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3 evangelho segundo Marcos

Com Marcos a pregação toma-se narrativa e atende à


negação: as diversas tradições recebem unidade e alinhamento.
Por séculos o evangelho de Marcos tem sido como o parente
pobre. A “desordem” ressaltada por Pápias, a pressuposta
incompletude preenchida com o acréscimo de Marcos 16,9-20, a
influência exercida pela definição agostiniana do pedissequus et
breviator [servo e redator de sínteses] (uma síntese
subserviente) de Mateus, fizeram-no tomar-se de tal modo
esquecido que o lecionário festivo, em vigor até o Vaticano II, a
ele recorria apenas quatro vezes. A sua precedência no tempo,
reconhecida desde o século XVIII, por sua vez, fez com que a
atenção geral se voltasse para ele, primeiramente como fonte
para uma reconstmção histórica dos traços humanos de Jesus e,
em seguida, como autor de um pensamento teológico coerente.
As indagações postas por W. Wrede (1901) sobre a relação entre
história e teologia, ainda que mal resolvidas com a sua teoria do
“segredo messiânico”, influenciaram a exegese até hoje,
desenvolvendo-se entre consensos e dissensões, reformulações.
Hoje, Marcos está entre os mais estudados ainda que as
contribui-

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ções, freqüentemente em oposição entre si, façam pensar em um dicional que pensa em um Marcos judeu da Palestina, colaborador
período de transição.1 de Pedro e Paulo, se compaginaria mal com os dados internos do
evangelho. As maiores dificuldades dizem respeito a certa
O material é composto de aproximadamente 95 narrativas,
ignorância da geografia da Palestina, dos costumes judaicos, do
com 11.240 palavras, 1.345 vocábulos, 30 ápax, ou seja,
calendário, uma fraca influência da pregação dos dois apóstolos,
vocábulos não usados em outros lugares do Novo Testamento. A
como, por exemplo, na justificação paulina. Os dados tradicionais,
língua é o grego popular da koiné, com semitismos (talithà kum,
effethâ, korbân, Abbà), porém não de tal modo a justificar um contudo, já se confirmam por esta simples consideração: uma
original aramaico, com alguns latinismos (praitórion, atribuição hipotética do texto a uma pessoa que não o autor
kentyrion), com estilo vivaz, próprio da língua falada, pouco verdadeiro (pseudonímia) teria escolhido um apóstolo, como
cuidado gramatical e sintaticamente, que privilegia a parataxe ou acontece no epistolário, e não um homem com menos autoridade,
coordenação assindética (cf. 6,30-33), inclinado a empregar como era Marcos na Igreja primitiva. Além disso, o suposto autor,
anacolutos (cerca de 20) com repetição de frases. Tudo evidencia ou seja, aquele que surge dos elementos literários e teológicos,
o estilo do narrador, atestado também pelo freqüente “logo em concorda com o Marcos identificado pela tradição.
seguida” e pelo presente histórico (150 ocorrências), contudo, Marcos, na realidade, é um convertido do Judaísmo,
com efeitos positivos, cativantes, como se falasse para você de chamado João Marcos (At 12,12-25; 15,37), primo ou sobrinho
modo simples e espontâneo. de Bamabé (Cl 4,10), com quem está em estreita relação (At
15,36-40), bem como com Pedro, que após a sua milagrosa saída
da prisão refugiou-se ao lado da mãe de Marcos, Maria,
proprietária de uma casa que se tomou centro de oração para a
MARCOS COMO AUTOR? comunidade cristã (At 12,12). Segue Paulo na primeira viagem
Nas últimas décadas surgiram várias objeções contra a missionária, ainda que depois o abandone (At 12,25; 13,5) e volta
autenticidade do segundo evangelho, atribuído por alguns para Chipre junto com ■ Bamabé. Estará novamente próximo do
estudiosos a um étnico cristão. Na realidade, a opinião tra apóstolo dos gentios, prisioneiro em Roma (F1 24), de quem ele
se toma valoroso colaborador (2Tm 4,11). Está ligado à figura e à
pregação de Pedro, de quem é reconhecido “intérprete”
(ermeneutés) por Pápias, mais que um tradutor ou “porta-voz”.
' Os principais comentários em italiano que apareceram nos últimos quinze anos são três:
PESCH, R. II vangelo di Marco. Brescia, Paideia, 1980-1982. (Commentario Teologico
Uma cuidadosa leitura do evangelho ratifica a atribuição do texto
II-1 e II-2); GNILKA, G. Marco, Assisi, Cittadella, 1987; ERNST, J. II vangelo seconda a Marcos.
Marco. Brescia, Morcelliana, 1991. V I e II. Para uma eficaz leitura orante {.Lectio
divina) cf. : Fausti, S. Ricorda e racconta il vangelo. La catechesi narrativa di Marco.
Milano, Ancora, 1990; confira também os valiosos volumes de R. Fabris, Marco
(Brescia, Queriniana, 1996, col. Lob 2.2) e de M. Galizzi, II vangelo di Marco.
Commento esegetico-spirituale. Leumann Torino, Ldc, 1993.

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Esse evangelho, de fato, considera a ação de Jesus em seu das para Veneza no século IX, e guardadas até hoje na basílica de
aspecto portentoso, milagroso, inseparável da cruz, de acordo São Marcos. Nada sabemos com precisão a respeito de sua morte.
com a pregação de Pedro (At 2,22; 10,38); é objetivo em ressaltar O grande biblista M.- J. Lagrange assim descreve sua
personalidade: “Era um daqueles homens admiráveis que brilham
méritos e defeitos do grande apóstolo como as repreensões de
em segundo plano, ou melhor, que renunciam a brilhar para
Jesus (Mc 8,32-34), a negação (14,66-72), com a omissão da consagrar-se a personalidades mais elevadas, guardando para si o
caminhada sobre as águas (cf. Mt 14,28ss) e do primado (Mt mérito da modéstia e, ao mesmo tempo, uma ação mais fecunda
16,17ss). A rudeza de linguagem e o ime- diatismo das cenas embora menos pessoal”.
traduzem mais facilmente o estilo da linguagem falada, estilo A composição do texto pode ser datada, com maior
improvisado, mais propenso a converter do que a deixar-se probabilidade, antes da destruição de Jerusalém e não depois. “A
admirar pela fluência de um texto, exigindo assim, com muita maioria dos comentaristas modernos sustentam que Marcos foi
probabilidade, a pregação romana de Pedro. “Do evangelho
escrito por volta do ano 70 e antes da redação de Mateus e
emerge a figura de um autor supostamente judeu-cristão,
Lucas”?
provavelmente de origem hie- rosolimitana, que conhecia muito
bem o grego e compreendia o aramaico. Portanto, não um étnico-
cristão, como muitas vezes se tem sustentado até em estudos
recentes [...] Nele [Marcos], que foi o primeiro a escrever um
evangelho, sin- tetizam-se a tradição querigmática de Paulo e a
tradição narrativa de Pedro”.2 A ligação Marcos-Pedro deixa
entrever a contribuição de uma tradição. 3
Monasterio & Carmona, Vangeli sinottici e Atti degli apostoli, cit., p. 147; Laconi, Vangeli
A esses dados essenciais, ao longo dos séculos somaram- sinottici eAtti degli apostoli, cit., p. 143; Penna, Letture evangeliche..., cit., p. 96; Segalla,
Evangelo e vangeli, cit., p. 172. Uma fixação de data que retrocede ao ano 50 (e mesmo
se outros específicos, mais ou menos confiáveis, a respeito da antes) foi defendida por J. Carmignac em La nascita dei vangeli sinottici (Cinisello
Baisamo [Milano], Paoline, 1985), baseando-se na tradição em hebraico do evangelho, e
figura de Marcos evangelista. Vamos relatar alguns. Marcos também por J. 0’Callaghan em ‘ Papiros neotestamentarios en la cueva 7 de Qumrân?”
encontra-se entre os 72 discípulos enviados para preparar a (Biblica, 53 [1972], pp. 91-100) e em “Uipotetico papiro di Marco a Qumrân” (La Civiltà
Cattolica [1992], pp. 464-473). A opinião compartilhada com entusiasmo por C. P. Thiede
missão de Jesus (cf Lc 10,1); é o jovem que fugiu nu do horto esbarra na perplexidade ou na posição indubitavelmente contrária dos críticos. Cf.:
GHIBERTI, G. Marco a Qumrân?. Parole di Vita, 37 (1992), pp. 126-132; GRELOT, P.
durante a prisão (Mc 14,51); foi o primeiro bispo de Alexandria, L’origine dei vangeli. Controvérsia con J Carmignac. Roma, Libreria Vaticana, 1989;
de onde as relíquias teriam sido transporta DALLA VECCHIA, F. (Org.) Ridatare i vangeli? Brescia, Queriniana, 1997. (GdT, 247).
Confira também as posições críticas em Christen und Christliches in Qumrân?, editado
por B. Mayer (Regensburg, Pustet, 1992, col. Eichstätter Studien, NF 32). Motivos de
perplexidade são a fraqueza do fundamento do qual foi tirada a argumentação (em cinco
linhas do papiro apenas poucas letras são claras), a comprovada presença de um
desenvolvimento das tradições em Marcos, a impressão de um sensacionalismo, não dos
autores mas dos divulgadores, como se uma nova fixação de data mudando algum ano ou
decênio corroborasse a historicidade.

2
Segalla, Evangelo e vangeli, cit., pp. 171-175.

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A COMUNIDADE DE MARCOS (1,21-22; 2,13; 6,2.6.34; 10,1). Esse conteúdo, de fato, coincide
com a própria vida de Jesus, com a sua manifestação em meio a
É possível descrevê-la recorrendo a elementos que se contradições e sofrimentos até a cruz. A comunidade, portanto, é
encontram no evangelho. Eles, porém, não são unívocos quanto convidada a reinterpretar a própria vida à luz da vida de Jesus. A
ao seu significado pela dificuldade em distinguir entre tradição, narração que se dirige à comunidade tem também a finalidade de
que alude à comunidade que recolheu e elaborou o material, e fixar a tradição, a partir do momento em que as testemunhas da
redação, os destinatários propriamente ditos de Marcos. “É primeira geração cristã estavam desaparecendo. E uma
preciso contentar-se com uma configuração diáfana e incerta da comunidade que se organiza não apenas para ajudar os que
comunidade de Marcos que, de qualquer modo devemos supor crêem a reconhecer a Jesus, como também a anunciá-lo a quem
essencialmente fiel ao evangelho escrito por ele; certamente não não o conhece. Grande destaque têm Pedro (citado 25 vezes), “os
para reservá-lo a si mesmo em uma comunidade fechada, mas Doze” (mencionados onze vezes, contra oito em Mateus e sete
para anunciá-lo a todos os povos (13,10) em todo o mundo em Lucas), constituídos para estarem com Jesus e para a missão,
(14,9)”.4 e ainda os discípulos (citados 43 vezes), tendo papéis diversos. A
Formada em grande parte por étnico-cristãos (7,27; 10,12; comunidade reflete um ambiente popular, que desconhece o
13,10) em vista dos quais explicam-se costumes (7,3-4) e termos aramaico, com tendências apocalípticas (cf. Mc 13 e toda a
aramaicos (15,42) pela presença de judeus-cristãos, a temática da demonologia), pouco afeita ao Antigo Testamento,
comunidade está aberta à missão, como as numerosas referências citado apenas cerca de trinta vezes, principalmente nas passagens
ao querigma e à catequese deixam entrever (1,21- 28; 7,24-30; herdadas da tradição.
14,9), com uma evangelização difundida por toda parte, de casa A comunidade de origem do evangelho é de se julgar,
em casa (6,6b-7.10). Essa comunidade está passando ou passou ainda hoje com maior probabilidade, como sendo a de Roma.
pela perseguição de Nero (ano 65) e pelos efeitos da revolta Afirmam-no muitos Padres a partir do século III (Clemente de
judaica (anos 66-70), em conseqü- ência da qual mesmo os Alexandria, Jerônimo, Eusébio, Efrém) e ratificam-no numerosos
cristãos, no início não distintos dos judeus, eram semelhantes a latinistas. A hipótese de uma origem sírio-fenícia, que prosperou
esses. Em conseqüência disso, a comunidade é sacudida em sua com grande riqueza de argumentos, não parece aceitável.5
própria fé sobre a messianidade e o poder de Jesus. Por isso, o
evangelista elabora uma narração em que o ensinamento, muitas
vezes enunciado, não tem aparentemente nenhum conteúdo
próprio

s
THEISSEN, G. Lokalkolorit und Zeitgeschichte in den Evangelien. Freiburg Göttingen,
1979. (NTOA, 8). Confira a critica de G. Segalla, em Evangelo e vangeli (cit., pp.
4
Segalla, Evangelo e vangeli, cit., pp. 158s. 159s).

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que prosperou com grande riqueza de argumentos, não parece A grande problemática exige uma seleção dos temas, uma
aceitável.5 concentração quanto ao essencial, uma atenção para o que tem
A DIMENSÃO LITERÁRIA fundamento no texto a fim de evitar o subjetivismo. Isso se
encontra em leituras à primeira vista fascinantes, mas destituídas
O exame do material literário e a sua estruturação em uma de fidelidade à mensagem transmitida: a obra de Marcos, hoje,
obra unitária constituem um problema tão controverso que está revalorizada quanto ao seu propósito de transmitir a
chegam a desorientar até mesmo os estudiosos. Passa- se do tradição.8
ceticismo de J. Jeremias, para quem é sacrifício inútil ir atrás de
uma construção sistemática do evangelho, e da subestima de W.
Schmithals, segundo o qual o redator final teria estragado a obra-
prima representada por um texto básico anterior à concepção Elementos literários
unitária de um texto bem orgânico. Mesmo para os que admitem
isso, a estrutura é entendida de maneira diferente. Há quem O material de Marcos é reencontrado quase por completo
encontre em Marcos de duas a seis partes (X. Léon-Dufour, R. em Mateus e Lucas. Portanto, é oportuno indicar as suas
Pesch, P. Pokorny), há quem encontre estruturas capazes de principais classificações.
incluir todo o material sob o modelo da narrativa dramática (F. Prevalecem as narrativas compostas de milagres,
G. Lang) ou nele descobre uma narração concêntrica (B. M. F. controvérsias, narrativas biográficas. Os milagres, sobre os quais
van Iersel) ou quiasmática, pela qual “o evangelho de Marcos é falará amplamente a terceira parte, são por volta de vinte e dizem
composto de modo mais harmônico e ordenado do que pensam
respeito tanto a pessoas como à natureza, na qual Jesus muitas
certos críticos antigos (Pápias) e modernos (W. Schmithals)”. 6 A
razão de tanta diversidade está principalmente no critério vezes se manifesta (por exemplo, quando anda sobre as águas).
diferente adotado para encontrar uma estrutura (geográfica, Alguns são muito curtos, outros são descritos em cores vivas,
literária, teológica) e no caráter enigmático de todo o evangelho com detalhes que na sua origem contam com testemunhas
até a conclusão de Marcos 16,8, que pelo seu aspecto oculares. As contendas com os adversários encontram-se aqui e
ali no evangelho e deixam clara a liberdade de ação de Jesus
(cap. 2), a origem do poder sobre os demônios (3,22-30), o
ensinamento recusado (cap. 12).

6
Segalla, Evangelo e vangeli, cit., p. 141. Essa afirmação é amplamente documentada por
Segalla nas páginas 104-151. começo ao fim e do fim para o começo, valorizando o próprio grau de compreensão e
' 0 método narrativo ou da análise narrativa, numa feliz colaboração com o método revivendo no próprio tempo o seguimento, o serviço, o anúncio do mestre (VIGNOLO, R.
histórico-crítico, considera pleno de sentido o final breve, o qual, exatamente por sua Una finale reticente: interpretazione narrativa di Mc 16,8. Rivista Bíblica, 38(1990), pp.
natureza enigmática e reticente, torna-se merecedor da atenção do leitor. Esse método, na 129-189).
realidade, está presente para preencher o vazio operacional das personagens femininas 1
SABBE, M. (Ed.) L’évangile selon Marc. Tradition et rédaction. 2. ed. Louvain, 1988.
para levar a termo o programa de “buscar Jesus", percorrendo a história do (BETL XXXIV).

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As narrativas são concernentes à vida de Jesus, vindo em A estrutura literária
primeiro plano a paixão, mas também a vocação dos discípulos Uma estrutura fundada apenas sobre elementos
(1,16-20; 2,13-17; 3,13-19), os missionários (6,6-13), o Batista geográficos com uma divisão tripartite (Galiléia, Samaria,
(6,17-29). Jerusalém) é, antes, genérica e não demonstrável em sua essência;
Os ensinamentos consideram sobretudo as parábolas já, por outro lado, um vínculo muito rígido entre as partes deixa a
(cap. 14) das quais também se ocupará a terceira parte, como impressão de estar forçando os textos. A hipótese difundida por
também o chamado discurso escatológico (cap. 13), e os G. Segalla apresenta comentários de grande importância que, em
ensinamentos destinados aos discípulos. A prevalência da parte, ainda vamos retomar: quanto ao todo vamos nos referir
narração é de se atribuir a uma escolha deliberada mais do que a substancialmente à estrutura bipartida proposta pela primeira vez
um desconhecimento da fonte dos lógia [das expressões] (Q). por X. Léon-Dufour.9
Agrupamentos quer de breves episódios, quer de
conjuntos maiores são mobilizados por toda uma série de
técnicas, como palavras conectivas (“e”, “de repente”, “de Prólogo e epílogo (1,1-13; 15,40-16,8).
novo”, verbos de movimento), sínteses com a dupla função de O prólogo oferece o conteúdo do evangelho que se refere a
introduzir ao episódio que se segue ou de síntese de quanto vem Jesus como Messias-Cristo e como Filho de Deus. Essa temática
antes (1,32-34; 4-33), referências cronológicas ou geográficas retomada respectivamente em 8,29 na profissão de fé de Pedro e
(Galiléia, Samaria, Jerusalém), igualdade de conteúdo. Destaca- em 15,39 pelo centurião sob a cruz direciona a uma divisão
se a dualidade de termos (fora-dentro 4,11) e os agrupamentos bipartida. O prólogo inclui o epílogo por diversas razões: o
ternários: Batista-batismo-tentação (1, 2-13); três controvérsias “caminho” (ódos) de Jesus (1,2) começa na Galiléia (1,9) e
em Jerusalém com três grupos (11,27-12,27); três anúncios da termina na Galiléia (16,7; cf. os verbos “acompanhar, ir” em
paixão (8,31; 9,30; 10,32). A ocorrência de títulos que revelam a 15,41). Uma “voz” vinda do céu proclama Jesus “meu filho
pessoa de Jesus e as reações dos presentes constituem a amado” (1,11) e um mensageiro do céu proclama “ressuscitado,
estruturação que se estende a todo o evangelho: Jesus Cristo, aquele que foi crucificado” (16,6); três cenas iniciam (o Batista, o
Filho de Deus (1,1), Filho amado (1,11), Santo de Deus (1,24), batismo, as
Filho de Deus (3,11), Jesus, filho do Deus altíssimo (5,7), Cristo
(8,29), Filho amado (9,7), o Messias, o Filho do Deus Bendito
(14,61), Filho do Homem (14,62), Filho de Deus (15,39). A
questão que se põe agora é se essas unidades menores se abrem à 9
LÉON-DUFOUR, X. [ vangeli sinottici. In: GEORGE, A. & GRELOT, P.'(Orgs.)
unidade de todo o evangelho, isto é, a uma estrutura orgânica. lntroduzione al Nuovo Testamento. L'annuncio dei vangelo. Roma, Borla, 1977. pp.
43-48; e anteriormente em: ROBERT, A. & FEUILLET, A. Introduction à la Bible.
Tournai, Desclée, 1959. v. II. pp. 208-213, às quais me refiro. Entre as observações de
G. Segalla sublinho, por exemplo, o tema do “caminho” (ódos) e a antecipação do
epílogo em 15,40, com a tríplice referência feita às mulheres (15,40.47; 16,1)

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tentações) e três cenas testemunhadas por três novas personagens invectiva contra os fariseus (Mt 3,7-10), a imagem da limpeza da
(as mulheres, José de Arimatéia, o anjo) concluem o Evangelho: eira (Mt 3,12) e a tríplice catequese explicativa do anúncio:
o final com o enigmático e duplo “na verdade” (gár) que encerra “convertam-se” (Lc 3,10-14). Desse modo o Batista perde as
três termos de medo (16,8) convida o leitor a prosseguir o características de um pregador distante no tempo e se parece
muito com Jesus: Marcos fala do Batista para falar de Jesus e por
programa que ficou incompleto, tomando consciência de que a
meio dele faz evocar acontecimentos de pessoas do Antigo
“boa notícia” apenas começou (1,1). Considerando que do Testamento. A primeira voz identificada é a de Isaías, cujo nome
epílogo se ocupará extensamente a terceira parte, acrescentamos também engloba o texto de Malaquias (“Eis que eu envio o meu
apenas uma palavra sobre o prólogo. mensageiro na tua frente, para preparar o teu caminho”) (Mc
Início do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus 1,2). Marcos, citando o Segundo Isaías (40,3), não diz apenas
(1,1). A “boa notícia” (evangelho) encerra a salvação que é o que Jesus é anunciado, mas exorta também que se o acolha com
um coração novo, analogamente aos exilados da Babilônia que
próprio Jesus (em hebraico “Salvador”) enquanto “Cristo” é um
abriram para si um caminho no deserto. Segue-se a evocação do
termo grego equivalente ao termo hebraico “Messias” e em grande Elias cujas características de simplicidade no vestir-se e
português “ungido”, em referência à cerimônia de investidura de no comer são empregadas para apresentar o Batista. Este, à luz
reis, sacerdotes, profetas. O nome evidencia as expectativas de de Isaías e de Elias, desempenha o papel de precursor: a história
tantas gerações, é capaz de infundir a esperança, faz coincidir a de Jesus assim, de algum modo, é antecipada por meio de Elias
sua vinda com a libertação. Na história apareceram com (século IX a.C.), Isaías (séculos VIII-VI a.C.), o Batista
freqüência falsos “Cristos”. Para desfazer qualquer dúvida, (contemporâneo). Tudo está pronto para o primeiro gesto de
Marcos é preciso ao dizer que se trata do Jesus que é, ao mesmo Jesus, um gesto de solidariedade para com a humanidade
tempo, “Filho de Deus”, em sentido significativo: o livro não é pecadora.
todo o evangelho, mas apenas o “início”, ou seja, a vida terrena b) O batismo (1,9-11). Jesus parece um homem comum,
de Jesus. O prosseguimento diz respeito à nossa vida, ao fato de que se desloca da sua localidade (Nazaré), da sua região (a
Galiléia) para cumprir um rito como os demais, a imersão nas
segui-lo.
águas, tomando João como testemunha da vontade de conversão.
Quando Marcos escreve, a Igreja já entendia bem claramente a
inocência de Jesus, como também que ele era tratado como
pecador, em certo sentido, em nosso lugar: “Aquele que nada
A trilogia inicial. tinha a ver com o pecado, Deus o fez pecador por causa de nós, a
fim de que por meio dele sejamos reabilitados por Deus” (2Cor
Os primeiros versículos com a primeira sumarização (1,2- 5,21). O batismo assi
15) contêm, em síntese, todo o evangelho e constituem uma
manifestação de Jesus que espera por uma resposta.
a) O Batista (1,2-8). De uma sinopse resulta clara a
brevidade de Marcos que omitiu, entre outras coisas, a

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nala o início do caminho de Jesus ao lado do homem pecador. Duas constantes marcam essa primeira parte: a resposta à
Nesse contexto de humildade e de fraqueza evidencia- se a pregação de Jesus e a injunção formal de silêncio dada por Jesus
primeira revelação sobre Jesus. Como homem ele toma diante do milagre e do reconhecimento de sua identidade. As
reações dos interlocutores do mestre são negativas. Predominam
consciência da própria identidade e da missão que o espera, isto
o não-conhecimento (ghinósko: 4,13; 8,17), a incompreensão
é, de ser chamado à imolação na cruz, diferentemente de Isaac,
(syníemi: 4,12; 6,52; 8,17.21) em parecer estupidez (as netov.
cuja figura é lembrada (Gn 22,2) junto com a do servo (Is 42,1). 7,18); fariseus e herodianos têm por objetivo matar Jesus (3,6);
c) A tentação (1,12-13). Marcos é muito breve e não os seus, diferentes dos que estão fora (4,11), têm dificuldades em
especifica as três tentações relatadas por Mateus e Lucas. Jesus superar a linguagem obscura das parábolas, são medrosos e têm
cumpriu a sua missão mediante uma luta contínua contra pouca fé (4,40), os concidadãos de Nazaré se admiram, ficam
“satanás”, chamado “diabo” por Mateus e Lucas.10 Marcos vê escandalizados, não crêem (6,2.3.6). O “segredo messiânico” é
recomendado quando acontece o milagre (7,36), diante do
aqui o início e o sinal de uma vida atribulada, mas terminando
reconhecimento de Jesus como Santo de Deus (1,24), Filho de
de modo vitorioso, diferentemente do que acontece com o povo Deus (3,11), filho do Deus altíssimo (5,7). Por último, Pedro,
derrotado e medroso. que dá uma resposta intelectualmente perfeita, revela-se como
alguém que não compreendeu nada; é, na verdade, chamado
“satanás” (8,33). A incompreensão e o segredo messiânico
apontam nitidamente para a cruz.
O mistério do Messias (1,14-8,30).
Essa parte é claramente delimitada pela intervenção de
Pedro: “Tu és o Cristo” (8,27) e compreende três seções.11

O mistério do Filho do Homem (8, 31-15,39)


10
Para uma reconstrução da narrativa, cf.: MARCONCINI, B. La testimonianza delia
Sacra Scrittura sui demoni. In\ Angeli e demoni. Bologna, Edb, 1992. pp. 203-291,
especialmente pp. 213-221.
Apenas mencionado na primeira parte (2,10.28), é agora
11
amplamente atestado o título de Filho do Homem (8,31.38;
Quanto às três seções, a primeira (1,14-3,7a) é reconhecível pelo sumário relativo
ao: 9,9.12.31; 10,33.45; 13,26; 14,2l(bis).62) que destaca em sentido
— dizer (kerysso-, 1,14.38.39.45) sobre a necessidade da conversão por causa do
“cumprimento do tempo”. É um convite dirigido a todos. O sujeito: a multidão (2.4.13),
clarividente a afirmação do centurião ao pé da cruz de “filho de
todo o povo (3,7), a cidade “inteira” (1,28.33.39), “toda” a região, a cidade (1,33.37; Deus” (15,39). A debilidade da fé e da compreensão manifestada
2,12.13), as “muitas pessoas” (1,34.45; 2,2.15; 3,7);
— o fazer (poiéo: 3,8.12-14.16.35; 4,32; 5,19-20.32,33; 6,5) como libertação do em relação à missão de Jesus continua agora nos confrontos com
homem caracteriza a segunda seção [3,(7)8-6,6] que dá destaque aos discípulos [3,(7).9; o seu destino, claramente aceito na profissão de fé do cego de
4,34; 5,31; 6,1];
— o enviar (apostéllo: 6,7) destaca a terceira seção (6,7-8,30) com os Doze (6,7), os
Jericó (10,46-52). Também aqui aparecem três seções que dizem
apóstolos (6,30) e os discípulos (6,29.35.41.45; 7,2.5.17; 8,1.4.6.10.27). respeito ao tríplice

102 10 J
anúncio da paixão (8,31-10,52) capaz de moldar a vida dos parte central do evangelho, por sua vez, apresenta três temas
discípulos, o julgamento a respeito de Jerusalém (11,1-13,37), diferentes e complementares, que não são fáceis de unir.
preparado por controvérsias (cap. 12) e presente no discurso Ressalta, antes de tudo, uma progressiva revelação da sua figura
escatológico (cap. 13), a revelação do segredo messiânico na por meio de quatro títulos principais. Ele é “Jesus”, título que
paixão e morte (14,1-15, 39). aparece cerca de oitenta vezes, o filho de Maria (6,3) e, portanto,
plenamente homem com os sentimentos de comoção, ternura,
tristeza e admiração que se revelam nele e que se manifestam
A TEOLOGIA para com ele.
Além disso, ele é unanimemente reconhecido como
Desenvolveremos esse item em dois tópicos, de um ponto
“Messias” por adversários e amigos, de modo convincente: os
de vista teórico-sintético, explicando com precisão a temática
endemoninhados (1,34), o primeiro dos apóstolos, Pedro (8,29),
principal do evangelho e a partir de uma perspectiva prático-
o sumo sacerdote (14,61), os que dele zombavam ao pé da cruz
analítica, acrescentando efeitos e impulsos para uma atualização. (15,32).
Mais recorrente é o título “Filho do Homem”,
personagem central do livro de Daniel (7,13-14).12 13 Nele o povo
está perseguido por Antíoco IV na expectativa pelo reino de
A cruz como epifania do Filho de Deus
Deus, transformando-se no livro de Henoc, o etíope, em um
A descoberta de uma estrutura orgânica torna certa a personagem divino e singular, de maneira a facilitar a
existência de um pensamento unitário na teologia de Marcos. interpretação messiânica. Jesus é quem instaura e dá o reino ao
Mas qual? As respostas são várias. O certo é que Marcos não se seu povo. O título remonta ao próprio Jesus que nas catorze
limita a ver em Jesus um mestre de ética, ou um realizador de ocorrências o atribui a si em três contextos diferentes. O título
milagres, ou a querer representá-lo apenas como anunciador do exprime a expectativa de libertação própria de seu ministério,
querigma. O evangelista une esses elementos esparsos na como a remissão dos pecados (2,10) e a proclamação do bem do
tradição anterior e os compõe em uma nova síntese. O prólogo e primeiro homem com relação à lei do sábado (2,27-28); qualifica
o epílogo projetam luz plena sobre a figura de Jesus. Ele é o Jesus como o servo sofredor preanunciado como por Isaías
“evangelho”, enquanto Cristo “Messias” que dá cumprimento às (8,31; 9,31; 10,33.45; 14, 21.41) e o preanuncia como juiz
promessas divinas, e Filho de Deus (1,1), amado do Pai que o escatológico que volta “com” e “sobre” as nuvens
plenifica com o seu Espírito (1,9-11), é o mais forte, a quem o
Batista não pode desatar as sandálias, vencedor de satanás no
12
MARCONCINI, B. Profeíi e apocalittici. Leumann-Torino, Ldc, 1995. (Logos Corso di
deserto (1,12-13) e damorte na ressurreição (16,6). A parte Studi Biblici, 3). pp. 227-244, 337-354.
central do evangelho, por sua vez, apresenta três temas diferentes 13
Sobre as nuvens” dá a entender um ser divino; “com as nuvens” um ser humano que da
e complementares, que não são fáceis de unir. terra foi elevado ao céu, como se acha em Daniel 7,13, onde a tradução da CI71
(Conferência Episcopal Italiana) está errada.

104
O grande significado do título anterior confere um sentido testemunhas da transfiguração (9,9) devem evitar interpretações
relevante também ao título “Filho de Deus” que como um fio triunfalistas a respeito de seu messianismo, até mesmo a procura
vermelho permeia todo o evangelho. Ele constitui o programa do dos primeiros lugares (9,34; 10,37). Afinal, está superada a
interpretação de W. Wrede sobre o caráter meramente redacional
livro (1,1) e é proferido pelo próprio Deus (1,11; 9,7), pelos
do “segredo messiânico”: este seria, segundo o insigne estudioso,
endemoninhados (3,11; 5,7), pelo centurião (15,39) que de modo um expediente encontrado por Marcos para conciliar a
singular e insuspeito reconhece na extrema fraqueza da cruz a proclamação do querigma sobre o ressuscitado com a vida efetiva
epifania do poder divino. A interpretação em sentido tão de Jesus que nunca teria afirmado ser Messias e Filho de Deus. A
importante de filho “natural” confirma-se pela invocação única explicação mais plausível é a de uma conduta prudente de Jesus,
no Novo Testamento com que Jesus se dirige ao Pai, chamando- para evitar interpretações políticas a respeito de seu messianismo,
o Abbà (14,36), pela densidade afetiva que não se consegue e orientar para a cruz, reveladora definitiva do “caminho”
traduzir (papai, painho).'4 humilde e doloroso escolhido para salvar os homens.
A incompreensão também é uma constante no evangelho,
O valor dos quatro títulos é corroborado por outros como
sem, contudo, ter um vínculo direto com o segredo messiânico.
“profeta” (6,15; 8,28), “filho de Davi” (10,47s; 11,10), “Santo de
Este, na realidade, está limitado à primeira parte, é quebrado
Deus” (1,24), “Senhor”, sobre o qual há discussão quanto à várias vezes pelos interessados e não está incluído em nenhuma
referência a Jesus nas quinze vezes que ele ocorre, tanto nas narrativa sobre milagres (2,1-12; 3,1-6; 10,46-52) e é revelado
citações dos Setenta (1,3; 11,9; 12,11.29.36) como fora deles pelo próprio Jesus que aos poucos vai falando da necessidade de
(2,28; 5,19; 13,20.35). enfrentar a cruz até a admirável síntese em 14,61-65. A
Essa proclamação, em modos e circunstâncias diversas, é incompreensão, muitas vezes, transformando-se em incredulidade
acompanhada, além disso, por um pedido de silêncio (— e endurecimento é gradativa e total em um processo que vai no
sentido inverso da ação de Jesus, limitada inicialmente à sinagoga
“segredo messiânico”) e por motivações diferentes. Aos
e a Cafamaum (1,21), estendida a um espaço mais aberto na
demônios é-lhes imposto silêncio, porque não são aceitos como presença da grande multidão (3,7-8) e envolvendo os pagãos na
testemunhas do mistério de Jesus (1,25.34; 3,12) e podem apenas seção sobre os pães (caps. 6-8). A multidão pouco a pouco o
constatar com terror que o reino deles está arrasado. As pessoas abandona, os escribas e os fariseus hostilizam-no até chegar à
normais, mesmo quando não o observam (1,44; 5,43; 7,36; 8,26) decisão de matá-lo, os discípulos e o próprio Pedro são incapazes
são convidadas a não transformar o seu entusiasmo e o seu de entender o “caminho” de Jesus (8,32; 9,33s; 10,24.32.41) que
reconhecimento em uma falsa idéia da identidade de Jesus. chega à cruz sozinho, incompreendido,
Mesmo os “Doze” (8,30) e as 14

14
JEREMIAS, J. Abbà Brescia, Paideia, 1968. (Suplementos ao Grande Lessico deiNuovo
Testamento).

106 107
traído; mas seu “caminho”, em seguida, revela-se plena dados a superar-se, Pedro, os três da transfiguração, os “Doze”
realização sob um aparente fracasso. chamados e mandados em missão, todos os discípulos: a sua
Marcos remete a sua comunidade que confessa a fé no conduta titubeante ou incrédula é advertência para cada um não
Ressuscitado ao Jesus terreno, mostrando como “evangelho” considerar fácil a proclamação do Ressuscitado, já que implica a
toda a sua vida, desde os gestos profundamente humanos como a aceitação da cruz. Assim, o caminho da Igreja que proclama o
indignação (1,41), o dormir (4,38), o admirar-se (6,6), o suspiro Ressuscitado à aceitação do Jesus terreno implica também o
profundo (8,12) até os milagres. Jesus é poderoso, mas o seu processo inverso, que vai da vida de Jesus à vida da Igreja,
poder está trancado na fraqueza da cruz. O “caminho” novo e convidada por sua vez a fazer-se discípula do Nazareno.
incrível é o do serviço prestado ao ser humano pelo
esquecimento de si e pela doação de si mesmo. “Só mesmo aos
pés da cruz, no próprio instante da morte de Jesus, é vencida a
cegueira humana, e o Filho de Deus é proclamado sem nenhuma O “caminho” de Jesus mostrado ao discípulo
restrição diante do mundo, antecipando simbolicamente a
proclamação pós-pascal da Igreja”.15 A passagem que vai “de fora” ao “de dentro”, o
conhecimento pessoal do Filho do homem, a superação de
Aqui se torna manifesta a “epifania secreta” de todo o
questões sobre a aparente ineficácia do evangelho, a participação
evangelho e os três elementos dialéticos encontram a
no poder de Jesus, tudo isso é possível seguindo decididamente o
composição unitária, os títulos são lidos em seu sentido genuíno,
caminho da cruz, o que implica, antes de tudo, mudança radical
o segredo messiânico é revelado, a incredulidade transforma-se
de mentalidade e de comportamento: “Convertam-se e acreditem
em fé profunda mediante o reconhecimento do centurião (15,39),
na Boa Notícia” (1,15). Essa proclamação é convite para tomar
a maravilha e a estupefação tornam-se silêncio que crê. Aqui o
consciência da relatividade de todas as certezas humanas, para
evangelho de Jesus se opõe ao evangelho do poder romano:
renunciar aos pseudovalores alicerçados no sucesso e em
César e Jesus Cristo, o trono do imperador e a cruz do mestre
tradições, muitas vezes responsáveis pelo cerceamento, de vários
rejeitado são duas propostas de salvação, e cada um é obrigado a
modos, da liberdade humana (2,25; 3,5; 7,15.21.23). Além disso,
escolher uma das delas.
é necessário entregar-se às surpresas do amor de Deus que traz
Entre incredulidade e revelação do mistério, Marcos traça para os homens uma mensagem de perdão (2,5) e superar a
também a figura do discípulo que segue Jesus pelo “caminho”, própria cegueira, seguindo o exemplo do cego de nascimento
como o cego de nascimento (10,52). São convi (10,46- 52). Na realidade, ele clama a miséria de quem não
enxerga e é mendigo: “Jesus, Filho de Davi, tem piedade de
mim!”. Um novo grito e mais forte é dado para superar as vozes
hostis dos circunstantes. O caminho que conduz a Jesus sem-
15
Fusco, V. Marco. In: ROSSANO, R; RAVASI, G.; GIRLANDA, A. Nuovo Dizionario di
Teologia Biblica. Cinisello Balsamo (Milano), Paoline, 1988. p. 893.

109
pre encontra obstáculos, é um trajeto de escalada de montanha, de Levi-Mateus requer a derrubada de qualquer barreira social e
não de planície. Se a voz do homem é ouvida por Jesus, então tem a transformação do ladrão-explorador em um homem novo,
início a salvação, como manifestam as três expressões: “coragem, enquanto a vocação dos “Doze” (3,13-14) aponta dois novos
levante-se, porque Jesus está chamando você”. Não basta gritar, é objetivos. Implica a participação de uma comunidade
preciso agir: largou o manto, deu um pulo e foi até Jesus. heterogênea cujos membros, diferentes pela formação política
Recuperada a visão, seguiu Jesus pelo “caminho”, o caminho da (Simão, o cananeu, ultranacionalista, Mateus que prestava
cruz. Esse caminho é anunciado três vezes na vida de Jesus (8,31; colaboração ao inimigo), pelo caráter (os filhos de Ze- bedeu,
9,31; 10,32sS) e outras tantas vezes é aplicado, como que
violentos, “filhos do trovão”), pela idade, estão unidos pelo saber
transportado para a vida do cristão. A primeira vez a cruz é
condensada na contraposição “perder-encontrar” (8,35). Quem de ouvir, pela oração, pelo confronto; o que comporta um
maneira avarenta segurar para si os valores recebidos, testemunho sobre o reino de Deus.
sucumbindo ao medo de perdê-los ou à vergonha de ser diferente A ação libertadora de Jesus para com diversos doentes
dos outros ficará pobre. Da pessoa restará apenas o que é exige a superação da idéia dos “homens divinos” e a confiança
oferecido para o bem dos outros. Ao segundo anúncio segue-se a em Jesus como o único criador de espaços de liberdade sempre
necessidade de fazer-se pequeno, como uma criança (9,35) ou
novos para o homem. A intervenção salutar se inicia com o
como um servo, dois termos parecidos. O terceiro anúncio
concretiza-se ao contrastar a sede de poder, ao combater o “acontecimento de Cafarnaum” (1,21- 2,1), com a libertação do
arrivismo, aquele “sentar-se à direita e à esquerda de Jesus” homem possuído por um espírito mau (1,23); o homem voltou ao
(10,37), anseio como afirmação pessoal: cada incumbência equilíbrio ao ouvir a Palavra; há a cura da sogra de Pedro (1,31),
equivale a uma cruz, porque encerra na visão de Jesus um serviço que se tornou alguém útil para os outros, servindo-os. Jesus
humilde, constante, atento às necessidades do outro. A mudança curou muitas pessoas de vários tipos de doenças (1,33-39); um
do caminho errado implica a necessidade de trilhar por aquele que com hanseníase (1,41), novamente integrado à sociedade,16 um
for o certo, seguindo Jesus. paralítico (2,11); o homem da mão seca (3,5) e, por fim, o
a) Chamou para que ficassem com ele (3,13). O epilético endemoninhado (9,25).
chamado dos primeiros discípulos (1,16-20), de Levi (2,13-14) e
dos Doze (3,13-19) deixa clara a necessidade de seguir Jesus, com
uma nítida ruptura em relação ao passado, “abandonando” tudo e
“imediatamente”. O seguimento por parte dos irmãos (Simão-
André, Tiago-João) requer a mudança do objeto da pesca,
voltando-se para os homens; o chamado
16
O sentido desse texto tão difícil é o seguinte: Jesus se comove diante da doença, sente-a
como se fosse sua, não consegue negar um gesto de solidariedade (e “tocou nele”) o que
era expressamente proibido pela lei. Esse gesto de bondade poderia custar-lhe caro,
tendo ousado desafiar as tradições c uma mentalidade já cristalizada. Consciente disso,
afastou o doente de si. Jesus c profundamente humano ao comover-se, quando o seu
sentimento prevalece sobre a lei e quando percebe ler ousado talvez demais.
c) O primeiro se considere como o último e o servo de
b) Cada qual tome a sua cruz (8,34-38). A perícope que
todos (9,33-35). A vontade de aparecer, de fazer-se notar, divide
encerra essa frase inicia-se com um versículo especial: Jesus
a comunidade, cria os partidos, produz angústias. Entre cristãos
“então chama a multidão junto com os discípulos”. Estes, de
não é admissível o arrivismo, a ambição pessoal. Colocar-Jse à
fato, são considerados um grupo à parte, distinto do resto do
disposição dos outros, preferir as idéias deles quando se igualam
povo. Ora, após a incompreensão e a rejeição da paixão expressa
às nossas, é agir contra os próprios instintos. Quando alguém se
por Pedro, não há mais eleitos: pelo contrário, o primeiro dos
põe a servir os outros é sinal de que o Espírito está atuando nele.
apóstolos é acusado de ser “satanás” e de pensar como os
O serviço17 prestado ao homem pòr interesse em participar, por
homens, como o povo: todos têm necessidade de um novo
solidariedade, partilha é a prova mais segura do serviço prestado
chamamento. O seguimento de Jesus requer uma renúncia, ou
a Deus, isto é, o culto e especialmente a oração. O serviço dá
seja, um esquecer-se de si mesmo, uma vontade de romper com o
consistência e robustez ao amor: “Coloquem-se a serviço uns dos
passado; positivamente, isso leva a reproduzir na própria vida o
outros através do amor” (G1 5,13). Muitas vezes o serviço à
destino de Jesus e a torná-lo visível diante dos homens.
pessoa precede, é cronologicamente anterior ao serviço de Deus.
Com muita realidade Marcos percebe que isso não é fácil. Este último conserva o primado enquanto torna possível também
Para realizar o ideal dois obstáculos se opõem: o medo e a o serviço ao homem: só pode servir o homem quem é autêntico
vergonha. Seguir Jesus, com efeito, exige uma perda da vida, ou servo de Deus. O serviço maior consiste em conduzir o homem a
total e imediatamente, como o martírio a que estava Deus. Outro texto de Marcos (10,36-39) apresenta como
frequentemente exposto o cristão na metade do século I, ou essencial a dimensão cristológica: Jesus é o verdadeiro modelo de
lentamente, com uma entrega contínua nas mais diversas todo serviço que pode concluir-se com a perda da vida
situações. Jesus lembra que o seu programa conduz à vida (“batismo”) e por isso revela que o serviço cristão encerra sempre
definitiva, atingível pela doação de si, comparável a uma morte:
uma espécie de morte.
quem, hoje, conservar egoisticamente a vida perde-la-á amanhã;
quem a doar, hoje, te-la-á plenamente amanhã, na eternidade. d) Quem acolhe as crianças, acolhe a Jesus; quem as
escandalizar, morre (9, 37.42-48). Acolher equivale a servir, a
O outro obstáculo é a vergonha de passar por alguém
tornar-se disponível para atender às suas necessidades, pela
diferente dos outros, o temor de ser marginalizado. Jesus
relação que os pequeninos têm com Jesus (“porque vocês são de
encoraja dizendo que ele será o juiz e “diante do Pai se
Cristo”).
envergonhará” por quem tiver rejeitado o seu programa de vida.
Uma vida inspirada na cruz encontra a sua força na lei do
amor, no fato de ter compreendido que a pessoa se realiza, não se
encolhendo, mas na expansão e na ajuda aos outros, como
revelam quatro situações diferentes e complementares. 17
MARCONCINI, B. Servizio di Dio e servizio delTuorno. Aspetti dei loro rapporto nella
Bibbia. In: II servizio di Dio, servizio delVuomo. Roma, CLV — Edizioni Liturgiche,
1994. pp. 17-31.

112 113
e) Um amor sem interrupções nem imposição de
condições (10,1-12). A realidade do agir cristão diz respeito a deixado [...] receberá o cêntuplo”. Não é a simples pobreza que
cada pessoa. Para a pessoa ligada pelo vínculo do rfiatrimô- nio, salva, mas o seguimento de Jesus (“por minha causa e do
essa radicalidade equivale a um compromisso berene, a uma evangelho”), possível para quem se liberta do maior obstáculo
fidelidade a toda prova, aconteça o que acontecer na vida. O representado pelas riquezas. Jesus, por um lado, consola com a
futuro está nas mãos de Deus. O cônjuge deve transmitir a perspectiva de que a renúncia preanuncia um gozo sadio da
segurança para que o consorte possa sempre contar com a própria realidade natural (“já no presente recebe o cêntuplo”) e,
confiança em seu próprio coração, tornando-se, assim, mediador por outro lado, aponta para a incompreensão dos outros, fonte de
da fé e da ternura de Deus. O divórcio é sempre uma escolha marginalização e de sofrimento (“juntamente com
egoísta, em contraste com o plano original de Deus no momento perseguições”). Marcos é, sem dúvida, um evangelho de vida e
da criação; é fruto de uma incapacidade de captar os verdadeiros esperança, obtidas, contudo, depois da cruz e por meio dela.
valores e, em conseqüência, leva a uma multiplicação dos
pecados (= pela dureza do coração, diz Jesus). O texto de
Marcos é muito claro sobre a igualdade de direitos e deveres do
homem e da mulher: ambos serão adúlteros se se casarem de
novo.
J) As posses e a renúncia (10,17-31). Jesus, sempre
atento e amável com seus interlocutores, torna-se implacável
diante das pessoas que têm riquezas: “É mais fácil passar um
camelo pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no
Reino de Deus” (10,25). Trata-se de uma real impossibilidade. A
riqueza se coloca no lugar de Deus e põe no coração do homem
uma segurança que só pode provir do Senhor. Essa falsa
confiança leva à desilusão, uma vez que a riqueza não sustenta o
que parece prometer. O pensamento de Jesus é tão claro que o
jovem que perguntava “ficou abatido” (melhor do que dizer:
“cheio de tristeza”) e os apóstolos ficaram muito “espantados”. É
preciso um milagre para que aquele que se apega à riqueza
reserve a Deus a adoração. Esse risco é superado com este
desapego: “Vá, venda tudo o que tem e dê o dinheiro aos pobres
[...] quem tiver

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