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ENSAIOS SÔBRE A HISTÓRIA DOS H OSPITAIS 31

Ensaios sobre a História dos


Hospitais
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A n n ib a l V ie ir a

Sob o título acima serão publicados dado tratar os doentes com carinho, usar roupas
alguns artigos de autoria do ex-chefe do brancas e ter unhas e cabelos aparados. Aos doen­
Gabinete do Diretor do Hospital dos Servi­ tes eram fornecidos vegetais e frutas frescas, remé­
dios e aplicadas massagens. Os médicos indus
dores do Estado. Êstes artigos, vazados em
eram hábeis em cirurgia desconhecendo apenas
linguagem simples, a fim de permitir sua ligaduras. Outro ponto interessante era o com­
mais ampla vulgarização, têm por escopo promisso que assumiam de guardar sigilo das con­
mostrar a evolução dos hospitais, os trata­ fidências recebidas no exercício da profissão.
m entos antigamente dispensados aos doen­ N o Egito, o tratamento era, de preferência,
tes, as razões que têm motivado as espe­ ministrado em casa do paciente e, só quando isso
não se tornava possível, é que êle era levado ao
cializações clínicas, e, finalmente, os requi­
Templo de Saturno, onde os remédios consistiam
sitos que o hospital moderno deve satisfa­ em fé e orações.
zer para se enquadrar dentro dos princípios
Na antiga Roma, os templos também foram
básicos do American College of Surgeons. usados como hospitais. A sugestão mental era lar­
gamente empregada como terapia, sendo usada a
1. A N T E S D A E R A C R IS T Ã cirurgia como recurso extremo. Em cada santuá­
rio existia um altar sagrado onde o paciente, ves­
lE S D E o s primórdios do mundo, a solidarie- tido de branco, fazia oferendas e preces. Se obti­
dade humana se traduziu pela solicitude do nha a cura, era ela atribuída a milagre ou visita­
homem em prestar assistência a seus semelhantes, ção divina; em caso contrário, dizia-se que o doente
quer abrigando-os das intempéries, quer indicando- não tinha bastante pureza e era indigno de conti­
lhes remédios empíricos para suas enfermidades. nuar vivendo.
O aperfeiçoamento moral do indivíduo e a noção Os templos gregos é que foram, realmente,
de família e lar, que logo surgiu e tomou vulto, os precursores dos modernos hospitais, pelo menos
obrigaram o homem a procurar meios de, embora no que se refere ao abrigo de doentes. Um dêsses
prestando ou recebendo assistência para males cor- santuários, dedicado a Esculápio, deus grego da
póreos, não só evitasse sua família da proximidade medicina, diz-se ter existido 1134 anos antes da
de portadores de moléstias repugnantes, mas, igual­ era cristã. No templo-hospital, existente em Epi-
mente, se acautelasse contra os aventureiros ines- dauro, havia salas para leitura e quartos para
crupulosos que se prevaleciam da sua condição de visitantes, médicos, enfermeiros e sacerdotes. N g&-
doente, para saquear as propriedades, na primeira se templo, a história clínica dos pacientes era re­
oportunidade que se oferecesse. gistrada em suas colunas, constituindo tais regis­
Foram assim os homens conduzidos a destinar tros os primeiros arquivos médicos de que tem
abrigos isolados aos doentes, onde repousavam, conhecimento nossa civilização.
eram alimentados e recebiam os tratamentos ao Um dos templos gregos mais procurados pe­
alcance dos hospedeiros. los doentes foi o de K ó s . Nesse templo nasceu o
As referências mais remotas conhecidas sóbre ilustre Hipócrates, no ano 460 a. C ., onde se tor­
a existência de hospitais pertencem às civilizações nou médico e sacerdote. Êsse notável homem es­
Indu e E gípcia. Muitos séculos antes da era cris­ tabeleceu teorias médicas que têm assombrosa se­
tã, a humanidade já utilizava hospitais para abrigo melhança com as de h oje. Empregou êle os prin­
de aleijados, pobres, mulheres grávidas e doentes. cípios da percussão e auscultação, escreveu sóbre
Esta prática foi iniciada por Buda e seu filho fraturas, praticou numerosas intervenções cirúrgi­
U patiso. cas, descreveu, com o entidades mórbidas distintas,
Interessante é notar que, naquele tempo, já a epilepsia, a tuberculose, a malária e as úlceras.
ao pessoal em serviço nos hospitais era recomen­ E o que mais surpreende ainda são as anotações
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Casa do Trem. Ao fundo, o outeirinho de Sta. Catarina, onde Braz Cubas construiu a Santa Casa de Santos
( Quadro de Benedito Calixto)

clínicas que êsse extraordinário homem mantinha Os jesuítas expandiram-se por tôdas as pro­
sôbre a maioria de seus pacientes, anotações que, víncias, recolhendo, do convívio com os aborígi­
em alguns casos, podem ser comparadas com as nes, conhecimentos da flora brasílea e indicações
em uso nos hospitais hodiernos. a respeito de suas virtudes terapêuticas. Em troca,
Antes da era cristã, os hospitais eram templos portadores de rudimentares conhecimentos dos
dedicados aos deuses da medicina, onde o trata­ meios médicos europeus, foram divulgando, pelos
mento dos doentes se fazia acompanhar de rituais núcleos coloniais nascentes, os remédios, a higiene
religiosos, magia e misticismo. Após o apareci­ e a cirurgia. Por outro lado, a imigração africana
mento de Jesus Cristo, que intensificou e desper­ trazia-nos o empirismo, a magia e os bruxedos das
tou os sentimentos de amor e caridade, foi dado superstições feiticistas. Assim, o empirismo dos
novo impulso para estabelecimento de hospitais, jesuítas, a arte dos pajés e o feiticismo dos africa­
que passaram a fazer parte integrante das institui­ nos formaram os três elementos que, caldeando-se
ções religiosas, algumas das quais, com o a dos na retorta de nossa nascente medicina, fizeram
Beneditinos, usaram o seguinte lema básico em surgir o curandeiro, que foi, no Brasil, o primeiro
suas atividades: “ Iníirmarum cura ante omnia et prático das artes médicas.
super omnia adhibenda est” . Pouco a pouco, os principais homens residen­
tes no Brasil sentiram a necessidade de auxiliar
2. N A S A M É R IC A S os religiosos na nobre missão de cuidar da alma e
do corpo, e, por isso, organizaram-se em irmanda-
A saúde dos que demandavam a Terra do des, cujo objetivo principal era a prestação de
Brasil era bastante comprometida pela longa via­ socorros corporais aos necessitados. A essas confra­
gem, sujeita às calmarias e suas desagradáveis con­ rias de misericórdia couberam a criação e manu­
seqüências. Soldados, tripulantes e passageiros de­ tenção de nossos primeiros hospitais. Os irmãos
sembarcavam, magros, doentes, reclamando repou­ dessas confrarias assumiam compromissos, que de­
so e alimentação. finiam os fins da irmandade.
Para fazer face a essas emergências, foram Como exemplo, transcrevemos o Capítulo I,
improvisadas pelos jesuítas as primeiras enferma­ do Compromisso de 1551, dos arquivos da Santa
rias que, também, atendendo aos moradores locais, Casa de Santos:
prestavam abnegada e proveitosa assistência aos “ O Fundam ento pois desta Santa confraria e Irm an­
enferm os. dade he cum prir as obras de M izericordia he necessário
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saber as dittas obras quaes são : quatorze, sete p or aliás


sete espirituaes e sete corporaes, as sete espirituaes são as
seguintes :
“ A prim eyra ensinar os Sim ples, a segunda dar b om
conselho a quem pede, a terceyra castigar os que errão, a
quarta consolar os Penitentes desconsolados., a quinta per­
doar a quem nos criou, a sexta sofrer injurias fcom paciên­
cia, a setima lhe rogar pelos vivos e pelos m o r to s .
“ As sete corporaes são as seguintes :
“ A prim eyra he rem ir os Captivos e vizitar os prezos,
a segunda curar os enferm os, a terceyra cobrir os nus, a
quarta dar d e com er aos fam intos, a quinta dar de beber
a quem tem sede. sexta dar pousada aos Peregrinos, a
sétim a he enterrar aos finados, as quaes obras de M izeri-
cordia se (cumpre quanto for p o s s iv e l.”

Em 1524, Fernão Cortez fundou no M éxico


o Hospital Jesus, primeiro edificado no continente
americano e, pouco depois, em 1543, Braz Cubas
fundava o Hospital de Todos os Santos, na Capi­
tania de São Vicente, que foi o segundo no conti­
nente, o primeiro na América do Sul, sendo, atual­
mente, o mais antigo das Américas.
Bra:z Cubas, êsse notável homem, de largas
visões, ao declarar inâugurada a “Casa de Deus
para os homens — Porta aberta ao mar” , traçou
as finalidades daquela mansão de caridade “onde
todos, absolutamente todos, sem distinção de na­
cionalidade, côr, credo, classe, que careçam de bál­
samo para suas dores, serão recebidos, com alegria,
neste sítio de cura” .

Braz Cubas, o fundador da Santa Casa de Santos, o primeiro


hospital do Brasil

Seguiu-se, à Santa Casa de Santos, o Hospi­


tal da Misericórdia da Bahia, fundado em 1549,
no Governo de Tomé de Souza.
O Hospital da Misericórdia dò R io de Ja­
neiro foi fundado, por influência de Anchieta, em
1582, quando aportou nesta Capital a armada do
almirante castelhano D iogo Flores Valdez, com
muitos soldados doentes. Sabe-se, entretanto, que
Mem de Sá edificou algumas igrejas com sua casa
de misericórdia e hospital e admite-se, mesmo,
que esta vinha funcionando desde 1570.
E os hospitais da Misericórdia do Espírito
Santo (1 5 5 1 ); de Sergipe (século X V I ) ; de Ita-
maracá (1 6 1 1 ); da Paraíba (1 7 0 1 ); de Olinda
(1 5 6 0 ); de São Paulo (1 7 1 4 ); de São Luiz do
Maranhão (1 6 5 7 ); de Recife (1 6 9 1 ); de Ouro
Prêto (1 7 3 8 ); de Belém do Pará (1 7 8 7 ); de
Campos (século X V I I I ); de São João Del Rei
(1 7 8 3 ); todos êles lutando com dificuldades
mas, contando sempre com homens de boa von­
tade, foram vencendo as intempéries e muitos dê-
les, até hoje, sobrevivem, prestando assistência aos
que sofrem.
“ Misericórdia” , tela de Bouguereau (1 8 2 5 -1 9 0 5 ) restaurada
por Benedito Calixto (1 8 8 7 ) e que se encontra no teto do Com o correr dos anos a necessidade de hos­
Consistório da Santa Casa de Santos pitais se tornava mais imperiosa não sendo sufi­
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Vista da moderna Santa Casa de Misericórdia de Santos — São Paulo — Fachada do edifício da esplanada do
Jabaquara

cientes as acomodações existentes, de natureza pú­ pital dos Servidores do Estado, planejado em 1934
blica, que ainda obedeciam às diretrizes traçadas e iniciada a construção em maio de 1937, empreen­
por Braz Cubas, em 1543. Tal situação motivou dimentos êsses do Governo do Sr. Getulio Var­
a criação de hospitais fechados, destinados a de­ gas.
terminados grupos sociais, surgindo, assim, os hos­ Trataremos em outro artigo do seguinte as­
pitais militares, os privativos de òrdens religiosas, sunto : Matéria Médica Antiga e Curiosa — Espe­
os de classes trabalhadoras e, finalmente, o Hos­ cializações Médicas.

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