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1. Fontes e Escopo
2. Exemplos de Doenças
3. Antes de Hipócrates
4. Hipócrates, Corpus Hippocraticum e a Definição da Medicina
5. As Teorias Hipocráticas
6. As Práticas Hipocráticas
7. A Religião e a Medicina nos Séculos V e IV na Grécia
8. De Platão a Praxágoras
9. Alexandria, Anatomia e Experimentação
10. A Medicina Helenística
11. Roma e a Transplantação da Medicina Grega
12. As Consequências do Império − Farmacologia, Cirurgia e o Exército
Romano
13. A Ascensão do Metodismo
14. Alternativas Humorais
15. A Vida e a Carreira de Galeno
16. A Medicina Galênica
17. A Diversidade da Prática da Medicina, sobretudo no Universo Masculino
18. A Medicina e as Religiões do Império Romano
19. A Medicina do Império Romano Tardio
20. Conclusão Bibliografia
Agradecimentos
Este livro, que demorou mais tempo para ser concluído do que o editor original,
o falecido Roger French, e eu pretendíamos, contou com a colaboração de
muitas pessoas. Diversos trechos do livro foram apresentados em conferências e
seminários no mundo inteiro, e agradeço aos comentários e críticas do público
nessas ocasiões, em especial em Londres, Paris e Pisa. Diversos colegas leram e
comentaram o manuscrito inteiro ou parte dele: Elizabeth Craik, Jason Davies,
Helen King, Cornelius O’Boyle, Thomas Rütten, Manuela Tecusan, Philip van
der Eijk e Heinrich von Staden. Isabella Andorlini, Klaus-Dietrich Fisher, Ivan
Garofalo, Mariaelena Gorrini, Ralph Jackson, Marie-Hélène Marganne,
Innocenzo Mazzini e Gotthard Strohmaier mantiveram-me informado sobre as
mais recentes descobertas em suas áreas específicas de interesse e permitiram
que citasse alguns de seus trabalhos ainda não publicados. Ralph Jackson e
Nikolai Serikoff cederam gentilmente fotografias de suas coleções. Tive também
o privilégio de discutir muitas ideias deste livro com dois amigos que, de
maneiras diferentes, deram uma grande contribuição ao estudo da medicina
antiga, Luis Garcia Ballester e Owsei Temkin. Nenhum dos dois aprovou
totalmente algumas das minhas especulações, mas ambos me encorajaram a
seguir meu objetivo de apresentar a um público mais amplo minhas descobertas
recentes e a de outros estudos acadêmicos. Este livro é o resultado de uma longa
colaboração com o Wellcome Trust e o Wellcome Institute for the History of
Medicine, como eram chamados antes de encerrarem suas atividades no ano
2000. Meus colegas acadêmicos, que agora trabalham no Wellcome Trust Center
for the History of Medicine em UCL, há muito tempo toleram meus interesses
excêntricos em nosso campo de pesquisa comum, e diversos alunos e colegas da
área de pesquisa mantêm minhas ideias em constante desafio. Minhas
secretárias, Frieda Houser e Sally Bragg, proporcionam certo grau de ordem em
minha vida, em geral sob extrema pressão. Jane Henderson fez o trabalho
importante de compilar o índice. Diversos estudantes de medicina ouviram com
prazer histórias do Dr. Galeno e, embora não acreditem, ensinaram-me medicina
e como falar em público. Vários diretores do Departament of Anatomy, em
especial Geoff Burnstock e Nigel Holder, incentivaram minhas pesquisas como
parte do programa mais abrangente do departamento. Por sorte tive acesso aos
acervos das melhores bibliotecas do mundo, como o Institute of Classical
Studies, o Warburg Institute e, o paraíso da pesquisa, a Cambridge University
Library. Agradeço a gentileza e a ajuda de seus funcionários. Mas este livro iria
demorar ainda mais tempo para terminar se não fossem o extraordinário acervo e
os ainda mais extraordinários funcionários da Wellcome Library. Em qualquer
departamento, seja no Reprographics Department, onde Chris Carter fez
milagres com a câmera e Catherine Draycott ensinou-me os mistérios do
catálogo on-line; seja no Poynter Room, onde, com a permissão de Richard
Aspin, consultei os inúmeros manuscritos e John Symons foi uma fonte
incansável de informações profundas e precisas acerca da bibliografia sobre a
história da medicina; ou nas principais salas de consulta da biblioteca onde
encontrei sempre colegas gentis, entusiasmados e alegres, cuja competência
explorei sem escrúpulos durante muitos anos. Nigel Allan, Eric Freeman, Robin
Price, William Schupbach e Brenda Sutton foram os muitos amigos que fiz na
Wellcome Library. Comecei a escrever este livro no ano 2000, quando ganhei
uma bolsa de estudos do Institute for Advanced Study em Princeton, um paraíso
de tranquilidade acadêmica em um momento de grande turbulência. Agradeço
aos funcionários do instituto e a meus colegas pelas valiosas observações e
discussões que me obrigaram a pensar e a repensar seriamente minha pesquisa.
Minha visita a Princeton foi feita durante meu Research Leave Fellowship do
Wellcome Trust, cujo apoio ao meu trabalho e à história da medicina em geral
foi excelente por muitos anos. Tenho o enorme prazer de agradecer o estímulo
que recebi de Peter Williams, Bridget Ogilvie, David Allen e dos funcionários
administrativos. Meu profundo agradecimento à minha família, principalmente,
à minha esposa, que leu cada palavra deste livro em todas as suas versões
iniciais e que contribuiu para melhorar sua lógica, precisão e estilo. Como nós
dois sabemos, este não é o livro que escreveria para ela ao longo de 30 anos, mas
é um testemunho de seu amor e dedicação nesse período. Além dos amigos e
colegas mencionados acima, que me ajudaram na segunda edição deste livro,
gostaria também de agradecer a Glenn Bowersock, Mark Geller, Peter Goode,
Brooke Holmes, Caroline Petit, Laurence Totelin e aos revisores da primeira
edição, em especial John Scarborough e Danielle Gourevitch. Essa segunda
edição é dedicada aos antigos membros do Wellcome Trust Centre for the
History of Medicine em UCL, obrigado a encerrar suas atividades em 2011, um
golpe enorme para todos os pesquisadores interessados no assunto.
Nota ao Leitor Traduzi todas as citações em grego e latim para o inglês, exceto
quando escritas em outra língua, assim como os títulos antigos. Nomes antigos
foram transcritos em geral em sua forma mais familiar, sem nenhuma tentativa
de criar uma coerência entre a grafia grega ou a latina. Com frequência, indiquei
o nome atual ou o local de um antigo lugar. As datas exatas de muitos escritores
antigos raramente são conhecidas, e só é possível definir datas aproximadas.
Procurei ser coerente ao indicar todas as datas a.C., mas só acrescentei d.C.
quando o leitor poderia se confundir com os períodos históricos, sobretudo, nos
capítulos que ultrapassam os limites dos mundos helenístico e romano. É preciso
mencionar duas características da padronização das notas. Os colchetes usados
para isolar o nome de um autor do texto como, por exemplo, [Aristóteles],
indicam que não temos certeza de que a obra seja de sua autoria (em geral sem
nenhuma certeza). Nesse sentido, por razões evidentes no texto, refiro-me ao
Corpus Hippocraticum sempre como [Hipócrates]. Em segundo lugar, os dois
principais conjuntos de textos de medicina antiga são citados de duas maneiras
diferentes. Todas as referências aos textos de Hipócrates têm um título em
inglês, com o nome do livro e do capítulo, o volume e o número da página de
acordo obra padrão de Émile Littré (Paris: Baillière, 1839-61). Por sua vez, para
economizar espaço, citei Galeno apenas pelo volume e número da página citados
na obra padrão de K. G. Kühn (Leipzig: K. H. Knobloch, 1821-33), com o
acréscimo, se possível, do número da página de uma versão em inglês
disponível. Quando necessário, mencionei também um texto aprimorado de uma
edição mais recente, em geral, nas séries CMG. Os textos não incluídos na
edição de Kühn foram citados pelo título, seção e página de uma edição moderna
importante. Usei, com frequência, edições padrões de outros textos antigos, com
a indicação se necessário do nome do editor. Não fiz referências bibliográficas
completas aos papiros, em geral indicados por P., e às inscrições como, por
exemplo, I. Ephesos ou Griechische Versinschriften. As pessoas com
conhecimento do grego ou do latim que quiserem examinar esses documentos
em sua versão original devem consultar a lista de abreviaturas em Liddell, H. G.,
Scott, R. e Jones, H. S. (1968) A Greek-English Lexicon, ed. 9, com
Supplement, Oxford: Oxford University Press; e o Supplement revisto (1996)
org. P. G. W. Glare, Oxford: Clarendon Press; ou no Oxford Latin Dictionary
(1968-82) Oxford: Clarendon Press.
1 Fontes e Escopo
A história é a arte de esquecer e lembrar ao mesmo tempo. Muitas das vozes do
passado, em especial os derrotados em qualquer conflito, na melhor das
hipóteses têm um eco distante, e quanto mais nos distanciamos no tempo
maiores são as lacunas de nosso conhecimento. Os dois milênios ou mais que
nos separam dos gregos antigos e dos romanos significam que qualquer
reconstrução abrangente de suas ideias sobre saúde e cura é repleta de
problemas. As vicissitudes da palavra escrita ao longo dos séculos reduziram
radicalmente a abrangência do material de pesquisa a uma fração do que antes
existia. Em consequência, o mero fato da preservação desse material deu
relevância a determinados documentos e impôs uma maneira de pensar em
relação a eles, que algumas vezes distorcem a realidade histórica. Meu objetivo,
ao analisar neste capítulo o processo de destruição, e ao definir em geral algumas
consequências das lacunas históricas que afetam a compreensão do passado, é
enfatizar a fragilidade da informação histórica e a necessidade de estarmos
abertos a interpretações alternativas do que ainda existe.1 No entanto, quando
mencionamos registros escritos corremos o risco de esquecer que grande parte
da medicina grega e romana não constava de textos escritos, porque em uma
sociedade na qual a alfabetização restringia-se à elite masculina, a comunicação
oral predominava. A “velhinha idosa” para quem Scribonius Largus comprou um
remédio para o estômago em torno de 40 d.C. e os camponeses da Toscana e da
Corcira que, 500 anos depois, forneceram informações a Alexandre de Trales
sobre seus remédios, eram quase com certeza analfabetos.2 Muitos detalhes do
exercício da medicina como, por exemplo, a de fixar um osso quebrado ou a
intervenção para remover o pus de um panarício, ou como reconhecer e escolher
ervas medicinais nas florestas e nos campos, e como fazer o diagnóstico de
doenças, eram ensinados oralmente e pelo exemplo prático, e só raras vezes
eram textos escritos.3 Não sabemos o que o botânico Teofrasto aprendeu em
suas conversas com lenhadores por volta de 330 a.C. e, ainda mais importante,
por que a trepanação, a remoção de pequenos círculos de osso do crânio, era
realizada na Grécia pré-histórica.4 Só é possível imaginar as palavras usadas
pelos antigos exorcistas para expulsar as doenças descritas pelo autor de A
doença sagrada no século V a.C., sem reconhecimento legal (“embora alguns
exorcismos tenha, surtido efeito ) de um advogado romano por volta de 200
d.C.5 Só é possível especular o conteúdo das palestras sobre medicina proferidas
por Asclepíades de Perga no ginásio de sua cidade natal ou em Selêucia (Sul da
Turquia), uma cidade vizinha, que contribuíram para a concessão oficial de uma
coroa de ouro e da cidadania de Selêucia e de um memorial público em
Pérgamo.6 Nem temos o privilégio de fazer uma antiga consulta ou assistir a
uma cirurgia. Tudo isso precisa ser reconstruído na imaginação a partir de relatos
de casos, tratados educacionais que davam conselhos sobre o que deveria
acontecer, descobertas arqueológicas de instrumentos e remédios, além de
representações artísticas ocasionais de um momento idealizado.7 Além disso, a
escrita não garantia a sobrevivência do que havia sido copiado. Não eram
prescrições médicas arranhadas em pedaços quebrados de cerâmica, que corriam
o risco de serem destruídas. Os fragmentos de livros luxuosos de herbários e
tratados de medicina importantes escritos em papiro encontrados nas areias do
Egito são um testemunho igual às destruições fatais do tempo e do
esquecimento.8 Vestígios assustadores de uma literatura extensa que
desapareceu. Como gostaríamos de consultar um tratado de medicina completo
de Diocles, Erasístrato ou de Asclépio de Bitínia, porque sem dúvida mudaria
nossa concepção a respeito dessas figuras influentes, mas também controversas,
cujas opiniões sobrevivem no mundo atual apenas pelos escritos de outras
pessoas, com frequência de opositores. Nossa compreensão de personalidades
tão famosas como Hipócrates se enriqueceria com o acesso direto aos arquivos
em Cós, supostamente consultados por Sorano de Cós para escrever Vida de
Hipócrates, ou para as conclusões bem menos respeitáveis de Andreas em The
Descent of Medicine, dois livros conhecidos apenas por referências em uma
biografia posterior.9 Não só acadêmicos, como também romancistas e diretores
de cinema se inspirariam muito no tratado de medicina Memória de Doroteus,
com sua história horripilante de uma criança mumificada exibida em Alexandria,
ou as lembranças ainda mais interessantes de Olimpus, um médico da corte
brilhante e de curta duração de Antônio e Cleópatra em 30 a.C.10 Com
frequência, conhecemos a existência de uma obra apenas por intermédio de outro
autor, que a critica ou a usa com um objetivo sem relação com a medicina. Os 48
livros nos quais o médico Juliano comentou os Aforismos de Hipócrates no
século II só são mencionados por seu opositor, Galeno; só nos restam também
algumas palavras citadas por um escritor de livros de gramática posterior de um
tratado de medicina de seu contemporâneo, o famoso orador romano e autor de
O asno de ouro, Lucio Apuleio.11
2 Exemplos de Doenças
O mundo da Antiguidade clássica era restrito geograficamente e em sua gama de
doenças comparado ao mundo atual. Por sua limitação em grande parte à bacia
do Mediterrâneo durante quase toda a sua existência, havia poucas incursões de
estrangeiros que traziam com eles agentes patogênicos desconhecidos.1 Os
comerciantes conseguiam chegar até a China, Malásia e Zanzibar, e a navegação
para o Norte da África era feita pela ponta ao norte das ilhas Britânicas, mas
essas viagens eram uma exceção.2 Em sua maioria, a população concentrava-se
em torno do mar no interior da região, “nosso mar”, como os romanos o
chamavam. Mesmo quando os exércitos do Império Romano alcançaram os rios
Danúbio, Elba e Tigre, e quando soldados da Espanha, Síria e Dácia
conquistaram a Muralha de Adriano e misturaram-se a vendedores ambulantes e
civis de regiões distantes, como Comagena, na atual Turquia, ou Palmira, no
deserto da Síria, que haviam seguido o exército, o padrão das viagens não sofreu
uma alteração radical.3 As viagens a pé, a cavalo ou por mar eram demoradas, e
o medo das tempestades de inverno fechava com frequência o Mediterrâneo
durante semanas. Em consequência, a visão do mundo de um homem ou de uma
mulher comum limitava-se à fazenda, ao vilarejo ou à cidade mais próxima.
Poucos se aventuravam a viajar para diferentes regiões do mundo antigo. Só os
exércitos e nos últimos dois séculos antes de Cristo os prisioneiros que seriam
vendidos como escravos nos mercados de Delos e Roma movimentavam-se em
grande número em longas distâncias. A concentração em larga escala da
população era também rara. Antes de 330 a.C. poucos lugares, em especial
Atenas, Corinto, Siracusa (Sicília) e Cartago (Tunísia), tinham mais de 15 mil
habitantes. Muitas das “cidades gregas” tinham menos de 2 mil moradores
dentro de suas muralhas, e mais habitantes na região rural ao redor, mas poucas
vezes com mais de 6 mil no total.4 O número de cidades grandes cresceu nos
períodos helenístico e romano, como Alexandria (Egito), Antioquia, Éfeso e
Esmirna (todas na atual Turquia), e Roma, cuja população era de 750 mil a 2
milhões de habitantes em 10 a.C., porém, isso era um fato excepcional. Os
números razoavelmente precisos são difíceis de obter mesmo com as
informações mais detalhadas dos papiros egípcios, mas os números citados,
calculados com base em diversos tipos de registros do mundo antigo,
proporcionam um sentido do grau de magnitude do nível populacional.5 Esses
números confirmam o padrão inicial: a maioria da população vivia no que hoje
chamaríamos de vilarejos, raramente com mais de 3 mil habitantes, embora as
escavações arqueológicas na Itália e em outros lugares tenham revelado mais
evidências de uma região rural habitada, do que antes se supunha. O nível
demográfico flutuava como reação a diversas circunstâncias. A arqueologia
confirmou um declínio populacional significativo no continente grego nos
últimos dois séculos antes de Cristo, sobretudo em razão da guerra.6 Do mesmo
modo, nos dois séculos seguintes houve um aumento expressivo da população
em vários lugares, antes que a peste Antonina causasse uma súbita redução,
segundo os registros egípcios, de pelo menos 10 a 15%.7 O declínio
populacional na Antiguidade tardia é um assunto delicado; enquanto muitas
cidades na Gália e na Itália reduziram-se no século IV, a Inglaterra ocupada
pelos romanos prosperou por mais tempo, e no Norte da África romana o
declínio só aconteceu em meados do século V. Em meados do século VI a área
habitada dentro das muralhas de Roma diminuiu consideravelmente comparada a
cinco séculos antes, com uma população calculada em dezenas, em vez de
centenas ou milhares, talvez com apenas um quarto do tamanho de
Constantinopla na época.8 Essa abordagem refere-se a pequenos vilarejos
agrários “onde todos se conheciam – a família, a educação, a riqueza e o estilo
de vida”.9 Os estereótipos opostos de cidade e país, temas comuns na comédia e
na tragédia na Grécia clássica, ou mais tarde em Catão, c. 165 a.C., e por Plínio,
o Velho, na História Natural, dois séculos depois, a transição do período do
homem grego da cidade desonesto em contraste com o camponês romano
virtuoso, são conceitos errados.10 As cidades e a região rural estavam
intimamente conectadas em todos os lugares. O pai de Galeno, um arquiteto,
também era proprietário de terras com um grande interesse em agricultura e o
cultivo de colheitas e de vindimas.11 Mesmo quando membros da elite urbana
mudavam-se para uma cidade maior ou, mais tarde, como era frequente para
Roma, o centro do poder, mantinham vínculos com a cidade natal ou com a
região de suas propriedades rurais. Do mesmo modo, muitas características da
medicina grega mostram nitidamente seus antecedentes rurais. A anotação
minuciosa dos ventos, das mudanças de estação, das chuvas e da temperatura em
Epidemias de Hipócrates tem paralelos estreitos com Os trabalhos e os dias, de
Hesíodo, e com Georgics, de Virgílio, uma interpretação poética da agricultura
prática.12 O modelo de colonização divergia entre cada região: as propriedades
rurais da Inglaterra e do Norte da França eram diferentes da paisagem urbana
mais concentrada da Itália, da Sicília ou da costa da Ásia Menor (Oeste da
Turquia), onde os vilarejos estendiam-se ao longo do Nilo, com as tavoliere em
grande parte desertas do Sul da Itália ou do centro da Espanha. Os pequenos
povoados rurais do planalto de Sâmnio (centro da Itália) com suas cidades
comerciais localizadas em intervalos ao longo da planície do vale do Pó a 322
quilômetros ao norte, uma cidade costeira na Campânia multicultural, como
Pompeia, um vilarejo longe do mar ou uma grande autoestrada. Mas todos os
lugares, nas cidades, metrópoles e vilarejos, assemelhavam-se em escala menor
aos seus equivalentes atuais, com horizontes mais limitados e uma população
com menos mobilidade. Enquanto em algumas áreas, como a região de Fens, na
Inglaterra, forneceu suprimentos de gêneros alimentícios para um mercado
maior, a maioria das comunidades era autossuficiente e havia adotado uma série
de estratégias para enfrentar as mudanças de estações e de padrões anuais de
chuvas e fertilidade.13 Em parte isso era consequência do altíssimo custo da
circulação de um grande volume de gêneros alimentícios, como grãos, para
suprir uma potencial escassez de víveres. O transporte desses víveres só era
viável mediante a generosidade de um benfeitor rico ou pela exploração do
poder imperial, como Atenas e Roma, para manter os habitantes dessas capitais
sem risco de inanição e, por conseguinte, de distúrbios políticos.14 Um
fazendeiro médio que vivesse longe da costa poderia muito bem repetir as
palavras do bispo cristão, Gregório de Nazianzo, de que os excedentes da
produção não eram lucrativos e que qualquer deficiência significava uma
catástrofe potencial.15 Seria possível superar uma colheita ruim, mas não uma
série de safras desastrosas, que resultaria em morte e desastre; a interligação (e
em algumas vezes confusão) entre as duas palavras gregas para morte e doença
disseminada, limos e loimos, é mais do que um jogo de palavras. Na época do
poeta Hesíodo em torno de 700 a.C., significava uma realidade sempre presente,
o limite sutil da subsistência típica de um agricultor da Antiguidade que tinha de
alimentar a família e, ao mesmo tempo, precisava procurar desesperadamente
algo para comer.16 Galeno relatou a vida difícil dos camponeses em sua época,
obrigados a comer raízes, folhas e capim depois que seus suprimentos eram
tirados deles à força pelos homens poderosos da grande cidade.17 Nas guerras
dos godos no século VI a população do centro da Itália, forçada a subsistir com
pouco mais do que bolotas de pão, sofreu diversas doenças graves. O relato de
Procópio da pele ressecada das pessoas e da incapacidade de se alimentar com
comida, mesmo quando a ofereciam, é uma obra-prima de uma observação
perspicaz e de uma descrição patética.18 Em outras ocasiões, os agricultores
trapaceavam na quantidade de grãos que entregavam na cidade para guardar um
pouco mais para eles, ou se recusavam a vender o milho que haviam colhido,
com medo de serem contaminados pela peste, mas aos olhos das pessoas
famintas da cidade a intenção era de lucrar depois com preços mais elevados.19
Na cidade ou no campo, a desnutrição resultante do equilíbrio precário entre o
suprimento e a demanda foi o principal fator do perfil demográfico da
Antiguidade clássica. Não só havia uma estreita margem de erro nas colheitas
anuais, como também alguns alimentos ficavam indisponíveis em diversas
estações do ano. As tempestades de inverno mantinham os pescadores no porto e
a escassez de legumes frescos na mesma estação causava xeroftalmia e outras
doenças provocadas por desnutrição, em especial em crianças bem pequenas.20
Enquanto as consequências do enfraquecimento físico após um período longo de
carência alimentar poderiam ser reduzidas por um retorno a uma alimentação
saudável, a escassez de víveres constante tinha um impacto mais grave na saúde
em geral. Apesar da dificuldade em encontrar estatísticas confiáveis, sem dúvida
o perfil demográfico da Antiguidade assemelha-se ao dos países em
desenvolvimento atuais, com uma expectativa média no nascimento de 20 a
30%.21 Mas essa média encobre diversas variáveis fundamentais. Cada
localidade tinha doenças específicas e um perfil demográfico muito diferente,
uma peculiaridade que Grmek chamou de patocenose, ou seja, o conjunto de
doenças em determinado momento e local dependia de diversos fatores
endógenos e ambientais.22 Algumas regiões, sobretudo os locais próximos aos
focos de malária nas planícies, eram extremamente insalubres; no entanto, em
lugares como Tifernum em Umbria havia muitos avôs e avós. Por sua vez, as
grandes cidades atraíam pessoas de locais vizinhos, ou também de centenas de
quilômetros de distância, para aumentar uma população incapaz de subsistir
sozinha.23 Em segundo lugar, embora houvesse uma taxa muito alta de
mortalidade entre crianças com menos de um ano de idade, as que sobreviviam a
essa fase crucial poderiam viver até os 30 ou 40 anos, e cerca de 5% viviam até
os 60 anos.24 Mas não se sabe o percentual de mulheres entre essas pessoas.
Sem dúvida, os problemas específicos relacionados à gravidez e ao parto
causavam a morte de muitas mulheres, apesar de não existirem dados
confiáveis.25 As descrições das hemorragias pós-parto, as infecções e os
tratados importantes sobre ginecologia, como o de Sorano, escrito em torno de
100 d.C., mencionam instruções detalhadas de como virar a criança no útero, a
fim de evitar complicações durante o parto.26 Entretanto, a existência de
instrumentos cirúrgicos como o fórceps para retirar bebês mortos (ou para forçar
um aborto de uma criança viva) indicava que as precauções nem sempre eram
bem-sucedidas.27 Mesmo depois do nascimento, como acontece na África atual,
mães jovens e desnutridas têm alto risco de adoecerem e morrerem e, em
consequência, havia um desequilíbrio numérico entre os sexos, agravado pela
prática de matar crianças indesejadas, sobretudo meninas e deficientes.28 A
inserção das diversas doenças da Antiguidade nesse perfil demográfico é
problemática. As observações e descrições das doenças e as maneiras como eram
classificadas quase sempre impossibilitam fazer uma analogia com doenças
mencionadas em livros didáticos de medicina atuais.29 Às vezes essa
dificuldade era causada por uma categoria ampla demais: as antigas “febres” e os
“eczemas” abrangiam quase qualquer doença em que o corpo do paciente
estivesse quente ou com processo inflamatório, enquanto discussões sobre a
maneira de tratar “tumores” incluíam desde o câncer até carbúnculos. Em outras
ocasiões, a doença alterava-se ao longo dos séculos e produzia uma série de
doenças relacionadas e, possivelmente, também de curta duração, como os vírus.
A lista crescente de tentativas para identificar a peste mencionada por Tucídides
exemplifica a dificuldade, mesmo quando as informações são numerosas e
relatadas por uma testemunha que contraíra a doença.30 Com muita frequência,
mesmo as informações contidas em um texto de medicina são, na visão atual,
fragmentárias, porque o autor não percebeu determinados sintomas, que hoje são
considerados vitais, ou omitiu detalhes que para ele eram banais. Os relatos mais
extensos, embora não muito elaborados, de casos individuais da Antiguidade
mencionados nos livros Epidemias de Hipócrates, são seletivos em sua
apresentação de indícios e sintomas, com o enfoque especial em detalhes que
permitiriam, no futuro, ao escritor (e ao seu público) avaliar a gravidade de uma
doença semelhante, prever seu resultado e, quando possível, intervir com
sucesso. Mas outras informações que seriam também essenciais para um
diagnóstico atual são excluídas.31 Sobretudo em textos leigos, o relato com
frequência foi estruturado para enfatizar detalhes de um diagnóstico periférico, a
exemplo da maneira como um paciente reagia à doença ou o comportamento do
médico, o que dificulta ou até mesmo impossibilita um diagnóstico atual. As
tabuletas colocadas em diversos santuários do deus Asclépio, em especial em
Epidauro (Sul da Grécia), quase sempre registram minuciosamente a doença ou
as doenças que levaram o doente a procurar a ajuda do deus, mas o objetivo não
era o de um relato médico e, sim, de louvar o poder de cura do deus.32 Em
outras ocasiões, as conclusões das testemunhas antigas não se adaptam com
facilidade às descrições atuais da doença identificada: a “lepra” bíblica, por
exemplo, aparece em paredes e roupas, assim como em seres humanos.33 As
pesquisas paleopatológicas ajudam a dar mais precisão aos relatos, bem como a
arqueologia e a biologia poderão acrescentar mais informações no futuro, porém,
as duas disciplinas são pouco usadas em sítios clássicos e têm um valor limitado
para a compreensão do registro escrito.34 No entanto, com essas observações em
mente é possível pelo menos esboçar o perfil das doenças na Antiguidade
clássica.35 Talvez tenhamos começado com uma conclusão negativa: tendo em
vista a estrutura etária da população, as doenças degenerativas características do
século XX seriam menores. Portanto, não é uma coincidência que a discussão
mais longa sobre essas doenças foi feita não em um tratado médico, mas, sim,
em uma obra filosófica de Platão, Timeu. Neste livro Platão expôs sua
concepção e análise do mundo, modelos matemáticos, em vez de informações
médicas obtidas em outras pessoas.36 Porém, isso não significa que essas
doenças fossem desconhecidas. A artrite, sobretudo, foi detectada em muitos
esqueletos, com frequência em pessoas relativamente jovens, e muitos
esqueletos também revelaram outras doenças que causavam dores crônicas,
talvez durante décadas. Havia a percepção nítida de que algumas doenças
afetavam mais os idosos. O câncer, por exemplo, exceto os cânceres
“congênitos”, era raro antes da idade adulta, e muitos tipos de câncer antes da
“velhice”.37 O câncer de mama relacionava-se à menopausa, quando o sangue
que antes fluía estagnava-se dentro do corpo e apodrecia. Em geral era uma
doença fatal, embora Galeno acreditasse que, se diagnosticado com rapidez,
poderia ser curado com a remoção do principal agente cancerígeno do corpo, o
excesso de bile preta.38 A cirurgia para remoção do tumor canceroso só era feita
por médicos competentes ou audaciosos e, mesmo assim, apenas em casos de
cânceres superficiais. Na verdade, a menos que se conseguisse remover
inteiramente as raízes do câncer, acreditava-se que a vida do paciente poderia se
prolongar evitando a faca.39 Celso não era um entusiasta dessa intervenção
drástica; em sua opinião era mais provável prejudicar do que ajudar o paciente.
Segundo ele, um tratamento conservador para evitar o desenvolvimento do
tumor ou que se expandisse para partes mais perigosas do corpo, era a melhor
alternativa.40 Mas, em geral, em vez de direcionar a atenção para doenças
específicas dos idosos, os médicos antigos viam a deterioração física e mental
gradual da idade como um processo inevitável da decadência e extinção da
chama da vida.41 Por esse motivo, os doentes não eram mencionados, só as
exceções, os saudáveis e bem dispostos, como o relato de Plínio, o Velho, de seu
amigo centenário Antonius Castor, que ainda caminhava em seu jardim de
ervas.42 Galeno e seus pares tinham prescrições individuais para a longevidade.
O médico Antiochus, aos 80 anos, andava todos os dias um quilômetro ou mais
de ida e volta do foro para ver seus pacientes, enquanto Telephus, o professor,
viveu até quase 100 anos com sua dieta de cevada cozida, mel, legumes, peixe,
aves, pão e um pouco de vinho, e com uma visita aos banhos não mais de uma
vez por semana.43 Os escritores antigos davam mais informações a respeito de
epidemias ou doenças contagiosas disseminadas, mas seus relatos apresentam
diversos problemas diferentes. Em relação ao modelo demográfico descrito neste
capítulo, poderíamos pensar que a população era dispersa demais para que
houvesse surtos frequentes e propagados de epidemia, que os antigos chamavam
de “peste”.44 O agente contagioso não sobreviveria tempo suficiente para ser
transmitido a um hospedeiro não imune, ou haveria hospedeiros potenciais com
imunidade adquirida pela exposição prévia ou herdada e, assim, o agente não
conseguiria se reproduzir.45 Esse padrão previsível confirmou-se com o registro
histórico, porque, apesar de podermos escrever uma longa lista de surtos de
peste, as epidemias foram na maioria das vezes locais. Por exemplo, a epidemia
de 278-276 a.C. só atingiu Roma e o Lácio e terminou com um inverno
excepcionalmente frio.46 Segundo Tácito, a epidemia do segundo semestre do
ano 65 a.C. matou 30 mil pessoas em Roma, inclusive membros do Senado e da
nobreza, mas não se tem certeza se essa epidemia tinha relação com as
epidemias que haviam devastado poucos anos antes o Norte dos Alpes.47 É
possível que essa descrição de grandes pestes locais seja resultado de fontes
imprecisas, que se concentravam basicamente em Roma e Atenas, com o
objetivo de registrar acontecimentos em uma escala maior. Assim, por exemplo,
em seu relato da grande peste em 430 a.C., Tucídides descreveu os eventos em
Atenas e o que aconteceu com as tropas atenienses em Potideia, mas não se
deteve em minúcias sobre a passagem da peste pelo Egito e Lemnos, além de
não mencionar “outros lugares populosos” atingidos pela doença, exceto pelo
comentário negativo que o Peloponeso não foi seriamente atingido.48 Do
mesmo modo, Tito Lívio relatou surtos de peste em Roma em 431 a.C. e 428
a.C., porém, não fez referência à doença na Grécia.49 Em outras ocasiões, os
escritores antigos registraram doenças que atingiram áreas maiores. A peste
Antonina de 166-172, que talvez tenha sido varíola, estendeu-se para o oeste da
Pérsia até o Império Romano e além do Reno transmitida supostamente pelo
Exército romano vitorioso depois de uma campanha contra a Pérsia.50 Essa é
uma explicação plausível para a transmissão da peste, embora tenhamos de
aceitar a ideia antiga de que o Exército estava de certa forma sendo punido por
um deus por ter saqueado o templo de Apolo, ou supor que teve a infelicidade de
andar próximo aos poços de nafta do Norte do Iraque, cujos vapores
envenenavam o ar.51 O surgimento de uma doença diferente foi registrado por
Galeno em 189, quando seus efeitos em Roma intensificaram-se durante meses
de escassez de víveres.52 Uma pandemia posterior ocorreu em 250 e prolongou-
se por quase 20 anos, seguindo em direção ao oeste. Segundo Cipriano, uma
testemunha, a pandemia não poupou uma única cidade. Metade da população de
Alexandria morreu e pelo menos um vilarejo desapareceu.53 A peste de
Justiniano, que começou em 541 no Egito e disseminou-se na Espanha, Trier e
talvez no País de Gales, foi admirável em dois aspectos. Essa doença foi o
primeiro surto confirmado de peste bubônica (apesar, é claro, de não ter esse
nome) e continuou a aparecer em intervalos regulares ao redor do Mediterrâneo
oriental, a região com a maior densidade populacional, por 200 anos.54 No
entanto, outros fatores apoiam a ideia de que a maioria dos surtos de doenças
infecciosas foi local. Em muitas fontes a ocorrência está associada à escassez de
víveres, com a consequente redução da resistência física, e a períodos de cercos,
como observou o historiador Amiano Marcelino na cidade de Amida, sitiada em
359 d.C.55 Com frequência também se associava a exércitos, tanto nos
acampamentos militares quanto em campanha. Os exércitos cartagineses na
Sicília foram destruídos por doenças em 406 e de novo em 396 a.C.56 Os
exércitos romanos e cartagineses foram dizimados em Siracusa em 212 a.C., e
uma frota romana foi obrigada a levantar âncora e abandonar as operações na
Lícia, porque muitos escravos das galés haviam adoecido.57 Em 90 a.C. 17 mil
homens das tropas de Otávio, que sitiavam Roma, supostamente morreram de
doenças no período das guerras civis entre os partidários de Caio Mário e
Sula.58 As condições de um acampamento militar repleto de soldados era uma
fonte ideal para o surgimento de doenças e, por esse motivo, não surpreende que
mesmo no Exército romano bem organizado muitos soldados não podiam lutar
por estarem doentes (inclusive com doença contagiosa dos olhos), do que por
ferimentos.59 Um incidente em 232 d.C. ilustrou com precisão a ocorrência de
doenças nos exércitos, assim como mostrou antigas ideias sobre a causa e a
disseminação dessas doenças. Nesse ano o imperador Alexandre Severus e suas
tropas estavam acampados perto do rio Eufrates, na fronteira com o Norte da
Síria, onde, como relatou o historiador grego contemporâneo Herodiano, todos
adoeceram por causa do ar sufocante.60 As tropas vindas da Ilíria adoeceram
com mais gravidade e muitos morreram, porque estavam acostumados com o ar
úmido e frio, além de rações mais nutritivas do que as servidas no acampamento.
O exército foi obrigado a recuar para a Antioquia, onde o imperador e os
soldados recuperaram-se com o ar frio e a água limpa da cidade. Um
epidemiologista atual, se fosse chamado para diagnosticar um surto maciço de
doença em um acampamento militar na região do Mediterrâneo, suspeitaria
imediatamente de uma doença contagiosa, como shigelose ou disenteria causada
por bactérias. A conhecida “febre de acampamento”, o tifo, seria provavelmente
excluído da primeira hipótese de diagnóstico, porque os microorganismos
transmissores da doença, os piolhos, precisavam de climas mais frios para se
desenvolverem.61 Mas logo surgiu a explicação de que as doenças resultavam
de condições de vida insalubres, água infectada ou outra forma de poluição.62
Por outro lado, Herodiano, como outros escritores antigos em geral, atribuiu esse
desastre médico em um acampamento militar, quase do tamanho de uma
pequena cidade, a uma alimentação deficiente e a incapacidade das tropas de se
adaptarem ao novo clima quente e sufocante.63 A água da Antioquia recuperou-
os, não por sua pureza e ausência de parasitas, mas, sim, porque causou uma
mudança na constituição de seus corpos: o vento e a água neutralizaram o calor e
o efeito opressivo do “espessamento” da fronteira do deserto sírio.64 Os
comentários sucintos de Herodiano revelam o abismo que separa as explicações
e prioridades da medicina atual das da medicina da Antiguidade.65 O autor
focou diferentes aspectos da doença, com uma visão distinta da causa, e
enfatizou o efeito do clima, em vez de vetores, germes, bactérias, vírus entre
outros microorganismos transmissores de doenças. Assim como a maioria dos
escritores de medicina da Antiguidade, sua explicação da doença baseava-se na
interação pessoal com o ar; a receptividade e a resistência, a força ou fraqueza
provocada pela alimentação ou estilo de vida. Esses fatores eram vitais para
determinar a reação a um ar nocivo, mas precisavam ser definidos ou explicados.
Nesse contexto a pergunta por que o ar tornava-se nocivo era secundária; o que
causava a poluição tinha menos importância do que a percepção de que o ar era
perigoso.66 Na verdade, o importante era a capacidade do doente potencial de
repelir mudanças prejudiciais, uma capacidade que, como os médicos
aconselhavam, poderia aumentar com uma mudança de alimentação ou, como
um autor da tradição de Hipócrates recomendava, de inspirar o ar o menos
possível com uma alteração no hábito de respirar.67 A crença predominante
entre os escritores de medicina da Antiguidade de que as epidemias eram
resultado do ar nocivo contrastava, aparentemente, com o uso comum de
palavras latinas como “infecção” e “contato/contágio” para descrever o processo
de transmissão das doenças.68 Incidentes desagradáveis como doenças ou
heresias podiam ser transmitidos de uma pessoa para outra, assim como a tinta
penetra em um tecido ou um dedo sujo mancha uma toga imaculadamente
branca.69 Mas esse aparente contraste entre autoridades gregas e latinas não
significa que os gregos desconhecessem o contágio pessoal de doenças ou a
crença dos romanos nos agentes transmissores individuais, antes dos
bacteriologistas no século XIX. Tucídides, em seu relato da peste em Atenas,
mencionou a transmissão da doença entre as pessoas, sem indicar que sua
opinião fosse incomum e diversos autores gregos explicaram por que uma
pessoa contagiava-se com a proximidade de um doente e outras não. Os
principais exemplos de autores latinos e gregos referiam-se a “tísica”
(tuberculose), psora (sarna) e “oftalmia”, mas excluíam com regularidade as
“febres” e propunham explicações idênticas para a transmissão potencial de
doenças chamadas de “mau olhado”.70 Nas descrições metafóricas do processo,
sempre com a dificuldade de distinguir a metáfora morta, os autores latinos
mencionavam com frequência o “tato”. Os gregos usavam a palavra
“compartilhamento”.71 Porém, esses autores não discutiram a consequência
terapêutica dessas metáforas, ou seja, a exclusão, temporária ou permanente, do
doente do contato social, por duas razões básicas. As soluções adequadas no
caso de animais infectados só podiam ser aplicadas com extrema dificuldade em
seres humanos. Seria muito mais fácil matar um carneiro doente em um rebanho
do que alguém da família e, em segundo lugar, a sociedade antiga não tinha
poder nem estruturas administrativas capazes de lidar de maneira apropriada
com assuntos de saúde pública.72 A última observação talvez pareça paradoxal
às pessoas familiarizadas com o, de esgoto e aquedutos do mundo romano, ou
até mesmo com sistemas mais simples da antiga Grécia, além do costume de
contratar abertamente médicos que discutiremos mais tarde. Essas medidas sem
dúvida reduziram o impacto de doenças em cidades superpovoadas, embora
Galeno tenha mencionado que os dejetos expelidos pelos esgotos haviam
diminuído o tamanho dos peixes pescados na parte inferior e no estuário do rio
Tibre a pouco mais de uns gramas comparado aos peixes gordos e saudáveis de
sua parte superior.73 Mas existem poucos indícios de que a preocupação com a
saúde pública tenha exercido influência na construção dos esgotos comparada à
estética, ao prestígio pessoal do doador e, em especial em Roma, à necessidade
de evitar a desordem no cerne do império. A existência de regulamentos sobre a
localização dos cemitérios fora das muralhas da cidade, o contato físico ou a
mutilação de cadáveres devia-se mais à religião do que à higiene, embora, assim
como nos hábitos alimentares dos judeus, a religião tenha contribuído para o
aperfeiçoamento das condições da saúde pública.74 Sabinus, Galeno e outros
médicos da tradição de Hipócrates de Ares, águas e lugares ofereciam conselhos
excelentes quanto ao local da cidade, a largura das ruas e a importância de uma
boa ventilação nas casas, e escritores de manuais de arquitetura como Vitrivius
(c. 20 a.C.) os apoiavam, porém, não há provas de que suas opiniões fossem
sequer seguidas.75 Em geral, as recomendações deles seguiam o bom senso –
evitar pântanos e terrenos alagados, fumarolas e cadáveres com mau cheiro –,
que não precisavam de um médico para advertir quanto a esses perigos, como
qualquer leitor dos conselhos de Varrão para fazendeiros sabia.76 Mas a cidade
como entidade política não exercia um papel importante em questões referentes
à saúde, exceto em seus objetivos administrativos: os médicos, por exemplo,
precisavam servir o exército e agir como peritos em casos de assassinatos ou de
ferimentos sérios. Exceto entre os judeus e cristãos, a responsabilidade em
relação à saúde era um problema particular de uma pessoa e de sua família. Os
pobres romanos ainda se aglomeravam em prédios de vários andares em
“Suburra quente como uma fornalha”, enquanto as mansões dos ricos
pergamenos (Galeno entre eles) situavam-se em lugares mais saudáveis, e como
as descobertas recentes das escavações arqueológicas confirmaram, no meio da
grande colina, acima da cidade sufocante onde soprava a brisa fresca do mar
Egeu a alguns quilômetros a oeste.77 A perspectiva em relação ao ambiente
também explica as informações escassas fornecidas pelas fontes antigas
referentes a doenças ocupacionais. Galeno proporcionou uma visão precisa da
conexão entre a ocupação e a saúde na Antiguidade com seus relatos sobre
pescadores temporariamente paralisados por terem tocado em um poraquê com o
tridente, e de copistas profissionais (como ainda existiam não há muito tempo no
exterior das mesquitas na Turquia), que ficaram cegos por escreverem
continuamente à luz do sol brilhante em lugares que refletiam esse brilho.78 O
rosto pálido dos mineradores de chumbo e de prata, sobretudo na Espanha, era
um lugar-comum entre os poetas latinos, e Plínio, o Velho, mencionou as
pequenas máscaras de proteção usadas por trabalhadores na extração de zarcão
(apesar de a descrição de seu uso não inspirar confiança em sua eficácia).79 É
possível imaginar o destino dos muitos escravos que trabalhavam nas minas de
prata extremamente poluídas e na produção de alumínio na Ática no final dos
séculos VI e V a.C. (de acordo com estudos da calota de gelo da Groelândia,
esse foi o período da maior concentração de chumbo na atmosfera), ou os que
eram condenados pelos juízes romanos a trabalharem nas minas em Wadi
Faynan (Jordânia).80 Havia alguma ajuda médica (uma inscrição romana
registrou a presença de um médico em uma empresa de mineração espanhola),
mas não muita.81 A vida de muitos trabalhadores escravos nas grandes
propriedades rurais da República romana não foi menos brutal e curta. Esses
escravos quase sempre trabalhavam em regiões notoriamente insalubres, eram
alimentados com comidas indigestas e sem nutrientes, e quando adoeciam eram
tratados, caso fossem, com remédios mais básicos e comuns.82 No início do
século IV a.C. Platão descreveu o Estado ideal nas Leis, recomendando que
deveria haver uma diferença entre os médicos que tratavam dos homens livres e
dos escravos. 0s escravos seriam tratados por médicos escravos, que
prescreveriam tratamentos grosseiros e rápidos sem explicação, como
“déspotas”, e não médicos cuidadosos.83 Não sabemos se os escravos que
trabalhavam nas casas das famílias imperiais e dos senadores ricos no final da
República e início do Império Romano eram mais bem cuidados nas mãos dos
escravos ou de ex-escravos que trabalhavam como médicos, ou até por
especialistas, entre a distribuição das pessoas na casa.84 Um escravo muito
especial poderia ser tratado pelo médico pessoal do dono da casa, porém, é mais
provável que estigmatizados, açoitados e com uma carga de trabalho exaustiva,
os escravos só viam um médico quando eram vendidos.85 Nessa ocasião
chamavam um médico que os examinava e que decidia, por exemplo, se um
ouvido supurado teria cura, ou se havia um problema crônico ou congênito, que
reduziria o preço da venda.86 Quando eram vendidos para gangues
inescrupulosas as vidas desses escravos eram ainda mais infelizes e curtas. A
reconstrução do perfil das doenças da Antiguidade é dificultada pela grande
diferença entre a compreensão antiga e moderna do conceito de doença. Embora
as doenças fossem vistas às vezes, em especial no contexto religioso, como se
tivessem existência própria, a maioria dos médicos da Antiguidade pensava
nelas em termos de processos patológicos, que atingiam o corpo ao longo do
tempo.87 Eles teriam concordado com um autor aristotélico, segundo o qual a
doença tem a conotação de movimento, ao passo que a saúde tem o sentido de
repouso.88 Em geral, viam a doença como uma alteração biológica que atingia
uma pessoa e originava-se do estado físico influenciado por seu estilo de vida.
Alguns sintomas logo foram chamados de “doenças” e, sobretudo no período
romano, eles eram sofisticados, e em termos de observação havia discussões
memoráveis sobre nosologia. Porém, mesmo quando a importância desses
sintomas foi reconhecida, muitos médicos, em especial os da tradição de
Hipócrates, os consideravam mais como orientações, que se modificariam de
acordo com as conclusões sobre o estado físico do paciente. Do mesmo modo,
apesar do consenso de que certos sintomas ou síndromes eram uma
“patognomia” ou um “prognóstico”, que caracterizava tipos específicos de
doenças, não eram considerados como a doença em si, mas, sim, apenas
indicadores de mudanças mais profundas na constituição do paciente.89 Além
disso, alguns nomes antigos de doenças não são específicos na concepção atual.
A palavra “tísica”, por exemplo, que em geral significa tuberculose, poderia
abranger diversas doenças debilitantes.90 Feridas, gangrenas e abscessos, alguns
descritos com um tom dramático, eram todos reunidos no mesmo conjunto
específico e não havia garantia de que a terminologia de um autor para designar
pústulas coincidisse com a palavra usada por outro autor. A crítica mordaz de
Galeno aos “médicos jovens” que queriam criar sua própria terminologia, às
vezes mais específica para descrever doenças, resultava em perda de precisão e
inteligibilidade. A exatidão da descrição deles, como Galeno acreditava, não
seria percebida por pessoas que desconhecessem as palavras, e haveria outras
maneiras melhores de dar uma definição mais clara de uma doença com o uso de
uma terminologia mais antiga e abrangente.91 No entanto, apesar dos problemas
de identificação, é claro que muitas doenças conhecidas da Antiguidade ainda
existem no mundo atual.92 Tosses, resfriados, pneumonia e pleurisia eram
comuns no inverno; diarreias, no verão.93 Icterícia e outras infecções do fígado
eram descritas como uma forma de infecções parasitárias do aparelho digestivo.
Tênias, ascarídeos e vermes na Guiné egípcia eram doenças comuns.94 Na falta
de antibióticos, as úlceras eram frequentes e, como Galeno mencionou em
Método de curar, constituíam uma grande parte do trabalho de médicos e
cirurgiões comuns. Mas havia outras doenças de pele desfiguradoras, como
sarna, alfo e herpes, e o farmacólogo e escritor Dioscórides receitava mais
remédios para essas doenças do que para outras.95 Segundo Plínio, os “líquens e
as sicoses”, uma inflamação causada por fungos, só surgiram na Itália no início
do século I d.C.96 O uso dos banhos públicos, um dos sinais de civilização entre
os romanos, diminuiu algumas formas de doenças causadas pela sujeira, mas,
como previsível, provocou outras infecções. A lepra (a hanseníase), uma doença
infecciosa crônica causada pelo Mycobacterium leprae, que afetava a pele e o
sistema nervoso periférico, foi a doença de pele mais famosa da Antiguidade. As
evidências paleopatológicas de sua existência no Mediterrâneo só surgiram na
época helenística.97 Textos da Babilônia, do Egito e de Israel escritos a partir de
800 a.C. descreveram doenças de pele desfiguradoras, talvez entre elas a
hanseníase, provavelmente citada como psoríase. A doença bíblica, zaath,
traduzida na versão autorizada da Bíblia inglesa como lepra, afetava não só a
pele, como também as paredes das casas e as roupas, com ênfase em seu aspecto
escamoso (e fúngico?) ainda é mais problemática.98 A palavra “lepra”, que
significa em grego uma “doença que provoca o aparecimento de escamas”, é
mencionada no Corpus Hippocraticum, e um tratado sobre “elefantíase”, uma
palavra grega para uma doença que causa espessamento da pele e alterações nos
ossos, foi mencionado no século V pelo filósofo Demócrito, embora talvez
tivesse sido escrito três ou quatro séculos mais tarde.99 A data em que essa
doença surgiu no Mediterrâneo é um tema controvertido, mesmo na
Antiguidade. Plínio situava seu aparecimento em meados do século I a.C., na
época de Pompeia, ao passo que Plutarco, um contemporâneo um pouco
posterior, citou o médico Athenodorus, segundo o qual a doença só surgira no
final do século II a.C.100 Mas existe um bom motivo para acreditar que a
doença já fora discutida em torno de 250 a.C. pelo médico Strato, e um unguento
para tratar a elefantíase foi criado pelo cirurgião Arcagato, que viveu no final do
século III a.C.101 Os contratos de vendas de escravos no Egito helenístico
incluíam cláusulas que cancelavam a venda se mais tarde o escravo sofresse de
epilepsia ou de “toque” interpretado como uma espécie de lepra cutânea.102
Porém, foi preciso esperar os autores romanos Aretaeus e Célio Aureliano,103
para termos descrições mais precisas e detalhadas do que sem dúvida era a
hanseníase. A importância dessa doença estende-se além de relatos médicos,
porque as histórias de lepra no Antigo e no Novo Testamento têm uma ênfase
especial na literatura cristã. O relato nos Evangelhos do encontro de Jesus Cristo
com leprosos na estrada significa que era uma doença comum, em contraste com
as conclusões de antigos escritores de medicina ou de evidências
paleopatológicas preservadas.104 As divergências podem ser explicadas pelo
impacto forte e duradouro que a pele em escamas e um rosto deformado
causavam em um observador casual, assim como acontece com as doenças atuais
que podem ser incluídas no contexto da antiga palavra. O rim e problemas de
bexiga também tinham destaque em antigos manuais de medicina, com diversas
explicações para a impossibilidade de urinar ou o ato doloroso de urinar.105
Existem vários relatos de cirurgias para retirar pedras na bexiga, mas todos
mostraram o perigo de uma infecção posterior se a incisão não cicatrizasse de
maneira adequada.106 Por esse motivo, não causa surpresa que alguns cirurgiões
tenham se especializado no tratamento de fístulas, uma consequência da
ulceração contínua, sobretudo, no períneo ou na região do ânus.107 As
hemorroidas, por outro lado, eram vistas como doenças positivas, uma maneira
de o corpo expelir com frequência ou o sangue excessivo ou prejudicial, e o
término da menstruação era um fato preocupante, porque indicava que o sangue
prejudicial mantinha-se dentro do corpo como um veneno oculto. A cistite e os
abscessos da uretra e da próstata também foram descritos, mas os cânceres de
pênis e do útero, doenças sexualmente transmissíveis, só foram mencionados
mais tarde nas fontes preservadas. Só existiam registros de formas mais brandas
de doenças sexualmente transmissíveis, como as causadas pela bactéria
Chlamydia trachomatis; se o corrimento mucoso desagradável e constante
descrito como blenorragia corresponde à doença atual é um tema controvertido
e, apesar de algumas opiniões veementes, a existência da sífilis venérea na
Antiguidade não foi ainda comprovada. As ulcerações, cancro e tumefação do
pênis poderiam ser sintomas da doença, mas só alguns esqueletos tinham sinais
das lesões características dos estágios finais da sífilis.108 Porém, ainda não se
tem certeza de que era resultado de uma infecção venérea ou não, embora as
mudanças patológicas no feto encontrado em uma escavação no Sul da França
tenham indicado a existência de uma forma venérea.109 As evidências
paleopatológicas de anormalidades em esqueletos, de textos e de manifestações
artísticas são muito mais extensas.110 Sinais de fraturas, artroses na coluna
vertebral e deslocamentos, tanto congênitos quanto em consequência de traumas,
são encontrados com regularidade nas escavações.111 Existe uma descrição
clássica de uma corcunda, talvez como resultado da tuberculose, em
Articulações de Hipócrates, que, assim como Fraturas, descreve vários
problemas de articulações, apesar da surpresa em vermos o que parece ser uma
fratura de punho de Colles, sendo tratada como um deslocamento (citado como
difícil para curar!).112 As manifestações artísticas, em especial a escultura,
mostraram uma ampla gama de deformidades desde nanismo, acromegalia, pés
tortos e quadris deslocados (congênito?).113 A gota foi homenageada com um
poema satírico da coletânea de obras atribuídas ao escritor romano Luciano. Seu
título cômico, Tragodopodagra, a Tragédia Gotosa, não escondeu os sofrimentos
provocados pela doença.114 Doenças oculares também foram descritas na
Antiguidade e eram tão comuns que a existência de especialistas justificava-se
plenamente. Glaucoma, tracoma e conjuntivite eram frequentes e Galeno
pensava que um cirurgião competente seria capaz de curar diversas doenças
oculares, inclusive crescimento da córnea ou das pálpebras.115 A descoberta de
um conjunto de instrumentos de um oculista em um túmulo em Montbellet
(França) esclareceu três descrições antigas de uma cirurgia de catarata de Celso,
Antillo e Paulo de Egina.116 Apesar da descoberta de mais de 300 selos usados
para marcar bastões de unguento para o tratamento de doenças oculares (em
especial de “olhos inflamados e inchados”, lippitudo) em muitos lugares da
Gália, na Inglaterra e nas províncias ao norte ter indicado que a doença era mais
comum na região do Mediterrâneo, o assunto ainda está aberto a discussão.117
Indícios registrados no Egito e no perfil das doenças oculares atuais no Levante
sugerem uma visão oposta, ao mesmo tempo em que a descoberta de
instrumentos cirúrgicos, assim como os selos dos oculistas indica que as doenças
oculares não eram as únicas enfermidades cuidadas por esses médicos. Outras
doenças não deixaram traços nos registros arqueológicos, mas são descritas em
minúcias em textos médicos e leigos – acidentes cardiovasculares e epilepsias
(atribuídos a causas divinas e naturais), enxaquecas, dores de cabeça e distúrbios
nervosos e mentais.118 Esses distúrbios incluíam a sensação de uma pessoa que,
deitada na cama, tinha a impressão de que alguém, ou um demônio, tentava
estrangulá-la (ephialtes), a paranoia ou uma alucinação fatal de que um escravo
era uma grande jarra que deveria ser jogada de uma janela alta.119 O limite entre
a loucura e um desvario profético ainda é um assunto polêmico, tanto no
paganismo, no judaísmo ou no cristianismo, e a melancolia do gênio tornou-se
um lugar-comum a partir do período helênico.120 Cenas de loucura
predominaram no início da literatura épica, na tragédia clássica grega e na poesia
latina e referiam-se à vingança divina.121 Em especial em textos do Oriente
Próximo, inclusive judaicos e da literatura tardia cristã, os distúrbios mentais são
com frequência atribuídos à intervenção de demônios, sendo que alguns deles
podem se apossar do corpo.122 No entanto, médicos e escritores de Hipócrates a
Galeno, um especialista com estilo próprio quanto à relação entre mente e corpo,
sugeriram explicações materialistas alternativas, mesmo que eles fossem uma
minoria.123 O maior grupo de doenças mencionado em textos médicos antigos é
o que se refere a febres, puretoi ou febres, um termo amplo originário da
sensação de um calor abrasador. (Como o termômetro não havia ainda sido
inventado, a temperatura tinha de ser calculada pelo tato ou pela descrição do
paciente de seus sintomas.) Na terminologia médica atual a febre é apenas um
sintoma e uma das indicações de uma doença específica. Mas na Antiguidade a
febre era considerada uma doença, porém, mesmo assim, precisava de uma
precisão posterior. Algumas febres, como as “febres com calafrios”, eram
descritas em termos de seus efeitos, mas a taxonomia mais comum dependia de
sua periodicidade, quando a temperatura alta era constante ou diminuía e, em
seguida, voltava depois de um ou mais dias. O padrão dessa febre baseava-se nos
acessos periódicos de calafrios e febre da malária, uma doença transmitida por
mosquitos em pântanos baixos ou rios com um fluxo lento de água. A malária
caracterizava-se também pelo aumento do baço e do fígado, além de ciclos
recorrentes de ataques e remissão.124 A regularidade matemática com a qual
podia ser calculada e prevista, assim como o ciclo sazonal típico de transmissão
no final do verão, sugeriu aos gregos que a doença era sujeita às mesmas leis do
resto do universo. A Plasmodium vivax, a P. malariae e a P. falciparum, esta
última a mais perigosa, foram as três principais formas da malária na região do
Mediterrâneo. Às vezes provocava uma morte rápida, mas quase sempre seus
efeitos eram debilitantes como, na verdade, os efeitos de todas as formas de
malária, e de longo prazo, tanto na mente quanto no corpo. A malária falciparum
existia na Grécia desde pelo menos o período Neolítico, mas a incidência nem
sempre era constante. Muitas áreas que mais tarde se tornaram focos conhecidos
de malária como, por exemplo, a Beócia e a planície da Macedônia, tinham um
nível demográfico maior nos séculos V e IV a.C. do que no início do século
XX.125 As cidades litorâneas ao sul da Etrúria eram densamente povoadas até o
século III a.C., enquanto a colônia grega de Pesto, no Sul da Itália, famosa hoje
por seus templos magníficos, situava-se em uma área que na Baixa Idade Média
era um pântano infestado de mosquitos transmissores da malária. Portanto, há
muito tempo os estudiosos acreditam que as primeiras infecções da malária
falciparum na pré-história reduziram-se em consequência de mudanças
climáticas, que controlavam o mosquito vetor, e o aumento da incidência da
malária só ocorreu de novo em meados ou no final do século V a.C. Sem dúvida,
não existem registros de observações sólidas sobre a incidência de febres e do
comportamento dos mosquitos para sugerir uma analogia com a malária: os
quartos nos andares mais altos eram mais saudáveis do que os do térreo (porque
os mosquitos têm uma capacidade de voo pequena); febres graves eram muito
comuns em um ano com uma primavera úmida e um verão quente, que criava
grandes poços de água estagnada, um foco ideal para a proliferação de insetos, e
depois que secavam os mosquitos partiam para procurar outro habitat; os
pântanos à beira-mar, como ao redor de Ravena, eram menos perigosos do que
os pântanos no interior (a salinidade deles impedia que a larva do mosquito se
desenvolvesse).126 Porém, enquanto havia, em geral, uma analogia entre a
pobreza e a predominância da malária (e vice-versa), principalmente em regiões
baixas perto de pântanos ou de rios com um fluxo lento de água, a incidência da
malária era muito mais complexa. A intervenção do homem com a criação de
fazendas longe das florestas ou a construção de estradas em lugares pantanosos,
paradoxalmente, aumentou o número de focos de mosquitos. Ao mesmo tempo,
a fertilidade de muitas planícies, sobretudo na Campânia romana, incentivou os
agricultores a continuarem nesses lugares, em especial se tivessem adquirido
certa imunidade na primeira infecção e na recaída, porque uma fazenda em um
planalto era quase igual em termos de salubridade e, com certeza, pior em
relação à prosperidade. Mas logo que a malária se instalava em um local, sua
incidência desafiava todas as tentativas de cultivar de novo a terra. Os pântanos
em Pontinas, uma região de florestas e áreas alagadas bastante atingida pela
malária na Campânia romana, tinha engolido diversas cidades e vilarejos muito
antes da primeira tentativa de drená-las por Cornelius Cethegus em 160 a.C., e
continuou a desafiar todos os melhoramentos até Mussolini, na década de
1930.127 Em 500 d.C., com o empobrecimento de Roma, a Campânia inteira se
converteu em uma das piores regiões infestadas pela malária, quando os canais
de drenagem secaram e a terra fértil inundou-se de água.128 A malária é sem
dúvida uma explicação mais plausível para o declínio econômico de
determinadas regiões do mundo romano do que o vilão habitual, o
envenenamento por chumbo.129 Embora as análises dos esqueletos tenham
revelado uma presença crescente de chumbo na Antiguidade clássica comparada
com a do segundo milênio antes de Cristo, essa taxa foi menor do que a prevista,
em razão do aumento significativo da produção de chumbo de 600 a.C a 500
d.C. e da difusão do uso de chumbo em objetos caseiros e canos.130 Em parte
pelo fato de a doença imitar sintomas de muitas outras enfermidades, descrições
precisas de envenenamento por chumbo eram raras. No século II a.C. Nicandro
mencionou o exemplo mais antigo, e Paulo de Egina, sete séculos depois,
observou que a doença estava disseminada.131 Vitruvius aconselhou a não beber
água de poços perto de minas de chumbo e também criticou o uso de chumbo em
tubulações de água, uma proibição apoiada por Augusto, apesar de pouco
seguida.132 Mas as fontes de água com o fluxo livre – as torneiras eram raras –
não eram muito contaminadas pelo chumbo e o acúmulo de outros depósitos, em
especial giz nos canos de chumbo reduziam ainda mais o perigo. O hábito de
ferver o suco de uma fruta em contêineres de chumbo para produzir sapa, um
procedimento recomendado por diversos escritores de culinária e de agricultura
para melhorar o sabor, era muito mais perigoso. Imitações atuais, de acordo com
a recomendação de Columela, resultaram em concentrações de 800 mg por litro,
cerca de 16 mil vezes mais do que o limite máximo recomendado para beber
água.133 Mas, embora a classe alta rica pudesse ser exposta ao envenenamento
do sapa, o argumento de envenenamento pelo chumbo para explicar o
comportamento dos imperadores ou o declínio da população do Império Romano
é extremamente exagerado. No entanto, o envenenamento por chumbo não era o
único perigo enfrentado pela população com a comida e a bebida. Grande parte
do pão da Antiguidade continha partículas duras e às vezes pedaços de brita,
enquanto outros farináceos eram ainda piores.134 Galeno pensava que comer
mingau de trigo era inadmissível, mas teve a má sorte no final de um dia
cansativo de encontrar um grupo de camponeses que comiam sua refeição. Eles
ofereceram generosamente a Galeno e seus dois jovens companheiros o mingau
de trigo cozido com um pouco de sal, preparado pelas mulheres no local. O
resultado foi flatulência, prisão de ventre, dor de cabeça e distúrbios visuais.
Entretanto, Galeno disse que os camponeses comiam com regularidade esse
mingau de trigo, apesar de saberem que era pesado e indigesto, como qualquer
pessoa perceberia, disse Galeno com mordacidade, mesmo sem tê-lo comido.135
Ele também se opunha à ingestão de todos os tipos de frutas, pois ficara doente
durante muito tempo depois de comer uma fruta fresca. Além disso, as frutas
poderiam apodrecer no clima quente do Mediterrâneo, especialmente abricós,
pêssegos e nectarinas. As maçãs maduras, se estivessem assadas ou cozidas,
poderiam ser benéficas para pessoas doentes, admitiu com má vontade, mas não
se surpreendeu com o hábito de os camponeses asiáticos alimentarem os porcos
com maçãs. As frutas que não estavam maduras eram também um perigo, a
exemplo de Protas, o orador, “nosso amigo cidadão”, que adoecera depois de
comer maçãs e peras verdes.136 Por fim, embora o imperador Claudio tenha
sido assassinado com cogumelos envenenados, como o historiador Tácito
alegou, outras pessoas morreram por acidente ao confundirem uma espécie
mortal com um cogumelo comestível.137 Além desses riscos à saúde
poderíamos acrescentar o tratamento dos médicos. Um paciente egípcio escreveu
a seu médico perguntando-lhe quando seria sua próxima visita, porque o haviam
deixado sozinho, sujo e com o mau cheiro de pus por diversos dias.138 A
conduta dos médicos poderia ter consequências ainda piores. Plínio, o Velho,
censurou todos os médicos gregos por terem matado impunemente seus
pacientes romanos.139 Essa denúncia é um memorável exagero em relação a
uma questão técnica da legislação romana, mas tem ainda mais impacto com as
inscrições, a exemplo da queixa do marido de Aurelia Decia, “a mais
extraordinária e casta das esposas, cuja morte aos 28 anos, 10 meses e 24 dias
ocorreu em minha ausência pela imperícia dos que tentavam curá-la”.140 Outras
lápides trágicas registravam as mortes prematuras de Euelpistus, “a alma mais
inocente que os médicos mataram”, e de Ephesia Rubra, uma mãe dedicada que
teve seus dias de vida abreviados pelos médicos.141 O marido de Julia Prisca, de
20 anos, só conseguiu se consolar pelos erros cometidos pelos médicos dela,
com o pensamento de que a morte também não poupava os reis.142 Sua dor não
teria diminuído, ao saber que pelo menos alguns médicos antigos estavam
dispostos a assumir certo grau de responsabilidade médica por terem causado a
morte de um paciente ou agravado sua doença.143 Porém, essa apologia dos
médicos não significava uma confissão expressiva de suas deficiências, mas,
sim, a consciência da dificuldade de chegar sempre a uma conclusão certa ao
lidar com o corpo humano, um problema tão complexo e individual. A medicina,
tanto da perspectiva do paciente quanto do médico, era sempre um assunto
arriscado.144 Assim também eram as consequências. É fácil esquecer, em meio
às lápides dos que haviam morrido prematuramente e a retórica encorajadora dos
manuais detalhando os tratamentos eficazes, que muitos doentes continuariam a
sofrer com dor e ansiedade por muitos anos.145 Os médicos da tradição de
Hipócrates fizeram relativamente poucos comentários sobre doenças crônicas,
embora mencionassem com regularidade casos “graves”, o que significava que
sabiam distinguir as doenças, e só no período helenístico encontramos tratados
dedicados a doenças longas. Às vezes os tratamentos eram apenas paliativos,
como estabilizar um membro quebrado para permitir certa mobilidade, apesar do
uso restrito.146 Em outras ocasiões, o médico poderia fazer um tratamento que
durasse meses, até mesmo anos. Galeno, por exemplo, dizia que tratara com
sucesso de uma paciente com câncer de mama com um ano de purificação para
remover a bile negra e perigosa do corpo dela e que, desde então, repetia a
purificação uma vez por ano.147 Em seu conjunto, a medicina antiga dependia
do poder de recuperação do corpo e da natureza de doenças graves, que
impunham seus limites. As doenças de longa duração, por exemplo, que devem
ter sido o sofrimento de muitas pessoas, eram raramente comentadas, como a
descrição do desespero de uma mulher com problemas de sangue há muitos anos
e que se entregara aos cuidados de um médico e limitava-se a tocar na bainha
das roupas de um médico famoso que passasse por seu vilarejo. Ou o alívio de
um sírio anônimo curado pela intervenção divina depois que 36 médicos haviam
fracassado.148 No Peloponeso, Euandridas construiu uma fonte em
agradecimento e homenagem a Hércules por seus poderes de cura, que o haviam
favorecido, ao contrário dos médicos.149 As tabuletas que descreviam as curas e
enfeitavam as paredes dos santuários de restabelecimento da saúde no mundo
antigo mostravam uma litania, ao mesmo tempo triste e alegre, de doenças a
superar: cegueira, paralisia, dores no estômago e na cabeça, problemas nos
membros, acidentes cardiovasculares, distúrbios mentais que haviam
atormentado de uma maneira intolerável os doentes e suas famílias até serem
curados. É possível imaginar a felicidade de Felix, um escravo público em
Roma, que ficara cego durante 10 meses e fora abandonado pelos médicos,
quando Bona Dea o curou.150 Relatos de milagres de cura cristãos continuavam
sua tradição. Seria possível observar a inconveniência social, assim como
pessoal provocada pelo rico advogado Innocentius e sua fístula anal, que
desafiara todas as tentativas dos melhores médicos e cirurgiões de sua cidade
natal, Cartago.151 O poço de Betsabá, assim como o de Asclépio, na ilha Tibre,
em Roma, e, talvez, muitos outros santuários de cura, ficavam cheios dos
excluídos da sociedade, os mancos, os cegos, os doentes mentais que pediam
caridade ou tinham a esperança de serem curados.152 A situação deles era muito
pior do que a do rico filósofo romano Sêneca ou do orador grego Aelio
Aristides, cujos relatos dramáticos de seus sofrimentos ao longo dos anos são
importantes no registro literário.153 Por fim, nossa compreensão da realidade
das doenças na Antiguidade, tanto do ponto de vista pessoal ou como os
fundamentos da teoria e da prática da medicina, precisa ser na melhor das
hipóteses parcial. Neste capítulo tivemos inevitavelmente de omitir e reduzir
informações. A reunião de textos de períodos diferentes, lugares distintos e
tradições diferentes corre o risco de reconstruir um prédio que nunca existiu, ou
que não seria reconhecido por seus contemporâneos. Os estudos demográficos
basearam-se em inscrições em lápides (sobretudo na Itália e em Roma) e nos
papiros egípcios, que podem conter distorções. Os textos de medicina
preservaram informações gerais sobre médicos e cirurgiões, mas é possível que o
processo de acumulação confunda nosso entendimento em relação aos
tratamentos praticados ou às doenças existentes. Um exemplo final mostra como
os gregos e os romanos tinham visões diferentes, tanto entre si quanto à maneira
como os vemos. No século I mais de um autor observou o aparecimento de
novas doenças, embora tenham oferecido explicações diferentes.154 O escritor
grego Plutarco imaginou uma discussão à mesa do jantar sobre esse tema.155
Uma das pessoas presentes, um médico local, apresentou como prova da
existência de novas doenças o tratado de Athenodorus, Epidemias (tanto o livro
como o autor eram desconhecidos), no qual o autor mencionava que a hidrofobia
e a “elefantíase” (provavelmente lepra) eram desconhecidas antes da época de
Esculápio, no final do século II a.C. Essa opinião foi duramente criticada por
outro convidado, Diogenianus, que se opunha à noção de átomos de Demócrito
(e de Esculápio?) originários de um universo externo e que traziam as sementes
das doenças. Em sua opinião, todas as doenças eram resultado da alimentação do
ser humano: “a desarmonia entre a comida e a bebida que ingerimos e o nosso
corpo ou o erro em usá-las perturbam nosso sistema”. Havia apenas uma
pequena margem de possíveis reações. As doenças eram constantes e as supostas
novas doenças eram consequência do fracasso da observação ou da
nomenclatura. Plutarco tinha uma visão moderada. Ele rejeitava a ideia de fatos
externos prejudiciais, assim como a visão de Diogenianus de um universo
perpetuamente estático de doenças. Na opinião de Plutarco havia novas doenças,
mas por uma causa simples. O homem primitivo tivera, de fato, uma deficiência
alimentar, porém, o estilo de vida luxuoso da Roma moderna, com comidas
exóticas que chegavam de todas as regiões do império e de outros lugares, era
ainda muito pior. Por esse motivo, não causava surpresa que as doenças novas e
diferentes fossem criadas por um excesso de luxo. Esse debate sucinto entre
gregos cultos proporciona uma visão das antigas concepções da saúde e da
doença. Havia um consenso que algumas ideias haviam mudado, que existiam
doenças novas, mas, ao mesmo tempo, nenhum dos exemplos de doenças citados
neste capítulo seria considerado hoje uma epidemia, enquanto o contágio da
hidrofobia e da lepra, mencionadas como exemplos, era bem diferente. Para uma
pessoa, a formação do universo, com as constantes mudanças de interação entre
os átomos e os poros, significava que o surgimento de novas doenças era sempre
provável; para outra, representava um erro na avaliação das reações pessoais
diante de doenças específicas. Segundo Plutarco, o luxo e a vida moderna eram
os vilões. Todos viam a doença em termos individuais. Suas ideias, argumentos,
até mesmo as fontes, podiam ser pesquisados por muitos séculos anteriores.
Juntos constituem uma abordagem da medicina que procura causas e que
envolve debate e discussão, não apenas entre médicos, como também entre todas
as pessoas com tempo e interesse em participar. Agora, iremos ver ao longo
deste livro como essa abordagem desenvolveu-se.
3 Antes de Hipócrates Em 1879 o mundo culto soube que o poeta Homero havia
escrito a Ilíada enquanto trabalhava como vice-chefe da equipe médica do
exército de Agamemnon na guerra de Troia. Não houve dúvida de que Homero
era médico por sua ênfase notável no poema em ferimentos e outros assuntos
médicos; e seu cargo de chefia foi comprovado pelo acesso a informações
detalhadas das atividades nas duas linhas de frente. Sua posição estratégica, um
pouco acima da rotina diária da batalha, demonstrou que ele não participava
como soldado, embora tivesse visto cadáveres e pessoas morrerem. Além disso,
o posto de chefia da equipe médica não lhe permitiria tempo para escrever, como
a de um oficial menos graduado possibilitava. Embora essa conclusão refira-se
mais à organização e aos preconceitos do exército real da Saxônia, no qual o
Oberstabsarzt Frölich serviu do que a Homero, ela indica um fato inegável: o
poeta escolheu incluir muitos detalhes médicos com uma abordagem
sofisticada.1 É importante começar a história da medicina por Homero, não
apenas porque os gregos o fizeram, ou por causa de sua descrição de Macaão
como “um médico (iatros) com mais valor do que muitos outros homens em
extrair flechas e no uso de sedativos”. Homero proporcionou aos médicos
posteriores, indiferentes a um cargo inferior e ao contexto militar, uma
justificativa para o sentimento de superioridade deles perante o resto da
humanidade.2 Os poemas de Homero deram uma visão das ideias e práticas da
medicina muito antes da literatura médica e, apesar de as informações não
resgatarem os tempos heroicos de Agamemnon e de Ulisses, são úteis para
mostrar a expectativa do público do poeta na época, ou as que eram implícitas no
final do século VIII. Homero usou uma terminologia complexa para descrever os
tipos de ferimentos que, presumivelmente, seus leitores conheciam, e essas
descrições minuciosas nem sempre foram resultado da imaginação poética.3 A
crença de Frölich de que só um médico poderia escrever esse texto com tanta
precisão e detalhes técnicos subestimou a necessidade de criar uma relação entre
o poeta e o público, por desconhecer em 1879 os métodos da composição oral da
Ilíada e da Odisseia sob a perspectiva atual. Em razão de o conhecimento de
termos médicos e de situações no contexto da medicina não serem privilégio
apenas de profissionais, os poemas revelaram que muitas pessoas tinham acesso
e entendiam essas informações. A existência de médicos com habilidades
específicas não diminuía a importância do fato de que o conhecimento deles não
era mantido em segredo. Segundo Homero, Macaão e seu irmão Podalírio eram
originários de uma família de médicos e haviam adquirido o conhecimento de
remédios por intermédio do pai, Esculápio, que, por sua vez, o adquirira com o
centauro Quíron. Mas na Ilíada Macaão e Podalírio são retratados primeiro como
guerreiros, líderes que conduziam seus exércitos vindos de Tricca, Itome e
Oechalia e lutavam ao lado dos outros heróis.4 O papel exercido por Macaão em
conduzir seus homens como o “pastor do povo” não dependia só de seu
conhecimento de medicina, e os adjetivos que lhes são atribuídos também foram
aplicados a outros líderes.5 Como médico ele retirava flechas dos corpos dos
feridos, extraía o sangue envenenado e aplicou “sedativos” em Menelau ferido
na batalha, com um sucesso imediato.6 É possível imaginá-lo também fazendo
curativos nos feridos, como outros heróis faziam com seus companheiros.7 Por
sua vez, Podalírio não é visto em cena, uma omissão corrigida por um poeta
épico posterior, Arctinus, no Sanque de Troia.8 Enquanto o irmão tratava dos
ferimentos de Ajax, Podalírio, que conseguia “ver o invisível e curar o
incurável”, observou o brilho nos olhos de um paciente e nele enxergou seus
pensamentos atormentados, que terminariam em suicídio.9 Não é necessário
chegar ao ponto dos estudiosos alexandrinos que converteram Macaão no
protótipo do cirurgião e Podalírio no protótipo do médico, porque a
diferenciação feita pelo poeta tem um objetivo artístico e não profissional.
Porém, a divergência de Arctinus em relação a Homero foi observada e
explicada com facilidade, porque ferimentos eram mais frequentes em campos
de batalha e, portanto, Homero concentrou-se no que era mais importante em seu
conflito épico. O fato de Macaão e Podalírio realizarem suas ações sem recurso
dos deuses é ainda mais importante no relato. Macaão usou seus remédios e
Podalírio diagnosticou a loucura incipiente de Ajax sem menção aos deuses. Na
verdade, quando Apolo chegou para tratar os deuses que haviam sido feridos nos
combates, ele o faz da mesma maneira e com palavras iguais às de Macaão.10
Embora esse argumento não deva ser enfatizado demais ao abordar um poema
que descreve os deuses e os heróis com uma linguagem convencional, existe
certo humor em um deus tratar os imortais com os mesmos meios usados por
Macaão em seus pacientes humanos. Porém, os deuses não estavam
completamente ausentes do campo de batalha no momento da cura. Em Ilíada
16, 523, Glauco, logo depois de presenciar a morte de Sarpedão, reza a Apolo
pedindo a cura de seu ferimento, e a prece é atendida.11 O papel de Apolo na
peste descrita no início do primeiro livro da Ilíada é muito mais complexo. Ele é
o agente da destruição e, ao mesmo tempo, do final da peste. Apolo lançou suas
flechas “malignas” para atingir animais e homens, porque se zangara com os
gregos por terem rejeitado com aspereza o pedido de seu sacerdote, Crise, do
retorno da filha capturada por Agamenon. Apolo agiu em resposta à prece de
ajuda de Crise e, a partir desse momento, o final da peste passou a ser um
assunto de negociação apenas com o deus. Depois de nove dias de mortes os
gregos pediram conselho a um vidente, sacerdote ou um intérprete de sonhos
para saberem a causa de sua raiva.12 Não havia lugar para um iatras nessa
passagem, porque o poeta deixou claro que todas as pessoas pensavam que esse
sofrimento profundo era de origem divina e, em consequência, seria preciso ter
ajuda não de um iatros, mas, sim, de alguém com mais capacidade de entender
os deuses.13 Aquiles, o porta-voz dos gregos, não tinha dúvidas a respeito da
raiva do deus: os gregos tinham cometido alguma ofensa contra Apolo. Os
gregos haviam quebrado um juramento, ou teriam oferecido um sacrifício
inaceitável.14 Até esse momento, a cadeia complexa de causa e efeito não fora
motivo de reflexão. No entanto, assim que a causa foi revelada pelo vidente,
houve uma aceitação geral de seu raciocínio e consenso que só uma desculpa
apropriada ao deus o convenceria a concluir o que iniciara. A insistência de
Agamenon ao direito de compensação por ter desistido da jovem confundiu, mas
não contradisse, sua vontade de oferecer essa explicação e conselho. A expiação
final teve um duplo desdobramento: o pai recuperou a filha e os gregos
ofereceram um sacrifício ao deus. Só depois Apolo se acalmou. Essa crença de
que uma doença que afetava tantas pessoas pudesse ter uma causa além da
individual e que se relacionava à raiva de alguma divindade existia em toda a
região do Mediterrâneo, em especial no Antigo Testamento. Deus soltava raios
nos pecadores quando se zangava; quando os judeus, ou seus líderes, romperam
a aliança com Jeová, foram punidos com doenças terríveis, que só terminaram
com a reparação do mal causado por parte dos judeus.15 Mesmo nas sociedades
modernas do Ocidente que conhecem os efeitos da poluição, desnutrição,
doenças infecciosas, vírus, bactérias entre outros males, uma dimensão religiosa
ou moral não está inteiramente ausente de discussões sobre epidemias, como as
reações iniciais à disseminação da Aids na década de 1980 demonstraram.16
Mas o consenso dos gregos diante das muralhas de Troia, de que a epidemia que
os atingia era resultado da raiva divina, não prova que Homero e seu público
atribuíam todas as doenças aos deuses. O pressuposto de que Apolo, Ártemis,
Zeus ou outro deus poderia enviar uma doença para uma comunidade ou para
pessoas era amplamente compartilhado.17 Porém, havia sinais de outra opinião.
A dor excruciante e fétida da ferida de Filoctetes, que provocou seu abandono
pelos gregos em Lemnos, foi atribuída a uma causa aparentemente natural, a
mordida de uma serpente de água.18 Na Odisseia 11, 171-3, o poeta descreveu a
pergunta religiosa e, ao mesmo tempo, agnóstica de Ulisses à mãe no mundo dos
mortos para saber se ela morrera depois de uma longa doença ou se fora atingida
pelas flechas de Ártemis. Hesíodo, nos Trabalhos e os Dias, também ofereceu
explicações alternativas. A infelicidade, a fome e a peste podiam ser enviadas do
céu por Zeus, a fim de punir os que agiam com violência ou crueldade, mas o
poeta também descreveu um cenário vívido de doenças que, andando a esmo
pelo mundo, trazia em silêncio desgraças para os mortais. Zeus poderia ter o
controle total da situação, porque silenciava esses seres humanos, porém, mesmo
assim, eles tinham autonomia de movimento e podiam ir para onde queriam.19
Não havia um Livro de Jó grego que refletia sobre as causas do sofrimento
humano individual e a prosperidade, antes de chegar à conclusão de que a
inescrutabilidade dos desígnios de Deus ao permitir essas diferenças fazia parte
de Sua majestade. Em vez disso, havia uma série de explicações que se
sobrepunham umas às outras e que eram escolhidas como apropriadas em
determinada situação. Algumas envolviam de maneira direta os deuses, outras
indiretamente, ou sem relação com eles. A evolução da medicina no mundo
antigo tem sido vista com frequência como uma extensão da última categoria em
detrimento das outras, e existem boas razões, antigas e modernas, para adotar
essa interpretação. Assim, um autor tragicômico de c. 420 a.C. descreveu um
grupo de heróis semidivinos, “os camareiros do bem e do mal”, que ameaçaram
o pecador com diversas doenças – tosses, baço inchado, hidropisia, catarro,
sarna, gota, loucura, líquens, inchaços e febres intermitentes. Nesse caso, é
possível pensar que parte do humor estivesse precisamente na associação do
castigo divino para ladrões e criminosos culpados de crimes não muito graves,
com uma sofisticada diferenciação médica de tipos de doenças.20 Mas, como
veremos, essa extensão do espaço ocupado pela explicação não teológica não
exclui outras possibilidades, mesmo entre os médicos racionalistas, e muitos
preconceitos e reações dos gregos no período anterior a Hipócrates continuaram
a exercer influência sobre o pensamento e a prática da medicina ao longo de
muitos séculos.21 Os poemas homéricos também descreveram a posição social
do médico. Junto com o vidente, o armeiro e o trovador, o médico era um dos
artífices, os “serviçais da humanidade” cujo país “não tinha limites”, e que
mudavam de um lugar para outro quando seus serviços eram solicitados.22 Essa
era uma maneira de vida familiar mencionada em documentos do Levante
contemporâneo, sobretudo os relacionados às famílias reais. Os textos hititas,
babilônicos e egípcios mostraram médicos que mudavam de uma corte para
outra, sendo chamados (ou enviados em uma missão de intercâmbio
diplomática) para curar governantes e seus parentes.23 Em oposição a esse
cenário, é tentador associar a concessão de terra a um ijate em Pilos no período
de Micenas, com a tentativa de um senhor local para garantir a moradia de um
médico entre seus dependentes.24 A carreira de Demócedes de Crotona no
século VI pode ser em parte interpretada da mesma maneira, ao mudar do Sul da
Itália para Egina e Atenas. Em seguida, começou a trabalhar na corte de
Polícrates de Samos em 520 a.C. Os persas o levaram como cativo depois da
queda de Polícrates, mas Demócedes conquistou a liberdade e adquiriu uma
grande riqueza ao curar uma lesão no pé do rei Dario depois que os médicos
egípcios haviam fracassado. Mais tarde curou a rainha Atossa de uma úlcera de
mama longa e dolorosa.25 Duas gerações depois, Apolonides de Cós foi médico
da corte de Artaxerxes I por 30 anos até ser enterrado vivo por causa da relação
sexual que mantinha com a irmã da rainha, uma história contada por outro
médico grego a serviço da Pérsia, Cresias de Cnido.26 O Egito foi uma das
maiores fontes desses médicos.27 Homero mencionou que o Egito era o país da
“raça de Paion” onde todas as “pessoas eram médicas” e a “terra fértil produzia
muitos remédios”.28 Helena foi ao Egito para pedir a Polydamna, esposa de
Thon, nepenthes e acholon, ervas para eliminar a tristeza de Menelau e de
Telêmaco. A arqueologia confirmou a existência de um comércio antigo de
substâncias medicinais entre o Egeu e o Levante. Resinas aromáticas, ópio,
coriandro, ciperáceo e muitas outras substâncias entraram no mundo grego
vindas do Egito e do Oriente Próximo bem antes dos poemas de Homero.29
Muitos remédios ginecológicos do Corpus Hippocraticum contêm ingredientes
do Oriente Próximo, e é possível que a prática da fumigação tenha uma origem
semelhante, com a aplicação de aromas adocicados em problemas
ginecológicos.30 Não sabemos ainda quando e como essa transferência ocorreu,
porque os médicos gregos não registraram o uso dessas substâncias importadas.
A troca continuou porque temos referências em textos de medicina egípcios a
favas de Creta e outros remédios que vinham do mundo grego.31 O tema se o
conhecimento de remédios também envolvia mais do que uma compreensão
casual das teorias subjacentes é um assunto controvertido.32 A visão exagerada
de Homero da ubiquidade dos médicos egípcios não sugeriu um conhecimento
direto, e essa passagem de Homero talvez houvesse sofrido em parte a influência
do comentário de Heródoto, de que existiam muitos médicos no Egito, cada um
deles com uma especialidade em determinado tipo de doença.33 O escritor do
século IV, Isócrates, sem dúvida não estava sozinho ao atribuir a origem da
medicina e da farmacologia aos egípcios, embora seja possível imaginar quanto
seu tour de force retórico de elogio a um monarca morto há muito tempo foi
percebido por um público como uma referência histórica.34 O comentário ainda
mais enigmático de Heródoto referiu-se à inexistência de médicos na Babilônia,
e que os babilônios levavam os doentes para as ruas, a fim de receberem
conselhos úteis de pessoas que estivessem de passagem. Esse comentário
envolve uma série de mal entendidos e uma compreensão errônea, como as
recentes publicações de textos de medicina cuneiformes demonstraram.35A
medicina babilônica ainda florescia no Levante no século IV e continuou a se
desenvolver por mais algum tempo.36 As referências de Heródoto à medicina
egípcia e à da Babilônia, diferentes da medicina grega, inseriram-se no debate
complexo sobre a inter-relação delas e de como uma medicina “especificamente”
ocidental desenvolveu-se nos séculos VI, V e IV na Grécia. Ainda não temos
conhecimento suficiente para provar de maneira conclusiva a dependência, ou
ainda a questão mais complexa, da não dependência entre as diversas correntes
da medicina. Além disso, os argumentos usados em ambos os casos resultaram
da convicção da superioridade de uma civilização sobre a outra.37 A recusa em
acreditar em um Hipócrates núbio significaria negar o valor da medicina egípcia;
pensar na possibilidade da influência da Babilônia na medicina grega seria
equivalente a questionar a existência do milagre grego. Diante da dificuldade de
encontrar critérios adequados para julgar a interdependência entre as duas
tendências, corremos o risco de expor uma visão medíocre.38 É provável, é
claro, que os gregos tenham absorvido algumas ideias e práticas da medicina
com os vizinhos, assim como incorporaram o uso de suas plantas e ervas.39 Os
entrepostos comerciais e as colônias foram criados ao redor do Levante a partir
do século VIII a.C. e os estudiosos têm apontado as influências, em especial da
Babilônia, na literatura, na arte e na religião gregas nesse período.40 Alguns
gregos visitavam essas regiões, às vezes por períodos mais longos e, admirados
com o que viam e ouviam, assimilavam os novos conhecimentos em um estilo
grego. Talvez seja mais prudente não acreditar demais em Diodorus Siculus que,
ao escrever sua História Universal no final do século I a.C., disse que a prática
da incubação, uma das primeiras características de muitos cultos de cura na
Grécia, inclusive o de Esculápio, originou-se do culto a Ísis no Egito. Mas, por
sua vez, as oferendas ao santuário de Hera em Samos (no século VI a.C.)
incluíam estatuetas associadas às da deusa da cura na Babilônia.41 Havia
também paralelos entre as ideias sobre medicina na Grécia e às de regiões no
Oriente Próximo. A crença egípcia de que as doenças eram causadas por
resíduos que apodreciam dentro do corpo e que precisavam ser removidos pela
purgação tinha analogias com os textos de medicina gregos, assim como a ênfase
na medicina da Babilônia nos fluidos do corpo (que correspondiam aos
“humores”) como um fator decisivo das enfermidades.42 Nem seria justo rejeitar
qualquer corrente da medicina por falta de racionalidade ou a tendência a
explicações sobrenaturais. Embora os médicos egípcios e babilônios assistissem
aos trabalhos dos deuses nas curas de doenças, o autor do papiro de Edwin Smith
sobre cirurgia oferecia seus tratamentos sem referência aos deuses. Escritores de
textos cuneiformes diferenciavam nitidamente os dois tipos de tratamentos, ao
incluírem nas mesmas instruções a cura de uma doença por um sacerdote com
feitiçarias e remédios farmacêuticos, com a opção de escolha entre os dois. Até
os distúrbios psicológicos poderiam ser tratados na Babilônia com
medicamentos comuns e prescrições médicas, e as doenças oculares eram
discutidas com frequência em textos que continham fórmulas mágicas e
remédios tradicionais.43 No entanto, o fato de os gregos não terem interesse em
aprender línguas, de certa forma, afastou a hipótese de influência de outras
práticas médicas. Até mesmo o relato de Heródoto mostrou como um homem
inteligente poderia se desviar do caminho certo por sua culpa e por seus
intérpretes. Nesse sentido, uma visita ao Oriente poderia resultar apenas em um
conhecimento superficial da teoria médica estranha à medicina grega. A permuta
de substâncias não precisaria envolver uma troca profunda de ideias, além das
instruções básicas de uso. Além disso, no século V muitas substâncias
estrangeiras eram tão comuns que haviam perdido os vínculos com o contexto
original da medicina do Oriente Próximo. Do mesmo modo, as duas doutrinas
eram tão abrangentes que poderiam com facilidade se adaptar em mais de um
lugar e, com exceções quase imperceptíveis, nenhum autor grego de medicina
mencionaria uma dependência a elementos externos ou a possível origem de
uma fonte não grega. Anonymus Londinensis citou Ninyas, o Egípcio, por
acreditar que existiam dois tipos de infecção, a congênita e a adquirida. A
congênita era inata ao ser humano, ao passo que as adquiridas eram resultados
dos resíduos acumulados e do calor do corpo ao processar os alimentos, que não
haviam sido absorvidos de maneira adequada.44 Essa teoria constava de papiros
egípcios de medicina, e sentimos curiosidade em conhecer mais esse misterioso
Ninyas e a época em que viveu. Mas também é importante observar que sua
opinião não divergia muito da opinião de outros médicos gregos, assim como sua
abordagem geral não era especificamente egípcia.45 No entanto, sua presença na
lista de opiniões médicas indicou uma possível troca de informações. Talvez
tenha escrito em grego ou em egípcio e suas ideias foram transmitidas por
intermediários gregos.46 A teoria de Ninyas abordou uma série de variantes
sobre o mesmo tema. Assim como outros teóricos e médicos, ele acreditava que
as doenças eram causadas por resíduos de alimentos (oposto aos que
acreditavam na mudança dos elementos do corpo). A lista começava com
Eurifon de Cnido e Heródico de Cnido em meados do século V a.C., além de
nomes do mundo grego e da Itália ao norte do mar Egeu. Apesar da hipótese de
que sua visão das doenças fosse uma consequência de ideias do Egito, aceita
pelos médicos de Cnido e transmitida para o mundo grego, a dimensão
geográfica dos médicos citados e a diversidade de ideias sugerem que esse tipo
de explicação não tinha uma única origem.47 Um argumento ainda mais
instigante em relação ao desenvolvimento independente da medicina grega
referiu-se ao tipo de literatura médica da Grécia muito diferente da literatura de
outros lugares. Enquanto alguns tratados do Corpus Hippocraticum eram uma
lista de medicamentos e tratamentos, muitos outros tinham uma natureza
exploratória, com discussões e críticas a outros autores. Eles abordaram
problemas teóricos e práticos à medida que procuraram estabelecer fundamentos
de sua arte e, com frequência, tinham uma argumentação abrangente. No
raciocínio sofisticado exposto nesses tratados e, em grande parte, no âmbito da
medicina como a definiam, não havia espaço para a causa ou curas divinas.48
Enquanto alguns textos destinavam-se ao uso privado, por uma pessoa ou um
grupo pequeno de colegas e alunos, outras partes eram dedicadas a um público
maior, como transcrições e discursos públicos. Essa pluralidade da discussão
sobre os primeiros princípios da medicina não se limitava ao Corpus
Hippocraticum. A seção central do papiro de Anonymus Londinensis consistia
em uma lista de explicações diferentes para doenças nos séculos V e IV a.C.49
Não era um texto de medicina estático e inalterável. O Sentenças de Cnido, um
dos primeiros textos dos quais temos registro, já circulava de uma forma
revisada quando o autor de Regime em doenças agudas o criticou no final do
século V.50 É possível, é claro, que essas características de confronto também
estivessem presentes nos textos de medicina da Babilônia e do Egito. O fato de
não terem sido divulgados é resultado do acaso, porque existiam muitas listas de
prescrições médicas e técnicas cirúrgicas que pareciam muito com a estrutura e a
organização dos textos do Oriente Próximo e que omitiram qualquer discussão
em relação à teoria subjacente.51 No entanto, o número crescente de textos
disponíveis na Babilônia e, bem mais tarde, os textos de Uruk, enfraqueceram o
argumento do silêncio, e concluímos por tudo o que conhecemos da medicina e
da sociedade egípcias, que as discussões vigorosas da Grécia não existiam no
Egito. Se houve influência, é mais provável que tenha incidido em remédios
específicos e práticas, em vez de teorias. Além disso, o “estilo” da medicina
grega, assim como a ciência grega em geral, era muito diferente de outros
lugares.52 Não se trata, porém, de menosprezar a medicina que não fosse grega
no debate prioritário sobre a invenção e o pensamento da medicina. Em nosso
conhecimento atual, a prova de que a medicina grega tenha sofrido influência
externa é extremamente difícil de descobrir e, se houve influência, seus efeitos
desenvolveram-se de uma maneira muito diferente da Babilônia ou do Egito.
Essa competitividade relacionou-se a uma característica da medicina grega, que
a diferenciou da medicina de outras culturas – sua abertura. Embora, como
veremos, houvesse grupos de médicos e tentativas constantes de definir os
fundamentos da verdadeira arte da medicina (e, por consequência, a exclusão das
crenças e práticas que não se adaptavam a essa definição), o limite entre a
medicina e outras pesquisas era, e continuou a ser, extremamente fluido. As
ideias referentes à medicina eram discutidas sem cerceamento entre pequenos
grupos de conhecidos ou em locais públicos, e, quando a escrita popularizou-se
em 500 a.C., havia livros de medicina em cidades como Atenas, Corinto e
Mileto para qualquer pessoa que quisesse comprá-los. “Os médicos escreveram
muito”, comentou Xenofontes com certo esnobismo no início do século IV.53 As
contribuições importantes para as teorias e métodos que definiriam a prática da
medicina não se restringiram aos que tinham o título de “iatros”, os “médicos”.
Qualquer pessoa poderia participar do debate. A troca de ideias interessantes
tinha um caráter diversificado e peculiar, sem sectarismo. A arte da medicina foi
escrito para defender a medicina contra os que questionavam sua eficácia, ao
passo que o autor de A Medicina Antiga criticou com veemência os que haviam
introduzido hipóteses filosóficas na medicina.54 Seria impossível imaginar que o
autor ficaria muito impressionado com a tentativa de seu contemporâneo,
Metrodoro de Lampsaco, um aluno de Anaxágoras, de interpretar a Ilíada de
Homero como uma alegoria fisiológica e cosmológica gigantesca, na qual os
deuses e os heróis simbolizavam partes do universo ou do corpo humano: Apolo,
por exemplo, significava a bile; Demétrio, o fígado; Dionísio, o baço.55 Os
participantes desses debates foram chamados de pré-socráticos, uma
denominação de certa forma errônea, porque havia muitos contemporâneos de
Sócrates (469-399) e poucos eram filósofos no sentido atual do termo. No século
VI esses pioneiros tentaram explicar como o mundo surgira, em uma linha de
pensamento de “pesquisa na natureza”. Para um historiador de medicina suas
conclusões, que quase sempre enfatizavam uma única substância original, eram
menos importantes do que o método de abordagem e a origem geográfica.
Muitos tinham ligações com as cidades ricas e na época independentes da Jônia
(Oeste da Turquia), e os textos médicos, históricos e científicos a partir desse
período foram escritos com frequência no dialeto grego local deles, o jônico.
Apesar de os habitantes de Cós, terra natal de Hipócrates, usarem outro dialeto, o
dórico, e muitos dos escritores do Corpus Hippocraticum terem vínculos com
regiões gregas distantes da Jônia, as obras da coletânea de Hipócrates foram
escritas em jônico.56 Por sua vez, a língua do Corpus Hippocraticum continuou
a ser usada em textos médicos por muitos séculos, e os médicos usavam a
palavra jônica, iatros, ietros, para descrever a profissão deles nas lápides, embora
o resto dos epitáfios fosse escrito em koine, o grego “comum”.57 O método de
abordagem desses pensadores tinha o objetivo de procurar explicações naturais
para fenômenos, ou seja, explicações que não envolviam a intervenção arbitrária
dos poderes divinos. Eles interessavam-se pelas causas das doenças e
procuravam explicar o que percebiam ao redor. Ao usar o raciocínio e
argumentos, acreditavam que podiam penetrar, como o médico Arctinus, atrás do
visível para observar o invisível.58 Esses pensadores presumiam também que os
seres humanos, como parte do mundo natural, eram formados pelo mesmo
material e comportavam-se de acordo com as mesmas regras de tudo o que
estivesse contido nele, embora os paralelos entre o macrocosmo da criação e o
microcosmo da humanidade não fossem inteiramente explícitos.59 Esse desejo
de encontrar uma única explicação para o universo foi criticado com veemência
por Parmênides (c. 515-450 a.C.), um dos pensadores das regiões de língua
grega no Sul da Itália e da Sicília que contribuíram para os debates no mundo
grego.60 A lógica vigorosa de Parmênides ao negar o movimento e a mudança
do mundo físico incentivou os que queriam defender os dados empíricos a fazer
uma abordagem mais sutil do monismo ou de discutir a pluralidade eterna e
imutável das entidades, cujas combinações e recombinações explicavam a
mutabilidade e a diversidade de tudo o que podia ser visto ao redor. Algumas
hipóteses preferidas antecederam Parmênides: os pitagóricos, por exemplo,
acreditavam que a base do universo era numérica, enquanto o enigmático
Heráclito (c. 500 a.C.), em cujo sistema o fogo tinha um papel essencial,
defendia a necessidade permanente de mudança. Mas os pensadores depois de
Parmênides tinham mais percepção dos problemas resultantes de qualquer
explicação que envolvesse a mudança e ampliaram o escopo de suas pesquisas
para observar com atenção o corpo humano. Assim, Melisso de Samos (c. 450
a.C.), por exemplo, defendeu com vigor, em parte com base na fisiologia, a
crença na “unidade do ser” e que as explicações pluralistas só acrescentavam
fundamentos desnecessários do mesmo tipo que seu conceito de unidade do ser.
Nesse sentido, é quase certo que estava criticando Empédocles (c. 460 a.C.),
segundo o qual o mundo era constituído por quatro elementos estáveis – terra, ar,
fogo e água –, cujas combinações potencialmente instáveis produziam tudo o
que poderia ser percebido.61 Para Leucipo (c. 435 a.C.) e Demócrito (c. 420
a.C.) o mundo compunha-se de átomos (indivisíveis) e de vácuo. Anaxágoras,
um contemporâneo um pouco mais velho, argumentou que a mistura original do
universo continha uma imensa diversidade de ingredientes reunidos como
sementes, e cada uma das quais encerrava a parte do todo e, portanto, com o
potencial de crescer e mudar. Em meados do século IV a crença de que as
doenças resultavam da combinação inadequada de “elementos” era bastante
difundida e não se limitava mais aos filósofos. Embora a lista desses pensadores
preservada no papiro de Anonymus Londinensis começasse com Platão e Filolau
de Crotona, também incluía os médicos Políbio de Cós, Filistião de Locris e
Petrônio de Egina, assim como Menecrates, um sábio polêmico e excêntrico de
meados do século IV, e autor do tratado Sobre a medicina.62 Esses vínculos
entre a filosofia e a medicina remontavam pelo menos a Parmênides, ou talvez
aos pitagóricos, cujas ideias dietéticas incluíam a proibição de comer favas.63 A
doutrina numérica de Pitágoras também contribuiu para a teoria médica posterior
de dias críticos, dias especialmente difíceis durante uma doença, expressos com
frequência em termos de números desde o início da doença e que, pelo menos
nos números mais altos, se baseava em pouca evidência clínica. Mais tarde,
Parmênides foi homenageado em sua nativa Eleia com um belo busto e uma
inscrição no pedestal que o declarava ser um “estudante da natureza” (physikos).
O busto ficava em um prédio com um raro pórtico subterrâneo construído em
sua honra por um grupo médico e religioso, um pholeon, formado no período da
existência de Parmênides. Alguns líderes tinham a patronímia de Parmênides e
Ouliades (talvez conectados com o culto a Apolo, Oulios) e as inscrições (bem
posteriores) em suas estátuas indicavam que esses homens eram médicos. Outra
inscrição revelava a presença de um “médico vidente” (iatroma[ntis]), uma
expressão usada pela primeira vez pelo dramaturgo Ésquilo.64 Não temos
certeza se essa aparente combinação de filosofia, religião e medicina remontou a
Parmênides, porém, não é impossível, como revelaram as informações de
Empédocles. Mesmo se considerarmos uma feliz invenção as histórias da cura da
peste de Silanus, ainda existiam muitos fatos que indicavam o envolvimento de
Empédocles com a medicina em um nível prático e teórico.65 Não só ele
prometeu em um poema ensinar aos seus destinatários a “conhecer todos os
remédios para combater as doenças e a velhice”, como também disse que por
onde andava uma multidão o seguia. “Algumas pessoas queriam consultar
oráculos, enquanto outras que há muito tempo sofriam de dores terríveis pediam
para ouvir a palavra de cura para todos os tipos de doenças”.66 Atribuem a
Empédocles um tratado médico em verso e outro em prosa, e os fragmentos de
sua poesia preservada revelaram um profundo interesse por assuntos de
medicina.67 Empédocles foi um dos autores filosóficos criticados pelo escritor
de A Medicina Antiga por influenciar “médicos e sofistas” a acreditarem que um
conhecimento sólido da medicina exigia uma pesquisa especulativa sobre a
natureza da humanidade.68 De acordo com uma reconstrução atual de sua
carreira, ele assemelhava-se mais a um xamã, com seu ritualismo mágico-
religioso, do que com um médico tradicional ou um filósofo contemplativo, uma
interpretação que, mesmo exagerada, contesta pressupostos em relação a essas
atividades na Grécia antiga.69 Os novos fragmentos de Estrasburgo também
mostraram como ele conseguia incluir em um único poema ideias consideradas
incoerentes e desconexas pelos historiadores, o que justificaria a inserção de um
óbolo para indicar um trecho incompreensível ou pelo menos uma distribuição
entre obras diferentes.70 As teorias de Empédocles abrangeram a fisiologia do
ser humano e suas mudanças do berço ao túmulo. Ele acreditava em quatro
elementos básicos – terra, ar, fogo e água – cujas relações proporcionais e
diferentes entre si explicavam as diferenças entre as substâncias. O sangue era
um equilíbrio quase perfeito dos quatro elementos, e a carne se formava a partir
do sangue. Os ossos e os músculos tinham proporções diferentes, sendo que os
músculos não tinham ar em sua formação.71 Os olhos continham os quatro
elementos, mas a visão dependia em grande parte do fogo e da água.72 A
digestão era, em parte, um processo mecânico: a comida era cortada e triturada
pelos dentes antes de ir para o estômago, onde iniciava um processo de
putrefação, provavelmente sob influência do calor natural do corpo, antes de ser
enviada para o fígado, onde se transformava em sangue.73 O calor, que em
Parmênides igualava-se à vida, exercia um papel importante na visão de
Empédocles do corpo humano e definia as diferenças entre os sexos (os homens
eram mais quentes e cozidos do que as mulheres), e explicava o sono (como um
processo de resfriamento).74 O sangue era o agente da nutrição e o leite materno
resultava da decomposição do sangue supérfluo. Apesar de Aristóteles ter
criticado Empédocles por sua escolha de uma metáfora para descrever o
processo de cozimento em vez de putrefação, a ideia básica de Empédocles de
que o leite era formado pelo sangue residual tinha uma aceitação ampla.75 É
possível que pensasse que o sêmen se formava da mesma maneira, embora não
tenhamos uma ideia clara de como ele imaginava a organização interna do
corpo.76 Em seu interesse considerável e conhecimento de medicina,
Empédocles encontrou um complemento em um filósofo grego ocidental,
Alcmeão de Crotona (Sul da Itália). O período em que viveu, no final do século
VI a.C. ou uma geração depois ou mais tarde, no segundo quarto do século V, é
questão controversa. Segundo a tradição, ele foi aluno de Pitágoras “na velhice”,
mas as evidências textuais e históricas desse pressuposto não têm uma base
sólida e, além disso, os interesses de Alcmeão e a sofisticação de seus métodos
pressupõem uma data posterior.77 Seus interesses pela medicina destacaram-se
em sua teoria da saúde, que merece longas citações, mesmo que as palavras
possam não ser inteiramente dele: A distribuição por igual das forças da saúde –
umidade, secura, frio, quente, amargo, doce etc. – é um fator de sua preservação.
Por um lado, a predominância de qualquer uma delas gera a doença, porque o
predomínio é destrutivo. A doença atinge uma pessoa pelo excesso de calor ou
frio. Por outro, pelo excesso ou ausência de nutrientes, a doença localiza-se no
sangue, na medula ou no cérebro. A doença também pode ser causada por fatores
externos, como a qualidade da água, o meio ambiente, o excesso de trabalho,
adversidades ou algo semelhante. Já a saúde é resultado de uma combinação
harmoniosa das qualidades.78 Nesse trecho encontramos a mesma explicação
dada por Empédocles: a saúde dependia de uma mistura equilibrada, mas não em
uma harmonia baseada em uma proporção específica e, sim, em uma mistura
total de todas as forças do corpo. Não eram os elementos, mas as qualidades e os
poderes que precisavam se manter em equilíbrio. A formulação do pensamento
de Alcmeão também permitia uma flexibilidade maior. Se houvesse uma
desarmonia nas proporções cuidadosas de Empédocles, a mudança seria
negativa. Porém, a “igualdade” ou as “cotas justas” de Alcmeão não eram tão
rigidamente definidas. Em sua argumentação Alcmeão usou também uma
surpreendente quantidade de metáforas. A “harmonia” era um ideal de Heráclito,
assim como o dos matemáticos e músicos pitagóricos, com os quais Alcmeão
convivera no Sul da Itália, mas a “igualdade”, o “predomínio individual”, a
“monarquia”, os “poderes” ou “forças” também tinham mensagens políticas
explícitas. A “igualdade” era um dos slogans preferidos da democracia incipiente
de Atenas, e “monarquia” era seu oposto. Do mesmo modo, a batalha entre
forças internas do corpo simbolizava a guerra civil, que só provocaria
sofrimento.79 A analogia entre o corpo humano e o corpo político, como
veremos, continuou sendo uma identidade de relação para muitos pensadores, e a
noção de saúde como uma mistura equilibrada de opostos predominou na
medicina até o século XIX, ou talvez ainda prevaleça. Os interesses de Alcmeão
pela medicina estenderam-se à embriologia, à diferença entre os sexos e à
investigação prática da sensação. Ele concluiu que os órgãos do sentido tinham
uma ligação direta com o cérebro por meio de canais e que a perda de sensação
resultava do bloqueio desses canais, uma visão aceita por muitos historiadores,
embora não concordassem que esse bloqueio quase sempre era causado pela
mudança de posição do cérebro.80 Alcmeão alegou ter uma prova empírica para
sua noção de canais, ao mencionar o vácuo dentro (ou atrás) das orelhas, os
canais nasais e os poros na língua, mas não comentou nada a respeito do tato.
Em vez de explicar nesse texto como a sensação da visão era transmitida ao
cérebro, ele discutiu os elementos faiscantes, brilhantes e transparentes dos
olhos. Suas informações referentes à visão originaram-se quase com certeza de
seu conhecimento do nervo óptico, porque, segundo o comentarista de Platão,
Calcídio, “ele foi o primeiro a ousar fazer uma excisão do olho”.81 Não fica
claro o que Calcídio quis dizer com isso. É improvável que Alcmeão tenha feito
uma dissecção no sentido atual da palavra e em que Calcídio baseou-se para
afirmar que ele fora o primeiro a realizar uma excisão cirúrgica em um globo
ocular doente. É possível que tenha retirado o olho de um animal morto, embora
essa cirurgia já fosse uma prática comum a açougueiros. Mas Calcídio talvez
tenha feito uma interpretação de um procedimento anatômico bem posterior, a
partir da observação de Alcmeão dos nervos cranianos de função sensitiva, que
hoje chamamos de nervo óptico. Dois outros filósofos com interesse em
medicina viveram nas últimas três décadas do século V a.C., Diógenes de
Apolônia escreveu sobre assuntos semelhantes aos de Alcmeão, e tudo indica
que Galeno o considerava um médico e um filósofo.82 Diógenes acreditava que
tudo se originava do ar, inclusive o pensamento e a sensação. Aristóteles
guardou um longo relato de sua descrição das veias, assim o do desconhecido
Sinésio de Chipre, as descrições mais antigas preservadas na Grécia.83 Os dois
relatos são descritos em linhas gerais, com base no que podia ser deduzido da
anatomia superficial e da observação de vítimas de sacrifícios, e tinham o
objetivo de apoiar uma tese e de oferecer uma descrição detalhada e precisa.84 O
sistema de Diógenes consistia em dois dutos paralelos de cada lado do corpo
ligados aos testículos (ou ao útero). O alimento excedente, isto é, o sangue,
passava pela medula espinhal até chegar aos vasos sanguíneos do sêmen, onde
adquiria a aparência de uma espuma, provavelmente pela mistura com o ar.85
Em sua crença no calor inato, para Diógenes o sêmen era o veículo da alma. Sua
longa descrição dos vasos sanguíneos foi superada pela de Aristóteles e a dos
anatomistas alexandrinos, mas sua hipótese de uma relação entre a medula
espinhal e os testículos continuou a exercer influência por muitos séculos, pois
sugeriu, apesar de não ter garantido, uma ligação entre o cérebro, a alma e o
embrião. Leonardo da Vinci, o famoso desenhista de relações sexuais incluiu,
essa ligação hipotética em suas pinturas no início do século XVI.86 Demócrito
de Abdera, o segundo filósofo dedicado ao estudo da medicina no final do século
V, teve uma influência ainda mais duradoura do que a de Diógenes no campo da
medicina. Um catálogo alexandrino de suas obras incluiu trabalhos sobre
prognósticos e dietética, além de um livro interessante intitulado Opiniões
médicas, no qual não está explícito se as opiniões são suas ou de outras pessoas
que ele reuniu ou criticou. Ele teve muitos médicos adeptos de suas teorias no
Império Romano. Filo de Hyampolis, personagem no século I d.C. de uma
discussão sobre assuntos médicos à mesa de jantar de Plutarco, foi descrito como
seguidor de Demócrito.87 Uns 50 anos mais tarde, o sofista Timócrates de Ponto
dedicou-se ao estudo da medicina, especialmente das teorias de Hipócrates e de
Demócrito.88 Um pequeno resumo das regras das profecias de mortes iminentes,
o Prognósticos de Demócrito, difundiu-se nos manuscritos latinos da Baixa
Idade Média, o que lhe deu autoridade como vidente e médico.89 Ele conquistou
uma reputação sólida com estudos anatômicos da famosa (e apócrifa) história do
pedido de ajuda do povo de Abdera a Hipócrates para que curasse Demócrito de
sua suposta loucura, e de que o encontraram rodeado de vários cadáveres de
animais, que dissecara em uma tentativa de descobrir a natureza e a atuação da
bile, a causa da loucura.90 Não só Robert Burton publicou seu livro Anatomia
da Melancolia em 1621 sob o pseudônimo de Demócrito Júnior, como também
um dos mais importantes livros do início dos estudos modernos de anatomia
comparada, o livro Zootomia Democritea escrito por Marco Aurelio Severino
em 1645, fez uma referência clara ao seu exemplo. A ilustração requintada na
folha de rosto mostra Demócrito escrevendo as conclusões das dissecções de um
animal.91 A história tem fundamentos encontrados nos fragmentos preservados
de seus escritos. O interesse de Demócrito por anatomia animal, embora não
envolvesse a dissecção, revelou-se em um relato no qual disse que os animais
poderiam dar à luz de uma só vez mais de um filhote, porque tinham úteros
multíparos, uma teoria aplicada mais tarde à formação de gêmeos no ser humano
por um autor da tradição de Hipócrates.92 Em outro texto ele defendeu com
veemência um estilo de vida saudável, mais como prevenção do que como cura,
lamentando que a alma destruía o corpo com seu desejo por prazeres e vinho.93
Muitas de suas teorias deram continuidade a discussões anteriores. Assim como
Alcmeão, Demócrito escreveu sobre a visão, os sonhos e as sensações e, apesar
de acreditar em um mundo cujos elementos básicos eram os átomos e o vácuo,
atribuía muita importância ao pneuma (ou ar) como o veículo da vida
transmitido pelo sêmen. A semente era retirada de todas as partes dos corpos dos
pais, não só do homem, para gerar o embrião cujo sexo era determinado pela
semente mais poderosa. Esses debates entre filósofos tiveram uma importância
considerável para a história da medicina. Como veremos no capítulo seguinte, as
ideias dos filósofos contribuíram para discussões entre médicos e escritores de
textos de medicina, tanto sobre temas médicos específicos como embriologia,
quanto a assuntos mais abrangentes por meio de métodos de argumentação. Eles
interessavam-se pela mudança e suas causas. Leucipo, o professor de Demócrito,
dizia que nada era criado de uma maneira absurda, mas, sim, segundo a razão e a
necessidade e, portanto, cabia ao filósofo pesquisar ambos os aspectos dessa
criação.94 O uso da argumentação e da controvérsia refletia-se no vocabulário e
no estilo. A linguagem de Demócrito foi usada em mais de um tratado
hipocrático, e a gestação curta dos Aforismos e os menos conhecidos Dentição e
Prognoses de Cós tinham um paralelo com os ditos oraculares de Heráclito.95
Outros pensamentos filosóficos tiveram também influência, apesar de menor.
Pelo menos um tratado hipocrático, Respiração, revelou traços do estilo de um
sofista, Gorgias (c. 480-380), cujos méritos da educação retórica foram
ridicularizados pelo filósofo Platão.96 Nem devemos presumir que o fluxo era
sempre em uma só direção, dos filósofos para os médicos, ou os que abordaram
os problemas da doença e da saúde não seriam capazes de formular suas teorias
sem a ajuda filosófica, e que não davam nada em troca. O autor de A Medicina
Antiga rejeitou energicamente a relação de dependência dos médicos com a
filosofia natural, com o argumento de que o conhecimento claro do mundo
natural só poderia ser obtido pela medicina.97 Muitas das dificuldades
encontradas na criação de uma cosmologia ou de uma antropologia em larga
escala foram compartilhadas pelos pensadores que tentaram entender o pequeno
mundo do corpo. Como vimos, é difícil separar as preocupações médicas dos
interesses dos filósofos pré-socráticos e, ainda mais difícil, decidir o que seria
prioritário. As ideias e a terminologia médica não se restringiram aos médicos. A
opinião do historiador Heródoto sobre o processo histórico e a respeito dos
vários países com os quais a Grécia mantinha contato tinha paralelos fortes com
o Corpus Hippocraticum.98 A descrição de Tucídides da peste de 430 a.C.,
apesar de ter sido escrita na versão que temos 20 ou mais anos depois, revelou
um domínio considerável da técnica médica, e sua abordagem mais ampla da
causa histórica demonstrou um conhecimento das teorias da medicina
contemporânea.99 As tolices e a incompetência dos médicos tornaram-se um
elemento comum da comédia; no século IV diversas peças foram escritas em
torno desse tema.100 Os trágicos descreveram vários casos patológicos no palco
da cegueira de Édipo à loucura de Ajax e Agave, com o uso frequente de termos
técnicos de medicina.101 Medeia de Eurípedes foi chamada de
“esplenomegalia”, uma palavra com um significado obscuro na época de Galeno,
que a interpretou com a conotação da violência de seu temperamento.102 O
universo compartilhado das ideias médicas entre a tragédia e a medicina foi
observado na Antiguidade. No século II d.C., Clemente de Alexandria chamou
atenção para a semelhança entre o objetivo de Ares, Águas e Lugares e três
linhas de Eurípedes: quem quer que queira praticar bem a medicina, ao analisar
uma doença, deve observar o estilo de vida das pessoas que moram em uma
cidade e também suas terras.103 Mas as palavras e explicações dos dramaturgos
nem sempre coincidiram com as do Corpus Hippocraticum. Essa divergência não
surpreende, porque os autores tinham menos interesse no fenômeno da doença
em si do que na análise do seu papel psicológico, moral e filosófico na vida de
um ser humano. Assim, por exemplo, a tragédia Filoctetes de Sófocles, escrita
em 408 a.C., fez uma descrição detalhada e angustiante da doença. Filoctetes
explica que as pústulas em sua perna foram causadas por uma mordida de cobra,
como em Homero.104 Só mais tarde lhe revelaram que sua infelicidade era em
parte consequência do “acaso divino”, o resultado de uma violação inadvertida
de um santuário e, assim como o público, sabemos que fazia parte do plano dos
deuses para mantê-lo afastado de Troia.105 Ele usou uma erva medicinal para
aliviar a ferida até curá-la, como esperava.106 Mas ao final da peça ficou claro
que a intervenção humana não seria suficiente. Mesmo assim, Filoctetes rejeitou
a afirmação de Neoptólemo de que seria curado pelos filhos de Esculápio,
Podalírio e Macaão, quando fosse para Troia com o arco e a flecha que
permitiriam aos gregos conquistar por fim a cidade. Ele só se acalmou quando o
deus Héracles, um guerreiro com poder de cura, lhe disse que enviaria Esculápio
do céu para curá-lo.107 É tentador associar essa transição de uma doença com
causa natural à cura divina nas mãos do deus Esculápio com as crenças de
Sófocles, porque segundo a tradição ele estava envolvido no culto a Esculápio
em Atenas, a ponto de manter a serpente sagrada em sua casa.108 No entanto, é
também importante observar o espaço dedicado no início à explicação da causa
natural: só quando fica claro que a intervenção humana não seria suficiente
recorreu-se à cura divina. Na descrição da peste em Édipo rei, Sófocles
privilegiou as explicações religiosas em detrimento das naturais. O historiador
Heródoto atribuiu à impotência dos citas uma maldição da deusa Afrodite. Mas
para o autor de Ares, Águas e Lugares a impotência deles devia-se às longas
cavalgadas montados em selas. Essas divergências são menos importantes do
que o interesse que compartilhavam em entender o fenômeno.109 Assim como
nos debates dos filósofos, havia diversas abordagens que coexistiam, competiam
entre si e se opunham. A medicina fazia parte de uma discussão contínua, que
envolvia médicos e pessoas de outras áreas do conhecimento do mundo inteiro
grego, da Sicília e do Sul da Itália ao litoral do Levante. Por isso, não nos
surpreendemos com as opiniões de Fasila de Tenedo, uma ilha ao norte do mar
Egeu, citadas junto com as de Timóteo de Metapoto no Sul da Itália, de
Aegimius de Elis no Sudoeste da Grécia e de Trasímaco de Sardis (hoje no Oeste
da Turquia e possivelmente na época parte do império persa). O mesmo autor
não viu nada de estranho em dar mais espaço às opiniões de Platão sobre as
causas da doença do que as de qualquer outro autor, médico ou não.110 Mesmo
se não tivéssemos o Corpus Hippocraticum, seria fácil concluir que no século V
a medicina grega era um vigoroso tema de debate público, controvertido,
desafiador e multifacetado.
4 Hipócrates, Corpus Hippocraticum e a Definição de Medicina Com exceção da
Bíblia, não existe documento nem autor da Antiguida Criso de com a autoridade
no século XXI de Hipócrates de Cós e do Juramento hipocrático.1 Eles são
citados com regularidade em periódicos acadêmicos e na imprensa popular como
o padrão de conduta ética de todos os médicos. Em faculdades de medicina do
mundo inteiro os alunos seguem os princípios e as palavras atribuídos ao Pai da
Medicina. Aos olhos dos seus pacientes futuros o fato de não seguirem seus
preceitos de competência e moral é o pior de todos os pecados da medicina.
Revisto com a omissão de trechos considerados vulgares, transformado em
música e gravado em CD-ROM, atualizado ou criticado, o Juramento converteu
Hipócrates, a quem atribuem ser o criador da profissão atual da medicina, em um
nome familiar no mundo do século XXI.2 Talvez seja um choque saber que
desconhecemos quase tudo a respeito de Hipócrates, que não temos certeza se de
fato elaborou o Juramento e diversos trechos do Corpus Hippocraticum
descrevem práticas que envolviam a intervenção de um médico que,
provavelmente, não teria feito o Juramento.3 A divergência entre o que
acreditamos ter sido Hipócrates e o que possa ter dito ou feito é resultado de três
tendências convergentes. Em primeiro lugar, havia o desejo compreensível dos
gregos e dos romanos de conhecerem mais os grandes personagens do passado;
em segundo, os acréscimos graduais, deliberados ou acidentais, de tratados
anônimos ou supostos tratados, em mais quantidade do que textos genuínos; e,
por último, o aumento da tradição hipocrática de interpretação, que enfatizava o
valor de certos tratados em detrimento de outros e, em consequência, a crença de
que esses textos originavam-se da pena do mestre. Essas três tendências
estimularam a imaginação dos que queriam reconstruir a vida de Hipócrates,
com base nas informações contidas nos textos do Corpus Hippocraticum.4 O
hábito grego de fazer discursos imaginários ou escrever cartas de pessoas
famosas do passado nos exercícios escolares ou em peças de teatro aos poucos
obscureceu a distinção entre o genuíno e o falso. Um grupo de cartas e discursos
que, de acordo com o estilo, o conteúdo e os detalhes históricos, possa ter sido
escrito em torno de 350 a.C. ou talvez um século mais tarde, ajuda a preencher
as informações sucintas que temos sobre a vida de Hipócrates.5 Elas o retratam
como um sábio criterioso, que ao ser chamado para curar a loucura de Demócrito
não quis intervir, porque o julgou equilibrado; um patriota que recusou receber
ouro dos persas para servir ao rei deles, um inimigo da Grécia; e um médico
extraordinariamente versátil, capaz de tratar da paixão do monarca e, ao mesmo
tempo, da grande peste de Atenas (que Tucídides considerou incurável). Por sua
vez, essas histórias fizeram parte de uma descrição do Hipócrates histórico e,
assim, exerceram um papel predominante em moldar a opinião de Galeno sobre
o comportamento de um médico ideal. Além disso, foram enfatizadas na única
biografia da Antiguidade relevante de Hipócrates escrita por Sorano em torno de
100 d.C.6 Outras histórias surgiram a seu respeito, ergueram muitos bustos dele,
e Cós no período imperial romano tinha moedas cunhadas com seu retrato.7
Figura 4.4 Um papiro do Juramento hipocrático escrito em c. 275 d.C. Papiros
Oxirrinco 2547 = manuscrito Wellcome 574. Cortesia da Wellcome Library,
Londres. Na verdade, a tradição de escrever sobre ética médica na Antiguidade
seguiu, em grande parte, uma linha diferente.99 Enquanto o Juramento tinha um
fundamento ético e religioso e definia o que se esperava da conduta de um
médico, a maioria dos autores, sobretudo Galeno, adotou uma abordagem mais
pragmática. Uma prática eficiente significava uma prática com o melhor
resultado possível, qualquer recurso que contribuísse para essa eficácia era
aceitável, e o que a prejudicaria deveria ser rejeitado. Essas duas abordagens são
compreensíveis, porém, não diminuem a singularidade do Juramento.100 A
seção de abertura do Juramento, que descrevia as obrigações dos alunos em
relação aos professores e à arte da medicina, era ainda mais específica. O
aspirante a médico, depois de fazer o juramento de acordo com a lei da
medicina101 e de tê-lo assinado, ia morar na casa do médico onde era tratado
pelos membros da família como um filho ou um irmão. Seu aprendizado era
feito em livros e também em explicações orais, com um método “diversificado”
– ou seja, com um treinamento prático e conselhos – e, por sua vez, o aluno
sentia-se motivado a transmitir seu conhecimento aos membros de sua nova
família e aos que quisessem aprendê-lo e fazer o juramento. Esse documento
abrangia as obrigações do aprendizado da medicina, ao contrário de contratos de
aprendizado de outras profissões, e estendia-se muito além dos limites de sua
instrução.102 Impunha obrigações vitalícias, que se estendiam aos membros da
família do professor. Até mesmo quando, uma prática comum na época, alguém
quisesse aprender uma profissão – não podemos esquecer que os médicos na
Antiguidade tinham a mesma hierarquia dos artífices – reunia-se a família do
professor, não havia um compromisso de transmitir o conhecimento da profissão,
sem custo, à família do professor ou de apoiá-la na adversidade. É tentador
analisar o Juramento em um contexto, no qual o antigo padrão do ensino da
medicina aos poucos desapareceu. A medicina, antes restrita a membros de um
clã de médicos, agora estava disponível a quem quisesse aprendê-la. Os alunos
aprenderiam junto com os membros do clã (que não pagavam o aprendizado).
Não se sabe se esses clãs teriam de fazer o Juramento hipocrático; é provável
que por terem sido criados desde pequenos em uma família de médicos tivessem
assimilado os preceitos éticos essenciais da boa prática, sobretudo se fossem
“filhos de médicos” (uma frase usada a partir da Antiguidade durante séculos
para se referir aos médicos mais jovens), que faziam tarefas simples como
assistentes (curativos, aplicação de unguentos e preparação de remédios mais
comuns) desde pequenos, assim como em outras profissões.103 Platão disse que,
enquanto os escravos destinados a serem médicos tinham de aprender medicina
fora de seu ambiente habitual, para os filhos de médicos livres o aprendizado era
um processo natural, porque eram ensinados desde crianças por seus pais.104
Esse forte componente familiar no contexto da medicina antiga não causa
surpresa, porque até hoje um alto percentual de estudantes de medicina origina-
se de famílias de médicos. Hipócrates dizia que descendia de Esculápio, filho de
Apolo (segundo uma genealogia inventada, ele era a décima sétima, oitava ou
nona geração do deus, dependendo da história contada), assim como um
descendente de outra divindade com poder de cura, Héracles. Por esse motivo, as
lendas mencionavam muitos médicos renomados em sua família anteriores a ele.
O historiador Teopompo, que escreveu em torno de 330 a.C., confirmou a longa
tradição entre Cós e a família de Esculápio, e acrescentou que um ramo da
família, apesar de nunca ter saído da Ásia Menor, fez uma estadia em Cnido,
uma cidade situada em uma península do continente grego em uma direção
oposta a Cós. Supostamente, Ctésias pertencia a esse ramo da família. Uma
tradição posterior, citada por Galeno, dizia que três “grupos” de médicos haviam
morado em Cós, Cnido e na ilha vizinha de Rodes, mas o terceiro grupo
desaparecera. Essa história também foi mencionada por um antigo médico,
Andrômaco, e pelo contemporâneo de Galeno, o adorador hipocondríaco de
Esculápio, Aelio Aristides.105 A existência de uma tradição forte familiar, que
criava vínculos entre Cós e Cnido e os descendentes de Esculápio foi confirmada
em 1956, quando publicaram uma inscrição do santuário do grande oráculo de
Delfos. Escrita no século IV a.C. recomendava aos membros da “comunidade”
de Cós e da família de Esculápio de Cnido a se identificarem com um juramento,
a fim de obterem os privilégios concedidos em Delfos aos descendentes da
“linhagem masculina” de Esculápio.106 É possível duvidar da validade dessa
descendência divina, mas essa inscrição mostra que a crença nessa ascendência
era, de certa forma, longa e reconhecida além da região de Cós e de Cnido. No
entanto, os beneficiários desses privilégios eram os descendentes masculinos de
Esculápio, e não os médicos. Segundo o Corpus Hippocraticum e o Juramento,
nem todos os médicos eram descendentes do deus, assim como nem todos os
descendentes eram médicos. Só podemos supor que, em algum momento
obscuro e distante do passado, a medicina grega restringiu-se a poucas famílias,
como o Juramento sugere. Se esse tempo existiu, precedeu os poemas de
Homero, porque, apesar de se concentrarem nas atividades de dois membros da
família de Esculápio, também indicaram a existência de outros médicos que não
pertenciam à família. Na época do Corpus Hippocraticum a medicina não mais
se limitava a um grupo de clãs, caso tenha se limitado, e, sim, era tema de
debates públicos e podia ser ensinada a qualquer pessoa que quisesse aprendê-la
e tivesse condições de pagar o professor. Hipócrates de Cós foi o médico mais
famoso dessa época, cuja reputação estendeu-se pelo menos a Atenas e logo
geraria uma série de lendas e documentos para descrever os detalhes de sua
família e carreira. Mas, embora as realizações do Hipócrates histórico legitimem
a autoridade dos livros que circulavam com seu nome, na verdade, ele só poderia
ter escrito na melhor das hipóteses uma fração deles, porque, como veremos,
eles contêm uma multiplicidade de doutrinas diferentes. Entretanto, essas
diversas doutrinas mostram que a medicina estava sendo definida em termos do
que estava sendo feito e, ainda mais importante, do que não estava.107 Elas
abrangeram todos os aspectos da saúde pessoal, da mente ao corpo; suas
especulações foram além da mera sorte e do acaso; os autores acreditavam na
causalidade lógica independente da intervenção divina, para o bem e o mal;
sugeriram novas ideias sobre o corpo físico; evitaram cânticos, feitiços e
exorcismos; e basearam-se em fatos empíricos e práticas sólidas, que rejeitaram
as hipóteses filosóficas superficiais.108 Porém, alguns autores do Corpus
fizeram especulações ou discutiram assuntos de uma maneira inconvincente; e
muitos, se não a maioria dos médicos, e seus pacientes, ainda recorriam aos
deuses no processo da cura. Embora muitos escritores tivessem opiniões
divergentes em questões de mais ou menos importância, isso não diminui a
relevância da mensagem geral que a leitura do Corpus Hippocraticum
proporciona, ou pela existência como uma coletânea de textos. Um escritor de
medicina da Antiguidade tardia aproximou-se mais da verdade, ao elogiar
Hipócrates por ter reunido e entremeado ideias dispersas e observações de
médicos antigos em uma coleção completa e coerente da arte da medicina.109
Nesse sentido, a partir do início do século III a.C., o Corpus Hippocraticum
tornou-se um conjunto padrão de documentos sobre medicina, no qual outros
tipos de cura tinham de ser avaliados e, em seguida, aprovados ou rejeitados.110
Portanto, seu herói epônimo Hipócrates pode ser de fato chamado de Pai da
Medicina.
Figura 7.1 Uma oferenda votiva feita a Ilitia, a deusa grega dos partos, Paros, IG
12,5, 193. Londres, Science Museum, A163983. Fotografia © Science
Museum/Science & Society Picture Library. Porém a expansão expressiva do
culto de Asclépio e de sua família no final do século V foi surpreendente, assim
como a grande fortuna recolhida em alguns de seus santuários.47 Esse
desenvolvimento foi estimulado por uma das autoridades religiosas mais
importantes da Grécia, o oráculo de Delfos, e significou uma ruptura em muitos
cultos de cura locais. Embora a devastação causada pela peste de Atenas possa
ser considerada um elemento catalisador, a expansão do culto a Asclépio não se
limitou a esse fato, porque houve pestes antes e ainda haveria.48 É possível
também atribuir o desenvolvimento do culto à propaganda eficiente em
Epidauro, assim como ao espírito competitivo entre as cidades que se
rivalizaram na criação de santuários. No entanto, apesar de importantes esses
fatos não são suficientes para explicar o fenômeno da súbita expansão do culto a
Asclépio.49 Acima de tudo, não podemos subestimar o efeito das supostas curas
atribuídas a um deus, não só nos pacientes, como também nas pessoas que os
haviam visto recuperar a saúde, ou que leram seus testemunhos escritos nas
tabuletas penduradas nas paredes do santuário. Apesar de as inscrições gravadas
nas paredes dos santuários em Epidauro serem as mais numerosas, elas
representaram apenas uma pequena seleção de relatos feitos aos sacerdotes e
guardiães, em uma longa sucessão de histórias.50 Esses testemunhos tinham
como objetivo estimular, convencer e advertir. A saúde era obtida por intermédio
do deus, em circunstâncias tão inacreditáveis que mesmo os crentes riam ao
pensar na situação.51 O deus, assim como outros deuses, poderia punir quem o
ofendesse ou ao seu santuário, mas também curava aqueles a quem havia
punido.52 A maioria das inscrições relatava casos de doenças crônicas curadas
pela intervenção divina: paralisia, manchas no rosto, cegueira, “infestação de
piolhos”, intumescências e infertilidade foram casos citados, mas uma inscrição
contou a história de uma taça quebrada que o deus consertara e a narrativa da
descoberta de uma criança que se perdera.53 Asclépio também monopolizou a
cura de gestações durante três a cinco anos.54Inscrições posteriores encontradas
em santuários em Roma, Pérgamo e Lebena narraram histórias semelhantes.55
As paredes dos santuários também tinham tabuletas penduradas e representações
de partes curadas do corpo, algumas em terracota ou pedra, outras em bronze,
prata e ouro – mãos, pés, pernas, braços, orelhas, seios, genitálias, assim como
imagens de inválidos.56 Muitas imagens também sugeriram doenças crônicas,
mas seria incorreto concluir que esses doentes crônicos foram tratados ou se na
primeira manifestação da doença haviam recorrido à ajuda do deus. Estudos
antropológicos mencionaram muitos paralelos sugestivos de outras culturas, para
explicar o motivo pelo qual uma pessoa escolhia ser tratada por um deus ou por
um curandeiro e, por esse motivo, não poderíamos fazer uma divisão rígida entre
as curas religiosas e as seculares.57 Os suplicantes purificavam-se na fonte
sagrada antes de oferecerem um sacrifício apropriado e, depois, vestidos com
túnicas brancas, faziam uma segunda purificação antes de entrar no abaton ou no
adyton, “o inacessível”, palavras que enfatizavam a existência de um prédio
proibido a um visitante comum.58 Só as pessoas preparadas para encontrar o
deus ou a servirem ao deus como sacerdotes poderiam entrar e descobrir o que
acontecia dentro do santuário. Um homem chamado Esquines subiu em uma
árvore para ver o que estava acontecendo enquanto os suplicantes dormiam e,
por isso, foi punido ao cair em uma cerca e quase perdeu a visão.59 O abaton era
um prédio extenso com um pórtico e aposentos individuais: antes da existência
desse tipo de prédio, nos primórdios da cidade de Atenas, as pessoas dormiam
no templo ou em seus arredores.60 Se os suplicantes tivessem sorte, receberiam
a visão de Asclépio enquanto dormiam. Às vezes, o deus aparecia e curava os
suplicantes como se fosse um médico ou um cirurgião. Em outras ocasiões
surgiam serpentes sagradas ou cachorros para lambê-los ou penetrar no corpo
deles; algumas vezes o sonho era um enigma que precisava de ajuda para ser
entendido. Ao acordar, o suplicante poderia estar totalmente recuperado, sem
paralisia ou intumescências, mas às vezes o deus dava instruções, que tinham de
ser interpretadas por um sacerdote ou pelo guardião de um templo antes da cura.
Muitos tratamentos têm paralelos com a medicina contemporânea, porém outros
eram escolhidos para exibição pública talvez por causa das diferenças marcantes
entre eles.61 Mas ao pensarmos em um encontro de cura apenas em termos de
técnicas médicas, omitimos o contexto propício à cura em que se realizavam – o
ambiente do local, a fonte sagrada, o bosque sagrado (mesmo que no templo de
Asclépio em Atenas o bosque só tivesse três ou quatro árvores),62 os sacrifícios
e a confiança oferecidos nesse ambiente, seja pelas inscrições seja pelos ritos do
culto.63 As inscrições em Epidauro indicavam que os pacientes só passavam
uma noite no santuário, porém seria precipitado confirmar essa indicação,
porque os textos relatavam o momento da cura, não o tempo que o doente ficara
no santuário. Certa vez, dois doentes partiram de Epidauro depois de sua
primeira visita sem estarem curados, e um deles, uma mulher, foi quase
carregada até sua casa em Fáris (ao norte da Grécia) antes que o deus a curasse
pessoalmente. Em outra ocasião, em torno de 300 a.C., uma poetisa famosa
partiu de Epidauro a pedido do deus, para entregar uma tabuleta com uma
inscrição a um homem cego que vivia a muitos quilômetros de distância em
Naupauctus, do outro lado do golfo de Corinto. Quando o homem recebeu a
tabuleta conseguiu ler a inscrição e fundou um santuário em homenagem a
Asclépio em sua cidade natal.64 Mas, em geral, as tabuletas destacavam a
atividade do deus dentro do seu templo. Os muitos peregrinos que visitavam
Epidauro eram provenientes das cidades de Tasos, Lampsacus (atual noroeste da
Turquia), Mitilene, Cnido e Épiro a quilômetros de distância e, às vezes, de
lugares menos distantes.65 Em 300 a.C., segundo as tabuletas de Epidauro, o
santuário já tinha uma reputação pan-helênica: pouco mais de um século depois
o santuário perdeu a característica local e tornou-se o maior santuário de cura da
Grécia clássica. As inscrições, oferendas e ruínas arqueológicas testemunharam
a onipresença dos santuários de cura na Grécia clássica, assim como o
florescimento do culto a Asclépio depois de 421 a.C. O padrão do tratamento de
cura do deus, com a incubação e os sonhos, não era específico ao culto a
Asclépio: o viajante Pausânias comentou que os procedimentos que vira no
santuário do oráculo de Trofônio em Lebadea, no norte da Grécia, e o culto do
santuário oracular e de cura de Anfiarau perto de Oropus eram quase iguais ao
culto de Epidauro.66 Porém não podemos esquecer que havia muitas opções de
divindades de cura para escolher, e os votos, as preces e os sacrifícios feitos em
um templo local eram bem mais comuns, do que uma longa peregrinação ao
santuário distante de Asclépio. Mas, sem dúvida, a singularide de Asclépio
residiu na concentração do poder de cura; Asclépio era um especialista no
domínio da cura por excelência.67 Uma leitura rápida de A doença sagrada
sugeriu que a introdução do novo culto provocou uma acirrada competição entre
os praticantes da cura secular. Os médicos viram a chegada de Asclépio com a
mesma preocupação que sentiam em relação aos exorcistas, que viajavam pelas
cidades e vilarejos. A quase total ausência de referências a médicos nas
inscrições de Epidauro é bem conhecida – o único registro foi feito
possivelmente no período romano por um sacerdote.68 Mas a ausência de
testemunho epigráfico em Epidauro era irrelevante: as inscrições relatavam
quem havia sido tratado, não quem curara o doente, e as poucas inscrições
funerárias nos arredores do santuário mencionavam a ocupação do falecido.69
Não é totalmente fantasioso sugerir que os médicos eram convidados a assistir
aos grandes festivais em Epidauro, assim como em outras cidades, para cuidar de
doentes que haviam viajado por longas distâncias, mas é provável que isso fosse
deixado aos cuidados do poder do deus.70 Mas se as inscrições de Epidauro não
mencionavam o relacionamento dos médicos com o santuário, as evidências em
Atenas sugeriram um expressivo grau de cooperação. No século III a.C., já havia
um “hábito ancestral” dos médicos que trabalhavam para o Estado de fazerem
um sacrifício duas vezes por ano a Asclépio e a Higeia, em benefício deles e de
seus pacientes.71 O pressuposto de que um lindo alto-relevo do templo de
Asclépio, datado de meados do século IV, tivesse relação com o sacrifício feito
duas vezes por ano tem sido muito discutido.72 O alto-relevo mostrava seis
homens em atitude de prece diante de Asclépio, Demétrio e Koré (as duas
últimas eram divindades associadas aos Mistérios de Elêusis): os nomes dos
cinco homens e de seus patronímicos estavam escritos nas coroas na parte
inferior do alto-relevo e, originalmente, os mesmos nomes haviam sido também
escritos acima do alto-relevo.73 Um deles era um famoso médico de Atenas,
Mnesitheus, e dois eram filhos de outro médico, Dieuches.74 O alto-relevo
mostrava oferendas, sem relação com médicos que trabalhavam para o Estado e,
portanto, seria melhor considerá-lo apenas como uma placa destinada a
consagrações e oferendas ao deus. O inventário do santuário, com uma lista de
oferendas de instrumentos cirúrgicos, ventosas e tabuletas com textos de
medicina, mostrou que os médicos faziam oferendas ao deus (que ao longo do
tempo se tornou o santo patrono da profissão de medicina).75 Duas oferendas
referiam-se explicitamente a médicos, um deles oferecendo um anel corneliano
de ouro, um objeto de grande valor.76 É possível que as duas oferendas tenham
sido feitas por sacerdotes do santuário, mas, embora os médicos fossem também
sacerdotes do deus em períodos posteriores e em outros lugares, esse fato não
parece ter acontecido em Atenas, além de existirem outros candidatos ao cargo
que não eram médicos. No entanto, existem fundamentos mais sólidos que
associavam os médicos ao culto de Asclépio. Quando o rodiense Feidias foi
oficialmente homenageado em Atenas por seu trabalho como médico público em
304-303, o secretário de Estado encomendou uma placa de mármore para o
templo de Asclépio.77 Esse não foi um exemplo isolado, como tudo indica, e as
paredes do santuário e seus arredores formariam um verdadeiro “Canto do
Médico”, onde se poderiam ler os nomes dos médicos notáveis do passado. As
escavações no templo de Asclépio em Cós também revelaram uma coleção
extraordinária de decretos em homenagem a médicos, alguns promulgados pela
cidade de Cós, outros por pequenos locais na ilha, e alguns promulgados em
cidades mais distantes em gratidão aos médicos coanos, que haviam prestado
serviços relevantes às comunidades.78
Figura 7.2 Asclépio e duas deusas. Final do século V a.C. Inventário número
1346, Museu Arqueológico Nacional, Atenas (fotografia: Kostas Xenikakis). ©
Ministério da Cultura e Turismo da Grécia/Fundo da Sociedade Arqueológica. P.
113 Tudo isso sugeriu que a ideia de hostilidade entre os curandeiros e os deuses
fora bastante exagerada. O autor de A doença sagrada, em vez de negar aos
deuses o papel exercido nas curas, demonstrou um sentimento profundo de
devoção em relação a eles. Ele aprovava os tipos de purificação oferecidos pela
maioria dos santuários, nos quais a divindade eliminava as impurezas, os erros e
as impiedades da vida cotidiana. Pensou até mesmo em fazer uma oferenda a um
deus se o estado de saúde de uma pessoa fosse resultado de um castigo divino
(talvez por violar um santuário involuntariamente), embora, é claro, suas
pesquisas sobre epilepsia e psicoses tenham-no convencido de que essas doenças
tinham uma causa natural. Estava preparado para sacrificar, rezar e suplicar aos
deuses, enquanto ao mesmo tempo rejeitava a purificação por meio do
derramamento de sangue ou outros sacrilégios semelhantes, ou de enterrar um
objeto de purificação no chão, em uma montanha isolada ou jogá-lo no mar.79
Sua crítica não se direcionou a templos e santuários, porque eram locais onde a
decisão de curar ou não dependia da divindade, mas, sim, contra as pessoas que
diziam serem capazes de expulsar os demônios e forçavam os deuses a
obedecerem à sua vontade por meio de cânticos e feitiços.80 Ele criticou os
curandeiros que viajavam de um lugar para outro oferecendo curas sagradas, sob
pretexto de que tinham uma relação pessoal e não institucional com os deuses. A
afirmação deles de que poderiam de alguma forma fazer com que os deuses
obedecessem a seus desejos era um sacrilégio terrível, porque depreciava a
majestade e o poder dos deuses.81 O contexto explícito de A doença sagrada de
que um antigo conceito da relação entre os deuses e poder de cura contradizia as
novas opiniões que enfatizavam a organização, a ordem e a beleza do mundo
natural e as possibilidades que existiam agora para uma compreensão racional de
seus processos.82 Como vimos, não foi um ataque ateu à hipótese da cura
divina. O autor de A doença sagrada aceitava a divisão, proposta pelo
dramaturgo Eurípedes, de doenças causadas pelos deuses das que surgiam
espontaneamente, enquanto ao mesmo tempo procurava aumentar a abrangência
da compreensão do médico em relação à segunda categoria.83 É possível que
tivesse concordado com o autor do Regime, que dividiu os sonhos entre divinos,
que precisavam de interpretações religiosas e os que pertenciam à esfera dos
médicos.84 A afirmação do autor de que a “prece é válida, mas ao evocar os
deuses é preciso estender a mão”, não significava um desprezo cínico no tocante
à prece e, sim, coadunava-se com sua última recomendação de evocar
curandeiros divinos adequados e de seguir uma dieta alimentar para prevenir
doenças.85 Ao longo do tempo, esse desenvolvimento assistiu à criação de uma
nova ortodoxia no contexto da medicina. No século VI e início do século V, a
exemplo de Empédocles, os curandeiros agiam como xamãs que andavam pelas
cidades e vilarejos, e os limites entre magia e medicina eram quase
inexistentes.86 No entanto, em 350 a.C. as barreiras surgiram. Não que os
médicos tenham rejeitado completamente algumas terapias, que outros médicos
consideravam mágicas, porque cânticos, feitiços, magia branca com rezas ou
uma simples simpatia continuaram a ser usados, em maior ou menor extensão,
na medicina.87 As purificações religiosas ajudaram, sem dúvida, os pacientes a
reagir aos remédios e aos purgantes da medicina tradicional, independente da
opinião de seus médicos.88 Mas agora os médicos que acreditavam basicamente
nesses procedimentos em suas curas foram marginalizados, ou pelo menos
excluídos da nova concepção de medicina e da denominação de iatros.89
Embora fosse possível traçar um limite entre magia e medicina, seria preciso
analisar pessoa por pessoa, caso a caso, mas a retórica da ortodoxia insista que a
linha de delimitação poderia e, deveria, ser traçada entre as atividades de um
mágico e as de um médico. Porém não sabemos até que ponto essa distinção foi
seguida na prática e é mais importante destacar que a magia foi usada na
definição dos limites do comportamento apropriado de um médico. “Eu não sou
um adivinho”, declarou o autor de Prorrhetic 2, ao diferenciar seu método de
previsão médica da prática dos adivinhos.90 Nessa perspectiva o Corpus
Hippocraticum e a expansão do culto a Asclépio fizeram parte do mesmo
fenômeno, a definição da ortodoxia em oposição à alternativa mágica. Na
religião a magia tinha o poder potencial de desestruturar o relacionamento entre
os deuses e os homens. A magia funcionava fora dos canais religiosos formais de
comunicação com o divino e, portanto, significava uma ameaça à ordem civil.91
A ascensão do culto a Asclépio foi uma maneira de canalizar o poder divino em
benefício da cidade e dos doentes. As pessoas que praticavam a cura por meio da
religião fora desses canais, como o sacerdote que viajava pelas cidades e
vilarejos e o exorcista, ficaram marginalizadas e suas credenciais religiosas e
idoneidade foram questionadas. Mesmo quando demonstravam que tinham o
poder de interferir no funcionamento natural de um mundo criado pelo divino,
esse fato era criticado por seu caráter individualista em detrimento de uma visão
comunitária. As habilidades tão poderosas e privilegiadas de acesso aos deuses
teriam de se restringir à estrutura da vida civil. Assim, a iniciativa de Telêmaco
de construir o santuário de Asclépio em Atenas foi, aos poucos, assimilada ao
ambiente religioso oficial da cidade, além de ter sido submetida ao controle civil
desde sua fundação. Nesse processo Asclépio simbolizou não só o poder dos
deuses para curar e salvar, como também a arte da medicina em oposição a
alternativas diferentes de cura. Asclépio tinha a capacidade, o talento e os
atributos de um bom médico.92 A rejeição de um médico a Asclépio e às suas
curas significava o repúdio da essência da medicina. Nesse sentido, houve um
fortalecimento mútuo da cura religiosa e secular, em vez de oposição.
8 De Platão a Praxágoras O autor romano Celso elogiou Hipócrates por ter sido
o primeiro a separar a medicina do studium sapientiae, isto é, o estudo da
sabedoria, ou, como diríamos, da “filosofia”.1 Se com essa observação ele quis
sugerir que depois de Hipócrates a medicina e a filosofia seguiram caminhos
diferentes, sem uma troca de conhecimentos, enganou-se profundamente.2
Enquanto alguns dos textos do Corpus Hippocraticum estavam sendo escritos, o
filósofo Platão usou informações médicas para elaborar sua filosofia, assim
como formulou uma explicação para a doença, que teria um impacto prolongado
no mundo intelectual. Já vimos que Platão referiu-se diversas vezes em seus
diálogos a Hipócrates como o representante máximo da medicina à sua época e,
na Segunda Carta, ele mencionou que conhecia o médico Filistião de Locris.3
Sua carta exprimiu a esperança de que o senhor de Filistião, o tirano Dionísio II
de Siracusa, permitiria que Filistião fosse a Atenas, porém, não sabemos se essa
viagem foi de fato realizada.4 Platão foi ao sul da Itália e da Sicília em 387, 367
e 362 a.C. e, provavelmente, conheceu Filistião em uma dessas ocasiões. No
entanto, a autenticidade dessa carta tem sido questionada e um vínculo entre os
dois poderia ser uma racionalização posterior sobre a maneira como as teorias de
Platão aproximaram-se das teorias de Filistião, a exemplo do relato no papiro de
Anonymus Londinensis. Filistião acreditava que as doenças eram provocadas,
em geral, por três causas. A primeira causa (interna) era o excesso ou deficiência
de um dos quatro “elementos”, quente, frio, úmido e seco. A segunda causa
(externa) era a presença de feridas ou supurações, ou o resultado de um excesso
ou deficiência do calor e do frio externos, de mudanças inoportunas de um ou de
outro sintoma, ou apenas de uma alimentação errada. A terceira e última causa
era o bloqueio do fluxo de ar dentro e fora do corpo.5 Em Timeu, Platão deu
duas explicações muito semelhantes à primeira e à última teoria das causas das
doenças de Filistião: os desequilíbrios e irregularidades dos quatro elementos e o
bloqueio do fluxo de ar no corpo. Sem respirar o corpo apodrecia; com a
respiração excessiva o fluxo de ar penetrava onde não devia e, por esse motivo,
causava intumescências dolorosas, suor e distorções.6 Mas Platão não estava
apenas repetindo as palavras de Filistião; além da respiração e do ar Platão
mencionou os humores tradicionais, a bile e a fleuma. A segunda causa era mais
elaborada e, aparentemente, independente do que outros pensadores haviam dito
antes dele. O corpo platônico era formado pelos quatro elementos, terra, ar, fogo
e água, que constituíam a estrutura a partir da qual tudo era criado. A carne e os
tendões eram formados pelo sangue, que, por sua vez, era um produto direto da
comida “digerida”; seus componentes e a “substância viscosa e oleosa produzida
pelos tendões e a carne” nutriam a parte externa dos ossos, enquanto uma
substância pura alimentava a medula óssea.7 Quando esse processo funcionava
corretamente o paciente era saudável. Mas poderia acontecer o contrário. A
carne apodreceria, o sangue se azedaria, e a bile, o soro sanguíneo, a fleuma
entre outros humores corporais destruiriam o corpo. Em vez de nutrirem o corpo
e se beneficiarem entre si, esses elementos circulariam pelas veias, disseminando
destruição e deterioração causadas pelo conflito e desarmonia entre eles.8
Quando o fluido que unia a carne e os ossos secava, a substância deteriorada
desintegrava-se e a carne e os ossos separavam-se. No momento em que a
medula óssea fosse afetada, por excesso ou deficiência, doenças mais graves
surgiam. Quanto mais profundo e avançado fosse o processo degenerativo,
menos chance havia de recuperação.9 Não é claro se esse conceito de doenças de
putrefação era de Platão ou se fora inspirado em antigos filósofos ou médicos.10
Esse conceito criava uma imagem poderosa do corpo fazendo um movimento
oposto de uma maneira quase espontânea. Platão explicara antes que o
crescimento e a decadência eram o resultado do vigor dos triângulos que, em seu
universo matemático, se inseria na essência da matéria. Quando os triângulos
eram jovens e vigorosos, suas extremidades eram aguçadas e capazes de superar
os triângulos resultantes da comida e da bebida e, portanto, os cortariam em
constituintes básicos, que se distribuiriam pelo corpo em forma de sangue para
nutri-lo. Os novos triângulos prendiam-se nas partes adequadas do corpo e
provocavam seu crescimento. Por sua vez, à medida que envelheciam, os
triângulos perdiam a capacidade de cortar; dividir-se-iam com facilidade e o
corpo envelhecia. Quando as ligações dos triângulos que formavam a medula
óssea separavam-se, os vínculos da alma soltavam-se. Esse era o processo
normal do envelhecimento e da morte. Em que extensão esse mesmo processo
ocorria em doenças degenerativas é uma questão menos óbvia, e Platão não
explicou o que causava essas doenças.11 As descrições dessas doenças eram
ainda mais surpreendentes, porque revertiam a construção do corpo organizada
com tanta determinação e cuidado pelo artesão de Platão (o Demiurgo ou o
Criador). A medula óssea, o tecido mais importante, formava o cérebro, e outras
partes encerravam-se nos ossos para formar a coluna vertebral; depois que os
ossos formavam a carne, ela distribuía-se cuidadosamente pelo corpo de acordo
com os desígnios do Criador. Como a solidez do osso e a espessura da carne
inibiam a sensibilidade, o Criador diminuiu a espessura dos ossos da cabeça ao
redor do cérebro, o cerne do intelecto. A perda de proteção e a possibilidade de
aumentar a dor eram mais do que compensadas pelo aumento da sensibilidade.12
O pescoço, por meio do qual canais minúsculos subiam em direção à cabeça,
protegia o cérebro dos efeitos deletérios e poluidores dos elementos mortais da
alma situada mais abaixo no corpo.13 A descrição do corpo humano de Platão no
Timeu, que exerceu uma poderosa influência em pensadores posteriores, deveu-
se menos ao conhecimento da anatomia interna do corpo (ou do conhecimento
dos escritores antigos) do que a seus pressupostos a respeito da alma. Na
República ele descreveu uma série complexa de analogias, que se fortaleciam
mutuamente entre a cidade e a alma, e mencionou que a alma compunha-se de
três partes referentes, respectivamente, à razão, espírito ou energia, e ao desejo.
Mais tarde em Leis Platão traçou paralelos com o conhecimento e as práticas dos
médicos, para apoiar a autoridade de um filósofo em elaborar leis para uma
cidade doente.14 Assim como em uma cidade saudável, seus cidadãos
trabalhavam juntos, cada um fazendo sua tarefa e, na opinião de Platão,
orientados pela sabedoria dos governantes filósofos, em uma pessoa saudável
todas as partes da alma tinham de cooperar entre si sob a orientação da razão. Do
mesmo modo que uma terceira parte mais numerosa do Estado sempre ameaçava
seu bom funcionamento, o desejo incontrolável do corpo tinha um efeito nocivo
na razão e, por fim, em seu bem-estar. No Timeu, um relato mítico da realidade,
essa tripla divisão estendia-se mais além ao localizar cada parte da alma em um
lugar específico do corpo.15 A parte superior da alma situava-se no cérebro, a
parte enérgica, no coração, e a parte inferior, a do apetite, localizava-se no
abdome, onde estavam o fígado, o estômago e o baço. Platão não descreveu com
clareza a fisiologia detalhada desses órgãos, embora o fígado dominasse os
outros, assim como a descrição do coração e seus vasos sanguíneos é
extremamente simplificada. O trabalho de correlacionar a alma tripartida aos três
sistemas independentes do corpo humano, o cérebro e os nervos, o coração e as
artérias, o fígado e as veias, foi feito por estudiosos posteriores, em especial por
Galeno. Platão não foi tão minucioso, talvez porque uma distinção nítida entre os
sistemas venoso e arterial ainda não tinha sido elaborada. O vínculo entre a alma
e o corpo descrito no Timeu também introduziu uma ênfase física na explicação
das doenças da alma. Por estar localizada no corpo, a atividade da alma imortal
ficava prejudicada, assim como a natureza e a educação a afetavam. Alguns
distúrbios psíquicos originavam-se de uma educação insatisfatória, mas outros
tinham uma origem física. Humores mórbidos, sobretudo bile e fleuma,
exalavam vapores, que tinham efeitos diferentes dependendo da parte da alma
que atingissem. A loucura (psicose) e a estupidez originavam-se de mudanças no
corpo: alterações na medula óssea, por exemplo, afetavam a percepção do prazer
e da dor. Portanto, a correção dessas aberrações mentais ou psíquicas envolveria
um tratamento do estado físico subjacente. Nesse sentido, desde seus primeiros
anos de vida uma pessoa deveria receber uma educação adequada, tanto do
ponto de vista físico quanto mental, além de uma dieta alimentar apropriada e
exercícios físicos, com o objetivo de manter o corpo tão saudável como a mente.
Platão não recomendava o uso de remédios, exceto como último recurso.16 As
seções de medicina de Timeu são muito interessantes. Elas mostram como um
filósofo, Platão, ao usar ideias do Corpus Hippocraticum e de Anonymus
Londinensis, ficou na vanguarda do debate sobre medicina na época, quando
escreveu seu relato da criação do corpo humano e descreveu algumas
imperfeições mentais e físicas. A influência que exerceu divulgou essas ideias
para um público maior, e essas ideias, por sua vez, foram desenvolvidas por
comentaristas que acrescentaram mais discussões e evidências médicas.17
Galeno, como veremos, tinha certeza de que Platão estudara medicina com
Hipócrates e que o conhecimento do corpo humano de Platão era mais revelador
dos ensinamentos de Hipócrates do que muitos textos obscuros do Corpus
Hippocraticum.18 Mas, além da crença de Galeno de que Platão havia estudado
medicina ter sido um produto de sua imaginação, comentaristas mais realistas
revelaram que suas informações sobre medicina baseavam-se em problemas
filosóficos.19 A famosa (e discutível) passagem sobre a introdução da anatomia
por Alcmeón, por exemplo, foi preservada porque um comentarista latino de
Timeu, Calcídio, usou a noção de anatomia de Alcméon para explicar o relato de
Platão no tocante à visão (em 67d-e).20 Ao contrário de historiadores de
medicina modernos, Calcídio não se interessava pelo que Alcmeón fizera
(mesmo que pudesse descobrir, mas, sim, pela importância de suas teorias em
comparação com as teorias de Platão). Aristóteles, aluno de Platão, era filho de
um médico da corte do rei da Macedônia e um asclepíade por parte da mãe e do
pai. Aristóteles manteve o interesse de Platão por assuntos médicos, embora de
uma maneira bem diferente de seu professor.21 Ele pressupôs um continuum
entre médicos e filósofos naturalistas: a maioria dos relatos desses filósofos em
relação ao mundo abordava a medicina, ao passo que os médicos mais
ponderados baseavam suas teorias médicas nos princípios da filosofia
naturalista. Aristóteles abordou problemas da esfera da medicina, sobretudo em
relação à psicologia, enquanto, ao mesmo tempo, usava informações médicas
para exemplificar e apoiar sua posição nas discussões com os filósofos.22 Ele
conciliou as teorias médicas dos opostos e as ideias dos filósofos a respeito dos
elementos e, em especial, à teoria dos quatro elementos básicos, quente, frio,
úmido e seco. No universo aristotélico a teoria médica, principalmente, a teoria
dos quatro elementos descrita em A natureza do homem, encontrou um ponto de
apoio seguro. O corpo humano compunha-se dos quatro elementos e seu
processo natural poderia ser explicado pelos princípios físicos de Aristóteles. O
calor interno de um animal era, por assim dizer, um “fogo interno”, e a principal
função do ar ou do pneuma era a de esfriar esse calor e evitar que fugisse ao
controle e prejudicasse o organismo. Aristóteles pensava que o cérebro agia
como um refrigerador, que diminuía a temperatura de um coração febril, o local
da alma indivisível.23 Aristóteles, assim como Platão, criou sua escola, o Liceu,
em Atenas, onde ele e seus alunos dedicaram-se a um programa abrangente e
ambicioso de pesquisa empírica. Eles reuniram e estudaram informações do
mundo da natureza e do esforço do ser humano, desde registros da formação das
cidades-Estado, opiniões de médicos, botânica e mineralogia.24 Esse
empreendimento foi apoiado por patronos influentes. Aristóteles trabalhou
primeiro na pequena corte de Assos (atual Turquia), antes de ser nomeado tutor
do futuro Alexandre o Grande. Com o apoio de Alexandre Aristóteles estudou as
conquistas de seu exército, ao atravessar o império persa até as montanhas
distantes do Afeganistão e as planícies do Punjab, de 334 à morte de Alexandre
em 323. As tropas vitoriosas eram acompanhadas por estudiosos que faziam
anotações, mediam distâncias e enviavam a Aristóteles espécimes de novos
minerais e plantas que encontravam.25 Aristóteles interessava-se
apaixonadamente desde jovem por assuntos que chamaríamos hoje de biologia e
zoologia. Ele reuniu informações sobre diversas espécies de animais, aves e
peixes, além de fazer dissecações sistemáticas em pelo menos 50 espécies
diferentes de animais. Estava bem informado a respeito do desenvolvimento do
pintinho dentro do ovo, assim como dos hábitos das abelhas e os pés do
avestruz.26 Aristóteles tinha um interesse profundo, como demonstrado no
tratado As partes dos animais, em pesquisar o mundo natural, “porque todos os
reinos da natureza revelam algo maravilhoso”.27 O interesse em conhecer os
componentes dos corpos, do sangue, da carne, dos ossos, das veias, entre outros,
poderia parecer repulsivo e vergonhoso, mas só se fosse visto por um
determinado ângulo dos componentes do corpo humano, e não do organismo ou
da forma como um todo. Essa integridade física revelaria a beleza da arte da
natureza e nos deleitaríamos em descobrir e perceber as verdadeiras causas das
coisas. E, em especial, perceberíamos logo que “no funcionamento da natureza,
o objetivo e não o acaso predomina”. Aristóteles queria estudar biologia de
acordo com seus princípios filosóficos gerais, e o principal objeto de estudo não
eram os detalhes dos elementos, mas, sim, sua composição como um todo. Em
especial, a abundância de suas informações confirmou uma das doutrinas
centrais de Platão no Timeu, a teleologia, ou nas palavras de Longrigg, a
doutrina da finalidade interna da natureza, embora Aristóteles não tenha adotado
a crença abrangente e a concepção consciente da natureza de seu professor.28 Os
pensadores estudavam o mundo natural, não só por sua essência, mas também
para apreender um material mais acessível, apesar de transitório, do que seria
possível apenas com a observação dos preciosos e divinos corpos celestiais. Esse
conhecimento era muito mais prazeroso, porém inevitavelmente parcial;
precisaria ter o acréscimo do estudo empírico dos elementos da terra. Esses
elementos incluíam animais, seres vivos, dos quais os seres humanos eram só um
espécime. O projeto de Aristóteles destinava-se a abranger todos os seres vivos,
“nobres e ignóbeis”. Portanto, não existia uma antropologia específica em suas
obras, nenhum tratado dedicado ao exame do corpo humano. Isso teria sido uma
tarefa extremamente difícil, como ele admitiu, porque “desconhecemos as partes
internas do corpo, sobretudo, as do homem”, mas também seria desnecessária,
uma vez que a informação que contribuía para uma compreensão geral da
natureza poderia ser obtida por outros meios. A analogia com outros animais
demonstrou que “existem animais com partes semelhantes aos seres
humanos”.29 Já nessa época havia tabus rígidos na Grécia contra a interferência
no corpo humano, mais ainda contra a ideia de dissecá-lo, e o estudo da
anatomia do corpo humano era impensável. Mas a anatomia dos animais, aves e
peixes não era um tabu e Aristóteles referia-se com frequência à sua
organização, estrutura e, sobretudo, às suas funções em suas pesquisas (e de
outros estudiosos, inclusive, é muito provável, Diocles).30 Suas conclusões eram
muito mais detalhadas e abrangentes do que as de seus predecessores, embora às
vezes seu relato fosse complexo. A descrição de Aristóteles, por exemplo, do
sistema vascular incluiu novas observações e omitiu (ou interpretou mal) muitas
informações que consideraríamos óbvias. Sua observação de que o coração tinha
três câmaras dividiu a opinião de intérpretes modernos, entre os que acreditavam
que Aristóteles enganara-se ao fazer a dissecação e outros que disseram que o
ponto de partida da descrição de Aristóteles era divergente do nosso e não sua
observação.31 Sua opinião de que o coração de animais de grande porte, como
cavalos, tinha um osso interno e de que o número de câmaras no coração
relacionava-se ao tamanho era um ponto de vista tanto factual quanto um
equívoco.32 Mas houve momentos em que Aristóteles fez observações absurdas.
Como não conseguira encontrar uma veia sanguínea que se estendesse até o
cérebro, concluiu que o cérebro de todos os animais não tinha sangue.33 Sua
crença de que as fêmeas tinham menos dentes do que os machos e menos suturas
entre os ossos do crânio baseou-se em observações incompletas, porém, também
foi influenciada por sua concepção subjacente da mulher como um ser inferior e,
de certa forma, uma versão incompleta do homem.34 No entanto, seus erros
foram relativamente poucos comparados às descrições precisas dos fenômenos
do mundo vivo; e essas descrições não depreciaram o valor da pesquisa empírica
transmitido a outros estudiosos (e aos seus patronos). Ele fez questionamentos
importantes sobre o processo de vida, do movimento e da sensação de
envelhecer e dormir, embora quase tudo o que escreveu a respeito de medicina
tenha desaparecido.35 Sua influência, apesar de significativa, assumiu formas
muito diferentes. Em seus ensinamentos de lógica no Liceu, Aristóteles criou o
embrião dos futuros debates intelectuais, com a ênfase no argumento lógico e
preciso, assim como da importância de uma definição apropriada em termos de
qualquer exposição de um material médico ou científico. Por sua vez, ao inserir
a medicina e o corpo humano em um sistema amplo do cosmos proporcionou um
diálogo sobre as causas dos processos naturais do corpo em um nível mais
profundo de explicação. Existe uma série de debates de Aristóteles referente à
interpretação de fenômenos médicos com seus alunos mais próximos citados por
Galeno, cuja sistematização dependia basicamente da epistemologia aristotélica
e da associação de informações extraídas do Corpus Hippocraticum, de Platão e
do mundo aristotélico da medicina.36 Teofrasto (c.371-287), sucessor de
Aristóteles à frente do Liceu, não só incluiu muitas plantas medicinais em seu
Investigação sobre as plantas como também escreveu tratados pequenos sobre
temas médicos como suor, cansaço e vertigem. Outros filósofos da escola
peripatética como Estrabão de Lampsaco pesquisaram assuntos que
influenciariam médicos posteriores, quando as noções de medicina referentes ao
cérebro exerceram um papel vital nas discussões filosóficas a respeito da
alma.37 Aristóteles referiu-se diversas vezes em seus tratados sobre zoologia a
um livro que escrevera intitulado Dissecções, com imagens e desenhos de
animais dissecados.38 A associação desse livro à obra escrita por seu
contemporâneo, Diocles de Caristo, é uma questão discutível. Na opinião de
Galeno, Diocles foi o primeiro estudioso a escrever um tratado específico sobre
anatomia (animal), e usou sua dissecação de mulas para fazer inferências a
respeito do útero das mulheres.39 Porém, não é fácil determinar quando Diocles,
“o seguidor em idade e fama a Hipócrates” e um “jovem Hipócrates” viveram e
trabalharam, porque tudo o que temos de suas obras são fragmentos e relatos
preservados por autores bem posteriores.40 Estudos mais recentes sugeriram que
fosse contemporâneo de Aristóteles, mas o relacionamento preciso deles é
incerto.41 Nenhum dos dois mencionou o outro. É verdade que a ideia de
Diocles de que no útero havia “protuberâncias semelhantes a seios… criados
pela natureza para que gerassem o hábito do embrião de sugar os mamilos dos
seios” em parte assemelhava-se à teoria expressamente criticada por Aristóteles,
mas ele não atribuiu a autoria a Diocles.42 Por outro lado, a declaração em
Anonymus Bruxellensis 44 de que o coração tinha quatro câmaras foi
interpretada como uma crítica de Diocles à visão de Aristóteles de que só tinha
três câmaras, embora, mais uma vez, Diocles não fora mencionado e a hipótese
de a crítica ser sua não foi provada.43 Mesmo uma citação clara de Aristóteles
em uma crítica à sua teoria de semente também é problemática, porque a
passagem importante poderia ser o trabalho de um compilador, e não de
Diocles.44 No entanto, o trabalho de Diocles como anatomista e estudioso de
embriologia sobrepõe-se ao de Aristóteles, e Aristóteles tinha acesso a algumas
de suas obras, enquanto outras foram escritas como uma reação a ele.45 Mas a
anatomia era apenas uma parte de sua atividade e talvez não a mais conhecida de
seus contemporâneos. Os títulos dos livros como, por exemplo, Ginecologia,
Bandagem, Tratamentos, A Cirurgia, Afecções, Causa e Tratamento, dão apenas
um pequeno indício da diversidade e da abrangência de seu conteúdo. As obras
que se preservaram indicam que ele abordou todos os aspectos da medicina e,
em razão dessa abrangência, o compararam a Hipócrates. Diocles introduziu um
instrumento cirúrgico especial em forma de colher para retirar pontas de flechas
de uma ferida.46 Ele escreveu sobre venenos e legumes, assim como o
Rhizotomikon, um tratado sobre plantas com propriedades medicinais; um de
seus remédios foi encontrado há pouco tempo em uma receita egípcia escrita no
século VI d.C.47 Suas discussões a respeito de febres enfatizaram a importância
dos dias críticos, os dias em que a febre poderia melhorar ou se agravar, na
diminuição ou na recaída, com uma atenção especial as que duravam sete dias.48
Existem aqui paralelos óbvios com a obra hipocrática Epidemias, e o livro
Prognóstico de Diocles seguiu a tradição do tratado hipocrático com o mesmo
título, mas a prova direta com o conhecimento de um tratado específico do
Corpus é elusiva
Figura 8.1 Banho antigo como tratamento para a febre em uma ilustração fictícia
de um artista medieval. Dresden, Sächsische Landesbibliothek, Db 93, fol. 581 v.
A teoria de Diocles sobre saúde e doença, típica da medicina culta do século IV,
distinguiu-se por uma sofisticação metodológica crescente. Ele acreditava com
convicção no princípio de causa e efeito, e atribuía às causas internas das
doenças um excesso ou deficiência no organismo dos quatro elementos e das
quatro qualidades básicas.50 Ele admitia a existência dos quatro humores,
sangue, fleuma, bile amarela e bile negra, que se originavam dos alimentos e
diferenciavam-se nas veias sanguíneas por meio de um processo de alteração do
calor inato.51 Diocles deu uma atenção especial ao pneuma (“respiração” ou “ar
refinado”), que se espalhava pelas veias em um movimento voluntário. O
bloqueio do pneuma era especialmente grave e a causa de diversas doenças. Se
sua passagem pelo corpo fosse bloqueada pela fleuma congelada na artéria aorta,
provocaria epilepsia e apoplexia.52 A interrupção do fluxo do pneuma dentro do
corpo pelos poros da pele em consequência do excesso de bile ou fleuma era
mais frequente. A fleuma esfriava e compactava o sangue, enquanto a bile o
fervia e coagulava. Essa obstrução causava não só febres e dores de cabeça,
como também melancolia, se afetasse o coração, a fonte do “pneuma psíquico”
do organismo.53 O interesse de Diocles no pneuma, apesar de muitos detalhes
obscuros, confirmou a importância dessa substância entre os escritores de temas
filosóficos e científicos no século IV, porque conectava estados mentais a
distúrbios físicos. Porém ainda não havia uma doutrina sistemática a respeito do
pneuma, como a que surgiu no século seguinte.54 Assim como muitos escritores
do Corpus Hippocraticum, Diocles enfatizou a individualidade do paciente, a
mudança do corpo ao longo do tempo, com as estações do ano, o clima e o
processo de envelhecimento. A saúde significava a recuperação do equilíbrio
natural de uma pessoa com tratamentos adequados.55 Mas nem sempre era fácil
recuperar o equilíbrio: por exemplo, como o esperma masculino era secretado
pelo cérebro e pela medula espinhal, as relações sexuais frequentes eram
potencialmente perigosas, porque o corpo poderia não ser capaz de substituir
esse fluido vital com facilidade e rapidez.56 As mulheres corriam ainda mais
riscos, porque tinham, é claro, suas próprias doenças, além das que
compartilhavam com os homens.57 Embora Diocles escrevesse sobre
farmacologia e curativos, seu interesse principal concentrou-se na dieta
alimentar e no exercício como processo terapêutico – Galeno tinha um
entusiasmo especial pela ginástica, e se considerava um especialista no
assunto.58 É possível que Diocles tenha herdado esse conhecimento do pai,
porque expôs suas ideias do uso de óleo para friccionar e massagear o corpo no
livro intitulado Arquidamus, nome de seu pai.59 Em Higiene, seu maior tratado
acerca desse tema, ele abordou também de uma maneira sofisticada os
problemas da prescrição de dietas.60 Os efeitos dos alimentos nem sempre
podiam ser previstos pelo conhecimento de suas propriedades e, vice-versa, nem
sempre era possível explicar por que uma determinada comida produzira
determinado efeito. Em termos gerais, a experiência era um guia melhor do que
a teoria, e cometeríamos poucos erros se presumíssemos que, em geral, o que
acontece quando se prescreve um alimento ou um remédio é provocado pela
natureza de sua substância, isto é, pela interação específica de seus constituintes.
A experiência demonstrou que alimentos aparentemente com propriedades
semelhantes, por exemplo, de calor ou acidez, nem sempre funcionavam da
mesma forma.61 Diocles não rejeitou a possibilidade de uma pesquisa sobre o
princípio de causa e efeito, como os céticos e os empiristas fariam mais tarde,
mas enfatizava as dificuldades práticas de realizar constantemente esse
procedimento na alimentação. Enquanto em algumas ocasiões essa pesquisa
poderia acrescentar dados novos para a compreensão e plausibilidade de
prescrições de dietas alimentares, em grande parte seria desnecessária para o
tratamento adequado a ser prescrito ao paciente. Diocles e seus contemporâneos,
os atenienses Mnesitheus e Dieuches, os coanos Praxágoras, Filotimo e
Pleistônico, formaram um grupo de médicos e escritores cujas crenças, segundo
Galeno, eram essenciais para qualquer médico competente.62 Nenhuma de suas
obras preservou-se intacta e não se sabe ao certo quantos livros escritos por eles
Galeno tinha em sua biblioteca. Com certeza, um médico comum de Roma teria
pouca chance de comprar exemplares das obras completas de Mnesitheus e é
provável que Galeno pensasse que ele usara um manual com um resumo
doxográfico das opiniões de médicos antigos sobre doenças específicas. Uma
ideia do conteúdo desse manual poderia ser obtida em um tratado anônimo a
respeito de doenças graves e crônicas intitulado Anonymus Parisinus, porque foi
editado pela primeira vez a partir de um manuscrito do acervo da Biblioteca
Nacional de Paris.63 Escrito provavelmente no século I ou no início do século II
d.C., o tratado citou as opiniões dos médicos “antigos”, em especial Hipócrates,
Diocles, Praxágoras e Erasístrato sobre a causa ou as causas de diversas doenças
como epilepsia, obstrução total do intestino e tétano. Ao discutir a pleurisia, por
exemplo, o autor mencionou que Erasístrato acreditava que era resultado de uma
inflamação da membrana do lado interno da caixa torácica, enquanto Diocles
pensava que era causada por uma obstrução nas veias ao redor da pleura. No
entanto, Praxágoras acreditava que era uma inflamação das extremidades do
pulmão. Essa precisão anatômica opunha-se à visão hipocrática de Lugares no
homem que atribuía a pleurisia a um fluxo que descia da cabeça em direção ao
tórax.64 Em seguida à explicação das causas, havia uma descrição dos sintomas
e das recomendações de tratamento. O tratado tinha uma organização clara e
simples, com um texto conciso e relativamente fácil de usar.65 Nesse sentido,
esse tratado preenchia os requisitos de Galeno, no que se referia ao
conhecimento que um médico competente (e um paciente instruído) deveria ter
das principais ideias dos grandes autores “antigos”. A crença na razão para
determinar a cadeia de causa e efeito era o elemento de ligação dos escritores
clássicos de Galeno e o motivo pelo qual os comentaristas posteriores os
rotularam com frequência de “dogmáticos” ou “médicos lógicos”.66 Mnesitheus,
por exemplo, o “seguidor de sua prática metódica”, supostamente adotou o
método de Hipócrates da divisão para definir as causas das doenças.67 Eles
acreditavam na importância dos humores e das qualidades básicas, embora o
significado desses elementos para eles nem sempre fosse claro, apesar de
Galeno, nossa principal fonte, insistisse que compartilhavam suas opiniões.
Mesmo quando aceitaram, assim como Diocles, a validade dessa teoria dos
quatro humores, nem sempre concordavam com Galeno a respeito do que eram
esses líquidos secretados pelo corpo e como eram produzidos.68 Outros autores
atribuíam significados muito diferentes para a mesma palavra grega. Mnesitheus
usava a palavra “humores” ou “quimos” para referir-se aos sabores, e chamava
os fluidos corporais de “quilos”, sem diferenciação aparente.69 Praxágoras
identificou 11 humores diferentes, inclusive o “humor vítreo”, responsável, entre
outros fatores, por febres com tremores; Filotimo mencionou ainda mais
humores.70 Com a intenção de chamá-los de precursores, Galeno explicou que
eles estavam apenas formulando com exatidão o pensamento de Hipócrates. Por
sua vez, Rufo de Éfeso, outro seguidor da escola hipocrática, julgava que as
ideias deles eram divergentes.71 Galeno pesquisou as ideias desses “antigos”
também para apoiar suas opiniões sobre a necessidade de tratar o paciente como
um todo, em vez de só a parte afetada. É possível que tivesse razão ao recorrer às
suas ideias, apesar de seus comentários posteriores de que davam importância à
flebotomia e ao prognóstico não tivessem fundamento.72 Até mesmo Galeno
admitiu que os “antigos” confiavam no prognóstico apenas para decidir quem
tinha ou não a chance de se recuperar. Mnesitheus, por exemplo, declarou que a
ânsia de comer cebolas no início da “pneumonia” indicava uma recuperação
futura, enquanto o desejo de comer figos indicava a morte.73 Mesmo se
aceitarmos o argumento de Mnesitheus (e de Galeno) de que esses desejos
revelavam o conjunto de características físicas subjacentes do paciente, ainda
haveria um longo caminho a percorrer até a teoria galênica do prognóstico, como
uma orientação essencial para o diagnóstico e o tratamento. Além disso, a base
do fundamento desse pressuposto de Mnesitheus é duvidosa. Os “antigos”
também eram admirados por suas práticas terapêuticas. Atribuiu-se a Dieuches a
descoberta, elogiada por Praxágoras e seus alunos, de meios de prescrever
remédios perigosos de uma maneira relativamente segura, a exemplo do
heléboro, um poderoso emético, tanto por via oral quanto como um pessário.74
Apesar dos riscos de seu uso, as variedades do heléboro branco e do negro
continuaram a ser receitadas até o século XX, não só por causa de seus efeitos
óbvios, como também porque poderiam funcionar quando todas as outras
prescrições tivessem falhado.75 Mas o heléboro era menos perigoso do que o
tratamento de Praxágoras para a obstrução total do intestino, que, em casos
extremos, poderia envolver a prescrição de mais eméticos a fim de remover os
resíduos bloqueados, uma “morte planejada” como mais tarde o escritor
metodista Célio Aureliano a descreveu com uma crítica rigorosa.76 Apesar de
um autor posterior ter afirmado que Praxágoras aperfeiçoou o processo
terapêutico da dieta alimentar, sua contribuição foi citada apenas de maneira
sucinta nos fragmentos de seus escritos, ao contrário de Mnesitheus e
Dieuches.77 Assim como Diocles, os “antigos” colocavam em primeiro plano a
dieta alimentar no processo terapêutico da medicina de uma forma muito mais
sofisticada e com uma argumentação mais sólida do que os comentários sucintos
do Corpus Hippocraticum, assim como revelaram um conhecimento do mundo
bem além da região do mar Egeu. Suas obras e exemplos práticos contribuíram
muito para o desenvolvimento da terapia alimentar, que a igualou à eficácia da
cirurgia e da farmacologia no combate à doença; na verdade, em algumas obras a
dieta alimentar as superou, com o fundamento de que a medicina dietética tinha
um papel preventivo, assim como o poder de curar doenças.78 Mnesitheus ficou
famoso por sua descrição minuciosa de um regime alimentar para crianças,
enquanto Dieuches foi citado no verbete da enciclopédia de Oribásio e, em mais
detalhes, na preparação e uso de alimentos.79 Alguns de seus conselhos ainda
são atuais. É inútil receitar a uma pessoa que faz uma viagem marítima pela
primeira vez um remédio contra vômitos. Na realidade, se a pessoa se sente
enjoada, vomitar poderia ajudar, mas o recomendável era ingerir alimentos leves
e suaves. Até se acostumar com o balanço do mar não seria aconselhável olhar o
movimento das ondas. Mas a melhor maneira de evitar o enjoo seria levar para o
navio um galho de tomilho ou outra substância com o cheiro adocicado para
compensar o mau cheiro a bordo.80 Suas áreas de interesses continuaram a ser
estudadas por Diphilus Siphnius, um contemporâneo um pouco mais jovem, cujo
livro Dieta para os Doentes e os Sãos abrangeu uma ampla variedade de
alimentos como cerejas, ameixas, nozes e cogumelos, no estado natural ou
cozidos. Seus comentários sobre mexilhões, ostras e peixes defumados, aos
quais dedicou uma seção inteira, ou talvez um livro separado, eram menos
entusiastas quanto ao seu valor nutritivo.81 No entanto, seu tratado não foi
citado por nenhum autor de livros de medicina, ao contrário de Filotimo, que
escreveu pelo menos 13 livros e recomendou uma série de dietas alimentares
para serem usadas no caso de doenças ou em períodos saudáveis.82 Filotimo
preferia maçãs a peras, e alho-porro cozido em vez de cru, porque continha
menos fibra e era mais fácil de mastigar. Ele dedicou menos tempo às azeitonas.
As azeitonas pretas eram muito oleosas, de, difícil e causavam às vezes uma
sensação de náusea, enquanto as azeitonas brancas conservadas em salmoura,
apesar de mais digestíveis, causavam um humor cáustico e amargo, como a
gema do ovo.83 Além desse interesse em dietética havia o interesse pela
anatomia, apesar de não sabermos exatamente o que Dieuches fez em suas
dissecações para obter a aprovação de Galeno.84 No entanto, a evidência é mais
clara em relação a Praxágoras e seus alunos. Não só eles estudaram o processo
no organismo (Pleistonico acreditava que a digestão era uma espécie de
putrefação), mas também examinaram sua estrutura, a exemplo do útero, do
coração e das veias sanguíneas. Essas dissecações, provavelmente em animais,
proporcionaram uma ligação importante entre os estudos de anatomia do corpo
humano de Aristóteles e dos alexandrinos.85 Praxágoras, por exemplo, embora
fosse professor de Herófilo e tivesse sofrido uma grande influência das ideias de
Aristóteles, não havia provas de que estudara no Liceu em Atenas.86 Nem
deveríamos supor que isso tivesse acontecido. Assim como Filotimo, que mais
tarde se tornou o principal magistrado de Cós, ele originava-se de uma família de
médicos importante em Cós, que se dizia descendente de Asclépio e que teria um
papel preponderante na vida pública da ilha por muitas gerações.87 Cós era e
continuou a ser o centro do estudo e do exercício da medicina no mundo.88 A
influência de Aristóteles refletiu-se não só na decisão de Praxágoras de dissecar
animais e de escrever pelo menos um livro sobre suas descobertas, mas também
em sua crença de que o coração era o cerne da alma e o cérebro era uma mera
proeminência da medula espinhal, uma doutrina da prova anatômica
compartilhada com seus alunos.89 Praxágoras defendia a ideia de que as artérias
dividiam-se aos poucos à medida que passavam pelo corpo, até suas paredes se
fundirem e transformarem-se em “nervos” minúsculos.90 Ele tentou fazer a
distinção entre veias e artérias (que antes eram chamadas de phlebs, uma palavra
mais tarde usada apenas para veias), as artérias que começavam no coração e as
veias no fígado. Em seguida, sugeriu que as veias transportavam sangue,
enquanto as artérias, só pneuma.91 Essas descobertas e teorias talvez não sejam
todas de autoria de Praxágoras. Galeno, nossa principal fonte de suas crenças,
mencionou que seu pai, Nicarco, também acreditava que as artérias carregavam
só pneuma e Diocles, como vimos, interessava-se pelo papel exercido pelo
pneuma.92 Mas mesmo se essas ideias fossem apenas em parte de sua autoria,
tudo indica que Praxágoras foi quem desenvolveu e justificou suas implicações.
A distinção entre artérias e veias, assim como a ligação entre as artérias e os
nervos fizeram com que Praxágoras e seus alunos elaborassem perguntas
posteriores sobre o movimento das artérias, que chamavam de pulso arterial, e a
respeito da fonte de pneuma dentro dele.93 Todos esses fenômenos eram
produzidos no coração? Ou também eram produzidos no corpo inteiro? Como se
produzia o batimento do pulso?94 Qual era a relação do batimento do pulso com
os batimentos do coração? Para Praxágoras esses batimentos eram independentes
e a pulsação divergia de movimentos semelhantes das artérias, como tremor ou
palpitação, porque era natural e não um resultado de algum distúrbio.95 Ainda
mais importante para a evolução futura da medicina, Praxágoras foi o primeiro a
observar que os batimentos do pulso eram uma ajuda valiosa para o diagnóstico,
assim como usou os movimentos das artérias como um sinal de mudanças no
corpo. As fontes não esclarecem com precisão como ele utilizava o pulso arterial
para identificar doenças, e o conhecimento antigo sobre as pulsações ou a
esfigmografia sugeriu que o aperfeiçoamento do diagnóstico e da terminologia
só foi realizado por seu aluno Herófilo.96 No entanto, as descobertas de
Praxágoras tiveram consequências profundas e, talvez por essa razão, foi
considerado na Antiguidade como uma das grandes figuras da medicina. Pelo
menos uma estátua foi erguida em sua homenagem, e em torno de 30 a.C. um
literato renomado, Crinágoras de Mitilene, dedicou uma epigrama a ela. Suas
sete linhas enaltecem a imagem do grande médico: Filho de Apolo, com a mão
coberta de unção que Tudo cura, esfregou a ciência lenitiva de sua arte em seu
peito, oh! Praxágoras. Assim, apesar dos muitos sofrimentos causados por
longas febres, mesmo com a carne ferida, aprendeu com a gentil Epione a usar
remédios. Se os mortais tivessem médicos como esses, o barco nunca teria
transportado cadáveres.97 Com Diocles, Mnesitheus e outros escritores de
medicina discutidos neste capítulo, vimos pela primeira vez médicos que eram
conhecidos por seus nomes e identidades, em vez dos autores anônimos ou com
pseudônimos do Corpus Hippocraticum. Esses médicos conscientemente
construíram e desenvolveram ideias da herança da medicina que haviam
recebido. Apesar de desconhecermos muitas de suas doutrinas e das relações
entre eles, além das informações que temos a seu respeito talvez não
correspondam exatamente ao que disseram e escreveram, a história da medicina
a partir de agora poderia ser escrita com mais facilidade em termos de
realizações pessoais e personalidades.98 Eles nos fazem lembrar que a medicina
na Grécia clássica não terminou com o Corpus Hippocraticum, e a relação entre
medicina e filosofia foi muito mais produtiva do que as críticas do autor de
Medicina Antiga.
Figura 17.3 Moeda de bronze cunhada na cidade de Heraclea Salbace entre 150 e
161 para comemorar a doação à Associação dos Jovens feita pelo metodista
Statilius Attalus, colega e rival de Galeno na corte imperial romana (ver p. 258).
O anverso mostra o busto do futuro imperador Marco Aurélio e o reverso
Hércules e sua clava. Museu Britânico, Reg. Nº 1844,0425.184.® The Trustees
of the British Museum. Cinquenta anos depois outro médico da corte imperial,
Statilius Crito, seguiu uma carreira semelhante. Membro de uma família rica da
pequena cidade de Heraclea Salbace na Cária (região central da Turquia), Crito
mudou-se para Roma, onde foi nomeado médico do imperador Trajano em torno
de 100 d.C. Um renomado historiador, Crito escreveu um livro sobre as “guerras
góticas”, um relato das campanhas de Trajano ao norte do Danúbio na região
atual da Hungria e da Romênia. Das obras preservadas que escreveu a maioria
refere-se aos estudos de farmacologia, dos quais extraiu em parte um tratado
sobre cosmética atribuído erroneamente, com quase certeza, à grande beleza da
época, a rainha Cleópatra do Egito.53 Ele também recebeu honrarias e cargos
prestigiosos: foi nomeado procurador romano, pelo menos hierarquicamente, e
ao se aposentar foi homenageado com diversas funções sacerdotais em sua
cidade natal. As cidades de Heraclea e a metrópole de Éfeso, onde os “médicos
que faziam sacrifícios ao ancestral Asclépio e aos imperadores o homenagearam
com um memorial”.54 Crito pertencia a uma família de médicos de Heraclea,
entre os quais Statilius Attalus, talvez seu sobrinho-neto, porque não se sabe ao
certo o parentesco, foi médico da corte imperial na década de 150, e um
importante benfeitor de sua cidade natal.55 Um contemporâneo mais jovem de
Attalus e médico da corte imperial, L. Gellius Maximus, também foi nomeado
procurador romano, além de ter sido generoso em suas doações para a cidade
natal, Antioquia, na província romana de Pisídia.56 Os médicos com um
relacionamento tão íntimo com o imperador exerciam um papel de
intermediários das aspirações de ascensão de suas cidades e das famílias. Eles
tinham boas relações com os senadores, eram convidados a se hospedarem nas
casas das famílias mais importantes da cidade, e exerciam poder e influência,
embora não se saiba se os imperadores sentiam-se mais interessados por sua
posição social ou pela competência profissional.57 Mesmo os médicos de uma
posição social mais modesta beneficiavam-se da relação com o imperador,
apesar de mais distante. Por ordem do imperador Trajano, Calpurnius
Asclepiades, um médico de Prusa (noroeste da Turquia) obteve a cidadania
romana para ele, seus pais e quatro irmãos, além do emprego para uma sobrinha
como uma das assistentes dos magistrados por ocasião de eleições em Roma e na
Ásia Menor.58 O apoio do imperador era útil como no caso de Calpurnius, que
se vangloriava que seu “conhecimento e virtudes morais haviam sido
reconhecidos por homens notáveis” e pelas cartas preocupadas de Plínio, o
Jovem em seguida à sua doença em 98.59 Plínio havia pedido ao imperador
Trajano que concedesse a cidadania romana ao seu massagista egípcio,
Harpocras, um ex-escravo de uma egípcia. Pouco depois de o seu pedido ter sido
atendido, Plínio descobriu que os egípcios só receberiam a cidadania romana se
fossem cidadãos de Alexandria. O pedido de desculpas e a solicitação de
cidadania de Alexandria foram recebidos com irritação pelo imperador. O
procedimento fugia às normas, mas como já havia concedido a cidadania romana
a Harpocras, o imperador viu-se forçado a atender à solicitação de Plínio. Alguns
meses depois Plínio fez outro pedido de cidadania, desta vez para diversos
parentes de seu médico grego, Marino.60 Harpocras, um simples massagista
egípcio que não era cidadão de Alexandria, tinha uma posição social inferior à
de muitos médicos de famílias tradicionais de médicos do leste da Grécia e com
raízes profundas em suas localidades, como as famílias Statilia da cidade de
Heraclea na Cária, Philaletha em Men Karou e Acilia de Claudiopolis. Pelo
menos três gerações da família de Moschianus trabalharam como médicos em
Thyateira (Ásia Menor).61 Por serem pessoas ricas da cidade, eles contribuíram
para a construção de santuários e a realização de festivais, foram nomeados
magistrados, fizeram missões diplomáticas e participaram da vida cultural de
suas comunidades.62 Em geral, esses médicos casavam-se com jovens de
famílias ricas com relações na corte imperial e na administração romana, ou um
homem importante da cidade permitia que o filho seguisse a carreira de médico
como Lucius, membro de uma família medianamente rica de Maeonia, na Lídia,
que morreu enquanto estudava com um médico local, Tatianus.63 Se houvesse
vivido mais do que 19 anos teria viajado para lugares mais distantes, como os
jovens de famílias semelhantes, que viajavam quilômetros para aperfeiçoarem
seus estudos de medicina, em lugares como Tieium no Mar Negro a Esmirna, ou
de Pérgamo e Adada na Frígia para Alexandria.64 Mas esses médicos
pertenciam à elite da profissão e não podemos esquecer que havia muitos
médicos pobres na Grécia, que forneciam ingredientes alternativos para as
receitas médicas de Galeno por um preço mais barato, assim como instrumentos
e livros mais apropriados aos médicos ricos.65 Esses médicos de origem mais
humilde só tinham condições de fazer pequenas viagens para aprimorar seus
estudos e, às vezes, nem mesmo tinham oportunidade de viajar. A maioria
aprendia medicina com os ensinamentos de membros de sua família, o pai, um
mestre, o marido nos casos das mulheres que praticavam a medicina, ou eram
autodidatas. Esse padrão social da Ásia Menor era radicalmente diferente da
sociedade de Roma, da Itália e, embora com menos evidências, das províncias de
língua latina. Nesses lugares poucos medici tinham seus cargos municipais, ou
funções sacerdotais citados em inscrições. Só um médico, C. Julius Rogatianus,
de Sufetula, na África, foi nomeado magistrado, e não há registros de médicos
com funções sacerdotais, exceto por alguns seviri Augustales, sacerdotes que
prestavam culto ao imperador Augusto, entre os quais a maioria compunha-se de
ex-escravos.66 Poucos médicos pertenciam a famílias com ligações antigas com
uma cidade específica, e a grande maioria tinha nomes que indicavam uma
origem estrangeira. Uma estimativa aproximada sugere que 90% dos médicos
citados nas inscrições do século I do Império Romano tinham nomes gregos e
esse percentual de mais de 60% manteve-se nos dois séculos seguintes.67 Nesse
período, mais de 90% dos médicos em Roma tinham nomes gregos e só no norte
da África o número de nomes não gregos equivalia aos nomes de origem
grega.68 Nas pequenas pedras usadas para fazer pomadas para os olhos
descobertas na Gália, na Inglaterra e na Alemanha os nomes gregos também
predominavam.69 Os países do Ocidente tinham um maior número de médicos,
ou praticantes de medicina de ambos os sexos, escravos ou pessoas libertas do
que o Oriente. Essa diferença quantitativa poderia ser explicada em parte pelas
divergências epigráficas: os decretos públicos eram mais comuns no leste da
Grécia e Roma tinha mais cemitérios que abrigavam túmulos de familiares do
imperador ou de senadores ricos. A maioria dos escravos e libertos que vivia na
corte imperial ou na casa dos senadores era atendida por médicos da mesma
posição social organizados em “decúrias”, grupos de 10 pessoas com ocupações
diversas em meio à família. Alguns médicos, ou praticantes de medicina, dos
sexos feminino e masculino, eram criados ou treinados para exercer essa
profissão dentro do palácio imperial.70 Mas esses fatores não são os únicos
responsáveis pelas diferenças marcantes entre o Oriente e o Ocidente, sobretudo,
porque são confirmados pela evidência literária. Mesmo com uma visão
cautelosa da afirmação de Galeno, que Roma atraía como um ímã os médicos
incompetentes das províncias da Grécia oriental, assim como alguns muito
talentosos, os médicos nas obras de Sêneca e nas cartas de Plínio eram todos
estrangeiros. A inclusão do satírico Juvenal do médico, o massagista, o
professor, o pintor, o vidente, o mágico e o funâmbulo como profissões típicas
dos “gregos de classe inferior”, não é um sinal de distinção.71 A percepção de
que a medicina era de certa forma uma profissão exercida por imigrantes, ex-
escravos e praticantes ocasionais estrangeiros, contribuiu para a ausência relativa
de médicos com cargos públicos no Ocidente, mesmo que alguns observadores
os desprezassem tanto como Catão e Plínio. A experiência atual da Grã-Bretanha
com médicos provenientes da África, da Índia e do Paquistão (ou dentistas do sul
da África) proporciona uma visão interessante desses costumes da Antiguidade,
mesmo sem a complexidade social do atendimento médico por escravos e ex-
escravos. Esse fato sugere que o processo de assimilação era lento e que esses
estereótipos continuaram a definir o padrão de comportamento durante várias
gerações. Images Figura 17.4 Uma placa minúscula com um texto referente a um
médico escravo, Tyrannus, que trabalhava no palácio da imperatriz Livia em
Roma. CIL 6, 3985. Cortesia dos Museus do Vaticano. Images Figura
Figura 17.5 Uma longa e prolixa inscrição em grego em homenagem ao médico
e filósofo Asclepíades (fl. 300 d.C.). IG 14, 1424. Cortesia dos Museus do
Vaticano.
Figura 17.6 Lápide de um médico imigrante grego em Roma, c.AD20. O nome
de Sosicrates, filho de Sosicrates, de Niceia, é espremido no fundo de uma
inscrição de túmulo que registra dois ex-escravos da família de Munatius. Roma,
Museu delle Terme. Porém isso não significa que os médicos no Ocidente não
ganhassem dinheiro; uma das atrações de Roma e da Itália era a possibilidade de
encontrar pacientes mais ricos do que em uma pequena cidade da região central
da Ásia Menor. O mausoléu do médico grego Patron e de sua família em Roma
era decorado com belos afrescos do estilo em voga da época de Augusto.72 A
descoberta recente da casa de um médico em Rimini revela a riqueza de seu
dono, bem como a casa de um cirurgião em Pompeia, embora não tão luxuosa
como outras na cidade.73 Assim como o personagem Trimalquião do livro
Satiricon de Petrônio, o ex-escravo P. Decimius Merula Eros, “clínico,
oftalmologista e cirurgião”, pagou 2 mil sestércios pelo cargo de sevir e doou 30
mil sestércios para construir as estátuas do templo de Hércules em Assis e 37 mil
para pavimentar as estradas, além de ter deixado uma herança de 800 mil
sestércios. Sua liberdade e ambição lhe custaram caro: os 50 mil sestércios pagos
para ser um escravo liberto estavam acima do padrão da época de 20 mil
sestércios.74 Em Benevento, no século II, um médico, filho de um imigrante
grego (talvez também médico), exerceu funções cívicas depois de nomeado pelo
conselho municipal e ganhou dinheiro suficiente para ascender à posição de
cavaleiro. Mas foi seu filho que, quase com certeza não era médico, ocupou o
cargo de magistrado e foi um grande benfeitor de seus concidadãos.75