Você está na página 1de 9

1

I - Prólogo do Evangelho
(Mc 1,1-13)
ANO ACADÊMICO 2021 – FACULDADE DEHONIANA

Prof. P. Claudio Buss


Uma narrativa pode iniciar de diversas formas e o início é sempre importante para a compreensão
da obra e da sua estratégia.
Quando um autor cria uma história, elabora uma trama narrativa e desenha um itinerário, de modo
a construir também o seu leitor. É frequente, lendo um livro, encontrar-se na estratégia desenhada pelo
autor e uma história se torna tanto mais instigante quanto mais permite ao leitor de identificar-se com
essa. Umberto Eco exprime tudo isso dizendo que cada autor, escrevendo sua narrativa, constrói o seu
leitor modelo, que permite de colocar-se em sintonia com a finalidade do autor e da sua obra. Marcos
também constrói o seu leitor modelo no momento no qual reconhecemos na sua estratégia o seu
verdadeiro fim. O desafio pelo qual – como leitores – somos chamados é de deixar-nos provocar pela
narração e de verificar onde o autor chama em causa cada um de nós.
Marcos nos introduz ao seu evangelho com um prólogo constituído de 13 versículos. Quando se
fala de prólogo, geralmente se pensa naquele de João (1,1-18) ou de Lucas (1,1-4); mas também
Marcos, nos primeiros versículos, nos diz quem é Jesus e qual é a sua missão.

INÍCIO DO EVANGELHO
Marcos sintetiza em três quadros iniciais, com um colorido apocalíptico, os temas básicos com
os quais ele irá ocupar-se durante a narração. É como a abertura de uma sinfonia.
A unidade desta pequena seção deixa-se ver claramente. Tudo gira em torno do mesmo cenário,
o deserto e o Jordão, e em redor de dois personagens, João e Jesus. Além disso, nota-se imediatamente
que a citação da profecia determina a sequência, é como seu esquema. Os profetas tinham anunciado
os futuros acontecimentos, João e Jesus são o cumprimento das profecias.
Prestemos atenção aos dois ciclos narrativos e como são articulados:

• Mc 1,1
O título: VArch. tou/ euvaggeli,ou VIhsou/ Cristou/ ui`ou/ qeou/Å

Início do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus.


Esta primeira frase do Evangelho de Marcos é título de toda a obra. Vamos desdobrar o que
significa:
a. O termo “princípio”, em grego arché, quer dizer início, mas também significa causa, origem,
explicação, fundamento. Assim, os filósofos falavam dos “princípios das coisas”. Trata-se, portanto,
de apresentar Jesus como um novo princípio, uma nova origem, uma nova gênese (cf. Gn 1,1). A
proclamação do Evangelho por Jesus dá origem a um novo mundo, é uma nova criação. O princípio é
2

o próprio Evangelho proclamado por Jesus, enquanto é considerado um novo alicerce ou fundamento
da vida, nova origem do mundo. Mas também no sentido de que toda a ação de Jesus é só o início, dá
origem, desencadeia um processo que tem de prosseguir para além da sua existência terrestre. Os
discípulos estão chamados a recomeçar a mesma tarefa, a retomar sua caminhada a partir da Galileia
(cf. 16,7-20). O Evangelho, origem de um novo mundo, é o acontecimento que principia com Jesus e
tem nele seu fundamento, e prossegue com os discípulos. Jesus é só o semeador (cf. 4,3-9; 1,38), mas
ao mesmo tempo será sempre o fundamento, a pedra sobre a que tudo se constrói (cf. 1Cor 3,1).
Portanto, é fundamento e começo.1 Portanto, Marcos quer escrever o início e o fundamento histórico
do evangelho, da boa-nova.
b. Evangelho é um termo típico da comunidade cristã para designar a mensagem.
Marcos foi o primeiro que escreveu um “evangelho”. Até então, ninguém havia pensado que o
euanggelion pudesse constituir um texto escrito. Marcos foi o criador de tal gênero literário: a narrativa
da vida de Jesus como uma boa-notícia.
É preciso entender o substantivo Evangelho na sua acepção primeira: significa a pregação do
próprio Jesus, o Reino de Deus que está próximo (Mc 1,14-15); mas também a Jesus mesmo, cuja vida
é Evangelho.2
Num segundo momento se entende o evangelista Marcos que se propõe a escrever o começo do
Evangelho na história, desde a pregação de João Batista (1,2-8), em que já se manifesta a obra de Deus
(11,29-33) a cumprir suas promessas (1,2-3), e cuja mensagem, segundo Mc, concentra-se em Jesus
(1,7-8).3
Em outros termos para sintetizar: o Evangelho foi primeiramente pregado, depois pouco a pouco
escrito, fixando-se nos quatro evangelhos canônicos.
c. Jesus vem definido como o “Messias”. O termo grego Christos é uma tradução grega do
hebraico mashiâ. Foi aplicado logo depois da sua morte e a partir da fé na Ressurreição. Unindo, sem
artigo, ao nome Jesus, os autores neotestamentários fazem uma espécie de cognome, sublinhando a
função que exprime. “Tu és o Cristo”, é a expressão da fé pascal da Igreja, pela boca de Pedro. O
“início do Evangelho” é, portanto, uma história do Messias.4
d. Filho de Deus é uma expressão que, neste Evangelho, ganha contornos universais. Jesus é o
Messias esperado pelo povo judeu e é o Filho de Deus reconhecido pelas nações.5
Exprime o pensamento de Mc: revelado por Deus (1,11; 9,7), divulgado pelos demônios (3,11;
5,7), deve ser mantido em segredo. Mas Jesus não o rejeita durante o processo (14,61-62), e um
homem, um pagão, o proclama após a sua morte (15,39).
Após o solene título do v. 1, Marcos introduz o que segue com a citação das profecias.
• Mc 1,2-3

1
Cf. Sebastião Armando Gameleira SOARES, Marcos. Comentário Bíblico Latino Americano, 2013, p. 41-42.
2
Cf. A Bíblia, Ed. Paulinas. Nota 1,1.
3
Cf. Bíblia TEB, nota 1,a.
4
Cf. Simon LÉGASSE, Marco, 2000, p. 60.
5
A Bíblia, Ed. Paulinas, Nota 1,1.
3

Kaqw.j ge,graptai evn tw/| VHsai<a| tw/| profh,th|\


ivdou. avposte,llw to.n a;ggelo,n mou pro. prosw,pou sou( o]j kataskeua,sei th.n o`do,n sou\
3 fwnh. bow/ntoj evn th/| evrh,mw|\ e`toima,sate th.n o`do.n kuri,ou( euvqei,aj poiei/te ta.j tri,bouj auvtou/(

2
Conforme está escrito no profeta Isaías:

Eis que eu envio o meu mensageiro diante de ti, a fim de preparar o teu caminho;
3
voz do que clama no deserto: preparai o caminho do Senhor, tornai retas suas veredas.

A apresentação do ministério de João Batista é através de uma citação do Antigo Testamento que
fornece uma base Escriturística para o que segue.
A citação é atribuída à autoridade do profeta Isaías. Na realidade, trata-se de dois textos: o
primeiro, tomado de Ml 3,1, é um texto tradicional na comunidade cristã para qualificar o papel do
Batista que, como o novo Elias, deve preparar a vinda definitiva do Senhor; o segundo deriva do livro
que recolhe os oráculos de esperança anunciados aos deportados em Babilônia que estão para começar
a caminhada de volta (Is 40,3).
João é o arauto que prepara o caminho para o “Senhor”, que se põe na frente de todos os exilados
para leva-los à libertação definitiva. Marcos o identifica como o anjo prometido no êxodo: “Enviarei
meu anjo à minha frente” (Ex 33,2), como o arauto de Is 40,3 (definido, segundo o grego, para destacar
o deserto) e como Elias que retorna (Ml 3,1). No vestuário e na austeridade, imitará Elias (2Rs 1,8; Zc
13,4).6
Interessante a este propósito o que nos diz o S. A. Gameleira Soares: “o que se esperava para o
futuro imaginado miticamente, já quase para além da história, os discípulos e discípulas historicizam
e fazem enxergar no próprio interior da história: a vinda final de Deus e de seu mensageiro tem de ser
percebida na existência histórica de João Batista e de Jesus de Nazaré. É com sua história humana que
Jesus instaura o momento escatológico, os “últimos dias”.7
• Mc 1,4-5
4
evge,neto VIwa,nnhj Îo`Ð bapti,zwn evn th/| evrh,mw| kai. khru,sswn ba,ptisma metanoi,aj eivj a;fesin
a`martiw/nÅ
5
kai. evxeporeu,eto pro.j auvto.n pa/sa h` VIoudai,a cw,ra kai. oi` ~Ierosolumi/tai pa,ntej( kai. evbapti,zonto
u`pV auvtou/ evn tw/| VIorda,nh| potamw/| evxomologou,menoi ta.j a`marti,aj auvtw/nÅ
4
João Batista esteve no deserto proclamando um batismo de arrependimento para a remissão dos
pecados,
5
E iam até ele toda a região da Judéia e todos os habitantes de Jerusalém, e eram batizados por ele no
rio Jordão, confessando seus pecados.
O aparecimento de João no deserto é o primeiro momento do cumprimento das profecias. Jesus
será o segundo (a partir do v. 9). A tarefa primordial de João será de “proclamar” (khru,ssw), mais do

6
Cf. Bíblia do Peregrino, nota 1,2-8.
7
Marcos, Comentário Biblico Latino-Americano, 2013, p. 45.
4

que efetuar o batismo. Ele é, antes de tudo, voz, grito de arauto em pleno deserto, precedendo a volta
do Senhor. Como nos diz a TEB: “por sua pregação se cumprem as profecias”!
A ação de batizar não aparece em primeiro plano, mas a de “proclamar um batismo”, expressão
meio estranha, pois o normal deveria ser “efetuar um batismo”. Como nos diz GAMELEIRA SOARES: “a
originalidade de Marcos está exatamente em não chamar tanta atenção para a ação de batizar como
para a de proclamar. [...] Toda a atenção de Marcos se volta para a voz do mensageiro que ecoa forte
deserto afora”.8
O objetivo do anúncio é a “conversão”, a partir do centro de si mesmo, em profundidade. Este é o
significado do termo metánoia (meta,noia), mudança do centro da “mente”, das atitudes. O grego traduz
o hebraico (bwv) “voltar”: evoca o retorno a Deus, voltar à casa, voltar ao primeiro amor (cf. 1Rs 8,46-
51; Is 1,27; 55,7; Jr 24,7; 25,5; Os 14,2).
Distingue-se, portanto, dos banhos e abluções praticados no judaísmo para a purificação das
impurezas rituais. Como os membros de Qumran, em que os banhos quotidianos, reservados aos
membros professos, exprimiam o seu ideal de pureza, sem substituir a necessária conversão interior, e
na expectativa de uma futura purificação radical. O batismo de João distingue-se desta prática: é
oferecido a todos, como preparação derradeira para o julgamento, para o batismo do fim dos tempos.
A condição essencial é a verdadeira conversão.
- Para a remissão dos pecados (a;fesij): o termo é empregado pela LXX para designar o perdão
das dívidas no Sétimo Ano e no Ano Jubilar (cf. Ex 23,11; Lv 25; 27; Nm 36,4; Dt 15; 31,10; Is 58,6;
61,1-2). Na mentalidade hebraica, como nos aponta Gameleira Soares, não se trata de falar de
“remissão de pecados” de maneira espiritualista e intimista. Trata-se sempre de restabelecer relações
de aliança na vida do povo, na sociedade.9
- No deserto (e;rhmoj) : prega no “deserto”, lugar do caminho de volta para Deus. Lá acorrem, como
nos diz ALONSO SCHÖKEL, os que na Judéia e em Jerusalém não acham resposta, os que não se
satisfazem com as liturgias penitenciais e os ritos de expiação do templo.10 Ao ecoar o grito do profeta,
dá-se o deslocamento das cidades em direção ao deserto. As instituições salvífica, como o templo,
perderam sua eficácia (cf. Ml 3,4). Agora é no deserto que se busca a salvação, à margem do sistema
social e religioso.
Este tema do deserto é um dos mais importantes da pregação profética. Para Oséias, por exemplo,
o deserto evoca a intimidade entre Deus e Israel, o tempo de “sedução” e do “falar ao coração”, quando
o amor e a ternura têm a força de fazer renascer o paraíso (cf. Os 2,16-25; 9,10; Is 41,17-20).
De forma uma pouco mais existencial dizemos que o deserto é o lugar da provisoriedade e do
perigo mortal; onde a existência humana é colocada constantemente em risco. No deserto o esforço
humano é ineficaz; o seu trabalho é estéril. No deserto se manifesta a precariedade da nossa existência,
a radicalidade da nossa fragilidade.
Israel nasce no deserto; é ali que se tornou um povo; é ali que começou o seu caminho com Deus.
Eis o paradoxo: o deserto é o lugar do nada, onde nenhum esforço pode criar a vida, mas é ali que

8
Idem, p. 48.
9
Cf. Marcos, Comentário Bíblico Latino Americano, 2013, p. 49.
10
Bíblia do Peregrino, nota 1,2-8.
5

Israel nasce. É o lugar do início. O deserto é, portanto, o lugar da origem, é lá que Deus cria aquilo
que o homem não consegue realizar, construir...
- No Jordão: intimamente relacionado à imagem da Terra prometida está o rio Jordão. É a porta
de entrada na Terra prometida. Interessante que o próprio nome de Jesus traz à memória o grande
libertador Josué (em hebraico, são o mesmo nome).
Para sintetizar esta questão: retirar-se ao deserto é recomeçar o caminho do Êxodo em direção à
Terra, passando pelo Jordão, pois o objetivo de Deus permanece o mesmo: estabelecer relações de
aliança na Terra em vista da abundância e felicidade (cf. Dt 6; 26,1-11; Js 24).11
Desta forma, os judeus refazem a viagem dos israelitas pelo deserto e a passagem do Jordão (Js
3–4); não só como recordação, mas inaugurando uma nova era. Com isso, se preparam, não para entrar
na terra prometida, mas para receber o Senhor que chega. Esse Senhor é agora é Jesus Messias. 12

• Mc 1,6-8

6
kai. h=n o` VIwa,nnhj evndedume,noj tri,caj kamh,lou kai. zw,nhn dermati,nhn peri. th.n ovsfu.n auvtou/ kai.
evsqi,wn avkri,daj kai. me,li a;grionÅ
7
Kai. evkh,russen le,gwn\ e;rcetai o` ivscuro,tero,j mou ovpi,sw mou( ou- ouvk eivmi. i`kano.j ku,yaj lu/sai
to.n i`ma,nta tw/n u`podhma,twn auvtou/Å
8 evgw. evba,ptisa u`ma/j u[dati( auvto.j de. bapti,sei u`ma/j evn pneu,mati a`gi,w|Å
6
João se vestia de pêlos de camelo e se alimentava de gafanhoto e mel silvestre.
E proclamava: “Depois de mim, vem o mais forte do que eu, de quem não sou digno de,
7

abaixando-me, desatar a correia das sandálias.


8
Eu vos tenho batizado com água. Ele, porém, vos batizará com o Espírito Santo”.
Só agora o texto nos apresenta a figura de João. Sua figura encarna a austeridade dos gloriosos
tempos de luta para garantir a posse da terra e defender-se dos modelos estrangeiros de convivência
social, como nos diz GAMELEIRA SOARES13. Sua roupa, traçada de pelos de crina de camelo, e seu cinto
de couro o identificam com o profeta Elias, o grande líder da resistência popular nos dias duros de
perseguição de Acab e Jezabel (cf. 2Rs 1,8). São sinais de autenticidade. Nele o profetismo volta a
proclamar a Palavra. Estamos num tempo de recomeço do povo. De Elias esperava-se o retorno dos
dispersos, a ressurreição dos mortos, a solução de questões debatidas pelas diversas correntes e a
entronização do rei messiânico (cf. 9,11-12). Não anuncia uma libertação repentina e automática, nem
se guia por um calendário apocalíptico. O que faz é convocar o povo a preparar-se para o grande
acontecimento da intervenção definitiva de Deus.
Os versículos 7 e 8 servem de transição ao que vai seguir: a pessoa de Jesus. Servem para fazer a
ponte entre João e Jesus, opondo um ao outro. Jesus virá como o “mais forte”.
João, diante de Jesus, não se sente à vontade, nem mesmo para exercer o serviço de escravo: desatar
a correia das sandálias. Em todos os evangelhos aparece a insistência em rebaixar João. Ele é que tinha

11
Gameleira SOARES, Marcos, Comentário Bíblico Latino Americano, 2013, p. 51.
12
Cf. BÍBLIA DO PEREGRINO, nota 1,2-8.
13
Cf. Marcos, Comentário Bíblico Latino Americano, 2013, p. 53.
6

real necessidade de ser batizado por Jesus (cf. Mt 3,14). Tudo indica ter havido nas primeiras
comunidades certa dificuldade em relação à este ponto. A figura do Batista causara enorme impressão.
Foi necessário insistir na catequese sobre o tema para situar devidamente as duas figuras e suas
respectivas missões. João é apenas o precursor. É em Jesus que acontece a vinda do Reino. João mesmo
não deve ter tido clara consciência disso. Os próprios evangelhos indicam como para ele era obscura
a identidade de Jesus (cf. Lc 7,18-23). Até mesmo os discípulos vão descobri-lo progressivamente e,
de maneira clara, só à luz da ressurreição.
Como nos aponta bem a TEB: toda a pregação de João se refere àquele que vem depois dele. A
expressão, que denota a dignidade, como num cortejo, ressalta o contraste entre João e Jesus: aquele
que vem depois é na realidade o mais forte. A força é o atributo do Messias (cf. Is 11,2; 49,25; 53,12),
manifestar-se-á sobretudo na luta contra satanás.14
O batismo de João era na água, nas águas do rio Jordão, um rito de transição entre as abluções
judaicas e a novidade do batismo de Jesus. Quem se lava com água tem necessidade de lavar-se
novamente e seguidamente. Quem muda de hábito, de atitude e de paradigma não tem necessidade de
estar mudando constantemente. João afirma que ele está fazendo um rito de passagem, assim como a
água corre e passa, também o seu efeito é passageiro. O batismo de Jesus sim, permanente, porque
seria o batismo no Espírito Santo. Simon LÉGASSE afirma que Marcos está aqui usando uma metáfora
para falar do batismo cristão. O batismo cristão seria a verdadeira obra do Espírito Santo (Mc 13,11),
e o texto seria, na realidade, uma consciência da comunidade cristã em sua experiência pós-pascal.15
Pentecostes, é em si, onde acontece o verdadeiro batismo do Espírito (At 2,1-4). Neste sentido, penso
que Légasse tem razão, pois é a Ressurreição que permite o dom do Espírito em plenitude à
comunidade. Como nos remete a TEB que esta purificação e salvação escatológica pelo Espírito Santo
é a obra global da salvação inaugurada por Jesus (a seita de Qumran a esperava para o fim dos
tempos).16

BATISMO
• Mc 1,9-11
9 Kai. evge,neto evn evkei,naij tai/j h`me,raij h=lqen VIhsou/j avpo. Nazare.t th/j Galilai,aj kai. evbapti,sqh eivj
to.n VIorda,nhn u`po. VIwa,nnouÅ
10 kai. euvqu.j avnabai,nwn evk tou/ u[datoj ei=den scizome,nouj tou.j ouvranou.j kai. to. pneu/ma w`j peristera.n
katabai/non eivj auvto,n\
11
kai. fwnh. evge,neto evk tw/n ouvranw/n\ su. ei= o` ui`o,j mou o` avgaphto,j( evn soi. euvdo,khsaÅ
9
Aconteceu, naqueles dias, que Jesus veio de Nazaré da Galileia e foi batizado por João no rio Jordão.
10
E, logo ao subir da água, ele viu os céus rasgando e o Espírito, como uma pomba, descer até Ele,
11
e uma voz dos céus: “Tu és o meu Filho amado, em Ti me comprazo”.

14
Cf. TEB, nota 1,7 l.
15
Cf. Simon LÉGASSE, Marco, 2000, p. 82.
16
TEB, nota 1,8 m.
7

Podemos em primeiro lugar que o batismo de Jesus, na obra de Marcos, ocupa um lugar de máxima
importância, por três razões principais:
(1) Marcos não dá nenhuma informação anterior sobre Jesus. Ele aparece para ser batizado, mas
não esclarece o leitor ou o ouvinte sobre alguma coisa necessária da origem do Nazareno;
(2) O batismo é a passagem da “vida oculta” de Jesus para a vida pública;
(3). Ao sair do batismo, uma voz celeste declara-o o Filho amado (1,11), o que significa a primeira
declaração messiânica ou cristológica para a comunidade cristã.
Aparece pela primeira vez, e sem preâmbulos, nem apresentações, Jesus de Nazaré da Galileia.
Isto é tudo o que Marcos acha oportuno relembrar aos leitores cristãos a respeito do passado e da
posição histórico-social de Jesus. Na estrutura da breve narração, toda a atenção é dirigida para a
experiência que acompanha o batismo de Jesus: os céus se abrem, desce o Espírito e faz-se ouvir uma
voz do céu.17 O interesse volta-se menos para o seu batismo que para a revelação celeste que se lhe
seguiu (vv. 10-11).18
Na apresentação deste quadro confluem vários elementos: a tradição bíblica do Êxodo, como era
interpretada na escola de Isaías, a experiência batismal cristã e as antigas experiências de investidura
profética (Ez 1,2-3). A experiência de Jesus no Batismo é comparada à de Moisés, que sob a ação do
Espírito guiou o povo à liberdade através das águas do mar.19
Como todos, Jesus é batizado no Jordão. Ele se identifica com a condição dos pecadores, fruto da
consciência solidária de Deus com a humanidade em sua luta contra a marginalização, o mal e a morte.
A partir do v. 10 temos a grande novidade: uma cena de teofania pela qual se revela o mistério
escondido da vida de Jesus.
O advérbio “euthys” (imediatamente), indica uma continuidade e uma ruptura. No momento em
que sai das águas, ele vincula a missão de João com a dele; mas, no exato momento de galgar à margem
do rio (movimento de subida), ele também faz uma ruptura com João e assume sua própria história,
sua autonomia. Esse movimento de subida, ascensão, saída de um lugar mais baixo (água) para outro
mais alto (terra) pode ser caracterizado como superação do batismo na água para o batismo do Espírito
e conversão para o Evangelho. Jesus desceu ao lugar, à situação e à condição na qual estava seu
precursor, mas agora vai se revelar, e, para tanto, torna-se um imperativo subir, ultrapassar e
transcender.20
No momento do seu batismo opera nele uma mudança que implica a transformação do mundo:
os céus se abrem para a humanidade e rompem o silêncio. Como nos diz a TEB: “Os céus se rasgam
como um tecido (cf. 15,38), sinal que Deus intervém para realizar suas promessas (Is 63,19), aqui pelo
envio do Espírito Santo”.21 São versículos tomados de Is 63,19, onde o profeta invoca Deus para
romper o silêncio. Este é um momento no qual Deus abre os céus e intervém na história: Jesus é a ação

17
Cf. Rinaldo FABRIS, Os Evangelhos I, 1990, p. 433.
18
Cf. TEB, nota 1,9 n.
19
Cf. Rinaldo FABRIS, Os Evangelhos I, 1990, p. 433.
20
Cf. Isidoro MAZZAROLO, Evangelho de Marcos. Estar ou não com Jesus, 2012, p. 54.
21
TEB, nota 1,10 o.
8

de Deus na história, é a voz com a qual Deus rompe o silêncio. Os céus não estão fechados, não deixam
a história na sua insensatez; mas se abrem e Deus dá um sentido à história, na pessoa de Jesus Messias.
A novidade aparece, como se o mundo estivesse sendo criado outra vez, e de maneira
completamente nova. Isto se indica com o símbolo da pomba. O pássaro está naturalmente relacionado
com o céu. Na Ásia e na Grécia, evoca o mundo divino. Na Pérsia e no Egito, o pássaro ou a pomba
simboliza a força divina que reveste o rei. Na Bíblia, a pomba sobrevoa as águas para anunciar o
ressurgimento da vida, após o dilúvio do qual Noé emerge qual novo Adão (cf. Gn 8,8-12). A pomba
é, portanto, símbolo da presença de Deus. Para sintetizar: “ao descer sobre Jesus, o Espírito o designa
como sendo o salvador prometido (cf. Is 11,2; 42,1; 63,11)”.22
A voz vinda dos céus é uma maneira de dizer uma voz vinda de Deus. Em Marcos, essa voz é uma
manifestação do Pai a Jesus: “Tu és meu Filho Amado”. É uma ação de Deus, de consequência
duradoura, a favor de Jesus, que ele reconhece, desde sua entrada em cena, no início da sua atividade,
como seu Filho (cf. Sl 2,7), seu bem-amado (cf. 12,6, que talvez recorde Gn 22,2.12.16), objeto da sua
predileção (cf. Is 42,1).23
Para concluir: a missão histórica de Jesus inicia exatamente com este gesto significativo: o batismo
de João para a remissão dos pecados. Enquanto Jesus se põe na fila dos pecadores, solidário como o
“servo” de quem fala Isaías, a revelação divina confirma a sua convicção da profunda e única união
com Deus. União que nasce do íntimo do seu ser. Assim, o batismo recebido de João marca para Jesus
uma virada decisiva e a inauguração de sua missão sob o impulso do Espírito.24

TENTAÇÃO

• Mc 1,12-13
Kai. euvqu.j to. pneu/ma auvto.n evkba,llei eivj th.n e;rhmonÅ
13 kai. h=n evn th/| evrh,mw| tessera,konta h`me,raj peirazo,menoj u`po. tou/ satana/( kai. h=n meta. tw/n qhri,wn(
kai. oi` a;ggeloi dihko,noun auvtw/|Å
12
E logo o Espírito o impeliu para o deserto.
13
E Ele esteve no deserto quarenta dias, sendo tentado por Satanás; e vivia entre as feras, e os anjos o
serviam.
Depois da descrição do batismo (1,4-8), o narrador apresenta o advento sobre a cena de Jesus
(1,9-11). No versículo 9, com uma forma um pouco enfática introduzido por um kai euthys/ e logo
(típico de Marcos), vem descrito o ingresso de Jesus. Em poucos versículos encontramos o kai euthys
por duas vezes: no momento do batismo (v. 9) e antes das tentações (v. 12), quase para nos advertir
que os dois eventos devem ser lidos juntos. Isto constitui o paradoxo do início: o Filho de Deus
revelado no batismo é o Filho do Homem tentado por Satanás. Portanto, Marcos une seja literalmente,
seja teologicamente dois aspectos muito importantes: o batismo e a tentação.

22
TEB, nota 1,10 p.
23
TEB, nota 1,11 q.
24
Cf. Rinaldo FABRIS, Os Evangelhos I, 1990, p. 434.
9

Jesus, que recebera no batismo a habilitação carismática à sua missão, pode enfrentar no deserto
o adversário. Na tradição bíblica o deserto é o lugar da prova e da verificação. Jesus não só supera a
prova, mas com a vitória instaura a paz messiânica que fora anunciada pelos profetas. Isto é expresso
por Marcos com duas observações particulares: vivia entre as feras e os anjos o serviam. Para a
comunidade cristã, Jesus é o novo Adão, o justo que realiza na sua vida o projeto originário de Deus:
a vitória sobre o poder do mal, em perfeita harmonia e paz com o mundo. Assim, a cena do deserto
ligada imediatamente ao batismo, é, no evangelho de Marcos, uma antecipação de toda a missão de
Jesus.25
Faço ainda três considerações de caráter teológico, que ao meu ver tem certa relevância:
1º) Marcos não especifica as tentações, mas conta somente que Jesus no deserto era tentado. O
autor não oferece, nem especifica algum conteúdo, mas parece convidar o leitor para que no decurso
da narrativa descubra ele mesmo quais são as tentações; o leitor mesmo deverá descobrir o sentido do
que está acontecendo.
E qual é a primeira realidade que o leitor deverá descobrir? Que a tentação é relativa à pessoa mesma
de Jesus que recebeu o batismo. É no decurso da missão de Jesus que se revelará “a tentação”... Esta
será a de não responder ao seu ser Filho segundo o projeto do Pai, ou seja, de construir uma estrada e
uma divindade feita a própria imagem e semelhança. Retorna aqui a tentação de Israel, que em si pode-
se resumir a uma: o comportamento de um povo que não confia no verdadeiro Deus, mas a um ídolo
construído à sua imagem e semelhança; a ilusão de encontrar unicamente no seu próprio operar o
sentido da existência.
-2º) Outro aspecto podemos perguntar: Deus coloca à prova o homem? Na Escritura muitas vezes
se diz que Deus coloca à prova o homem. Abraão foi colocado à prova. O Sal 66,10 vai ao encontro a
esta afirmação. Portanto, perguntamos: Deus é tentador? O discurso é complexo, mas vem articulado
deste modo:
a) a miséria, a prova, as tentações pertencem à vida humana. O homem é provado enquanto traz
dentro de si a finitude, a precariedade, a morte. A grande tentação do homem é procurar uma resposta
nas próprias forças, no seu poder e no seu operar. O homem no seu desmesurado orgulho muitas vezes
se prostra diante do ídolo que ele próprio criou, para sentir-se forte diante da sua fraqueza.
b) quando se usa a expressão “Deus coloca a prova o homem” se deve entender unicamente a
ação divina que reconduz o indivíduo à verdade de si mesma, da inteira criação e da história (cf. para
tanto Dt 8,2). Portanto, não é correto, e sobretudo se deve evitar, afirmar que Deus coloca à prova o
homem. Ele quer trazer o homem à verdade de si mesmo.
- 3º) a duração da tentação de Jesus. Marcos não insiste tanto sobre o tipo de tentação, mas sobre
a sua duração, oferecendo deste modo um sinal: toda a vida de Jesus é marcada pela tentação. O espaço
de 40 dias não é outro que um simbolismo na bíblia para indicar o espaço de uma geração e, portanto,
a duração de uma vida.
Para concluir, o evangelista Marcos não para sobre a natureza das tentações, mas coloca o leitor
para andar adiante na narração, de forma a descobrir, ao longo do caminho, do que se trata.

25
Cf. Rinaldo FABRIS, Os Evangelhos I, 1990, p. 434.

Você também pode gostar