Você está na página 1de 100

Neuroanatomia

Autor: Prof. Cassio Marcos Vilicev


Colaboradoras: Profa. Roberta Pasqualucci Ronca
Profa. Laura Cristina da Cruz Dominciano
Professor conteudista: Cassio Marcos Vilicev

Cassio Marcos Vilicev é graduado em Educação Física pela Universidade de Mogi das Cruzes e em Fisioterapia pela
Universidade Bandeirante de São Paulo. É doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia
da Universidade de São Paulo e mestre em Ciências pelo Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São
Paulo. Possui especialização em Educação a Distância pela UNIP e em Didática do Ensino Superior pela Universidade
Sant’Anna (1999). Atualmente, cursa Formação Pedagógica em História pela UNIP (EaD).

Foi professor de Educação Física em escolas e clubes desportivos de São Paulo e no curso de graduação em
Educação Física e Enfermagem do Centro Universitário Santa Rita e das disciplinas Anatomia Humana, Cinesiologia
e Semiologia na UNIP. Atualmente, é professor titular da UNIP nos cursos presenciais de Fisioterapia, Enfermagem,
Nutrição, Farmácia, Biomedicina e Educação Física na modalidade presencial, de Educação Física, Fisioterapia,
Enfermagem, Nutrição, Farmácia e Biomedicina na modalidade EaD e de pós‑graduação.

Foi consultor na elaboração de questões para o Serviço Nacional do Transporte (Sest) e o Serviço Nacional de
Aprendizagem do Transporte (Senat), de Educação Física, junto à empresa EGaion.

Tem publicado vários trabalhos em diversas áreas das ciências biomédicas, como Anatomia dos Sistemas: Educação
Física; Anatomia dos Sistemas: Enfermagem; Anatomia dos Sistemas: Educação Física e Fisioterapia; Anatomia do
Aparelho Locomotor: Fisioterapia; Anatomia Básica dos Sistemas: Estética e Cosmética; e Anatomia Humana: Farmácia
e Biomedicina.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

V586n Vilicev, Cassio Marcos.

Neuroanatomia / Cassio Marcos Vilicev. – São Paulo: Editora


Sol, 2020.

192 p., il.

Nota: este volume está publicado nos Cadernos de Estudos e


Pesquisas da UNIP, Série Didática, ISSN 1517-9230.

1. Sistema nervoso. 2. Tecido nervoso. 3. Neuroanatomia.


I. Título.

CDU 611.8

U504.18 – 20

© Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou
quaisquer meios (eletrônico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem
permissão escrita da Universidade Paulista.
Prof. Dr. João Carlos Di Genio
Reitor

Prof. Fábio Romeu de Carvalho


Vice-Reitor de Planejamento, Administração e Finanças

Profa. Melânia Dalla Torre


Vice-Reitora de Unidades Universitárias

Prof. Dr. Yugo Okida


Vice-Reitor de Pós-Graduação e Pesquisa

Profa. Dra. Marília Ancona-Lopez


Vice-Reitora de Graduação

Unip Interativa – EaD

Profa. Elisabete Brihy


Prof. Marcelo Souza
Prof. Dr. Luiz Felipe Scabar
Prof. Ivan Daliberto Frugoli

Material Didático – EaD

Comissão editorial:
Dra. Angélica L. Carlini (UNIP)
Dra. Divane Alves da Silva (UNIP)
Dr. Ivan Dias da Motta (CESUMAR)
Dra. Kátia Mosorov Alonso (UFMT)
Dra. Valéria de Carvalho (UNIP)

Apoio:
Profa. Cláudia Regina Baptista – EaD
Profa. Betisa Malaman – Comissão de Qualificação e Avaliação de Cursos

Projeto gráfico:
Prof. Alexandre Ponzetto

Revisão:
Ana Fazzio
Juliana Muscovick
Sumário
Neuroanatomia

APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................7
INTRODUÇÃO............................................................................................................................................................7

Unidade I
1 ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA NERVOSO.................................................................................................. 12
1.1 As origens da neuroanatomia.......................................................................................................... 13
2 INTRODUÇÃO À TERMINOLOGIA DA NEUROANATOMIA.................................................................. 78
3 DIVISÃO E PAPÉIS DO SN.............................................................................................................................. 80
3.1 Divisão do SN com base nos critérios anatômicos.................................................................. 81
3.2 Divisão do SN do ponto de vista funcional................................................................................ 85
3.3 Divisão do SN com base na segmentação ou metameria.................................................... 86
3.4 Papéis do SN............................................................................................................................................ 86
4 O TECIDO NERVOSO........................................................................................................................................ 87
4.1 Visão geral dos neurônios.................................................................................................................. 88
4.2 Classificação dos neurônios.............................................................................................................. 90
4.3 Sinapses..................................................................................................................................................... 91
4.4 Arco reflexo.............................................................................................................................................. 91
4.5 Neurogênese no SNC........................................................................................................................... 93
4.6 Lesão e reparo no SNP........................................................................................................................ 93
4.7 Neuroglias................................................................................................................................................ 94
4.8 Neuroglias no SNC................................................................................................................................ 94
4.9 Neuroglias no SNP................................................................................................................................ 96

Unidade II
5 MORFOGÊNESE DO SN.................................................................................................................................101
5.1 Da fertilização até a nidação..........................................................................................................104
5.2 Folhetos embrionários.......................................................................................................................106
5.3 Formação do SN...................................................................................................................................107
6 ENCÉFALO E MEDULA ESPINAL................................................................................................................110
6.1 Anatomia da medula espinal..........................................................................................................110
6.2 Anatomia do bulbo.............................................................................................................................115
6.3 Anatomia da ponte.............................................................................................................................118
6.4 Anatomia do mesencéfalo...............................................................................................................119
6.5 Anatomia do diencéfalo...................................................................................................................122
6.5.1 O tálamo................................................................................................................................................... 122
6.5.2 O hipotálamo.......................................................................................................................................... 125
6.5.3 O epitálamo..............................................................................................................................................131
6.5.4 O subtálamo............................................................................................................................................ 132
6.6 Anatomia do telencéfalo..................................................................................................................133
6.6.1 Lobos do telencéfalo........................................................................................................................... 134
6.6.2 Os núcleos da base............................................................................................................................... 137
6.6.3 As áreas corticais.................................................................................................................................. 138
6.6.4 O mapa citoarquitetônico do córtex cerebral........................................................................... 139
6.6.5 O homúnculo de Penfield...................................................................................................................141
6.7 Anatomia do cerebelo.......................................................................................................................142
6.8 O sistema ventricular.........................................................................................................................144
6.9 Barreiras encefálicas..........................................................................................................................145
6.10 A nutrição sanguínea do encéfalo.............................................................................................145
7 SISTEMA NERVOSO AUTÔNOMO.............................................................................................................147
7.1 As diferenças anatômicas, fisiológicas e farmacológicas relevantes entre
as partes simpática e parassimpática do SNA................................................................................147
7.1.1 Diferenças anatômicas....................................................................................................................... 148
7.1.2 Diferenças fisiológicas........................................................................................................................ 148
7.1.3 Diferenças farmacológicas................................................................................................................ 150
7.2 Papéis do SNA.......................................................................................................................................151
7.3 Reações do SNA...................................................................................................................................152
7.4 Sistema nervoso entérico.................................................................................................................154
8 SISTEMA NERVOSO PERIFÉRICO...............................................................................................................155
8.1 Os nervos periféricos..........................................................................................................................156
8.2 Os gânglios.............................................................................................................................................156
8.3 As terminações nervosas..................................................................................................................157
APRESENTAÇÃO

Caro aluno,

Este livro-texto tem como objetivo servir de base e recurso aos alunos que buscam carreiras
relacionadas à área da saúde, entre elas enfermagem, nutrição, fisioterapia e educação física. O foco
da anatomia humana é favorecer os conhecimentos aplicados das estruturas anatômicas do organismo
humano e as noções sobre as bases para aplicação de outras disciplinas básicas. Aqui são apresentados
conhecimentos práticos que possibilitam aos alunos o uso de fatos concernentes às circunstâncias reais
que eles poderão se deparar na profissão que escolherem.

Estudaremos a anatomia humana, focando o sistema nervoso, momento em que serão vistos os
órgãos que são compostos por tecido nervoso, como o encéfalo, a medula espinal e os nervos, destacando
os neurônios, as células da glia e as vias aferentes e eferentes de condução do impulso nervoso e
suas terminações nervosas. Além disso, aprenderemos as divisões anatômicas do sistema nervoso
a divisão fisiológica.

Do ponto de vista anatômico, veremos os sistema nervoso central e o sistema nervoso periférico,
enfatizando as características morfofuncionais de cada estrutura.

Do ponto de vista fisiológico, compreenderemos as divisões somática e visceral. A integração


anatômica e fisiológica desse sistema é de suma importância para entendermos o funcionamento do
sistema nervoso.

A revisão terminológica, relevante em um livro-texto desta natureza, que abrange a versão dos
epônimos mais utilizados na clínica médica, está resguardada tecnicamente pela terminologia anatômica.
Há, ainda, notas explicativas com termos e expressões definidos, a fim de facilitar a compreensão do
texto, direcionadas também aos leigos ainda não familiarizados com a terminologia da área.

Quando um paciente é avaliado por um profissional da área de saúde, ele carece de conhecimento
básico de anatomia humana para elucidar suas observações; é por meio dela que se descobre a
linguagem científica básica que conduzirá o profissional ao longo de toda a sua carreira profissional e
que possibilitará o diálogo com seus colegas de uma equipe multidisciplinar.

INTRODUÇÃO

Não são tão-só as estrelas no universo que fascinam o homem com o seu
impressionante número. Em um outro universo, o nosso universo biológico
interno, uma gigantesca “galáxia” com centenas de milhões de pequenas
células nervosas que formam o cérebro e o sistema nervoso comunicam-se
umas com as outras através de pulsos eletroquímicos para produzir
atividades muito especiais: nossos pensamentos, sentimentos, dor, emoções,
sonhos, movimentos, e muitas outras funções mentais e físicas, sem as quais
não seria possível expressarmos toda a nossa riqueza interna e nem perceber
7
o nosso mundo externo, como o som, cheiro, sabor, e também luz e brilho,
inclusive o das estrelas (RELVAS, 2008, p. 21).

Durante milhares de anos de história os seres humanos sofreram grandes modificações em todo o
corpo, como no crânio, já que o esqueleto do Australopithecus e do Homo sapiens diferem em relação
ao tamanho do cérebro e à capacidade craniana. O cérebro é um elemento que diferencia a espécie
humana das demais, responsável por regulagens relevantes no funcionamento do organismo, que com
o passar dos milênios ficaram cada vez mais claras.

Os egípcios já reconheciam os danos no sistema nervoso central e acreditavam que o cérebro era
a sede da alma e da mente humana. Eles guardavam as vísceras e descartavam o cérebro dos mortos,
pois acreditavam que ele não tinha utilidade; já os assírios consideravam o fígado como o centro do
pensamento; Aristóteles percebia o cérebro como um resfriamento do corpo.

Demócrito, Diógenes, Platão e Teófrastro acreditavam que o cérebro estava no comando das
atividades corporais. Hipócrates acreditava no cérebro como sede da mente e iniciou os estudos para a
divisão do cérebro em dois hemisférios, onde se encontravam os papéis biológicos e os da mente.

Descartes relatou que a capacidade do ser humano estava fora do cérebro, na mente. Darwin trouxe
a explicação sobre o comportamento racional do ser humano como resultado do funcionamento do
cérebro e do sistema nervoso e não faz menção à mente.

Com exceção da última década do século XIX, a ciência do cérebro neste período foi dominada por
médicos como Broca, Wernicke, Fritsch e Brodmann. Eles e outros começaram o processo de localização
funcional do cérebro. Pavlov uniu a psique ao comportamento e aprendeu com o desenvolvimento do
conceito de condicionamento reflexo, vastamente utilizado na neurociência hoje.

Sherrington postulou a comunicação dos neurônios por meio da sinapse em bases teóricas. Isso
acabou por ser uma característica essencial do sistema nervoso que, no entanto, foi evidenciado
incontestável apenas décadas depois com o auxílio do microscópio eletrônico.

O século XX assistiu a um crescimento exponencial dos estudos sobre o sistema nervoso por meio de
um esforço colaborativo. Por conseguinte, nomes individuais, não importa quão consideráveis, davam
progressivamente menos justiça a todos aqueles que colaboravam para os progressos relevantes nos
trabalhos científicos.

Golgi compartilhou o Prêmio Nobel de 1906 com Ramón y Cajal, dois protagonistas do grande
debate sobre organização celular versus organização reticular do cérebro. Em 1915, depois de estudos
realizados em campos russos de prisioneiros de guerra, Bárány recebeu o Prêmio Nobel por seus
estudos da fisiologia e patologia do sistema vestibular. Dale e Loewi compartilharam o prêmio em
1936 pelos estudos sobre os neurotransmissores.

O Prêmio Nobel a Hubel, Wiesel e Sperry, em 1981, marcou a neurociência em direção a um nível de
sistema de compreensão do cérebro, permanecendo na fronteira da neurociência atual. Hubel e Wiesel
8
sugeriram um modelo hierárquico para a identificação de temas visuais complexos. Sperry foi premiado
por seu trabalho em especialização lateralizada do papel cerebral.

Progressos na compreensão do sistema nervoso de mamíferos foram reconhecidos pelo Prêmio


Nobel de 2014 a O’Keefe e os Mosers, sublinhando a crescente atenção da comunidade da neurociência
nas abordagens em nível de sistema e de rede.

Hoje, já se compreende a integração e dinamismo entre ser humano e cérebro, que constitui um
sistema funcional de relação do ser na ação para aprender, interagir e relacionar-se com o meio e com
o outro.

9
NEUROANATOMIA

Unidade I
Você̂ está dirigindo pela autoestrada e ouve um forte ruído à sua esquerda. Prontamente desvia
para a direita. Matheus deixa uma anotação na mesa da cozinha: “Vejo você mais tarde. Fique com
tudo pronto às 19 horas” – você sabe que “tudo pronto” é o jantar para os convidados. Você está
dormitando, porém logo acorda e imediatamente o seu bebê começa a choramingar. O que tais fatos
têm em comum? Eles são exemplos diários do funcionamento de seu sistema nervoso (SN), que traz
quase que permanentemente suas células corporais em atividade.

O SN é o sistema regente de controle e comunicação do organismo. Todo pensamento, ato e emoção


refletem a sua atividade. Suas células se comunicam por sinais elétricos e químicos, os quais são velozes
e específicos, geralmente promovendo respostas instantaneamente.

Com somente 2 quilogramas de peso, cerca de 3% da massa corporal total, o SN é um dos menores,
todavia mais complexos, dos 12 sistemas corporais. Essa rede de bilhões de neurônios e um número
ainda maior de células da neuroglia está organizada em duas subdivisões principais: o sistema nervoso
central (SNC) e o sistema nervoso periférico (SNP).

Encéfalo

Medula espinal

Nervos espinais

Figura 1 – SNC e SNP

Observação

Os neurônios são células especializadas para a condução e a transmissão


de sinais elétricos no SN. Já as células da neuroglia ajudam os neurônios a
realizarem seus papéis – os astrócitos e os oligodendrócitos, por exemplo
– no SNC, bem como as células de Schwann e as células satélites no SNP.
11
Unidade I

Lembrete

O SNC corresponde ao encéfalo e à medula espinal dos vertebrados, e o


SNP corresponde aos neurônios, às células da neuroglia, aos gânglios e aos
nervos cranianos e espinais que se situam fora do SNC.

Conquanto seja muitas vezes comparado a um computador, o SN é bem mais complexo e mutável
do que qualquer dispositivo eletrônico. Ainda assim, como em um computador, o veloz fluxo de
dados e a alta atividade de processamento dependem de atividade elétrica. Porém, diferentemente
do computador, partes do cérebro apresentam a capacidade de reorganizar as conexões elétricas
anteriormente estabelecidas conforme a chegada de novos dados, de tal modo que compõem parte do
processo de aprendizagem.

Em conjunto com os órgãos endócrinos, o SN controla e adequa as atividades de outros sistemas.


Esses dois sistemas partilham relevantes características estruturais e funcionais. Ambos dependem
de alguma maneira de comunicação química com tecidos e órgãos-alvo, e habitualmente agem de
maneira complementar.

Assim, o SN normalmente age provendo ligeiras e sucintas respostas a estímulos, alterando


provisoriamente as atividades de outros sistemas orgânicos. A resposta pode ser praticamente
imediata, ou seja, em poucos milissegundos, e os fins esvaecem logo após interromper a
atividade nervosa. Em compensação, as respostas endócrinas caracteristicamente possuem
desenvolvimento mais brando do que as do SN, porém comumente persistem mais tempo, ou
seja, horas, dias ou anos. Os órgãos endócrinos modulam a atividade metabólica dos demais
sistemas em resposta à disponibilidade de nutrientes e à demanda energética. Eles também
coordenam processos ininterruptos por longos períodos, isto é, de meses a anos, como o
crescimento e o desenvolvimento.

Lembrete

Os órgãos endócrinos são responsáveis pela produção de hormônios,


lançados diretamente na corrente sanguínea, atingindo determinados
tecidos-alvo.

1 ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA NERVOSO

A neuroanatomia denota o estudo do SN. Ela apresenta o nome de sistema porque é composta
por um tecido fundamental que é o tecido nervoso, o qual, por sua vez, é composto de células
nervosas designadas de neurônios. Os neurônios, portanto, são as unidades morfofuncionais
desse sistema.

12
NEUROANATOMIA

1.1 As origens da neuroanatomia

Conceberemos qual poderia ter sido um dos primeiros instrumentos dos homens das cavernas
para observar o sistema neural central, a “inauguração da neuroanatomia” com outro nome.
Os homens das cavernas, quiçá, montaram um “machado” com uma extremidade distal esférica
e uma extremidade proximal cilíndrica para empunhá-lo e erguê-lo. Ao abaixá-lo com força
sobre o cume da cabeça de algum desafeto, abria-lhe o crânio mais como arma do que como
uma ferramenta cirúrgica. Prontamente, vieram muitos séculos antes dos instrumentos mais
adequados, como o trépano, uma técnica cirúrgica na qual “buracos” foram efetuados no crânio
do indivíduo para abrandar a pressão intracraniana determinada por traumatismo craniano, de
tal modo que essa técnica tivesse sido realizada para abrir os crânios com finalidades mais
nobres, ou seja, as terapêuticas, contribuindo assim para o alívio e a sobrevivência dos indivíduos,
conforme ilustra a figura seguir.

Figura 2 – Trepanação

Os egípcios desenvolveram informações aprofundadas de anatomia e fisiologia. Entretanto,


não consideravam o cérebro relevante. A primeira citação do cérebro designadamente como órgão
ocorreu nos papiros do antigo Egito. Os papiros são documentos preciosos, pois relatam a literatura
médica mais antiga do mundo. Eles demonstram uma medicina baseada em evidências e apresentam
descrições das doenças cardíacas, digestivas, pulmonares e nervosas. Além dos papiros, as esculturas
egípcias, de aproximadamente 1500 a.C., também deixaram seu legado relacionado aos aspectos
de saúde, uma vez que mostram, por exemplo, degenerações tróficas em partes do organismo, que
significam um comprometimento de estruturas neuroanatômicas secundárias a patologias nervosas,
como acontece em membros inferiores com amiotrofia típica nos casos de poliomielite, conforme
ilustra a figura seguinte.
13
Unidade I

Figura 3 – Placa de calcário representando um indivíduo com deficiência física

Observação

A poliomielite é uma doença infecciosa aguda causada pelo poliovírus,


que danifica o SNC e leva à destruição de neurônios motores, resultando
em paralisia flácida.

O surgimento dos filósofos na Grécia e as escolas de medicina, por volta do século 5 a.C., levaram
ao o caminho necessário para a efetivação de investigações sobre a anatomia humana. Para Platão,
o cérebro era “a nossa parte mais divina”. Assim, ele seguiu a teoria cefalocêntrica, segundo a qual o
cérebro era o centro da alma. Platão adotou o termo enkephalon. Em seus estudos, ele descreveu os
giros e os sulcos cerebrais, conforme ilustra a figura seguinte.

Observação

O termo giro não era conhecido pelos gregos ou romanos. Até o


início do século XIX, essas estruturas anatômicas eram designadas
de circunvoluções.

14
NEUROANATOMIA

Sulco frontal superior

Sulco frontal inferior Giro frontal superior

Giro frontal médio


Sulco pré-central

Giro pré-central
Sulco central

Giro pós-central
Sulco pós-central

Sulco intraparietal

Figura 4 – Vista superior dos giros e dos sulcos cerebrais

Saiba mais

Você gostaria de saber um pouco mais sobre o tema? Leia este artigo
sobre o legado de Hipócrates e do Corpus hippocraticum no período
abrangido entre os séculos V e IV a.C. até o período greco-romano, com
Galeno, em II d.C.

REBOLLO, R. A. O legado hipocrático e sua fortuna no período


greco‑romano: de Cós a Galeno. Scientiae Studia, São Paulo, v. 4, n. 1, p. 45-
82, 2006. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/ss/article/view/11067.
Acesso em: 4 nov. 2019.

Alcméon, da escola de medicina de Crotona, foi o primeiro a motivar a noção anatômica a


partir de observações experimentais. Ele considerava que o cérebro era o centro de emoções,
conhecimento, mente e alma, e integrou os papéis dos órgãos dos sentidos ao cérebro. Segundo
Alcméon, todos os vasos sanguíneos originavam-se da cabeça e seu papel era distribuir o pneuma,
ou seja, a origem da alma e da vida ao cérebro.

Contudo, outros filósofos acreditavam que o pneuma fosse distribuído ao cérebro diretamente
da respiração nasal. Alcméon cometeu alguns erros bizarros, por exemplo: achava que o
espermatozoide fosse parte do cérebro do homem desde os 14 anos de idade. Em dissecções de
animais, ele descobriu o nervo óptico e as tubas auditivas, afirmando erroneamente que as cabras
respiravam pela orelha.
15
Unidade I

Surge então a figura lendária de Hipócrates de Cós, considerado o “pai da medicina”. No campo
da anatomia, nada efetuou de relevante. A base fundamentada de seu ensinamento é “teres aos
deuses o direito de viver e confiá-los aos homens”. Atribui-se a Hipócrates uma ampla coleção de
trabalhos médicos, enquanto outros são conferidos a discípulos seus e a outros autores.

Figura 5 – Escultura de Hipócrates

Os conhecimentos sobre o SN na medicina hipocrática são muito deficitários. As ideias de anatomia e


fisiologia são inconsistentes; sabia-se que o cérebro era constituído de duas metades divididas por uma
membrana e que fazia continuidade com a medula espinal. Conforme a teoria dos quatro humores, o
cérebro seria a fonte da fleuma. As meninges eram bem conhecidas pela conjuntura que proporcionava
o tratamento cirúrgico dos casos de traumatismo craniano. A trepanação era utilizada com assiduidade.

Observação
As meninges são revestimento do SNC originado do mesênquima e de
células da crista neural. Há três meninges: dura-máter, aracnoide-máter e
pia-máter, conforme ilustram as figuras a seguir.

Figura 6 – Dura-máter

16
NEUROANATOMIA

Figura 7 – Aracnoide-máter

Figura 8 – Pia-máter

O cérebro é reconhecido como o centro receptor das sensações. No livro Dos Lugares no
Homem, de Hipócrates, depara-se com a seguinte observação a propósito dos sentidos da audição
e do olfato:

A meninge é perfurada no ponto através do qual nós escutamos. [...] Esta


é a única perfuração da membrana que protege o cérebro. Na região das
narinas não existe perfuração, porém uma espécie de porosidade, parecida
a uma esponja; por este motivo um indivíduo escuta a uma distância maior
do que aquela em que ele sente os cheiros (HIPÓCRATES, 1995, p. 23 apud
REZENDE, 2009, p. 62).

Nessa época, o termo neuron empregava-se especialmente aos tendões, que eram confundidos com
os nervos. Reconheciam-se tão somente os nervos mais facilmente identificáveis, como o óptico, o
acústico, o trigêmeo, o vago, o plexo braquial e os nervos ulnar e isquiático.

17
Unidade I

Lembrete

O V par de nervo craniano, ou nervo trigêmeo, apresenta componentes


sensitivos para a sensibilidade geral da face e componentes motores para
os músculos da mastigação.

O X par de nervo craniano, ou nervo vago, possui componentes


sensitivos para as vísceras torácicas e abdominais, e componentes motores
para os músculos da faringe e da laringe.

Saiba mais

Você sabia que a lombalgia ocupacional gera influências negativas


na performance das atividades laborais e de vida na equipe de
Enfermagem e que a lombalgia está relacionada com o nervo isquiático?
O profissional de Enfermagem que deseja assistir, tratar e cuidar do
outro também precisa de cuidados, fazendo-se necessário que suas
condições de saúde física, mental e espiritual estejam em equilíbrio.
Portanto, recomendamos a leitura do artigo científico:

BORGES, T. P.; et al. Aplicação da massagem para lombalgia ocupacional


em funcionários de Enfermagem. Revista Latino‑Americana de Enfermagem,
Ribeirão Preto, v. 20, n. 3, p. 511-9, maio/jun. 2012. Disponível em: http://
www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-11692012000300012&script=sci_
abstract&tlng=pt. Acesso em: 4 nov. 2019.
Em outro livro, Da Natureza do Homem, Hipócrates propunha uma conexão entre o cérebro e a
doença sagrada, a epilepsia. Para ele, essa patologia era uma modificação advinda do cérebro que tinha
como causa fatores naturais – a suposição de uma origem divina era consequência da inexperiência
humana. Cada uma das doenças possuía uma causa própria, decorrente de fatores externos.

Seu texto renuncia às superstições e às bruxarias que rodeavam a doença, e Hipócrates não acreditava
que o “homem pudesse ser vitimado por um deus, representado de derradeira perfeição”, expressando,
assim, que a doença era hereditária e a sua origem estava situada no cérebro. Como tal, não precisava
ser tratada com feitiçaria, mas com dieta e drogas.

Outro anatomista importante no período grego foi o filósofo Aristóteles. Ele realizou centenas de
dissecções em animais, porém aparentemente não teve a oportunidade de dissecar cadáveres humanos.
Aristóteles dá excelentes descrições de alguns órgãos, sob o ponto de vista da anatomia comparada.
Essas descrições foram, eventualmente, ilustradas com desenhos. Ele cometeu vários equívocos ao
sustentar a teoria cardiocêntrica egípcia (quadro a seguir). Aristóteles dizia que o coração era o órgão
18
NEUROANATOMIA

mais formidável do organismo, a sede da alma e também da inteligência. Ele falava que de todas as
partes do organismo não havia nenhuma tão fria como o cérebro, além de a mais seca e que apresenta
menos sangue, servindo o cérebro somente para o resfriamento do sangue.

Quadro 1 – Estudiosos gregos influentes que apoiavam a doutrina cardiocêntrica

Teoria Cardiocêntrica

Aristóteles Praxágoras Diócles

IV século a. C.
Crisipo Zenão
III século a. C.
Estoicos
II século a. C.
Ateneu
I século a. C.

Adaptado de: Crivelatto e Domenico (2007).

Quando Atenas perdeu sua soberania, o centro médico de maior notabilidade na história da
humanidade foi, sem dúvida, Alexandria, no Egito. Fundada por Alexandre, o Grande, apresentou-se
como uma cidadela onde os melhores intelectos da Antiguidade fundamentaram os alicerces para o
estudo sistemático da matemática, da física, da astronomia, da literatura, da geografia, da biologia e da
medicina. Sua grandiosa biblioteca foi utilizada para arquivar mais de 500 mil papiros. Lá se encontravam
cópias de todos os textos escritos pelos filósofos e médicos gregos.

Figura 9 – A grande biblioteca de Alexandria

19
Unidade I

A escola de medicina de Alexandria floresceu devido à decadência progressiva da escola de medicina


de Cós. As necessidades dos conhecimentos médicos fizeram que se tornasse imprescindível a prática
de dissecação humana, até então proibida pelos gregos. A autorização da dissecação em Alexandria
aconteceu durante a primeira metade do século III a.C., onde, pela primeira vez, a anatomia efetivou-se
como uma disciplina. Esse parêntese da história foi interrompido após a renovação religiosa adivinda
com o catolicismo, que se opôs à manipulação de cadáveres humanos.

Os dois primeiros e maiores professores de anatomia no período Alexandrino foram Herófilo da


Macedônia e Erasístrato de Cós. Eles dissecaram cadáveres de condenados à morte e descreveram
cuidadosamente suas estruturas anatômicas. Herófilo foi reputado por Galeno como referência em
anatomia. Considerado como o “açougueiro de homens”, realizou aproximadamente 600 dissecações
em cadáveres humanos, e os meios utilizados por ele afrontaram os seus contemporâneos. Murmúrios
públicos denuncianaram Herófilo de praticar vivissecção com a autorização do faraó Ptolomeu.
Entretanto, há possibilidades de a informação dessa prática realizada por ele não apresentar um fundo de
verdade, pois a inveja de seus opositores poderia ter afetado negativamente o humor desses indivíduos.

Figura 10 – Herófilo da Macedônia

Figura 11– Erasístrato de Cós

20
NEUROANATOMIA

Lembrete

Vivissecção é a ação de dissecar um indivíduo vivo com a finalidade de


efetuar estudos de natureza morfofuncional.

Ao contrário de Aristóteles, Herófilo considerou o cérebro como a sede da inteligência, no lugar


do coração. Ele, um especialista em SN, descreveu a anatomia do cérebro e do cerebelo, bem como
dos ventrículos encefálicos, tendo valorizado a importância dessas cavidades do interior do cérebro e
das meninges. Em suas descrições sobre as meninges, chamou-as de chorioid, pela semelhança com a
membrana que envolve o feto.

Herófilo refere-se ao IV ventrículo e ao sulco do soalho na parte inferior, como a confluência


dos seios da dura-máter, designado posteriormente como “o torcular de Herófilo”, torcula (L.), cujo
significado é o de uma cisterna ou poço para coletar o líquido da prensa de vinho. Ele foi também o
primeiro a reconhecer que eram os nervos, e não as artérias, que geravam os movimentos voluntários,
e distinguiu os nervos sensitivos dos nervos motores, embora ainda imperasse certa confusão entre
nervos motores e tendões.

Observação

Os nervos sensitivos levam informações da periferia até o SNC, enquanto


os nervos motores conduzem as respostas do SNC até um órgão efetuador.

Os seios da dura-máter servem como canais de baixa pressão para o


fluxo de sangue venoso em direção à circulação sistêmica.

Figura 12 – O torcular de Herófilo

21
Unidade I

Nessa mesma época, Erasístrato preocupou-se mais com as funções do organismo do que com a
forma, por isso é considerado o “pai da Fisiologia”. Em relação ao SN, Erasístrato e Herófilo compararam
o cérebro humano ao dos animais, observando que a superfície cerebral no homem possuía maior
complexidade e maior número de circunvoluções, o que explicaria a superioridade da inteligência
humana sobre a dos animais. Erasístrato também determinou o cérebro e o cerebelo como estruturas
parenquimatosas. Com maior segurança do que Herófilo, separou os nervos motores dos nervos sensitivos
e descreveu o trajeto dos nervos dos órgãos e dos sentidos. Ele reconheceu o córtex cerebral, e não a
dura-máter, como a origem dos nervos cranianos.

A última colaboração da Idade Antiga veio do anatomista Claudius Galeno. Suas descrições
raramente se adequam aos órgãos humanos, pois foram focadas em macacos, bois, ursos e porcos.
Quanto não teria realizado Galeno na anatomia, se lhe fosse consentida a dissecação de cadáveres
humanos, uma vez que viveu numa época onde milhares de infelizes eram sacrificados pelo capricho
brutal da população romana, em particular pelos seus imperadores, entretanto eles não autorizavam
a anatomia a servir-se dos cadáveres.

Figura 13 – Retrato de Galeno

Durante a sua permanência em Roma, Galeno desenvolveu intensa atividade: realizava conferências
e palestras para o público, escrevia sem parar e era médico das classes mais pobres. Sua personalidade
era de um egocêntrico presunçoso e autoritário; queria estar sempre com a veracidade e buscava
contradizer seus predecessores e contemporâneos, exceto Herófilo e Hipócrates, que ele reverenciava –
em cuja obra e doutrina dos quatro humores Galeno se fundamentava para a explicação etiopatogênica
das doenças e do seu tratamento.

Com Galeno, os conhecimentos sobre o SN tiveram um enorme progresso. Foi um cefalocentrista,


entre os cardiocentristas, que deixou cristalina sua visão sobre o controle do movimento dos músculos
pelos nervos que provêm do cérebro. Ao contrário de Aristóteles, Galeno considerava o cérebro como o
centro das sensações e do pensamento, a sede da alma, porque dizia que nele se gerava o raciocínio e
se conservava a recordação das imagens sensoriais.
22
NEUROANATOMIA

Saiba mais

Você gostaria de aprender um pouco mais sobre o tema? O renomado


historiógrafo da medicina Roy Porter escreve em texto fascinante para o
público sobre a história da medicina a partir de diferentes pontos de vista,
como da história das doenças, dos médicos, do corpo, do laboratório, das
terapias, da cirurgia e do hospital. Leia:

PORTER, R. Das tripas coração: uma breve história da medicina. Tradução


de Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Record, 2004.

Quadro 2 – Aspectos crolonológicos de relevantes filósofos e médicos


gregos seguidores da doutrina cefalocêntrica

Teoria Cefalocêntrica
Alcméon Pitágoras
VI e V séculos a.C.
Anaxágoras Diógenes Filolau
V século a.C.
Hipócrates Platão
IV século a.C.
Herófilo Erasístrato
III século a.C.
Galeno
II século d.C.

Adaptado de: Crivelatto e Domenico (2007).

As principais observações de Galeno estão no campo do SN. Ele estudou a anatomia do encéfalo em
seus detalhes e considerou o cérebro como a sede de funcionamento de toda a alma. Para ele, os nervos
originavam-se do cérebro e da medula espinal, e não do coração, como ensinava Aristóteles. Classificou
os nervos cranianos em nove pares: nervo óptico; nervo oculomotor; nervo facial; nervo troclear; nervo
trigêmeo; nervo palatino; nervo acústico; grupo vocal; nervo hipoglosso. Descreveu igualmente 30
pares de nervos espinais, o grande simpático toracoabdominal e a dupla inervação vagal e simpática dos
órgãos abdominais.

Lembrete

O III par de nervo craniano, ou nervo oculomotor, é um nervo motor


para alguns músculos extrínsecos do olho.

O XII par de nervo craniano, ou nervo hipoglosso, é um nervo motor


responsável pela inervação dos músculos extrínsecos e intrínsecos da língua.

23
Unidade I

Conceitos gregos sobre o desenvolvimento do cérebro

Sede da sensação e da compreensão


(Alcméon, século V a.C.)

O mensageiro do entendimento. A origem das atividades


emocionais e morais (Hipócrates, 400 a.C.)

Sede da alma racional


(Platão, 427-347 a.C.)

Sede de resfriamento do calor corporal


(Aristóteles, 384-322 a.C.)

Centro de comando corporal


(Herófilo, 335-280 a.C.)

Sede de funcionamento de toda a alma


(Galeno, 129-216 d.C.)

Figura 14 – Diagrama esquemático que representa os pensamentos sobre o


cérebro, segundo filósofos e médicos gregos entre os séculos V a.C. e II d.C.

Lembrete

A terminologia anatômica atual determina o número de 12 pares de


nervos cranianos.

Saiba mais

No site a seguir, você conhecerá 45 fatos curiosos sobre o cérebro


humano. Boa leitura!

45 FATOS curiosos sobre o cérebro humano. Revista Galileu, 2 set. 2016.


Disponível em: http://revistagalileu.globo.com/Caminhos-para-o-futuro/
Saude/noticia/2016/09/45-fatos-curiosos-sobre-o-cerebro-humano.html.
Acesso em: 4 nov. 2019.

24
NEUROANATOMIA

Galeno classificou os nervos em dois tipos: moles ou sensitivos (para os órgãos dos sentidos)
e duros (para os movimentos), atraindo a atenção para o fato de que existem órgãos com os
dois tipos de nervos, como a língua e os olhos, favorecidos ao mesmo tempo com sensitividade e
movimento. Ele explicou a duplicidade dos órgãos dos sentidos, dos ventrículos encefálicos e dos
próprios hemisférios cerebrais para a casualidade de que “se um deles sofrer lesão, o outro suprirá
a função do que for lesado” (GALENO, 1854, p. 557 apud REZENDE, 2009, p. 69). Ainda descreveu
o corpo caloso, o fórnice e o infundíbulo da hipófise e admitiu que essa estrutura anatômica se
comunicava com a cavidade nasal.

Observação

O corpo caloso consiste num conjunto de fibras transversais, que,


ao cruzarem a linha média, abrem-se em leques, de forma a alcançar
os diferentes pontos de toda a convexidade cerebral. Emergindo abaixo
do corpo caloso, está o fórnice – feixe complexo de fibras nervosas. O
infundíbulo da hipófise é uma formação nervosa em forma de funil.

Ainda sobre Galeno, ele apresentou pela primeira vez que o organismo era controlado pelo cérebro.
Localizou uma alma funcional no enkephalon – a parte com a qual ele acreditava que pensávamos –, onde
se encontra o pneuma psíquico. De tal modo, impôs ao cérebro os papéis da percepção que Aristóteles
havia atribuído ao coração. Galeno sustentava a teoria de que o pneuma psíquico, uma substância
que ele acreditava se desenvolver nos ventrículos encefálicos, fluiria através dos nervos cominando
a sensação e os movimentos voluntários. Em sua visão, os vasos sanguíneos transportavam a energia
vital, queimada pelo coração, levada então até a base inferior do cérebro, onde ela se transformava em
princípios espirituais (rete mirable).

Ventrículo preenchido com


pneuma psíquico
Pneuma psíquico alterado
por estímulos sensoriais
Se mu
Co
ns m
o

Visão

Cheiro Consciência
Audição

Fonte secundária de
pneuma psíquico
Artéria carótida
Pneuma psíquico conduzido
pelos nervos espinais

Pneuma vital – fonte primária


de pneuma psíquico

Figura 15 – Representação da formação do pneuma psíquico

25
Unidade I

Galeno cometeu muitos erros, como o concernente à sua teoria da circulação sanguínea; todavia,
sem nenhum equívoco, ele foi o médico e anatomista com o prestígio mais duradouro sobre a medicina:
1.500 anos.

O desenvolvimento da tradição ético-religiosa, que vai se desdobrar por toda a Idade Média, impediu
os estudos de anatomia. Concomitantemente, as invasões dos bárbaros enfraqueceram o Império
Romano e devastaram a Biblioteca de Alexandria, onde estavam guardados os estudos gregos sobre
medicina. No obscurantismo provocado pelo cristianismo na Europa, coube aos árabes os cuidados do
material recuperado da biblioteca.

O conhecimento obtido da medicina grega, por meio de obras traduzidas, faria da Escola de Galeno
a mais importante no mundo árabe islâmico. Hipócrates, Herófilo e Erasístrato, antecessores de
Galeno, e os mais relevantes representantes da medicina clássica, seriam, ao mesmo tempo, venerados
ao longo de todo o período de ouro dessa cultura. A medicina grega estaria sempre presente e guiaria
os trabalhos e as pesquisas, devido aos obstáculos de desenvolverem tais atividades em anatomia e
fisiologia, pela proibição da prática de vivissecção e dissecação. As noções do organismo humano
emanavam dos gregos.

Na Idade Média, o organismo passou por um processo de ressignificação. As atenções dos indivíduos
eram voltadas para as ameaças divinas, em comparação às quais os perigos ao organismo passaram a
ser desdenhadas. Essa seria uma das explicações aceitáveis para a redução do interesse dos indivíduos
diante das questões de saúde, como a medicina e, consequentemente, a anatomia. Além disso, os roubos,
as epidemias, a fome, as batalhas empreendidas pelas cruzadas religiosas, os pagamentos de impostos,
enfim, tudo no feudalismo contribuiu para que as inquietações dos indivíduos se retrocedessem para a
necessidade de segurança proporcionada pela terra e pela religião.

Saiba mais

Vamos nos posicionar na História? Neste artigo você irá entender


por que a Idade Média tem sido frequentemente encarada como
“A Idade das Trevas”, em razão da intransigência religiosa e do misticismo
por excelência. Tal fato se deve, em grande parte, ao período seguinte
– Renascimento – quando o termo foi cunhado, em oposição à Antiguidade
“luminosa”, humanista e racional, e à redescoberta do humanismo nos
séculos XV e XVI. Para saber mais acerca do assunto, acesse:

ALMEIDA, C. C. Do mosteiro à universidade: considerações sobre uma


história social da medicina na Idade Média. Aedos, v. 2, n. 2, p. 36-55,
2009. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/aedos/article/view/9830/5643.
Acesso em: 4 nov. 2019.

26
NEUROANATOMIA

Por esses aspectos, no período medieval, a evolução da anatomia foi estorvada. Os poucos estudos
das estruturas cerebrais foram imaginados por desenhos e pinturas sem o cuidado de ser realístico
ou conceber a autêntica forma do cérebro. As figuras foram construídas usando-se de diagramas
esquemáticos, bidimensionais, os quais retratavam papéis cerebrais diversos, deixando claro que o
conceito anatômico era incompleto. Funções da visão, da audição, da gustação, da alma e mentais,
por exemplo, eram projetadas para células, isto é, os ventrículos laterais, esboçados sem propósito de
expressar a realidade da estrutura anatômica legítima, conforme ilustra a figura a seguir.

Figura 16 – Diagrama esquemático com ilustrações medievais da doutrina celular da função cerebral.
Observa-se que não há preocupação em representar o cérebro de forma realista e com perspectiva

De tal maneira, foram descobertos, em manuscritos medievais, esboços do cérebro, efetuados


por autor desconhecido, que mostram um texto de origem em Salerno, os quais datam do ano
de 1250 e expõem o cérebro com giros e sulcos, todavia de maneira simples, irrigado por uma
rede de vasos sanguíneos oriundos do pescoço e da região cervical. Um pouco mais real do que
os diagramas esquemáticos, mas não existe o cuidado de representar integramente a estrutura
cerebral, porém se avizinha um pouco mais da anatomia realística do que os diagramas.

Figura 17 – Desenho medieval esboçando o cérebro e os vasos sanguíneos

27
Unidade I

No final da Idade Média e durante o Renascimento, a arte se preocupava mais com a


representação da imagem humana. Nessa época, surgem magníficos professores e anatomistas,
entre eles Jacopo Berengario. Conta a história ter ele dissecado mais de 100 cadáveres humanos.
Professor em Bolonha durante 25 anos, Berengario realizou vivissecções, e em suas discussões
expôs de maneira clara a presença de líquidos nos ventrículos encefálicos. Ele se opôs a alguns
anatomistas que acreditavam na presença de “um vapor ou espírito”, encontrado em indivíduos
vivos o qual era “condensado” em líquido após a morte. Era claro para ele, portanto, que esse
líquido não era “vapor” em organismos vivos. Berengario também descreveu a medula espinal,
terminando no adulto ao nível de L2.

Nenhuma pesquisa sobre a história da anatomia no período medieval pode ser considerada
completa sem citar o nome de Mondino de Luzzi. Ele foi contemplado como o primeiro “restaurador da
anatomia”. Mondino efetuou dissecções em cadáveres humanos de criminosos e escreveu o manual de
dissecação, a Anatomia Mondini.

Figura 18 – Uma lição de anatomia. Mondino ilustra a dissecação de cadáver durante


a cátedra. Um cirurgião efetua a dissecação e o professor Mondino aponta as estruturas anatômicas

Mondino encarou uma área muito desafiadora, como a anatomia do cérebro, entretanto foi hábil
em prover uma descrição brilhante e racional por meio de suas dissecações. Atribuiu muitos dos papéis
cerebrais aos ventrículos, brevemente destacando Galeno, que enfatizou o parênquima cerebral.

28
NEUROANATOMIA

Figura 19 – Ventrículo encefálico

Segundo Mondino, uma vez que as membranas, a dura-máter e a pia-máter são levantadas, o
cérebro vai aparecer. Ele observou que o encéfalo humano tem duas partes: a anterior, a qual chamou de
prosencéfalo, e a posterior, que denominou de cerebelo. A parte anterior do encéfalo foi dividida em dois
hemisférios cerebrais (direito e esquerdo), conforme ilustra a figura seguinte. Mondino dedicou grande
atenção à descrição dos ventrículos encefálicos. “Os ventrículos encefálicos são em número de quatro.
O ventrículo anterior é o ventriculus anterior magnus, sendo ele subdividido em: uma parte direita e
uma esquerda” (CRIVELLATO; RIBATTI, 2006, p. 585, tradução nossa).

Hemisfério direito Hemisfério esquerdo

Figura 20 – Hemisférios cerebrais

29
Unidade I

Lembrete

Nessas duas partes dos hemisférios cerebrais (direita e esquerda),


descritas por Mondino, encontram-se os ventrículos laterais da terminologia
anatômica atual.

Cerebelo (L.), do latim cerebellum: pequeno cérebro (figura a seguir).


O cérebro posterior, que está localizado na fossa posterior do crânio.

Hemisfério direito Hemisfério esquerdo

Figura 21 – Vista superior do cerebelo

Mondino complementou:

Estes ventrículos são espaçosos e, especialmente, em sua parte anterior


temos o local de origem das nossas fantasias, já na parte posterior se
encontram as nossas imaginações, enquanto na parte do meio está o
ponto de encontro do modo de pensar da maioria dos indivíduos e as
noções comumente admitidas pelos seres humanos, ou seja, o nosso
senso comum (CRIVELLATO; RIBATTI, 2006, p. 585, tradução nossa).

Conforme Mondino, os papéis desses ventrículos laterais são, portanto, propor a fantasia, a
imaginação e o senso comum. O terceiro ventrículo, chamado por ele de ‘’lacuna’’, ou ventrículo médio,
está disposto no fundo da parte mediana do cérebro.

Este ventrículo é uma cavidade arredondada semelhante a um lago, e o seu


papel está relacionado com a sede da meditação e do raciocínio (CRIVELLATO;
RIBATTI, 2006, p. 585, tradução nossa).

O quarto ventrículo, denominado por Mondino de ventrículo posterior, está localizado na


região posterior do encéfalo, ou seja, junto ao cerebelo. Mondino representou essa região como
30
NEUROANATOMIA

o ponto de origem da medula espinal e vários nervos motores. Para ele, o ventrículo posterior
tinha uma forma piramidal e foi interpretado como o lugar da memória. De tal modo, Mondino
seguiu a doutrina da localização psicológica de Galeno relacionada às funções situadas dentro dos
ventrículos encefálicos.

Lembrete

O encéfalo apresenta quatro ventrículos: dois laterais (I e II ventrículos),


o III ventrículo e o IV ventrículo.

Curiosamente, Mondino descreveu uma estrutura com coloração “vermelho-sangue”, que possui
a forma de um “verme longo caminhando no solo”, encontrada no espaço entre os dois ventrículos
laterais. Esta estrutura anatômica corresponde aos plexos corióideos dos ventrículos laterais.
De acordo com Mondino, esse órgão vascular foi relacionado com a atividade do pensamento,
porque sua contração gera a obstrução da passagem do espírito vital, seguida de bloqueio de
qualquer faculdade do pensamento.

Figura 22 – Plexos corióideos

Observação

Os plexos corióideos, estruturas que se projetam para dentro dos


ventrículos encefálicos, são responsáveis pela produção de líquido
cerebrospinal (LCS).

31
Unidade I

Notavelmente, Mondino não se limitou à descrição do cérebro para o aparelho ventricular,


mas também considerou o tecido cerebral, comparando-o a uma substância como a medula óssea.
Ele mencionou estruturas distintas na base de cada um dos ventrículos laterais e chamou‑as
de anchae por apresentarem uma forma curva que lembrava as nádegas. Há uma divergência
histórica sobre essas estruturas descritas por Mondino. Elas seriam, quiçá, os corpos quadrigêmeos
ou, mais provavelmente, as estruturas descritas por ele, na realidade, são os núcleos caudados
da anatomia moderna.

Observação

Os corpos quadrigêmeos são estruturas anatômicas localizadas na


região posterior do mesencéfalo, formadas por dois colículos superiores e
dois colículos inferiores.

Tálamo

III ventrículo
Glândula pineal
Colículo superior
Colículo inferior Mesencéfalo

Vérmis
Hemisfério cerebelar
direito
Hemisfério
cerebelar esquerdo

Figura 23 – Vista superior/posterior do cerebelo

Observação

O núcleo caudado é cosiderado um dos núcleos da base. É assim


denominado por ter uma longa extensão ou cauda.

O discípulo de Mondino de Luzzi, Guido da Vigevano, realizou dissecações em cadáveres e, a partir


de seu manuscrito Anathomies, foi o primeiro cientista que utilizou quadros para esquematizar suas
descrições anatômicas, sendo ele o precursor no desenvolvimento da proximidade entre a neuroanatomia
e o desenho artístico, como demostram as figuras a seguir.

32
NEUROANATOMIA

Figura 24 – Tábuas de anatomia: Guido da Vigevano

Guido fez esboços de trepanações cranianas por meio de um bisturi e um martelo, cujo intuito
era mostrar o encéfalo e as duas meninges, até então conhecidas como a dura-máter e a pia-máter.
Ele definiu as meninges como película.

Figura 25 – Trepanações cranianas

33
Unidade I

Outros achados relevantes de Guido da Vigevano estão relacionados com a medula espinal e a origem
dos nervos espinais. Esses pares de nervos espinais atravessam os forames intervertebrais, formam os
plexos nervosos e atingem todo o organismo. Ele demonstrou uma vaga padronização da estrutura
cortical encontrada na superfície encefálica. Posto isto, os esboços de Guido foram uma contribuição
valiosa para os avanços da história da neuroanatomia.

Figura 26 – Medula espinal e nervos espinais

Ainda durante a Idade Média, existiu John Arderne, um importante cirurgião em Nottinghamshire
e Londres, que teve, ao longo de sua vida profissional, oportunidades de aprender e desenvolver
suas habilidades como cirurgião militar, pois nesse ínterim histórico ocorreu a Guerra dos Cem
Anos do século XIV. De tal modo, ele observou os ferimentos causados pelas primeiras batalhas que
utilizaram a pólvora.

Arderne descreveu seus estudos em latim e obviamente usou os ensinamentos de muitos dos
autores escolásticos de enorme autoridade, como Galeno e Avicena. As figuras seguintes mostram,
em cortes sagitais, a dissecação da cabeça ao períneo. Na figura a seguir, o cérebro é visto dividido em
partes: frontal, média e terços posteriores, além dos giros e sulcos que são representados como linhas
interrompidas. Na figura 28, ele manteve o mesmo padrão de secção do encéfalo. Nesta imagem,
além da representação do cérebro, há uma tentativa de retratar de forma realística outras regiões e
órgãos do corpo humano.
34
NEUROANATOMIA

Figura 27 – Dissecção da cabeça ao períneo

Figura 28 – Dissecção da cabeça ao períneo

O Renascimento foi um período que suplicava por “titãs” e que os compôs por força do pensamento,
paixão, caráter, versatilidade e sabedoria. A anatomia também teve tais “titãs”. Eles aniquilaram a anatomia
escolástica de Galeno e cimentaram os fundamentos da anatomia cientifica. O precursor desse trabalho
titânico foi Leonardo da Vinci, o verdadeiro criador foi Vesalius, e a findar esse trabalho esteve Harvey.

As produções que proporcionavam a articulação entre a arte e a ciência demonstrada em alguns


dos primeiros estudos conhecidos sobre o cérebro não somente influíam como também deram forma ao
objeto-livro, surgindo como referências em algumas de suas páginas. O trabalho conjunto entre cientistas
e artistas já acontecia, da mesma maneira, no comentário das observações e, também, na preparação

35
Unidade I

dos esquemas de representação daquilo que muitas vezes só poderia ser idealizado e explicado. Neste
contexto, o próprio pesquisador era ao mesmo tempo cientista e artista, como foi o caso de Da Vinci.

O grande renascentista italiano Leonardo da Vinci se dedicou com ardor às pesquisas minudenciadas
do organismo humano, esboçando inúmeros desenhos com estudos anatômicos que representavam as
estruturas interiores e as proporções do corpo, objetivando um maior realismo em sua obra. Ele estudava
o organismo instituindo comparações e buscando simetrias com o microcosmos.

Figura 29 – Leonardo da Vinci, o gênio do Renascimento

Da Vinci fez diversos desenhos representando o funcionamento dos órgãos corpóreos, como o cérebro,
o esqueleto, o caminho de veias e as estruturas digestivas. Em algum momento da história, quiçá acirrado
por um revigorado interesse na anatomia, ele tornou-se um “consumidor voraz “ de cadáveres. Por volta
de 1508, Da Vinci fez moldes, em cera derretida, dos ventrículos encefálicos, para estudar a sua estrutura.

Figura 30 – Fisiologia do cérebro, de Leonardo Da Vinci

36
NEUROANATOMIA

Figura 31– Forma dos ventrículos, de Leonardo Da Vinci

O médico alemão Johann Dryander é considerado o primeiro anatomista a publicar um livro com
imagens de suas dissecações. Ele divulgou em sua obra Anatomia Capitis Humani imagens que retratavam
o impacto da transição dos desenhos da doutrina medieval, isto é, a teoria das células cerebrais, com a
total despreocupação voltada para a representação realística do cérebro. A visão moderna que Dryander
exibia em suas imagens representava as estruturas intracranianas de maneira realística, uma novidade
para o período, como era vista por ele na dissecação das meninges, do cérebro, dos ventrículos e do
crânio, conforme ilustra a figura seguir.

Figura 32 – Imagens da obra de Johann Dryander, Anatomia Capitis Humani

37
Unidade I

Quando Michelangelo Buonarroti pintou A Criação de Adão, como parte da encomenda da pintura
do teto da Capela Sistina, em Roma, feita em 1508 pelo Papa Júlio II, registrou em carta a melancolia de
escultor forçado a desempenhar ocupação de pintor: “Isso não é da minha profissão. Perco o meu tempo
sem resultado. Que Deus me ajude!” (NÉRET, 2000. p. 23).

Michelangelo seguramente não era um católico impetuoso; sua religiosidade permanecia mais para
o corpo criado do que para a mente do divino criador. Manifestava sua curiosidade de homem do
Renascimento, que o levara à dissecção de organismos humanos para que melhor compreendesse as
formas que compunham sua escultura e sua pintura.

A partir de 1990, foram feitas descobertas acerca de alguns segredos contidos na pintura da Capela
Sistina. Nesse ano, o médico americano Frank Meshberger descobriu que na cena A Criação de Adão o
manto de Deus significava seguramente um corte de um crânio e do cérebro nele contido. Entre os anos
de 1989 e 2003, o oncologista brasileiro Gilson Barreto pesquisou e descobriu a série completa do que ele
denominou de O Código Michelangelo. A dissecção de praticamente todas as partes do organismo humano
estava representada, e cada uma disfarçadamente apontada por rastros nas pinturas da Capela Sistina.

A primeira descoberta de um desenho escondido nas imagens da Capela Sistina, a que mostrou um
cérebro idêntico com a imagem divina, faz jus a um cuidado especial. Nessa imagem, o Deus criador, em
meio a seu manto envolvente e a um grupo de anjos, corresponderia às partes mais centrais do cérebro
humano, como o corpo caloso. Na realidade, a imagem de Deus possui leve defeito diagonal que, em geral, se
observa em processos de dissecação, contudo todas as partes anatômicas estão corretamente representadas
na pintura. Há somente um detalhe que evade à correção anatômica que nenhum pesquisador conseguiu
esclarecer: o braço estendido de Deus ultrapassa os limites de uma possível representação de caixa craniana.

Saiba mais

A fim de aprofundar suas leituras sobre esses temas, leia:

ASSIS JUNIOR., H. Leonardo e Vesalius no ensino de anatomia humana.


Metrocamp Pesquisa, v. 1, n. 1, p. 118-30, 2007.
KICKHÖFEL, E. H. P. A lição de anatomia de Andreas Vesalius e a ciência
moderna. Scientiae Studia, São Paulo, v. 1, n. 3, p. 389-404, jul./set., 2003.
Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid
=S1678-31662003000300008. Acesso em: 4 nov. 2019.

LIRA, W; ALVES, K. S. G. A anatomia do corpo humano através da arte.


In: ENCONTRO NACIONAL DE EDUCAÇÃO EM CIÊNCIAS, 13., 2009, Castelo
Branco. Actas... Castelo Branco (Portugal): Escola Superior de Educação do
Instituto Politécnico de Castelo Branco, 2009. Disponível em: http://files.
didatica-das-ciencias9.webnode.com/200000026-339b934957/Artigo%20
A%20anatomia%20do%20corpo%20atrav%C3%A9s%20da%20arte%20
ATAS.pdf. Acesso em: 4 nov. 2019.

38
NEUROANATOMIA

Figura 33 – A arte secreta de Michelangelo: uma lição de anatomia na Capela Sistina

As bases da anatomia como ciência foram determinadas por Vesalius de Bruxelas, em 1543,
quando ele publicou os desenhos e os textos que compõem a obra De Humani Corporis Fabrica,
que corrigia e reformulava os conceitos e as ilustrações anatômicas do período, na busca de uma
“exatidão real”. A obra de Vesalius, ao priorizar a observação e a pesquisa, é apresentada como o
início da ciência moderna. Ele é considerado o pai da anatomia e um autêntico representante da
Renascença, reunindo ciência e arte. Entretanto, é chamado pelos seus inimigos da fé católica de o
Martinho Lutero da anatomia humana.

Vesalius começa o seu livro e traz o tema a respeito do cérebro e do sistema nervoso:

O encéfalo é a sede da alma dos indivíduos e das suas faculdades. Ele reside
no crânio, sendo que magnificamente se ajusta ao seu formato na cavidade
superior da cabeça, e assim, ocupa todo esse espaço (GOMES et al., 2015,
p. 157, tradução nossa).

Em alguns trechos de seu livro, Vesalius faz menções da abertura do crânio com analogias à de
um cofre:

Primeiro, o encéfalo está protegido por uma membrana, a dura-máter. Após


a sua remoção, surgem as partes dos hemisférios cerebrais direito e esquerdo,
que por sua vez é contínuo pela medula oblonga e medula espinal.

[...]

39
Unidade I

Após a remoção da dura-máter, percebam que ela envia uma dobra entre
os dois hemisférios cerebrais (foice do cérebro), e entre o cérebro e o
cerebelo (tentório do cerebelo). Assim, a exposição dos hemisférios cerebrais
possibilita a visualização de duas grandes cavidades (ventrículos laterais), os
giros cerebrais e a substância branca subcortical. Em um nível mais profundo,
observam-se estruturas subcorticais, como o tálamo, o globo pálido, o
putame, o núcleo caudado e as cápsulas internas e externas. A remoção
da parte posterior do cérebro revela o cerebelo e o tronco encefálico. Após
“virar” anteriormente o cerebelo e todo o tronco encefálico, enfim a medula
espinal aparece.

[...]

Internamente, os ventrículos laterais estão conectados com o III ventrículo,


e este por sua vez é contínuo por um canal (aqueduto do mesencéfalo) que
termina no IV ventrículo. Nos ventrículos pode ser observado um plexo ou
redes (plexo corióideo). Vejam o septo (septo pelúcido), o corpo caloso, a
abóbada (fundo de saco) e o cerebelo, sua relação com esses ventrículos
(GOMES et al., 2015, p. 157, tradução nossa).

A figura a seguir (A, B, C, D) ilustra essa descrição:

Figura 34 – Ilustração de Fabrica (1555), de Andreas Versalius

Então, Vesalius segue com a sua descrição detalhada do crânio, da coluna vertebral e dos
nervos periféricos:

40
NEUROANATOMIA

Em uma visão da base do encéfalo, se revelam os sete pares de nervos


cranianos, além do primeiro par de nervos que representam os nervos ópticos,
sendo que estes acabam junto à túnica do olho. Entretanto, o órgão do
olfato (trato olfatório) não deve ser classificado como um nervo, mas
observem que se encontra na base do encéfalo (GOMES et al., 2015, p. 157).

Figura 35 – Ilustração de Fabrica (1555) SNP

Ele também dá considerações funcionais adequadas ao seu tempo, citando o “catarro do cérebro”
e o seu fluxo através de um canal em forma de funil (infundíbulo) até as narinas, depois de ter sido
“destilado” por uma glândula quadrada (hipófise):

Com a reflexão de que o “espírito vital” é produzido nos plexos corióideos e,


desde o ar aspirado para os ventrículos encefálicos por meio da respiração, a
força inata das substâncias cerebrais cria o “espírito animal” que o encéfalo
faz uso, em partes, para os comandos principais da mente (GOMES et al.,
2015, p. 157).

Observação

Pequeno glossário das estruturas anatômicas mencionadas por Vesalius:

• Bulbo ou medula oblonga é a parte inferior do tronco encefálico.

• Foice do cérebro é um septo vertical mediano em forma de foice


que ocupa a fissura longitudinal do cérebro separando os dois
hemisférios cerebrais.
41
Unidade I

• Tentório do cerebelo é uma dobra da dura-máter que separa o


cerebelo do lobo occipital do cérebro.

• Tálamo é parte do cérebro.

• Globo pálido e putame são estruturas que formam os núcleos da base.

• Cápsula interna consiste em um feixe de fibras localizadas no cérebro


que apresenta partes do neurônio que se dirigem ao córtex cerebral
ou partem dele com destino a regiões subcorticais.

• Cápsula externa é uma lâmina branca encontrada entre alguns dos


núcleos da base.

• Aqueduto do mesencéfalo é uma passagem estreita no mesencéfalo


que une o III ventrículo ao IV ventrículo.

• Septo pelúcido é uma estrutura anatômica fina que separa os dois


ventrículos laterais.

Tálamo

Mesencéfalo

Ponte
IV ventrículo cerebral

Cerebelo
Bulbo

Medula espinal

Figura 36 – Vista medial do tálamo, tronco encefálico e cerebelo no plano de secção sagital

42
NEUROANATOMIA

Lembrete

O tronco encefálico é dividido em mesencéfalo, ponte e bulbo.

Foice do cérebro

Figura 37 – Vista inferior da meninge dura-máter

Corpo caloso
Ventrículo lateral
Septo pelúcido
Núcleos da base
(núcleo caudado)

Figura 38 – Vista anterior do cérebro no plano de secção coronal

Nomes relevantes seguiram Vesalius ou foram contemporâneos dele. Em Roma, Bartolomeu


Eustachio foi professor de anatomia da Universidade della Sapienza; por sua vez, conseguiu autorização
da Igreja para realizar dissecações. Ele fez muitas descobertas, e a sua fama – póstuma, aliás – adveio
de seus maravilhosos desenhos anatômicos. Eustachio foi um dos primeiros anatomistas a reproduzi-los
em cobre, em vez de madeira.
43
Unidade I

Figura 39 – Ilustração de Eustachio mostrando o SNC e os nervos periféricos e cranianos

Em 1663, o médico e anatomista Franciscus Sylvius descreveu uma marca profunda na superfície lateral
do cérebro que começava próximo da órbita curvando-se posterior e superiormente, seguia tão distal quanto
a origem do tronco encefálico, separando o cérebro em uma parte superior e uma inferior, que foi chamada de
sulco lateral. Em seu tributo, é nomeada, também, de fissura de Sylvius. Ele ainda descreveu outras estruturas
anatômicas, como a artéria média do cérebro, a cisterna da fossa lateral do cérebro, a veia média profunda do
cérebro, as veias médias superficiais do cérebro e a cavidade do septo pelúcido.

Sulco lateral

Cerebelo Ponte

Figura 40 – Sulco lateral

Professor de anatomia em Bolonha, Costanzo Varolio é conhecido mundialmente no campo da


neuroanatomia. Seu nome está associado com a formação de uma estrutura anatômica denominada
de ponte ou ponte de Varolio. Ele comparou a base e os pedúnculos cerebelares médios a uma
44
NEUROANATOMIA

ponte, sob a qual passavam as fibras longitudinais para a medula oblonga como se fosse a água
sob uma ponte. Essa estrutura anatômica é hoje denominada de base da ponte, contendo as fibras
corticospinais e pontocerebelares.

Figura 41 – Costanzo Varolio

Observação

As fibras corticospinais são vias descendentes do córtex cerebral até a


medula espinal.

Partes dos neurônios dos núcleos pontinos constituem as fibras


transversais da ponte ou fibras pontocerebelares.

Antes de Costanzo Varolio, a ponte fora ilustrada por Bartolomeu Eustachio, em seu livro Tabulae
Anatomicae de 1552, mas infelizmente esse trabalho permaneceu inédito por mais de 150 anos.

Varolio também contribuiu em outras descrições neuroanatômicas no século XVI. Teve particular
atenção às origens intracranianas dos nervos e desenvolveu um novo método de dissecar o cérebro
no plano axial, a partir da base cerebral em direção à convexidade. Esse método permitiu uma melhor
visualização da estrutura cerebral e dos nervos cranianos. Ele também é considerado o primeiro a ter
descrito os lobos cerebrais, ao postular que cada hemisfério cerebral era composto de três prominências,
as quais Varolio denominou de anterior, média e posterior, acreditando que corresponderia ao I, II e III
ventrículos, respectivamente.
45
Unidade I

Um dos maiores filósofos ocidentais de todos os tempos foi René Descartes. Ele era conhecedor da
descrição completa do organismo humano oferecida por Vesalius, em 1543.

Figura 42 – René Descartes

No tocante à relação mente-cérebro, ou melhor, alma-corpo, Descartes menosprezou tanto


a informação aristotélica de alma como forma do organismo quanto o conhecimento de alma
como preceito de vida dos escolásticos. Ele definiu a alma como substância consciente ou
pensamento, uma vez que a alma era diferente do organismo por apresentar uma natureza
inseparável, enquanto o organismo era sempre divisível. Embora distintos, a alma interatuava
com o organismo.

Através da glândula pineal, Descartes cria um pequeno órgão vestigial no cérebro. Esse órgão foi
sugerido por tratar-se de uma das poucas partes não duplicadas do cérebro. Descartes reconstituiu a
doutrina do ser dualista, de que alma e organismo eram compostos por diferentes substâncias – uma
teoria que se tornou crença habitualmente acolhida por pensadores europeus.

Ele foi um exímio anatomista e fisiologista e estudou fenômenos simples, como o movimento
involuntário que ocorre em um membro quando alguém queima a sua mão ou o seu pé em uma
brasa; sugeriu essa ideia como arco reflexo. De forma brilhante, detalhou os componentes desse evento:
primeiro a sensação de dor, em seguida a sua condução pelos nervos sensitivos que levam os estímulos
até o SNC, posteriormente as respostas pelos nervos motores, que são excitados, e por fim os músculos
responsáveis pelo ato.

46
NEUROANATOMIA

Figura 43 – Ilustrações neuroanatômicas de René Descartes

Lembrete

O arco reflexo é a resposta involuntária rápida a certo estímulo


periférico originado pela alça de conexão sináptica localizada na
medula espinal. É designado de simples, ao compreender somente um
neurônio sensitivo e um motor, ou composto, quando entre eles existe
um interneurônio.

Em razão da ausência de tecnologia apropriada para “desvendar” o cérebro, Vesalius e outros


anatomistas do período restringiam-se a representações das características morfológicas do órgão. Isso
também lhe permitia exceder discussões teológicas polêmicas, como a de que a prática da dissecção
cerebral demandaria uma atitude de blasfêmia, pois denotaria a dissecção da alma.

Os anatomistas levavam em consideração o dualismo articulado por René Descartes. Por mais que o
cérebro pudesse ser dito a sede da alma, ele não era a alma, e essa noção de que o órgão não tinha outros
significados além da sua materialidade teria tornado pouco atraente a sua representação pitoresca e
reproduzida, em oposição ao que aconteceu com o coração, largamente usado nas pinturas com temas
religiosos, como o Sagrado Coração de Jesus.

47
Unidade I

Figura 44 – O Sagrado Coração de Jesus

No Barroco, período profundamente religioso, o organismo passa a ser representado de forma


contorcida e dramática, com a teatralização nas obras. De tal modo, a pintura busca a união entre o
profano e o sagrado em um organismo comum. Rembrandt foi um grande conhecedor de anatomia,
utilizando-se desse tema em seus quadros. Como na pintura A Lição de Anatomia do Dr. Deyman,
ele apresentou a dissecação de um cérebro, baseado nas ilustrações de Veasalius. O homem morto
na imagem é Joris Fonteijn, conhecido como “Janeiro Negro”, um ladrão que sofreu a pena de morte.
Como era tradicional nesses dissecações, o estômago e os intestinos eram removidos antes do cérebro.
Gysbrecht Calcoen, um indivíduo que visava proporcionar assistência e proteção aos seus membros,
detém a calvária, enquanto Dr. Deyman remove a foice do cérebro.

Figura 45 – A Lição de Anatomia do Dr. Deyman

48
NEUROANATOMIA

Em 1600, o médico, anatomista e fisiologista inglês Thomas Willis, autor do livro Patholigiae
Cerebri, apresentou excelentes ilustrações que possibilitaram um conceito de localização de alguns
papéis cerebrais, como o senso comum, a imaginação e a memória, situadas, respectivamente, no corpo
estriado, no corpo caloso e no córtex cerebral.

Figura 46 – Retrato de Thomas Willis da página de título de Pathologiae Cerebri (1667)

Lembrete

O corpo estriado é um dos núcleos da base.

Para Willis, o centro do movimento e da memória se abrigam no cérebro; o do movimento


involuntário, no cerebelo; da imaginação, no corpo caloso; e o da sensibilidade e do senso comum,
no corpo estriado, deixando óbvio que foi precursor em um enfoque ordenado da função cerebral
fora dos ventrículos. Suas ideias estavam próximas da realidade, entretanto os saberes ainda eram
muito empíricos.

Ele desponta como favorável à conhecida teoria dos espíritos animais, que se compõem no cérebro
mediante destilação com base no sangue arterial e, a partir dos nervos, descem as regiões de atuação
como os causadores da sensação e do movimento.

Em sua obra De Cerebri Anatome, Willis introduziu um novo sistema de numeração dos nervos
cranianos, agrupados conforme as suas funções, descreveu extensamente sobre os núcleos da
base, o tronco encefálico e o cerebelo, além de realizar esquemas detalhados das inervações vagal
e simpática.

49
Unidade I

Figura 47 – Página de título De Cerebri Anatome (2. ed., 1664). Ilustração mostra Willis à direita do cadáver

Figura 48 – Os nervos cranianos e o tronco encefálico

Figura 49 – Inervação vagal

50
NEUROANATOMIA

Thomas Willis descreveu a clássica anastomose da circulação arterial e a sua função – complexo
vascular na base do encéfalo –, conhecida como “polígono de Willis”, rompendo para sempre com a ideia
galênica da rete mirable, ou seja, dos princípios espirituais.

Ele utilizou pela primeira vez a terminologia “ação reflexa”. Outra descrição relevante dele foi a de
sugerir que o plexo corióideo fosse o responsável pela absorção do LCS.

Figura 50 – Ilustração da base de um encéfalo humano revelando o “polígono de Willis”

Na imagem anterior, observa-se que os giros cerebrais ainda não eram descritos com as mais elevadas
precisões. Eles servem como um “pano de fundo” para as estruturas anatômicas da base do encéfalo
que Thomas Willis ambicionou realçar, e algumas terminologias anatômicas ainda prevalecem até hoje,
como o pedúnculo cerebral e as pirâmides.

Nicolaus Steno criticou de maneira inconveniente o trabalho de Willis, ao afirmar que as melhores
descrições sobre o encéfalo que temos até o presente momento são aquelas que nos são oferecidas por
este senhor.

Outra descrição relevante foi que Thomas Willis insinuou a ideia da barreira hematoencefálica, ao
sugerir que somente as partículas menores, as quais seriam essenciais para o rápido desempenho dos
papéis cerebrais, passsariam do sangue para o cérebro.

51
Unidade I

Observação

A barreira hematoencefálica é uma estrutura que evita ou dificulta


a passagem de substâncias do sangue para o parênquima nervoso,
cujo substrato anatômico são as junções oclusivas que unem as células
endoteliais do revestimento capilar.

Saiba mais

Agora, você já é capaz de compreender os papéis da barreira


hematoencefálica. Para isso, sugerimos a leitura do artigo científico:

CABREIRA, L. M. B; CECCHINI, A. L. Imunopatologia da esclerose múltipla.


Biosaúde, Londrina, v. 8, n. 2, p. 125-144, jul./dez. 2006. Disponível em:
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/biosaude/article/view/125-144/
19402. Acesso em: 4 nov. 2019.

Após Willis, a combinação de anatomia e ilustração do encéfalo ficou estancada até o final do
século XVIII. O anatomista francês Félix Vicq d’Azyr, que incialmente se mostrou talentoso poeta, fora
convencido por seu pai a prosseguir a tradição familiar de entrar para a medicina.

Encantado com as ideias de Étienne Bonnot de Condillac e John Locke, Vicq d’Azyr foi convencido
de que o estudo humano deve ser alumiado pelo estudo dos animais; para ele, o lugar do homem na
natureza não é totalmente compreendido sem uma simbiose com as demais espécies.

Figura 51 – Retrato de Félix Vicq d’Azyr. A assinatura de Vicq d’Azyr foi tomada de uma carta manuscrita
encontrada na Biblioteca da Académie Nationale de Médecine e eletronicamente importada para o retrato

52
NEUROANATOMIA

Vicq d’Azyr dissecou muitos animais pertencentes a espécies diferentes, incluindo raras
amostras obtidas na África, e progressivamente desenvolveu um amplo conhecimento no campo
da anatomia comparativa.

Figura 52 – O mandril

Os conhecimentos sobre a neuroanatomia não avançaram após as contribuições realizadas por


Andreas Vesalius. Durante o século XVI, os tratados anatômicos de Jean Riolan e Raymond Vieussens
e as descrições encefálicas estavam “enterradas” em capítulos dedicados à esplancnologia, sendo a
dura‑máter considerada como um “envelope” semelhante à pleura e ao peritônio que revestem as
paredes torácica e abdominal, respectivamente.

Em contrapartida, Vicq d’Azyr era fascinado pelo encéfalo, considerando esses órgãos como os
responsáveis pelo pensamento. De tal modo, ele percebeu que o avanço da neuroanatomia se beneficiaria
imensamente com os conhecimentos funcionais desses órgãos.

Vicq d’Azyr dividiu a superfície convexa do cérebro em três grandes áreas: frontal, parietal e occipital,
correspondendo às áreas anterior, média e posterior, como os lobos de outros anatomistas. Estudou o
córtex cerebral, delimitando a fissura longitudinal do cérebro, o giro pré-central e o giro pós-central,
entretanto não os nomeou. Foi também o primeiro anatomista a descrever o fascículo mamilotalâmico,
a estria da camada granular interna do córtex cerebral e o forame cego, sendo este correspondente à
terminação na fissura mediana anterior da medula espinal.

53
Unidade I

Figura 53 – A) Desenho de um cérebro humano seccionado ao longo do plano sagital e que ilustra o corpo caloso, a estria da lâmina
granular interna do córtex cerebral (faixa interna de Baillanger) e a glândula pineal. O bulbo olfatório, o pedúnculo e as estrias
também são ilustrados em conjunto com a substância perfurada anterior. B) Desenhos de uma secção parassagital do cérebro
humano que ilustra o fascículo mamilotalâmico

Vicq d’Azyr também forneceu insuperáveis representações da formação do hipocampo. Ele identificou
os sulcos occipitoparietal e calcarino; os giros do cíngulo – o pré-cúneo e o cúneo –, o unco; a substância
perfurada anterior; a ínsula; o trato espinotalâmico; vários sulcos cerebelares; e a estrutura interna da
medula espinal. Além disso, é de Vicq d’Azyr, e não de Samuel Thomas Sömmerring como comumente
se acredita, a descoberta da substância nigra.

Figura 54 –Reprodução de duas figuras em cores, de Vicq d’Azyr, as quais representam seções
horizontais através do cérebro humano tomadas a dois níveis diferentes dorsoventrais

54
NEUROANATOMIA

Vicq d’Azyr também complementou a descrição dos núcleos da base, fez uma clara distinção entre
o núcleo caudado e o putame, observou a existência dos dois segmentos do globo pálido, que foram
nomeados cinquenta anos mais tarde pelo alemão neuroanatomista Karl Friedrich Burdach e, por fim,
demonstrou experimentalmente, bem como anatomicamente, a existência do forame interventricular
entre os ventrículos laterais e o terceiro ventrículo.

Em geral, porém, o seu trabalho sobre a fisiologia cerebral era muito menos preciso do que a sua
contribuição para a organização estrutural do cérebro. Como ele defendia uma ideia medieval e arcaica,
sustentada por Galeno em relação à decussação dos nervos ópticos, acreditava que as fibras ópticas
não cruzassem a linha média, exceto em alguns peixes, ao imaginar que o cruzamento dessa estrutura
anatômica estivesse completo.

Lobo parietal Sulco central


Sulco
occipitoparietal Lobo frontal
Lobo occipital Giro do cíngulo
Sulco calcarino
Corpo caloso
Septo pelúcido
Diencéfalo

Mesencéfalo
Cerebelo
Ponte

Bulbo

Figura 55 – Vista medial do encéfalo em plano de secção sagital

Sulco central
Lobo parietal
Lobo frontal

Lobo da ínsula
Lobo occipital Sulco lateral
(com afastamento)

Lobo temporal

Figura 56 – Vista lateral do encéfalo

Lembrete

Decussação é uma formação neuroanatômica formada por fibras


nervosas que cruzam o plano mediano de forma oblíqua, como a decussação
motora ou das pirâmides.
55
Unidade I

Observação

Pequeno glossário de algumas estruturas anatômicas mencionadas por


Vicq d’Azyr:

• Glândula pineal, do latim pinealis, relativo ao pinho. É parte do


epitálamo, sendo um órgão ímpar, mediano, que se localiza numa
depressão entre os colículos superiores, abaixo do corpo caloso, do
qual está separado pelo III ventrículo e pelas veias cerebrais.

• Bulbo olfatório é a principal estação retransmissora da via olfatória.

• Substância perfurada anterior é uma área achatada, deprimida, na


superfície basal do hemisfério cerebral logo rostralmente ao trato
olfatório. É assim denominada devido aos numerosos minúsculos
orifícios deixados na sua superfície pela retirada de pequenos vasos
de sangue penetrantes quando a pia-máter é removida.

• Pedúnculos cerebrais são dois feixes maciços de fibras, que possuem


fibras corticofugais para níveis inferiores.

• Hipocampo é uma estrutura anatômica em forma de “C” em


cortes coronais, salientando-se no interior do corno temporal do
ventrículo lateral. Recebeu esse nome graças à semelhança com um
cavalo-marinho.

• Giro do cíngulo, do latim cingulum, significa cinto ou cinta.


Paleocórtex de quatro camadas situado superiormente ao corpo
caloso. Parte do lobo límbico.

• Cúneo, do latim cuneos, quer dizer cunha. O cúneo é um lóbulo em


forma de cunha na face medial do lobo occipital entre os sulcos
occipitoparietal e calcarino.

• Unco, do latim uncus, referente a gancho. É a extremidade anterior


curvada medialmente do giro para-hipocampal.

• Trato espinotalâmico. Trato é um feixe de fibras nervosas com a mesma


origem, trajeto, função e destino. As fibras podem ser mielínicas ou
amielínicas. Portanto, o trato espinotalâmico é uma via ascendente
que passa pela medula espinal até o tálamo.

56
NEUROANATOMIA

• Ínsula é uma estrutura anatômica profunda no sulco lateral.

• Substância nigra é uma massa pigmentada de neurônios disposta


entre os pedúnculos cerebrais e o tegmento.

• Forame interventricular, ou forame de Monro, é a abertura entre o


ventrículo lateral e o III ventrículo. Está situado entre as colunas do
fórnice e a extremidade anterior do tálamo.

Tálamo

Nervo óptico

Quiasma óptico
Pedúnculo cerebral

Ponte

Figura 57 – Vista anterior do tálamo e do tronco encefálico

Figura 58 – Forame interventricular

57
Unidade I

Saiba mais

A hidrocefalia é uma patologia multifatorial que surge


predominantemente na infância. Neste artigo, o autor realiza uma
revisão histórica do diagnóstico e do tratamento, comentando as
técnicas atuais, os resultados e as complicações.

CUNHA, A. H. G. B. Hidrocefalia na infância. Revista Brasileira de Neurologia


e Psiquiatria, Salvador, v. 20, n. 1, 2006. Disponível em: https://rbnp.emnuvens.
com.br/rbnp/article/download/74/35. Acesso em: 4 nov. 2019.

No século XVIII, tivemos anatomistas relevantes, como as figuras ilustres de Antônio Pacchioni,
Giovanni Maria Lancisi, Domenico Felice Cotugno, Giovanni Fantoni, Jacques-Bénigne Winslow e Samuel
Thomas von Sömmering.

Figura 59 – A reprodução de um medalhão honorário do Pacchioni Dissertationes Físico-anatomicae (1721).


“Esquerda: o anverso mostra o retrato de Antônio Pacchioni”. “Direita: o reverso representa uma cena mitológica:
um gênio alado orienta uma criança (o próprio Pacchioni) em direção a Apollo, que, enquanto descobre um
cadáver humano (anatomia), mostra a seu aluno o caminho para o templo de glória. A criança aos pés de
Apollo segura em sua mão esquerda uma pinha (símbolo de Esculápio, o deus da Medicina e da cura na
mitologia grego-romana); nas mãos de Pacchioni, uma lupa”. A latina inscrição diz:
Non Inglorius Ibis (“Você não fica sem honra”)

Em 1705, Antônio Pacchioni descreveu as granulações da dura-máter. Ele postulou que os


movimentos diastólico e sistólico das meninges poderiam forçar o fluido nervoso através dos nervos do
cérebro em direção à periferia por meio da “função de espremê-los”. Suas preocupações com a anatomia
funcional das meninges levou-o a ser lembrado por duas características dessa estrutura anatômica: as
granulações aracnóideas e o forame de Pacchioni.

58
NEUROANATOMIA

Figura 60 – Granulações e forame de Pacchioni

Giovanni Maria Lancisi foi um importante médico italiano, professor de cirurgia, anatomia e
medicina teórico-prática na Universidade de Roma. No campo da neurociência, Lancisi escreveu
Dissertatio Physiognomica (1710), no qual ele retratou a relação entre o mimetismo do músculo frontal
e as fibras das meninges e do cérebro, e Dissertatio de Sede Cogitantis Animae (1712), dedicado ao
médico Giovanni Fantoni, em que ele considerava o problema das localizações cerebrais e especificidade
das funções corticais.

Figura 61 – Giovanni Maria Lancisi

59
Unidade I

Lancisi e outros autores compartilharam dos conceitos a respeito de as fibras de Pacchioni se


cruzarem no corpo caloso, bem como a ideia de Pacchioni sobre o fluido nervoso que era “espremido”
nos nervos do cérebro, sendo gerado pelo movimento das meninges. Em Dissertatio de Sede Cogitantis
Animae (1712), por outro lado, ele sugeriu que a glândula pineal desempenhasse um papel relevante,
uma vez que foi conectada até o tálamo através das habênulas. É interessante notar que a teoria de
Lancisi foi recusada em 1749 por Johann Gottfried Zinn, que realizou uma série de experimentos
cerebrais em cães.

Lembrete

Habênulas, do latim Habenula, diminutivo de Habena, “freio ou rédea”,


consistem em um par de massas nucleares.

Os estudos anatômicos de Lancisi foram muito meticulosos, e ele forneceu uma excelente descrição
do corpo caloso:

Ao corpo caloso, queremos dizer que a sua superfície medular é semelhante


a uma faixa branca, com um dedo e meio de largura, que, na sua parte
superior, funciona quase horizontalmente sob a sutura sagital. Ele é mais
estreito na sua parte anterior e maior na sua parte posterior. Apresenta a
forma de fundo de saco e colunas, e se curva, assumindo uma forma elíptica;
neste formato, o corpo caloso se une e conecta os hemisférios cerebrais.
O septo pelúcido, por outro lado, não é nada mais do que um prolongamento
interior do corpo caloso e um fundo de saco, também, localizado na parte
medular e mediana do cérebro (GRONDONA, 1965, p. 412 apud DI IEVA,
2007, tradução nossa).

Em amostras de cérebros de cavalos, Lancisi observou as fibras que cruzam o corpo caloso e
a sua união entre os dois hemisférios cerebrais. Após a remoção dos hemisférios cerebrais e da
pia-máter, ele escreveu que os nervos medulares serão vistos numa direção transversal e paralela
um ao outro.

Em Dissertatio de Sede Cogitantis Animae (1712), Lancisi continua:

Na parte superior do corpo caloso [...]. Eu observei uma coisa completamente


ignorada ou não observada até agora: cada fibra transversal medular é
interceptada em um ângulo direito a dois nervos, que são medulares,
rodados e têm um diâmetro variável. Esses não são revestidos pela
dura‑máter, mas é envolvido pela aracnoide-máter ao longo do corpo
caloso para a frente e para trás (GRONDONA, 1965, p. 417 apud DI IEVA,
2007, tradução nossa).

60
NEUROANATOMIA

Em resumo, ele descreveu a nervali longitudinales ab anterioribus ad posteriora excurrentes,


que ainda são chamadas de “estrias longitudinais mediais” ou estrias de Lancisi, conforme a
figura a seguir.

Figura 62 – Encéfalo humano (CC: corpo caloso; IG: indusium griseum;


mLS: estrias longitudinais mediais; ILS: estrias longitudinais laterais,
CR: radiação do corpo caloso; C: cerebelo)

Em suas dissecações, Lancisi também notou a presença de estrias longitudinais laterais. No entanto,
em sua concepção do corpo caloso como a sede da alma e dos nervos como as fibras em que os
espíritos poderiam fluir, ele interpretou as estrias longitudinais mediais, as quais ele descreveu como
um “caminho” para o fluxo da alma ou quiçá para a consciência, localizada entre a parte anterior
do corpo caloso e as colunas anteriores do fundo de saco, entre a parte posterior do corpo caloso e
o tálamo, consistindo numa espécie de conexão entre a sede da alma e os órgãos periféricos, ou seja,
entre a alma e o corpo.

Lancisi descreveu que a parte superior do corpo caloso, de ambos os lados, está coberta pelo
giro do cíngulo, do qual está separado pelo sulco caloso em forma de fenda. Ele se encontra coberto
por uma fina camada de substância cinzenta, o indusium griseum (giro supracaloso) e pelas estrias
longitudinais mediais e laterais, conforme ilustram as figuras a seguir.

61
Unidade I

Figura 63 – 1: Radiação do corpo caloso, fórceps menor (frontal) (telencéfalo); 2: Joelho do corpo caloso (telencéfalo); 3: Estria
longitudinal lateral, indúsio cinzento, corpo caloso (telencéfalo); 4: Estria longitudinal medial, indúsio cinzento, corpo caloso
(telencéfalo); 5: Córtex cerebral (telencéfalo); 6: Substância branca do cérebro (telencéfalo); 7: Massa cinzenta (telencéfalo);
8: Esplênio do corpo caloso (telencéfalo); 9: Cerebelo (metencéfalo); 10: Radiação do corpo caloso, fórceps maior (occipital)
(telencéfalo); 11: Radiação do corpo caloso (telencéfalo); 12: Nesta área da dissecção horizontal projetando uma radiação do corpo
caloso foram intersectadas fibras ascendentes para a coroa radiada, dando uma aparência desordenada para as fibras; 13: Sulco
lateral (fissura de Silvio) (telencéfalo); 14: Polo occipital (telencéfalo)

Formado em medicina pela Universidade de Nápoles, em 1756, Domenico Felice Cotugno realizou
diversas viagens a Roma, onde sofreu fortes influências de Giovanni Battista Morgagni, dedicando-se
aos estudos da anatomia humana.

Figura 64 – Domenico Felice Cotugno

62
NEUROANATOMIA

Cotugno descreveu a presença do líquido cerebrospinal (LCS) sob a dura-máter, dentro dos
ventrículos encefálicos, circulando pela medula espinal e nos hemisférios cerebrais. Ele também
esclareceu a circulação do LCS dos ventrículos encefálicos através do aqueduto do mesencéfalo
até o espaço subaracnóideo. Além disso, concluiu que sua descoberta só foi possível devido ao fato
de que uma nova técnica de dissecação tinha sido introduzida, sem que se separasse a cabeça do
resto do corpo.

Seu discípulo, Heinrich Johann Nepomuk von Crantz, observou que a descoberta de seu mestre
em anatomia era viável baseada em 20 dissecações realizadas em cadáveres humanos, posicionados
verticalmente e de cabeça para baixo.

Há um consenso histórico de que Domenico Cotugno foi o primeiro a descobrir o LCS no espaço
subaracnóideo. O nome fluido cerebrospinal foi introduzido por François Magendie na primeira metade
do século XIX.

Algumas décadas mais tarde, Giovanni Fantoni corrigiu os erros cometidos por Antônio
Pacchioni. Por um lado, ele mostrou que a dura-máter não apresenta qualquer feixe muscular; por
outro, Fantoni afirmou que as granulações aracnóideas são as responsáveis p​​ ela reabsorção do LCS,
e não pela sua secreção.

O LCS é conduzido até o seio sagital superior da dura-máter em vez da


convexidade do hemisfério cerebral. De tal modo, combina com as leis da
natureza, sendo que o próprio seio, e não as meninges, são irrigadas pela
presença do líquido, e o sangue irá, por conseguinte, ser diluído (FANTONI,
1738 apud OLRY, 1999, p. 10).

O francês Jacques-Bénigne Winslow descreveu as duas camadas da dura-máter sobre o encéfalo.


A camada externa está intimamente aplicada à face interna do crânio. A camada interna envia tabiques
para dentro entre as divisões maiores do encéfalo, designadas de foice do cérebro, tentório do cerebelo
e foice do cerebelo.

Samuel Thomas von Sömmering também foi um dos mais experientes e famosos neuroanatomistas
do século XVIII. Além da sua descrição do tronco encefálico e da classificação dos 12 pares de nervos
cranianos, instituiu a teoria de que a alma se situa no ventrículo encefálico e tem contato com os
nervos do corpo.

O seu estudo foi alinhado com o de Vicq d’Azyr e versava sobre a preocupação de dividir o corpo em
partes compreensíveis ao estudo. Em sua magnífica obra Uber das Organ der Seele (1796), Sömmering
realizou ilustrações do cérebro humano com lucidez e exatidão.

63
Unidade I

Figura 65 – Ilustração em corte sagital e da base do encéfalo humano

Ainda no século XVIII, David Hartley preocupou-se com as localizações cerebrais, mostrando
primeiramente que o córtex cerebral não era a sede da sensação, nem a causa exclusiva do movimento.
A base da sensação e do movimento era a substância branca do cérebro e do cerebelo. Ademais, Hartley
definiu a memória como a insistência das impressões sobre a substância cerebral. As circunvoluções do
cérebro eram para aumentar o espaço disponível para a memória.

Hemisfério direito Hemisfério esquerdo


Córtex cerebral
(substância cinzenta)
Fissura longitudinal
Substância branca
Giro cerebral
Sulco
Corpo caloso
Ventrículo cerebral
(ventrículo lateral)

Figura 66 – Vista anterior de encéfalo humano em plano de secção frontal

Contrariando as teorias holísticas dos séculos XVII e XIX sobre o funcionamento cerebral, Luigi
Rolando defendeu que o SN poderia ter áreas caracterizadas do ponto de vista morfofuncional.

Figura 67 – Luigi Rolando

64
NEUROANATOMIA

Ele averiguou ainda que apesar da variabilidade existiam sempre dois giros, dispostos
transversalmente à fissura de Sylvius, um na região frontal e o outro na região lateral. Entre eles
havia um sulco, também constante, que recebeu o nome de fissura de Rolando em sua homenagem,
atualmente denominado sulco central.

Sulco central Sulco pré-central


Sulco pós-central
Sulco lateral
Sulco temporal
superior

Cerebelo Ponte

Figura 68 – Vista lateral do encéfalo humano

Após estudar os giros, os sulcos e a fissura, Rolando descreveu o cerebelo como a bateria que
produz a eletricidade necessária para gerar a contração muscular.

Os conceitos de Rolando contrariaram a ideia holística e abriram caminho para uma nova teoria
de organização funcional do cérebro, dando características topográficas para os papéis cerebrais.

O francês Marie Jean-Pierre Flourens, estudioso de anatomia comparada, sugeriu que as


funções se encontrassem precisamente nas várias partes do córtex cerebral. Ele identificou o
cerebelo como um coordenador motor – mesmo tendo idealizado de maneira errônea que esse
controle era feito contralateralmente. Flourens descreveu perfeitamente o sistema vestibular
como portador da vertigem e do nistagmo.

Figura 69 – Marie Jean-Pierre Flourens

65
Unidade I

Lembrete

Córtex é a “casca” formada por substância cinzenta e organizada


em camadas.

O médico e anatomista vienense Franz Joseph Gall descreveu as intumescências cervical e


lombossacral da medula espinal, diferenciou as substâncias cinzenta e branca, além de fazer a descrição
das origens encefálicas dos nervos cranianos óptico, troclear e abducente.

Figura 70 – Franz Gall

Intumescência cervical

Intumescência lombossacral

Figura 71 – Intumescências cervical e lombossacral da medula espinal

66
NEUROANATOMIA

Lembrete

Intumescências cervical e lombossacral são regiões de onde emergem


as raízes nervosas que compõem os plexos braquial e lombossacral, que
inervam os membros superiores e inferiores, concomitantemente.

Observação

O pequeno nervo troclear, ou IV par de nervo craniano, e o VI par de


nervo craniano, ou nervo abducente, são também nervos motores para um
dos músculos extrínsecos do olho.

Gall propôs, no começo do século XIX, que o comportamento humano poderia estar correlacionado
com características faciais externas. Numa fase inicial do seu trabalho, ele se juntou ao anatomista
Johann Kaspar Spurzheim e publicaram uma série de artigos científicos sobre a anatomia funcional
e a psicologia.

Por discordar de Gall quanto à necessidade de um maior rigor científico para prosseguir suas
afirmações, Spurzheim se separou e fundou a frenologia. Depois de décadas de notoriedade, a disciplina
de frenologia desmoronou em infelicidade, quando foi recomendada como método para eleger membros
do parlamento, entre outros.

Figura 72 – Johann Kaspar Spurzheim

67
Unidade I

Lembrete

Frenologia é uma teoria que reivindica ser apropriado determinar o


caráter, as características da personalidade e o grau de criminalidade pelo
formato da cabeça, observando os “caroços” ou as “protuberâncias”.

Genialidade
n to
cime

Cu
he Militâ

ltu
Co
n ó ria ncia

ra
M em
Enigma

Humor

Terror
Eu

Figura 73 – Mapa frenológico

Franz Gall era um conhecedor da fisiologia cerebral. Apesar dos ataques, as suas ideias resistiram até
os experimentos do neurologista francês Jean-Baptiste Bouillaud, que criou individualmente a teoria da
localização, especialmente no que se referia à fala.

Compete a Pierre Paul Broca, anatomista, antropologista e cirurgião – um aluno de Bouillaud –,


mostrar a relação entre o lobo frontal esquerdo e a linguagem denominada área de Broca. Suas conclusões,
fundamentadas em avaliações clínicas e estudos anatômicos e, em especial, no estudo de dois pacientes
e suas posteriores necropsias, são consideradas, hoje em dia, o marco inicial da neuropsicologia. Em 1865,
Paul Broca associou o hemisfério esquerdo com a produção da fala e a ideia de dominância manual.

Figura 74 – Pierre Paul Broca

68
NEUROANATOMIA

6
9

46 44
43
45

47

Figura 75 – Área de Broca. Nesta região, observam-se as áreas 44 e 45 de


Brodmann, assim como o ramo horizontal (parte anterior da área 45),
o sulco central e o ramo ascendente (parte posterior dessa mesma área)

Ao estudar a anatomia comparada dos sulcos e dos giros cerebrais de mamíferos, Paul Broca, em
1877, descreveu que o “grande lobo límbico” era formado pelos giros do cíngulo e para-hipocampal,
e a “fissura límbica” era constituída pelos sulcos, recentemente, chamados de sulco do cíngulo, sulco
subparietal e sulco colateral, tendo aceitado o termo límbico em razão do seu significado (do latim
limbus: orla, anel em torno de), uma vez que essas estruturas anatômicas, presentes em todos os
mamíferos, estão em torno do topo do tronco encefálico.

d P

P C’
e
2
3
O
C”
C 4 P
O’
a
H H’
b c

I
G P S

Figura 76 – O grande lobo límbico de Broca

69
Unidade I

SPreC
SC
SPaC
SCI
RSMCI

SRO SSubP SCa

Ro SRoSup
*SPAOlf Ant/Post
FCa
SRoInf

SCoI SRi
A SOT

GFS (GFM)
LPaC
GCI
PreCu
CC
Cu NCa GCi
Fo Ro
Ist Fm * GPaOlf / GPaTe
Espl Ta
PoCi GRe
GLI CoAnt
GPH
Un PoTe
GFu
B GTi

Figura 77 – Sulcos e giros da face medial e da parte têmporo-occipital da face inferior do cérebro humano. Os sulcos das faces medial
e inferior do cérebro A) delimitam os seus giros, B) formando um anel giral mais interno, o giro do cíngulo (GCi) continua com o
giro para-hipocampal (GPH), compondo um verdadeiro giro límbico disposto em torno do corpo caloso (CC) e do tálamo (Ta). O giro
para‑hipocampal (GPH) continua com o giro do cíngulo (GCi) através do istmo (Ist), que se dispõe posteriormente ao esplênio do corpo
caloso (Espl), e apresenta também precisas conexões ou continuidades com o giro do pré-cúneo (PreCu) e com o giro lingual (GLi).
O sulco do cíngulo (SCi), o sulco subparietal (SSubP) e o sulco colateral (SCol), em conjunto, formam a fissura límbica, que separa o
anel giral interno de um anel giral externo formado pelo giro frontal superior (GFS) ou medial (GFM), lóbulo paracentral (LPaC), giro
do pré‑cúneo (PreCu), giro do cúneo (Cu), giro lingual (GLi), giro fusiforme (GFu), e pelo giro temporal inferior (GTI), que, por sua vez,
continua com os giros da face superolateral do cérebro, ao longo das suas margens superior e inferolateral. O sulco do cíngulo (SCi)
separa o giro do cíngulo (GCi) do giro frontal superior (GFS) ou medial (GFM), e os seus ramos – sulco paracentral (SPaC) e ramo marginal
ascendente (RMSCi) – delimitam anterior e posteriormente o lóbulo paracentral (LPaC). O sulco occipitoparietal (SPO), que separa os
giros do pré-cúneo e do cúneo, emerge do ponto aproximadamente médio do sulco calcarino (FCa); enquanto a metade distal do sulco
calcarino (FCa) separa o cúneo (Cu) do giro lingual (GLi), a sua metade proximal separa o giro lingual (GLi) do pré-cúneo (PreCu) e do
istmo do cíngulo (Ist). O sulco colateral (SCol) separa o giro para-hipocampal (GPH) do giro fusiforme (GFu) e pode ser contínuo ou
distinto do sulco occipitotemporal (SOT) que separa o giro para-hipocampal (GPH) do giro temporal inferior (GTI) e do sulco rinal (SRi) –
que separa o unco do giro para-hipocampal (Un) do restante do polo temporal (PoTe). Na região subcalosa, sob o rostro do corpo caloso
(Ro), dispõem-se verticalmente, imediatamente à frente da comissura anterior (ComAnt), os giros paraolfatório (GPaOlf) e paraterminal
(GPaTe), delimitados pelos sulcos paraolfatórios anterior (SPaOlfAnt) e posterior (SPaOlfPost). Anteriormente a estes, dispõe-se o polo
do cíngulo (PoCi), constituído por uma prega de conexão entre o giro do cíngulo (GCi) e o giro reto (GRe), que contorna a porção mais
posterior do sulco rostral superior (SRoSup), que, por sua vez, separa esses dois giros. O giro reto (GRe) é constituído pela extensão basal
do giro frontal superior (GFS) ou medial (GFM) e abriga no seu interior o sulco rostal inferior (SRoInf). FM: forame interventricular de
Monro; Fo: fórnice; IIIv: terceiro ventrículo; VL: ventrículo lateral

70
NEUROANATOMIA

Os trabalhos de Broca sobre a determinação das localizações cerebrais foram seguidos pelas
interpretações neurológicas de Charcot, Gowers e Jackson, sobretudo quanto à representação da
área motora, permitindo o começo da cirurgia de retirada dos tumores encefálicos antecipadamente
localizados pelo exame neurológico. Esses relatos possibilitaram, também, a Fritsch e Hitzig detectar a
localização do córtex motor, o que, por sua vez, abriu as portas para Ferrier começar seus experimentos
com estimulação cortical, determinando uma nova fase na neurociência.

Saiba mais

Este texto é uma tradução do capítulo “Brain and Behavior” (Cérebro


e Comportamento) feita pela professora Maria Carolina Doretto. Nele
você encontrará uma revisão morfofuncional do SN. Bons estudos!

KANDEL, E. R.; SCHWARTZ, J. H. Brain and behavior. In: KANDEL, E. R.;


SCHWARTZ, J. H. Principles of neural sciences. 2. ed. New York: Elsevier,
1985. Capítulo traduzido para o português por Maria Carolina Doretto.
Disponível em: http://atividadeparaeducacaoespecial.com/wp-content/
uploads/2014/07/C%C3%89REBRO-E-COMPORTAMENTO1.pdf. Acesso
em: 4 nov. 2019.

A topografia funcional já não conseguia esclarecer de forma persuasiva as diversas manifestações


clínicas relatadas na literatura médica. Pesquisadores desgostosos com essa circunstância passaram a
se dedicar ao estudo das conexões entre as áreas cerebrais para poder encontrar os seus papéis, dando
origem aos mapas corticais.

O primeiro destaque é para Alfred Campbell, que em seu trabalho estruturou diferenças regionais
do córtex cerebral em relação à histologia, agregadas às descobertas clínico-patológicas dos hipotéticos
papéis desempenhados por essa região, culminando na anatomia, na patologia e na fisiologia.

Joseph Jules Dejerine introduziu novas técnicas de dissecação de fibras brancas, agregadas à coloração
por hematoxilina ferrosa, e conseguiu demonstrar diferentes correlações entre as áreas corticais e as
suas projeções em territórios da linguagem, o que permitiu a descrição de lesões occipitotemporais, com
extensão do esplênio do corpo caloso.

Observação

A coloração por hematoxilina ferrosa é utilizada em histologia, em


técnicas de coloração biológica.

As lesões occipitotemporais produziam inesperada perda do campo visual direito, atingindo a


aptidão de leitura. Entretanto, os pacientes conservavam ilesa a aptidão de leitura, embora não
compreendessem o que havia sido escrito. O quadro clínico foi chamado de alexia sem grafia.
71
Unidade I

Lembrete

O corpo caloso é dividido em: rostro, joelho, tronco e esplênio.

O neurologista alemão Carl Wernicke descreveu a relação causal entre a lesão no primeiro giro
temporal esquerdo e uma das formas clínicas da afasia, denominada afasia sensorial.

O nome afasia sensorial foi sugerido por Wernicke para fazer frente à afasia motora descrita
anteriormente por Broca. Na afasia motora de Broca, os pacientes falam pouco, entretanto compreendem
a linguagem, enquanto na afasia sensorial de Wernicke a fala está preservada, porém a sua linguagem
é inapropriada e a sua compreensão da linguagem dos outros está prejudicada.

C
C

F
a1

b1 a

Figura 78 – Diagrama de Wernicke de organização da linguagem no cérebro. No diagrama, a) ponto no qual a rota acústica entra no
tronco encefálico; a1) terminação cortical da rota acústica; b) centro para imagens motoras verbais; b1) saída do tronco encefálico
para rotas motoras centrífugas; O) polo occipital; F) polo frontal; C) sulco central; S) sulco lateral. A afasia poderia ser causada por
qualquer lesão na rota a-a1-b-b1, porém o quadro clínico iria variar de acordo com o local preciso da lesão

Saiba mais

Seduziremos você a realizar a leitura do artigo científico


Desenvolvimento Histórico e Fundamentos Metodológicos da
Neuropsicologia Cognitiva. Nele você compreenderá o surgimento
da neuropsicologia descrita como uma resultante dos estudos sobre as
relações entre afasia e as lesões cerebrais. Para tanto, acesse:

KRISTENSEN, C. H. et al. Desenvolvimento histórico e fundamentos


metodológicos da neuropsicologia cognitiva. Psicologia: Reflexão e
Crítica, v. 14, n. 2, p. 259-74, 2001. Disponível em: http://www.scielo.br/
pdf/%0D/prc/v14n2/7853.pdf. Acesso em: 4 nov. 2019.

72
NEUROANATOMIA

Nos trabalhos científicos envolvendo as anatomias macroscópica, microscópica e funcional, o


fisiologista francês François Magendie e Sir Charles Bell desenvolveram a Lei de Bell-Magendie: as raízes
espinais anteriores são motoras, e as raízes posteriores são sensitivas.

Magendie descreveu o LCS em 1827, e o forame de Magendie, atualmente designado como


abertura mediana do IV ventrículo, localizado no teto do IV ventrículo, em 1842. Ele também
descreveu o espaço de Magendie, ou espaço subaracnóideo, correspondente aos principais sulcos
dos hemisférios cerebrais.

Figura 79 – Encéfalo humano, hemisfério direito. 1: árvore da vida; 2: comisssura posterior;


3: tonsila cerebelar; 4: língula; 5: mesencéfalo; 6: véu medular; 7: cisterna quadrigeminal;
8: teto do IV ventrículo; 9: aqueduto do mesencéfalo; 10: ponte; 11: Forame de Luschka;
12: Forame de Magendie

Entre a pia-máter e a aracnoide-máter, há um espaço virtual chamado subaracnóideo. Este espaço


subaracnóideo percorre o LCS, cujo papel consiste em suavizar os efeitos do peso relativo ao SNC
(princípio de Arquimedes), prevenindo, de tal forma, os traumas devido ao contato com a superfície
óssea. Nele podem também ser injetados anestésicos. O LCS é retirado para exames, como a análise
microbiológica na suspeita de meningite.

A ideia de que espíritos animais percorriam os nervos, originada dos pensadores gregos,
permaneceu como uma verdade até o século XVII, quando ficou evidenciada a natureza elétrica
na condução nervosa, enfatizando-se, para isso, o trabalho de Luigi Galvani primeiramente, e,
no século seguinte, o de Emil Du Bois-Reymond, que realizou seus estudos sobre a transmissão
nervosa nas décadas de 1840 e 1870.

Ele sugeriu que os órgãos efetuadores seriam excitados pelos nervos por meio de corrente elétrica,
ou de substâncias químicas liberadas nas terminações nervosas, terminando, assim, o ciclo dos espíritos
como determinantes de atividade nervosa.

73
Unidade I

Figura 80 – Luigi Galvani em experimentos com modelos animais (sapos)

Figura 81 – Máquina elétrica e arcos metálicos

Figura 82 – Trabalhos de Du Bois-Reymond mostrando o fluxo de corrente elétrica através do galvanômetro

74
NEUROANATOMIA

O anatomista italiano Filippo Pacini redescobriu cerca de um século após Abraham Vater, anatomista
alemão, as terminações nervosas encapsuladas de vasta distribuição. Essas terminações nervosas,
atualmente, são designadas de corpúsculos de Vater-Pacini, nomeados em homenagem aos dois
anatomistas. Outras terminações nervosas encapsuladas foram descritas pelo anatomista alemão Georg
Meissner, em 1853. Hoje são designadas de corpúsculos de Meissner.

Em 1860, Johann Friedrich Wilhelm Krause descreveu novas terminações nervosas encapsuladas,
os bulbos terminais de Krause, vastamente disseminadas e relacionadas à sensibilidade térmica.
As terminações nervosas livres posicionadas no estrato germinativo da epiderme que conduzem
sensibilidade tátil foram descritas por Friedrich Sigmund Merkel, anatomista alemão, em 1880. Em 1898,
o anatomista italiano Ângelo Ruffini descreveu as terminações nervosas encapsuladas designadas de
corpúsculos de Ruffini.

Observação

Corpúsculo de Vater-Pacini: receptor sensorial encapsulado localizado


no tecido subcutâneo, no periósteo e no pâncreas sensível à vibração de
alta frequência.

Corpúsculo de Meissner: receptor sensorial encapsulado localizado nas


papilas dérmicas que responde a estímulos de vibração de baixa frequência.

Corpúsculos de Krause: receptores sensoriais encapsulados sensíveis a


estímulos mecânicos encontrados na região limítrofe entre pele e mucosa.

Corpúsculo de Merkel: receptor sensorial do tipo terminação nervosa


com expansão e sensível a estímulos táteis.

Corpúsculos de Ruffini: receptores sensoriais encapsulados sensíveis à


pressão encontrados na derme espessa e fina, no tecido subcutâneo e nas
cápsulas articulares.

Grandes células em forma de frasco presentes no cerebelo foram descritas por Johannes Evangelista
Purkinje, fisiologista da Boêmia, em 1837. Theodor Schwann, anatomista alemão, descreveu, em 1838,
as células produtoras de mielina no SNP, denominadas de células de Schwann.

75
Unidade I

Figura 83 – Johannes Evangelista Purkinje

Lembrete

Mielina é o envoltório multilamelar que rodeia os axônios, sendo


constituído por oligodendrócitos no SNC, ou por células de Schwann no SNP.

Saiba mais

Vamos facilitar a compreensão dos próximos tópicos? Leia o artigo


Origem e desenvolvimento da mielina no SNC: um Estudo de Revisão:

MENDES, P. B.; MELO, S. R. Origem e desenvolvimento da mielina no


SNC: um estudo de revisão. Saúde e Pesquisa, Maringá, v. 4, n. 1, p. 93‑99,
jan./abr. 2016. Disponível em: http://periodicos.unicesumar.edu.br/
index.php/saudpesq/article/view/1654/1208. Acesso em: 9 dez. 2016.

O aprimoramento do microscópio no começo do século XIX proporcionou aos cientistas sua primeira
chance de observar tecidos animais em magnificações maiores. Os nodos de Ranvier, que consistem em
interrupções na bainha de mielina ao longo do axônio, no qual o citoplasma da célula de Schwann entra
em contato com o axônio, foram descritos por Louis-Antoine Ranvier, histologista francês, em 1871.

No século XX, destacou-se o artista e médico Frank Henry Netter. Suas ilustrações inicialmente eram
distribuídas aos médicos em cartões ou folders, até que, em 1899, foi publicado o Atlas de Anatomia
Humana, que se encontra na 5ª edição, publicada em 2011.

76
NEUROANATOMIA

As contribuições para a neuroanatomia, durante o século XX, foram inacreditáveis no que diz
respeito à anatomia aplicada e, especialmente, à anatomia microcirúrgica. Com a finalidade de avançar
as técnicas cirúrgicas, tornou-se necessária a compreensão de todas as vias de acesso, ou seja, das mais
variadas formas de atingir determinadas áreas do encéfalo; assim, o conhecimento da neuroanatomia e
as suas ilustrações agora se voltam para a prática neurocirúrgica.

Diversos estudos foram executados de forma descritiva sobre a anatomia aplicada à neurocirurgia,
a fim de abordar as mais variadas temáticas, como as vias de acesso, as craniectomias, a anatomia de
estruturas aplicadas à técnica cirúrgica, além de estudos que visam buscar a correlação da superfície
cerebral com as estruturas anatômicas, e destas com os exames de imagem.

Saiba mais

A craniectomia é uma forma de tratar a hipertensão intracraniana


proporcionando espaço adicional para alojar o tecido cerebral lesado.
Define-se traumatismo cranioencefálico como uma agressão ao cérebro,
em consequência de um trauma externo, resultando em alterações
cerebrais momentâneas ou permanentes, de natureza cognitiva ou de
funcionamento físico, sendo essa lesão um problema de saúde pública na
atualidade. A equipe de Enfermagem é de suma relevância nos processos
que abrangem o tratamento terapêutico nesses tipos de lesões. Para isso,
convidamos você a realizar a leitura do artigo científico:

SILVA, S. R. A. et al. O traumatismo craniano encefálico moderado e grave.


Intesa, v. 9, n. 1, p. 38–42, jan./jun., 2015. Disponível em: http://gvaa.com.br/
revista/index.php/INTESA/article/download/3245/3203. Acesso em: 4 nov. 2019.

Os modernos estudos por ressonância magnética permitiram correlacionar a anatomia topográfica


cortical como suas conexões pela tractografia, assim como a sua atividade específica na realização
de determinado papel pela ressonância magnética funcional, possibilitando observar as diversas
maneiras de inter-relação entre diferentes áreas topográficas, in vivo, com número de indivíduos e
padronização de amostra nunca antes cogitado.

Figura 84 – Ressonância magnética mostrando a área de Broca (região triangular)

77
Unidade I

Por fim, a neurofisiologia também teve um grande avanço durante o século XX. O fisiologista
americano Walter Cannon explicou como o sistema nervoso autônomo (SNA) regula o meio interno
do corpo. Ele foi o criador de duas elocuções mnêmicas na língua inglesa que, durante muito tempo,
esclareceram as diferenças funcionais entre a parte simpática e a parte parassimpática do SNA. Segundo
ele, a função simpática seria fight or flight, ou seja, “lutar ou fugir”; enquanto a parassimpática seria rest
and digest, isto é, “repousar e digerir”.

Lembrete

SNA é o sistema motor regulado pelo hipotálamo e constituído por


pequenos neurônios motores, situados no tronco encefálico e na medula
espinal, da qual partem fibras que se direcionam aos gânglios periféricos
ou gânglios autônomos.

O quadro a seguir mostra a evolução na linha do tempo de outros anatomistas e as suas contribuições
relevantes no avanço dos estudos em neuroanatomia.

Quadro 3

Nascimento Nome Contribuições


1675-1715 Domenico Mistichelli Descreveu a decussação das pirâmides.
1682-1771 Giovanni Battista Morgagni Descreveu o tubérculo cuneiforme.

1723-1765 Descreveu o gânglio sensitivo trigeminal e


Johann Lorenz Gasser a impressão trigeminal.

1752-1832 Descreveu os gânglios vestibular e coclear (do nervo


Antonio Scarpa vestibulococlear).

1791-1874 Descreveu o cruzamento dos tratos piramidais na decussação


Jean Cruveilhier das pirâmides.

1810-1868 Descreveu o trato corticoespinal anterior e o


Ludwig Türck trato corticopontino.
Descreveu as aberturas pareadas nos recessos laterais do teto
1820-1875 Hubert von Luschka (aracnóideo) do IV ventrículo através das quais o liquor deixa o
IV ventrículo e chega à cisterna magna.

1843/44-1926 Descreveu o aparelho de Golgi, o órgão tendíneo de Golgi e os


Camillo Golgi neurônios do tipo Golgi.

1861-1940 Descreveu a anatomia e as variações dos principais nervos, do


Henry Head plexo braquial e as áreas dos dermátomos.
Descreveu o circuito que conecta o hipocampo ao hipotálamo,
1883-1958 James Papez tálamo e giro do cíngulo. Subsequentemente, esse circuito serviu
de base para o conceito de sistema límbico.

2 INTRODUÇÃO À TERMINOLOGIA DA NEUROANATOMIA

A terminologia da neuroanatomia é detalhada na descrição da organização tridimensional complexa


do encéfalo. Os eixos do SN são com facilidade entendidos em animais, que possuem um SNC mais
simples do que aquele dos seres humanos. No gato, por exemplo, o eixo rostrocaudal se estende
aproximadamente em linha reta desde o nariz até a cauda.
78
NEUROANATOMIA

Dorsal

Rostral Caudal

Ventral

Figura 85 – Os eixos anatômicos e a sua relação com o SNC

Esse é o eixo longitudinal do SN, comumente designado de neuroeixo, porque o SNC possui uma
organização longitudinal predominante. O eixo dorsoventral, perpendicular ao eixo rostral, se estende desde o
dorso até o abdome. As terminologias posterior e anterior são sinônimos de dorsal e ventral, respectivamente.

Dorsal
(superior)

Rostral

Ventral
(inferior)
Ventral Dorsal
(anterior) (posterior)

Caudal

Figura 86 – Os eixos anatômicos e a sua relação com o SNC

Lembrete

Neuroeixo é a linha imaginária que se estende da extremidade inferior


da medula espinal até a região mais superior do encéfalo.

O eixo longitudinal do SN humano não é reto como no gato. Durante a formação, o encéfalo – e, por
conseguinte, seu eixo longitudinal – sofre uma curvatura proeminente, ou flexura, na região do
mesencéfalo. Em vez de descrever as estruturas anatômicas rostrais a essa flexura, normalmente
se usam as terminologias superior e inferior. Essa curvatura do eixo reflete a insistência da
flexura cefálica.

79
Unidade I

Determinam-se três planos fundamentais em relação ao eixo longitudinal do SN nos quais as secções
anatômicas são realizadas. As secções horizontais são realizadas paralelamente ao eixo longitudinal, de
um lado a outro. As secções transversais são realizadas perpendicularmente ao eixo longitudinal, entre as
faces anterior e posterior. As secções transversais do hemisfério cerebral são aproximadamente paralelas
à sutura coronal do crânio e, por conseguinte, também denominados cortes coronais. As secções sagitais
são realizadas paralelamente tanto ao eixo longitudinal do SNC quanto à linha mediana, entre as faces
anterior e posterior. Uma secção mediossagital divide o SNC em duas metades simétricas, enquanto
uma secção parassagital é realizada fora da linha mediana.

O quadro a seguir mostra o significado, com exemplos, de alguns afixos ou termos que são utilizados
frequentemente em neuroanatomia.

Quadro 4

Afixos ou termos Significado Exemplo


Arac- Teia de aranha Aracnoide-máter
Braquio Braço Tronco braquiocefálico
Colículo Saliência Colículo inferior
Córtex “Casca” exterior Córtex cerebral
Di- Através Diencéfalo
Dura Duro, resistente Dura-máter
-encéfalo Pertencente ao encéfalo Mesencéfalo
Fago Comer Fagocitose
Fascículo Feixe Fascículo lateral
Foice Em forma de foice Foice do cerebelo
Glosso- Língua Glossofaríngeo
Lemnisco Fita Lemnisco lateral
Mes- Meio Mesencéfalo
Met- Depois Metencéfalo
Miel- Medula Mielencéfalo
Pedúnculo Ponte Pedúnculo cerebelar
Pros- Em Prosencéfalo
Romb- Em forma de diamante Rombencéfalo
Sub- Abaixo Subcortical
Tel- Final Telencéfalo
Trígono Com formato triangular Trígono do n. hipoglosso

3 DIVISÃO E PAPÉIS DO SN

O SN é um todo. Sua divisão em partes tem um significado somente didático, pois estão
intensamente relacionadas dos pontos de vista morfológico e funcional. O SN pode ser decomposto
levando-se em consideração os critérios anatômico, funcional e embriológico. Existe ainda uma
classificação quanto à segmentação.

80
NEUROANATOMIA

3.1 Divisão do SN com base nos critérios anatômicos

Essa divisão, que é uma das mais estimadas, é composta por SNC e SNP. O SNC é aquele que se situa
dentro do esqueleto axial, ou seja, a cavidade craniana e o canal vertebral, constituído pela superposição
dos forames vertebrais; e o SNP é aquele que se situa fora desse esqueleto.

Em geral, idealiza-se que o SNC apresenta duas partes principais, o encéfalo e a medula espinal,
que formam o neuroeixo. O encéfalo é dividido nas seguintes partes: o cérebro, o tronco encefálico e
o cerebelo. O termo cérebro designa o par de hemisférios cerebrais e o diencéfalo. O tronco encefálico
abrange o mesencéfalo, a ponte e o bulbo ou a medula oblonga. No homem, a relação entre o tronco
encefálico e o cérebro pode ser rudemente confrontada à relação que há entre o tronco e a copa de
uma árvore.

A figura a seguir mostra a localização do SNC e do SNP no organismo e esquematiza o encéfalo e a


medula espinal, vistos lateralmente. Os principais nervos periféricos são mostrados em amarelo.

Figura 87 – O sistema nervoso (SN)

Lembrete

De acordo com a localização de suas partes, o SN é dividido em SNC e SNP.

O mesencéfalo é a parte estreita do encéfalo que conecta o cérebro na ponte e no cerebelo. A sua
cavidade estreita é designada como aqueduto do mesencéfalo, que interliga o III ventrículo e o IV ventrículo.
O mesencéfalo compreende muitos núcleos e feixes de fibras nervosas ascendentes e descendentes.

O bulbo apresenta uma forma cônica, conectando-se com a ponte, superiormente, e a medula
espinal, inferiormente. Abrange muitas quantidades de neurônios, designadas de núcleos, e serve de via
para as fibras nervosas ascendentes e descendentes.
81
Unidade I

A ponte situa-se sobre a face anterior do cerebelo, inferior ao mesencéfalo e superior ao bulbo.
Ela deriva o seu nome do amplo número de fibras transversais, que conectam os dois hemisférios
cerebelares, sobre sua face anterior. Também abrange muitos núcleos e fibras nervosas ascendentes
e descendentes.

Lembrete

O tronco encefálico é composto por aglomerados de neurônios


chamados núcleos e por feixes de fibras.

O cerebelo é a formação nervosa volumosa, localizada atrás do bulbo e da ponte, adentrando a


constituição do teto do IV ventrículo. O bulbo, a ponte e o cerebelo rodeiam uma cavidade preenchida
com LCS, o IV ventrículo. Este se conecta superiormente ao III ventrículo por meio do aqueduto do
mesencéfalo; inferiormente, continua com o canal central da medula espinal. Comunica-se com o
espaço subaracnóideo por meio de três aberturas na parte inferior do teto. É através dessas aberturas
que o LCS dentro do SNC atinge o espaço subaracnóideo.

O cérebro, a maior parte do encéfalo, compõe-se de dois hemisférios, que são conectados por
uma massa de substância branca, designada como corpo caloso. Cada hemisfério cerebral expande‑se
do osso frontal ao osso occipital no crânio: superiormente à fossa anterior do crânio e à fossa
média do crânio; posteriormente, o cérebro permanece acima do tentório do cerebelo. Os hemisférios
cerebrais são separados por uma fenda profunda, a fissura longitudinal do cérebro, dentro da qual se
projeta a foice do cérebro.

A figura a seguir mostra em secção sagital mediana o encéfalo. É possível observar o tronco
encefálico, a estrutura cerebelar com suas fissuras e folhas, seu córtex, superficialmente, e sua região
profunda composta de substância branca, na qual se encontram seus núcleos profundos.

Figura 88 – Tronco encefálico e cerebelo

82
NEUROANATOMIA

O diencéfalo está quase totalmente escondido da superfície do encéfalo. Inclui o tálamo, dorsalmente,
e o hipotálamo, ventralmente. O tálamo é uma massa ovoide, ampla de substância cinzenta, que se
localiza de cada lado do III ventrículo. A sua extremidade anterior constitui o limite posterior do forame
interventricular, a abertura entre os ventrículos laterais e o III ventrículo. O hipotálamo compõe a parte
inferior da parede lateral e o assoalho do III ventrículo.

Lembrete

Uma das regiões mais relevantes do SNC, o hipotálamo, pertence


ao diencéfalo.

A medula espinal localiza-se dentro do canal vertebral, na coluna vertebral, e é envolvida por três
meninges: a dura-máter, a aracnoide-máter e a pia-máter. A medula espinal é aproximadamente
cilíndrica; inicia superiormente no forame magno do crânio, onde é contínua com o bulbo, e
acaba inferiormente na região lombar. Abaixo, a medula espinal afila-se no cone medular, a partir
do ápice do qual um prolongamento da pia-máter, o filamento terminal, desce para aderir ao
dorso do cóccix.

Figura 89 – Região proximal da medula espinal, dentro do canal vertebral (a parte posterior das
vértebras foi removida para exposição da medula). Em sua parte proximal, observa-se sua
conformação cilíndrica e a emergência de filetes nervosos que formam os nervos espinais.
Vê-se, ainda, a dura-máter, semirremovida nesta peça

83
Unidade I

Figura 90 – Em sua região distal, vê-se sua terminação cônica e a


cauda equina, que preenche a porção distal do canal vertebral

O SNP abrange os nervos cranianos e espinais, bem como os gânglios e as terminações nervosas.
Portanto, são vias que transportam os estímulos ao SNC ou que carregam até os órgãos efetuadores as
ordens procedidas da parte central.

Lembrete

Gânglios são grupos de neurônios do exterior do SNC.

Nervos são feixes de axônios periféricos com um trajeto comum.

Os 31 pares de nervos espinais estão aderidos por meio das raízes anteriores ou motoras e das raízes
posteriores ou sensitivas. Cada raiz adere à medula por uma sequência de radículas, as quais abraçam
toda a extensão do segmento medular correspondente. Cada raiz nervosa posterior possui um gânglio
da raiz posterior, cujas células dão origem às fibras nervosas periféricas e centrais.

Os 12 pares de nervos cranianos estão conectados com o encéfalo; os 2 primeiros pares de nervos
cranianos, o nervo olfatório e o nervo óptico, apresentam origens encefálicas no telencéfalo e no diencéfalo,
respectivamente. Os demais pares de nervos cranianos possuem origens encefálicas no tronco encefálico.

Lembrete

O I par de nervos cranianos, ou nervo olfatório, conduz impulsos


olfatórios originados da cavidade nasal, portanto são nervos sensitivos.

O II par de nervos cranianos, ou nervo óptico, são nervos sensitivos e


conduzem impulsos de visão oriundos da retina.
84
NEUROANATOMIA

Ainda que os nervos fiquem circundados por bainhas fibrosas em seu caminho através de diversas
partes do corpo, eles são relativamente desprotegidos e frequentemente lesionados por traumatismos.

Saiba mais

A análise da evolução filogenética do SN possibilita a concepção da sua


morfologia, que sejam entendidas relações entre os desenvolvimentos e
as interações das estruturas nervosas e os prováveis comportamentos dos
seus referentes seres, provocando questionamentos sobre a própria noção
de fatos, como a consciência. Assim, sugerimos que você aprecie o artigo
científico a seguir:

RIBAS, G. C. Considerações sobre a evolução filogenética do sistema


nervoso, o comportamento e a emergência da consciência. Revista Brasileira
de Psiquiatria, São Paulo, v. 28, n. 4, p. 326-38, 2006. Disponível em: http://
www.scielo.br/pdf/%0D/rbp/v28n4/12.pdf. Acesso em: 4 nov. 2019.

3.2 Divisão do SN do ponto de vista funcional

Do ponto de vista funcional, pode-se dividir o SN em sistema nervoso somático (SNS) e sistema
nervoso visceral (SNV). O SNS é também designado como SN da vida de relação, ou seja, aquele que
relaciona o organismo com o meio. Para isso, a parte aferente do SNS se encaminha aos centros
nervosos gerados em receptores periféricos, comunicando a estes centros sobre o que se passa no
meio ambiente. Em contrapartida, a parte eferente do SNS conduz aos músculos estriados esqueléticos
o comando dos centros nervosos, derivando movimentos que levam a maior relacionamento ou
integração com o meio externo.

O SNV, ou da vida vegetativa, relaciona-se com a inervação das estruturas viscerais e é


muito interessante para a integração da atividade das vísceras no sentido da homeostase. De tal
modo, como o SNS, caracteriza-se no SNV uma parte aferente e outra eferente. O componente
aferente leva os impulsos nervosos oriundos de receptores das vísceras, os visceroceptores, a
áreas específicas do SNC. O componente eferente traz impulsos de certos centros nervosos até
as estruturas viscerais acabando, pois, em glândulas, no músculo liso ou no músculo estriado
cardíaco. Por definição, designa-se como SNA somente o componente eferente do SNV, e o SNA
se divide em simpático e parassimpático.

Observação

O controle de papéis como a digestão, a frequência cardíaca, a micção e


a deglutição é realizado por uma parte do SN chamada de SNA.
85
Unidade I

3.3 Divisão do SN com base na segmentação ou metameria

Pode-se dividir o SN em sistema nervoso segmentar e sistema nervoso suprassegmentar.


A segmentação no SN é demonstrada pela conexão com os nervos. Refere-se, pois, ao sistema nervoso
segmentar todo o SNP, mais aquelas partes do SNC que estão em relação direta com os nervos
típicos, ou seja, a medula espinal e o tronco encefálico. O cérebro e o cerebelo dizem respeito ao
sistema nervoso suprassegmentar. Os nervos olfatório e óptico se ligam ao cérebro, todavia não são
considerados nervos típicos.

De tal modo, nos órgãos do sistema nervoso suprassegmentar, a substância cinzenta situa-se por
fora da substância branca e forma uma camada fina, o córtex, que reveste toda a superfície do órgão.
Já nos órgãos do sistema nervoso segmentar não há córtex, e a substância cinzenta pode se situar por
dentro da branca, como acontece na medula espinal. O sistema nervoso segmentar aportou na evolução
antes do suprassegmentar, e, funcionalmente, pode-se dizer que lhe é subordinado. Da mesma maneira,
as comunicações entre o sistema nervoso suprassegmentar e os órgãos periféricos, os receptores e os
efetuadores, realizam-se por meio do sistema nervoso segmentar.

Lembrete

A substância cinzenta é a parte do tecido nervoso onde predominam


corpos celulares de neurônios, enquanto a substância branca é a parte do
tecido nervoso onde predominam axônios mielínicos.

3.4 Papéis do SN

O SN efetua trabalhos complexos. Ele nos possibilita sentir diversas fragrâncias, dialogar
e recordar acontecimentos do passado. Do mesmo modo, ele produz sinais que controlam os
movimentos corporais e regula o funcionamento dos órgãos internos. Essas várias atividades
podem ser divididas em: sensitivas (aporte), integradoras (processamento) e motoras (saída).

No papel sensitivo, os receptores sensitivos detectam estímulos internos, como o


aumento da pressão arterial, ou estímulos externos, como uma gota de água caindo na
perna. Essas informações sensitivas são levadas ao encéfalo e à medula espinal por meio dos
nervos cranianos e espinais.

No papel integrador, o SN processa as informações sensitivas, avaliando-as e tomando as


resoluções apropriadas para cada resposta em uma atividade designada de integração.

No papel motor, após o processamento das informações sensitivas, o SN pode desencadear


uma resposta motora específica por meio da ativação de efetores, como os músculos e as
glândulas, através dos nervos cranianos e espinais. A estimulação dos efetores gera a contração dos
músculos e a secreção de hormônios pelos órgãos endócrinos.

86
NEUROANATOMIA

Os três papéis fundamentais do SN ocorrem, por exemplo, quando você escuta o aparelho
de telefone tocar. O som do toque estimula receptores sensitivos em suas orelhas, sendo ele o
papel sensitivo. Essas informações auditivas são então transmitidas para o encéfalo, onde são
processadas, e é tomada a decisão de receber o telefonema, sendo ele o papel integrador. Após isso,
o encéfalo estimula a contração de músculos específicos que lhe possibilitarão apanhar o telefone
e apertar a tecla adequada para atendê-lo, sendo ele o papel motor.

O diagrama da figura a seguir mostra uma visão geral funcional do SN, apresentando a relação
entre o SNC e o SNP, assim como os componentes e os papéis das divisões aferentes e eferentes.

Sistema nervoso central


(encéfalo e medula espinal)
Processamento de
informação
Informação Comandos
sensitiva motores na
na parte parte
Sistema eferente
nervoso aferente
periférico Inclui

Sistema nervoso Sistema nervoso


somático autônomo

Parassimpático e simpático

Receptores Receptores
sensitivos sensitivos Músculos lisos
especiais somáticos Músculo
Músculo estriado
estriado cardíaco
esquelético Glândulas
Receptores sensitivos viscerais

Receptores Efetuadores

Figura 91 – Uma visão geral funcional do SN

4 O TECIDO NERVOSO

Os tecidos do organismo são classificados em quatro tipos fundamentais, com base na estrutura e na
função: o tecido epitelial, que forra as superfícies do corpo, as cavidades do corpo, os ductos, e forma as
glândulas; o tecido conjuntivo, que liga, sustenta e protege as partes do corpo; o tecido muscular, que
se contrai para produzir movimentos; e o tecido nervoso, que principia e transmite impulsos nervosos
de uma parte do organismo para outra.

87
Unidade I

O tecido nervoso incide tão somente em dois tipos de células: os neurônios e as neuroglias. Assim,
a menor unidade morfofuncional do SN é o neurônio, e uma célula especializada na transmissão de
impulsos nervosos.

Existem tipos diferentes de neurônios contudo, pode-se observar que eles são constituídos pelos
dendritos, que recebem impulsos de outras células; pelo corpo ou pericário, que é o centro metabólico
do neurônio e onde é processado o impulso nervoso; e pelo axônio, que é o prolongamento que conduz
o impulso nervoso. A figura seguinte mostra uma visão geral dos neurônios. Já a neuroglia (glia = cola)
suporta, nutre, protege os neurônios e mantém a homeostase no líquido intersticial que banha os
neurônios. As neuroglias são em torno de cinco vezes mais numerosas que os neurônios.

Corpo
Núcleo do corpo
Dendrito

Axônio
Bainha de mielina

Figura 92 – Visão geral dos neurônios

Lembrete

O SN é formado por células nervosas, os neurônios, e por células


chamadas de conjunto de neuroglia.

Axônio é o prolongamento do neurônio que leva o potencial de ação do


pericário até seu alvo.

Dendrito é um dos prolongamentos que parte do pericário e recebe um


influxo sináptico.

4.1 Visão geral dos neurônios

Os nomes conferidos aos neurônios foram indicados em razão do seu tamanho, forma, aspecto,
função ou provável descobridor, como a célula de Purkinje, do cerebelo. O tamanho e a forma dos
corpos celulares são bastante variáveis. O diâmetro do corpo celular pode variar de 4 micrômetros a 125
micrômetros, por exemplo, a célula granular do cerebelo, como o neurônio motor da medula espinal.
88
NEUROANATOMIA

Os neurônios podem exibir formas piramidal, ampuliforme, estrelada ou granular. Uma peculiaridade
adicional desses pericários é o número de organização de seus processos. Alguns neurônios têm poucos
dendritos, enquanto outros apresentam numerosas projeções de dendritos. Com exceção de dois tipos
celulares, designados como células amácrinas, sem axônio, como os neurônios da retina e as células
granulares do bulbo olfatório, todos os neurônios têm pelo menos um axônio e um ou mais dendritos.
A figura a seguir ilustra os tipos básicos de neurônios quanto ao número de prolongamentos.

Dendrito

Corpo Corpo

Axônio Corpo
Axônio Axônio
Fusiforme Estrelado Piramidal Piriforme

Figura 93

Os dendritos (grego: déndron = árvore), em geral, são curtos, de alguns micrômetros a alguns
milímetros de comprimento, ramificados como se fossem galhos de uma árvore. Os dendritos têm
“espinhas” que servem como pontos de contato sinápticos.

Os axônios (grego: áxon = eixo), na maioria dos neurônios, são longos e finos, e se originam do
pericário ou de um dendrito principal, em uma região designada como cone de implantação. O axônio
possui comprimento muito variável, dependendo do tipo de neurônio, podendo ter, na espécie humana,
de alguns milímetros a mais de um metro. Eles são mielínicos ou amielínicos.

Lembrete

O axônio, apresentando ou não bainha de mielina, é também


denominado de fibra nervosa.

Cada neurônio apresenta somente um axônio, todavia cada axônio normalmente contém vários ramos
designados como colaterais. Um axônio e seus colaterais acabam em ramos finos separados entre si, designados
como telodendros. A extremidade distal de cada telodendro se expande no interior de pequenas estruturas
em forma de bulbo, denominadas terminações axônicas. Nessas terminações são armazenadas substâncias
químicas, chamadas de neurotransmissores. As moléculas dos neurotransmissores liberadas pelas terminações
axônicas constituem o meio de comunicação em uma sinapse.

Alguns neurônios, entretanto, especializam-se em secreção. Seus axônios terminam próximos a


capilares sanguíneos, que captam o produto de secreção liberado, em geral, um polipeptídio. Os neurônios
desse tipo são designados como neuromoduladores e se encontram na região do cérebro.

89
Unidade I

Lembrete

Neurotransmissores são moléculas envolvidas na transmissão do


impulso nervoso. São eles que medeiam a passagem do sinal elétrico entre
dois neurônios ou entre um neurônio e uma fibra muscular.

Neuromoduladores são substâncias químicas aptas a alterar a


transmissão do impulso nervoso.

4.2 Classificação dos neurônios

Os neurônios podem ser classificados de acordo com a sua forma e função. Quanto à forma,
distinguem-se em neurônios multipolares, com muitos dendritos que se estendem a partir de todo o
corpo. Os neurônios multipolares são encontrados no corno anterior da medula espinal, nas células de
Purkinje no córtex do cerebelo e nas células piramidais no córtex do telencéfalo.

Outro tipo de neurônio classificado em razão de sua forma são os neurônios bipolares, que possuem
um dendrito e um axônio, e estão presentes na retina, no epitélio olfatório, em gânglios dos nervos
cranianos e na orelha interna.

Os neurônios pseudounipolares são os que apresentam um axônio dendrítico e se desenvolvem


durante o período fetal de um neurônio bipolar. Eles são encontrados no gânglio espinal e nos gânglios
sensitivos dos nervos trigêmeo, facial, glossofaríngeo e vago.

Por fim, os neurônios unipolares aparecem raramente em vertebrados e são encontrados,


principalmente, durante a embriogênese. A figura a seguir ilustra os neurônios classificados quanto
à forma.

Unipolar Bipolar Pseudounipolar Mutipolar

Figura 94

90
NEUROANATOMIA

Funcionalmente, os neurônios podem ser classificados em três tipos: aferentes ou sensitivos;


eferentes ou motores; interneurônios ou de associação. Os neurônios sensitivos são aqueles que
transmitem o impulso oriundo da periferia para a parte central do SN. Os neurônios motores transmitem
o impulso da parte central do SN em direção à periferia. Os interneurônios realizam a conexão
entre os neurônios na parte central do SN, ou seja, ligam um neurônio a outro.

Lembrete

Neurônio sensitivo ou neurônio aferente leva a informação ao SNC.

Neurônio motor é o que inerva o músculo estriado esquelético e a


musculatura lisa das vísceras.

Interneurônio, situado entre dois outros neurônios, apresenta


prolongamentos curtos.

4.3 Sinapses

As sinapses são pontos de transmissão descontínua de estímulos de um neurônio para outro ou


para uma célula efetora, sendo ela um músculo ou uma glândula. Quanto à forma e ao modo de
funcionamento, reconhecem-se dois tipos de sinapses: elétricas e químicas.

4.4 Arco reflexo

Os impulsos nervosos que se difundem em direção ao SNC, dentro ou fora dele, adotam modelos
característicos, dependendo do tipo de informação, origem e destino. A via seguida pelos impulsos
nervosos que geram um reflexo é designada como arco reflexo.

Etapa 1 Etapa 2 Sensação


Ativação de
Raiz transmitida ao
Chegada do Posterior
estímulo e um neurônio encéfalo via
ativação do sensitivo colateral
receptor

ARCO
REFLEXO
Estímulo Receptor
Legenda
--- Neurônio sensitivo
Efetuador Raiz
Etapa 3 (estimulado)
Anterior --- Interneurônio
Etapa 4 Processamento
Etapa 5 da informação excitador
Ativação do
Resposta do neurônio no SNC --- Neurônio
efetuador motor motor (estimulado)

Figura 95

91
Unidade I

Lembrete

Reflexo é uma continuação rápida e previsível de ações involuntárias


que ocorrem em resposta a determinadas alterações no ambiente.

Os reflexos, em geral, são usados para o diagnóstico de distúrbios do SN e para a localização da lesão.
Caso um reflexo esteja ausente ou aguçado, o enfermeiro pode desconfiar de que a lesão se situa em
algum local de uma certa via de condução. Diversos reflexos somáticos podem ser testados por meio
da simples percussão de determinadas partes do organismo. Entre os reflexos somáticos clinicamente
relevantes estão os seguintes:

• Reflexo patelar: esse reflexo de estiramento compreende a extensão da perna ao nível do joelho,
por meio da contração do músculo quadríceps femoral, em resposta à percussão do ligamento
patelar. Ele é inibido por lesões em nervos sensitivos ou motores que suprem o músculo, ou em
centros de integração situados no segundo, terceiro ou quarto segmentos lombares da medula
espinal. Geralmente, está ausente em indivíduos com diabetes mellitus ou neurossífilis, uma
vez que acarretam degeneração dos nervos. Tal reflexo está aguçado em doenças ou lesões que
envolvem determinados tratos motores descendentes que se originam de centros superiores do
encéfalo e se direcionam para a medula espinal.

• Reflexo aquileu: esse reflexo de estiramento compreende a flexão plantar do pé, por meio da
contração dos músculos gastrocnêmios medial, lateral e sóleo, em resposta à percussão do tendão
de Aquiles. A ausência desse reflexo sugere lesão dos nervos que suprem os músculos posteriores
da perna ou dos neurônios da região lombossacral da medula espinal. Ele também pode ocultar‑se
em indivíduos com diabetes mellitus, neurossífilis, etilismo e hemorragias subaracnóideas. Um
reflexo aquileu aguçado sugere compressão medular ou lesão dos tratos motores do primeiro e
do segundo segmentos sacrais da medula.

• Sinal de Babinski: esse reflexo é produzido por meio da estimulação branda da margem lateral
da planta do pé. O hálux se estende, com ou sem abertura em leque dos outros dedos dos pés. Esse
acontecimento normalmente é visto em crianças com menos de um ano e meio de idade devido
à mielinização incompleta das fibras do trato corticospinal. A constância do sinal de Babinski
após essa idade é anormal e sugere intercepção do trato corticospinal secundária a uma lesão,
em geral, na sua parte superior. A resposta almejada após um ano e meio de idade é o reflexo de
flexão plantar, ou Babinski ausente, isto é, a flexão plantar de todos os dedos dos pés.

• Reflexo cutâneo abdominal: esse reflexo compreende a contração dos músculos que compõem
a parede abdominal em resposta à estimulação da parte lateral do abdome. A resposta almejada
é uma contração da musculatura abdominal, acontecimento que gera o desvio do umbigo no
sentido do estímulo. A ausência desse reflexo está agregada a lesões nos tratos corticospinais.
Ele também pode estar ausente em lesões dos nervos periféricos ou dos centros de integração na
parte torácica da medula espinal, como pode acontecer, neste último caso, na esclerose múltipla.

92
NEUROANATOMIA

A maioria dos reflexos autônomos não é instrumento diagnóstico prático, pois é penoso
estimular os efetores viscerais, localizados em partes internas do organismo. Uma ressalva é o
reflexo pupilar, no qual as pupilas reduzem de diâmetro quando os olhos são sujeitos à luz. Como
esse arco reflexo abrange sinapses de partes inferiores do encéfalo, a ausência do reflexo pupilar
normal pode sugerir lesão encefálica.

4.5 Neurogênese no SNC

A neurogênese, ou seja, a formação de novos neurônios a partir de células-tronco indiferenciadas,


ocorre com frequência em alguns animais, por exemplo, novos neurônios surgem e esvaecem, a
cada ano, em alguns pássaros canoros. No passado, o mistério em humanos e em outros primatas
era: “não existiriam novos neurônios” no encéfalo adulto.

Em 1992, cientistas canadenses descobriram sua imprevista revelação de que o fator de


crescimento epidérmico (EGF), proteína parecida com um hormônio, estimulava células removidas
de encéfalos de ratos adultos a se multiplicarem, como neurônios e astrócitos. Antes, conhecia-se que
o EGF excitava a mitose em uma série de células não neuronais e gerava a cicatrização de lesões e a
regeneração tecidual. Em 1998, pesquisadores mostraram que um número significativo de neurônios
surge no hipocampo adulto, região encefálica crucial para o aprendizado.

A quase completa falta de neurogênese em outras áreas do encéfalo e da medula espinal parece
ser resultado de dois fatores: influências inibitórias da neuroglia, principalmente dos oligodendrócitos,
e falta de estímulos para o crescimento que estavam presentes durante o período fetal.

Os axônios do SNC são mielinizados pelos oligodendrócitos, e não pelas células de Schwann;
essa mielina do SNC é um dos fatores que bloqueiam a regeneração neuronal. Quem sabe, o mesmo
mecanismo obstrua o desenvolvimento do axônio, uma vez que se alcance uma certa região-alvo
durante o desenvolvimento.

Do mesmo modo, posteriormente a uma lesão no axônio, os astrócitos vizinhos multiplicam‑se


velozmente, compondo um tipo de tecido cicatricial que atua como um obstáculo físico para a
regeneração. Assim, uma lesão no encéfalo ou na medula espinal se torna persistente. Investigações em
decurso procuram formas de aperfeiçoar o ambiente para que os axônios medulares existentes possam
atingir as regiões lesadas. Pesquisadores também estão tentando achar formas de excitar células-tronco
adormecidas a “trocar” neurônios inutilizados durante uma lesão ou patologia e de desenvolver neurônios
formados em laboratório que possam ser usados em eventuais transplantes.

4.6 Lesão e reparo no SNP

Os axônios e os dendritos que estão acompanhados de um neurolema podem ser reparados, contanto
que o pericário esteja ileso, as células de Schwann continuem funcionais e não tenha sucedido uma
ligeira organização de tecido cicatricial. A maioria dos nervos no SNP é constituída por prolongamentos
que são cobertos por neurolema. Um indivíduo que apresenta uma lesão nos axônios de um nervo do
membro superior, por exemplo, tem uma excelente oportunidade de readquirir o papel do neurônio.
93
Unidade I

4.7 Neuroglias

Outras células compõem, ainda, o SN, auxiliando para fornecer sustentação funcional ao neurônio – cada
uma com um papel definido – e formando coletivamente as neuroglias – células da glia ou gliócitos. Algumas
neuroglias são encontradas no SNC e no SNP, além de serem as células mais comuns do tecido nervoso,
podendo a proporção entre neurônios e neuroglias variar de 1:10 a 1:50. Em comparação aos neurônios, a
neuroglia não produz nem conduz impulsos nervosos e pode multiplicar-se e dividir-se no SN maduro.

Lembrete

As células da neuroglia desempenham diversos tipos de papéis relevantes


no SN tanto no SNC como no SNP.

4.8 Neuroglias no SNC

No SNC, a neuroglia compreende: os astrócitos, os oligodendrócitos, a micróglia e um tipo de glia


com disposição epitelial, as células ependimárias. Os astrócitos (grego: astronm = estrela); (grego:
kytos = vaso oco) possuem semelhança a uma estrela e estão entre as neuroglias mais numerosas e
maiores no encéfalo.

Há dois tipos de astrócitos: os protoplasmáticos, localizados na substância cinzenta, e os fibrosos,


encontrados na substância branca. São funções dos astrócitos: a manutenção da constância no meio
interno do SNC, por meio da ingestão de metabólitos neuronais; a participação na estrutura da barreira
hematoencefálica; a fagocitose de células mortas; a cicatrização no SNC, por exemplo, após infarto
cerebral, em caso de esclerose múltipla; a formação e o intercâmbio do glutamato; além da sustentação
e do isolamento de neurônios.

Figura 96 – Astrócitos protoplasmáticos e astrócitos fibrosos

94
NEUROANATOMIA

Lembrete

Os astrócitos realizam os papéis de sustentação e isolamento do neurônio.

Os oligodendrócitos (grego: oligo = pouco); (grego: dendron = árvore); (grego: glia = cola) são menores
do que os astrócitos e possuem poucos prolongamentos, que também podem formar pés vasculares.
O papel dos oligodendrócitos é a produção das bainhas de mielina que servem de isolantes elétricos para
os neurônios do SNC. Um único oligodendrócito contribui para a formação da mielina de vários axônios.

As micróglias (grego: micros = pequeno); (grego: glia = cola), diferentemente de outros neurônios
e outras neuroglias, é de origem mesodérmica e aparece precocemente durante o desenvolvimento do
SNC. Elas são células pequenas e alongadas, que possuem poucos prolongamentos e desempenham o
papel de defesa do neurônio. Dentre os papéis das micróglias estão: a apresentação de antígenos; a
fagocitose; a mobilidade ameboide; e as secreções de citocinas e de fatores de crescimento. A figura a
seguir ilustra diferentes tipos de células da neuroglia no SNC.

Figura 97 – Oligodendrócitos e micróglias

As células ependimárias (grego: ependyma = roupa de cima) são células cuboides ou prismáticas
que forram, como epitélio de revestimento simples, as paredes dos ventrículos encefálicos, do
aqueduto do mesencéfalo e do canal da medula espinal. Um tipo de célula ependimária modificada
recobre tufos de tecido conjuntivo, rico em capilares sanguíneos, que se projetam da pia-máter,
constituindo os plexos corióideos, responsáveis pela formação do líquido cerebrospinal. Ela tem a
função de regulação das trocas entre o LCS dentro dos ventrículos encefálicos e no canal da medula
espinal mediante movimentos ciliares.

Além disso, há sugestão de que as células ependimárias também apresentariam um papel absortivo.
Crê-se que as tais células carreguem substâncias químicas do LCS para a hipófise, cujo desempenho
implicaria administração da produção de hormônios pelo lobo anterior da hipófise.

Lembrete

As células ependimárias localizam-se nos ventrículos e estão associadas


à produção do LCS.
95
Unidade I

Astrócito

Micróglia

Vaso de sangue

Neurônio Oligodendrócito

Figura 98 – Visão esquemática da disposição das neuroglias no SNC

4.9 Neuroglias no SNP

A neuroglia periférica compreende as células-satélites, ou anfícitos, e as células de Schwann, oriundas


da crista neural. Assim, as células-satélites envolvem os corpos celulares, dos gânglios sensitivos e do
SNA, e as células de Schwann circundam os axônios, formando os seus envoltórios, quais sejam: a
bainha de mielina e o neurilema. Cada célula de Schwann mieliniza apenas um axônio. Já os papéis
das células-satélites consistem em regular a troca de nutrientes e produtos residuais entre o pericário
e o líquido extracelular, bem como em colaboram para o isolamento do neurônio de quaisquer outros
estímulos que não sejam aqueles situados nas sinapses.

Saiba mais
Confrontado com outras espécies, o encéfalo humano é o mais complexo
e influente, porque, além do grande número de neurônios, apresenta a
capacidade admirável de reparar seus próprios papéis. O encéfalo expõe
o crescimento de conexões neuronais. Durante nossa vida, somente um
neurônio pode realizar de 6 mil a 20 mil conexões sinápticas com outros
neurônios situados em várias partes do encéfalo, e o número de sinapses
que cada neurônio é apto a fazer tem maior importância no papel encefálico
do que o próprio número dessas células. Nosso encéfalo teve um longo
caminho evolutivo. Com o intuito de desvendar os mistérios encefálicos,
indicamos a leitura do seguinte artigo científico:
SCHMIDEK, W. R.; CANTOS, G. A. Evolução do sistema nervoso,
especialização hemisférica e plasticidade cerebral: um caminho ainda a ser
percorrido. Revista Pensamento Biocêntrico, Pelotas, n. 10, jul./dez. 2008.
Disponível em: http://www.fflch.usp.br/df/opessoa/Evolucao-Cerebro.pdf.
Acesso em: 4 set. 2016.

96
NEUROANATOMIA

Resumo

A anatomia humana é a ciência que estuda a estrutura do organismo


humano. A terminologia anatômica é descrita, geralmente, com vocábulos
de origem grega ou latina.

A história da anatomia é similar à da medicina e também foi


influenciada por diversas religiões. O interesse pré-histórico pela
anatomia foi indiscutivelmente limitado à observação e puramente
baseado no misticismo.

A anatomia encontrou grande aprovação como uma ciência,


primeiramente, na Grécia Antiga. Alexandria foi um centro de aprendizagem
científica, local em que foram realizadas dissecações e vivissecções. Durante
o período romano, Galeno, um médico influente, fez alguns avanços
relevantes na área, mas, ao mesmo tempo, implantou erros graves na
literatura que se tornaram incontestáveis durante séculos.

Na Idade Média, a anatomia sofreu forte repressão religiosa e as


dissecações de cadáveres humanos foram proibidas. Durante as Cruzadas,
as escritas anatômicas foram levadas de Alexandria pelos árabes, cujos
estudos foram bastante relevantes nesse período.

No Rensacimento, diversas universidades se estabeleceram na Europa,


sendo o médico Andreas Vesalius considerado o pai da anatomia.

A plastinação é uma técnica anatômica que envolve polêmicas bioéticas,


pois os cadáveres humanos são mostrados em exposições e faculdades
de medicina.

O sistema nervoso central (SN) é formado pelo encéfalo e pela medula


espinal e apresenta substâncias cinzentas e brancas. Está envolvido por
meninges e banhado em LCS. A dura-máter é a meninge mais externa,
espessa e em contato íntimo com o tecido ósseo. A aracnoide-máter é
uma meninge em forma de rede que envolve o espaço subaracnóideo, que
contem LCS. A delgada pia-máter é juntada em todo o contorno do SNC.

Os ventrículos laterais (I e II), bem como o III e o IV, são cavidades


interligadas no interior do encéfalo que são sucessivas com o canal
central da medula espinal. Essas cavidades são cheias de LCS, que se
compõe ininterruptamente pelos plexos corióideos a partir do plasma
sanguíneo, sendo reabsorvido para o sangue pelas granulações aracnóideas.

97
Unidade I

Os neurônios são as unidades fundamentais estruturais e funcionais do


SN; e as células especializadas, chamadas neuroglias, oferecem suporte
estrutural e funcional para suas atividades. Um neurônio apresenta
dendritos, um corpo celular e um axônio. Há vários tipos de neuroglias,
como os oligodendrócitos, as micróglias, os astrócitos e as células.

Exercícios

Questão 1. Funcionalmente, o tronco encefálico serve para conduzir os tratos do cérebro para a
periferia como também da periferia para a porção central do sistema nervoso central; o tronco possui
diversos núcleos (acúmulos de neurônios), sendo responsáveis por controles sofisticados ditos reflexos,
como respiração, frequência cardíaca, tônus vascular, tônus intestinal e vesical, entre outros. Podemos
atribuir ao tronco cerebral o controle de várias funções, exceto:

A) Crescimento.

B) Equilíbrio.

C) Respiração.

D) Cardiovascular.

E) Gastrointestinal.

Resposta correta: alternativa A.

Análise das alternativas

A) Alternativa correta.

Justificativa: o hormônio do crescimento (GH), também chamado de somatotrofina ou somatotropina


(ST), é sintetizado e secretado pela hipófise, ou seja, está fora do tronco encefálico, e não há nenhuma
estrutura com função parecida no tronco encefálico.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa: quanto ao equilíbrio, isso pode gerar confusão, pois lembramos imediatamente da
influência do cerebelo, que também atua na manutenção do equilíbrio, mas não se pode esquecer do
vestíbulo-coclear. Além desse nervo, localizado no tronco encefálico, os núcleos reticulares-pontinos
excitam e os bulbares inibem os músculos antigravitários da coluna vertebral.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa: o bulbo controla a frequência e a amplitude da respiração.


98
NEUROANATOMIA

D) Alternativa incorreta.

Justificativa: o bulbo controla os batimentos cardíacos.

E) Alternativa incorreta.

Justificativa: o tronco encefálico exerce ação parcial sobre o controle gastrointestinal.

Questão 2. (FGV/Fiocruz, 2010) Em relação ao tecido nervoso, são células da glia encontradas no
sistema nervoso central:

A) Astrócitos, oligodendrócitos e células ependimárias.

B) Astrócitos, oligodendrócitos e células de Purkinje.

C) Oligodendrócitos, células de Purkinje e micróglia.

D) Micróglia, células ependimárias e células de Purkinje.

E) Micróglia, células de Mott e células de Schwann.

Resposta correta: alternativa A.

Análise das alternativas

A) Alternativa correta.

Justificativa: as células da glia fazem parte do sistema nervoso, são células auxiliares que possuem
a função de suporte ao funcionamento do sistema nervoso central (SNC). Estima-se que haja no SNC
dez células da glia para cada neurônio, mas devido ao seu reduzido tamanho elas ocupam a metade
do volume do tecido nervoso. Elas diferem em forma e função, sendo elas: oligodendrócitos, astrócitos,
células de Schwann, células ependimárias e micróglia.

B) Alternativa incorreta.

Justificativa: as células de Purkinje não fazem parte das células da glia. São os únicos neurônios do
cerebelo capazes de transmitir impulsos eferentes formados no córtex cerebelar. Os seus axônios têm
origem na base de cada célula, atravessando a camada granulosa e a substância branca em seu trajeto
em direção aos núcleos profundos do cerebelo.

C) Alternativa incorreta.

Justificativa: os oligodendrócitos formam a bainha de mielina do sistema nervoso central e as


micróglias fagocitam corpos estranhos. Ambos fazem parte da neuroglia, exceto as células de Purkinje.
99
Unidade I

D) Alternativa incorreta.

Justificativa: as células ependimárias formam barreiras de proteção e compreendem a neuroglia


epitelial, enquanto as micróglias são os vigilantes ativos do SNC, porém as células de Purkinje não
pertencem à neuroglia.

E) Alternativa incorreta.

Justificativa: as células de Schwann fazem a bainha de mielina do sistema nervoso periférico enquanto as
micróglias pertencem à neuroglia, as células de Mott não pertencem.

100

Você também pode gostar