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1 INTRODUÇÃO
O presente estudo dedica-se a fazer uma análise exegética de Marcos 1:21-28 com base
nos passos apresentados por Stuart e Fee (2008) em seu “Manual de exegese bíblica”. Essa
passagem apresenta um homem possesso por demônios, mas que é liberto por Jesus Cristo. Um
dos principais temas de Marcos é o grande conflito (a batalha entre Deus e Satanás pelo domínio
do ser humano):
Em Marcos, o tema do grande conflito (a luta entre Cristo e o diabo) fica evidente do
início ao fim. Jesus trava uma batalha constante contra as forças do mal: com o próprio
Satanás (1:12, 13), com pessoas possuídas por demônios (ver 1:21-27), com forças da
natureza (6:45-51), com líderes religiosos (2:1-3:6) e com a própria família (3:20, 21,
31-35) (BÍBLIA DE ESTUDO ANDREWS, 2015, p. 1282).
1
Bacharel em Administração pela Faculdade Castro Alves, Salvador-BA. Graduando em Teologia pelo SALT-
FADBA, Cachoeira-BA. 61 matutino.
2
Assim como os demais evangelhos, Marcos não possui uma indicação explicita sobre
sua autoria. Todavia, há evidências que podem ajudar a identificar seu autor (BÍBLIA DE
ESTUDO ANDREWS, 2015, p. 1281; GRASSMICK, 1985, p. 95; TURLINGTON, 1986, p.
313; GARLAND, 1996, p. 26; SANNER, 2006, p. 219). Uma das principais evidências, e a
mais antiga, de que alguém chamado Marcos tenha sido o autor desse evangelho vem de Papias,
Bispo de Hierápoles. Apesar de não termos acesso a seus escritos diretamente, Eusébio, Bispo
de Cesaréria, cita suas palavras que afirmam que Marcos foi um intérprete de Pedro e que teria
registrado as histórias sobre Jesus de forma cuidadosa, porém não ordenada (EUSÉBIO, 2000,
p. 169; BÍBLIA DE ESTUDO ANDREWS, 2015, p. 1281; GRASSMICK, 1985, p. 95;
TURLINGTON, 1986, p. 314-315; JAMIESON; FAUSSET; BROWN, 1997, p. 64;
GARLAND, 1996, p. 26). Não somente Papias teria afirmado ser Marcos o autor do evangelho,
mas também Justino Mártir, o Prólogo Antimarcionista de Marcos, Irineu, Tertuliano, Clemente
de Alexandria, Orígenes e o título “segundo Marcos” teria sido adicionado por escribas algum
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tempo antes de 125 d.C. Portanto, já no segundo e terceiro séculos a autoria era atribuída a
Marcos por uma considerável gama de testemunhas (GRASSMICK, 1985, p. 95; JAMIESON;
FAUSSET; BROWN, 1997, p. 64-65; SANNER, 2006, p. 219).
Tendo sido Marcos o autor do evangelho, surge outro questionamento, quem seria esse
Marcos? Os comentaristas indicam ser João Marcos, João seria seu nome hebraico e Marcos o
seu nome latino. Ele seria o filho de uma mulher que cedia sua casa para reuniões dos primeiros
cristãos (At 12:12), primo de Barnabé (Cl 4:10), acompanhou algumas das viagens missionárias
de Paulo e Barnabé (At 12:25; 13:3, 5, 13; 15:36-39), é citado algumas vezes por Paulo (Cl
4:10; 2Tm 4:11; Fm 24) e por Pedro (1Pe 5:13), sendo chamado por este de “meu filho” quando
estavam em Roma (BÍBLIA DE ESTUDO ANDREWS, 2015, p. 1281; GRASSMICK, 1985,
p. 95; JAMIESON; FAUSSET; BROWN, 1997, p. 64; PEARLMAN, 2010, p. 243).
Quanto a data em que teria sido escrito, há algumas teorias. Provavelmente Mateus e
Lucas tenham sido influenciados pelo evangelho de Marcos, assim, os estudiosos o apontam
para uma data antes da destruição de Jerusalém em 70 d.C.; outros apontam para uma data nos
anos 50 d.C. por acreditarem ter sido Lucas (influência supracitada) e Atos escritos antes da
morte de Paulo (ca. 64 d.C.); outra possibilidade seria nos anos 60 d.C. por se acreditar ter sido
após a morte de Pedro na perseguição de Nero (ca. 64-65 d.C.). Desta forma, nos parece ser
mais provável que o livro tenha sido escrito na metade final dos anos 50 ou início dos anos 602
(BÍBLIA DE ESTUDO ANDREWS, 2015, p. 1281; TURLINGTON, 1986, p. 316; SANNER,
2006, p. 219; JAMIESON; FAUSSET; BROWN, 1997, p. 65; CARSON; MOO; MORRIS,
1997, p. 108-112). Isto posto, também é amplamente aceito que Marcos tenha escrito o
evangelho em Roma (JAMIESON; FAUSSET; BROWN, 1997, p. 65; BÍBLIA DE ESTUDO
ANDREWS, 2015, p. 1281; GRASSMICK, 1985, p. 99; SANNER, 2006, p. 219-220;
TURLINGTON, 1986, p. 316; PEARLMAN, 2010, p. 244; GARLAND, 1996, p. 28).
2
Há ainda outra teoria, menos provável, que coloca a data nos anos 40, cf. Carson, Moo e Morris (1997, p. 108-
109) e Torrey (1933, p. 261-262).
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612). Nele Jesus é apresentado como um homem de ação, muitos de seus milagres são
registrados e ele utiliza frequentemente a palavra εὐθὺς (imediatamente, logo), sendo 40 vezes
no evangelho e 3 nesta perícope (FAITHLIFE CORPORATION, 2000-2019; DORNELES,
2013, p. 612). A maioria das histórias contidas em Marcos também foram citadas por Mateus e
Lucas e, em geral, em Marcos são mais concisas. Quanto a perícope estudada, apenas Lucas
relata também essa história e, em boa parte, repete as mesmas palavras de Marcos.
Quando ao tema, “O evangelho de Marcos tem sido chamado de ‘história da paixão’
(sofrimento e morte de Jesus) [...] Quase a metade do livro de Marcos é dedicada aos ensinos
de Cristo sobre o Messias sofredor e o sofrimento que os discípulos deveriam enfrentar”.
Marcos também se refere a Jesus como o filho de Deus que tem autoridade para ensinar (Mc
1:21, 22) e poder sobre os espíritos imundos (Mc 1:25, 26) (BÍBLIA DE ESTUDO ANDREWS,
2015, p. 1282).
Algumas das ênfases dadas por Marcos em seu livro ficam claras na passagem que nos
propomos a estudar (1:21-28), conforme veremos no tópico 4 deste trabalho ao analisarmos a
perícope verso por verso.
4 EXPLICAÇÃO DA PASSAGEM
Tendo por base as ênfases empregadas nesse evangelho, podemos perceber nessa
perícope Marcos apresentando a Jesus como um homem de ação. Temos uma sequência de
acontecimentos. Jesus e os discípulos chegam a Cafarnaum3 e, logo, Jesus vai ensinar na
sinagoga no sábado. Ele ensina com autoridade e as pessoas se impressionam. Um homem com
espírito imundo aparece, enfrenta Jesus, que o repreende e o exorciza. Os ouvintes novamente
se impressionam e a fama de Jesus se espalha pela região da Galileia.
O texto de Marcos possui alguns desafios de tradução, a começar do primeiro verso da
passagem que estamos estudando. Ele inicia seu relato utilizando o tempo presente do verbo do
grego bíblico que enfatiza o aspecto de uma ação em desenvolvimento ao dizer que eles (Jesus
e os discípulos) entram (εἰσπορεύονται) em Cafarnaum. Em seguida, diz que Jesus
imediatamente (εὐθὺς) no sábado ensinava (ἐδίδασκεν) na sinagoga. Aqui ele utiliza o tempo
imperfeito que indica uma ação habitual no passado, que não se realiza mais. Apesar de parecer
3
Importante cidade da Galileia. Segundo Osborne (2014, p. 71), essa cidade tinha cerca de 10 mil habitantes, foi
uma importante rota comercial de entrada na Galileia, também tinha uma das maiores coletorias de impostos da
Palestina (onde Mateus e Zaqueu trabalharam). Jesus se mudou para essa cidade no início de seu ministério (Mt
4:13).
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um pouco estranho e difícil de compreender, Wallace (2009, p. 502) diz que esse é um uso
comum. Pois, para Marcos, narrativa é história, ou seja, ênfase no acontecimento. Enquanto
Mateus utiliza o aoristo para enfatizar a ação e fazer a transição para um discurso de Cristo, por
exemplo, Marcos usa o imperfeito para mostrar “de modo mais específico como ele [o evento]
aconteceu”. Quando ao uso do tempo no presente, Dorneles (2013, p. 617) indica que Marcos
o utiliza com frequência para “dar um toque de realidade vívida a sua narrativa”.
Outra expressão importante nesse verso (21) é τοῖς σάββασιν (nos sábados), que a
maioria das bíblias consultadas4 traduzem no singular, apesar de estar no caso dativo plural.
Concordamos com essa tradução no singular para o português, pois o uso de εὐθὺς (logo,
imediatamente) indica um evento imediatamente subsequente ao que está sendo narrado, ou
seja, ele aponta para o sábado seguinte ao dia em que Jesus e os discípulos entraram em
Cafarnaum. Nesse sentido, Dorneles (2013, p. 617) afirma que também não pode ser entendido
que os discípulos estavam pescando em dia de sábado (Mc 1:16-20), pois εὐθὺς aponta para o
sábado seguinte ao evento da pesca.
Vale ainda retomar o que já falamos sobre o aspecto do verbo no imperfeito. Nesse
caso, ἐδίδασκεν indica que era um costume de Jesus estar na sinagoga ensinando aos sábados
(HENDRIKSEN, 2014, p. 76; SANNER, 2006, p. 232). Tendo por base as explicações dadas
até então, traduzimos esse verso desta forma: “Então, entraram em Cafarnaum. E, logo no
sábado, ensinava na sinagoga, como de costume”. Jamieson, Fausset e Brown (1997, p. 65)
ainda dizem que essa construção mostra que Jesus ensinou no sábado imediato a sua chegada
em Cafarnaum e isso se tornou algo contínuo.
No verso 22, Marcos passa a mostrar o resultado da ação anterior de Jesus. A ação de
ensinar resultou em que aqueles que o ouviam ficassem maravilhados (ἐξεπλήσσοντο), pois o
seu ensino era transmitido com autoridade (ἐξουσίαν). Mas não só isso, seu ensino foi
comparado ao dos escribas (γραμματεῖς), sendo considerado superior pela sua autoridade. Jesus
mesmo transmitia ser alguém que tinha autoridade. Todavia, segundo Carson et al. (2009, p.
1431), o fato de reconhecerem a autoridade de Cristo não necessariamente levava a crerem nele.
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As bíblias que consultamos em língua portuguesa foram: Almeida Corrigida Fiel (ACF); Almeida Revista e
Corrigida (ARC); Almeida Revista e Atualizada (ARA); Nova Almeida Atualizada (NAA); Nova Bíblia Viva
(NBV); Nova Tradução na Linguagem de Hoje (NTLH); Nova Versão Internacional (NVI); Nova Versão
Transformadora (NVT). Versões consultadas em língua inglesa: American Standard Version (ASV); English
Standard Version (ESV); King James Version (KJV); King James Version, American Edition (KJVA); Lexham
English Bible (LEB); New International Version (NIV). Em língua espanhola, as versões consultadas foram:
Nueva Biblia Viva (NBV); Nueva Versión Internacional (NVI); Reina Valera Contemporánea (RVC). Somente as
versões Reina-Valera Antigua, Reina Valera 1909, Reina Valera 1960 e Reina Valera 1995, todas em espanhol,
traduziram como “os sábados” ou “dias de descanso”.
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Soares e Correia Júnior (2002, p. 85) afirmam que é comum na narrativa de Marcos essas
contraposições entre Jesus e os escribas, sendo que o verbo “ensinar” é aplicado somente a
Jesus. O interessante é que ele não é comparado a qualquer grupo de pessoas, mas aos escribas,
que eram professores, mestres da lei, aqueles que a interpretavam e eram nela especialistas,
peritos (CARVER, 2014; SOUTER, 1917, p. 57; TAYLOR, 2011, p. 50; BARRY et al., 2016,
Mc 1.22; TURLINGTON, 1986, p. 337). Portanto, ao ensinar, Jesus é reconhecido como
alguém que tem autoridade em si mesmo e é superior à classe que, para a sociedade, era a que
tinha qualificação para o ensino (BÍBLIA DE ESTUDO ANDREWS, 2015, p. 1284;
DORNELES, 2013, p. 617; JERÔNIMO, 2011, p. 73; BRUCE, 2012, p. 1107; GRASSMICK,
1985, p. 109).
Os vocábulos καὶ (e, também, então) e εὐθὺς são mais uma vez utilizados no verso 23.
Mais uma vez o dinamismo da narrativa de Marcos fica patente. Tão logo a autoridade de Cristo
se manifestou através de seu ensino, um espírito imundo se revelou. A palavra traduzida por
impuro ou imundo é ἀκαθάρτῳ que, segundo Taylor (2011, p. 14) e Souter (1917, p. 10), é um
termo utilizado para se referir a demônios e, de acordo com Snyder (2014), é utilizado no Novo
Testamento unicamente na expressão “espírito imundo” para se referir a demônios que oprimem
seres humanos em oposição à vontade de Deus. Portanto, um demônio agora se manifesta em
oposição a Jesus. Comentando essa passagem, Mulholland (1990, p. 46) diz que:
à medida em que Jesus ensina, a oposição demoníaca vem à tona. Satanás entende que
a consumação do domínio de Deus garante a abolição do império da morte. O batismo
de Jesus levou a um encontro com Satanás no deserto. Agora, a batalha continua com
Satanás tomando a ofensiva, confrontando seu oponente na sinagoga, embora saiba
que o Filho de Deus, finalmente, o destruirá.
É possível perceber nessa perícope o conflito entre o bem e o mal, entre Cristo e o
diabo. A Bíblia de Estudo Andrews (2015, p. 1282) diz que um dos principais objetivos do
evangelho de Marcos é mostrar o conflito entre o bem e o mal e, do início ao fim, isso fica
bastante evidente. Ao longo do discurso do evangelho podemos perceber essa constante batalha
contra as forças do mal, sendo a perícope estudada um exemplo. Com essa perspectiva está de
acordo também Carson et al. (2009, p. 1432).
Em seguida, no verso 24, temos o relato daquilo que foi bradado pelo espírito imundo.
Ele começa com uma pergunta contendo um vocativo, Jesus Nazareno (Ἰησοῦ Ναζαρηνέ).
Wallace (2009, p. 67-68) afirma que, quando um vocativo é utilizado como uma invocação
direta-simples, ou seja, um chamamento, indicando o destinatário, muitas vezes há grande
emotividade na expressão. A narrativa mostra a agitação do espírito imundo ao ouvir Jesus e
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agora ele passa a bradar em aparente desespero5 questionando “que temos nós contigo, Jesus
Nazareno?” (Τί ἡμῖν καὶ σοί, Ἰησοῦ Ναζαρηνέ;). Essa é uma expressão peculiar do hebraico que
a LXX6 traduz exatamente como está nesse verso para dizer “o que temos nós em comum?”.
Apesar de o verbo “ter” não estar contido na frase grega, o uso dos pronomes pessoais no caso
dativo nos transmite que há uma relação entre o locutor e o interlocutor. O espírito imundo
estava dizendo que não havia nada em comum entre ele e seu grupo (uma legião de demônios)
e Jesus Cristo, mostrando a incompatibilidade entre duas forças opostas, a da luz e das trevas
(DORNELES, 2013, p. 618; JAMIESON; FAUSSET; BROWN, 1997, p. 65-66;
GRASSMICK, 1985, p. 109; HENDRIKSEN, 2014, p. 78). Bruce (2012, p. 1107) argumenta
que o questionamento do demônio se dá pelo fato de ele saber que o estabelecimento do reino
de Deus implicaria, necessariamente, na destruição deles.
Ao encontrarem-se essas forças antagônicas, não podendo suplantar o poder divino, o
demônio reconhece, como já citamos, qual seria seu fim, o da destruição. Ele diz “vieste
destruir-nos?” (ἦλθες ἀπολέσαι ἡμᾶς;). O verbo ἀπολέσαι (destruir) é muitas vezes traduzido
aqui por “perder”, o que não transmite muito bem a força que esta palavra parece transmitir
que, segundo Louw e Nida (2013, p. 208-209), é o de “destruir ou provocar destruição –
‘destruir, estragar, fazer perecer, destruição’”. Dorneles (2013, p. 618) ainda afirma que aquele
demônio pensou ter chegado o grande dia do Senhor e que Jesus estava prestes a executar o
juízo divino sobre sua legião.
O espírito imundo então diz para Jesus “bem sei quem tu és” (οἶδά σε τίς εἶ). Essa
afirmação demonstra que aquele demônio sabia exatamente quem era aquele que discursava e
porque possuía tanta autoridade. O uso de οἶδά (bem sei) indica que esse era um conhecimento
prévio. Segundo Garrett (2014), essa palavra expressa uma ação de reconhecimento no presente
de algo que foi conhecido anteriormente. Louw e Nida (2013, p. 311 e 654) afirmam que essa
palavra pode ter o sentido de lembrar-se de algo, trazer à memória e, ainda, “reconhecer o status
elevado de uma pessoa ou de um acontecimento”. Portanto, podemos compreender que aquele
ser que possuía o homem houvera reconhecido a Jesus das cortes celestiais e sabia de sua
posição elevada como filho de Deus (HENDRIKSEN, 2014, p. 79; OSBORNE, 2014, p. 73-
74). Esse entendimento fica ainda mais nítido à luz da afirmativa que o demônio faz a seguir.
Ele afirma que Jesus é o santo de Deus (ὁ ἅγιος τοῦ θεοῦ), aquele que foi empoderado pelo
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Sanner (2006, p. 233) afirma que o demônio expressa seu medo nessa passagem e Garland (1996, p. 71) diz que
a reação pode ser vista como um estratagema defensivo em pânico ou como um reconhecimento reverente do poder
de Jesus.
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Tradução grega da bíblia hebraica.
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Espírito Santo, de acordo com Grassmick (1985, p. 109). Marcos inicia o evangelho declarando
que Jesus Cristo é o filho de Deus (Mc 1:1) e nem mesmo as forças contrárias a Deus podiam
negar quem era Jesus e sua ligação com ele. Mesmo assim, muitos líderes religiosos não
reconheceram nele a divindade. E, mais especificamente naquele momento, era patente a falta
de conhecimento das pessoas sobre Jesus enquanto os demônios sabiam muito bem quem era
ele (DORNELES, 2013, p. 618; HENDRIKSEN, 2014, p. 79).
Considerando-se ainda a afirmativa de que Jesus é o santo de Deus, é importante ainda
notar o uso substantivador do artigo ὁ que precede ἅγιος (WALLACE, 2009, p. 231-233).
Destarte, não é de qualquer um que se está falando, mas do único que é verdadeiramente o santo
de Deus. Jamieson, Fausset e Brown (1997, p. 66) acrescentam que “o santo de Deus” “foi
evidentemente retirada do salmo messiânico (Sl 16:10), no qual ele é identificado como ‘Teu
Santo’”.
Ao contrário das atitudes que hoje são corriqueiramente vistas em diversas igrejas e
pela televisão, Jesus não parou para discutir com o adversário ou entrevistá-lo, antes ele tão
somente se utilizou de sua intrínseca autoridade para repreender, mandar que se calasse e saísse
daquele homem (v. 25). A declaração do espírito imundo sobre Jesus estava correta. Todavia,
Jesus não queria e não precisava receber honra das palavras de um demônio, ele não veio ao
mundo senão para destruir o poder do inimigo e libertar os que por ele estão sendo feitos cativos
(GARLAND, 1996, p. 71; GRASSMICK, 1985, p. 109; HENDRIKSEN, 2014, p. 79;
SANNER, 2006, p. 233; MULHOLLAND, 1990, p. 46). Isso fica ainda mais claro se
analisarmos o relato sinótico dessa passagem em Lucas 4:31-37 que é precedido pelo discurso
de Cristo no qual ele afirma ter vindo para “pôr em liberdade os oprimidos” (Lc 4:18).
Não resta outra alternativa ao espírito imundo senão a de obedecer a ordem de Jesus
(v. 26). No entanto, a forma como Marcos narra a sua saída parece sugerir uma luta para
continuar dominando aquele homem. Traduzimos σπαράξαν por “lançando-o ao chão”. Essa
palavra pode ser traduzida ainda como “convulsionar”, segundo Taylor (2011, p. 202) e
Gingrich (2007, p. 190), sendo que este ainda acrescenta “saltar” e “pular de lá para cá” como
possibilidade de tradução. Isso demonstra a luta dos demônios na tentativa de manter a posse
sobre o homem. Além disso, é dito que ele também clama em alta voz (φωνῆσαν φωνῇ μεγάλῃ).
Percebe-se nessa frase uma ocorrência de um dativo cognato, quando o substantivo no caso
dativo é cognato do verbo, ou seja, ambos possuem a mesma forma, raiz. Nesses casos o dativo
cognato enfatiza a ação do verbo. Portanto, o autor faz esse jogo de palavras para dar ênfase na
ação que está sendo descrita (WALLACE, 2009, p. 168-169). Depreendemos do texto que o
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espírito imundo fez muito barulho ao sair do homem. Observa-se, então, essa tentativa de
manter o domínio sobre aquele homem ou de matá-lo como sugere Dorneles (2013, p. 618).
Contudo, a despeito da tentativa de resistência, o diabo nada pôde fazer ante a ordem de Jesus.
A audiência fica atônita diante da cena contemplada e começa a se questionar sobre
aquilo (v. 27). Meyer (1883, p. 27-28) diz que o uso do pronome reflexivo (ἑαυτοὺς) é feito aqui
para especificar que os ouvintes não estavam questionando a Jesus ou seus discípulos, mas
estavam perguntando uns aos outros sobre aquele evento singular para eles. A pergunta feita é
“que é isto?” (Τί ἐστιν τοῦτο;). Marcos utiliza o pronome interrogativo τί que, segundo Wallace
(2009, p. 347), é um exemplo de questão categórica questionando que tipo de coisa era a que
estavam vendo. Aquilo era algo completamente novo para aquele público, tanto que eles
exclamam “nova doutrina” (διδαχὴ καινή). O uso do termo καινή pode confirmar essa ideia de
que para eles o quê e como Jesus estava ensinando e fazendo era totalmente novo, pois em
grego há pelo menos duas palavras para falar de algo novo, uma é νέος que se refere a algo
recente, que nasceu recentemente, e a outra palavra é καινός que se refere a algo inédito, uma
novidade (REGA; BERGMANN, 2014, p. 95; TAYLOR, 2011, p. 141). Esse último termo é o
que Marcos utiliza. Grassmisck (1985, p. 109) e Hendriksen (2014, p. 80) comentam que o
assombramento (ἐθαμβήθησαν, palavra sinônima a ἐξεπλήσσοντο, no verso 22) daquelas pessoas
se referia tanto à natureza daquilo que Jesus pregava quanto ao fato de ter ele expulsado o
demônio com apenas uma palavra de comando. Eles afirmam que o ensinamento apresentado
por Cristo era qualitativamente novo e possuía autoridade que se estendia ao ponto de até
mesmo as forças demoníacas se submeterem. Osborne (2014, p. 72) ainda acrescenta que é
essencial perceber que primeiro a audiência se impressiona com o ensino de Jesus e somente
depois com o ato miraculoso. Ele diz também que um dos temas em Marcos 1 é o crescente
espanto das multidões.
Por fim, no último verso (28) da perícope em análise, Marcos encerra a discussão e
essa narrativa afirmando que a fama de Jesus começou a se espalhar de forma imediata. A
expressão εἰς ὅλην τὴν περίχωρον τῆς Γαλιλαίας (por toda circunvizinhança da Galileia) mostra
que sua fama não ficou apenas na Galileia, mas também se espalhou por toda a região próxima
à Galileia, isso fica ainda mais claro e enfatiza a amplitude da propagação da história ao
relacionarmos a πανταχοῦ (em toda parte), palavra utilizada diretamente antes dessa frase
(MEYER, 1883, p. 28-29). Ao usar novamente εὐθὺς, Marcos aponta para a prontidão com que
a notícia se espalhou.
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5 CONCLUSÃO (APLICAÇÃO)
precisamos confiar nele e buscar dele o poder para pregar mensagens que tenham Cristo por
centro e estejam completamente embasadas em sua palavra.
6 REFERÊNCIAS
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Eletrônico Edições Logos.
BÍBLIA de Estudo Andrews. Tradução de João Ferreira de Almeida. 2. ed. rev. e atual. no
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CARSON, D. A.; MOO, Douglas J.; MORRIS, Leon. Introdução ao Novo Testamento. São
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GINGRICH, F. Wilbur. Léxico do Novo Testamento: grego, português. São Paulo, SP: Vida
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HENDRIKSEN, W. Marcos. 2. ed. São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2014.
12
JERÔNIMO, São. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Novo Testamento e artigos
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TORREY, Charles C. The Four Gospels A New Translation. [s.l]: Harper & Brothers
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13
WALLACE, Daniel B. Gramática Grega: Uma Sintaxe Exegética do Novo Testamento. São
Paulo, SP: Editora Batista Regular do Brasil, 2009.