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Atos dos Apóstolos – Faculdade Dehoniana 2020.2 – Prof. Pe. Claudio Buss
O CAMINHO DA IGREJA (At 1,1-11)

“A passagem de Jesus para o tempo da Igreja”

Depois do breve prólogo (At 1,1-3) que traz presente o Evangelho (Lc 1,1-4), o livro do Atos
inicia com dois grandes eventos, que assinalam, de qualquer modo, o nascimento da Igreja:

✓ A Ascensão (1,4-11)
✓ O Pentecostes (2,1-4)

Os dois eventos são estreitamente ligados: a Ascensão representa a “elevação”; o Pentecostes “o


descimento”. A Igreja nasce deste grande e único mistério que tudo compreende e tudo transcende:
o mistério da cruz – ressurreição – elevação – Espírito.

- O PRÓLOGO (At 1,1-3)

Reformulando a dedicação a Teófilo (Lc 1,3) “o amigo de Deus”, Lucas reassume o primeiro
livro: os fatos e ensinamentos de Jesus até a sua ascensão ao céu, incluindo também as suas
aparições; tudo isso faz parte do anúncio fundamental do cristão. O autor tem o cuidado de
mencionar logo os dois personagens sobre os quais estão centrados a primeira seção (1,12 – 2,48): o
colégio dos apóstolos e o Espírito Santo.

Os três primeiros versículos constituem uma ponte entre o tempo de Jesus e o tempo da Igreja.
Ou melhor, ainda: os três primeiros vv. querem ancorar o tempo da Igreja ao evento Jesus. Não
pode existir uma Igreja sem esta ancoragem (sem Cristo).

E de que modo os 3 primeiros vv. fazem isto?

1) Através o “fazer” e o “ensinar” de Jesus: prw/ton lo,gon (a primeira narrativa). É interessante


como a relação entre o tempo da Igreja e o tempo de Cristo verte sobre o “fazer e ensinar” – e
é interessante como vem primeiro poiei/n/ fazer e depois dida,skein/ ensinar, quase a dizer que a
palavra encontra a sua verdade quando se realiza, quando se cumpre, quando se faz ato.
2) Na origem da Igreja estão os apóstolos: aqueles que desde o início estiveram com Jesus. Em
At 1,2 Jesus “dá ordens” aos discípulos que escolheu: o mesmo verbo utilizado em Lc 6,13
quando chamou a si os discípulos e escolheu os doze evkle,gomai (ek-legomai). Portanto, os
Doze constituem a “ponte de união” entre o tempo de Jesus e o tempo da Igreja: são as
testemunhas de Jesus e o fundamento sobre os quais todos os crentes colocam o seu
caminho...
3) Depois deste nível autoritativo, o narrador diz que Jesus os “instruiu” no Espírito Santo. É um
terceiro aspecto que constitui a ligação entre os dois livros (evangelho e atos): a ação do
Espírito Santo que garante, em qualquer modo, a continuidade. Se olharmos o início do
Evangelho de Lucas, o Espírito tem uma função muito importante. Não se pode prescindir do
referimento ao Espírito: não o fez Cristo, não o pode fazer a Igreja, e veremos o que isto
significa.
4) Um quarto aspecto que cria a unidade entre o primeiro e o segundo logos, entre o evangelho e
os Atos são os 40 dias. Por 40 dias, depois da ressurreição, Jesus aparece aos seus discípulos e
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fala do Reino de Deus. Todos nós sabemos a importância do número 40 na história da
salvação: são 40 os anos nos quais Israel permaneceu no deserto, são 40 os dias os quais Elias
caminha em direção ao Horeb (1Re 19,8). O número 40 representa a “completude” (um
caminho de realização). Estes 40 dias dizem que a Igreja não surge improvisamente, mas se
insere em um projeto salvífico. A Igreja está inserida na história da salvação, que não inicia
com esta: a comunidade eclesial se insere em um projeto salvífico que é o projeto de Deus.
*** As aparições de Jesus depois da ressurreição (Lc 24,13-49) lhe permite continuar
instruindo os apóstolos a respeito do Reino de Deus. Essa expressão – que aparece trinta e
duas vezes em Lucas – se refere ao reinado prometido por Deus que já se fez presente na
atividade messiânica de Jesus (Lc 9,2; 11,20; 17,21) e que deverá ser testemunhado na missão
dos apóstolos.
Estes são os três primeiros vv. do proêmio, nos quais Lucas põe os fundamentos do seu
trabalho e da sua mensagem, como o fez no início do seu evangelho.

O texto seguinte (vv. 4-11) reporta as últimas palavras de Jesus e a sua ascensão aos céus.
Vejamos em ordem as duas passagens:

O TESTAMENTO DO RESSUSCITADO (At 1,4-8)


✓ A narrativa inicia com a menção do convívio entre Jesus e os discípulos. O convívio, o
banquete (do qual fala frequentemente o evangelho) não é certamente uma invenção
lucana. Conhecemos o “Banquete de Platão”: colocar-se ao redor de uma mesa torna-se o
lugar onde se discute e se fala, onde se faz amizade, onde se come junto o mesmo pão.
Continuamente Lucas mostra Jesus à mesa com os publicanos (Lc 5,29-32) e os fariseus
(Lc 7,36-50), mas também com os discípulos “cegos e incrédulos” (Lc 24,13-33). Este
“estar à mesa” é uma metáfora para dizer quanto a comunhão com Jesus seja um elemento
portador da revelação e da missão.
✓ Uma primeira palavra de Jesus (vv. 4-5) entra ao improviso na cena do convívio: uma
exortação do Ressuscitado a permanecer em Jerusalém para assistir ao cumprimento da
promessa. Jesus proíbe de distanciar-se de Jerusalém. Por quê? Jerusalém é a “cidade
símbolo”, é a cidade do mistério pascal. A Jerusalém está “as raízes” e, portanto, é em
Jerusalém que é necessário esperar o dom do Espírito.
Este evento do Espírito realiza a Escritura, porque Joel, os profetas, Ezequiel falaram dos
tempos messiânicos como tempos do Espírito, no qual o Espírito, em um renovamento da
Aliança, seria derramado sobre todos os discípulos.
A abundância do Espírito assinala os tempos messiânicos. O Espírito testemunha uma
nova fase da história da salvação, sancionada das Escrituras: o tempo do Espírito. Não
que o Espírito de Deus fosse ausente. Mas, a sua obra no mundo torna-se determinante,
sobretudo a motivo da Ausência-Presença de Jesus. Jesus será presente na história do
mundo e da Igreja de modo diferente: mediante o seu Espírito!
***O tema da promessa do Pai é alusão ao Espírito Santo (Lc 24,49) e constitui um tema
que Lucas esboça no Evangelho (Lc 3,13-17) e desenvolve especialmente em At 2 e At
10–11.
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✓ À segunda palavra de Jesus, segue uma pergunta dos apóstolos sobre o tempo da
reconstituição do reino de Israel (vv. 6-10). Pergunta e resposta caminham sobre níveis
diferentes. Aqueles que estavam à mesa com ele, pedem o tempo da reconstituição de Israel,
fazem referimento a um evento histórico-temporal. Evoca-se, portanto, a espera de uma
intervenção divina para reconstituir Israel na sua unidade e poder: é uma pergunta sobre
Israel. A resposta de Jesus é dúplice:
Primeiro: não especular e fazer previsões sobre um evento que pertence apenas a Deus.
Portanto, é uma proibição de especulações gratuitas.
Segundo: Jesus indica a missão deles: serem martyres/ testemunhas do Ressuscitado! O
pronome de primeira pessoa vem enfatizado: “sereis minhas testemunhas”! Inicia um tempo
de responsabilidade, no qual o advento do reino de Deus deverá ser testemunhado aos
confins da terra. O reino de Deus é a senhoria de Jesus, que se mostra na vida nova do
Espírito!

A ASCENSÃO (At 1,9-11)


A narrativa da Ascensão retoma a página conclusiva do Evangelho (Lc 24,50-53), mas os
motivos desenvolvidos são diferentes. Em Lc 24 a Ascensão é uma solene liturgia. Jesus conduz os
discípulos fora, à Betânia, os abençoa e, enquanto os abençoa se distancia deles. Os discípulos se
prostram e tornam ao Templo louvando Deus. Os leitores são colocados perante uma solene liturgia.
Enquanto na narrativa de Atos é projetada uma outra direção. Utiliza-se o verbo epairô evpai,rw:
evph,rqh/ erguer que, junto com a simbologia da nuvem, recorda a gloria do Cristo ressuscitado.
Todos sabem que a nuvem no AT é um símbolo de Deus. Deus que revela a sua face é o mesmo
Deus que o homem não chegará jamais a ver face a face. Deus resta um mistério, porque não é
aquele que nós imaginamos! A nuvem exprime bem esta revelação e este escondimento: Deus é
presente e ausente. Jesus será presente mediante o seu Espírito, mas a sua presença não será uma
presença que “absorve o homem”: será sempre escondida, misteriosa. Na história os sinais de Deus
são sempre, de qualquer modo, carregados de enigmas: trazem a luminosidade suficiente para que o
homem se prostre e creia, mas também a opacidade que não o subjuga, mas interroga. Temos cem
razões para crer e cem para não crer! A presença de Cristo ressuscitado no mundo é confiada ao
testemunho daqueles que tiveram o dom de encontrá-lo e de crer na sua palavra.
O verbo “levar para cima” / arrebatar epairô (evpai,rw: evph,rqh) (foi arrebatado/ foi elevado): é ao
passivo divino e apresenta, portanto, Deus como sujeito da ação. A narrativa de Elias em 2Re 2
(arrebatamento). Que significa a ascensão aos céus? Significa que o “andar/ caminhar” de Jesus –
que Lucas havia sublinhado já depois do primeiro anúncio da sinagoga de Nazaré (4,30) – tinha uma
meta: o Pai. A relação com o Pai que tinha dado conotação a toda a vida de Jesus (a sua primeira e
última palavra no evangelho mencionam Pai) – agora assume as características de uma glória sem
fim e, no mesmo momento, torna-se um programa para os discípulos, que continuam a andar sobre a
via do mundo como testemunhas!
Os dois homens em brancas vestes que se apresentam aos apóstolos que olhavam para o céu (At
1,10) não são desconhecidas ao leitor: são os dois homens que o leitor já encontrou no túmulo vazio,
em Lc 24, e é interessante colocar em paralelo as palavras que os dois dizem no túmulo às mulheres
e aquelas que eles dizem aos discípulos neste momento. Em Lc 24,4 estes reprovam as mulheres:
“por que procurais entre os mortos aquele que vive, o Vivente?”; ora, no momento da Ascensão, a
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pergunta é: “homens da Galiléia porque estais olhando para o céu?”. A pergunta tem sempre um
valor pragmático: aquele que pergunta espera uma resposta, mas não é sempre assim. Temos
infinitas razões pelas quais colocamos interrogações. Algumas perguntas tem a intenção de
desestabilizar o leitor, transportando da um nível de compreensão a um outro nível, menos
acessível, mas não por isto mais importante. No nosso caso, a pergunta quer “desviar” a atenção dos
ouvintes de um certo tipo de percepção, transportando-o a uma outra percepção, de nível superior.
Não é necessário fixar somente o olhar no céu, mas emergir na história para tornar-se testemunha
daquele que foi glorificado. A fuga do mundo não é certamente uma categoria cristã e muito menos
lucana. O desprezo da terra e a fuga não pertencem à experiência hebraico-cristã: toda a Bíblia o
testemunha! Portanto, o interrogativo dos dois homens em vestes brancas entendem desviar de uma
atitude evasiva e emergir os discípulos no fluxo da vida.
Interessante a conclusão da passagem: “este Jesus, que vos foi arrebatado ao céu, há de vir do
mesmo modo como o vistes partir”: de fronte a expressões deste tenor somos logo tentados a pensar
à segunda vinda, à parusia. Na realidade o verbo eleusetai/ (evleu,setai - e;rcomai) “virá” – ao futuro
(v. 11), é usado de maneira hebraica, analogamente aos futuros que encontramos nas bem-
aventuranças (bem-aventurados os puros de coração porque “verão” a Deus etc.). Estes futuros
indicam um tempo que virá: possuem um substrato semítico e exprimem a modalidade da ação e,
portanto, dizem se a ação é completa (passado) ou incompleta (futuro). Que coisa significa este
“virá”? Que a vinda do Reino é em via de cumprimento, em via de realização, se realiza fazendo o
caminho. O Cristo vem sempre: a parusia é a vinda de Cristo na história, através o testemunho dos
seus. Evidentemente não se exclui um momento de manifestação última, mas esta permanece
envolvida (embrulhada) no futuro de Deus. No presente e no futuro do cristão pertence a realização
de uma vinda de Cristo dia após dia, no testemunho dos fiéis.

ALGUMAS OBSERVAÇÕES CONCLUSIVAS:


- Esta primeira página dos Atos e sua ligação com a história de Jesus narrada no evangelho nos
diz fundamentalmente que a história da Igreja não pode prescindir da história de Jesus. Se queremos
dizer em termos mais drásticos: a crise da Igreja é a crise de Cristo, a crise de Deus. Em uma lição
de eclesiologia do Vaticano II, proferida no ano de 2001 na diocese de Aversa, o prefeito da
Congregação para a doutrina da fé, J. Ratzinger, afirmava:
...a primeira palavra da Igreja é Cristo e não a si mesma; esta é sana na medida em que toda a sua
atenção é voltada a Ele... {...} Uma Igreja que existisse só para si mesma seria supérflua... A crise
da Igreja, como esta é refletida no conceito de povo de Deus, é “crise de Deus”; esta resulta no
abandono do essencial. O que resta, é, portanto, só uma luta pelo poder. Disto se tem o suficiente
no mundo, e para isto não se faz necessário o existir da Igreja.

- A segunda observação é em qualquer modo complementar à primeira: a história da Igreja não


pode prescindir da atenção ao homem. O convite de não estar a fixar o céu é o pedido urgente de
fazer do homem a via da Igreja. E isto significa atenção a cada homem. “Fixar” a atenção no céu é a
tentação perene de quem “fixa” a obra da Igreja em meio aos homens sobre a base de leis e usos
estáveis para sempre, de quem não vê além do seu próprio umbigo, de quem quer afirmar os
“direitos” da Igreja em detrimento dos direitos do homem. Que a via da Igreja seja a via do homem
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significa também que a Igreja não pode chegar sempre “depois”, na compreensão de certos direitos
do homem.

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