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1 Atos dos Apóstolos – Faculdade Dehoniana 2020.2 – 4º semestre de Teologia – Prof. Pe.

Claudio Buss,scj

A “REUNIÃO EM JERUSALÉM”

(At 2,1-13)

✓ No livro dos Atos, depois da Ascensão, o Pentecostes é o segundo grande marco do nascimento
da Igreja. A Ascensão e o Pentecostes constituem dois painéis de um único mistério. O Cristo
de João diz: “é para o vosso bem que eu parta, pois, se não for, o Paráclito não virá a vós. Mas
se for, enviá-lo-ei a vós” (Jo 16,7).
✓ Realiza-se a promessa de Jesus Ressuscitado feita aos discípulos antes de subir ao céu: vem o
Espírito Santo, constitui-se a Igreja, e começa a missão destinada a espalhar-se pelo mundo
afora. A vinda do Espírito Santo conclui o período de preparação e inaugura o da missão
(semelhança com Lc 4,18).
✓ O relato é uma construção teológica, rica de elementos da tradição, que reflete sobre a
experiência carismática da Igreja dos primeiros tempos. Nela misturam-se traços teofânicos,
elementos catequéticos, referências ao Antigo Testamento, títulos cristológicos.
✓ Sendo assim, o Espírito de Pentecostes, como força renovadora e unificante de Deus, reúne ao
redor dos apóstolos, que dela estão repletos, os representantes da nova humanidade, isto é, os
povos do mundo habitado (2,1-13).1

ARTICULAÇÃO DO TEXTO:

✓ Muito simples, mas significativa. Interessante como Lucas coloca em um determinado


momento histórico aspectos sobrenaturais do mistério pascal; ele periodiza a história da
salvação. “Jesus ressuscitado enviou o Espírito Santo prometido do Pai; e com a efusão do
Espírito Santo se abre a missão da Igreja iniciando com Israel, e agora incluindo todas as
nações (como subentendido no elenco de povos nos vv. 9-11a) ”.
1. Na primeira cena (2,1-4) se está em “um lugar fechado” (casa): “Todos juntos (reunidos)
no mesmo lugar”! O evento que envolve os habitantes do mesmo lugar é descrito com a
riqueza de elementos particulares, dois símbolos clássicos das teofanias, o vento
(tempestade) e o fogo.
2. Na segunda cena (2,5-13) a câmera se move: enquadra Jerusalém com a multidão que
observa. Na primeira cena, na casa, se fala de “todos que estavam reunidos”, enquanto na
segunda cena, a cidade santa Jerusalém se enche de judeus que provém da diáspora.
Verifica-se uma ampliação de horizontes que é significativo já em uma primeira leitura
do texto. O Pentecostes muda a situação, move os horizontes e permite de ir além do
“fechado”, além da casa onde habitavam juntos: este é o primeiro aspecto, de caráter
topográfico.
A universalidade e o ecumenismo, nos quais se inserem a ação e o testemunho do
Espírito, são expressos pela lista de povos (2,9-11). É o núcleo da nova humanidade
reunida pela força de coesão e de comunicação que tem a sua fonte no Espírito.2

1
Rinaldo FABRIS, Os Atos dos Apóstolos, 1991, p. 59.
2
Rinaldo FABRIS, Os Atos dos Apóstolos, 1991, p. 60-61.
2 Atos dos Apóstolos – Faculdade Dehoniana 2020.2 – 4º semestre de Teologia – Prof. Pe. Claudio Buss,scj

SEMÂNTICA DO TEXTO:

PRIMEIRA CENA (vv. 1-4)

➢ A moldura do evento (v. 1). Cidade de Jerusalém, durante uma das principais festas
hebraicas: shavuōt (hebraico), em grego Pentēcostēs. Em grego significa 50 dias, em
hebraico significa semanas, portanto, “festa das semanas”. Originariamente era uma festa
agrícola, a festa da colheita; depois do exílio, torna-se festa de comemoração de um evento
histórico. O pano de fundo do evento é, pois, a festa da colheita do trigo (Ex 23,16)
apresentando a Deus as primícias (Nm 28,26). Trata-se de uma festa agrícola, da festa das
semanas (Ex 34,22; Dt 16,10), celebrada cinquenta dias depois da Páscoa (cf. Lv 23,15-22).
Antes mesmo de Jesus, alguns grupos religiosos a celebravam como a festa do dom da Lei e
da renovação da Aliança. Na época da Igreja primitiva, Pentecostes foi uma celebração
complexa na qual a memória da providência de Deus que se manifesta na fartura da ceifa se
entrelaçava com a recordação do pacto de amizade entre Yhwh e Israel.
Lucas, com isso quer mostrar que o dom do Espírito leva à plenitude o dom da Lei e que a
aliança do AT encontra sua plena realização na nova aliança prometida pelos profetas e
realizada por Cristo (Jr 31,31; Ez 36,26). Se no evento de Pentecostes nasce a Igreja, essa
nasce como sinal visível dessa aliança que se cumpre por meio da efusão do Espírito.
*Ver a ligação com Lc 24,49: o dom do Espírito é, segundo João, consequência da
glorificação de Jesus.

- No relato o dia de Pentecostes parece ser o momento do cumprimento. Lucas evidencia isso com
três frases, no início da narrativa: “no completar-se do dia de Pentecostes” / “encheu-se a casa” /
“todos ficaram cheios do Espírito Santo”. Nelas, a repetição de verbos semelhantes: “completar-se”
(synplêroûn: plhro,w) / “encher-se” (plêroûn) / e “ficar cheio” (pimplênai), indica o tempo da
plenitude chegou (Lc 9,51) e que o plano de Deus está realizando a sua perfeição.
➢ A simbologia do evento: a vinda do Espírito Santo é apresentada com os traços de uma
teofania bíblica para indicar que Deus está agindo, semelhante a Ex 19 no Sinai. O vento que
sopra indica a força divina em sua dimensão irresistível e o fogo é sinal da presença do
Altíssimo. O Sl 50,3 destaca os dois elementos juntos. Também Elias pensa que Deus se
manifeste por meio de um “vento impetuoso e forte” e por meio do fogo (1Rs 19,11-12); da
mesma forma Isaías imaginava que, no julgamento final, Deus viria no vento e no fogo,
sendo seus carros “como furacão, para saciar sua ira com furor e suas ameaças por chamas de
fogo” (Is 66,15). Pode-se acrescentar que no episódio da sarça ardente Deus é apresentado
como um fogo que queima sem se consumir (Ex 3,2) e na peregrinação de Israel no deserto
como “coluna de fogo” que acompanha o povo durante a noite (Ex 13,21). *“O céu” do qual
vem o ruído traz à memória a presença de Deus; lugar onde Jesus teve sua ascensão; é o
lugar teológico no qual Jesus envia seu Espírito, como havia prometido. *O vento, ruah em
hebraico, é o Espírito de Deus.
Lucas é consciente que o evento não pode se apresentado com categorias humanas, mas
só com uma linguagem metafórica. Por isso, por meio do advérbio “como” (w[sper), destaca
que o ruído que se manifesta de repente aos discípulos reunidos no Cenáculo é como o de um
vento impetuoso e que as línguas são como de fogo. Tanto o ouvido, como a visão dos que
estão presentes, são atingidos pelo fenômeno.
3 Atos dos Apóstolos – Faculdade Dehoniana 2020.2 – 4º semestre de Teologia – Prof. Pe. Claudio Buss,scj

- “apareceram umas como línguas de fogo” (2,3), usando o verbo grego ôphthêsan (o`ra,w -
w;fqhsan) no tempo aoristo passivo, que se encontra frequentemente no relato das aparições
pós-pascais de Jesus (Lc 24,34; 1Cor 15,5). Por meio dele, realça que a experiência
carismática da Igreja não consiste numa visão subjetiva e ilusória, nem se alucinação, mas de
um evento concreto e objetivo que depende da iniciativa de Deus, embora narrado com uma
linguagem simbólica. A intenção do evangelista é, pois, a de colocar às claras, desde o
começo, que a Igreja nasce pela força de Deus que irrompe na realidade deste mundo; por
isso, a comunidade cristã não pode ser considerada uma simples organização humana.
**... como línguas de fogo que se repartiam, e pousou uma sobre cada um deles. Memória da
“partilha” do Espírito entre os setenta colaboradores de Moisés (Nm 11): aí Moisés expresso
o desejo de uma infusão do Espírito para todo o povo; desejo da profecia de Joel (3,1-5).
Tem-se presente aqui a universalidade que caracteriza o tempo do Espírito e a habilitação
profética do novo povo.
O que fundamenta a identidade do novo povo não é a lei divina, nem uma revelação
codificável num ensinamento, mas a presença e a ação de Deus mediante o seu Espírito.3
Notar: A efusão do Espírito Santo é a novidade escatológica que caracteriza para sempre a
vida dos discípulos.
➢ Um elemento não auditivo, nem visual... (v. 4) “começaram a falar em outras línguas,
conforme o Espírito os impelia falassem”. Alguns interpretam esta questão do falar em outras
línguas como um fenômeno de glossolalia, ou seja, um falar estático, com sons ininteligíveis,
que vinham intuídos como louvor a Deus e podiam ser interpretados. Outros ao invés, de
forma mais justa, falam de xenolalia. A primeira comunidade começa a falar aos outros na
própria língua. É uma palavra que se volta a todos, uma palavra universal, que todos podem
compreender (inteligível a todos). É um falar missionário. O evangelista não perde de vista o
programa do seu livro: a universalidade tem sua raiz já no momento inicial. Há uma tradição
fundada sobre Gn 10 que contém a tabula das nações: os povos da terra são 70. No
Pentecostes se cumpre um grande evento: é chegada a palavra de Deus a todos os povos.
** O dom do Espírito restabelece aqui a unidade da linguagem que se tinha desfeito na torre
de Babel (Gn 11,1-9) e prefigura assim a dimensão universal da missão dos apóstolos (cf.
1,8).
Flávio Josepho, por exemplo, no seu livro Antiguidades Judaicas, destaca a força de
penetração que, na teofania do Sinai, goza a voz que vem do céu: “a voz de Deus, do alto
para baixo penetrava em todos de tal forma que cada um podia perceber claramente os
mandamentos particulares de Deus que Moisés gravou as duas pedras”. (cf. A. Casalegno,
109).

SEGUNDA CENA (vv. 5-13):


Na segunda cena há uma mudança – da casa para a cidade.
A lista de Lucas é artificial: porém, a ordem de apresentação das nações segue um
esquema bem preciso, começando pelos povos localizados no Oriente para chegar àqueles
que vivem no Ocidente, pelos que moram no norte, mencionando em seguida os do sul. Os

3
Rinaldo FABRIS, Os Atos dos Apóstolos, 1991, p. 63.
4 Atos dos Apóstolos – Faculdade Dehoniana 2020.2 – 4º semestre de Teologia – Prof. Pe. Claudio Buss,scj

17 nomes não são homogêneos, referindo-se a povos, regiões, províncias romanas e à própria
cidade de Roma. “Com a Judéia ao centro, simbolizam a totalidade do mundo habitado”.
“Cada nação do mundo, diz Lucas, é convocada a Jerusalém para ser testemunha da nova
época histórica que se abre com a efusão do Espírito”.4
Apesar da dificuldade de interpretação dos pormenores da lista que pertence à tradição e
que Lucas reelabora, uma coisa parece clara: por meio dela, o evangelista quer dizer que o
mundo judaico, por completo, está presente no evento de Pentecostes. À luz das profecias do
AT, indica que, para o evangelista, começa a se realizar o grande sonho dos profetas, isto é, a
reunião do Israel disperso. Aos olhos de Lucas, a presença dos representantes da dispersão
judaica em Jerusalém por ocasião de Pentecostes, é um sinal de que a reunião prometida pela
Escritura está acontecendo. Aliás, é a própria ação do Espírito Santo que unifica o povo de
Israel, pelo fato de que todos os romeiros que se encontram em Jerusalém entendem o
anúncio dos apóstolos, aceitando-o e começando a fazer parte da grande família da Igreja, na
qual não existe mais barreiras impostas pelas raças, línguas ou culturas. Desta forma, está se
revertendo a tendência à dispersão que caracteriza toda a história do povo de Israel.
O evangelista oferece a visão ideal dos judeus reunidos ao redor dos apóstolos na festa de
Pentecostes. À luz da teologia de Lucas, esta apresentação é simbólica e aponta, de certa
forma, para o futuro, mostrando o fruto da missão da Igreja. Indica que todos os povos, tanto
judeus, como pagãos, são chamados a fazer parte da comunidade cristã, participando da
mesma fé em Jesus ressuscitado. Nos hebreus da diáspora que se encontram em Jerusalém o
autor vê, simbolicamente, os pagãos, futuros destinatários da evangelização.
O relato deve ser lido, portanto, em dois níveis: um histórico – referente ao início da
reunião de Israel; e no nível simbólico – concernente à futura evangelização dos pagãos.
O evento de Pentecostes é apresentado, assim, como o momento em que, pela força do
Espírito, nasce a comunidade de Jerusalém, mas também como o momento em que se forma
a Igreja universal. A perspectiva histórica e limitada se entrelaça com a perspectiva teológica
universal.
A humanidade, dispersa e dividida depois da tentativa de construir um imperialismo
religioso-político, é reunida pela força do Espírito que unifica os diferentes grupos humanos,
respeitando e promovendo as características culturais, das quais a língua é expressão.5
• At 2,1-13 com referência a Gn 11,1-10: em ambos os relatos os termos: “línguas”
e “escutar” e, em particular, do verbo “confundir” (syncheîn sugce,w), que no livro
do Gênesis refere-se à ação de Deus que prejudica o entendimento dos homens, e
em At 2,6, à confusão da multidão que não compreende o que está acontecendo.
O Espírito é a verdadeira força de coesão entre os seres humanos. O poder
humano centralizador divide e oprime, sem gerar unidade. Ao contrário, em
Pentecostes, cada um compreende o outro na língua dele. A Igreja nasce como
lugar onde é possível o diálogo, onde é valorizada a unidade na diversidade.
Desta forma, segundo a promessa profética, realiza-se o início de uma nova
humanidade.

4
Rinaldo FABRIS, Os Atos dos Apóstolos, 1991, p. 63.
5
Rinaldo FABRIS, Os Atos dos Apóstolos, 1991, p. 63.
5 Atos dos Apóstolos – Faculdade Dehoniana 2020.2 – 4º semestre de Teologia – Prof. Pe. Claudio Buss,scj

O poder interior do Espírito, que promove com a liberdade e o amor novas relações e cria
espaços alternativos de comunicação.6

Importante observar que a palavra de Pedro no discurso que segue (At 2,14-41) desmascara os
falsos álibis de quem tem medo do novo e amadurece a pergunta de quem está aberto para a decisão
da fé.7

6
Idem, p. 64.
7
Idem, ibidem.

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