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Parte I

Capítulo

Breve História da Cirurgia 1


Alexandre Campos Moraes Amato

“Devemos tomar conhecimento dos primórdios


quando quisermos dizer que entendemos de algo.”
Aristóteles

O conhecimento da história da cirurgia não é, para o Europa Mediterrânea, vários casos de trepanação cranial
cirurgião, essencial para a sua prática, porém a erudi- dessa época apresentando alguns sinais de cicatrização
ção que ela carrega é gratificante e fornece subsídios óssea. Porém, muito provavelmente, sejam provenien-
para uma compreensão melhor da cirurgia atual. tes de rituais religiosos e não realizados com um objeti-
Os pilares cirúrgicos, aqueles descobrimentos que vo terapêutico.
revolucionaram o ato cirúrgico, são o conhecimento Nas culturas primitivas antigas, a cirurgia se limita-
anatômico, a descoberta da anestesia e a descoberta dos va e, atualmente, ainda se limita ao tratamento das feridas
microorganismos e sua atuação na infecção. Previamente e lesões ósseas. Conhecia-se o controle de hemorragia
a essas descobertas, as operações eram atos brutais, por pressão com torniquetes, além do processo de cau-
realizados em pessoas sem perspectivas, em que o pro- terização e substâncias vegetais adstringentes. Algumas
cedimento era a última esperança. A história da cirurgia tribos norte-americanas, os Dakota, por exemplo, suturavam
pode ser dividida em duas eras: antes dos pilares cirúr- ferimentos com tiras de tendão e agulhas de ossos, colo-
gicos e após esses pilares. cando cortiça entre as bordas para facilitar a drenagem
A história da cirurgia remonta ao período neolítico purulenta. A retirada de flechas e lanças era feita com
(aproximadamente 10000 a 7000 a.C.), quando proce- destreza e os abscessos, drenados. Amputações rituais
dimentos invasivos como craniotomias e reduções de também eram realizadas. Algumas culturas utilizavam
fraturas eram realizadas sem conhecimento fisiopatológico substâncias alcoólicas ou outras tópicas para atenuar a
e anatômico. Época em que o homem trocou seu modo de sensibilidade dolorosa. A assistência à mulher grávida
conseguir alimento, passando a cultivá-lo e usando para ficava a cargo de outras mulheres da tribo.
isso instrumentos que podem ter sido utilizados nos proce- Na América pré-colombiana havia o controle da he-
dimentos cirúrgicos primitivos. Foram encontrados, na morragia, o conhecimento de ervas adstringentes, sangrias,

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pequenas ações cirúrgicas e a realização da trepanação pela claridade, pela consistência e pelo pragmatismo.
com o instrumento sagrado Tumi, que representava o As técnicas operatórias são descritas com minúcias, in-
adorado deus da medicina. cluindo a preparação do paciente, a mesa cirúrgica, a
No Egito antigo a cirurgia se restringia à circunci- iluminação, o instrumental e os assistentes.
são, com alguns relatos de suturas, e à cauterização de Asclepíades de Bitínia, ao redor de 120 e 70 a.C, afirmava
lesões. ser o médico, e não a natureza, que curava as enfermi-
Os cirurgiões indianos tiveram oportunidade de es- dades, desmentindo Hipócrates. Um dos procedimentos
tudar e desenvolver a técnica de rinoplastia, visto que em que obteve mais êxito foi a traqueostomia, realizada
cortar o nariz era o castigo para adultério e outras trans- quando a respiração estava obstruída.
gressões; o costume de perfurar a orelha e alargar a sua Celso (14 a 37 d.C.), um provável patrício romano
abertura também os fizeram desenvolver técnicas de reparo. que tentou compilar todos os conhecimentos da época,
Foram criadas técnicas de reparo de lábio leporino, hérnias, inclusive toda a medicina, ofereceu uma das primeiras
cálculos vesicais, catarata e amputações, desenvolvendo-se descrições de ligadura e secção de vasos sangrantes.
assim a cirurgia independentemente da medicina grega. O Talmud babilônico, século IV, contém fatos ana-
Possuíam muitos instrumentos cirúrgicos e realizavam tômicos e fisiológicos interessantes, reconhecendo 248
a cesariana com destreza. Seus conhecimentos anatômicos ossos no corpo humano, sendo um deles na coluna
eram precários devido à proibição da dissecção. O médico, vertebral, o luz, responsável pela reconstrução do corpo
nessa época, praticava tanto a medicina quanto a cirur- na ressurreição. Haviam sido descritos procedimentos
gia, pois estas eram consideradas complementares. para fístula anal, redução de luxações e cesariana.
A prática cirúrgica na China antiga se limitava à for- Na medicina árabe muitos se destacaram: Rhazes ou
mação de eunucos, com a castração total de pênis e Abu Bakr Muhammad ibn-Zarariya al Razi (850-923)
testículos daqueles que transgrediam as regras na corte. compilou diversos trabalhos de muitos autores, servindo
Posteriormente, essa mutilação passou a ser vista como de ponte entre o pensamento médico grego e o mundo
prova de lealdade. O enfaixamento dos pés das moças árabe. Seu trabalho mais difundido foi o Al-Hawi (Liber
jovens de famílias abastadas, que chegava a unir a parte Continens), sintetizando o conhecimento médico e ci-
anterior deles com o calcanhar, tinha um significado muito rúrgico de seu tempo. Avicena, Abu ‘Ali al-Hussain ibn
importante de beleza e posição social. A acupuntura e a ‘Abd Allah ibn al-Hassan ibn ‘Ali ibn Sina (980-1037),
moxibustão, colocação de uma planta pulverizada so- considerado um dos maiores filósofos do islamismo e
bre a pele e a sua queima, constituem prática básica da conhecido como “o Filósofo dos Árabes”, homem de
medicina chinesa há milhares de anos; dizem ser atribuídas grande cultura, especializou-se na área médica. Com
ao Imperador Amarelo, muito embora tenham sido uti- somente 16 anos de idade já havia estudado medicina e
lizadas antes. sua competência era evidente. Aos 18 anos tratou e curou
Na Grécia e na Roma antigas, o tratamento cirúrgico o príncipe Nuh ibn Mansur, após diversas tentativas de
se limitava a cuidar de lesões externas e feridas, extra- outros médicos. Ganhando confiança, proteção política
ção de armas cravadas no corpo no campo de batalha e e simpatia, ele teve o acesso à biblioteca dos governa-
controle da hemorragia, mas tudo isso muito atrelado à dores Samânidas, o santuário do saber árabe na época,
mitologia: havia guerreiros possuidores de conhecimentos liberado pelos príncipes de Buhara. Foi médico, jurista,
médicos especiais, como Machaon e Podalírio, filhos professor e ocupou cargos políticos. Escreveu cerca de
do deus Esculápio, prevalecendo, nos anos subseqüen- 200 obras, sendo o Livro da Cura a mais importante.
tes, o nome de Machaon como pai da cirurgia. Suas obras foram muito utilizadas na Idade Média. Aos
Durante os séculos que transcorreram, desde o flores- 21 anos completou a enciclopédia al-Qanun ou Cânone,
cimento da civilização micênico-cretense até a época mais considerada no seu tempo do que as obras de Rhazes
dos filósofos pré-socráticos, ou melhor, no período ou de Galeno. Até meados do século XVII sua obra foi
hipocrático, utilizava-se a cauterização no tratamento estudada e traduzida por mestres, médicos e estudan-
de infecções, feridas e tumores. Havia também, para o tes, inclusive pelos cristãos. Albucassis Abu-l-Qasim
tratamento de luxações e fraturas, o conhecimento de al-Zahrawi (936-1013) escreveu os textos cirúrgicos mais
técnicas de redução, as quais alcançaram um alto grau importantes da cultura muçulmana, exercendo forte
de complexidade e, para a analgesia, o uso do extrato de influência no Ocidente cristão. Seu al-Tasrif é o pri-
ópio e mandrágora. A Coletânea Hipocrática ou Corpus meiro texto sistemático e ilustrado sobre cirurgia, mesmo
Hippocraticum inclui escritos de muitos autores de Cós, sendo uma repetição de vários autores, como Paulo de
Cnido, Sicília e, talvez, de outros locais. A Coletânea Égina e outros. Avenzoar, ou Abu Marwan Abd Al-Malik-
foi compilada no século IV a.C. na grande biblioteca de ibn Zuhr (1091-1162), descreveu a técnica da traqueostomia
Alexandria e possui por volta de 72 livros e 59 tratados, com exatidão.
mal divididos, sendo os tratados mais completos aque- Durante a época das invasões germânicas perderam-se
les que discorrem sobre cirurgia. Muitas enfermidades muitos dos avanços cirúrgicos alcançados na Antigui-
eram tratadas com operações, manipulação e métodos dade greco-romana. Os cristãos acreditavam na cura das
conservadores; fraturas, luxações e ferimentos na cabe- doenças pelo Espírito Santo, deixando de lado todos os
ça recebiam particular atenção. Tratamentos cirúrgicos procedimentos cirúrgicos, com exceção das sangrias,
de tumores, fístulas, úlceras e hemorróidas são descri- amputações e extrações dentárias. Como a cirurgia foi
tos. Esses textos são atribuídos pessoalmente a Hipócrates, considerada uma disciplina importante pelos médicos

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de Salerno, a Europa teve que seguir as escolas medi- vimentação. Guido Guidi, ou Vidius (1508-1569), foi
terrâneas. Um dos melhores cirurgiões do século XIII um florentino que publicou o Chirurgia e Grecco in Latinum
foi Guilherme de Saliceto (1210?-1227), professor em Conversa, em 1544, e tem seu nome lembrado na ana-
Bolonha, médico de Verona e autor de numerosas obras. tomia pelo nervo e pelo canal vidiano. Fabrizi d’Acqua-
Preferiu o uso da faca à cauterização nas operações ci- pendente (1533-1619), prudente cirurgião e anatomista
rúrgicas e escreveu o primeiro tratado sobre anatomia italiano, que evitava perda de sangue e cirurgias peri-
topográfica, expondo o tratamento cirúrgico de fraturas gosas, descreveu técnicas de traqueostomia, toracocentese
e outras enfermidades. Seu discípulo Guido Lanfranchi e cirurgia uretral e descobriu as válvulas venosas. Fran-
(1252?-1315), de Milão, defendeu a união da cirurgia e cisco Diaz, cirurgião espanhol, publicou, em 1588, uma
da medicina no seu Cirurgia Magna, concluído em 1296. das primeiras obras sobre as vias urinárias, cunhando
Henry de Moneville (1260-1320), cirurgião de Felipe, o mais de 500 termos médicos.
Formoso e professor de anatomia em Montpellier reco- O século XVII ficou conhecido como “Era da revo-
mendou a cura higiênica das feridas, limpando-as e sutu- lução científica”, a cirurgia, porém, não acompanhou
rando-as o mais rápido possível para evitar a supuração. os progressos da anatomia e da fisiologia, pois a anes-
Guy de Chauliac (1300-1368) defendeu a necessidade tesia e o controle da infecção ainda não haviam sido
da boa formação em anatomia para a prática cirúrgica. descobertos, muito embora a anatomia estivesse avan-
Durante a Idade Média os maiores avanços foram a çada. Os cirurgiões não alcançaram o nível social e
regularização da profissão médica e do ensino, o de- acadêmico dos médicos, com algumas exceções. Os cirur-
senvolvimento das idéias sobre o contágio, a adoção de giões franceses competiam com os barbeiros e depois
medidas sanitárias e a criação de instituições assistenciais. se aliaram a eles contra os médicos. As cirurgias maio-
O misticismo se tornou mais profundo, apesar de a ciên- res, como suturas de perfurações intestinais, extração
cia ter sido utilizada com mais freqüência. A cirurgia de tumores, operações plásticas em lábios e nariz e fístulas
procedia das tradições gregas e bizantinas, pelo menos retais eram realizadas por cirurgiões, enquanto feridas,
da forma como foi transmitida pelos árabes e pelas escolas sangrias, extração dentária, redução de fraturas e luxa-
de Salerno e Montpellier. Limitava-se ao tratamento de ções e úlceras eram tratadas por cirurgiões-barbeiros.
feridas, fraturas, luxações, amputações, drenagem de abs- Havia, também, os médicos itinerantes, que operavam
cessos e fístulas. Os procedimentos se restringiam a cortes cataratas, cálculos de vesícula e hérnias, geralmente com
e amputações, com o hábito árabe da cauterização no maus resultados. Wilhelm Fabry von Hilden (1560-1634),
lugar da ligadura. Procedimentos mais complexos, como considerado pai da cirurgia germânica, inovou ao defi-
a correção de hérnias e a extração de cálculos vesicais, nir que as amputações deveriam ser realizadas nos tecidos
eram evitados. A sutura, raramente utilizada, era feita sãos e não na parte necrosada. Marco Aurélio Severino
com fio de cabelo humano. Obteve-se avanço na cirur- (1580-1656) praticou diversas vezes a traqueostomia
gia de catarata. No final da época medieval existiam dois durante a epidemia de difteria em Nápoles, como reco-
tipos de cirurgiões: os que recebiam uma formação mais mendado por Guido, Fabricio e Santorio, que haviam
elevada e os que se identificavam como barbeiros. Es- criado um trocarte para facilitar a operação. A primeira
tes não se limitavam ao cuidado dos cabelos e da barba, descrição clara de transfusão sangüínea foi feita por
também extraíam dentes, executavam operações meno- Giovanni Colle (1558-1630), de Belluno, professor de
res, cuidavam de fraturas e de outros procedimentos. medicina em Pádua. Giuseppe Zambeccari (1655-1729)
Na França, essa distinção chegou a ser legalizada. foi pioneiro na cirurgia experimental. Peter Uffenbach
Durante o Renascimento, Ambroise Paré (1509-1590) (1566-1635) compilou uma antologia cirúrgica em que
teve uma enorme influência. De origem campesina, foi reconhece as práticas dos cirurgiões do século XVI. Johann
aprendiz de barbeiro e trabalhou no Hotel-Dieu de Pa- Schultes (1595-1645) publicou o Armamentarium
ris, ajudando na cura de feridas. Em 1537, iniciou sua chirurgicum, um acervo iconográfico muito importante.
ascendência na armada. Giovanni da Vigo (1460-1525), Matthaeus Gottfried Purmann (1649-1711) firmou as bases
que sustentava sua Prática copiosa na arte cirúrgica anatômicas da cirurgia. Francisco Folli (1623-1685), em
(1515) com “as feridas que não se curam pelo ferro, se 1628, aconselhava a transfusão por meio da inserção de
curam pelo fogo”, passou a submeter as feridas de ar- um tubo de prata na artéria do doador e de uma cânula
mas de fogo ao azeite fervendo. Paré mostrou que a cura de osso na veia do paciente.
sem o azeite era possível e muito menos traumática, O século XVIII pode ser considerado a Idade de Ouro
ganhando fama e banindo esse procedimento. Durante do charlatanismo, apesar dos progressos da ciência médica,
as últimas campanhas, voltou a introduzir a ligadura e com direito a elixires milagrosos e até mulheres que
abandonou a cauterização. Em 1554, Henrique II o no- davam à luz coelhos. O francês Jean-Louis Petit (1674-
meou mestre-cirurgião, embora ele não tivesse forma- 1760) inventou o torniquete de parafuso e uma técnica
ção acadêmica e, em 1561, Paré publicou o seu tratado de mastectomia de pouca letalidade. O alemão Lorenz
Cirurgia Universal, introduzindo novas técnicas e no- Heister (1683-1758), que também era um excelente
vos instrumentos. Entre outras, descreveu e inovou as anatomista e teve íntima relação com a elevação do padrão
técnicas de operação de catarata, extração de cálculos do ensino cirúrgico, escreveu um tratado de cirurgia
de bexiga, luxações, fraturas, transplante de nariz e de traduzido para diversos idiomas, alcançando grande fama.
sutura facial. Chegou a descrever a criação de membros William Chedelsen (1688-1752), perito na litotomia, ficou
artificiais para amputados, com mecanismos para mo- famoso ao realizar a cirurgia em menos de um minuto

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e publicar o Anatomy of the Human Body. Jean Baseilhac teter de borracha flexível, que traz seu nome. B. Larghi
(1703-1781) praticava Haut appareil, a extração de Vercelli (1812-1877) utilizou nitrato de prata no tra-
suprapúbica de cálculos vesicais. Na França, em 1713, tamento de feridas, antes das pesquisas de Lister. Pierre-
foi fundada a Real Sociedade de Cirurgiões. Percival Paul de Broca (1824-1880) demonstrou a área da linguagem
Pott (1714-1788), um observador brilhante, descreveu no cérebro na terceira circunvolução do lobo frontal
a fratura hoje chamada de fratura de Pott e outros epônimos esquerdo. A.A.L.M. Velpeau (1795-1867) foi um cirur-
atuais. John Hunter (1728-1793) e seu irmão William gião de primeira ordem, sendo seu lenço de Velpeau para
Hunter (1718-1783), brilhante cirurgião, anatomista e fratura de clavícula ensinado ainda hoje.
cientista, criaram um novo método de sutura dos aneu- Na Inglaterra, o Guy’s Hospital Medical School, cons-
rismas. William Hunter foi considerado pai da cirurgia truído em 1724, chegou a ser mundialmente conhecido
experimental e da anatomia patológica. Durante esse pelos grandes homens do Guy’s: Bright, Addison,
século os cirurgiões conseguiram uma posição de igual- Hodgkin, como clínicos, e Sir Astley Paston Cooper (1768-
dade frente aos médicos da época, principalmente de- 1841), como cirurgião. Cooper, economicamente asse-
vido a François Gigot de la Peyronie (1678-1747) que, gurado pela fortuna de sua mulher, foi um homem bri-
em 1743, realizou a separação definitiva entre barbei- lhante, perfeccionista e comunicativo. Como cirurgião,
ros e cirurgiões com um decreto, proibindo o exercício era elegante e cuidadoso; deixou alguns epônimos que
da cirurgia por barbeiros, com exceção de procedimentos reconhecem o seu trabalho. Robert Knox (1791-1862),
menores. Giuseppe Flaiani (1741-1808) foi bem-sucedido contemporâneo de Cooper, foi um dos mestres da ana-
na cirurgia do bócio exoftálmico. August G. Richter tomia mais famosos de seu tempo. Benjamin Bell (1749-
(1742-1812), professor em Göttingen e pioneiro no tra- 1842), destacado cirurgião de Edimburgo, publicou uma
tamento cirúrgico das hérnias, escreveu um manual muito obra sobre a sistemática cirúrgica com tanta difusão quanto
conhecido e editou o primeiro jornal cirúrgico: Chirur- o texto de Heister. Seus filhos George e Joseph, seu neto
gishe Bibliothek. François R. Chopart (1743-1795), pio- Benjamin e seu bisneto Joseph continuaram a prestigiada
neiro na cirurgia da árvore urinária, criou, em 1792, tradição cirúrgica da família até o século XX. Outra família,
um método de amputação de pé. Michele Troia (1747- Bell, que se destacou foi a de John (1763-1820) e Charles
1828), de Nápoles, escreveu sobre a cirurgia de bexi- (1774-1842), dois irmãos considerados os maiores ci-
ga e ossos. Na Itália, Antonio Scarpa (1752-1832) fez rurgiões britânicos. Charles Bell, reconhecido por seu
estudos valiosos de anatomia, aneurismas e catarata; trabalho no sistema nervoso, descreveu a paralisia de
criou também uma técnica para correção de hérnia in- Bell. John Bell, escritor e ilustrador de livros de anato-
guinal. Na Alemanha, a separação entre cirurgiões e mia, é lembrado por seus trabalhos na cirurgia vascular
barbeiros veio muito depois, mas não impediu a as- e tratamento de feridas, mas pode ter sido também a
censão de grandes cirurgiões. fonte inspiradora de Conan Doyle para criar seu perso-
Na primeira metade do século XIX a cirurgia pari- nagem Sherlock Holmes. Robert Liston (1794-1847) foi
siense se encontrava relativamente bem desenvolvida gra- o mais hábil de seu tempo, extirpando tumores antes
ças ao progresso trazido pelas guerras napoleônicas. Um considerados inoperáveis e foi o primeiro a utilizar a
dos cirurgiões mais famosos foi Dominique-Jean Larrey anestesia com éter na Inglaterra. James Syme (1799-
(1766-1844), que, segundo o próprio Napoleão, era o 1870) idealizou novos procedimentos que permitiram a
homem mais virtuoso que ele já conhecera. Mesmo tendo incisão articular, preservando o membro da amputação.
feito mais de 200 amputações em 24h, seu feito mais Benjamin Brodie (1783-1862), William Fergusson (1808-
marcante foi a elaboração, no fronte, de um sistema de 1887) e Sir James Paget (1814-1899) também merecem
ambulâncias que elevava a possibilidade de um trata- ser lembrados. Fergusson escreveu um sistema de ci-
mento eficaz. Além disso, por atender os feridos de ambos rurgia com notável difusão, escreveu um livro sobre a
os lados, pode ser considerado um antecessor da Cruz história da cirurgia e da anatomia, idealizou novos ins-
Vermelha, entidade criada posteriormente nesse mes- trumentos, além de outras inovações em áreas não rela-
mo século. Guillaume Dupuytren (1777-1835), autor de cionadas. Paget descreveu as doenças, na mama e nos
inúmeras inovações cirúrgicas e instrumental utilizado, ossos, que levam o seu nome e redigiu o Surgical Pathology
demonstrou grande valentia ao realizar perigosas inter- (1863) e o Lectures on Tumours (1851). Na época di-
venções com êxito e, devido à sua frieza, foi classifi- ziam “Vai ver Paget para que te diagnostique o mal e
cado pelo seu colega Pierre-François Percy (1754-1825) Fergusson para que o extirpe”. O russo Nikolai Ivanovich
como o primeiro dos cirurgiões e o último dos homens; Pirogov (1810-1881), o maior cirurgião de seu país, célebre
descreveu a fratura e a contratura de Dupuytren, entre por sua cultura e sua técnica, introduziu a amputação
outros. Récamier (1774-1852) foi o primeiro a realizar de pé que leva seu nome.
uma histerectomia; Philibert Joseph Roux (1780-1854), Nos Estados Unidos, Ephraim McDowell (1771-1830),
a tiroidectomia e Jacques Lisfranc de Saint Martin (1790- extirpou, em 1809, um cisto de ovário com 20 libras,
1847), a retossigmoidectomia. Antoine Lembert (1802- operando com êxito outros cistos; publicou seu traba-
1851) renovou a cirurgia intestinal. Prosper Ménière lho e se tornou reconhecido internacionalmente. Philip
(1799-1862) se dedicou às enfermidades otológicas. Syng Physick (1768-1837) foi o fundador da especiali-
Auguste Nélaton (1807-1873), médico de Napoleão III, dade cirúrgica na América do Norte e se atribui a ele o
foi notável, principalmente com sua habilidade na ova- primeiro amigdalótomo, o uso do sifão gástrico e de fios
riotomia, sendo o primeiro a utilizar, em 1800, um ca- absorvíveis. Joseph (1741-1775) e John Warren (1753-

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1815) se destacaram por seu trabalho durante a Guerra Anothomia baseado em dissecações humanas. Embora
da Secessão e seus descendentes se mantiveram na pro- fossem diagramas rústicos, algumas concepções anatô-
fissão médica por gerações. micas equivocadas de Galeno foram corrigidas.
O responsável pela revolução na anatomia foi Andreas
Vesalius (1514-1564) (Fig. 1.1), nascido em Bruxelas.
CONHECIMENTO ANATÔMICO Freqüentou as universidades de Louvain, Paris e Pádua
No Egito antigo, apesar do embalsamamento, o concei- e se formou médico em Pádua, em 1537. Revolucionou
to anatômico era muito atrelado às idéias religiosas vigentes a anatomia ao revirar ossos em cemitérios, dissecar ca-
na época. E muito do que se observava foi interpretado dáveres em seu quarto e publicar, em 1538, a Tabulae
erroneamente: embora conhecessem a importância do anatomicae sex, obra que pela primeira vez, em sécu-
cérebro, considerava-se o coração o centro do corpo, los, corrigiu diversos erros pequenos de Galeno, com
interligado por um sistema de canais (metu) que distri- desenhos artísticos de ossos e músculos humanos. Mudou
a concepção da anatomia, que era ensinada à boa dis-
buía o ar. Sua medicina baseava-se no conceito de metu:
tância do cadáver, lendo textos de Galeno e dissecando
acalmá-los, se estivessem irritados; amolecê-los, se estives-
ele mesmo os corpos, sem luvas, anti-sépticos ou solu-
sem endurecidos e estimulá-los, se estivessem lentos.
ções de conservação. Com 29 anos, em 1543, publicou
Na China antiga, os conhecimentos anatômicos se
De humani corporis fabrica, libri septem, mais conhe-
baseavam mais na especulação do que na observação,
cido como Fabrica (Fig. 1.2), o maior livro médico já
pois as doutrinas de Confúcio proibiam a profanação
publicado, causando assombro na comunidade pela sua
de cadáveres e não foram realizados estudos anatômicos
imponência e pelo conteúdo da obra. Apontou os erros
até o século XVIII, muito depois de Vesalius.
insistentes de Galeno, desagradando a muitos contempo-
Vários estudiosos descreveram a anatomia humana.
râneos. O livro 1 se dedica ao estudo dos ossos; o li-
Alcméon de Crotona, em 500 a.C., realizou dissecções
vro 2, aos músculos; o livro 3, às artérias e veias; o livro 4,
em animais. Praxágoras de Cós, em 340 a.C., foi um
ao sistema nervoso; o livro 5, aos órgãos abdominais; o
dos primeiros a diferenciar a função das artérias e veias,
livro 6, ao coração e aos pulmões e, finalmente, o li-
embora pensasse que conduzissem ar em seu interior.
vro 7, ao cérebro. Publicou o Epítome, uma condensa-
Herófilo, de Alexandria, discípulo de Praxágoras, no século
ção do Fabrica, para que os estudantes o utilizassem na
IV a.C., apesar de ter realizado dissecções regularmen-
mesa de dissecação.
te e descrito zonas do cérebro, intestino, vasos linfáticos, Seus alunos e sucessores também seguiram com des-
fígado, órgãos genitais, olho e sistema vascular, teve grande cobertas anatômicas. Realdo Colombo (1512-1559),
parte de suas observações queimada. Erasítrato, em 250 sucessor de Vesalius em Pádua, descreveu precisamente
a.C., diferenciou os nervos sensitivos dos motores, em-
bora tenha confundido ligamentos com nervos; realizou,
também, descrições precisas do cérebro, da traquéia, do
coração e do sistema vascular.
Galeno, no século II d.C., nomeado médico dos
gladiadores, teve a oportunidade de tratar e observar a
anatomia humana ao vivo, principalmente ossos, arti-
culações e músculos. Suas observações anatômicas foram
tão consagradas, que discordar delas era heresia, mes-
mo contendo muitas descrições errôneas e muitas baseadas
em dissecções de animais. Apesar dos erros e falsos
pressupostos, são descrições anatômicas muito preci-
sas. Demonstrou que as veias estão conectadas ao coração
e que os nervos nascem do sistema nervoso central;
descreveu o nervo glossofaríngeo, a estrutura da me-
dula espinhal, dos ureteres, dos ossos e das inserções
musculares.
Com o desenvolvimento da cirurgia durante o perío-
do medieval, aumentou o interesse pela anatomia. Na
Escola de Salerno, a prática anatômica se reduzia à dis-
secção de animais, enquanto os árabes se baseavam em
trabalhos clássicos, como o de Galeno. Durante o sé-
culo XIV houve um renascimento da dissecção de cadáveres
humanos.
O melhor dissecador medieval foi Mondino De’Luzzi
(1275-1326), com sua Anothomia escrita em 1316 e publicada
em 1478; manteve, porém, os erros de Galeno. Berengario
da Carpi, em 1521, encarregado da cadeira de cirurgia e
anatomia em Bolonha, publicou seu livro Comentários a Figura 1.1 – Auto-retrato de Andreas Vesalius, de sua obra-prima Fabrica.

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Figura 1.2 – Livro Fabrica, publicado por Vesalius.

a circulação sangüínea do ventrículo direito para o ven- sistema nervoso, no entanto, ao localizar o nível ana-
trículo esquerdo do coração, passando pelos pulmões e tômico dos processos mentais, chegou a conclusões equí-
o próprio coração, publicando o De re anatomica. Gabriel vocas. A circulação arterial da base do crânio, descrita
Falópio (1525-562), sucessor de Colombo e grande ci- por ele, levou seu nome.
rurgião, apresentou processos anatômicos não descritos
por Vesalius, como os órgãos femininos, descrevendo
pela primeira vez o ovário e as trompas do útero, que ANESTESIA
atualmente levam o seu nome, e atribuiu nomes a vagi- Cirurgias grandes, com acesso à cavidade peritoneal,
na, placenta e clitóris, que antes não os tinham. Bartolomeu foram tentadas e realizadas, mas sem a segurança ofe-
Eustáquio (1520-1574) é autor de um esplêndido ma-
recida pela anestesia e pela assepsia que conhecemos
nuscrito esquecido por 150 anos na Biblioteca do Vaticano.
hoje. No momento da cirurgia, no hospital, todos os
Publicado em 1714, pelo cardiologista Giovanni Lancisi,
funcionários se encarregavam de segurar o paciente e
além de apontar erros no Fabrica, fez observações ne-
amordaçá-lo. A sala cirúrgica era ampla, com uma grande
gligenciadas por Vesalius, descrevendo corretamente o
clarabóia para iluminação e com portas pesadas para
rim humano, a glândula supra-renal e a trompa, que liga
evitar a propagação dos gritos. A operação tinha que
o ouvido médio à cavidade oral e leva seu nome.
ser realizada rapidamente.
Vesalius mudou conceitos e relatou uma nova ana-
Durante centenas de anos substâncias analgésicas,
tomia, mas isso não foi tudo; o principal foi a inovação
na maneira de estudar e ensinar, mostrando o caminho hipnóticas e narcóticas, como opiáceos, haxixe, mandrágora
para novas descobertas. e outras plantas contendo Hyosciamus, foram utiliza-
Leonardo da Vinci (1452-1519) considerou a anatomia das. O álcool também foi empregado.
além do ponto de vista pictórico. Sua precisão é maior Os assírios, por volta de 1000 a.C., comprimiam a carótida
do que a de Vesalius; seus contemporâneos, entretanto, do paciente até que ele ficasse inconsciente. Na Europa
não viram seu trabalho. Michelangelo Buonarotti (1475- Medieval era comum o trauma cranioencefálico, que consistia
1564) praticava dissecções pessoalmente no convento num golpe sobre uma tigela de madeira, colocada sobre
de Santo Espírito de Florença; adquiriu conhecimento a cabeça do paciente, de forma que o crânio ficasse intacto
anatômico durante 20 anos, até que passou a considerar e o paciente, inconsciente. Hipócrates, em 400 a.C., uti-
a anatomia, ainda que subordinada pela arte, pouco útil lizava a esponja soporífera sob o nariz, impregnada de
para o artista. Albrecht Dürer (1471-1528) escreveu um ópio, mandrágora, vinho e outras plantas. No século XVI
tratado sobre proporções do corpo humano, mas sua se utilizava o gelo para congelar certas partes do corpo
preocupação com a anatomia era puramente estética. antes da cirurgia. Theophrastus Phillippus Aureolus
William Harvey (1578-1657), discípulo de Acqua- Bombastus von Hohenheim, ou melhor, Paracelso (1493-
pendente, demonstrou a circulação sangüínea através do 1541) foi o primeiro a utilizar o éter, descoberto em 1275
sistema vascular e seu bombeamento pelo coração. Como pelo poeta, teólogo, filósofo e alquimista espanhol Raimundo
toda grande inovação, foi criticada por muitos e apoia- Lúlio (1235-1315), conhecido como “doutor iluminado”,
da por poucos. que destilou a mistura de vitríolo (ácido sulfúrico) com
Thomas Willis (1621-1675), em 1664, publicou De álcool. Entretanto, como era clínico, ele o utilizou para
Anatome Cerebri, o compêndio mais detalhado sobre o aliviar a dor e não para anestesia cirúrgica.

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85-7241-561-0 Breve História da Cirurgia 9

O mesmerismo ou “magnetismo animal”, método de nervosos. A cocaína foi a primeira substância injetada
Franz Anton Mesmer (1734-1815), pode ser considera- no espaço raquidiano para produzir anestesia, contudo,
do um precursor do hipnotismo. James Esdaile (1808-1859), conhecidos seus efeitos nocivos, foi necessária uma in-
na Índia, chegou a realizar 72 cirurgias com a técnica vestigação para o uso de novos agentes.
do mesmerismo, sem dor, porém ele não convenceu seus William Macewan (1848-1924) criou um tubo de metal
contemporâneos. John Elliotson (1791-1868), outro que, colocado na traquéia, facilitava o controle da respi-
defensor do método, foi muito criticado. O hipnotismo ração e a aspiração de secreções, assim foi inventado o
foi batizado, em 1843, por James Braid (1795-1860). tubo endotraqueal. No século XX a anestesia endotraqueal
Em 1772, Joseph Priestley (1733-1804) descobriu evoluiu, permitindo o controle do fluxo de ar, oxigênio
o gás do riso, ou óxido nitroso, mas não observou seu e outros gases. Franz Kuhn (1866-1929), na Alemanha,
efeito anestésico. Humphry Davy (1778-1829) pensou criou um tubo suficientemente flexível para ser inserido
em utilizá-lo em cirurgias, mas não deu continuidade pelo nariz, se necessário. Kuhn Dorrance e Henry Janeway
à idéia. William Barton, em 1808, confirmou as obser- colocaram os balões infláveis e o laringoscópio em forma
vações de Davy. de L com iluminação. O britânico Sir Ivan Magill (1888-
Henry Hill Hickman (1800-1830), em 1824, produ- 1986), em 1919, desenvolveu uma técnica surpreendente
ziu um estado de “animação suspensa” em animais, com para intubação, anestesiando a garganta com cocaína. Ralph
asfixia por dióxido de carbono, realizando cirurgias sem Waters (1883-1979), na Universidade de Wisconsin, em
dor. Chegou a propor seu uso em humanos, mas a idéia 1932, descobriu acidentalmente a intubação seletiva,
não foi aceita. identificando sua utilidade. Arthur E. Guedel (1883-1956)
Crawford Long (1815-1878) instituiu as folias de éter, criou a cânula que hoje leva seu nome.
em substituição às festas de gás do riso, e percebeu que No início, os próprios cirurgiões faziam suas anestesias,
não sentia dor após contusões. Em 30 de março de 1842 porém, com a crescente complexidade, a tarefa foi
retirou cirurgicamente um cisto cervical de um paciente, transferida para técnicos especialistas e enfermeiras, que
sob efeito do éter, sem que ele sentisse dor. O sucesso se dedicavam inteiramente a essa tarefa. Em 1935, Francis
foi tão grande que passou a utilizar o éter em suas ci- Hoeffer McMechan (1879-1939) alertou a necessidade
rurgias, sendo o primeiro a usá-lo em um procedimento
de o anestesista ser um médico capaz de tratar as com-
obstétrico, em 1845. Horace Wells (1815-1848) anun-
plicações da anestesia.
ciou, em 1844, o efeito anestésico do óxido nitroso ao
Sobretudo após a Primeira Guerra Mundial, vários gases
extrair um dente de si mesmo, sem dor. Mas, após ter
anestésicos estavam sendo descobertos. Depois do trilene,
testado a descoberta diversas vezes, ao apresentá-la para
em 1917, veio o etileno, em 1923, o éter divinílico, em
colegas, o paciente passou a gritar, sendo Wells vaiado
1931, o ciclopropano e o halotano, em 1956.
por charlatanismo pela audiência. William Thomas Green
Os indígenas da América do Sul, muito antes de se-
Morton (1819-1868), colega de Wells, passou a experi-
mentar o éter sulfúrico e, em 16 de outubro de 1846, rem descobertos, embebiam suas flechas em substâncias
fez a primeira demonstração pública de cirurgia sem dor. retiradas de diversas plantas venenosas, que paralisavam
O termo anestesia foi definido por Oliver Wendell Holmes suas presas. Pedro Mártir de Anghera (1455-1526) des-
(1809-1894), professor de anatomia em Harvard. creveu esse efeito em 1516, porém passaram-se 170 anos
Depois de o éter ter sido amplamente aceito, James até que George Marcgrave nomeasse a substância como
Young Simpson (1811-1870) o abandonou em favor do curare. Somente em 1942 essa substância começou a ser
clorofórmio devido ao seu odor desagradável, suas proprie- produzida em larga escala. Seu uso foi introduzido na
dades irritantes e ao longo período de indução necessário. anestesia, sob a forma de relaxantes musculares, facili-
O clorofórmio foi fabricado em 1831 pelo químico nor- tando as cirurgias e permitindo o controle da respiração.
te-americano Samuel Guthrie. Por um século foi usado Emil Fischer (1852-1919), em 1903, em Berlim, foi
na Grã-Bretanha até ser descoberta sua hepatotoxidade e o primeiro a desenvolver barbitúricos injetáveis, sendo o
seus outros efeitos tóxicos, com a constatação de que causava mais seguro o pentotal, desenvolvido em 1935. Eram
cinco vezes mais mortes do que o éter. utilizados para indução de um sono agradável no pa-
A Igreja pregava que a dor do parto é divina, chegan- ciente, antes da anestesia.
do a punir quem pedisse alívio da dor, até o momento em A anestesia local tem uma história mais longa. Por
que John Snow (1813-1858), o primeiro médico anestesista, volta de 400 a 700 a.C, os antigos indígenas do Peru já
utilizou o alívio da dor num parto da rainha Vitória. conheciam os efeitos da folha de coca. O alemão Albert
O desenvolvimento da anestesiologia como especia- Niemann (1834-1861) foi o primeiro a obter, em 1859,
lidade se deve a Snow, que criou técnicas e analisou os cocaína pura e a dar esse nome à substância.
efeitos fisiológicos de diferentes anestésicos. William S. Halsted, do Hospital John Hopkins, o mais
Nos últimos anos do século outros agentes foram in- famoso cirurgião norte-americano, foi o principal res-
troduzidos: o cloroetileno para anestesias locais e a co- ponsável pelo emprego da cocaína como anestésico local.
caína, estudada por Carl Koller (1857-1944), em 1884 e Foi ele também quem introduziu o conceito de residên-
por Sigmund Freud (1856-1939). Em 1888, James Leonard cia médica.
Corning (1855-1923), de Nova York, injetou cocaína no Heinrich Braun (1847-1911), em 1897, acrescentou
espaço epidural e foi muito bem-sucedido. William Stewart epinefrina à cocaína e diminuiu a quantidade de anes-
Halsted (1852-1922), em 1898, injetou-a nos troncos tésico necessário, reduzindo a sua toxicidade.

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10 Generalidades 85-7241-561-0

A cocaína foi substituída por novocaína, em 1899, em vacas e carneiros. Em 1882, passou a estudar a rai-
pelo químico alemão Alfred Einhorn (1856-1917), uti- va. Não conseguiu achar o agente etiológico, causador
lizada com finalidade anestésica, em 1905, por Braun. da doença, que se trata de vírus, mas criou uma vacina
eficaz no combate a essa doença.
No século XVIII, Charles White, na Inglaterra, e Joseph
MICROORGANISMOS E INFECÇÃO Clarke e Robert Collins, na Irlanda, reduziram os índi-
Athanasius Kircher (1602-1680), um jesuíta do século ces da infecção pós-parto mediante higiene pessoal,
XVII, em Roma, observou, por meio de um microscópio limpeza ambiental, limitação de exames vaginais e limpeza
primitivo, que o vinagre e o leite fermentados conti- contínua das camas e lençóis. Poucos, porém, aceita-
nham “vermes” e que o sangue dos que morriam de peste vam essa prática. Oliver Wendell Holmes (1809-1894),
albergavam “animálculos”. em 1843, atribuiu a febre puerperal à infecção trans-
No século XIX, a idéia da geração espontânea, ou mitida pelos obstetras, de uma pessoa a outra, mas sua
seja, de que a vida provinha de uma substância inani- teoria também não foi aceita. Ignaz Semmelweis (1818-
mada, era muito difundida. No século XVII já haviam 1865) demonstrou a natureza contagiosa da infecção
descoberto que os vermes vinham de ovos depositados puerperal, analisando os casos nos pavilhões obstétri-
por insetos, mas a idéia da geração pela putrefação e cos das Allgemeines Krankenhauses de Viena: na en-
fermentação estava muito sedimentada. No século XVIII, fermaria das parteiras, a mortalidade era de 3%, enquanto
Lázaro Spallanzani (1729-1799) demonstrou que nenhum na dos estudantes de me-dicina chegava a 20% em al-
organismo se desenvolve se o líquido for aquecido e guns meses. Depois de muito estudar o assunto, con-
protegido do ar ambiente. cluiu que essa diferença decorria do fato de os estudantes
Regnier de Graaf (1641-1673), médico e anatomista virem diretamente da sala de autópsias para examinar
que descobriu os folículos ovarianos, colocou a aten- as pacientes. Semmelweis estudou também a morte de
ção da comunidade médica, em 1673, sobre o holandês um amigo que se machucou com um bisturi utilizado na
Antoni van Leeuwenhoek (1632-1723), que não era médico, autópsia de uma paciente falecida por infecção puerperal
nem professor, era um lojista, fabricante de microscópios. e concluiu que seus órgãos se apresentavam com as mesmas
A carta de número 18 de Leeuwenhoek, recebida por alterações presentes na infecção puerperal. Instituiu a
Henry Oldenburg (1618?-1677), em outubro de 1676, e higiene com hipoclorito de cálcio, diminuindo a taxa de
publicada na Philosophical Transactions, em 1677, mortalidade para 2%. Apesar do sucesso clínico, o chefe
descrevia microorganismos presentes na água e a sua do serviço desaprovou seus métodos, chegando a limi-
movimentação. Muitas outras cartas trouxeram inova- tar suas atribuições na prática médica. Em 1861, dez anos
ções importantíssimas. Ele chegou muito próximo do após a descoberta inicial, concluiu seu livro Die Aetiologie
conceito de germe causando doenças. Examinou seu próprio der Begriff und die Prophylaxis des Kindbettfiebers,
sêmen, identificando os espermatozóides. hostilmente recebido pela classe médica.
Trinta e nove anos após a morte de Leeuwenhoek, Joseph Lister (1827-1912) borrifava ácido fênico (fenol)
o austríaco Marc von Plenciz (1705-1781) declarou que sobre o paciente durante a operação, a fim de matar as
as doenças contagiosas eram causadas pelos microor- bactérias vistas por Pasteur em outras doenças, mas seu
ganismos descobertos pelo holandês. Agostino Bassi relato, publicado em 1967, também foi recebido com
(1773-1836), da Itália, em 1835, demonstrou que a doença indiferença. Embora inicialmente a atenção estivesse
do bicho da seda era provocada por bactérias e dedu- voltada ao uso do fenol e não à etiologia da infecção, os
ziu que outras doenças também o eram. Friedrich Henle cirurgiões alemães reconheceram o papel desempenha-
(1809-1885), o maior anatomista da Europa na época, do pelas bactérias na infecção e viram a importância da
aprovou a descoberta, impressionando seu aluno Robert assepsia e da anti-sepsia. Os cirurgiões franceses ade-
Koch (1843-1910) cujas obras sedimentaram a desco- riram rapidamente à nova teoria.
berta de Leeuwenhoek, demonstrando as bactérias como William Halsted (1852-1922) introduziu o uso de luvas
causadoras de doenças. Koch criou o meio de cultura de borracha para proteger as mãos de sua enfermeira e
sólido, essencial para o isolamento delas. Mas seu feito futura esposa na sala de cirurgia. Por sugestão de um
mais famoso foi a identificação do agente causador da aluno, as luvas passaram a ser usadas também pelos
tuberculose. cirurgiões, já que podiam ser esterilizadas. Inicialmente
Louis Pasteur (1822-1895), aos 25 anos, mesmo ten- grossas e desconfortáveis, somente foram amplamente
do sido considerado medíocre por seu avaliador, na aceitas após a introdução de uma borracha mais fina.
Universidade de Sorbonne, iniciou a ciência da estereo- As máscaras foram introduzidas posteriormente. Gra-
química. Em 1857, deixou a química para adentrar no dativamente passaram a ser aceitos gorros e avental, a
mundo microbiológico, estudando e quebrando a teoria mesa cirúrgica passou a ser recoberta, os pacientes também,
da geração espontânea. Ao solucionar um problema da bacias de bicloreto começaram a ser utilizadas para assepsia
época com a fabricação da cerveja e do vinho, criou um e, finalmente, o centro cirúrgico passou a ser limpo e
método hoje conhecido como pasteurização e se tornou asseado e, o ato cirúrgico, bem coordenado.
o cientista mais reverenciado do mundo. Descobriu, em Paul Ehrlich (1854-1915) iniciou o conceito de uma
galinhas, o efeito de uma cultura envelhecida ou enfra- substância que localizasse e matasse um microorganis-
quecida de cólera, iniciando a descoberta das vacinas. mo, sem destruir as células do organismo hospedeiro.
Seguiu suas pesquisas criando a vacinação para o antraz, Em 1917, Heidelberg e W.A. Jacobs anunciavam que a

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sulfonamida destruía bactérias. Na Alemanha, Gerhard e estômago, sendo o primeiro a realizar a ressecção do
Domagk (1895- 1964), que já havia provado a ativida- esôfago, em 1872, e do piloro, em 1881, para tratamen-
de antibacteriana de vários corantes, descobriu que o to do câncer. Seu Allgemeine chirurgische Pathologie
prontosil, corante têxtil sintetizado em 1908, atuava contra und Therapie alcançou onze edições. A natureza da
Streptococcus em ratos. Na França, Jacques Tréfouël apendicite foi elucidada em 1886 por Reginald Heber
(1897-1977) demonstrou que o prontosil induzia o or- Fitz (1843-1913), de Boston, que descreveu a tiflite. James
ganismo a produzir sulfonamida. Foram sintetizados Marion Sims (1813-1885), um dos fundadores da mo-
diversos derivados dessa substância: sulfapiridina, derna ginecologia, abriu a vesícula biliar. Victor Horsley
sulfatiazol, sulfadiacina, sulfaguanidina e sulfamidas (1857-1916) acessou tumores cerebrais e da medula
solúveis. Em 1911, Richard Westling nomeou de Penicillium espinhal. Carl Ruge (1846-1926) e Johann Veit intro-
notatum uma espécie de mofo que impedia o crescimento duziram o método de corte por congelação para exame
de outras bactérias. Em 1921, Lieske, e pouco depois, anatomopatológico durante a cirurgia. Eduardo Bassini
Gratia, comprovaram que uma classe de Penicillium (1844-1924) e muitos outros modificaram a cirurgia de
dissolvia o bacilo do antraz e impedia o crescimento de reparação da hérnia, para obterem melhores resultados.
estafilococos. Em 1929, René Jules Dubos (1901-1982) Karl Thiersch (1822-1895) e Johann-Friedrich Dieffenbach
isolou uma enzima de um microorganismo capaz de (1792-1847) aperfeiçoaram a cirurgia plástica. Sir Thomas
decompor a cápsula protetora do bacilo causador de pneu- Spencer Wells (1818-1897), em 1858, Robert Lawson
monia, demonstrando, posteriormente, que essa subs- Tait (1845-1899), em 1871, e Wilhelm Alexander Freund
tância, a tirotricina, é composta de dois polipeptídeos, (1833-1917), em 1878, desenvolveram técnicas cirúr-
um dos quais, a gramicidina, veio a ser o primeiro anti- gicas em ovários, trompa de Falópio e útero, e Porro,
biótico produzido comercialmente e utilizado clinica- em 1876, e Saenger, em 1882, alcançaram maior segu-
mente. Também em 1929, Alexander Flemming (1881-1955), rança e eficácia nas cesarianas. Küchler, em 1855, e Wells,
ganhador do Prêmio Nobel de 1945, publicou no British em 1866, retomaram as esplenectomias que haviam sido
Journal of Experimental Pathology, suas observações iniciadas séculos atrás com Adriano Zaccarelli, em 1549,
sobre a ação antibacteriana do Penicillium e sugeriu que e Giuseppe Zambeccari, em 1680. Tal foi o progresso,
a cultura do fungo podia ser utilizada para inibir o cres- que na Primeira Guerra Mundial, com exceção das ci-
cimento bacteriano. Sir Howard Walter Florey (1898- rurgias torácica e cardíaca, muitos dos procedimentos
1968) e Ernst Boris Chain (1906-1979), na Inglaterra, eram semelhantes aos atuais. Em 1873, Ernst von Bergmann
em 1941, conseguiram produzir, com ajuda do gover- (1836-1907) descreveu os traumatismos cerebrais. Em
no, a penicilina de Flemming em quantidade para uso 1900, Ernst Wertheim (1864-1920) descreveu a cirur-
terapêutico. Rapidamente, outros antibióticos foram gia radical de histerectomia abdominal, modificada
produzidos. A estreptomicina foi obtida por Selman posteriormente por Joe Vincent Meigs (1892-1963).
Waksman (1888-1973), em 1944, a partir do Streptomyces. O descobrimento dos raios X (Fig. 1.3), em 1895,
Por meio de outras cepas foram obtidas a cloromicetina por Wilhelm Röntgen (1845-1923), teve grande impacto
e a aureomicina. A partir de 1948, com a incorporação na cirurgia. Röntgen observou, ao acaso, que ao passar
de agentes similares, começou aparecer a resistência uma corrente através de um tubo com vácuo, aparecia
bacteriana que conhecemos e, até hoje, combatemos. uma fosforescência esverdeada em uma tela na prateleira.
Prosseguindo com experimentos, percebeu a existência
de raios invisíveis, que tinham a curiosa capacidade de
CIRURGIA MODERNA penetrar o corpo humano.
Muitos cirurgiões se destacaram em fins do século
Quando a anestesia foi garantida não havia mais a limi- XIX, como Emil Theodor Kocher (1841-1917), que ganhou
tação imposta pela dor e necessidade de um procedimento o Prêmio Nobel em 1909 por seus estudos na fisiologia,
rápido, e as técnicas cirúrgicas aumentaram em número patologia e cirurgia da glândula tireóide; os germânicos
e complexidade. Mas, por um período, a cirurgia con- Friedrich Trendelenburg (1844-1924), que propôs um
tinuava ameaçada pela infecção cirúrgica, impedindo um sinal, um sintoma, um teste, uma operação e uma posi-
progresso ainda maior. Após Lister, conseguiu-se che- ção, e Johann von Mikulicz-Radecki (1850-1905), o
gar ao interior do organismo e iniciar a nova era da cirurgia. primeiro a extirpar o câncer do cólon, em 1903; os franceses
A criação de sociedades cirúrgicas, com o intuito da Jules Péan (1830-1898), Just Lucas-Championière (1843-
disseminação da informação, ajudou muito no pro- 1913) e Marin- Theodore Tuffiér (1857-1929); os in-
gresso da cirurgia. A primeira a ser criada foi a Academie gleses Sir Frederick Treves (1853-1923), Tait e Macewen;
Royale de Chirurgie, em Paris, com suas Mémoires, os italianos, mais notavelmente Bassini e Antônio Ceci
idealizada por Pierre Dionis (1643?-1718) e publicada (1852-1920); os americanos William Williams Keen (1837-
esporadicamente de 1743 até 1838. O Colégio Americano 1932), Nicholas Senn (1844-1908) e John Benjamin
de Cirurgiões só foi fundado em 1913, por Franklin Martin Murphy (1857-1916), notáveis com o bisturi, explora-
(1857-1935) e padronizado segundo os Colégios Reais ram essencialmente todas as cavidades do corpo huma-
de Cirurgiões de Inglaterra, Irlanda e Escócia. no; William Halsted introduziu um novo conceito na
No final do século XIX, Albert Christian Theodor cirurgia, mostrando a pesquisa baseada em princípios
Billroth (1829-1894), o cirurgião mais inovador da Europa anatômicos, patológicos e fisiológicos, empregando o
e fundador da Escola de Cirurgia de Viena, efetuou com estudo em animais, permitiu a pesquisa de procedimen-
êxito as primeiras operações importantes de faringe, laringe tos cada vez mais complexos. Criou a chamada Escola

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12 Generalidades 85-7241-561-0

Figura 1.3 – Carta de Röntgen pedindo subsídios para continuar seus estudos (arquivo particular).

Halstediana, baseada nos princípios que considerava seguros pulmão artificial, que permitiu, em 1953, a operação
e adequados. A cirurgia plástica renasceu com Reverdin com um coração aberto.
(1870), Ollier (1872) e Karl Thiersch (1822-1895), sendo Em 1900, o cirurgião alemão Hermann Pfannenstiel
possível recobrir grandes superfícies cruentas e remo- (1862- 1909) descreveu a sua técnica para incisão ci-
ver cicatrizes deformantes com enxertos. Charles McBurney rúrgica suprapúbica. William Mayo (1861-1939), no mesmo
(1845-1913) ficou famoso com sua incisão abdominal ano, apresentou os seus resultados referentes a uma gas-
para apendicite e com a descrição do ponto doloroso, trectomia parcial. O tratamento do câncer de mama foi
em 1889. Sir Berkeley Moyniham (1865- 1936), de Malta, radicalmente modificado com George Beatson (1848-
escreveu muito sobre cirurgia abdominal e sua pinça ainda 1933), na Escócia, que propôs, em 1901, a ooforectomia
é largamente utilizada. e a administração de extrato de tireóide como uma possível
Em 1896, Ludwig Rehn (1849-1930) realizou, com cura. John Finney (1863-1942), do Hospital Johns Hopkins,
êxito, a primeira sutura cardíaca, dando início à cirur- em 1903, publicou um trabalho a respeito de um novo
gia cardíaca; em 1897 operou o esôfago torácico, com método de gastroduodenostomia ou piloroplastia alar-
acesso via mediastino posterior e, em 1920, instituiu o gada. Na Alemanha, Fedor Krause (1856-1937) publicou
tratamento cirúrgico para pericardite calcificada. Daí em a respeito de cistectomia total e uretrossigmoidostomia
diante diversas inovações foram incorporadas, como bilateral. Em 1905, Hugh Hampton Young (1870-1945),
técnicas de acesso ao tórax sob anestesia, métodos de de Baltimore, apresentou os seus trabalhos a respeito
hiperpressão. Meltzer e Auer, em 1908, propuseram a da prostatectomia radical para carcinoma. William Handley
insuflação por meio de uma cânula endotraqueal delga- (1872-1962), cirurgião do Hospital de Middlesex, em
da. O primeiro êxito na correção de anomalias valvares Londres, publicou Cancer of the Breast and its Treatment,
ocorreu em 1923, com Elliott Carr Cutler (1888-1947) em 1906, apresentando a teoria de que as metástases do
e Samuel A. Levine, que dilataram uma válvula estenosada câncer de mama são decorrentes de disseminação por
por cicatrizes em uma menina. Finalmente, em 1940, meio dos vasos linfáticos. Nesse mesmo ano José Goyanes
C. Bailey e D. Haven, nos Estados Unidos e H. Sellors (1876-1964), de Madri, utilizou enxerto venoso para
e R. Brock, na Inglaterra, conseguiram resultados mais restabelecer o fluxo arterial. William Miles (1869-1947),
satisfatórios. Em 1952, C. Hufnagel implantou uma válvula da Inglaterra, publicou seu primeiro trabalho a respeito da
sintética. André Cournand (1895-1988), Dickinson operação de ressecção abdominoperineal em 1908, o mes-
Woodruff Richards Jr. (1895-1973) e Werner Forssmann mo ano em que Friedrich Trendelenburg (1844-1924)
(1904-1979) que autocateterizou uma veia mediana até tentou a embolectomia pulmonar. Três anos mais tarde,
o coração, com ajuda de uma lâmpada fluoroscópica e o alemão Martin Kirschner (1879-1942) descreveu uma
de um espelho, receberam juntos o Prêmio Nobel, em haste para tração esquelética e estabilização dos frag-
1956, pelo cateterismo cardíaco. Robert Gross (1905- mentos ósseos ou imobilização articular. Donald Balfour
1988) relatou, com sucesso, a primeira ligadura de um (1882-1963), da Clínica Mayo, foi responsável pela
canal arterial permeável, em 1939, e a ressecção de importante operação para ressecção do cólon sigmóide,
coarctação da aorta com anastomose direta das bordas, da mesma maneira que William James Mayo (1861-1939),
em 1945. John Gibbons (1903-1973) e sua esposa, após para sua operação radical de carcinoma do reto, em 1910,
19 anos de intensos esforços, construíram um coração- e herniorrafia umbilical e hernioplastia.

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Em 1911, Fred Albee (1876-1945), de Nova York, York, publicaram seu tratado Tumours of the Breast. Nesse
começou a utilizar enxertos ósseos vivos como talas mesmo ano, Cutler detalhou o uso sistêmico de hormônio
internas. Pierre Fredet (1870-1946) e o alemão Wilhelm ovariano no tratamento de mastite crônica. Nessa época,
Ramstedt (1867-1963), em 1912, descreveram a pilo- Ernst Sauerbruch (1875-1951), da Alemanha, completou
romiotomia. Em 1913, Henry Janeway (1873-1921), de a primeira intervenção cirúrgica com êxito de um aneurisma
Nova York, desenvolveu uma técnica para gastrostomia, cardíaco e Rudolph Nissen (1896-1981) ressecou total-
na qual envolvia a parede anterior do estômago em torno mente um pulmão bronquiectásico. Geoffrey Keynes (1887-
de um cateter e o suturava no local, estabelecendo uma 1982), em Londres, desenvolveu a base de oposição à
fístula permanente. Hans Finsterer (1877-1955), pro- mastectomia radical, favorecendo o tratamento do câncer
fessor de cirurgia de Viena, melhorou a descrição de de mama por radioterapia, em 1932. O cirurgião irlandês
Franz von Hofmeister (1867-1926) de uma gastrectomia Arnold Henry (1886-1962) criou, em 1936, um procedi-
parcial com fechamento de uma porção da pequena mento cirúrgico para a hérnia femoral. Earl Shouldice
curvatura e anastomose retrocólica do restante do es- (1891-1965), de Toronto, foi quem iniciou primeiro, durante
tômago ao jejuno, em 1918. Thomas Dunhill (1876- os anos de 1930, a experimentação da correção da hérnia
1957), de Londres, foi o pioneiro na cirurgia da tireóide, inguinal com base no jaquetão de aponeurose unida por
principalmente na sua operação para o bócio exoftálmico, fio de aço contínuo. René Leriche (1879-1955) (Fig. 1.4)
em 1919. O canadense William Gallie (1882-1959) utilizou propôs uma arterectomia da artéria trombosada e,
fios confeccionados a partir da fáscia lata para a hernior- posteriormen-te, uma simpatectomia periarterial para
rafia em 1923. Barney Brooks (1884-1952), professor melhorar o fluxo arterial. Leriche também fez, em 1940,
de cirurgia em Tennessee, apresentou inicialmente a um enunciado da doença sindrômica aortoilíaca oclusiva
angiografia clínica e a arteriografia femoral em 1924. que leva o seu nome. Em 1939, Edward Churchill (1895-
Cinco anos depois, Reynaldo dos Santos (l880-1970), 1972), do Hospital Geral de Massachusetts, realizou uma
urologista português, relatou a primeira aortografia pneumonectomia segmentar para bronquiectasia. Clarence
translombar. Cecil Joll (1885-1945), professor de cirurgia Crafoord (1899-1984) foi o pioneiro do tratamento ci-
em Londres, descreveu, na década de 1930, o tratamento rúrgico da coarctação da aorta, em 1945. No ano seguin-
da tireotoxicose por meio de uma tireoidectomia subtotal. te, Willis Potts (1895-1968) completou uma anastomose
Em 1931, George Cheatle (1865-1951), professor de da aorta com a veia pulmonar para certos tipos de doen-
cirurgia em Londres e Max Cutler (1899-1984), de Nova ça cardíaca congênita. Chester McVay (1911-1987) po-

Figura 1.4 – Receita do Professor Leriche (arquivo particular).

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pularizou a correção das hérnias inguinais com base no em 1935, e John Alexander (1891-1954) ressecou, em
ligamento pectíneo, em 1948. Em Washington, Charles 1944, um aneurisma sacular da aorta torácica.
Hufnagel (1916-1989) criou e introduziu, em 1951, a pri- Evidentemente, com o progresso e o aumento expo-
meira válvula cardíaca protética funcionante em um homem. nencial de técnicas cirúrgicas, se tornou humanamente
Nesse mesmo ano, Charles Dubost (1914-1991), de Pa- impossível para um único cirurgião dominar todas elas
ris, realizou a primeira ressecção bem-sucedida de um e, de forma natural, ocorreram a especialização e a sub-
aneurisma aórtico abdominal, com a colocação de um en- especialização.
xerto homólogo. Robert Zollinger (1903-1994) e Edwin Emerich Ullmann (1861-1937), em Viena, no come-
Ellison (1918-1970) descreveram o seu primeiro resumo ço do século (1902), transplantou um rim canino do seu
a respeito da adenomatose poliendócrina, em 1955. No local normal para o colo, sendo um autotransplante bem-
ano seguinte, Donald Murray (1894-1976) realizou o pri- sucedido. Posteriormente transplantou o rim de um cão
meiro homoenxerto valvular aórtico que obteve sucesso. para uma ovelha, com êxito.
Uma mulher, Maude Abot (1869-1940), com sua clas- Carrel (1873-1944) nasceu em Saint Foy-Lès, Lyon.
sificação de malformações congênitas cardíacas, abriu Foi batizado com o nome Auguste, mas assim que o pai
caminho para outra mulher, Helen Brooke Taussig (1898- dele faleceu em 1877, foi-lhe atribuído seu nome, Alexis,
1986), futuramente conduzir a idéia da correção cirúrgica conforme costume na época para honrar os mortos.
das malformações, levada em prática pelo seu colega Interessou-se, desde cedo, pela técnica de sutura de vasos
Alfred Blalock (1899-1964). Outras mulheres se desta- em cães, idealizando o ponto triangular ancorado assim
caram na cirurgia, como Mary Dixon Jones (1828-1908), como a agulha curva que vêm sendo utilizados, há décadas,
Emmeline Horton Cleveland (1829-1878), Mary Harris em microcirurgia vascular. Na adolescência, freqüen-
Thompson (1829-1895), Anna Elizabeth Broomall (1847- tou a roda de costura de sua mãe e, quando acadêmico,
1931) e Mane Mergler (1851-1901). voltou ao grupo para observar como as senhoras proce-
Blalock, George Crile (1864-1943), Dallas Phemister diam. Viu a aplicabilidade de sua técnica à cirurgia vascular
(1882-1951) e Charles Huggins (1901-1997) se torna- e, mesmo como estudante, publicou trabalhos expondo
ram “cirurgiões-cientistas” renomados. Huggins foi lau- suas experiências em animais nesse setor. Foi o primeiro
reado ganhador do Prêmio Nobel, em 1966, por seus investigador norte-americano a receber o Prêmio Nobel
estudos no tratamento hormonal do câncer prostático. de Medicina e Fisiologia, em 1912. Retomou o traba-
Em 1924, foi introduzida a colecistografia por Evarts lho de Ullmann e, junto com Charles Guthrie (1880-1963),
Granam (1883-1957) e Warren Cole (1898-1990). Em realizou, em 1905, um autotransplante de rim em um
1935, foi descrita a duodenopancreatectomia para o câncer cão que, posteriormente, morreu de falência renal. Jun-
de pâncreas, realizada por Allen Oldfather Whipple (1881- to com Henry Drysdale Dakin (1880-1952), criou um
1963) e, em 1943, a vagotomia para o tratamento cirúr- sistema para tratamento de feridas, com irrigação con-
gico da úlcera péptica, por Lester Dragstedt (1893-1976). tínua de líquido de Dakin.
Frank Lahey (1880-1953) enfatizou a importância do As investigações sobre transplantes não sofreram avanços
nervo laríngeo recorrente durante as tireoidectomias; Owen importantes até que, em 1923, Carl Williamson compro-
Wangensteen (1898-1981), em 1932, descomprimiu com vou que os fracassos eram decorrentes de um processo
êxito uma obstrução mecânica do cólon, utilizando um biológico não identificado até então. Ele descreveu, mi-
novo aparelho de aspiração; George Vaughan (1859-1948) croscopicamente, as características do tecido rejeitado.
realizou, com sucesso, a ligadura da aorta abdominal Emile Holman (1909-1976) concluiu, nos anos de 1950,
para a doença aneurismática, em 1921; Max Peet (1885- que a rejeição decorria de um anticorpo específico.
1949) apresentou uma ressecção esplâncnica para hi- Em 1954, uma equipe cirúrgica do The Peter Bent
pertensão, em 1935; Walter Dandy (1886-1946) realizou Brigham Hospital, de Boston, transplantou um rim de
uma secção intracraniana de vários pares cranianos, nos um gêmeo para seu irmão, com êxito.
anos de 1920; Walter Freeman (1869-1972) descreveu O primeiro transplante de coração foi realizado em
a lobotomia pré-frontal como um método de tratamento 1967, por Christian Barnard (1922-2001), no Groote Schuur
de várias doenças mentais, em 1936; Harvey Cushing Hospital de Capetown, na África do Sul. Euryclides de
(1869-1939) introduziu, em 1928, a eletrocoagulação Jesus Zerbini (1912-1993), seis meses depois do sul-
na neurocirurgia, além de descrever a síndrome e a úl- africano, em 1968, realizou no Brasil o primeiro transplante
cera que levam seu nome; Vilray Blair (1871-1955) e cardíaco na América Latina. Muitos sobreviveram, mas
James Brown (1899-1971) popularizaram a utilização de a técnica foi abandonada em 1977 pois quase não havia
enxertos cutâneos parciais para cobrir grandes áreas sobreviventes tardios.
de feridas em granulação; Earl Padgett (1893-1946) criou, O uso de corações mecânicos para substituir comple-
em 1939, um dermátomo operatório que permitia a tamente os corações doentes foi introduzido em animais
calibração da espessura dos enxertos cutâneos; Evarts por Tetsuzo Akutsu e Willem Kolff em 1958 e, mais tar-
Ambrose Graham (1883-1957) completou a primeira de, por Michael DeBakey (1908- ). Em 1969, Denton Cooley
ressecção bem-sucedida de um pulmão inteiro em vir- (1920- ) empregou um coração artificial por dois dias,
tude de câncer, em 1933; Claude Beck (1894-1971) enquanto aguardava um coração para o transplante.
implantou o músculo peitoral no pericárdio e o uniu a Philip Bozzini (1773-1809), em 1806, visualizou a
um enxerto pediculado de omento na superfície do cora- uretra por meio de um tubo e luz de vela, aparelho nomeado
ção, obtendo assim uma circulação colateral para o órgão, Lichtleiter, mas nunca o testou em humanos. Segeles e

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Antoine Jean Desormeaux, em 1867, descreveram a con- de Cambres, Termo de Lamego, falecido em 1773, fixou-se
centração de luz com espelhos, em aparelho semelhante na Bahia e publicou Relatório Cirúrgico e Médico, no
ao Lichtleiter, para visualização urogenital. George Kelling, Qual se Trata e Declara Especialmente um Novo Methodo
em 1901, foi o primeiro a descrever a endoscopia e a para Curar Infecção Escorbutica ou Mal de Loanda.
Koelioskopie em cães, criando pneumoperitônio com ar Matheus Saraiva veio para o Brasil em 1713 como ci-
filtrado e visualizando a cavidade pelo citoscópio (la- rurgião-mor e médico do presídio da Saúde.
paroscópico) por intermédio de trocarte. Hans Christian George Marcgrave (1610-1643), nascido na Saxônia,
Jacobaeus (1879-1937), em 1910, esvaziava a ascite em mesmo tendo estudado medicina em Leyden, veio ao
humanos e a substituía por ar, criando o termo Laparo- Brasil como astrônomo na expedição de Maurício de
thorakoskopie. Descreveu também a inspeção das cavi- Nassau. Publicou Historia Naturalis Brasiliae, descre-
dades peritoneal, torácica e pericárdica em humanos. vendo centenas de exemplares de nossa fauna e flora.
Richard Zollikoffer passou a utilizar o CO2 para insuflação, Nos primeiros séculos, a realização de autópsias era
com absorção mais rápida e fácil. Janos Veress, em 1938, vedada, com algumas exceções. Willem Piso, no século
criou, com o propósito de confecção de pneumotórax XVII, no território sob dominação holandesa, a salvo
para tratamento de tuberculose, a agulha que hoje é cha- da Inquisição, praticou as primeiras necropsias de que
mada de Veress, utilizada para a criação de pneumo- se tem notícia.
peritônio. Em 1960, o alemão Kurt Karl Stephan Semm Em fins do século XVII, começou a diferenciação
(1927-2003) inventou um insuflador automático. Em entre “cirurgião-barbeiro” e “barbeiro” e o ensino era
1971, Jordan M. Phillips fundou a American Association baseado no trabalho como “aprendiz-de-cirurgião” ou
of Gynecological Laparoscopist. Com o advento de óticas em hospitais, que formavam os “cirurgiões-aprovados”.
de excelente qualidade e aparelhos de vídeo, a laparoscopia Muitos dos que exerceram a cirurgia no Brasil provi-
passou a ser videolaparoscopia, deixando de ser uma nham do Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa.
cirurgia egoísta, com a possibilidade da participação de Antônio José de Souza Pinto, em 1790, ensinou ana-
toda a equipe. Assim, na década de 80, passou a ser um tomia e cirurgia na Santa Casa da Misericórdia do Rio
procedimento mais aceito, principalmente após a pri- de Janeiro e no Hospital Real Militar do Morro do Castelo.
meira colecistectomia videolaparoscópica, realizada por Manoel José Estrella lecionou, em 1808, cirurgia espe-
Philippe Mouret, em Lyon, na França, em 1987. culativa e prática no Hospital Militar e no Hospital Santa
Casa de Misericórdia da Bahia.
Em 18 de fevereiro de 1808, no antigo Colégio dos
A CIRURGIA NO BRASIL Jesuítas, foi fundada a Faculdade de Medicina da Bahia
Nosso país, colonizado sem intenção de desenvolvimento, e, no mesmo ano, a Faculdade de Medicina do Rio de
teve todas as formas de cultura, arte e informação atrofiadas, Janeiro, o que remonta à transferência da Corte Real
inclusive a medicina. Em 1792, por exemplo, no Rio de Portuguesa para o Brasil, em 1808.
Janeiro, havia apenas uma livraria com obras de teolo- Os cirurgiões continuavam em situação de inferiori-
gia e um livreiro que distribuía somente obras da medicina dade em relação aos médicos. Porém, em 1848, um decreto
portuguesa. legislativo os considerou habilitados para exercitarem
A medicina, praticada pelos curandeiros se baseava livremente em todo o Brasil qualquer dos ramos da ciência
na diversidade cultural, ocasionando uma fusão da tra- médica, os antigos cirurgiões-aprovados e os formados
dição popular do colono branco, das práticas mágicas nas academias médico-cirúrgicas, sendo o fim da dis-
ou empíricas do africano e do índio e dos conhecimen- criminação entre médicos e cirurgiões, passando estes
tos dos jesuítas e dos raros médicos licenciados. Barbeiros a gozar do mesmo status social e das mesmas regalias
se faziam cirurgiões, negras idosas eram parteiras e os que aqueles.
charlatões se disseminavam. No século XIX muitos cirurgiões se destacaram, entre
Poucos médicos habitaram o Brasil colonial e desses eles, José Corrêa Picanço, João Alves Carneiro, Luiz
temos poucas informações. Em 1553, Jorge Valladares de Sant’Anna, Domingos Ribeiro dos Guimarães Peixoto,
foi nomeado cirurgião-mestre. Afonso Mendes, cirur- Estácio Gularte, Manoel Feliciano e muitos outros.
gião-mor em Lisboa, foi nomeado, em 1557, cirurgião Candido Borges Monteiro (1812-1872) escreveu sobre
no Brasil. O cargo de cirurgião-mor foi criado, em 1260, hérnias, queimaduras, cálculos vesicais e descreveu, em
por D. Afonso III, cabendo ao titular chefiar os cirur- 1845, o primeiro caso de ligadura de aorta abdominal
giões das tropas e fiscalizar as “artes físicas e cirúrgicas”. num homem vivo, na América. Antônio da Costa
Na primeira metade do século XVIII, viveu, em Recife, (1816-1860) publicou sobre o estreitamento da uretra e
o cirurgião Manoel dos Santos, autor da Narração His- a primeira cirurgia de ressecção completa do maxilar
tórica sobre as Calamidades de Pernambuco desde o superior direito e parte do esquerdo. Manoel da Gama
Anno de 1707 a 1715. José Antonio Mendes, cirurgião- Lobo (1835-1883) foi um exímio cirurgião oftalmolo-
aprovado e comissário do cirurgião- mor em toda América, gista e publicou muito sobre o assunto. Oscar Bulhões
publicou, em 1771, em Lisboa, um livro que pretendia (1845-1898) estudou com Billroth, Langenbeck e
suprir as deficiências de um Brasil sem médicos: Go- Bardeleben, e publicou, em 1881, entre outros traba-
verno da Medicina mui Necessário para os que Vivem lhos, Differentes methodos e processos que tendem a
Distantes de Professores Seis, Oito e Mais Léguas. José diminuir o domínio do bisturi. Em 1886, junto com o
Cardoso de Miranda, cirurgião natural de S. Martinho Barão de Pedro Afonso, Franco operou o presidente

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Prudente de Morais, sendo essa operação a primeira cis- chondrodendron platyphyll, que possui ação relaxante
tolitotomia suprapúbica bem-sucedida no Rio de Janei- do músculo esquelético. Em 1952, Kentaro Takaoka
ro. Visconde de Sabóia (1835-1909) discorreu sobre desenhou e fabricou o primeiro miniventilador portátil.
anestesia cirúrgica, fraturas complicadas, histerectomia, Na história moderna da cirurgia brasileira, diversos
salpingectomia, ooforectomia e muitos outros assuntos. nomes se destacaram. Alguns dos muitos que merecem
Seu trabalho Traité theorique et pratique de la science ser lembrados são: Arnaldo Vieira de Carvalho (1867-
et de l’art dês accouchement, publicado em 1873, foi ado- 1927), que renovou os métodos cirúrgicos em São Paulo,
tado como compêndio nas faculdades de Montpellier introduzindo as novidades científicas, e praticou, pela
e de Liège. Arnaldo Vieira de Carvalho foi o pioneiro primeira vez no país, a gastrectomia. Alfonso Bovero
na capital paulista e também no Brasil, da osteossínte- (1871-1937) e Renato Locchi (1896-1978) foram res-
se, da gastrectomia total (1900) e da ressecção intesti- ponsáveis pela formação da escola anatômica de São
nal com o botão de Murphy (1895), um botão metálico Paulo. Alípio Corrêa Netto (1898-1988) (Fig. 1.5), um
que unia as partes terminais do intestino cortado. Carlos dos poucos professores universitários que instituíram
José Botelho praticou pela primeira vez, em 1883, a uma escola verdadeiramente brasileira, introduzindo a
esofagotomia para a extração de uma dentadura que o idéia inicial das especialidades cirúrgicas, foi discípulo
paciente engolira quinze dias antes e ficara entalada na de João Alves de Lima (1872-1934), que introduziu a
porção superior, na altura do pescoço. neurocirurgia no nosso meio. Alípio é paradigma em
Alguns médicos, não cirurgiões, com feitos tão gran- publicações, pois, muito mais do que publicar artigos e
diosos que merecem ser lembrados são Chagas, Oswaldo livros, ele “publicou homens”. Em 1934, Silva Santos
Cruz e Vital Brazil. Carlos Ribeiro Justiniano Chagas publicou, na revista Brasil Médico, um trabalho intitulado
(1879-1934) descreveu a tripanossomíase americana, “Um coração no pé”, no qual ressaltava o papel da palmilha
doença que hoje leva seu nome. Oswaldo Gonçalves Cruz venosa na circulação de retorno. São nomes que mere-
(1872-1916), responsável pela primeira campanha de cem ser lembrados porque trouxeram contribuições valiosas
vacinação no Brasil, que provocou a Revolta da Vacina, à medicina brasileira.
conseguiu erradicar do Rio de Janeiro a febre amarela,
a peste bubônica e a varíola. Vital Brazil Mineiro da
Campanha (1865-1950), nascido em Campanha, Minas DANDO FUTURO AO PASSADO
Gerais, dedicou- se com tal afinco pela ciência que chegou
a contrair, durante seus trabalhos, peste bubônica e fe- Obviamente, em uma breve história da cirurgia, com
bre amarela. Em 1898, no Instituto Bacteriológico de pesar, muitos nomes e fatos históricos importantes são
São Paulo, preparou os primeiros soros eficazes contra omitidos, no entanto, não desmerecendo seu valor, pois
os venenos de crotalos e bothrops. No ano seguinte, toda descoberta, mesmo que falha, é válida. Maior atenção,
Adolpho Lutz (1855-1940) sugeriu ao governo a cria-
ção de um instituto soroterápico, que veio a ser o Ins-
tituto Butantan, oficializado em 1901 e dirigido por Vital
Brazil, que, em 1919, mudou-se para Niterói, onde fun-
dou o Instituto de Higiene, Soroterapia e Veterinária,
hoje Instituto Vital Brazil. Várias de suas obras se des-
tacaram, como O ofidismo no Brasil (1906) e A defesa
contra o ofidismo (1911). Ao se tornar “imortal”, teve
seu nome “abrasileirado”: de Dr. Vital Brazil passou a
ser chamado Dr. Vital Brasil.
Em 1842, Candido Borges Monteiro, futuro visconde
de Itaúna, efetuou pela quarta vez no mundo a li-
gadura da aorta abdominal para tratamento de volumoso
aneurisma da artéria ilíaca externa. Em 1847, Roberto
Jorge Haddock Lobo, no Rio de Janeiro, administrou a
primeira anestesia utilizando éter sulfúrico. O clorofórmio
foi utilizado pela primeira vez, em 1848, na Santa Casa
de Misericórdia do Rio de Janeiro, pelo professor Ma-
nuel Feliciano Pereira de Carvalho. Em 1866, Pacífico
Pereira, na Bahia, realizou a excisão de um osteoma
sublingual da mandíbula, aplicando éter tópico na mucosa,
com congelação local e vasoconstrição. Em 1903, as pri-
meiras fichas anestésicas foram feitas na Santa Casa de
Misericórdia do Rio de Janeiro. Em 1943, E. de Souza,
no Rio de Janeiro, inventou um dispositivo que foi in-
troduzido no mercado por MacIntosh, em 1950, para
saber se a agulha havia chegado ao espaço peridural. Figura 1.5 – Alípio Corrêa Netto, figura por Nabih Mitaini (arquivo
Em 1944, Oswaldo Vital preparou alcalóides do particular).

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porém, foi dada aos fatos e às pessoas que colaboraram AMATO, A. C. M. Dr. Vital Brasil Mineiro da Campanha. Anuário 2001 da
para que outros avanços ocorressem. Faculdade de Medicina de Sorocaba. Disponível em http://med-xlvii.
amato.com.br.
Com a proliferação de cirurgiões, especialidades e
AMATO, A. C. M. Tumi. Disponível em: www.culturaesaude.med.br/revista/
subespecialidades, fica cada vez mais difícil a projeção modules.php?name=News&file=article&sid=11.
única de uma pessoa como mestre da cirurgia, assim CASTIGLIONI, A. História da Medicina. São Paulo: Companhia Editora Na-
como ocorria antigamente. O futuro será marcado por cional, 1947.
aqueles que se destacarem dentro das especialidades e EARLY Twentieth Century Timelines. Disponível em: http://cnparm.home.texas.net/
subespecialidades e pelos avanços tecnológicos capa- Home.htm
zes de alterar o rumo da cirurgia, como as cirurgias mini- ELDOR, J. Historía de la Cirugía Laparoscópica. Disponível em:
mamente invasivas e os tratamentos clínicos para doenças www.anestesia.com.mx/articulo/laphisto.html.
atualmente cirúrgicas. FRIEDMAN, M.; FRIEDLAND, G. W. As Dez Maiores Descobertas da Medi-
cina. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
A endocirurgia e a microcirurgia são, hoje, as gran-
GUERRA, L. F. H. Cronología de la Historia de la Anestesia. Disponível em:
des novidades na cirurgia, mas como a nanotecnologia www.anestesia.com.mx/histor2.html.
está sendo pesquisada, elas provavelmente serão subs- HARRIS, W. M. Alexis Carrel (1873-1944) e o Líquido de Dakin. Diponível
tituídas. Novos diagnósticos e tratamentos genéticos em: www.culturaesaude.med.br/revista/modules.php?name=News&file=
também resultarão na correção de um problema antes article&sid=31. Acesso em: 03/Out./2004.
de sua manifestação. IV CONGRESSO Médico Latino Americano. A Medicina no Brazil. Rio de Janeiro:
Sobrará, no futuro, para o cirurgião, o que iniciou a Imprensa Nacional, 1909.
arte da cirurgia na história: o trauma, que por muito tempo LYONS, A. S.; PETRUCELLI, R. J. História da Medicina (traduzido do ori-
ginal Historia de la Medicina). São Paulo: Manole, 1997.
ainda necessitará de correção cirúrgica e da habilidade
RUTKOW, I. M. História da cirurgia. In: SABISTON. Tratado de Cirurgia. Cap 1.
e do conhecimento do cirurgião, auxiliado, talvez, pela SANTOS FILHO. L. História Geral da Medicina Brasileira. São Paulo: Hucitec.
precisão dos robôs e computadores. THE Nobel Prize. Disponível em: http://nobelprize.org.
THORWALD, J. Século dos cirurgiões. São Paulo: Hemus, 2002.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS UNITED States National Library Of Medicine. History of Medicine Home Page.
AMATO, A. C. M. A História da prescrição médica. Suplemento Cultural da Disponível em: www.nlm.nih.gov/hmd/index.html.
Revista da APM, (146), Jan./Fev. 2004. WHO named it? Disponível em: www.whonamedit.com/.
AMATO, A. C. M. Avicena. Suplemento Cultural da Revista da APM, (151),
Jul./2004. Sites Indicados
AMATO, A. C. M. Quem foi Asclépio? Suplemento Cultural da Revista da www.historiadelamedicina.org/
APM, Nov./2002. www.revistamedica.8m.com/index.htm/

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