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Endossando a noção cientificamente correcta enunciada por Anaxágoras, Hipócrates afirma que
«do cérebro, e apenas do cérebro, surgem os nossos prazeres, alegrias, bem como as nossas
tristezas, dor, pesar e lágrimas. É este mesmo órgão que nos torna loucos ou delirantes,
influencia-nos com terror e medo, traz a insónia e a ansiedade despropositada». (Hipócrates)
«Quando o corpo está desperto, a alma é a sua serva e divide a sua atenção entre ouvir, ver,
etc., mas quando o corpo está em repouso, a alma administra o seu próprio lar». (Hipócrates)
A nova ciência médica elaborada por Hipócrates pode ser caracterizada por dois traços
fundamentais - além da sua rigorosa etiologia: a consideração do homem, da sua saúde e da
sua doença, em relação não só com todo o seu organismo, mas também com toda a natureza
que o rodeia, e até mesmo com o cosmos no seu conjunto, em especial com os fenómenos
meteorológicos, donde resultou a designação medicina meteorológica dada ao seu método
(1), e o profundo respeito pela natureza que define de modo quase religioso o grande médico,
bem como a sua profunda compreensão racional da natureza (2). O Juramento de Hipócrates
ajuda a compreender a adesão do médico ao habitus antropológico: a intervenção médica,
com a sua tendência a melhorar a condição vital do homem e a curar, desperta no seio da
ciência médica o problema da concepção do homem, cuja saúde se pretende restaurar. O ideal
do meio com a função de uma mediação necessária no processo de restauração da saúde
desempenha um papel fundamental na medicina hipocrática e na cultura médica antiga: a
Fisiologia hipocrática elementar e a Patologia humoral - um contributo do genro de
Hipócrates, Polibo (Vide Sobre a Natureza do Homem) - exibem uma orientação cosmológica,
e o homem - enquanto natureza biológica, physis - está orientado para um nomos
sociologicamente estilizado, atribuindo-se à medicina funções harmonizadoras. O corpo
humano como imitação do universo é um pequeno mundo com todas as relações lábeis de
equilíbrio, tais como as que são produzidas pela mudança das estações, pela circulação dos
elementos, e pela mudança do clima: «Quem quiser aprender bem a arte de médico - escreve
Hipócrates - deve proceder assim: em primeiro lugar há-de ter presentes as estações do ano e
os seus efeitos, pois nem todas são iguais mas diferem radicalmente quanto à sua essência
específica e quanto às suas mudanças. Deve ainda observar os ventos quentes e frios,
começando pelos que são comuns a todos os homens e continuando pelos característicos de
cada região. Deve ter presentes também os efeitos dos diversos géneros de água. Estas
distinguem-se não só pela densidade e pelo sabor, mas ainda por suas virtudes. Quando um
médico - o médico ambulante ou nómada - chegar a uma cidade desconhecida para ele, deve
determinar, antes de mais, a posição que ela ocupa quanto às várias correntes de ar e quanto
ao curso do Sol... assim como anotar o que se refere às águas... e à qualidade do solo... Se
conhecer o que diz respeito à mudança das estações e do clima, e o nascimento e o ocaso dos
astros... conhecerá antecipadamente a qualidade do ano... Pode ser que alguém julgue isto
demasiadamente orientado para a ciência - a ciência da Jónia, claro -, mas quem tal pensar
pode convencer-se, se alguma coisa for capaz de aprender, que a Astronomia pode contribuir
essencialmente para a Medicina, pois a mudança nas doenças do homem está relacionada com
a mudança do clima» (Sobre os Ventos, a Água e os Lugares). A physis que garante a estrutura
cósmica é uma força que age por trás sem se apresentar como pura força natural; pelo
contrário, a physisapresenta o homem como um ser repleto de deficiências. A função da
terapêutica écompensar essas deficiências do homem, de modo a devolver-lhe a saúde: «A arte
dos médicos liberta apenas da dor, eliminando desta forma o que torna a pessoa doente e
restituindo-lhe a saúde. Também a natureza pode fazer isto, aliás por si mesma, sem ser
instruída por ninguém e produzindo sempre o que é correcto» (Hipócrates). Neste sentido, a
medicina é essencialmente formação do homem, isto é, antropoplástica, e a sua techne
therapeutike - arte terapêutica - consiste no cuidado privado do corpo e num serviço
público em prol da saúde (politike). De acordo com esta concepção, a saúde como critério de
equilíbrio ou simetria das forças na proporção adequada - a noção de isomoiria de Sólon, isto
é, a ideia de que o estado são e normal depende da proporção idêntica entre os elementos
fundamentais de um organismo e da natureza no seu conjunto - refere-se sempre à natureza, ao
mesmo tempo que a ultrapassa para englobar todas as condições de vida e da sociedade,
incluindo a luz e o ar, a comida e a bebida, o trabalho e o descanso, o sono e o estado de vigília,
as excreções e as eliminações ou até mesmo os afectos da alma. Além do regime alimentar,
incluem-se aqui - juntamente com a Dietética - as influências ou os efeitos do ar e da água, os
grandes ritmos do trabalho e do lazer, do estar acordado e do sono, os exercícios corporais e a
higiene sexual, o domínio das paixões, enfim tudo o que pode ser útil à saúde e capaz de
recuperar o justo meio termo (mesotes) perdido pelo homem doente: o verdadeiro
temperamentum é, pois, orientar o homem para uma Ortobiótica e para uma Macrobiótica,
para a arte de prolongar a vida, dando-lhe maior profundidade, enriquecendo-a e
imprimindo-lhe sentido.
O chamado Corpus Hippocraticum (Cf. E. Littré, 1839) reúne cinquenta e três escritos, mas nem
todos eles são da autoria de Hipócrates: só os escritos mais antigos podem ser atribuídos a
Hipócrates e, destes últimos, os mais notáveis são Sobre a Doença Sagrada e Sobre os Ares, a
Água e os Lugares. Os três tipos de medicina identificados por Bourgey encontram-se presentes
nesta colecção hipocrática, mas é relativamente fácil distinguir os escritos da escola de Cnido
dos escritos da escola de Cós no que se refere aos tratados sobre as Doenças - ou
Enfermidades. Além dos escritos já referidos, o Prognóstico, os livros I e III das Doenças, os
escritos cirúrgicos - Sobre a Fractura dos Ossos e Sobre a Redução das Luxações ou da
articulação dos membros - e a colecção dos Aforismos são geralmente atribuídos a Hipócrates
(Cf. K. Deichgraeber, 1933). A ciência médica que surge na Hélade não está separada da vida
geral do espírito e, à semelhança do que a Filosofia e a Poesia faziam, procura conquistar um
lugar firme dentro da vida cultural, dirigindo-se ao homem como tal. Para alcançar este
objectivo, os médicos gregos esforçam-se conscientemente por comunicar às pessoas os seus
conhecimentos e por encontrar os meios e as vias necessárias para os tornar inteligíveis: as
suas obras falam muito de leigos e de profissionais. A palavra leigo era usada pela Igreja
medieval para designar os não-clérigos e mais tarde, em sentido lato, os não-professos. A
palavra grega que exprime a mesma ideia é idiotes e, por causa da sua origem político-social,
era usada para designar o indivíduo que não está enquadrado no Estado e na comunidade
humana, vivendo a seu bel-prazer. O médico define-se por oposição ao idiotes como um
demiurgo, isto é, como um homem de acção pública no plano social, e como um homem cuja
actividade demiúrgica tem como objecto os leigos ou membros do demos, no plano técnico. O
nomos hipocrático estabelece claramente esta distinção religiosa entre o profissional e o leigo,
o iniciado e o não-iniciado: «Só aos homens consagrados se revelam as coisas consagradas;
é vedado revelá-las aos profanos, enquanto não estiverem iniciados nos mistérios do saber». O
corporativismo médico subjacente a esta distinção entre dois tipos de homens não levou o
grupo profissional dos médicos - detentor de uma «ciência oculta» - a fechar-se à comunidade
dos homens. Ao lado de uma literatura profissional à qual pertence a maior parte dos tratados
médicos gregos, surgiu uma literatura médica especial que se destinava ao ensino dos leigos -
ao grande público - e à própria propaganda médica. Os livros Sobre a Medicina Antiga, Sobre
a Doença Sagrada, Sobre a Natureza do Homem, Sobre a Arte e Sobre a Dietapertencem a
este último grupo literário que tenta realçar a importância pública da profissão médica: «Esta
techne - diz o autor Da Medicina Antiga - deve estar mais atenta do que outra qualquer à
preocupação de falar aos profanos em termos inteligíveis». Aristóteles e Platão destacaram
outra distinção entre o investigador profissional da natureza e a pessoa culta em matéria de
ciência natural - o cidadão livre medicamente informado, mas coube a Platão ver na paideia
médica, baseada num esclarecimento a fundo do doente, o ideal da terapêutica científica. Nas
Leis, Platão distingue dois tipos de médicos - o médico dos escravos e o médico dos homens
livres - em função do modo como cada um deles procede para com os seus doentes: «Se um
destes médicos - dos escravos que correm duns pacientes para os outros sem fundamentar os
seus actos - ouvisse falar um médico livre a pacientes livres, em termos muito aproximados dos
das conferências científicas, explicando como concebe a origem da doença e elevando-se à
natureza de todos os corpos, perder-se-ia certamente de riso e diria o que a maioria das
pessoas chamadas médicos replicam prontamente em tais casos: o que fazes, néscio, não é
curar o teu paciente, mas ensiná-lo, como se a tua missão não fosse devolver-lhe a saúde, mas
fazer dele médico».
Prognóstico. Neste escrito, Hipócrates discute a questão de saber se o médico pode - e como -
prever o desenrolar de uma doença e, especialmente, se a doença pode ser curada ou se
conduz à morte, bem como a questão da determinação com base na experiência dos «dias
críticos» de certas doenças. Tal como o vidente, o médico deve saber e poder dizer «o que foi,
o que é e o que será», cada um deles utilizando os seus próprios «signos» ou «sinais». Porém,
a diferença entre o vidente e o médico é descomunal, porque, enquanto o primeiro utiliza os
signos traçados pelos pássaros para ler a vontade dos deuses e, deste modo arbitrário, prever
os acontecimentos futuros, o médico utiliza os sintomas de uma doença para identificar e
reconhecer as suas causas, a sua natureza e o seu decurso. No caso do vidente, não há
qualquer tipo de conexão causal, mas, no caso do médico, o seu conhecimento pressupõe uma
ordem natural firme e uma «lei», um cosmos. Com o surgimento da medicina hipocrática, o
pensamento mítico cedeu o seu lugar ao pensamento científico.