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SUMÁRIO

1 HISTÓRA DA ANATOMIA .......................................................................... 3

2 A ANATOMIA ARTÍSTICA ........................................................................ 15

3 A ANATOMIA NO BRASIL ........................................................................ 33

BIBLIOGRAFIA ............................................................................................... 46

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HISTÓRA DA ANATOMIA

A “Anatomia” tem os seus primeiros relatos deste o início da civilização, a partir


do instante em que o homem passa observar em outro homem e em outros animais,
as várias regiões do corpo das quais eram constituídos (Tavares, 1999; Silvino, 2001).
Ao contrário do que muitos pensam a Anatomia não é uma ciência morta, muito
menos de apenas cadáveres. Anatomia, além de não ser uma ciência morta, é
essencial para o conhecimento, pois é através dela que os profissionais da área da
saúde adquirem conhecimentos dissecando ou observando o corpo humano (Chevrel,
2003).

Fonte: www.obiologo.eco.br

Segundo Didio (1974), a Anatomia Humana é a ciência que estuda as


estruturas do corpo humano sendo considerada como fundamental para as ciências
médicas e para tal utiliza-se como material de ensino e estudo o cadáver humano que,

1 Texto extraído do link: http://www.ibamendes.com/2011/01/um-pouco-da-historia-da-


anatomia.html
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contribui e tem contribuído através dos séculos, com os ensinamentos e
aprendizagem das maravilhas do corpo humano.
Um conceito de Anatomia foi proposto em 1981, pela American Association of
Anatomist: “anatomia é a análise da estrutura biológica, sua correlação com a função
e com as modulações de estrutura em resposta a fatores temporais, genéticos e
ambientais” (Spense, 1991; Dângelo e Fattini, 2003)
A ciência “Anatomia” começou nos primórdios da história humana. O homem
pré-histórico já observava à sua volta a existência de seres diferentes de seu corpo,
os animais. Com isso, passou a gravar nas paredes das cavernas e fazer esculturas
das formas que via. Com isso passou a notar detalhes, que hoje nos permite identificar
as espécies animais descritas (Silvino, 2001).
O termo anatomia deriva do grego anatome (ana = através de; tome = corte)
que significa através do corte.
Dissecação deriva do latim dissecare (dis = separar; secare = cortar), a
Anatomia Humana é uma disciplina ou campo de estudo científico, enquanto
dissecação é uma técnica usada para estudar as estruturas do corpo (Moore, 2001).
Estas representações indicam não somente que a pintura pré-histórica nasceu
há muito tempo, mas que se desenvolveu em ritmo rápido e atingiu admirável grau de
satisfação (Knapp, 2004).
Costa Ferreira (1.915) em sua aula de anatomia transcreve o seguinte trecho
do mesmo Assis Leite: "Um cadáver é o primeiro livro clássico de anatomia. O cadáver
é um mestre mudo, porém eloquente. Este mestre instrui os vivos antes de baixar à
morada dos mortos. Na anatomia estuda-se o homem vivo no homem morto.
A anatomia guia constantemente a mão do cirurgião, indica-lhe o lugar das
operações, apontar-lhe os perigos e os meios de salva-Ios. A anatomia é a base da
medicina e cirurgia; quanto mais esta base é sólida e profunda, mais este edifício é
elevado e majestoso".
Segundo Valladas et al (2004), a arte do Homo sapiens era bastante elaborada,
tanto em termos de realismo quanto de traços artísticos, é o que revela os animais
desenhados nas grutas, os quais tem aparência bastante realista.
O conhecimento anatômico do corpo humano data de quinhentos anos antes
de Cristo no sul da Itália com Alcméon de Crotona, que realizou dissecações em
animais. Pouco tempo depois, um texto clínico da escola hipocrática descobriu a
anatomia do ombro conforme havia sido estudada com a dissecação.
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Aristóteles mencionou as ilustrações anatômicas quando se referiu aos
paradigma, que provavelmente eram figuras baseadas na dissecação animal.
No século III A.C., o estudo da anatomia avançou consideravelmente na
Alexandria.
Muitas descobertas lá realizadas podem ser atribuídas a Herófilo e Erasístrato,
os primeiros que realizaram dissecações humanas de modo sistemático.

Fonte: marceloaviz.blogspot.com.br

A dissecção na área da anatomia humana é o ato de explorar o corpo humano,


ou seja, através de cortes para possibilitar a visualização anatômica dos órgãos e
regiões que existem no corpo humano e assim possibilitar o seu estudo. (MOORE,
2007).
A partir do ano 150 A..C. a dissecação humana foi de novo proibida por razões
éticas e religiosas. O conhecimento anatômico sobre o corpo humano continuou no
mundo helenístico, porém só se conhecia através das dissecações em animais.
A história do uso do cadáver humano retrata que o meio mais antigo, de que se
tem conhecimento, para conservação de cadáveres, é a mumificação ou
embalsamento (Chagas, 2001).
Segundo Melo (1989), este método era praticado pelos egípcios com finalidade
religiosa e não para preparar cadáveres desconhecidos.

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Fonte: cultura.culturamix.com

Acreditava-se que os mortos continuariam vivos no túmulo, porém era uma


graça concedida apenas aos nobres e reis, como pode ser observado pela cabeça
mumificada do Faraó Ramses V. No Egito dos Faraós, a mais de 5.000 anos,
desenvolveu-se esta técnica de embalsamento, permitindo os primeiros estudos
anatômicos das doenças.
Moore (2001) relata que a Anatomia é uma ciência descritiva e
necessariamente requer nomes para as estruturas e os processos do corpo.
Parece que o estudo da anatomia humana recomeçou mais por razões práticas
que intelectuais. A guerra não era um assunto local e se fez necessário dispor de
meios para repatriar os corpos dos mortos em combate.
O embalsamento era suficiente para trajetos curtos, mas as distâncias maiores
como as Cruzadas introduziram a prática de “cocção dos ossos”. A bula pontifica De
sepulturis de Bonifácio VIII (1300), que alguns historiadores acreditaram
equivocadamente proibir a dissecção humana, tentava abolir esta prática.
O motivo mais importante para a dissecação humana, foi o desejo de saber a
causa da morte por razões essencialmente médico-legais, de averiguar o que havia
matado uma pessoa importante ou elucidar a natureza da peste ou outra enfermidade
infecciosa.

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Fonte: www.obiologo.eco.br

Os primeiros cientistas Anatomistas e Médicos foram os egípcios. Após vieram


os Mesopotâmios (Melo, 1989).
A importância do médico que cuidava dos animais era tão grande para os
Mesopotâmios, que o exercício da atividade ganhou destaque até no “código de
Hamurabi”.
O verbo “dissecar” era usado também para descrever a operação cesariana
cada vez mais frequente. A tradição manuscrita do período medieval não se baseou
no mundo natural.
AS ilustrações anteriores eram aceitas e copiadas. Em geral, a capacidade dos
escritores era limitada e ao examinar a realidade natural, introduziram pelo menos
alguns erros tanto de conceito como de técnica. As coisas “eram vistas” tal qual os
antigos e as ilustrações realistas eram consideradas como um curto-circuito do próprio
método de estudo.
Apesar de todo o progresso em relação aos estudos da anatomia humana, a
dissecação de cadáveres humanos não só era proibida pela Igreja e autoridades
governamentais, como era também punido quem fosse apanhado dissecando. Mas a
ciência não podia parar e, movidos pelo ímpeto e desejo de aprender e desmistificar
o proibido em prol da ciência, os anatomistas não se davam por vencidos (Chagas,
2001).

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E, enquanto a autorização não chegava, eles insistiam em dissecar os
cadáveres às escondidas, normalmente em calabouços ou subterrâneos devidamente
escolhidos para este fim.

Fonte: www.ibamendes.com

No passado apenas os cadáveres de criminosos e assassinos enforcados eram


usados nas dissecações. Isto gerou um grave problema que era a quantidade
insuficiente de cadáveres para estudo, resultando com isto o aparecimento dos
chamados “ressuscitadores” que eram pessoas que supriam, com cadáveres
roubados, os famosos médicos e anatomistas da época (Melo, 1989; Chagas, 2001).
A anatomia foi totalmente reformada por Andreas Vesalius, em seu livro “De
humani corporis fabrica” (Gardner, Gray e O’Rahilly, 1978; Melo, 1989; História da
Medicina, 2003; Vesalius, 2003). De acordo com Petry (2000) e Silvino (2001) nesta
época a anatomia deu um grande passo para conquistar definitivamente o seu papel
fundamental como “Ciência Básica”.
Finalmente o cadáver desconhecido não só seria conhecido do público, como
a partir dessa época passaria a ser, depois do professor, a figura mais importante no
ensino da anatomia, sem esquecer do corpo discente (Chagas, 2001).
A anatomia não era uma disciplina independente, mas um auxiliar da cirurgia,
que nessa época era relativamente grosseira e reunia sobre todo conhecer os pontos
apropriados para a sangria.

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Durante todo o tempo que a anatomia ostentou essa qualidade oposta à prática,
as figuras não-realistas e esquemáticas foram suficientes.
O primeiro livro ilustrado com imagens impressas mais do que pintadas foi a
obra de Ulrich Boner Der Edelstein.

Fonte: projetomedicina.com.br

Foi publicada por Albrecht Plister em Banberg depois de 1460 e suas


ilustrações foram algo mais que decorações vulgares. Em 1475, Konrad Megenberg
publicou seu Buch der Natur, que incluía várias gravuras em madeira representando
peixes, pássaros e outros animais, assim como plantas diversas.
Essas figuras, igual a muitas outras pertencentes a livros sobre a natureza e
enciclopédias desse período, estão dentro da tradição manuscrita e são dificilmente
identificáveis.
Dentre os muitos fatores que contribuíram para o desenvolvimento da técnica
ilustrativa no começo do século XVI, dois ocuparam lugar destacado: o primeiro foi o
final da tradição manuscrita consistente em copiar os antigos desenhos e a conversão
da natureza em modelo primário.
Chegou-se ao convencimento de que o mais apropriado para o homem era o
mundo natural e não a posteridade.
O escolasticismo de São Tomás de Aquino havia preparado inadvertidamente
o caminho através da separação entre o mundo natural e o sobrenatural,
prevalecendo a teologia sobre a ciência natural.

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O segundo fator que influiu no desenvolvimento da ilustração científica para o
ensino foi a lenta instauração de melhores técnicas.
No começo os editores, com um critério puramente quantitativo, pensaram que
com a imprensa poderiam fazer grande quantidade de reproduções de modo fácil e
barato. Só mais tarde reconheceram a importância que cada ilustração fosse idêntica
ao original.
A capacidade para repetir exatamente reproduções pictóricas, daquilo que se
observava, constituiu a característica distinta de várias disciplinas científicas, que
descartaram seu apoio anterior à tradição e aceitação de uma metodologia, que foi
descritiva no princípio e experimental mais tarde.
Os primeiros registros de estudo e de ensino da anatomia remontam à Escola
de Alexandria em que, segundo os registros de Galeno, teriam sido realizadas as
primeiras dissecações públicas de animais e corpos humanos.
No entanto, as dissecações para fins de estudo sempre geraram polêmicas, e
pode-se afirmar que foi apenas a partir do século XIV que, na Europa, mais
especificamente na Universidade de Bolonha, elas se tornaram parte do ensino
médico sob os auspícios de Mondino de Luzzi (1270-1326).
Nesse período, por influência do movimento escolástico, os estudos e
investigações em anatomia baseavam-se, sobretudo, na tradução de obras e tratados
anatômicos, sendo a dissecação um método de averiguação de dados preexistentes.
(Singer;1996).
As primeiras ilustrações anatômicas impressas baseiam-se na tradição
manuscrita medieval. O Fasciculus medicinae era uma coleção de textos de autores
contemporâneos destinada aos médicos práticos, que alcançou muitas edições. Na
primeira (1491) utilizou-se a xilografia pela primeira vez, para figuras anatômicas. As
ilustrações representam corpos humanos mostrando os pontos de sangria, e linhas
que unem a figura às explicações impressas nas margens.

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Fonte: www.auladeanatomia.com

As dissecações foram desenhadas de uma forma primitiva e pouco realista. Na


Segunda edição (1493), as posições das figuras são mais naturais. Os textos de
Hieronymous Brunschwig (cerca de 1450-1512) continuaram utilizando ilustrações
descritivas.
O período do Renascimento contribuiu para o avanço da Anatomia Humana.
Leonardo da Vinci (1452 – 1519) traz conhecimentos anatômicos significativos, com
desenhos precisos na visão de um gênio da Anatomia Humana. Há obras que até hoje
são vistas por milhões de pessoas, dentre elas:
A última ceia, Mona Lisa e o Homem Vitruviano. Michelangelo (1495 – 1574)
travou uma batalha saudável com Leonardo da Vinci, pois ambos gostavam de se
provocar nos conhecimentos sobre a Anatomia Humana.
Michelangelo coloca de forma impar seus conhecimentos anatômicos em suas
esculturas, ficou conhecido por colocar enigmas em suas obras, até hoje nunca
desvendados como o teto da Capela Sistina no Vaticano.
Escreveu e desenhou vários ensaios belíssimos sobre a Anatomia Humana e
chegou a pensar em publicar um tratado anatômico voltado para jovens escultores e
pintores, mas não o fez. Andreas Versalius (1514 – 1564) foi um médico belga,
considerado o pai da Medicina Moderna refutou alguns conhecimentos de Galeno e
somando os conhecimentos incontestáveis de Leonardo da Vinci e Michelangelo,
publicou em 1543 sua obra prima “De humani corporis fabrica” o primeiro atlas de
Anatomia Humana que integra texto e ilustrações (Barreto et al, 2004).
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Fonte: www.vermelho.org.br/noticia

Observando a história do conhecimento médico podemos constatar que


existem dois tipos distintos de análise ou intervenção sobre o corpo e que vão resultar
em concepções específicas sobre aquilo que se considera como perfeito e imperfeito
ou normal e patológico: as práticas não-invasivas e as práticas invasivas.
Na antiguidade ocidental predominavam as primeiras, sendo que a
identificação das doenças ocorria através de diagnósticos clínico-filosóficos.
Hipócrates, Aristóteles e Galeno podem ser os representantes deste tipo de saber,
pois considerando os desarranjos do corpo e da alma como fenômenos interligados,
perceberam que não era possível compreender as paixões da lama e as perturbações
do espírito (pathos) sem associá-las aos desequilíbrios e distúrbios, às dores e
doenças do corpo. Somente no Renascimento seriam admitidos, ainda que com certa
prudência e recato, pois a religião antiga impunha o respeito ao cadáver, os
procedimentos de invasão do corpo humano através de estudo de cadáveres, o que
acarretou um atraso incalculável aos estudos anatômicos (CHEREM, 2005).
O capítulo final de uma obra de Johannes Peyligk (1474-1522) consiste numa
breve anatomia do corpo humano como um todo, mas as onze gravuras de madeira
que inclui são algo mais que representações esquemáticas posteriores dos árabes.
Na Margarita philosophica de George Reisch (1467-1525), que é uma enciclopédia de
todas as ciências, forma colocadas algumas inovações nas tradicionais gravuras em
madeira e as vísceras abdominais são representadas de modo realista.
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Além desses textos anatômicos destinados especificamente aos estudantes de
medicina e aos médicos, foram impressas muitas outras páginas com figuras
anatômicas, intituladas não em latim (como todas as obras para médicos), mas sim
em várias línguas vulgares. Houve um grande interesse, por exemplo, na concepção
e na formação do feto humano.
O uso frequente da frase “conhece-te a ti mesmo” fala da orientação filosófica
e essencialmente não médica. A “Dança da Morte” chegou a ser muito popular,
sobretudo nos países de língua germânica, após a Peste Negra e
surpreendentemente, as representações dos esqueletos e da anatomia humana dos
artistas que as desenharam são melhores que as dos anatomistas.
Os artistas renascentistas do século XV se interessavam cada vez mais pelas
formas humanas, e o estudo da anatomia fez parte necessária da formação dos
artistas jovens, sobretudo no norte da Itália. Leonardo da Vinci (1452-1519) foi o
primeiro artista que considerou a anatomia além do ponto de vista meramente
pictórico.
Fez preparações que logo desenhou, das quais são conservadas mais de 750,
e representam o esqueleto, os músculos, os nervos e os vasos.
As ilustrações foram completadas muitas vezes com anotações do tipo
fisiológico. A precisão de Leonardo é maior que a de Vesalio e sua beleza artística
permanece inalterada. Sua valorização correta da curvatura da coluna vertebral ficou
esquecida durante mais de cem anos.
Representou corretamente a posição do fetus in útero e foi o primeiro a
assinalar algumas estruturas anatômicas conhecidas.
Só uns poucos contemporâneos viram seus folhetos que, sem dúvida, não
foram publicados até o final do século passado.
Michelangelo Buonarotti (1475-1564) passou pelo menos vinte anos adquirindo
conhecimentos anatômicos através das dissecações que praticava pessoalmente,
sobretudo no convento de Santo Espírito de Florença.

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Fonte: www.ibamendes.com

Posteriormente expôs a evolução a que esteve sujeito, ao considerar a


anatomia pouco útil para o artista até pensar que encerrava um interesse por si
mesma, ainda que sempre subordinada à arte. Albrecht Dürer (1471-1528) escreveu
obras de matemática, destilação, hidráulica e anatomia.
Seu tratado sobre as proporções do corpo humano foi publicado após sua
morte.
Sua preocupação pela anatomia humana era inteiramente estética, derivando
em último extremo de um seu interesse pelos cânones clássicos, através dos quais
podia adquirir-se a beleza.
Com a importante exceção de Leonardo, cujos desenhos não estiveram ao
alcance dos anatomistas do século XVII, o artista do Renascimento era anatomista só
de maneira secundária.
Ainda foram feitas importantes contribuições na representação realista da
forma humana (como o uso da perspectiva e do sombreado para sugerir profundidade
e tridimensionalidade), e os verdadeiros avanços científicos exigiam a colaboração de
anatomistas profissionais e de artistas.

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Fonte: projetomedicina.com.br

A ANATOMIA ARTÍSTICA2

Fonte: gustavotdiaz.com

O termo Anatomia nasceu do latim, porém o seu estudo se inicia bem antes da
formação do Lácio e dos antigos romanos.

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https://gustavotdiaz.com/2016/04/09/pequeno-historico-da-anatomia-artistica/

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Data do ano 3.000 a.C. na China o aparecimento da dissecação explorativa e
já em papiros egípcios de 3000-2500 a.C. notificam-se dados sobre a anatomia da
cabeça e do cérebro humanos (“Papiro de Edwin Smith”).
Consta que no antigo Egito tenha-se mumificado cerca de 70 milhões de
cadáveres, o que sem dúvida alguma gerou um acúmulo de conhecimentos
anatômicos, embora pouca coisa nos tenha sido transmitida.
No período grego, embora dissecações já fossem realizadas, grande parte teria
se limitado à abertura de corpos de animais; o próprio Aristóteles o teria feito.
Embora registros mencionem em geral o contrário, é de se imaginar que a
Grécia houvesse aglutinado um vasto repertório de Anatomia Humana, dado o
domínio técnico de suas produções, sobretudo no período helenístico, aliado a um
raro nível de elegância formal. Mas esses conhecimentos não teriam, em sua maioria,
chegado até nós.
O primeiro grande momento da história da Anatomia parece ter se dado, de
fato, na Escola Médica do Museu de Alexandria, fundada em 290 a.C. durante a
dinastia Tolemaica. Quando Tolomeo Sóter (conhecido como o “Salvador” e um dos
principais generais de Alexandre, o Grande) assume o reinado do Egito entre 305 e
284 a.C., funda junto à Biblioteca de Alexandria, o Museion – ou “Templo das Musas”,
sediado na Escola Médica, onde se empreenderam diversas dissecações, dando um
importante passo ao estudo da Anatomia Humana.
Ainda por volta de 300 a.C., na Grécia, aparece a figura de Herófilo (nascido
na região onde se situa atualmente a Turquia, 335 a.C.? 280 a.C.), um dos maiores
anatomistas gregos, pioneiro na dissecação de corpos humanos.
Conferindo pela primeira vez no Ocidente uma base concreta à Anatomia,
Herófilo deixou contribuições aos estudos do cérebro, identificando-o como centro do
sistema nervoso e sede da inteligência, e compreendeu a distinção entre nervos
motores e sensitivos.

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Fonte: gustavotdiaz.com

Também deste período data Erasístrato de Chio (310 a.C. 250 a.C.), o primeiro
a afirmar que as veias, à semelhança das artérias, tinham o coração como destino, e
a descrever as válvulas cardíacas.
Após um período de relativa estagnação, aparecem Marino, vivendo em Roma
no tempo de Nero, e Rufo, oriundo da colônia grega de Éfeso, Marino não deixou
escritos, mas seus ensinamentos foram preservados pelo discípulo Claudius
Galeno (Pérgamo, 129 d.C. Roma, 199).
Galeno, além de haver traduzido as obras de Herófilo (boa parte delas
destruídas no incêndio da biblioteca de Alexandria), fora um importante médico grego,
cirurgião oficial dos gladiadores de Marco Aurélio e destacado seguidor da medicina
de Hipócrates (Cós, Grécia, 460 a.C. Larissa, Tessália, 377). Precursor da fisiologia
experimental, legou-nos investigações bastante completas como a organização dos
nervos, veias e artérias, tendo realizado inclusive a vivissecção.
A maioria de suas dissecações, contudo, limitava-se a corpos de animais, em
especial do macaco africano, uma vez que a abertura de cadáveres humanos era
considerada profanação religiosa, rigorosamente proibida por lei.
Mesmo incorrendo em inúmeros equívocos – seja pela profusão de seus
apontamentos, seja pela importância associada à sua figura na corte de Marco
Aurélio, seus escritos transformaram-se em paradigma durante o período histórico

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posterior, constituindo-se efetivamente em dogma para a medicina durante a Idade
Média, juntamente ao Corpus hippocraticum (tratado que a tradição atribui
a Hipócrates), e aos Tópicos de Aristóteles.
Essa cristalização paradigmática medieval paralisou o estudo anatômico por
alguns séculos.
A ditatorial tutela que a igreja Católica exerceu sobre o conhecimento no
período escolástico fomentou explicações divinas à origem das doenças, sendo uma
das maiores causas adversas ao desenvolvimento consciente e sistemático dos
estudos médicos (e das ciências em geral).
À quase total retração no período medieval – quando as dissecações
foram sumariamente proibidas – segue-se o surgimento do estudo anatômico na
Europa renascentista, cujos avanços, entretanto demandaram desconstruções e
reinvenções.
Até então, a concepção clássica (filosófico-religiosa pagã) e a mediação mística
entre o homem e o mundo (está pressuposta pela escolástica) ofereciam todas
coordenadas de interpretação acerca do homem e de sua relação com a morte; e com
o próprio corpo morto.
Apenas no início de 1400 as dissecações voltam a aparecer, tendo alguns
eventos atuado sobremaneira neste retorno: o crescente fortalecimento das
corporações de ofício (ou guildas) medievais – em especial a dos cirurgiões-barbeiros;
as grandes navegações que entraram em contato com novos métodos no tratamento
de doenças; a disponibilidade de recursos para investimentos em técnicas de cura e
a descoberta de terapêuticas originadas a partir da apreensão da organização interna
do corpo – o que estimulou, por fim, estudos mais completos e o início da
especialização da medicina como disciplina autônoma do conhecimento.

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Fonte: gustavotdiaz.com

Esses fatores movem-se dialeticamente no processo de ascensão da burguesia


europeia. O desenvolvimento econômico desta classe associado à sistematização da
medicina criou imediatamente uma enorme demanda por cadáveres, cuja obtenção
foi facilitada com a dissecação pública de condenados à morte – único meio legal de
disponibilização de corpos no período.
Este recurso não supria, porém, a exigência das escolas de Medicina, o que
encetou o tráfico de corpos. A proibição impingida à dissecação e a perseguição
daqueles que o tentavam gerou efeitos verdadeiramente desastrosos.
Um exemplo prototípico da violência suscitada foi quando da fusão entre os
grêmios (ou guildas) dos “barbeiros” e dos “cirurgiões” em 1540, sob o reinado de
Henrique VIII. Embora gerando enorme desenvolvimento à Anatomia, apenas corpos
de condenados à morte por enforcamento eram destinados aos estudos médicos – o
que gerou uma onda de execuções.
Na Inglaterra, notavelmente a abundância de corpos foi produto do afã em se
ampliar os conhecimentos anatômicos: consta que no primeiro ano da fusão referida
entre as guildas, a escola recebeu 4 corpos.
Nos últimos anos do reinado, a média anual de condenados à morte subira para
560 por ano. Relatos históricos afirmam que a dissecação pública como penalidade,
destinada apenas a crimes como assassinato e traição, estendera-se também a
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criminosos comuns. (Para termos ideia de quão longe foi a barbárie envolvendo as
dissecações, já em 1828 se registrou 16 assassinatos com a finalidade de venda de
corpos para uma escola privada em Edinburgh, na Inglaterra).
O espírito empirista reinante na Renascença advindo de uma atitude objetiva
diante da natureza e dos fenômenos – sem dúvida associado à iminente motivação
pelo lucro e necessidade de criação de novos mercados e técnicas – derrubou muitos
dogmas eclesiásticos.
No âmbito da Anatomia médica, e também artística, esta nova atitude
metodológica percebeu e retificou inúmeras incoerências nos escritos de Galeno.
Neste momento, as artes visuais assumiram protagonismo na nova
conformação do mundo, que se reescrevia sob a batuta científica e artística.
Conciliando os interesses científicos e estéticos, os artistas do Renascimento
proporcionaram uma síntese das áreas em produções ainda hoje admiradas.
O corolário desse interesse emergente foi a publicação do tratado De Humani
Corporis Fabrica de Andreas Vesalius (Bruxelas, 1514. Zante, Grécia, 1559), no ano
de 1543, em Basiléia, na Suíça. Com abundantes ilustrações desenvolvidas por
artistas seus contemporâneos, e apresentando um estudo sistemático da Anatomia
Humana, essa publicação superou definitivamente o que até então se conhecia por
Anatomia Humana, estabelecendo as bases da Anatomia moderna.

Fonte: gustavotdiaz.com/2016/04/09

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O ensino anteriormente desenvolvido nas cátedras e teatros anatômicos (cujo
símbolo máximo fora o Teatro Anatômico de Pádua), baseava-se no distanciamento
entre doutores e discípulos, ancorado por uma divisão mais profunda: entre trabalho
manual e intelectual.
O ensino anteriormente desenvolvido nas cátedras e teatros anatômicos (cujo
símbolo máximo fora o Teatro Anatômico de Pádua), baseava-se no distanciamento
entre doutores e discípulos, ancorado por uma divisão mais profunda: entre trabalho
manual e intelectual.
Essa separação manteve a “letra” clássica intacta, perpetuando uma escala
rígida e tradicional de poder. As gravuras realizadas neste período demonstram
claramente esse distanciamento físico entre o orador doutor (ou professor catedrático)
e o cadáver.
Enquanto o primeiro lia em voz alta o tratado de Galeno no púlpito, um cirurgião-
barbeiro dissecava o corpo, e um assistente apontava com um bastão as supostas
estruturas orgânicas recitadas (os cirurgiões eram também barbeiros, ou vice-versa,
pois naquele tempo os profissionais organizavam-se a partir de seus instrumentos de
trabalho – como as ferramentas para ambos os ofícios eram praticamente as mesmas,
o mesmo profissional exercia ambas as funções).

Fonte: gustavotdiaz.com

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Nesse sistema das cátedras, as incoerências eram enormes, porém caladas,
uma vez que o mistério do dogma determinava a “verdade” do livro em relação à
realidade da dissecação.
A revolução impetrada por Andreas Vesalius foi a de eliminar a distância entre
o orador e o corpo, assumindo o papel do cirurgião-barbeiro e realizando ele mesmo
a dissecação enquanto ministrava suas aulas e registrava suas observações.
Uma tela de Michiel Janszen Mierevelt de 1617 é particularmente sintomática
da contradição enunciada. Embora ilustre manifestamente as novas diretrizes
vesalianas indicadas pelo fórceps (ou pinça) na mão do próprio orador catedrático,
mais do que isso, ela apresenta uma noção profunda da incomunicabilidade ainda
presente entre o mundo antigo e uma nova era emergente – a realidade moderna.
Na tela, todas as figuras (à exceção de uma, aparentemente distraída) olham
diretamente para o espectador, ou para o pintor, como se posassem para um retrato
– o que de resto fazem – ao passo que o cadáver, aberto e exposto em primeiro plano,
tem os olhos vendados com um pano.
Estão ali, o cadáver – que se entrega ao cutelo e à ciência do orador, os
estudantes e doutores que um segundo antes deviam estar entretidos na dissecação.
Mas eles interrompem sua atividade; em verdade não estão ali presentes; nada
se comunica na tela.
Esses personagens, incluindo o cadáver, não se comunicam de forma alguma,
como se não quisessem, diante do olhar de um terceiro, demonstrar que estiveram
envolvidos numa atividade ainda carregada da “ignomínia do trabalho manual”.
Fôssemos dar crédito aos olhares de todos (em especial daquele que se
distrai), diríamos que há um “constrangimento” geral com a situação diante de um
espectador intruso. Só não sabemos quem se mostra mais constrangido – se os
viventes, ou o cadáver, com a venda nos olhos.
Outra tela de ordem semelhante, pintada poucos anos depois, manifesta
claramente uma atitude já amadurecida em relação a esse “constrangimento” – que é
o contrangimento da inadequação entre o passado e o presente, entre uma tradição
de distanciamento da morte, de relações prefixadas no exercício do poder; um
desconforto em relação a um novo que não se pode compreender totalmente,
tampouco aceitar.
Esta tela é a famosa Lição de Anatomia do Dr. Tulp (1632) de Rembrandt Van
Rijn (Leyden, Holanda, 1606. Hendrickje, 1669).
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Nela, assim como na tela de Mierevelt, nenhum dos oito personagens
representados miram diretamente o cadáver; mas a atitude deles é a de cirurgiões à
vontade diante de um estudo que lhes parece sobremodo sério e coerente.
Estão compenetrados no que fazem e não se preocupam em olhar para o
observador, ou pintor, que se imiscuiu em sua sessão de estudos (a não ser dois
deles, nos últimos planos, que de fato olham diretamente para o observador; um deles
aparentemente interroga com o cenho aquela entrada inoportuna, segurando um
papel onde se pode ver um desenho esquemático da região do cadáver naquele
momento dissecada – sintomaticamente um braço, junto da nominata dos presentes).
A sombra da cabeça de um dos cavalheiros que assistem a sessão projeta-se
sobre os olhos do cadáver – uma alternativa sofisticada à “venda de pano” nos olhos
do cadáver de Mierevelt. Mas os olhos fechados do cadáver na tela Rembrandt,
mesmo na sombra, permanecem visíveis: aparecem.
O que se apresenta ali são homens à vontade em seu ofício e em seu tempo,
mas inconscientes ainda da vanidade das suas ações e da sua ciência (está só se
dará alguns séculos depois, talvez no vigésimo século, quando os cientistas
perceberem, como ainda o fazem, que a ciência só pode estudar o que já é passado
e morto, que necessita exterminar o presente momento da coisa para torná-la um seu
objeto de estudo – este é um conteúdo subjacente importantíssimo que se pode
depreender da tela de Rembrandt).
Se Rembrandt assimila esta nova postura dos médicos ante seu objeto de
estudo, um sentido de retrocesso, porém, pode ser avaliado na mesma tela.
Durante séculos de fuligem antes da restauração da obra, num canto obscuro
à direita, algo permaneceu oculto: um livro aberto.
Um livro que não está na mão de nenhum dos personagens, um livro que indica
e instrui o estudo em questão, mas que está abandonado para um canto, e não no
centro da composição.
Esta inversão revolucionária em relação às gravuras e à concepção medieval
(cuja tutela se devia aos livros, em especial o Tratado de Galeno) não é, entretanto,
total.
O absolutismo da cultura livresca que perpetuou o dogma nos estudos
anatômicos na Idade Média é aqui indiretamente reafirmado por Rembrandt como o
espectro de um período anterior.

23
Numa época em que Vesalius triunfava gloriosamente, estabelecendo sua
hegemonia nas ciências naturais e nas artes livres, período onde qualquer
constrangimento, inclusive oriundo da esfera oficial, fora superado, a cultura do livro
e da teoria ainda prevalece.
Três dos personagens que estudam o cadáver olham atentamente para aquele
livro no canto inferior da tela, mais preocupados com a teoria do que com o corpo que
se desvenda e se abre a sua frente.
O impressionante é o fato de tratar-se justamente do tratado de Vesalius – este
cientista revolucionário que substituiu a cultura livresca e tutelar da Idade Média pelo
empirismo e pela observação direta, in vivo, da Anatomia.

Fonte: filosofiadodesign.com

O professor que figura na tela (novo representante do orador catedrático),


abandona o púlpito e o livro para se dedicar ele próprio ao trabalho manual da
dissecação; porém seu olhar é absorto, contempla aparentemente os próprios
pensamentos, não olha para o cadáver, como se reproduzisse um discurso
previamente decorado.
Um parêntesis que devemos salientar é em relação a outra obra de Rembrandt,
realizada vinte e quatro anos após a tela supracitada, chamada Lição de Anatomia do
Dr. Deyman (1656), onde o cadáver se apresenta em escorço direto para o
espectador, com a planta dos pés voltada para frente, estando o corpo
propositalmente reclinado para quem o observa.

24
Desta maneira, Rembrandt nos põe diante dos olhos a cavidade abdominal do
cadáver aberta, o crânio recém dissecado que o anatomista Deyman investiga, e a
face inteira do cadáver exposta.
São sintomáticas a exposição deste corpo e a maneira como Rembrandt
compõe e organiza os elementos na tela.
Ao lado do corpo há um cavalheiro que assiste à dissecação segurando com
displicência e visível abandono o que parece ser uma tigela de instrumentos
cirúrgicos, mas que a um olhar mais atento revela-se o osso parietal, quer dizer, o
tampo do crânio do cadáver, que foi serrado.

Fonte: www.sabercultural.com

É um segundo estágio do amadurecimento da atitude científica em relação à


morte, onde não existe medo, nem terror, nem superstições – é o que revela a postura
sem-cerimônia dos anatomistas e a exposição quase gratuita do cadáver que figura
na tela. Interessante notar que Rembrandt recua, entretanto, na exposição do sexo do
morto, recoberto por planejamentos, tal como na primeira tela. O sexo é ainda um tabu
quando o corpo se encontrava já desvendado e devassado pela ciência. Mas trata-se
ainda uma era de trevas.
A luz imprecisa do racionalismo renascentista fora espanada pela
Contrarreforma católica e uma nova tensão (talvez um desdobramento farsesco da

25
tensão anterior entre a Idade Média e o Renascimento), fora instaurada, carregada
das sombras do chiaroscuro característico do período Barroco. Volta-se à imprecisão
do desenho e da anatomia, recorre-se à cor e aos contrastes para criação de cenas
de largo alcance emocional imbuídas de subjetividade, e isolamento, à medida da
catarse (cf. M. M. Caravaggio).
Tudo isso, porém, agrega uma nova atitude em seu âmago, move-se com
naturalidade na aproximação com o cadáver e com o mistério, antes isolado numa
esfera imponderável. (O tom que completa está paleta é a opção de Rembrandt, e de
muitos ouros barrocos, de sempre utilizar em sua produção a indumentária e os
ambientes de seu próprio tempo nas obras em que figuram personagens e cenas do
mundo bíblico – outro sinal de convergência e informalidade diante do mistério).
A sensibilidade de Rembrandt em identificar (talvez não de todo
conscientemente) o distanciamento incômodo, mas, liberal, na atitude dos
anatomistas ante seu objeto de estudo na tela de 1632, expressa-se renovada na tela
de 1656. Nesta última Rembrandt manifesta a percepção de uma nova atitude: a
superação do constrangimento da transição, onde o establishment da revolução
operada por Vesalius (mesmo que abafada pela Contrarreforma) era já completa.
Isso se comprova à evidência quando se percebe que o personagem que
Rembrandt coloca impudentemente diante do cadáver é o próprio espectador – ou,
sob outra perspectiva, o pintor Rembrandt Van Rijn, agora acostumado a frequentar e
participar de uma sessão de dissecação com desembaraço; desembaraço de uma
nova época que o artista sentiu no curso dos seus próprios estudos: uma época fatal
em que o corpo morto, de tabu, transforma-se em objeto de estudo, e cujo próximo
passo, iminente (e quase um prenúncio) é a banalização da morte.
Mas gostaríamos de abrir um paralelo entre Vesalius e Rembrandt e a obra de
dois outros artistas anteriores: os estudos anatômicos de Leonardo da Vinci realizados
entre 1489 e 1510; e o teto da Capela Sistina, de Michelangelo Buonarroti (1508-12).
A obra e a disposição moral destes últimos puderam estabelecer um elo de
possibilidades entre Vesalius e Rembrandt, impulsionando a ciência do primeiro e
possibilitando a arte do segundo.
Aventa-se que a Michelangelo teriam sido originalmente encomendadas as
ilustrações do De Humani Corporis Fabrica; e chegou-se a sugerir também que as
gravuras fossem um plágio de desenhos de da Vinci. Ambas as afirmações, mesmo
que desmentidas, não são, contudo, completamente absurdas. Esses dois artistas
26
estavam por demais engajados no estudo da Anatomia, eram contemporâneos de
Vesalius e foram, talvez, tanto mais longe que ele neste assunto. Dois eventos
barraram às gerações ulteriores essa consciência. Michelangelo fez questão de
destruir seus esboços e estudos preparatórios e ocultou cuidadosamente seus
conhecimentos num sistema codificado.

Fonte: filosofiadodesign.com

Os estudos anatômicos de Da Vinci permaneceram por quase dois séculos


retidos pela Inquisição católica e só vieram à luz no século XVII, quando quase a
totalidade das suas inovadoras descobertas já havia sido realizada por outros
anatomistas dessa época.
Dos estudos de da Vinci o que prevalece, afora a sofisticada beleza artística de
sua apresentação (cabe lembrar que se trata de estudos de caráter científico), é a
“atitude”, a disposição do artista ante do conhecimento.
Sua ousadia prática – exemplificada pela odisseia por que seguramente passou
ao recolher cadáveres e estudá-los sob as condições temerárias da proibição
inquisitória e de insalubridade; e sua ousadia teórica – manifesta pela quebra total do
protocolo clássico, que não referendava jamais a abertura de um corpo, sobretudo na
realização de um estudo dirigido autônoma e solitariamente para fins artísticos.

27
Fonte: filosofiadodesign.com

Da Vinci, assim como Michelangelo, abriu certamente sozinho os seus


cadáveres, trocando os compêndios de Hipócrates, Marino e Rufo traduzidos por
Galeno pelo cutelo do cirurgião-barbeiro.
Esta atitude nova, audaciosa, encorajou o pensamento empírico moderno e
possibilitou que dois séculos mais tarde Rembrandt pudesse retratar, sem cautela e
sem nenhum receio, seu Dr. Tulp empunhando um fórceps, que bem poderia ser um
cutelo.
Da Vinci é, desta forma, uma síntese entre o pensamento clássico e o moderno;
entre o distanciamento ideal/espiritual e o destrinçamento da matéria; entre a letra e
o espírito e, contraditoriamente, entre a arte que revela ao simbolizar e a ciência que
oculta quando busca a sistematização do real.
Quanto a Michelangelo, basta a descoberta feita recentemente por dois
médicos brasileiros (um cirurgião e um patologista), no afresco pintado no teto da
Sistina – descoberta espelhada em toda a obra do escultor, onde abundam
“mensagens subliminares”, imagens ocultas sob a silhueta das indumentárias, das
poses ou dos artefatos dos personagens, pintados ou esculpidos, onde se veem
estruturas anatômicas do corpo humano ocultas.

28
Fonte: artemazeh.blogspot.com.br

A exemplo: a estranha bolsa da sibila Cuméia é uma representação fiel do


pericárdio, da veia aorta e do diafragma, ao passo que ao redor dela
inúmeros putti contorcem-se para evidenciar em seus próprios corpos a região
peitoral; o manto invertido da sibila Líbia é na verdade a cavidade glenóide da
escápula de onde escapa a cabeça do úmero, tanto mais que ela se cerca de anjinhos
que apontam descaradamente para o próprio ombro, enquanto ela mesma se retorce
para mostrar o seu; ou a musculatura da perna da escultura Moisés (1515-16), é na
verdade a musculatura do braço para onde o patriarca aponta, além de outros sinais
evidentes que o indicam. Nossos médicos descobriram enfim a decodificação, cifrada
há 500 anos por Michelangelo para esconder o resultado de suas investigações
anatômicas (BARRETO & OLIVEIRA, 2004).
As evidências levantadas são tantas que não é necessário demonstrarmos
novamente.
Cabe apenas observar que essa descoberta desautoriza análises, e relativiza
outras de inúmeros teóricos que refletiram sobre a obra do artista italiano, entre eles

29
Sigmund Freud, acerca da composição e da função das personagens da Sistina, que
só agora possuem um sentido coerente.
O que daí nos interessa assinalar são as mesmas características apontadas
em relação aos estudos de da Vinci: a mesma ousadia prática e teórica, embora que
a seu modo, de ir ao fundo e encontrar-lhe a origem, a mesma intenção de síntese
entre um passado clássico (inclusive de resgate técnico e estético do ofício escultórico
greco-romano) e a nova ciência empírica da dissecação anatômica, possibilitada por
uma atitude objetiva e revolucionária ante o conhecimento.
É curioso notar a inversão que Michelangelo faz – Deus se espelha na imagem
do homem, e não o inverso, onde o homem é feito segundo a “imagem e semelhança
de Deus”. A inversão parece redundante; mas a redundância se cala quando
entendemos o complexo sistema de referências no qual está codificada a obra do
escultor.
Os versos acima podem ser entendidos como um correlato da Criação do
Homem, um dos nichos centrais da Capela Sistina. Nele, um indolente Adão recém-
criado estende majestosamente a mão esquerda a que um Deus se esforça,
distendido e pressuroso, para alcançar… O quê? Talvez seu filho, humano e real, para
dele receber a vida; não o contrário.
O indício anatômico subliminar nesta imagem, levantado há alguns anos por
um neurologista norte-americano, é que a imagem oculta um corte sagital do crânio,
com minúcias como sulcus singuli (que separa os lobos parietal e temporal), e cuja
silhueta é entrevista de forma extraordinariamente nítida na concha esvoaçante
cercada de querubins onde a figura alegórica de Deus encontra-se.

Fonte: www.quo.es
30
Não é arbitrária esta correlação, onde Deus é associado ao cérebro humano:
representação da inteligência, causa primeira de tudo… Estará o artista inferindo uma
sofisticada relação especular entre imagem e semelhança – Deus é a origem do
Universo assim como a inteligência do homem a origem de sua própria criação? Ou,
numa visão mais cética, estará ele inferindo que Deus é produto da imaginação da
criatura?
As obras abordadas neste pretenso ensaio dizem respeito a artistas
profundamente engajados numa revolução que se operava em suas devidas épocas.
Nenhum deles fora conivente com a atitude geral de seus contemporâneos,
tanto na arte quanto na ciência e souberam buscar no passado o fundamento da
atitude revolucionária, compreendendo que a dialética dos movimentos artísticos se
opera entre avanços e resgates, rupturas e contiguidades.
Michelangelo e Leonardo da Vinci beberam das lições históricas da Grécia e
da Roma antigas, tendo de se confrontar com a Idade Média para desconstruir o que
nela havia de retrógrado e conservador.

Fonte: pt.wikipedia.org

Tampouco Vesalius desprezou os tratados de Galeno: superou neles os


equívocos determinados pelas limitações históricas que lhes deram origem. A nova
Anatomia era, por assim dizer, um elo entre todos eles, resultante de uma nova atitude
diante do conhecimento que revolucionou a forma como a morte e as possibilidades
da ciência passaram a ser compreendidas.

31
Esses artistas não se eximiram dos obstáculos criados pelo senso comum de
sua época; não tiveram receio de buscar no passado as soluções que faltavam ao
engenho presente, e assim deflagraram uma revolução cultural em seu tempo.
Profundamente afinados com seu meio, no entanto atentos ao passado e ao
progresso possível – porém longe das modas, e dogmas; e concentrados
profundamente em suas pesquisas.
Nem é preciso dizer que a revolução operada na Arte desse período era o
triunfo da burguesia moderna, cujos agentes haviam se apropriado do manancial de
cultura disponível. Indicam-nos, porém, hoje, um caminho para uma nova apropriação
e uma nova atitude revolucionária a serviço de uma cultura emancipatória que não se
furte ao engajamento e à ruptura; bem além dos limites do senso comum
contemporâneo, mas corajosamente atenta às posturas revolucionárias, e também
aos seus limites.
Daí até então o estudo da Anatomia progrediu imensamente, tendo em Charles
Darwin (Shropshire, Reino Unido,1809. Down, 1882) um marco deflagrador de sua
importância ao estudo das ciências, uma vez que Darwin baseou a teoria da evolução
das espécies em constatações anatômicas. Isso descortinou um imenso campo de
investigação às Ciências Biológicas fundamentadas na Anatomia.
Hoje, avançadas técnicas facilitam a apreensão da Anatomia como softwares
3D, e a “plastinação”, criada pelo alemão Gunter von Hagens; outras colocam a
possibilidade desse estudo também em corpos vivos, tais como os Raios-X, ultra-som,
ressonância magnética, tomografia computadorizada, cinerradiografia, drogas
radioativas, aparelhos elétricos registradores e a endoscopia para exame de órgãos
cavitários.

32
A ANATOMIA NO BRASIL34

Fonte: www.obiologo.eco.br

Para Gardner et al. (1988) a Anatomia humana “estuda a composição corporal


no âmbito macro e microscópico e para isso, necessita da manipulação de peças
provenientes de cadáveres”.
No Brasil, a Anatomia se iniciou em 1808, com a chegada da família real
portuguesa e a posterior fundação da Primeira Escola de Medicina do Brasil, em
Salvador, Bahia.
Em 18 de fevereiro de 1808, o príncipe regente D. João VI criou a primeira
Escola de Cirurgia no Hospital Real de Salvador, no Terreiro de Jesus. O ensino
médico da Escola de Cirurgia da Bahia foi precário no início; os professores tinham
que pedir “ferros velhos” emprestados para utilizarem como instrumentos cirúrgicos
nas aulas de anatomia. Vamos entender um pouco mais da anatomia no Brasil.

3 Texto adaptado da autora: Natália Contreiras Calazans; 2013.


4 Artigo escrito por: Ana Carolina Biscalquini Talamoni, Claudio Bertolli Filho.
33
Fonte: www.wreducacional.com.br

A anatomia em Portugal e no Brasil nos séculos XVIII e XIX no transcorrer do


século XVIII, a pesquisa e o ensino de anatomia em Portugal apresentavam-se
defasados em relação a outros centros europeus, já que se mostravam, sobretudo,
teóricos, instruídos ainda pelos ensinamentos contidos nos textos de Hipócrates,
Galeno, Rhazes e Avicena, como ocorreu na Itália do século XIV.
Tais iniciativas eram precárias não só por serem raros os especialistas no setor,
o que impunha a contratação de anatomistas franceses e italianos pelas escolas
médicas lusitanas, mas também porque o governo português, de tempos em tempos,
proibia a dissecação de cadáveres humanos para fins de instrução dos alunos de
medicina, recorrendo aos corpos de animais para o estudo da anatomia humana.

Fonte: www5.usp.br

34
A tradição aristotélico-tomista herdada da Idade Média tinha como opositores
os intelectuais lusitanos classificados como “estrangeirados”, isto é, que buscavam
renovar o conhecimento a partir do empirismo e do experimentalismo que vigorava na
prática e no ensino científico na França e na Inglaterra.
Fruto do empenho desse grupo em “modernizar” a cultura portuguesa segundo
as propostas da filosofia iluminista, em 1772, com o apoio do rei dom José I, foram
aprovados os Estatutos da Universidade de Coimbra, que, no referente à formação e
prática da “medicina empírico-racional”, buscou estabelecer pontes entre a “arte de
curar” e o “ofício do cirurgião”, cobrando de todos os médicos conhecimentos
aprofundados da anatomia humana, permitindo, aliás, a dissecação de cadáveres,
estratégia vista como fundamental para o melhor entendimento das doenças e da
realização de cirurgias.
Mesmo contando com oposições que entendiam o ensino de anatomia como
“inútil e desnecessário”, construiu-se um teatro anatômico em substituição às
diminutas salas nas quais se dissecavam mais animais do que cadáveres humanos,
refletindo uma nova postura de relação entre a teoria e a prática no processo de
conhecimento do corpo humano e também do ensino de medicina (Abreu, 2007,
p.150).

Fonte: de.123rf.com

Acredita-se que, por causa das reticências de modernização da medicina


portuguesa, as academias e hospitais localizados em lugares distantes do olhar

35
metropolitano, mais minucioso, burlavam com certa liberdade a legislação vigente,
servindo como possíveis centros de pesquisa e ensino de anatomia. Nos primeiros
anos do século XVIII, Luís Gomes Ferreira, um dos lusitanos que se transferiu para o
Brasil para atuar como cirurgião da capitania das Minas, “realizou dissecação em um
escravo com o intuito de descobrir a causa da morte do cativo” (Abreu, 2007, p.152).
Apesar disso, a carioca Academia de Seletos tem sido indicada como o local
onde foram realizados os primeiros estudos de anatomia, cabendo a primazia ao
cirurgião Maurício da Costa que, em 1752, publicou as primeiras memórias relativas
às questões anatômicas.
No plano do ensino, exemplar mostra-se a trajetória de João Álvares Carneiro
que, emblematizando um novo tempo no ensino de medicina antes de se tornar um
dos mais renomados cirurgiões do seu período, em 1790, quando contava com 14
anos de vida, ingressou como aprendiz na Santa Casa do Rio de Janeiro.
Lá, foi aluno do cirurgião Antônio José Pinto, a quem se atribui o pioneirismo
de lecionar o primeiro curso de anatomia na corte e, provavelmente, em todo o Brasil
(Santos Filho, 1977, p.294). Ainda no final do século XVIII, há notícias de que a
anatomia humana era ensinada no Hospital Militar de Vila Rica. A necessidade de
assistir os soldados impunha a premência do conhecimento dos segredos internos
dos corpos para a proteção da própria Coroa e, por isso, Antonio José Vieira de
Carvalho, cirurgião do Regimento de Cavalaria das Minas Gerais foi convocado para
ministrar “aulas de anatomia” (Aires Neto, 1948, p.78-79).

Fonte: www.revistamilitar

36
A transferência forçada da corte portuguesa para o Brasil, em 1808, ensejou
que, em fevereiro daquele ano, fosse criada a escola médica da Bahia.
Fundada como Escola de Cirurgia do Hospital Militar, a instituição foi
organizada sob a liderança do pernambucano José Ferreira Picanço, o qual fora
discípulo do anatomista Manuel Pereira Teixeira, tendo-se especializado
posteriormente em métodos de ensino de anatomia na Universidade de Montpellier
(Aires Neto, 1948, p.79).

Fonte: www.wreducacional.com.br

Nessa escola, que mais tarde foi renomeada como Faculdade de Medicina da
Bahia, a primeira lente de anatomia foi o português Soares de Castro que, em 1812,
publicou uma série de quatro fascículos sobre osteologia, miologia, angiologia e
nevralgia, os quais contavam com descrições anatômicas. Soares de Castro foi
sucedido no cargo de professor de anatomia pelo inglês Johannes Abbot; ao longo de
trinta anos de docência, Abbot introduziu de vez a prática de dissecação de cadáveres
humanos no ensino médico nacional e fundou o primeiro museu anatômico brasileiro
(Aires Neto, 1948, p.84).
No mês seguinte à fundação da escola médica baiana, dom João VI criou a
escola médica do Hospital Militar do Morro do Castelo, no Rio de Janeiro, indicando
para lente de anatomia Joaquim da Rocha Mazarém, que mais tarde traduziu para o
português vários textos assinados por Bichat e por Antelmo Richeraud. Alguns anos

37
depois, Mazarém foi substituído por Joaquim José Marques, que ocupou a cátedra de
“anatomia teórica e prática” e de “fisiologia, segundo as partes e sistemas da máquina
humana” (Aires Neto, 1948, p.85; Santos Filho, 1991, p.44-45).
Com isso, favoreceu-se o ensino sistemático de anatomia como condição para
a prática médica em geral e a cirurgia em especial. Nesse âmbito, é preciso notar que
as duas escolas médicas brasileiras criadas pela corte portuguesa foram orientadas
pela vertente francesa da medicina, que então priorizava o atendimento do paciente
“à beira do leito”, dando impulso Ana Carolina Biscalquini Talamoni, Claudio Bertolli
Filho 1306 História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro a uma formação
de médicos destinados ao exercício da clínica e auxiliando também na resolução dos
desafios propostos pela saúde pública (Araújo, 1979, p.32).
Em âmbito global, a tendência francesa contrapunha-se à abordagem
anatomoclínica emblematizada pela medicina germânica, fortemente influenciada
pelas pesquisas laboratoriais, e cuja ascendência no Brasil terá como símbolo maior
a Faculdade de Medicina de São Paulo, inaugurada na segunda década do século
XX.

Fonte: www.keyword

No Brasil da segunda metade do Oitocentos, os estudos no campo da anatomia


mostravam se subordinados a outras áreas, especialmente à patologia e à medicina
cirúrgica.
Certamente por isso, em 1854, no decorrer dos debates alimentados pela
reforma curricular das escolas médicas, advogou-se a supressão do ensino de

38
anatomia patológica dos cursos, proposta criticada pela “ala jovem” dos médicos
cariocas (Torres Homem, 1862, p.51).
O próprio Torres Homem buscou introduzir na Gazeta Médica do Rio de
Janeiro, periódico do qual era um dos redatores, notícias sobre a carência de
equipamentos, materiais e funcionários na cadeira de anatomia da escola médica
carioca, além de assinar um artigo no qual o autor se contrapunha a “certos homens,
aliás, ilustrados” que criticavam a continuidade das aulas de anatomia, enfatizando a
importância do ensino de anatomia geral e patológica para os alunos de medicina
(Torres Homem, 1862, p.51-52).

Fonte: www.anm.org.br

Mais do que isso, esse clínico buscou sistematizar os conhecimentos e divulgar


a prática da anatomia patológica, elaborando um compêndio no qual apresentava a
descrição de necropsias e suas possíveis contribuições para o diagnóstico das
doenças (Torres Homem, 1870).
Nesse período, a anatomia, quer a descritiva quer a patológica, só era
reconhecida no contexto da formação do médico em termos restritos, isto é, como
uma “disciplina ponte”, portanto subordinada a outros setores do saber médico.

39
No introito de uma de suas obras, Torres Homem confidenciou estar sendo
caluniado por alguns dos seus pares pelo fato de ser favorável à prática da
necroscopia, que havia sido regulamentada na França nesse mesmo período.
Em seguida, explicou por que se mostrava defensor da realização de autópsias
como estratégia para o ensino de medicina: A quarta parte [do livro] reservei para o
estudo das autópsias, debaixo do ponto de vista clínico, isto é, como fonte de instrução
em medicina prática.

Fonte: www.acidadeon.com

Esforcei-me por dar ao meu livro todo o cunho prático, fugindo, tanto quanto
possível, das abstrações teóricas e das discussões especulativas estranhas à clínica,
e que nada de útil a ela fornecessem (Torres Homem, 1870, p.IX).
Enfim, não havia, no cenário brasileiro, maiores empreendimentos que
visassem à consagração da anatomia enquanto campo disciplinar autônomo, situação
que se iria reproduzir no século XX, especialmente entre os especialistas formados
no Rio de Janeiro e na Bahia, mesmo após terem surgido outros cursos universitários
que faziam uso do conhecimento anatômico.
A nossa realidade aqui no Brasil é bastante distinta, contudo. A ausência de
legislação efetiva a respeito da doação de corpos somada com os obstáculos culturais
e religiosos da nossa população nos põe em paridade com os EUA de dois séculos

40
atrás, no qual somente os corpos não reclamados podiam ser utilizados para
dissecação.
Isso demonstra a nossa dificuldade para obter material cadavérico para o
ensino da Anatomia.

Fonte: nathaliamoncao.wordpress.com

No Brasil, a dissecação raramente é usada como método de ensino em nossas


universidades, nem mesmo no ensino médico.
Na maioria das escolas que possuem cadáveres disponíveis, os alunos
aprendem através de peças previamente dissecadas e utilizadas por outras turmas de
anos anteriores e dos mais diversos cursos da área da saúde. Isso faz com que o
excessivo manuseio do material cadavérico acabe por destruir as estruturas
anatômicas mais delicadas e degradar as peças mais rapidamente, prejudicando o
aprendizado.
O uso dos cadáveres humano como elemento de ensino-aprendizagem na
antiguidade eram bastante restritas e diminutas, no entanto, com o passar dos tempos
e devido à necessidade de se conhecer o corpo humano essas práticas tornaram-se
aceitas.
Ao te curvares com a rígida lâmina de teu bisturi sobre o cadáver
desconhecido, lembra-te que este corpo nasceu do amor de duas almas, cresceu
embalado pela fé e pela esperança daquela que em seu seio o agasalhou. Sorriu e

41
sonhou os mesmos sonhos das crianças e dos jovens. Por certo amou e foi amado,
esperou e acalentou um amanhã feliz e sentiu saudades dos outros que partiram.
Agora jaz na fria lousa, sem que por ele se tivesse derramado uma lágrima sequer,
sem que tivesse uma só prece. Seu nome, só Deus sabe. Mas o destino inexorável
deu-lhe o poder e a grandeza de servir à humanidade. A humanidade que por ele
passou indiferente”. (Rokitansky, 1876).

Fonte: www.medicospace.com

Frente às dificuldades hoje apresentadas, a procura de métodos alternativos


no ensino do corpo humano tem sido incessante. No Brasil existe a lei federal nº
8501/1992, que regulamenta a doação dos cadáveres, mas apesar da lei, a escassez
do mesmo e de peças cadavéricas isoladas e ossos é uma constante nos Institutos
de Ensino.
Segundo NETO(2008) é sabido que no início da história da anatomia no Brasil
não havia uma norma regulamentando a utilização dos cadáveres humano, existindo
apenas uma tradição verbal sem maiores formalidades de utilizar corpos de indigentes
e de mortos não reclamados pelas respectivas famílias. Em 1980, uma comissão
especial, criada a partir da Portaria n. 86 do Ministério da Educação (MEC), formulou
um relatório, com o título “Uso de cadáveres para estudo de Anatomia Humana nas
Escolas de Área de Saúde”.

42
Fonte: www.wreducacional.com.br

Na prática, estes cadáveres eram entregues às escolas da área de saúde para


estudo e ensino de anatomia humana. Este procedimento ocorreu como se fosse a
lei, entretanto, em 30 de novembro de 1992, foi editada a Lei Federal 8.501, que
regulariza a destinação de cadáver não reclamado junto às autoridades públicas, para
fins de ensino e pesquisa e dá outras providências. Até hoje essa práticas são
juridicamente aceitas, desde que estejam regulamentadas e de acordo com as normas
da República Federativa brasileira, pois elas são essenciais para o desenvolvimento
da construção do conhecimento em aulas práticas de anatomia humana.
Junto às autoridades públicas é admitido no Brasil o uso de cadáver não
reclamado para fins de ensino e pesquisa, estando a previsão legal no artigo 2º da Lei
n. 8.501/92. O único requisito para tanto é que o mesmo não seja reclamado dentro
do período de 30 (trinta) dias, em que geralmente os gastos são custeados pela
instituição de ensino interessada. Pela lei em pauta é necessário no mínimo dez
inserções, nos principais meios de comunicação da cidade, com a finalidade de se
encontrar indivíduos interessados em reclamar o pretendido corpo. Após este prazo,
antes ainda de se encaminhar o cadáver para fins de estudo, é necessário que se
mantenha, sob a responsabilidade da autoridade ou instituição responsável, algumas
informações referentes ao mesmo, como: dados relativos às características gerais,
identificação, fotos do corpo, ficha datiloscópica, o resultado da necropsia, quando
efetuada, e outros dados e documentos julgados pertinentes para que ainda possa
haver reconhecimento do corpo pelos familiares, mesmo depois do seu
encaminhamento para a instituição.

43
Fonte: estudenamelhor.loja2.com.br

Quando houver indício de que a morte foi criminosa, é proibido encaminhar o


corpo para fins de estudo. Se a morte resultar de causa não natural, o corpo será,
obrigatoriamente, submetido à necropsia no órgão competente. Cumpridas estas
exigências, o cadáver poderá ser liberado para fins de estudo, sendo claro,
assegurado aos familiares ou representantes legais, a qualquer tempo, ter acesso aos
elementos de que trata a lei (BRASIL, 1992).
No Brasil, apesar das campanhas para doação de corpos ou partes deles para
o ensino e pesquisa científica, o tema é bastante questionável. Vários são os fatores
que influenciam esta concessão, que vão desde a vulnerabilidade do assunto, partindo
do desalento gerado pela morte, cultura dos povos, falta de conhecimento e interesse,
crenças religiosas, as quais são demonstradas ao longo da história. O uso do cadáver
humano a pesar de ser “audacioso” por desafiar o sentimento humano, é
extremamente necessário, portanto devemos sensibilizar a opinião pública mostrando
a necessidade incontornável da utilização do cadáver no ensino e na pesquisa
científica (CHAGAS 2001).
A falta de materiais nos laboratórios de Anatomia Humana é uma constante.
Nesse sentido, diversas técnicas anatômicas são empregadas para conservação
desse material e possuem a finalidade de preservar a forma, cor, aparência,
dimensões e relações dos órgãos e estruturas analisadas. Outras ainda utilizam látex,
gesso (dentes), borracha de silicone, argila, resinas e PVC para a confecção de
moldes (RODRIGUES, 1973; MIRANDA-NETO, 1990).

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Nos dias atuais o ensino da anatomia é realizado nas universidades tanto por
processos de dissecação de cadáveres como de peças cadavéricas formolizadas,
sendo essas práticas consideradas fundamentalmente o alicerce para a construção
do conhecimento em aulas de anatomia humana, pois fixam os conhecimentos
teóricos adquiridos em sala de aula presentes em cursos dentro da área das ciências
da saúde.

Fonte: www.acreaovivo.com

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