeu doar um décimo de seus
bens a Hércules se recobrasse a saúde; 200 anos mais tarde um escravo público
sacrificou uma vitela branca à deusa Bona Dea Felicula, que lhe havia restaurado
a visão depois de 10 meses de tratamento com médicos.54 No entanto, outros
preferiam ir direto a um santuário e rezar por sua recuperação. Prepousa
procurou de Men Axiottenus assim que o filho adoeceu, porque não queria
“desperdiçar dinheiro com médicos”.55 A devoção de Aristides a Asclépio não
deve ser vista como uma excentricidade ou uma hostilidade à medicina. Sua
devoção divergia apenas um pouco da veneração de Galeno, um “adorador
confesso de Asclépio”, que tinha certeza de que sua carreira tinha sido guiada
pelo deus. Foi Asclépio quem apareceu para seu pai Nicon em um “sonho
límpido” (isto é, que não precisava de interpretação ou mediação) e convenceu-o
a permitir que o filho seguisse a carreira de médico. Além disso, a intervenção
de Asclépio impediu que Galeno fizesse uma campanha potencialmente perigosa
em 169.56 Por causa de um sonho Galeno reescreveu uma seção de anatomia e
fisiologia dos olhos, que em sua descrição original “não fazia justiça ao mais
divino dos órgãos”.57 Embora interpretasse alguns sonhos apenas como
indicações de um estado fisiológico, em mais de uma ocasião seu tratamento foi
influenciado pela visão de um sonho ou por relatos de visões de outras
pessoas.58 Outros concordavam com a mensagem do deus. Um comentarista do
Juramento hipocrático relatou que muitas pessoas haviam sido curadas por meio
de sonhos e visões enviados por Sárapis ou Asclépio, em Epidauro, Cós e
Pérgamo, sua cidade natal, e que “em geral as pessoas diziam que os deuses lhes
haviam dado o conhecimento da medicina por meio de sonhos e visões”.59 O
intérprete de sonhos, Artemidoro, fez um comentário semelhante, ao enfatizar
que os deuses em Pérgamo, Alexandria e em outros lugares, ofereciam curas
“segundo os preceitos da medicina e do raciocínio médico”.60 Pacientes em
Roma e em Cibyra (sudoeste da Turquia) agradeceram a Asclépio e a Higeia por
curas concedidas pelos deuses por intermédio dos médicos, que “agiram de
acordo com as instruções divinas”.61 A cura de um epiléptico por Asclépio foi
relatada por Rufus de Éfeso em meio a uma discussão sobre a possibilidade de
uma doença evoluir para outra doença, apesar de sua dúvida se o tratamento
poderia ser bem-sucedido apenas com a intervenção humana.62 Outros médicos
tinham uma opinião mais cética a respeito do conhecimento de medicina de
Asclépio, embora reconhecessem que seus pacientes tinham uma crença
profunda na cura divina.63
Figura 18.2 Uma dedicatória grega do médico Antíoco “aos salvadores
insuperáveis dos homens entre os deuses, Asclépio, e as gentis Higeia e
Panaceia”, encontrada em Chester, inv. CHEGM: 1968.37. Fotografia ©
Cheshire West Museums. Portanto, não causa surpresa o fato de os médicos
apoiarem Asclépio, sua divindade patrona.64 Como já mencionado, os médicos
em Éfeso faziam sacrifícios anuais e promoviam competições atléticas em sua
homenagem.65 O rico escritor e médico Heráclito de Rodiapólis, um sacerdote
de Asclépio e Higeia, construiu um templo decorado com estátuas em sua honra,
e o mantinha com extrema generosidade, além de promover competições
atléticas.66 Em outros lugares na Ásia Menor, como em Oenoanda na Lícia e em
Nysa, mais ao norte, no vale do Meandro, os médicos também construíram
santuários em homenagem a Asclépio.67 Em uma pequena cidade na Frígia,
Menodorus, um médico e sacerdote de Asclépio, e seu filho, um sacerdote e
magistrado, construíram um prédio abobadado ao lado do santuário de Asclépio,
além de duas colunas e um teto novo para o templo.68 O patriarca de uma
família de médicos de Thyateira na Ásia Menor foi homenageado em público
por seu amigo Secundus, presidente das competições em honra de Asclépio.69
Os médicos deram presentes semelhantes de estátuas e prédios a outras
divindades e, embora o cargo de sacerdote de Asclépio fosse uma função muito
digna para um médico, os médicos não exerciam funções sacerdotais em outros
cultos.70 Na verdade, no mundo grego do século II o exercício de funções
públicas, com as vantagens inerentes aos cargos, estendia-se a qualquer pessoa
ou família rica. Por esse motivo, muitos médicos cujas doações foram lembradas
na posteridade originavam-se de famílias tradicionais ou eram archiatri, médicos
com encargos cívicos, porque os sinais de prosperidade eram um atributo
automático para exercerem esses postos, tanto no campo da medicina como no
da religião.71 A demonstração pública de reverência aos deuses, expressa na
forma de um cargo sacerdotal ou de uma contribuição para construir ou
ornamentar um santuário, refletia a riqueza do século II, sobretudo, na Grécia
oriental, onde o hábito de esculpir inscrições para exibição pública não revelava
um sentimento de ansiedade ou pressentimento de uma crise.72 As imagens
votivas de partes do corpo em terracota, mármore ou em metais preciosos, que
ornamentavam as paredes do santuário, os altares, estátuas e placas com
inscrições que testemunhavam uma cura ou a revelação divina em um sonho, ou
outra prova da ajuda do deus, refletiam uma crise superada.73 Eram testemunhos
da recuperação da saúde e da gratidão ao deus que respondera às preces dos
suplicantes.74 Essas preocupações referentes à saúde e à doença continuaram
restritas ao âmbito pessoal ou familiar, com uma exceção: a peste. Como o
escritor cristão Lactantius escreveu, em momentos de tragédia, quando a força
implacável da peste pairava sobre eles, todos os homens recorriam ao deus.75 As
epidemias que afetavam uma cidade inteira exigiam medidas cívicas, como
mencionado no relato da peste por Tucídides e na epidemia que introduziu o
culto a Asclépio em Roma. A saúde da cidade, com consequências políticas e
médicas desestabilizadoras, requeria a mobilização de todos os cidadãos em uma
ação coletiva.76 Quando a peste antonina atingiu a Ásia Menor em 165, muitas
cidades enviaram delegações para consultar oráculos, em especial em Claros e
Didyma, com o objetivo de descobrir o que o futuro lhes reservava e quais
seriam as medidas que os deuses aprovariam para amenizar os desastres
iminentes.77 Assim como o Senado romano séculos antes havia consultado as
autoridades religiosas e os Livros Sibilinos durante as epidemias de peste, as
autoridades de uma pequena cidade na Lídia recorreram ao oráculo de Apolo. A
resposta do deus que a estátua recém-erguida de Ártemis “pouparia a população
da cidade dos efeitos mortais da peste”, assim que destruíssem uns bonecos de
cera, que haviam encontrado há pouco tempo e que, segundo os indícios, seria
um trabalho de um mágico, tranquilizou as autoridades.78 Outra cidade,
Callipolis (perto da atual Galípoli na Turquia) foi aconselhada a erguer uma
estátua de Apolo “que tinha o poder de repelir a peste”, e a fazer sacrifícios aos
deuses das profundezas da terra, borrifando com cuidado a pira com água cinza
do mar. Se a peste voltasse, o que poderia acontecer por ser difícil eliminá-la,
Apolo prometeu enviar mais instruções.79 O santuário de Abonuteichos na
margem ao sul do Mar Negro também atraiu suplicantes de lugares longínquos
durante a peste antonina. Nesse local havia um culto criado na década de 150
baseado em uma combinação ardilosa de pitagorismo, veneração a Asclépio,
hinos, coros e uma religião misteriosa. Nesse santuário o deus serpente Glycon
oferecia conselhos e promovia curas para os visitantes. Além de enviar
emissários para todo o Império Romano advertindo que a destruição pelo fogo
ou pela peste era iminente, o oráculo Glycon distribuiu uma mensagem sucinta,
na qual dizia que protegeria a região. A mensagem de uma única linha,
“Phoebus, a nuvem da peste com longos cabelos, irá se dissipar”, foi afixada nas
portas das casas para repelir a epidemia. Uma dessas mensagens gravada em
uma pedra foi encontrada a centenas de quilômetros de distância de
Abonuteichos nas ruínas de uma casa em Antioquia, na Síria.80 Luciano, nossa
principal fonte literária, escreveu com ironia, que, em vez de ficarem protegidos
da epidemia, os moradores das casas onde as mensagens foram afixadas foram
com frequência os únicos a serem afetados pela peste. Seu relato cético e às
vezes grotesco de Glycon, “o novo Asclépio”, concentrou-se nos ardis do falso
profeta Alexandre e nas contradições de seus pronunciamentos piedosos e sua
imoralidade sórdida. Os suplicantes que visitavam o santuário, na realidade,
mereciam ser enganados; afinal, eram camponeses rudes e estúpidos
provenientes do interior da Paphlagonia.81 Ao contrário de Luciano, eles eram
incapazes de perceber como Alexandre associava características do culto a
Asclépio − a serpente e o ovo − a oráculos famosos contemporâneos e ao mais
célebre taumaturgo do século, Apolônio de Tiana.82 Na opinião de Luciano era
uma farsa enorme e os generais, senadores e governantes que consultavam
Glycon cometiam um ato indigno. O médico grisalho Paetus, sucessor de
Alexandre após sua morte como intérprete do deus, caiu em desgraça em idade
mais avançada e sua profissão foi desacreditada.83 Louis Robert mostrou como
o sucesso desse novo culto, que se difundiu com rapidez na região do Mar
Negro, na Ásia Menor e ao longo do Danúbio, em parte pode ser explicado pelo
contexto cultural, intelectual e religioso mais amplo em que foi criado.84 Robert
também mencionou que Luciano dirigiu o ímpeto de seu ataque aos supostos
dons proféticos de Alexandre, e fez apenas comentários indulgentes sobre suas
aptidões médicas. Luciano fez uma breve alusão às curas de doentes e da
ressuscitação dos mortos, bem como do treinamento e conhecimento de
Alexandre como médico. Alexandre tinha um vasto conhecimento de remédios
de todos os tipos, e prescrevia dietas e outros tratamentos aceitos em geral por
médicos e praticantes de curas. Seu uso da gordura de ursos, ao contrário de ser
uma invenção de um satírico, era uma prática usual em uma região onde esses
animais habitavam.85 A demonstração dessas aptidões do novo deus, aliada a
uma brilhante propaganda citada por Luciano, atraía um grande número de
suplicantes e muitas cidades na região cunharam por mais de um século moedas
com a efígie de Glycon, o deus da cura com a imagem de uma serpente.86 Em
cultos como o de Glycon ou de Asclépio o foco era o futuro, a possibilidade de
recuperação da saúde e da resposta ao pedido de ajuda ao deus. Se o deus
quisesse intervir e ajudar, uma decisão que caberia exclusivamente a ele, então o
suplicante daria em agradecimento um presente, um altar ou outras retribuições.
Mas pouco é dito sobre o envolvimento das divindades na causa das doenças. O
deus intervinha nas curas quando outros haviam fracassado, sem preocupação
com causas antigas da doença. A noção da doença como uma espécie de punição
divina, comum no teatro e mais tarde em escritores cristãos, não é mencionada
na maioria dos relatos de curas pagãs. Aristides, por exemplo, ao indicar a causa,
mencionava, em geral, o que havia comido ou a estação do ano. No entanto,
Aristides deu explicações divinas e laicas em relação à morte de seu pai adotivo.
O médico Zosimus adoecera durante uma viagem e se recuperara, de certa forma
sem que ninguém esperasse, depois de comer mingau de cevada e lentilhas.87
Asclépio contara em um sonho a Aristides como ele se recuperaria, mas o
tratamento seguira as recomendações de um médico. Quatro meses depois
Zosimus morreu, ao cair de uma carruagem quando estava a caminho de uma
visita a um escravo doente em meados do inverno. Aristides sugeriu três causas
para sua morte. A primeira o frio, do inverno; a segunda, a desobediência de
Zosimus em não seguir o conselho de Aristides (e de Asclépio) de diminuir as
atividades exaustivas ao ar livre e de fortalecer sua saúde; a terceira, que lhe foi
revelada em um sonho posterior, Zosimus tocara, inadvertidamente, em uma
carne destinada a um sacrifício ao deus.88 As duas últimas explicações,
entretanto, foram usadas por Aristides para relatar, não a doença de Zosimus, e
sim sua morte e o fracasso do deus de intervir para salvá-lo. A decisão de
Zosimus de tratar do escravo doente provocou uma doença que causou sua
morte, como Asclépio advertira. A responsabilidade, portanto, era apenas de
Zosimus e, como admitiu Aristides, a associação da fraqueza do corpo e, embora
Zosimus não soubesse, ao desagrado do deus, significava que sua morte era
inevitável. Aristides consolou-se com o pensamento de que a primeira
intervenção do deus lhe havia permitido usufruir da amizade de Zosimus por
mais tempo do que imaginara. Uma associação mais próxima entre a doença e o
desagrado divino foi revelada por uma série de inscrições, possivelmente do
século II, encontrada nos planaltos da Lídia, na Ásia Menor.89 Escritos em uma
linguagem grega despretensiosa, os textos dirigiam-se a diversas divindades
locais. Eles relatavam que uma pessoa ofendera um desses deuses e fora punida,
ela própria ou um membro de sua família, ou sofrera um prejuízo em seus bens.
O pecador confessou seu erro, expiara seu pecado, aconselhou outras pessoas a
não cometerem o mesmo erro e reconheceu publicamente o poder dos deuses. A
série de doenças citadas nesses textos confessionais não é diferente das
mencionadas em inscrições votivas como cegueira, loucura, doenças dos seios
(uma especialidade de divindades femininas), braços e pernas. Algumas dessas
doenças eram crônicas, outras eram resultado de acidentes, como, por exemplo,
uma foice que havia caído no pé de alguém. A confissão era o primeiro passo
para a cura: ela evitava que a doença se agravasse, ou poderia causar a cura,
embora a maioria dessas inscrições não mencionasse consequências favoráveis.
Nos casos de curas os relatos citavam a intervenção de sacerdotes e sacerdotisas
com seus rituais e feitiços.90 A ideia de um vínculo entre a ação humana,
punição divina e doença, como já vimos, remontava aos poemas homéricos e à
tragédia grega, e a algumas inscrições de Epidauro.91 Com poucas exceções,
todos os pecados que poderiam ser classificados de ofensas aos deuses
relacionavam-se à impureza (o uso de roupas sujas e a ingestão de alimentos
proibidos), o não cumprimento de uma promessa ou de fazer um sacrifício, um
perjúrio, uma blasfêmia injustificada, ou de permitir que um animal causasse
algum dano aos santuários ao entrar à procura de comida. Os casos de roubos
também eram incluídos na categoria de ofensas religiosas. Apesar de possíveis
ofensas a outras pessoas, só as transgressões contra os deuses eram punidas com
o julgamento divino. É difícil definir como essas crenças nas intervenções
divinas e humanas eram compartilhadas na Antiguidade. O número de
divindades envolvidas nos cultos e o fato de essas inscrições serem originárias
de mais de uma região da Ásia Menor indicam que as crenças seguiam uma
tendência regional. Ao mesmo tempo, as inscrições encontradas em outros
lugares sugerem que muitas pessoas pensavam que o perjúrio ou o não
cumprimento de uma promessa seria punido com um castigo divino, na forma de
uma doença.92 Mas a confissão pública de um erro cometido como parte de um
pedido de perdão e de cura, de acordo com as referências disponíveis, foi uma
prática restrita.93 A relação entre pecado e sofrimento é um tema crucial nos
livros judaicos.94 O Livro de Jó é uma reflexão notável sobre a relação entre o
sofrimento físico e o Deus Todo-Poderoso.95 O livro questiona por que um
homem piedoso e temente a Deus teria de sofrer e analisa o paradoxo da
veneração a um deus, ao mesmo tempo distante e volúvel. Os amigos de Jó
perguntam por que o sofrimento seria uma consequência direta da impiedade e
do erro dos pecadores punidos por Deus, mesmo quando os que ofendiam a Deus
eram pessoas prósperas.96 Jó rejeita essa ideia simplista e afirma sua crença na
inescrutável sabedoria do Deus e de sua justiça. A reação de Jó foi um reflexo de
sua firme crença no poder único de Jeová e do acordo entre Deus e os judeus,
como descrito nos primeiros livros da Bíblia. Existiam outros deuses, como os
dos filisteus, egípcios e babilônios, mas para os judeus eles eram falsos deuses.
O deus deles era supremo e garantiria a prosperidade do povo judeu enquanto
seguissem suas ordens. A desobediência teria graves consequências, tanto para
os judeus quanto para o povo em geral, como pestes, escassez de víveres ou
exílio na Babilônia; ou no plano individual a doença e a morte. Quando o rei Asa
confiou sua cura aos médicos sem recorrer a Deus, as intumescências em seus
pés aumentaram e, por fim, ele morreu.97 Mesmo o elogio ao médico feito por
Jesus filho de Sirac (c. 200 a.C.) é resultado de sua convicção que o pecado
provoca doenças e que o médico, apesar de seus méritos, só é capaz de curar um
pecador depois de seu sincero arrependimento.98 Crenças semelhantes em um
vínculo entre pecado e doença são descritas em muitas narrativas do Novo
Testamento, embora sejam rejeitadas por Jesus. Mas existia uma diferença
fundamental no conceito de pecado. Enquanto na Grécia e em Roma as ofensas
contra um deus nos rituais politeístas tinham consequências, no monoteísmo
judaico a série de ofensas era tão ampla, que incluía quase todos os aspectos do
comportamento moral. Os Dez Mandamentos proibiam tanto ações físicas, como
roubo e assassinato, como também inclinações íntimas, a exemplo de luxúria e
cobiça. O acordo entre Deus e a humanidade era um pacto de justiça e honradez
em todas as atividades e crenças do ser humano e, portanto, as possibilidades de
romper esse acordo eram ainda maiores. Na religião judaica as causas religiosas
de doenças aumentavam os possíveis pecados cometidos, em comparação com
um menor número na Grécia ou, como vimos, na Lídia. A tendência religiosa
dos textos hebraicos preservados também enfatizava mais do que outros textos o
poder de cura do homem sagrado.99 Em uma comunicação direta com Deus ele
podia curar e até mesmo ressuscitar os mortos como um mediador da
onipotência suprema de Deus. Sua cura era eficaz porque se associava à
autoridade espiritual. O médico de Ben Sirac é elogiado em razão de sua ligação
com Deus e pelo papel que lhe foi atribuído por Deus. Seu conhecimento
estendia-se a áreas proibidas a outros, desde a cura com plantas à observação das
estrelas e das constelações.100 Os praticantes de curas judaicos em geral
conheciam magias e feitiços, que remontavam à época do famoso rei Salomão e
de seu conhecimento de magia.101 Enquanto nos textos rabínicos os praticantes
de curas e as curas eram mencionados do mesmo modo que nos textos não
judaicos, as conexões que faziam com a magia, assim como o reconhecimento da
cura como um dom de Deus concedido aos profetas como prova da autoridade
deles, atribuíam um sentido diferente à prática da medicina. A religião exercia
um papel muito mais abrangente na definição do que era ou não aceitável como
tratamento médico, do que em outras partes do mundo greco-romano. O
cristianismo, originário do judaísmo, manteve e desenvolveu muitas teorias e
atitudes judaicas em relação à medicina.102 Os textos do Evangelho descrevem
Jesus como um andarilho que fazia milagres, proclamando a necessidade de
arrependimento e confirmando sua relação direta com Deus por meio de curas.
Embora pregasse a salvação espiritual e a imortalidade celestial para os que
acreditavam Nele, os milagres de curas físicas de Jesus também têm uma
posição de destaque nos quatro Evangelhos. Alguns textos referiam-se a doenças
físicas, como o do homem cego, o do paralítico ou o da mulher com hemorragia;
outros relatavam casos de distúrbios mentais, que os espectadores e os escritores
dos Evangelhos atribuíam à possessão demoníaca.103 A cura dos leprosos
simbolizou a remoção do aspecto exterior desfigurado, assim como a limpeza de
uma impureza religiosa.104 O poder de Jesus estendia-se à ressuscitação dos
mortos.105 Alguns milagres eram realizados por Jesus na presença do doente;
em outros casos, como no criado do centurião, suas palavras sobre a recuperação
futura foram suficientes para garantir o bem-estar do doente ausente.106 Jesus
também transmitiu seu poder de cura para seus seguidores, que receberam
ordens de curar os doentes.107 Alguns dos milagres são narrados nos Atos dos
Apóstolos, nos quais confirmavam a autoridade dos principais membros da nova
igreja.108 A tentativa de definir uma visão específica do Novo Testamento em
relação à medicina depara-se com inúmeras dificuldades. Não só cada escritor do
Novo Testamento tinha uma perspectiva diferente dos ensinamentos de Jesus e
dos seus dons de cura como também, ao descreverem os atos de cura, poucas
vezes o foco abordava elementos da medicina. Nas palavras de Owsei Temkin, o
mundo de Jesus e o mundo da medicina laica, inclusive a medicina hipocrática,
não são harmônicos.109 Assim, por exemplo, os fracassos dos médicos eram
mencionados como anteriores aos acontecimentos, e não como uma indicação de
antagonismo em relação à medicina laica.110 Na verdade, se a identificação
tradicional de Lucas como o “médico abençoado”, que viajava na companhia de
São Paulo estiver correta, o cristianismo teve, desde o início, um modelo de
médico.111 Além disso, o Novo Testamento contém diversos textos com
opiniões detalhadas nem sempre fáceis de conciliar. O conselho prático do
apóstolo Paulo de que beber um pouco de vinho fazia bem ao estômago não é
coerente com a observação das Epístolas de São João de que um cristão deveria
confiar apenas na medicina da fé, da prece, da confissão e da imposição de
mãos.112 Em outras ocasiões, é possível perceber opiniões divergentes em um
mesmo autor. A posição de Jesus em relação ao pecado e à doença, um tema
muito debatido nas discussões rabínicas contemporâneas, é exposta com grande
cautela.113 Embora seus interlocutores desejassem ter uma ligação direta entre
pecado e doença, Jesus não aceitava esse pressuposto.114 Jesus acreditava que o
pecado era um obstáculo à cura divina, e que o arrependimento e a fé eram
essenciais para a cura de um doente. Em outras vezes, a cura acontecia sem
qualquer explicação. O que acontecera antes da cura era irrelevante; o
importante era a relação entre o doente e o praticante de curas e, por fim, entre
ele e Deus, o que lhe permitia receber a cura divina. Essas diferenças sutis entre
os escritores do Novo Testamento foram interpretadas por cristãos de diversas
formas. Alguns, com o foco no pecado e na medicina defendida por João,
evitaram a medicina laica e algumas práticas muito próximas à magia. No século
II, Tatiano declarou que o uso de remédios era uma forma de renúncia a Deus e
que a recuperação da saúde por meio de recursos laicos era uma ilusão do
demônio: os demônios, que eram a verdadeira causa da doença, haviam decidido
voluntariamente em terminá-la e haviam desaparecido.115 Apesar da posição
radical de Tatiano, outros pensavam que os verdadeiros cristãos, ao viverem sem
pecado, poderiam evitar as doenças ou garantir a cura com preces e a fé. Alguns,
com a visão concentrada na vida eterna da alma cristã, viam o corpo como um
mero túmulo, uma morada passageira da alma imortal. A saúde física era
irrelevante para a salvação da alma. Na verdade, para alguns cristãos a
mortificação da carne era uma prova de fé, e a doença, se não merecesse castigo,
pelo menos era um meio divino de testar, fortalecer e recompensar a fé deles. Os
não cristãos horrorizavam-se com a história do bispo africano Cipriano, que
dissera aos seus fiéis para acolher a peste em 252 como uma prova do amor de
Deus e clemência divina, porque os que não tinham fé iam mais rápido para o
inferno, e os virtuosos chegavam ainda mais rápido a esse repouso eterno.116
Por sua vez, muitos cristãos aceitavam a cura laica com gratidão: era um
presente de Deus, que não queria que a humanidade ficasse desprotegida em
momentos de doença. Assim, fazia parte da criação de Deus distinguir com
nitidez o que era oferecido pelos magos pagãos e os exorcistas. A partir de
Simão, o Mago, esses praticantes de curas foram vistos como impostores
diabólicos, cuja vontade de pertencer à igreja deveria ser examinada com
cuidado e rejeitada.117 Em meio à multiplicidade de atitudes em relação à
medicina entre cristãos nos três primeiros séculos, sem esquecer que nessa época
não existia uma visão “oficial” cristã, nem meios de garantir a adesão dos fiéis a
uma determinada crença, um fato é claro. As histórias de milagres no Novo
Testamento e nos evangelhos apócrifos não são inserções casuais. Elas revelam o
poder divino de cura de Jesus e de seus seguidores, assim como a capacidade de
atrair fiéis em potencial. Os doentes vinham de lugares distantes para pedir ajuda
a Jesus; esforçavam-se para vivenciarem seu poder de cura; quando não podiam
procurar Jesus pessoalmente, enviavam amigos ou parentes para contatá-lo.118
Os relatos dos primeiros missionários contêm histórias de curas.119 Filipe de
Samaria atraía multidões para vê-lo realizar milagres de cura nos possessos e
paralíticos.120 Na Judeia as curas de Pedro em Lydda e Joppa convenceram
muitos a se tornarem cristãos.121 Na primeira viagem missionária de Paulo à
Ásia Menor as multidões em Lystra interpretaram sua cura de um aleijado como
prova de que ele e Barnabás eram deuses com formas humanas; em Éfeso,
lenços e echarpes que tocavam nele curavam os doentes.122 Os evangelhos
apócrifos e os Atos dos Apóstolos são repletos de histórias de milagres, que
repetem os relatos de curas de Mateus, Marcos e Lucas.123 João, ao curar uma
mulher idosa em um teatro cheio de pessoas, disse que seus milagres de cura
converteriam os que tinham vindo ao teatro apenas por curiosidade. Santo
André, em razão de sua suposta cura de um procônsul e de outras pessoas em
Patras, na Grécia, converteu os habitantes da cidade ao cristianismo.124 Os Atos
de Pedro, provavelmente escritos em torno de 200 d.C., relatam entre muitos
milagres de cura o “fracasso” de Pedro em não conseguir curar a filha paralítica.
Primeiro, ele pediu que ela se levantasse e caminhasse, “para convencer” os
espectadores e “aumentar a fé”, mas como sua doença era um desígnio de Deus,
Pedro lhe deu ordens de continuar doente, porque seu corpo saudável
prejudicaria muitas almas.125 Essas histórias de milagres tinham uma ampla
divulgação no início do cristianismo e constituíram uma parte importante do
apelo da Igreja aos novos fiéis.126 O historiador eclesiástico do século IV,
Eusébio, concluiu o primeiro volume de sua história com a conversão do rei
Abgar, depois de ter sido curado de uma doença crônica pelo apóstolo Tadeu.
Eusébio, baseado em histórias locais, mencionou o que para ele era uma
interação genuína entre Abgar e Cristo, e enfatizou repetidas vezes as curas de
Cristo, “sem ervas ou remédios”, e a fama posterior que adquiriram na Judeia e
em lugares mais distantes.127 Na época de Eusébio, segundo diziam, uma
estátua de bronze em Cesareia de Filipe retratava a mulher com hemorragia com
as mãos estendidas em direção a Jesus, e uma forma estranha de fungo que
crescia na base da estátua era comida como proteção contra doenças de todos os
tipos.128 Embora a história de Abgar, além de documentos, seja uma invenção
do século III, e a estátua de Asclépio e Higeia seja uma suposição, é uma
indicação da força da crença contínua no cristianismo, como uma religião que
oferecia a cura física e da alma.129 O cristianismo também adotou e expandiu o
conceito de caridade e a preocupação com outros judeus que se superpõem aos
conceitos da cura física.130 As escrituras judaicas e os comentários rabínicos
enfatizaram com frequência a obrigação de todos os judeus de praticar a caridade
com seus companheiros de fé. Era uma obrigação comunitária, muito diferente
do evergetismo dos gregos e dos romanos, que destacava a natureza individual
de qualquer benfeitoria pública e limitava as obrigações à família e aos clientes.
Na caridade judaica os membros da comunidade tinham um cofre onde era
guardado o dinheiro para dar ou ajudar os pobres e os necessitados, ou um
albergue onde os companheiros judeus poderiam se hospedar, se alimentar e
receber cuidados depois de uma peregrinação a Jerusalém.131 Tradições
posteriores atribuíam à criação do primeiro albergue a Abraão uma interpretação
criativa da tamargueira que plantou em Bersebá.132 No século I d.C., ou talvez
um século antes, alguns desses albergues eram apenas um quarto em uma casa
de família. O albergue construído por Theodotus, filho de Vettenus, em
Jerusalém, em torno de 30 d.C., era um prédio com vários espaços destinados ao
conforto dos peregrinos, assim como para o estudo religioso.133 As noções de
caridade judaicas tiveram uma influência fundamental no início do cristianismo.
Não só os 12 apóstolos curavam os doentes, ressuscitavam os mortos,
purificavam os leprosos e expulsavam os demônios, como também em parábolas
e ordens diretas Jesus disse aos seus seguidores que alimentassem os que não
tinham o que comer e cuidassem dos necessitados.134 Os primeiros cristãos
reuniam seus bens e os distribuíam na comunidade e onde eram necessários. Mas
à medida que o número de pessoas que recebiam ajuda aumentava, assim
também as queixas sobre a distribuição injusta cresciam. Os gregos que viviam
em meio aos primeiros cristãos em Jerusalém achavam que as viúvas de judeus
tinham um tratamento privilegiado. Em consequência, o sistema de “diáconos”
(“servidor”, “distribuidor”) foi criado para supervisionar a distribuição
diária.135 O sistema de caridade organizada foi logo adotado por outras
comunidades cristãs na região do Mediterrâneo e tornou-se uma característica
importante do início da Igreja. O conceito de caridade cristã foi mais além da
noção judaica de caridade comunitária em três aspectos. Primeiro, não se
limitava aos membros de um grupo religioso, e sim estendia-se a todos os
necessitados, quaisquer que fossem suas crenças. Portanto, exercia um papel
importante na missão evangelizadora do cristianismo. Em segundo lugar, havia
muitas pessoas envolvidas na organização e distribuição da caridade. No final do
século II a Igreja em Roma ajudava mais de mil pessoas pobres e era um modelo
para outras iniciativas semelhantes.136 Em 262, durante uma epidemia em
Alexandria, o bispo Dionísio realizou uma operação maciça de ajuda, cuidando
dos doentes e enterrando os mortos, em um contraste nítido, segundo dizia, com
o comportamento dos pagãos, que expulsavam os parentes doentes de casa e
deixavam os mortos abandonados nas ruas, com medo de se contagiarem.137
Por fim, havia uma obrigação explícita de cuidar dos doentes nessa prática da
caridade. O bispo Dionísio foi um dos muitos padres que incentivaram os fiéis a
seguirem o ensinamento de Jesus e cuidarem dos doentes. No início do século II,
segundo Policarpo de Esmirna, a ajuda aos doentes era uma responsabilidade dos
clérigos mais idosos da Igreja, enquanto as Constituições apostólicas, que
descreviam a prática das comunidades cristãs no final desse século, diziam que
todos os bispos tinham a obrigação de cuidar dos doentes, mesmo se, como um
manual de regras romano sugeria, fosse preciso visitar os doentes em suas
casas.138 No século IV a Igreja de Alexandria tinha um grupo de “parabalani”,
homens fortes que ajudavam a cuidar dos doentes, carregavam os mortos para
serem enterrados e enfrentavam a hostilidade dos pagãos.139 Um bispo como
Cipriano e Gregório de Taumaturgo abrigariam em sua casa, como um pai faria,
os membros de sua família que precisassem de ajuda, além de cristãos potenciais
membros da família cristã.140 Por esse motivo, não surpreende que em 362 o
imperador Juliano, em uma tentativa de restaurar a religião pagã, tenha escrito
para o sumo sacerdote da província de Galatia estimulando-o a imitar os judeus e
os cristãos em suas iniciativas de caridade. Embora conquistassem seguidores
com sua correção moral, com sua filantropia em relação aos estrangeiros e a
preocupação em dar um funeral adequado aos mais necessitados, os pagãos
raramente ajudavam outras pessoas, nem mesmo seus companheiros pagãos.
Essa situação deplorável, quando os judeus não precisaram mais de ajuda, e os
cristãos começaram a ajudar não só seus companheiros cristãos como também
auxiliaram os pagãos, foi uma nódoa na postura da religião tradicional. O sumo
sacerdote recebia ordens de construir albergues em todas as cidades para ajudar
os necessitados, pagãos e não pagãos, e recebia dinheiro para comprar comida e
vinho, a fim de distribuí-los aos pobres e aos estrangeiros.141 Nas palavras de
um historiador cristão posterior, “o sumo sacerdote pensava que poderia enganar
as pessoas, ao imitar as obras caritativas dos cristãos com a realização de
xenones e ptocheia”.142 A definição da influência mútua exercida entre a
religião e a medicina nos três primeiros séculos do Império Romano é uma tarefa
complexa. Como vimos, as atitudes pessoais eram diferentes, embora poucas
fossem hostis à noção da cura divina, tanto a obtida por meio de sonhos,
oráculos ou pela promessa de uma cura futura de um doente. Por sua vez, a
oposição em procurar ajuda na medicina laica, ou o desapontamento dos que
buscavam uma cura religiosa com seus resultados, era também rara. Assim, é
possível concluir que a população não tinha dificuldade em aceitar a
coexistência e, às vezes, a colaboração, de ambos os tipos de cura. As inscrições,
moedas, papiros e descobertas arqueológicas mostraram a construção ou a
reforma dos santuários de cura nos três primeiros séculos do Império Romano,
mais por causa da paz e da prosperidade do império, sobretudo na Ásia Menor,
no Levante e no norte da África, do que pelo aumento de interesse ou da
necessidade de uma cura religiosa, em comparação com os séculos anteriores.
Esses santuários revelaram, acima de tudo, a grande variedade de cultos e
divindades de cura, sem grande relevância ao lado dos cultos de Asclépio e
Sárapis. Muitos cultos eram apenas locais ou regionais e poucos se difundiram
pelo Império Romano. Alguns tinham uma relação com um determinado lugar,
em geral uma fonte; em outros, havia um processo de convergência com
divindades mais universais. Algumas divindades, como Asclépio e sua família,
eram especialistas em restaurar ou perpetuar o bem-estar de seus seguidores, mas
para muitos outros o dom da cura como, por exemplo, em Marte e Hércules, era
uma atividade sem grande importância. As fontes judaicas e cristãs do período
anterior a 300 d.C. revelaram uma série de contrastes interessantes entre os
contemporâneos pagãos. Não só o monoteísmo pagão opunha-se com tanta
veemência ao pluralismo religioso que em sua fé religiosa uma peste poderia ser
eliminada com a introdução da adoração de um novo deus na comunidade. Os
judeus e os cristãos discutiram a relação entre o pecado e o sofrimento,
baseando-se na premissa de que a definição de pecado para os cristãos era mais
profunda e moralista do que para os pagãos. Em ambas as religiões o poder de
cura dependia dos desígnios de Deus, tanto em benefício da humanidade, ou no
caso dos profetas e apóstolos, como um sinal de um benefício especial, que
acrescentava autoridade religiosa. Em especial entre cristãos, havia a
necessidade de distinguir os verdadeiros profetas dos falsos, entre milagre e
magia, e entre Deus e os anjos, por um lado, e dos demônios por outro.143 Por
fim, a cura exercia um papel primordial na literatura histórica do cristianismo.
Os milagres de Jesus e de seus seguidores são descritos em detalhes, e as
instruções de Jesus aos seus discípulos repetiram-se nas cartas episcopais e nos
rituais. Embora não deva subestimar a tendência dos santuários pagãos de
explorar os milagres de cura como propaganda, os cristãos usavam a caridade, os
presentes de remédios e a promessa de salvação eterna para atrair fiéis.
Multidões de curiosos vinham de vários lugares para ver os sinais e os milagres
e, como os cristãos e os pagãos concordavam, a bondade e a generosidade
irrestritas dos cristãos romperam as convenções que limitavam esses atos à
família e aos clientes, ou o gesto ostensivo da construção de um templo ou da
realização de um banquete para um dos concidadãos. No entanto, é preciso
lembrar que no século IV o cristianismo ainda era uma religião perseguida,
estranha para muitos habitantes do Império Romano. Apesar de o zelo
missionário atrair um grande número de fiéis, no século III o impacto de suas
ideias em uma comunidade mais ampla não foi muito menor do que a dimensão
posterior. As discussões cristãs ficaram restritas à comunidade cristã, além de
serem menos importantes para um romano ou um grego do que os oráculos
pagãos e os templos para os quais a maioria da população recorria em momentos
de necessidade. Porém foi nesse período que as ideias surgidas dos debates das
comunidades cristãs foram incorporadas ao Império Romano cristão. Essas
ideias também influenciaram a visão da medicina na Antiguidade tardia e nos
séculos seguintes.

19 A Medicina do Império Romano Tardio Em 650 d.C. a medicina antiga já


adquirira as características do galenismo que dominariam a teoria e a prática da
medicina na Grécia oriental e, em seguida, no mundo islâmico e no Ocidente
latino por um milênio. Os médicos cultos e outros intelectuais agora haviam
chegado a um consenso de que a saúde do corpo humano, organizado de uma
forma anatômica e fisiológica, em três sistemas isolados baseados no cérebro, no
coração e no fígado, dependia do equilíbrio dos quatro humores: sangue, bile,
bile negra e fleuma. Esse equilíbrio variava segundo a idade e a alimentação (no
sentido mais amplo da palavra) de uma pessoa, da estação do ano e do meio
ambiente, e determinava não só o bem-estar físico, como também a saúde
mental. Esse sistema apoiava-se nos dois pilares da observação e da lógica e
conquistou autoridade, em razão da duração das teorias em que se fundamentara
e pela facilidade de interação com outras doutrinas do pensamento, a exemplo do
aristotelismo, do platonismo e do monoteísmo. Não era um sistema imune à
mudança, embora sua retórica de certeza não permitisse evoluções radicais ou
mais de uma divergência circunscrita a uma determinada área. Essa teoria,
apoiada por séculos de observações e de tratamentos aparentemente eficazes,
teve um sucesso merecido. As discussões vigorosas na Grécia no século V a.C. e
no século II em Roma haviam sido superadas; os debates referentes à
interpretação de Galeno haviam substituído as discussões das alternativas
propostas ao ensinamento de Galeno.1 Como o pluralismo da medicina antiga
evoluiu para esse sistema quase monolítico e sua interação com um mundo cada
vez mais religioso são os principais temas deste capítulo. Qualquer resposta à
primeira pergunta encontra uma dificuldade imediata. O século e meio após a
morte de Galeno é um período obscuro na história da medicina. Nenhum texto
preservado pode ser de fato atribuído a esse período, exceto o livro de Gargilius
Martialis, Medicina a partir de frutos e vegetais e um ensaio com fortes
argumentos neoplatônicos, atribuído a Galeno, que se refere à maneira como o
feto recebe sua alma.2 Diversas receitas de remédios, tanto para animais quanto
para seres humanos, assim como truques de magia e informações úteis desde a
prática do arco e flecha à agrimensura, foram descritas pelo escritor grego Júlio
Africano em seu livro Tapetes (Cestoi), escrito em torno de 225.3 Alguns poucos
fragmentos dispersos de autores especializados em veterinária como
Theomnestus (c.326) e sua fonte um pouco mais antiga, Apsirto, têm ecos de
uma literatura de medicina veterinária que obteve sucesso no passado, em grego
e em latim.4 As inscrições de homenagens a médicos também diminuíram
bastante depois de meados do século III (embora a evidência geográfica dos
papiros tenha continuado). Houve ainda uma redução da quantidade de material
literário e histórico disponível, com exceção dos escritores cristãos, que
abordavam casualmente temas médicos ou a medicina no contexto dos milagres
dos santos. Mas a hagiografia é, em sua essência, evasiva, e o historiador
moderno precisa esforçar-se muito para descobrir dados sem fundamento mesmo
de fontes aparentemente informativas como a vida de são Gregório de
Taumaturgo (“o que fazia milagres”, c. 220-272), bispo de Ponto.5 Seguir a
evolução da medicina nesse período é, portanto, um ato de fé, não de história.
Quando as informações reaparecem em grande quantidade a partir da década de
340, o contexto político mudara de uma maneira significativa depois do século
II. O Império Romano tinha uma segunda capital, Constantinopla, e uma nova
religião, o cristianismo, e nas leis, na literatura e na astronomia a codificação do
antigo conhecimento superara o pensamento original. Compêndios, comentários,
grandes coletâneas de textos de antigos autores e manuais sucintos de autoajuda
no campo da medicina haviam substituído as discussões abrangentes de Galeno;
a investigação anatômica sistemática (“a carnificina hipocrática” como um autor
cristão a chamou) desaparecera;6 e a crença em demônios, cânticos e ervas
mágicas impôs-se à racionalidade da filosofia natural. Embora o nome de
Hipócrates fosse o símbolo da medicina, o médico hipocrático era uma espécie
ameaçada em um mundo cada vez mais dominado e dividido pela religião.7 Essa
situação prolongou-se pelo menos até o século XVII. As mudanças sociais,
políticas e econômicas na sociedade influenciaram esse novo cenário da
medicina. As invasões e guerras civis em meados do século III e nos primeiros
25 anos do século IV destruíram a prosperidade do império e de suas
instituições. Imperadores como Diocleciano (284-305) e Constantino (307-337)
apegaram-se ao passado como justificativa, embora tenham imposto mudanças
radicais na sociedade. Apesar do declínio evidente, os padrões de
comportamento e de pensamento, assim como as prioridades políticas e sociais,
mudaram em decorrência das novas circunstâncias. Um habitante da capital do
Império Romano do Oriente, Constantinopla, que em poucos anos se
transformou em uma megalópole, tinha uma visão diferente de um aristocrata em
Roma.8 As circunstâncias linguísticas, culturais, militares e políticas também
romperam a unidade do Império Romano. A partir de 364 as duas metades do
império tinham suas próprias leis e costumes e, apesar do relacionamento inicial,
aos poucos os imperadores distanciaram-se. A cidade de Roma perdeu
progressivamente sua importância política, apesar da supremacia eclesiástica.
Em 600 o Ocidente latino, sob o impacto de uma série de invasões dos bárbaros,
dividiu-se em diversos reinos e regiões independentes. A situação econômica
desses estados autônomos não era mais tão sólida como no Oriente; havia um
menor número de cidades e as instituições urbanas tinham menos poder. Havia
medici em áreas tão distantes como na península de Lleyn no norte do País de
Gales, mas eram profissionais isolados.9 O aprendizado, onde era ministrado,
era controlado, sobretudo, pela Igreja: as sínteses da medicina e da anatomia dos
Livros 4 e 11 de Etimologias do bispo Isidoro de Sevilha (c. 560-636) foram
escritas para serem estudadas como palavras pelos gramáticos.10 Assim, a
prática da medicina desenvolveu-se de diferentes formas de acordo com as
diversas sociedades existentes. No entanto, a ênfase dessa explicação sociológica
referente à mudança subestima a continuidade e o efeito distorcido de Galeno e
da coletânea galênica. Sem a existência dos muitos volumes do prolixo
Pargamense, o padrão da medicina teria sofrido poucas alterações ao longo dos
séculos, sobretudo na Grécia. Os médicos com funções públicas em pequenas
cidades na Antiguidade tardia ainda reivindicavam o direito de isenção de
impostos diante da cobrança dos coletores de impostos, que precisavam do
dinheiro. As regulamentações públicas que se estenderam em 368 a Roma e à
nova associação de médicos, ainda destacavam os méritos da educação médica e
a prática honesta da medicina, apesar dos subterfúgios para contornar as leis.11
Os códigos de leis continuaram a fixar o preço exato de um escravo que tivesse
recebido um treinamento médico, como em Roma na época do imperador
Augusto.12 Manuais, coletâneas de remédios, guias como os de Celso ou o Para
o Leigo de Rufus, compilações de informações de outros escritores, como
Introdução à medicina, catecismos médicos e resumos foram publicados no Alto
Império e no período final do Império Romano do Ocidente. A crença nos
poderes dos cânticos, amuletos e feitiços não se limitou à Antiguidade tardia.13
Mas Galeno fugia à norma com suas teses filosóficas, sua insistência na
importância da anatomia e suas exposições teóricas prolixas das causas e
sintomas. A visão de Galeno como um médico típico de sua época resultaria em
uma perspectiva histórica errônea, que subestimaria as semelhanças entre os
séculos e criaria a impressão de um declínio catastrófico no momento em que
Galeno desapareceu de cena. A decisão de apoiar uma abordagem que enfatiza a
continuidade ou a que destaca as diferenças entre os séculos não é fácil. E
mesmo com a opção pela mudança, a superioridade nem sempre recai nos
autores de períodos anteriores. O enorme tratado em latim de Caelius
Aurelianus, Sobre as doenças agudas e crônicas, escrito em torno de 400 d.C., é
mais completo e mais claro do que o tratado semelhante de Areteus escrito dois
séculos ou mais antes de Aurelianus. Pelagônio, ao escrever seu tratado
importante em latim sobre medicina veterinária no final do século IV, não
demonstrou preocupação com o declínio da medicina. Sem dúvida, seria difícil
encontrar uma assistência médica imediata durante uma viagem, mas qualquer
proprietário de cavalos conhecia pelo menos as noções básicas de veterinária.14
Por sua vez, as informações de fontes não médicas sugeriram que havia uma
diferença de pontos de vista, uma diminuição das especulações, um horizonte
mais limitado, e talvez uma ruptura entre a pequena elite e o resto da sociedade.
O comentário fortuito do historiador eclesiástico Filostórgio exemplifica essa
mudança. Posidônio, um médico culto do final do século IV e especialista em
doenças mentais, era considerado excêntrico por afirmar que a loucura não era
resultado de ataques de demônios, e sim de um desequilíbrio dos humores.15
Essa ambiguidade das fontes que caracterizaram a medicina na Antiguidade
tardia foi resumida com precisão por Owsei Temkin em 1962, ao observar que a
medicina bizantina “representava a formação, bem como o prosseguimento de
uma tradição, em um processo de ruptura e continuidade”.16 Em outras palavras,
é possível detectar as mudanças importantes que ocorriam, mesmo que os
participantes dissessem que a tradição do passado estava sendo mantida e que
essas mudanças faziam parte da tradição. Poucas vezes uma pessoa específica
exercia o papel de agente da mudança; não existiam pessoas como Herófilo ou
Asclepíades que pudessem intervir em um momento decisivo. Quase sempre
essas mudanças eram vistas apenas como evoluções em longo prazo, em
comparação com os acontecimentos anteriores ou como bases futuras, a exemplo
da evolução do galenismo, da ruptura crescente entre teoria e prática, do papel
da tradução e da coexistência de dois sistemas linguísticos diferentes e,
sobretudo, da adaptação da medicina às novas instituições do cristianismo. Essas
mudanças, como veremos, rejeitamn qualquer interpretação da medicina na
Antiguidade tardia em termos de estagnação e um declínio incompreensível. Ao
contrário, elas mostram novas reações, às vezes vigorosas, por parte de médicos
de todos os tipos à sociedade que os cercava, mesmo que reafirmassem
continuidades de suas heranças. Essas reações foram bem diversificadas. Por
exemplo, as enciclopédias escritas por três autores de livros de medicina na
Antiguidade tardia, Oribásio de Pérgamo (c. 325-400), Aécio de Amida (sudeste
da Turquia, fl. 530) e Paulo de Egina (ativo em Alexandria em c. 630) divergem
significativamente de pesquisas anteriores.17 Celso e Plínio usaram os
conhecimentos adquiridos em leituras em suas obras, mas com uma ênfase
pessoal e estilo. Mas, por sua vez, as sínteses posteriores de textos de antigos
escritores, com frequência literais e sem alterações, mostraram um mosaico
coerente de opiniões, ideias e remédios. Os comentários dos compiladores eram
quase sempre inexistentes. Essas enciclopédias tinham tamanhos bem diferentes;
Oribásio escreveu uma obra de 70 volumes para o imperador Juliano, dos quais
só 30 se preservaram, outra com nove volumes para o filho Eustathius, outra
com quatro volumes para o amigo e biógrafo Eunapius (340-c. 414) e uma de
um só volume (que não se preservou) de trechos de Galeno, o resultado de
discussões à meia-noite com Juliano durante a campanha na Gália em c. 358.18
Essas enciclopédias médicas revelam conhecimento, uma organização elegante e
praticidade, virtudes que não podiam ser desprezadas em detrimento de
novidades. As obras eram mais do que meros repertórios do passado e, portanto,
tinham um grande valor. O Livro 6 de Paulo foi o texto em grego sobre cirurgia
mais informativo e o mais inteligente do ponto de vista prático; o livro abordava
desde hérnias, fístulas, tornozelos torcidos, veias varicosas, remoção de projéteis
de ferimentos nos campos de batalha e redução cirúrgica dos seios de um
homem, “que pareciam seios femininos”.19 O texto de Paulo é também uma
homenagem a uma tradição cirúrgica de Alexandria, onde as intervenções
cirúrgicas complicadas continuavam a ser realizadas com sucesso, e sua fama
estendia-se a outros lugares, pelo menos até o século VII. O procedimento
recomendado por Paulo para remover uma costela com uma fratura grave
poderia ser adotado hoje, enquanto seus comentários baseados em Antyllus
sobre o perigo de fazer uma traqueostomia de emergência mostram que essa
cirurgia foi praticada na Antiguidade tardia, talvez com sucesso.20 Essa
contemporaneidade e importância dos textos de Paulo motivaram a escolha na
década de 1820 do médico e tradutor escocês, Francis Adams, de Banchory, para
traduzir sua obra, com comentários extensos.21 Mas, ao mesmo tempo, muitas
das informações perdiam-se no processo de redação. As enciclopédias ficavam
mais sucintas à medida que eram escritas. As alternativas transformavam-se em
luxos irrelevantes e a palavra de Galeno dominou todas as outras. As longas
citações de Oribásio eram em geral uma mistura de elementos heterogêneos, e os
nomes dos diferentes autores eram omitidos ou reunidos ao de Galeno, para
formar um relato sucinto e coerente de um tema específico. As hesitações e
ressalvas de Galeno (e contradições) eram revisadas ou modificadas, e o lado
prático e empírico de sua obra foi substituído pelo dogmatismo. Nesse processo
Galeno transformou-se no galenismo. A retórica de Galeno contribuiu para esse
método de redação. Mais de uma vez ele dissera que estava aperfeiçoando a
medicina, ou transmitindo os ensinamentos de Hipócrates. Portanto, era fácil
acreditar que todo o conhecimento de medicina estava contido nos muitos
volumes de sua obra. “Hipócrates semeou a terra e Galeno ceifou a colheita”,
disse um autor resignado, com uma insinuação que só sobrara o restolho.22 O
tamanho da obra de Galeno também era assustador. Poucos pensavam que
poderiam dominar o conhecimento de medicina como ele e, por isso, preferiam
resumir ou se concentrar em uma parte da medicina que Galeno unificara. No
entanto, a disseminação do galenismo não foi universal nem imediata. Ainda
havia seguidores de Asclepíades na Ásia Menor no século IV e as doutrinas
posteriores dos metodistas fizeram sucesso no mundo latino por algum tempo.23
Mesmo entre os adeptos de Galeno havia interpretações e argumentos
discordantes dos pragmáticos e dos rigoristas. Alexandre de Tralles, que
escreveu em torno de 560, queria usar tratamentos diferentes, mas relutava, com
uma reação galênica teimosa, ineficaz e até mesmo suicida, em rejeitar as
palavras do mestre, mesmo quando o bom senso exigia. Alexandre não era um
camponês rústico que baseava seu conhecimento em alguns poucos livros e em
remédios de ervas, e sim um grego cosmopolita, irmão do conselheiro jurídico
de Justiniano e do arquiteto da basílica de Santa Sofia, a maior igreja de
Bizâncio. Havia viajado por muitos lugares, pelo norte da África, pela Itália e
mais a oeste com as tropas do imperador, e pesquisara remédios usados por
camponeses, more galenico, na Toscana, na Gália, na Espanha e na Armênia.
Conhecia profundamente a obra de Galeno e às vezes demonstrava o mesmo
espírito investigativo do mestre, embora sua crença em cânticos e feitiços tenha
impedido que revelasse todo o seu conhecimento nos livros. Não sabemos
quantos compartilhavam sua independência e combatividade de espírito em
razão da escassez de fontes.24

Figura 19.1 Os grandes médicos da Antiguidade, Hipócrates, Galeno, Paulo,
Oribásio, Asclepíades e Dioscórides. Frontispício da versão latina de Método de
curar de Galeno de autoria de Thomas Linacre, Paris, Simon de Colines, 1530. O
artista retrata a dissecção de um corpo humano, talvez uma alusão a Galeno,
embora o livro não tivesse a anatomia como tema. Cortesia da Wellcome
Library, Londres. A ruptura crescente entre a teoria e a prática na Antiguidade
tardia favoreceu o galenismo. A referência mais antiga da divisão da medicina
em termos de teoria e prática é de cerca de 200 e no ano 400 se tornou uma
referência padrão de todos os textos didáticos de medicina.25 Essa divisão foi
estimulada pelo legado de Galeno, cuja insistência de que um médico precisava
conhecer filosofia foi interpretada como uma exigência de um treinamento
preparatório em lógica, assim como de um conteúdo teórico mais abrangente no
ensinamento da medicina. Por esse motivo, era comum em Alexandria nos
séculos V e VI que o mesmo homem fizesse comentários sobre Aristóteles com a
mesma facilidade como discorria a respeito de Hipócrates. Estevão de Atenas (c.
550-c. 630), por exemplo, fez palestras sobre pelo menos três livros de
Hipócrates e de Galeno e quatro de Aristóteles, além de ter escrito livros de
teologia e astronomia.26 Esse interesse crescente em teoria também estimulou a
tendência de definir a medicina em termos de livros específicos. Embora Galeno
tenha comentado diversos textos de Hipócrates e considerasse a leitura de
Aforismos essencial a qualquer médico, não fizera uma lista do conjunto de
textos. Mas no ano 500 foi encontrada em Alexandria não só uma relação dos
textos de Hipócrates (os preferidos de Galeno), como também uma lista dos 16
livros de Galeno (na verdade, 24 livros porque alguns foram incorporados a
obras maiores).27 Os textos eram lidos em uma determinada ordem e tinham
explicações de palestras formais e comentários. Eles mostravam um contexto
coerente e bem estruturado de ementas, que se iniciava com os primeiros
princípios, como em Seitas e Arte da medicina. Em seguida, os manuais sucintos
continham orientações de como examinar os batimentos do pulso e sugestões de
tratamentos, antes que o aluno começasse a ler tratados mais extensos e
especializados. Em termos atuais, o aluno aprendia anatomia, fisiologia,
patologia e terapêutica e, no final, talvez dietética e higiene.28 Embora o
estudante de medicina fosse encorajado a ler outros tratados galênicos, essa
relação de obras fornece uma visão geral da medicina galênica para muitos
praticantes da medicina. Essa relação foi traduzida no início do século VI para o
sírio, a língua vernácula do Oriente Médio, da Palestina à Pérsia, e os
comentários em latim circularam nos séculos VI e VII em Ravena, o centro
administrativo bizantino no norte da Itália.29 Esses textos foram também
resumidos para facilitar a memorização e, nesse processo, imprimiram mais
rigidez ao galenismo. Os textos mais curtos sobre os quatro humores ou os dos
diagnósticos, assim como a teoria dos três espíritos (pneumas) acrescentam
novas informações aos conselhos e às interpretações de Galeno. Além disso, os
resumos alexandrinos extraídos da coletânea de obras de Galeno alteraram a
ideia original de Galeno.30 Essa mistura de teorias diferentes teve uma
influência fundamental no tratamento galênico posterior: um comentário sobre
os fatores que alteram os batimentos do pulso mencionou também os elementos
essenciais para a saúde na concepção de Hipócrates (dieta, meio ambiente,
esforço, sono, excreção e atividade mental), elementos que mostram de uma
maneira programática o objetivo da arte da medicina.31 A partir desse momento,
os galenistas faziam em geral seus diagnósticos e, em especial, recomendavam
os tratamentos ao lado da cama do doente e em seus textos, com uma observação
especial nos seis elementos “artificiais”, um termo técnico usado com a
finalidade de unir as diversas passagens galênicas. O processo de consolidação
da doutrina galênica, da mudança no contexto da continuidade, é exemplificada
no final do século IV pela carreira de Magnus de Nisibis (sudeste da Turquia), o
mais célebre professor de Alexandria, “a fundação da saúde para todos os
homens”, como um geógrafo contemporâneo mencionou.32 A cidade de
Alexandria o recompensou com a doação de um teatro para palestras em público
(um privilégio único, segundo as informações disponíveis) e Magnus dominou a
vida médica da cidade por uma geração.33 Sua reputação era tão notável que um
poeta disse em seus versos que Magnus descera aos subterrâneos da Terra e
derrotara Hades, o deus do mundo dos mortos, com seus argumentos.34 Seu
biógrafo Eunapius, um amigo de Oribásio, dizia que Magnus conseguia
convencer as pessoas curadas por outros médicos, que ainda estavam doentes só
com a força de sua oratória. Eunapius exaltou as virtudes de Magnus
comparando-as às de seu colega, o eminente médico Ionicus, um especialista em
medicina prática, sobretudo em curativos e cirurgia, mas que não tinha o dom da
oratória.35 A preferência de Eunapius era óbvia e sua admiração era
compartilhada por muitos alunos da região leste do Mediterrâneo que iam a
Alexandria para ouvir as palestras de Magnus.36 Um livro sobre urina de autoria
de Magnus de Emesa (uma cidade próxima a Nisibis) talvez tenha sido escrito
por ele. O livro baseou-se em incidentes e ideias dispersas da coletânea galênica,
selecionados e organizados para oferecer um manual elegante e eficiente de
diagnóstico por meio do exame da urina.37 O livro marcou uma mudança
importante ao transformar a uroscopia, que Galeno usara como um recurso
ocasional para fazer um diagnóstico, em um elemento essencial da medicina
prática. A partir desse momento, o frasco para exame de urina passou a ser o
símbolo do médico culto e competente. Havia também manuais sucintos com
orientações para examinar os batimentos do pulso, como o de Filareto (ou
Filagrius), que acrescentaram informações aos resumos feitos por Galeno de
seus tratados sobre pulsos.38 Os novos desenvolvimentos na Antiguidade tardia
não se limitaram ao mundo grego. Nos séculos IV e V surgiu um interesse
renovado pela medicina latina culta em paralelo à teologia culta no norte da
África − afinal, era a época de Santo Agostinho. Em 447, Cassius Felix de Cirta
(Constantine, Ksantina, atual Argélia), “um adepto da doutrina lógica”, compilou
um manual médico baseado em fontes gregas, metodistas e galênicas.39 Seu
contemporâneo mais idoso, Caelius Aurelianus (c.420), um médico de Sicca
Venetia (El-Kef, Tunísia), revelou um conhecimento ainda mais abrangente no
manual, Sobre as doenças agudas e crônicas, em que descreveu os sintomas e
etiologias das doenças, embora não tenha ficado claro se ele apenas havia
traduzido um trabalho metodista grego de Sorano de Éfeso ou acrescentou
material de sua autoria.40 Mas Caelius resumiu e organizou com cuidado e
inteligência seu material grego.41 E o livro é um excelente manual de medicina
culta em latim condizente com uma região que tinha contato com Alexandria.42
A obra de Caelius é bem mais abrangente em sua descrição de doenças e mais
acadêmica em sua abordagem do que trabalhos contemporâneos da Itália e da
Gália, que enfatizavam a necessidade de ajudar uma sociedade, em que as
instituições sociais e intelectuais que haviam apoiado a medicina galênica
desintegravam-se com rapidez. O manual de remédios de Marcelo, um
funcionário com um alto cargo na administração do imperador Teodósio no final
do século IV, acrescentou à lista de Scribonius Largus diversos medicamentos da
Gália, assim como cânticos, feitiços e um material mais popular, com a
finalidade de produzir um manual de medicina de uso familiar.43 As diferenças
entre esse livro e o manual semelhante ao de Alexandre de Tralles escrito um
século mais tarde mostrou a existência de dois mundos muito diferentes. O grego
Alexandre acrescentou seus cânticos e feitiços a uma síntese galênica cuja
estabilidade e eficácia originavam-se de um passado hipocrático. Existiam
restrições quanto ao que um médico podia usar no mundo cristão, mas
Alexandre ainda achava que fazia parte da comunidade intelectual tradicional do
confiante Império Romano do Oriente.44 No entanto, para Marcelo, apesar de
sua ligação com a corte e com os homens importantes da Gália e do norte da
Espanha, e da presença em Bordeaux de médicos cultos como o pai do poeta
Ausonius, muitas das antigas certezas estavam desaparecendo no novo
contexto.45 Embora recomendasse que os medici deveriam ser chamados em
casos difíceis e perigosos, os leitores de Marcelo deveriam, se possível, confiar
em si mesmos; deveriam ser, como ele, empirici, não seguidores da doutrina
grega empírica, e sim especialistas no conhecimento baseado na experiência e na
observação. No livro de Marcelo a tradição agrícola de Catão reaparece, assim
como a organização cívica da Gália romana divide-se em grandes estados
medievais.46 Nos séculos V e VI alguns textos antigos de medicina grega foram
traduzidos para o latim. Porém, apesar de Caelius e Cassius Felix, assim como
Cornelius Celso antes deles, terem dito que haviam reinterpretado o
conhecimento grego em seus manuais em latim, essas traduções (na maioria
anônimas) não alegaram originalidade. Em torno de 570 o rico senador
Cassiodoro aconselhou os monges do novo mosteiro em Vivarium (sul da Itália)
a ajudarem os doentes com remédios e com a esperança que tinham em Deus,
mas, ao mesmo tempo, teve a preocupação de suprir a biblioteca do mosteiro
com alguns textos básicos de medicina − Gargilius Martialis; versões em latim
de textos de Hipócrates e do Método de curar, para Glauco de Galeno; um
compêndio anônimo; um texto de Dioscórides (ilustrado?); Caelius Aurelius,
Sobre a medicina; Hipócrates, Sobre as ervas e as curas; e alguns poucos livros
da Antiguidade clássica.47 Embora os autores fossem conhecidos, os nomes
escondiam uma série de outros trabalhos. Cinco ou seis tratados do Corpus
Hippocraticum grego foram traduzidos para o latim nessa época, como
Aforismos, Prognóstico e Ares, Águas e Lugares, com exceção de Sobre as ervas
e curas, embora na opinião de alguns estudiosos, esse tenha sido o título dado a
uma compilação de trechos de Dieta.48 Os manuscritos antigos em latim
incorporaram-se ao Método de curar, para Glauco de Galeno, junto com uma
tradução de dois de seus volumes, mas outros livros não eram de Galeno, apesar
de pertencerem à tradição galênica.49 O nome de Caelius Arelius talvez se refira
ao livro de Caelius Aurelianus, Sobre as doenças agudas e crônicas (embora seja
improvável em razão do tamanho do livro), ou a um compêndio popular sobre
febres atribuído a um Aurelius. Do mesmo modo, é possível que o tratado de
Dioscórides não seja uma versão em latim de seu famoso tratado acerca de ervas,
mas o tratado Sobre as ervas femininas é atribuído à sua autoria e preservou-se
em pelo menos sete manuscritos redigidos antes de 900.50 Esses textos curtos e
práticos atribuídos a nomes famosos do passado (ou anônimos) caracterizaram a
produção dos manuscritos de medicina antigos em latim. Um processo
semelhante de tradução existiu no Oriente, onde o padre, médico e diplomata
Sergius de Resaena traduziu as ementas alexandrinas de Galeno para o sírio.51
Sua iniciativa permitiu que autores sírios como Ahrun e Teodoro escrevessem
seus livros de medicina e criassem as bases das traduções (bem mais extensas e
precisas) para o sírio e o árabe feitas no século IX por Hunain ibn Ishaq e seus
colegas.52 Desse modo, Galeno foi a base da medicina formal no mundo
islâmico e, por meio das traduções em latim de obras em árabe a partir do século
XI, foi transmitido para o mundo culto das universidades europeias da Idade
Média. Assim como Sergius, muitos médicos eram fluentes em duas ou três
línguas e serviam de intermediários entre grupos religiosos ou políticos
diferentes, como embaixadores ou acompanhantes de políticos. Elpídio, um
médico e diácono com conexões com o sul da Gália, Liguria e Milão, tinha um
conhecimento suficiente de grego para realizar uma missão diplomática a
Constantinopla em 515-17. Mais tarde voltou para a Itália e se tornou médico de
Teodorico, rei dos ostrogodos.53 Um médico contemporâneo, Anthimus, enviou
uma carta escrita em latim para Teodorico, rei dos francos, com conselhos sobre
alimentação: ovos de galinha ligeiramente cozidos, com uma pitada de sal, era a
comida mais adequada para pessoas doentes e saudáveis.54 Sergius envolveu-se
em uma discussão teológica obscura com um bispo e, por esse motivo, foi
enviado a Roma pelo bispo de Antioquia com uma carta endereçada ao papa
Agapito I. Sergius morreu em Constantinopla quando voltava da viagem a
Roma, para alegria dos monofisistas, a quem sua morte em agonia foi um castigo
por sua “heresia sensual e imoderada”.55 Seu contemporâneo Estevão de
Edessa, depois de um período como médico da corte do rei sassânida, Kavad I
(-531), voltou para o Império Romano e sua cidade natal, e serviu como
emissário diplomático quando a cidade foi sitiada pelos sassânidas. Durante as
negociações de paz o rei Cosroes insistiu que seu médico pessoal, Tribunus,
voltasse do império bizantino.56 Em meio às rivalidades religiosas e políticas
internas e entre os impérios bizantino e sassânida no século VI e início do século
VII, os médicos desempenharam, ou seus contemporâneos pensavam que tinham
desempenhado, papéis-chave para garantir a predominância de um lado ou de
outro. O médico monofisista e cristão Gabriel de Singara, por exemplo, que
adquirira a confiança do rei Cosroes após ter tratado da rainha Sirin, ficou
famoso durante séculos entre os cristãos nestorianos por seu papel diplomático
duplo e a opressão de seus líderes. Eles consolavam-se com o pensamento de
que, ao serem desafiados em uma discussão religiosa com Gabriel em 612, seus
representantes haviam mantido a fidelidade à verdadeira fé, apesar dos castigos e
até mesmo a morte por suas convicções.57 Essa discussão formalmente
organizada na Pérsia, mas que envolveu cristãos de língua síria do Império
Romano do Oriente, revela o papel exercido pelo cristianismo nos três séculos
anteriores. A partir de 313, não só o cristianismo deixou de ser uma religião
perseguida como também foi o alvo de um investimento sem precedentes dos
recursos e favores do império. No final do século IV, a legislação do Estado
começou a proibir, ou, pelo menos, restringir, os cultos não cristãos, e os
assuntos referentes à ortodoxia cristã e seu oposto, a heresia, tornaram-se temas
políticos e sociais importantes da política imperial. A Igreja cristã adaptou-se
para enfrentar esse novo contexto, com uma estrutura mais organizada e
autoridade. Os bispos exerciam um papel mais importante na política e na
sociedade do que os governadores de províncias. Quando a peste atingiu a
pequena cidade de Myra (sudoeste da Turquia) em 542, os habitantes da cidade
pediram ajuda ao bispo Nicolau. Quando os agricultores locais recusaram-se a se
aproximar da cidade afetada pela peste houve uma escassez de víveres, e, em
consequência, o bispo quase foi preso pela suspeita de ter instigado esse boicote
para aumentar os preços.58 Segundo alguns historiadores, houve um processo de
dessecularização à medida que a Igreja cristã estendia seu domínio a
determinadas áreas, que haviam recebido pouca influência das antigas formas de
religião.59 O resto deste capítulo será dedicado a explorar o impacto dessas
novas séries de relações na medicina e no exercício da medicina na Antiguidade
tardia. No início, as autoridades eclesiásticas não se interessavam por muitos
aspectos da medicina, exceto se afetassem a crença religiosa. As autoridades só
tinham interesse por remédios e práticas tradicionais se, em momentos de crise
política ou religiosa, seu uso poderia apoiar uma acusação de heresia ou
paganismo. Nessas ocasiões, os que desconheciam ou prejudicavam a arte do
diagnóstico igualavam-se aos astrólogos, e a descrição de uma fórmula
equiparava-se à evocação de uma divindade pagã.60 Quando um paciente idoso
ficou seriamente doente, após ter tomado um remédio receitado por um médico
importante para a mesma doença, ele e seus amigos convenceram-se de que o
sucesso inicial fora obtido por meios ilegais (isto é, mágicos). Só quando os
médicos provaram que a eficácia do remédio diminuíra, em razão da idade do
paciente, as autoridades suspenderem as ameaças de punição.61 Mas, em geral,
os cristãos tinham uma atitude benevolente em relação à medicina. Metódio de
Patara (-c.311) começou seu diálogo sobre a ressurreição na casa do médico,
Aglaophon, e um dos principais interlocutores do diálogo.62 A visão galênica de
um Criador sábio, preocupado com o bem-estar da humanidade, colocando ervas
e outros medicamentos na Terra para eliminar o sofrimento, poderia ser usada
com facilidade para apoiar o cristianismo. Teodoreto de Cirro (c. 393-466), por
exemplo, referia-se a muitas ideias e casos médicos como uma prova da
providência de Deus.63 Porém, o tratado Sobre a natureza do homem, de
Nemésio, bispo de Emesa (c. 370), citou ou resumiu pelo menos 15 tratados de
Galeno, entre eles o raro Sobre a demonstração. Em seu primeiro tratado sobre
antropologia cristã, Nemésio equiparou as contribuições de Galeno quase ao
mesmo nível dos textos das Escrituras: ambos eram necessários para entender o
lugar da humanidade na criação de Deus.64 A crença sólida de Galeno na
sabedoria e na benevolência de um Criador, que poderiam ser comparadas às do
Deus cristão, ajudaram, ao longo do tempo, a aceitação do galenismo.65 Mas
nem todos tinham essa visão tão aberta. Um século depois de Nemésio, o bispo
Isidoro de Pelúsio fez uma distinção minuciosa entre o conhecimento excelente
de medicina de Galeno e de suas digressões no campo da teologia filosófica.66
Apesar de alguns tipos de curas, sobretudo, quando envolviam adivinhação ou
exorcismo, serem vistos com profunda suspeita, e era negado aos seus
praticantes o direito de serem batizados, alguns médicos continuaram a exercer a
medicina mesmo depois de terem recebido ordens sacras.67 O bispo Teodoto de
Laodiceia era célebre por seu conhecimento de medicina, tanto físico como
espiritual.68 O túmulo de Dionísio, um médico capturado pelos godos durante
com a invasão de Roma no final do século V, registrou com orgulho que ele era
um padre e que demonstrou sua caridade cristã, ao tratar de seus captores.69
Gerôntio, um diácono e padre de Milão, fugiu para Constantinopla em razão de
uma briga com o bispo Ambrósio e, com a influência de amigos poderosos, foi
nomeado bispo de Nicomédia (noroeste da Turquia). Quando o bispo de
Constantinopla, em resposta a uma carta de Ambrósio, tentou destituí-lo do
cargo, os habitantes de Nicomédia protestaram, com o argumento que havia sido
de uma extrema generosidade no uso de seu conhecimento de medicina entre
eles.70 Alguns médicos, como o mártir Zenóbio, padre e médico de Sidon,
foram posteriormente considerados santos.71 São Juliano de Emesa era um
cidadão proeminente da cidade e um médico competente, tanto da alma quanto
do corpo; São Pantaleão estudou “os ensinamentos de Asclépio, Hipócrates e
Galeno”; enquanto São Cosme e São Damião “conheciam bem as doutrinas de
Galeno e Hipócrates”.72 A recusa de Cosme e Damião de cobrarem honorários
revela a caridade cristã deles, e não uma crítica aos seus colegas médicos ou um
sinal de amadorismo.73 No entanto, o conhecimento da medicina era visto como
perigoso nas discussões inflamadas entre cristãos nos séculos IV e V. Hieracas
de Leonton foi denunciado pelo perseguidor de hereges par excellence, Epifânio
de Salamis, por “conhecer os ensinamentos gregos, a arte dos iatrosofistas,
mágicos e astrólogos”.74 Aécio, um dos fundadores do arianismo, aprendeu
medicina com Sopolis, um médico de Antioquia, antes de se envolver em uma
controvérsia teológica. Gregório de Nyssa, seu opositor, chamou Sopolis de
impostor e rufião, e Aécio de um mero retórico; por sua vez, o ariano Filostórgio
elogiou seus conhecimentos de medicina e a caridade em relação aos pobres.75
Entretanto, o apego aos antigos deuses, assim como a heresia, era o que mais
atraía as suspeitas das autoridades cristãs. A tolerância relativa dos primeiros
imperadores cristãos havia permitido que os santuários de cura pagãos
continuassem a ser visitados até o século IV. O santuário de Nodens em Lydney,
Gloucestershire, teve uma fase de grande prestígio em meados deste século.76
Porém cada vez mais os grandes templos urbanos tornaram-se um foco de
hostilidade cristã. Na região do Egeu, o grande templo de Asclépio foi destruído
em 331 e suas colunas foram removidas ou reutilizadas em uma igreja católica
construída no local. Os pagãos viram essa destruição como um ultraje e um
insulto às milhares de pessoas que visitavam o templo em busca da cura.
Portanto, não causa surpresa o fato de o imperador Juliano ter reconstruído o
templo de Asclépio, quando decidiu restaurar antigos cultos em 363.77 O grande
templo do Serapeum em Alexandria, que se transformara em uma espécie de
fortaleza do paganismo, foi destruído em 391 depois de um conflito violento que
envolveu os parabalani.78 Na cidade vizinha de Menouthis, o santuário de Isis
transformou-se na igreja de São João Evangelista, mas os adoradores da deusa
continuaram a visitar a cidade à procura de cura e para consultar o oráculo. Em
protesto, o bispo de Alexandria incentivou (ou inventou) o culto aos santos Ciro
e João, que faziam milagres de cura, e mandou construir um espaço onde faziam
suas curas em frente ao templo de Isis. Em 483 as autoridades decidiram
hostilizar os pagãos que ainda visitavam o templo e, depois de um distúrbio
violento, os cristãos destruíram o templo.79 Em Epidauro e Pérgamo, diversas
igrejas cristãs foram construídas no final do século IV no local dos grandes
templos de Asclépio.80 As imagens do culto foram destruídas e, pelo menos em
Pérgamo, não restaram traços delas. No santuário de Glycon em Tomi, os
adoradores levaram as estátuas e as enterraram.81 A substituição dos deuses
pagãos de cura foi um processo gradual. Em meados do século V, o bispo
Teodoreto convenceu-se de que As clépio ainda era venerado na região rural da
grande diocese de Cirro, na Síria.82 Em Atenas, talvez em 470, o filósofo
Proclus entrou no santuário de Asclépio, acompanhado por um amigo filósofo, e
rezou pelo restabelecimento da saúde de uma menina, mas o santuário já fora
demolido quando Marino escreveu a biografia de Proclus cerca de 15 anos mais
tarde.83 No início do século VI Cesario, bispo de Arles, assustou-se com a
disseminação crescente da medicina popular e da superstição em uma região
rural e, em sua paranoia, até mesmo a medicina cara praticada nas cidades tinha
sinais de paganismo.84 Suas suspeitas e de muitos outros cristãos zelosos, do
que Temkin chamou de compromisso dos médicos com a “religião de
Hipócrates”, não eram inteiramente infundadas.85 Era possível sentir o prazer e
o alívio de Arnóbio, um escritor do final do século IV, ao escrever que, por fim,
os médicos talentosos estavam aderindo ao cristianismo.86 Mas era um processo
lento, pelo menos em Alexandria. Lá, muitos professores de medicina e alunos
ficaram famosos por seu apego às antigas tradições. Gregório de Nazianzo, ao
descrever a educação no campo da medicina de seu irmão em Alexandria em
torno de 315, mostrou-se menos impressionado com os triunfos de Cesario do
que com sua firme crença no cristianismo e com o fato de ele ter se recusado a
fazer o juramento (pagão) hipocrático.87 Em seu livro Vida de Isidoro, escrito
no final do século V, o filósofo neoplatônico Damácio incluiu muitos médicos
importantes em seu relato da luta dos simpatizantes, para manter a crença na
antiga religião diante da perseguição cristã.88 O paganismo de Hesychius e de
seu filho Jacobus Psychrestus, um médico da corte em Constantinopla, célebre
por seu tratamento “revigorante” que diminuía o estresse, envolveu-os em uma
controvérsia política e médica.89 O aluno de Jacobus, Asclepiodoto de
Afrodisias, era famoso por seu conhecimento de plantas, pedras, além de teurgia
e misticismo, adquirido em uma visita de um mágico ao país.90 Eusébio, médico
em Emesa, na Síria, viajou mais de 48 quilômetros para encontrar os restos de
uma estrela cadente, que prendeu na parede de um templo de Atena. A estrela
falou e, a partir desse momento, Eusébio transformou-se no porta-voz do novo
oráculo.91 Outro contemporâneo, o professor de medicina em Alexandria
Gesius, “cuja retórica eliminava todas as dificuldades de uma exposição”, era
oficialmente cristão, mas suas simpatias pelo paganismo foram reveladas,
quando protegeu um filósofo pagão a fugir da perseguição do imperador.92
Quando duvidou das curas miraculosas de São Ciro e de São João, com a
observação de que poderiam ser atribuídas a Hipócrates e a Galeno, contraiu
uma doença que nenhum médico conseguia curar. Só depois de uma confissão
completa de sua impiedade, como os cristãos disseram, ele se recuperou com a
ajuda dos santos a quem ridicularizara.93 Por esse motivo, não causa surpresa
que o bispo Procópio de Gaza, que conhecia Gesius e seu círculo de amigos,
tenha explicado a morte do rei Asa atribuindo a culpa aos médicos do rei, que
usaram cânticos e outras feitiçarias na tentativa de curá-lo.94 Asa foi punido
com a morte por não ter sido um exemplo para seus súditos. A capacidade de
curar, tanto dos pagãos quanto dos cristãos, era uma comprovação da mensagem
religiosa e da característica específica da relação de quem praticava a cura com o
divino. O autor de Vida de S. Teodoro de Sykeon, escrito no século VI na
Galácia, mencionou as curas milagrosas do santo apenas como uma das formas
da manifestação de seu poder divino.95 No entanto, as representações das curas
pagãs e cristãs tinham diferenças importantes. As histórias de Damácio a
respeito dos médicos que faziam milagres e dos filósofos enfatizavam a
sabedoria e a cultura (mathemata) de seus heróis, o resultado de uma educação
longa e difícil. Por sua vez, as vidas dos santos cristãos, inspiradas nos milagres
dos Evangelhos, quase sempre destacavam a insignificância do santo e o poder
imenso da simples fé em Cristo. No final do século IV, os relatos de milagres de
cura, sobretudo, os que haviam recebido ajuda de relíquias dos santos,
multiplicaram-se.96 O bispo Victricius (c. 330-c. 407), ao receber uma relíquia
sagrada em Rouen, citou uma longa lista de curas realizadas por santos, para
explicar aos fiéis o motivo de sua alegria com a nova aquisição.97 Santo
Agostinho (354-430) era mais discreto. Embora acreditasse nos milagres
realizados na Itália e no norte da África, as curas provenientes de óleos sagrados,
relíquias ou batismo eram sinais de uma providência divina especial e, por esse
motivo, eram raros. Porém a opinião de Santo Agostinho não era compartilhada
entre a comunidade cristã da cidade de Hispona, que batizava os filhos com a
esperança de que recuperassem a saúde, colocava a hóstia do rito eucarístico nas
pálpebras fechadas das crianças e usava os quatro Evangelhos como amuletos
para prevenir doenças.98 Na hagiografia cristã, os comentários ocasionais sobre
os fracassos dos médicos laicos durante um longo período destacam o poder do
cristianismo investido em seu papel sagrado, e não uma crítica à medicina laica.
Poucos autores eram tão mordazes como o escritor de Milagres de São Artêmio,
que fez um relato detalhado dos fracassos dos médicos e das instituições ligadas
à medicina em Constantinopla, no início do século VII.99 Em geral, os
hagiógrafos mencionavam detalhes médicos, como a inserção bem-sucedida por
um cirurgião de um tubo de drenagem para aliviar um estado físico doloroso, ou
apenas com a intenção de acrescentar mais vigor e autenticidade à narrativa.100
A medicina de Galeno e a do cristianismo eram vistas, quase sempre, como
complementares: as aptidões médicas e as ervas eram provenientes de Deus e,
por esse motivo, deveriam ser valorizadas. Mas a confiança total na intervenção
humana sem a prece e a fé em Deus era tola e sem espiritualidade.101 Por sua
vez, embora alguns clérigos como Nicetas, bispo de Remesiana, e Cesario de
Arles, aconselhassem os fiéis a não confiarem na medicina laica, em especial,
em cânticos e feitiços, e que deveriam seguir só a medicina cristã citada na
Epístola de Tiago, eles eram minoria.102 A maioria dos escritores cristãos,
apesar de mencionarem a possibilidade de curas unicamente por meio da fé,
também diziam que essa austeridade, assim como o ascetismo, só convinha aos
cristãos devotos como os monges e outros religiosos e, talvez, nem mesmo a
eles.103 Diádoco de Photiki, que escreveu Sobre o conhecimento espiritual no
norte da Grécia em torno de 480, tinha suas dúvidas. Até mesmo os ascéticos,
quando rodeados por outras pessoas nas cidades ou em comunidades monásticas,
nem sempre conseguiam manter um espírito de caridade cristã necessário para o
êxito da fé na cura. Na verdade, quando alguém se vangloriava em público de
que não havia precisado de um médico durante anos, essa presunção era sinal de
que tinha sucumbido à tentação do demônio que instigava o orgulho. Porém esse
contexto mudava no deserto. O ermitão solitário poderia se aproximar mais do
Senhor, que curava todos os tipos de doenças e, portanto, sem envolvimento
emocional esperaria a morte com alegria, como o portão que o conduziria à
verdadeira vida.104 Outros preferiam invocar Cristo como alguém que curava a
alma, em vez do corpo. Essa metáfora era mencionada nos sermões, tratados,
cartas pastorais e poesia religiosa.105 Quase sempre eram alusões passageiras,
mas às vezes a imagem adquiria força. Cristo era o archiater, o médico superior a
todos os outros, que purificava, receitava remédios ou eliminava o pecado, com
o equivalente à cauterização e à faca.106 O sofrimento da tentação, assim como
da doença, só seria eliminado com a “cirurgia” de Cristo, cuja cura era garantida
e sem custo. Mas a preocupação excessiva da Igreja com a eterna salvação da
alma, em vez do cuidado com o corpo transitório, não significava um descaso
em relação aos outros, como mencionado no Novo Testamento.107 Com a
legalização do cristianismo no século IV, o dever dos cristãos de cuidar dos
doentes e necessitados fica mais visível e exprime-se em tijolos e argamassa de
uma nova forma arquitetural, o “hospital”. Tanto a data da construção dos
primeiros hospitais como as circunstâncias específicas, que cercaram a
edificação desses hospitais são obscuras, porém não há dúvida de que as origens
do “hospital” cristão surgiram na região oriental do Mediterrâneo de língua
grega, e não na Itália.108 O bispo Leôncio de Antioquia (344-358) fundou
diversos albergues, xenodokeia ou xenones, na cidade (sudeste da Turquia), além
de um albergue em Dafne, um balneário muito frequentado perto de
Antioquia.109 De 357 a 377, Eustatio de Sebastia (norte da Turquia) construiu
um “asilo de indigentes” (ptochotropheion), onde os “debilitados pela doença”
recebiam ajuda.110 Ao mesmo tempo, São Basílio construiu fora das muralhas
de Cesareia (sul da Turquia) “quase uma cidade”, onde os doentes, os leprosos,
os pobres e os estrangeiros podiam se abrigar e receber assistência médica.111 O
tom defensivo da carta em que justifica sua decisão significa que havia
enfrentado certa oposição.112 Sua preocupação com a ordem pública, assim
como com a caridade sugere, segundo a afirmação do amigo Gregório de
Nazianzo, que Basílio ficara comovido com a visão da quantidade enorme de
leprosos, em agonia com os corpos cobertos de feridas e que entravam
desesperados nas igrejas e santuários.113 No final do século instituições
semelhantes foram fundadas em Constantinopla (“abrigos para doentes”,
nosokomeia) e eram tão comuns que fossem usadas como uma metáfora extensa
na carta de um bispo.114 Esses prédios foram construídos mais tarde em Roma e
no Ocidente latino, como o de Fabíola em Roma em torno de 397 e o de
Pamachio em Ostia alguns anos depois, sob a influência e exemplo do
Oriente.115 Santo Agostinho mencionou a construção de um albergue
semelhante em Hipona no século V (norte da África).116 Porém havia poucas
construções desse tipo no norte da Itália e ainda menos além dos Alpes, um
reflexo mais acentuado da crise socioeconômica dos séculos V e VI, do que de
uma escassez de fontes preservadas.117 Infelizmente, é quase impossível traçar
sua distribuição geográfica ao longo do tempo em cidades menores, mas existem
indícios de que essas instituições foram mais comuns no século V. Em 404,
quando o bispo de Constantinopla, João Crisóstomo, foi enviado para o exílio na
pequena cidade de Cucusus, na Armênia, sua viagem foi de um sofrimento
constante, agravado pela falta de atendimento médico. Atormentado pela febre e
por dores no estômago, só recebeu cuidados, atenção e simpatia em uma
estalagem nos arredores de Cesareia, onde conseguiu por fim dormir em uma
cama, comer uma refeição decente e beber uma água potável. Cucusus tinha um
pouco mais de conforto, mas, na opinião do bispo Crisóstomo, o povoado era
desprovido da pretensão de ser civilizado e havia uma escassez crônica de
médicos, remédios e outras comodidades essenciais.118 Por sua vez, a partir de
meados do século V os hospitais, xenodokeia, eram numerosos no Oriente. Os
códigos da Igreja em Sírio reiteravam a necessidade de abastecer os hospitais de
uma comunidade local, mesmo que fossem apenas uma sala no pátio de uma
igreja ou de um mosteiro.119 Havia hospitais até em lugares longínquos.120
Para os legisladores os hospitais representavam uma forma de caridade pública,
manifestações da preocupação de Cristo com os necessitados. No ano 500, por
exemplo, em Edessa (sudeste da Turquia) havia dois ou três hospitais pequenos
em uma comunidade de cerca de 8 mil a 10 mil pessoas. Em uma emergência,
como na escassez de víveres de 500 a 501 e nos surtos de pestes subsequentes,
os hospitais eram complementados por camas colocadas em peristilos públicos
para abrigar os doentes, que haviam fugido da região rural em busca de
ajuda.121 Ao longo do tempo, os hospitais cresceram e ficaram com uma
estrutura mais complexa. Em 420 Éfeso tinha um hospital com 70 leitos; em 550
havia um hospital em Jerusalém com 200 leitos; o de St. Sampson em
Constantinopla era ainda maior.122 Surgiram também sinais de especialização
médica. No ano 500 havia um hospital reservado às mulheres, e em 600
hospitais maiores em Antioquia e Constantinopla dividiam-se em alas de
mulheres e homens.123 O autor anônimo de Milagres de S. Artêmio mencionou
a realização de uma cirurgia em St. Sampson e que uma ala específica do
hospital destinava-se às pessoas com doenças oftalmológicas.124 Os médicos
trabalhavam em diversos hospitais; em 570, na cidade de Oxirrinco, no Egito,
uma família de médicos administrava seu próprio hospital pequeno e algumas
instituições, além do tratamento, ofereciam serviços de enfermagem para os
doentes.125 Porém esses hospitais eram precários. Muitos dos xenodokeia
menores eram apenas lugares onde alguém podia deitar, descansar e comer. Os
monges, ex-oficiais do exército, ou ocasionalmente um administrador civil
administravam os hospitais no lugar dos médicos.126 Os códigos eclesiásticos
tinham uma preocupação maior com os problemas financeiros, do que com os
assuntos referentes à medicina e enfatizavam a importância da integridade moral
e a competência administrativa.127 Os dois atributos eram necessários para
enfrentar a complexidade da distribuição de grãos para os necessitados, além da
administração complexa de uma instituição que consistia em um leprosário, um
albergue ou um hospital.128 A definição da transformação das instituições
religiosas que cuidavam dos doentes em hospitais que praticavam a medicina
não é uma tarefa factível. Os cuidados e as curas estavam sempre associados, e,
como vimos diversas vezes, o conhecimento da medicina não se limitava aos
médicos. Os diferentes nomes dessas instituições − clínica de cuidados
paliativos, albergue, asilo de indigentes, abrigo para doentes, orfanato, casa de
repouso para idosos, hospital − indicam uma diversidade de superposições, às
vezes competitivas, influenciadas pela ideologia e a caridade cristãs de oferecer
proteção aos necessitados. Algumas instituições especializavam-se em
determinado tipo de pessoas como peregrinos, por exemplo, sobretudo em
Roma, Constantinopla e na Terra Santa, mas com frequência essa exclusividade
era apenas nominal. Os hospitais no início do cristianismo exerciam diversas
atividades de caridade. Existem também considerações não referentes à medicina
a serem feitas. Os estatutos da escola de teologia de Nisibis (sudeste da Turquia)
determinaram em 476 que os alunos doentes deveriam ser tratados em suas celas
por seus companheiros de cela, uma forma nítida de medicina doméstica.129
Setenta e cinco anos mais tarde um hospital, xenodokeion, construído perto da
escola com a doação do rei da Pérsia, oferecia tratamentos para os doentes ou
feridos.130 O hospital foi construído não só para substituir os cuidados
exaustivos que, os alunos proporcionavam aos seus colegas, pelos cuidados de
um funcionário, como também para proteger os alunos doentes de serem
“roubados e desonrados” quando fossem à cidade à procura de uma assistência
mais sofisticada. O diretor da escola visitava os doentes três vezes por dia.131
Os estatutos de 590 encarregaram um “administrador”, escolhido por sua
honestidade e eficiência, da administração do hospital e dos cuidados com o
bem-estar dos doentes. Esse administrador não era médico e, na verdade, os
estatutos revelavam uma suspeita com relação à medicina laica. Os estudantes de
teologia eram proibidos de conviverem com os médicos, porque “os trabalhos
mundanos não mereciam ser lidos à luz dos livros sagrados”, e os que se
aproximavam dos médicos só podiam continuar os estudos de teologia se
tivessem um caráter íntegro e fossem nativos de Nisibis.132 Portanto, as razões
teológicas, sociais, pragmáticas e caritativas criaram um hospital sem médicos,
porém, nunca foi dito que o tratamento era ineficaz ou inferior.133 Em outros
lugares, algumas instituições religiosas e laicas seguiram um caminho
semelhante, enquanto outras instituições também religiosas nomearam médicos
para trabalharem nos hospitais. A característica mais notável dos hospitais no
início do cristianismo foi sua diversidade de formas, tamanho, organização e
objetivo. Mas todos estavam unidos pelos sentimentos religiosos de preocupação
com o próximo, compaixão e caridade. A medicina no Império Romano tardio
tinha uma característica diferente, com novas formas de aprendizado e novas
instituições. Alguns desenvolvimentos realizaram-se no contexto específico da
medicina, enquanto outros refletiram uma adaptação ao poder hegemônico do
cristianismo, que tinha suas prioridades e aspirações. Um exemplo é suficiente
para mostrar o resultado dessa interligação. As coletâneas antigas de Medical
and Scientific Questions, um gênero de literatura que data pelo menos da época
de Aristóteles, não tinham uma resposta à pergunta atribuída ao teólogo e bispo
Atanásio: “Um homem deveria fugir da peste enviada pela ira de Deus?”. A
resposta associa a questão teológica à médica. A fuga seria aceitável se a peste
fosse decorrente de causas naturais provocadas pela sujeira, excesso de
população e o ar poluído das cidades; mas o castigo divino procuraria o pecador,
mesmo no deserto, e a fuga teria sido inútil.134 Acima de tudo, o cristianismo e
a medicina culta foram definidos na Antiguidade tardia por um cânone de
ortodoxia de uma série de livros. As crenças mutáveis dos primeiros cristãos e
das diversas histórias sobre Cristo foram substituídas pelo Novo Testamento e
por vários credos e decisões conciliares. Na medicina o processo foi mais
prolongado e informal, apesar de não menos eficaz. As alternativas aos
ensinamentos de Galeno aos poucos desapareceram da medicina acadêmica e
foram substituídas pelos comentários e resumos galênicos, ou por manuais de
medicina prática sem dogmatismos ideológicos. Havia espaço para novas ideias,
assim como na teologia, mas esse espaço restringia-se às doutrinas da base
canônica da coletânea de obras de Galeno. A enciclopédia enorme de Oribásio,
por exemplo, contém poucas ou nenhuma divergência com o texto de Galeno, ou
que não pudesse ser conciliada com ele. Os que praticaram a medicina ou
escreveram ao seu respeito nesse contexto de ideias não se sentiram coagidos
nem entediados. Muitos dos problemas que haviam preocupado as gerações
anteriores tinham sido solucionados e o sucesso de Galeno e de outros escritores
confirmaram a validade de suas ações. Os ensinamentos do passado eram
enriquecedores para o exercício da medicina. Só mais tarde alguns historiadores
lamentariam a transição do mundo multidisciplinar da medicina da época de
Galeno para a visão monocromática das certezas do galenismo.

20 Conclusão Este livro abordou todo o período da medicina na Grécia clássica e


na Antiguidade romana, desde os primeiros registros escritos até o século VII
d.C. Ofereceu uma visão geral do que era a medicina e como era praticada, em
uma tentativa, sobretudo, de inseri-la no contexto de outros desenvolvimentos na
sociedade antiga. Esse projeto poderia estender-se quase indefinidamente em
uma série de volumes, mas o estudo teve o objetivo de enfatizar três aspectos da
medicina antiga, que proporcionam razões complementares para entender por
que alguém se interessaria pelo mundo da medicina em um passado tão distante.
Esses três aspectos abrangem seu papel no desenvolvimento da medicina
ocidental em geral; sua influência contínua nos pressupostos modernos a respeito
da saúde e da cura; e a diversidade da prática da medicina na Antiguidade. As
teorias da Antiguidade constituíram a base da medicina ocidental durante
séculos, mesmo quando eram rejeitadas. Na interpretação da importância da
medicina antiga o momento crucial surge muito cedo na história, como resultado
da interação do exercício da medicina com as novas ideias filosóficas dos
séculos VI e VII a.C. A nova concepção da medicina, que se desenvolveu nessa
época, incorporou um conhecimento mais sutil da dietética nos séculos V e IV e
de anatomia humana no século III, com suas repercussões na cirurgia. Como
resultado de guerras e conquistas a medicina do mundo de língua grega da região
do Mar Egeu foi absorvida com sucesso pelo mundo helenístico do Egito e do
Levante e, com consequências ainda mais importantes, em Roma e em seu
império. Essa medicina, comparada à medicina egípcia ou babilônica, tem uma
característica de enriquecimento, de evolução, apesar de autores como Galeno
considerarem que todo progresso era finito e em grande parte havia sido
alcançado na época deles.1 Galeno é um personagem ambíguo; extremamente
culto e um observador e anatomista extraordinário, ele deixou um legado que
inspirou, intimidou e sufocou seus sucessores. Após Galeno, os médicos cultos
da Idade Média que escreviam em grego, siríaco, árabe, latim e hebraico
tentaram resumir o conhecimento que tinham da medicina antiga e conciliar suas
contradições, confiantes que sua experiência poderia oferecer uma maneira
efetiva para compreender o significado da saúde, da doença e da cura de
pacientes. Muitas instituições medievais, como hospitais, médicos com funções
civis e associações colegiadas originaram-se na Antiguidade tardia, ou talvez
antes. No Renascimento do século XV e no início do século XVI, quando os
textos de medicina dos antigos gregos foram redescobertos pelos estudiosos
humanistas e lidos no original grego na Europa ocidental pela primeira vez após
mil anos, disseminou-se a crença de que, por meio desses textos dos primórdios
da medicina, os erros posteriores e a incerteza seriam eliminados. Mas depois
desse clímax no início da década de 1540, a influência das obras gregas e
romanas na medicina moderna começou a diminuir. Os médicos e cirurgiões
decidiram se libertar da tirania dos antigos, com base em sua experiência pessoal
e nas teorias modernas. A autoridade de Galeno foi contestada e eliminada,
primeiro na anatomia, em seguida na fisiologia e, por fim, na terapêutica. As
teorias mais versáteis de Hipócrates sobreviveram, mas foi como autor de
observações e Juramento do Juramento, e não por suas teorias médicas, um
médico profético de sua época, que ele continuou a ser respeitado.2 A convicção,
ainda forte na década de 1820, de que os autores antigos tinham informações
valiosas referentes ao diagnóstico e ao tratamento foram seriamente contestadas
pelos novos desenvolvimentos na química e na fisiologia.3 Em 1860 a medicina
antiga ficou relegada à área dos filólogos e dos antiquários. Os que queriam
extrair benefícios das teorias e práticas do passado eram vistos como excêntricos
ou algo pior.4 O obituário de Alexander Kavvadias, filho de um arqueólogo de
Epidauro e renomado endocrinologista, que defendeu nas décadas de 1920 e
1930 um holismo neo-hipocrático, referiu-se apenas aos seus pacientes
estrangeiros ricos e sua amizade com o coronel de Basil, empresário dos Ballets
Russes.5 O galenismo, assim como a medicina yunani (grega), ainda mantém
uma tradição culta no mundo islâmico e é pesquisado com a ajuda da tecnologia
moderna e de experimentos científicos, porém, a ciência biomédica ocidental
não precisa mais do conhecimento do passado.6 No entanto, mesmo que não
contribua para os desenvolvimentos científicos mais modernos, a medicina
antiga insere-se na tradição médica do Ocidente sob diferentes aspectos.7 Os
pacientes da The Finchley Clinic em Londres assimilam melhor as últimas
descobertas da medicina moderna, quando colocados em um contexto de ideias
de equilíbrio individual e de meio ambiente originário dos gregos. Um estudo
semelhante, também realizado em Londres, mostrou a crença na teoria dos seis
fatores não naturais de Galeno como elementos determinantes para a saúde,
embora o termo técnico nunca tenha sido usado.8 Os pacientes às vezes têm uma
visão mais tradicional do que seus médicos e são mais atraídos pela sedução da
medicina holística, em vez dos tratamentos modernos. Mas, há pouco tempo, os
médicos começaram a se interessar de novo por algumas metodologias de
Galeno, com o objetivo de estudar os alimentos, a anatomia e o paciente.9 Na
década de 1990, um estudo sobre psicologia infantil que fez um enorme sucesso
de público e obteve um grande respeito acadêmico argumentou com convicção
que a teoria dos quatro humores de Galeno e seu modelo somático de interação
entre mente e corpo, proporcionava uma compreensão melhor do
desenvolvimento psicológico, dos que as teorias de Freud e de seus
sucessores.10 Outras características do legado médico da Grécia e de Roma
passam quase despercebidas por terem sido incorporadas como fatos naturais na
medicina ocidental. O pressuposto de que as doenças obedecem à lei de causa e
efeito, sem a intervenção externa do mundo natural, e que podem ser
pesquisadas e identificadas, constituiu o cerne da medicina moderna.
Recentemente, uma manchete de jornal publicou a frase “a ausência de prova da
lei de causa e efeito provoca ceticismo nos médicos”.11 Existe também uma
ideia difundida de que um médico ou um cirurgião tem um pensamento próprio,
independente, que não se limita a repetir receitas e práticas aprendidas em textos
didáticos. Nossa crença no argumento e na prova como elementos determinantes
da ciência médica remonta aos antigos gregos e romanos. Embora os debates
públicos na ágora e nos fóruns a respeito das últimas descobertas científicas
tenham desaparecido (hoje, são discutidas no rádio e na televisão), os periódicos
de medicina atuais comprovam a supremacia da discussão para o processo
contínuo de evolução no campo da medicina. As reivindicações de autonomia na
medicina também datam da época do Corpus Hippocraticum. Mesmo se no
passado os limites dessa autonomia tivessem de ser negociados com o governo e
o público, ainda assim havia uma aceitação tácita de que a medicina precisava
ser independente. Apesar de muitos estudiosos não acreditarem mais na imagem
do médico hipocrático criada por Emile Littré em sua edição monumental do
Corpus Hippocraticum no século XIX, sua ênfase na liberdade do médico em
relação ao preconceito religioso (por exemplo, em Doenças sagradas), a
especulação desnecessária (em Medicina antiga) e a interferência externa no
relacionamento com o paciente (em Juramento) ainda repercute. A crença de
que, de uma forma ou de outra, o Juramento hipocrático contém os princípios
básicos da ética médica continua tão forte como antes, mesmo que as frases
individuais ou seções estejam destinadas à lata de lixo da história.12 Os
objetivos do ensino da medicina ainda se assemelham aos de Galeno e de
Escribônio Largo; e os exames realizados por estudantes de medicina nas
enfermarias não são diferentes dos ridicularizados por Marcial em seus livros
satíricos publicados entre 86 e 103 d.C.13 Embora esses argumentos sejam
convincentes para justificar um interesse pela história da medicina na
Antiguidade, a motivação em entender as raízes da medicina ocidental contém
um risco: a medicina antiga deve ser estudada apenas no que se refere à sua
contribuição para algo superior, a modernidade. Isso não significa uma crítica à
tentativa de descobrir quem somos e onde estamos; essa é uma pergunta
importante e desafiadora e a resposta talvez possa ser encontrada nestas páginas.
No entanto, não é a única pergunta importante. Este livro tem um enfoque
diferente. Ele tentou examinar o exercício da medicina na Grécia e em Roma não
só como uma contribuição à tradição médica do Ocidente, mas também em algo
enraizado no tempo e no espaço nas sociedades grega e romana. Não houve uma
tendência em considerar que a medicina de Hipócrates e de Galeno eram
superiores ou hegemônicas, em comparação com outras doutrinas do passado.
Além disso, este livro procurou restabelecer o equilíbrio com a introdução de
pessoas menos conhecidas e com a demora na apresentação de alguns textos,
autores e episódios muito conhecidos. Em certo sentido, é a primeira história
antigalênica da medicina antiga. Nesse contexto, a diversidade da medicina
antiga é surpreendente. A leitura doxográfica de Anonymus Londinensis, além
do Corpus Hippocraticum, revela que não é possível afirmar que só existia uma
única tradição na medicina grega, mesmo na época de Hipócrates. Uma leitura
superficial das obras de Galeno mostra que a uniformidade de pensamentos era
uma expectativa remota. Essa diversidade não se limitava ao campo das ideias.
Mais do que em outras sociedades, a medicina na Grécia clássica e em Roma
estava aberta a influências de todos os tipos e podia ser estudada, bem como
praticada, por muitos que não se consideravam médicos. Na opinião de Aulo
Gélio o desconhecimento da diferença entre veias e artérias era um solecismo
social e intelectual.14 As discussões de autores como Gélio, assim como de
enciclopedistas como Cornelius Celso e Plínio, o Velho são mais informativas
quanto a diversos aspectos da medicina, em especial da cirurgia, do que muitos
autores que exerciam a medicina. Na verdade, este livro baseou-se com tanta
ênfase nessas fontes leigas, que a divisão entre elas e as fontes estritamente
médicas foram quase abolidas. A mesma diversidade está presente em quem
praticava a cura − exorcistas, vendedores de remédios, mágicos, parteiras, iatroi
e medici. Embora muitos autores afirmassem que havia uma unificação no
exercício da medicina, essa opinião era um desejo e não uma realidade. Na
ausência de definições formais, legais e dogmáticas não causa surpresa o fato de
a medicina antiga ser aberta a várias influências. A ética médica preocupava-se
menos com o bem-estar do paciente (e com certeza com os dilemas morais
atuais) do que com a proteção da reputação do médico e com o sustento dos
concorrentes. Os limites da aceitação dos diferentes tipos de praticantes de curas
mudavam constantemente. A aprovação de alguém pelos cânticos e feitiços
poderia provocar o desprezo de outra pessoa e, ao longo do tempo, os
tratamentos tiveram seus momentos de sucesso e esquecimento. O surgimento do
cristianismo acrescentou uma complexidade maior a essas relações, sobretudo a
partir do ano 320, a fim de garantir uma conformidade da sociedade aos ideais
dos Evangelhos. Apesar de muitos médicos, como Galeno, terem uma crença
sólida em Deus ou nos deuses, em vez de uma oposição constante e arraigada
entre a medicina e a religião, essa interação foi um processo de negociação, de
definição e redefinição das distintas esferas de ação. As considerações quanto às
mudanças e à evolução da medicina também envolvem questões de perspectiva
histórica, tanto temporal quanto geográficas. Em vez de reunir informações com
500 anos ou mais de diferença temporal, este livro obedeceu a uma cronologia
precisa, não só para evitar anacronismos, como também para fazer algumas
associações menos conhecidas de evidências. Ao examinar as diversas obras que
compõem o Corpus Hippocraticum, por exemplo, mesmo com um critério
cronológico básico, é possível inserir os tratados em seus diferentes contextos
históricos. Tratados como Decoro e Preceitos mostram as mudanças ocorridas no
mundo helenístico e não na Grécia na época de Hipócrates. Por sua vez,
Problemas, um tratado atribuído a Aristóteles, também do período helenístico,
revela a crescente influência da doutrina hipocrática, com mais clareza do que
qualquer outro texto de medicina disponível. O sentido geográfico também é
essencial para o estudo da medicina antiga, seja em um santuário de cura na
Muralha de Adriano ou em um vilarejo no Egito, Boae, Cucusus, Éfeso e
Constantinopla. O fato de a maioria das evidências disponíveis ser originária das
grandes cidades, em especial de Roma, distorceu nossa percepção do que era a
medicina na Antiguidade para um número maior de pessoas. Temos apenas uma
visão parcial do médico que viajava pelos vilarejos para atender os doentes, do
agricultor que acumulava a função de curandeiro, da criada que servia à mesa e
que se transformara em parteira. A medicina da região rural, com seu
conhecimento de plantas e ervas, foi praticada de uma maneira intermitente ao
longo dos séculos. A literatura urbana cita diversos praticantes de cura de todos
os tipos em pequenas cidades, em comparação com a quase inexistência deles na
área rural, onde os viajantes só dispunham de seus próprios recursos em caso de
doenças.15 É difícil determinar a veracidade dos fatos, mas é preciso desvincular
o estereótipo de um médico rico de Roma da imagem do praticante de curas
comum. Existem outras lacunas nos registros históricos. A presença sufocante de
Galeno nos privou de informações sobre seus predecessores com os quais
concordava, porém seus opositores são bem conhecidos. O equilíbrio pode ser
retomado em parte com a introdução de autores com uma produção literária
dispersa, alguns desconhecidos até mesmo de especialistas competentes, a fim de
contrabalançar a imagem autoprojetada de Galeno como uma figura solitária
lutando pela verdade em meio à ignorância. Os metodistas, os hipocráticos e os
pneumatistas mais ambíguos tiveram uma atenção merecida neste livro. Mas em
geral a precisão ou a ausência de informações não se deve à falta de dados de
uma pessoa específica. A tendência mais acentuada na Antiguidade tardia de ver
a medicina em termos do conhecimento de determinados livros significa que
nossa compreensão de campos da medicina que são difíceis, ou impossíveis, de
exprimir em palavras é limitada. A cirurgia tem menos registros do que a clínica
médica, embora o número e a diversidade de instrumentos cirúrgicos
encontrados em Bingen, Vindonissa e, em um período mais recente, em Rimini,
confirmam os relatos de Celso e de Paulo de Egina a respeito do nível de
competência e sofisticação de alguns cirurgiões, só atingido de novo no século
XIX. Porém, a maior lacuna no estudo da medicina antiga refere-se ao papel das
mulheres no exercício da medicina. A maioria dos textos de medicina, mesmo
sobre assuntos como ginecologia, foram escritos por homens para serem lidos
por homens, e os tratamentos prescritos por mulheres subordinavam-se aos dos
homens. A menção a mulheres, em geral limitava-se ao trabalho de parteiras ou
do tratamento de problemas ginecológicos, e não de uma medicina mais
abrangente. Essa visão restrita ao mundo masculino subestima o papel das
mulheres no tratamento de outras doenças femininas, além dos cuidados com a
saúde dos homens e das crianças, mas é difícil avaliar a extensão dessa lacuna. A
alusão à rede de informações das mulheres no campo da medicina, criações
hipotéticas de uma tênue ligação histórica, ou da medicina praticada por
mulheres em benefício de outras mulheres, pode agradar as feministas atuais,
mas não corresponde às antigas evidências nem esclarece a dimensão e a
viabilidade da medicina caseira. Muitas doenças eram diagnosticadas e tratadas
primeiro em casa, mas não se sabe ao certo por quem. A medicina agrícola
(Hausvatermedizini) relacionada às condições de vida no ambiente agrícola e
suas influências na saúde dos agricultores, como em Catão, o Velho, em seu
tratado sobre agricultura, é dirigida ao chefe da família. Mas Xenofonte, que
escreveu seu tratado sobre a administração da família no século IV a.C.,
mencionou que a atenção com a saúde dos criados era uma das obrigações de
uma esposa, além do controle da prestação de contas e do cuidado em não deixar
que as provisões armazenadas mofassem. Do mesmo modo, o autor romano
Columella recomendou que a esposa de um bailio de uma propriedade rural
deveria cuidar da saúde dos escravos, uma tarefa importante que lhe traria em
retorno a boa vontade deles, respeito e um trabalho mais bem executado.16 As
referências esparsas a “mulheres sábias” e remédios receitados por mulheres
ricas, como a médica Antióquida de Tlos e Aquilia Secundilla, “senhoras que
viviam em mansões senhoriais”, ampliam nosso conhecimento do envolvimento
feminino na medicina cotidiana. São mulheres com histórias mais verossímeis
do que os estudos heroicos de Hagnodike, a suposta aluna de Herófilo, e a
parteira Fainarete, mãe de Sócrates, que deram mais ênfase aos preconceitos dos
autores, tanto na Antiguidade quanto no momento atual, do que à realidade
histórica.17 Este livro tentou, sobretudo, recriar o clima de efervescência
intelectual e da prática da medicina na Antiguidade, como a reação que poderia
provocar a presença de Hipócrates ao lado de um paciente, os experimentos de
Erasístrato, de Asclepíades e Tessalo, ou de Galeno dissecando um porco. Nosso
conhecimento da medicina moderna dificulta uma aceitação fácil das teorias de
Sorano ou de Galeno, apesar de uma retórica poderosa. No entanto, a leitura de
Ares, Águas e Lugares ou de Epidemias, ou a tentativa de imaginar um paciente
dialogando com Rufus de Éfeso, de acompanhar as dificuldades do parto de uma
criança com Sorano, ou de ouvir Galeno expondo suas últimas realizações no
campo do diagnóstico e na dissecção proporciona uma visão, embora não muito
clara, do impacto deles em seus contemporâneos. Esse impacto foi revivido ao
longo dos séculos pelos que ouviam ou liam a mensagem desses médicos pela
primeira vez, ao descobrirem ou redescobrirem os textos de medicina antigos, às
vezes no original em grego, ou em traduções em siríaco, árabe, hebraico ou
latim. Essa impressão muito forte entusiasmou e inspirou alguns leitores a imitá-
los. Desenvolvimentos cruciais em anatomia, botânica e clínica médica, ou
apenas a reflexão sobre a medicina no mundo natural, remontam ao distante
passado da medicina.18 Na verdade, as duas contestações mais eficazes à
medicina e à fisiologia galênicas foram feitas por homens, que tinham um
conhecimento profundo do ensinamento clássico. Andreas Vesalius (1514-1564),
que editou os tratados anatômicos de Galeno para a edição latina Juntine em
1541, pôs em prática em suas dissecções de corpos humanos as metodologias
defendidas por Galeno, mas que ele não conseguira aplicar. Seus comentários
mordazes a respeito de Galeno no livro De humani corporis fabrica (1543) por
confiar em seus estudos anatômicos na dissecção de animais foram, como seus
contemporâneos não hesitaram em dizer, extremamente injustos e mesquinhos
para com um autor a quem devia tanto.19 A descoberta de William Harvey da
circulação do sangue em animais publicada em 1628 foi resultado de um
profundo conhecimento dos métodos, teorias e lógica de um anatomista
comparado clássico, Aristóteles.20 O fato de as antigas ideias terem mantido por
tanto tempo o poder de provocar e estimular, e com um efeito tão forte, é mais
uma razão para merecerem a atenção. Mas a história da medicina tem uma
abrangência maior do que a história de ideias médicas. É também um registro do
esforço de mulheres e homens em sua luta contra a doença, seja como um doente
ou como praticante de curas. Como temos de citar diversas fontes para criar uma
narrativa, deparamo-nos com a oportunidade de interagir com muitas pessoas do
passado e ouvir suas vozes. Não só em Galeno encontramos um personagem da
Antiguidade que revelou, consciente ou inconscientemente, suas crenças e
preconceitos. Existem muitos outros cuja carreira e experiências podem
enriquecer qualquer relato − o pomposo Decimius Merula, o viajante incansável
Demócedes de Crotona, o sempre inquisitivo Erasístrato e Scantia Redempta, a
médica cristã do século IV da cidade de Capua, “uma mulher sem igual… com
uma discrição perfeita… e parceira do marido no exercício da medicina como na
vida”.21 É possível sentir simpatia pelos tormentos de Sêneca como paciente e
acompanhar João Crisóstomo, já doente e idoso, em sua viagem no caminho do
exílio na Ásia Menor. Podemos pensar na fé (alguns diriam na hipocondria) de
Aelio Aristides, assim como na coragem das mulheres que extirpavam um tumor
no seio por meio da cauterização e o corte de uma faca. A paleontologia também
revela o sofrimento e as consequências fatais de acidentes ou de uma
alimentação inadequada, que complementam as descrições de doenças em livros
didáticos de medicina. E podemos ainda examinar a diferença da posição social
e estilo de vida de Demétrio, que guardava a teriaga do imperador Marco
Aurélio, e Thyrsus, um médico escravo homenageado por uma placa funerária
minúscula em Roma.22 A visão da história da medicina na Antiguidade, como
este livro tentou mostrar, uma história de pessoas de sociedades antigas que
enfrentaram e, com frequência, superaram as doenças permite ver a medicina em
seu contexto histórico e apreciá-la. É um relato que complementa, sem omitir, as
narrativas mais heroicas do progresso da medicina como um acúmulo de
habilidades, ideias e práticas ao longo dos séculos, desde seus primórdios na
Grécia ao triunfo do galenismo. Assim, reinterpreta do ponto de vista histórico
dois dos mais famosos aforismos do Corpus Hippocraticum. Não só reconhece a
longa e, em geral intermitente, evolução da arte da medicina, como também se
esforça para dar uma ênfase apropriada aos três elementos envolvidos no
exercício da medicina, o praticante de curas, o paciente e a doença. O legado da
Antiguidade ainda está presente.

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