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A FORMAÇÃO DO NOVO TESTAMENTO

O Novo Testamento não caiu do céu.


Ele possui uma história de formação
que pode ser reconstruída com certa
clareza.
Nessa história pode-se distinguir pelo
menos quatro etapas, que cobrem um
período de quatro séculos.
PRIMEIRA ETAPA: A VIDA DE
JESUS (1-30)
A primeira etapa da formação
do NT é a vida e a atividade de
Jesus na terra de Israel, nos
anos 1 a 30 da era cristã.
Jesus, em última análise, é a
origem do NT, pois foi ele quem
desencadeou o movimento e a
mensagem cristã.
No entanto, Jesus mesmo
não redigiu nenhum escrito
com sua mensagem.
Pelo que sabemos, também
não ordenou que seus
discípulos escrevessem suas
palavras.
Memória
Sua mensagem sobre o reinado
de Deus não foi transmitida pela
palavra escrita, e sim, pela
proclamação oral.
Portanto, tudo que sabemos sobre
Jesus foi guardado, inicialmente,
na memória de seus discípulos.
SEGUNDA ETAPA: A FASE
DA TRADIÇÃO ORAL (30-50/70)

A segunda etapa da formação do


NT refere-se ao período em que as
histórias e palavras de Jesus foram
conservadas e passadas adiante de
forma oral.
Celebrações
Nas celebrações da
comunidade, além da leitura
e interpretação do AT,
recordava-se as histórias e
palavras de Jesus e se
refletia sobre elas.
Quando Paulo atuou como
apóstolo entre os anos 48 e 60,
ainda não havia um evangelho
como hoje os conhecemos.

O que Paulo sabia sobre Jesus, ele


o sabia da tradição oral, não da
escrita.
Cartas
Paulo começou a incorporar
algumas palavras dessa tradição
oral em suas cartas a partir do
ano de 50, quando escreveu a
primeira carta aos
tessalonicenses (4.15) -
portanto, 20 anos após a morte
de Jesus.
Algumas vezes Paulo distingue
suas próprias palavras das
palavras de Jesus (1 Co 7.10-
12,25; 9.14).
Outras vezes ele diz que está
retransmitindo por escrito a
tradição que recebeu por via oral
(1 Co 11. 23-25).
Cruz e ressurreição
No mais, suas cartas mostram que
ele se interessa, sobretudo, pelo
evento da cruz e ressurreição de
Jesus.
Mas não se pode esquecer que as
comunidades já deviam saber
muito mais coisas sobre Jesus
pela pregação oral.
Passaram-se alguns anos a mais até
que as tradições orais sobre Jesus
fossem redigidas na forma de um
evangelho.
O primeiro evangelho a ser escrito foi
Marcos, em torno do ano 70 –
portanto, 40 anos após a morte de
Jesus.
Os demais foram escritos na década de
80 ou 90.
Por que demorou tanto tempo
para que os evangelhos fossem
escritos? Por vários motivos:
1. A simplicidade dos discípulos
Os discípulos de Jesus eram
pessoas com pouca instrução,
pouco habituados a escrever. Os
membros do Sinédrio consideram-
nos como iletrados e incultos (At
4.13).
2. A importância da tradição oral

O contexto judaico em que nasceu a


tradição sobre Jesus tinha a tradição
oral em alta conta.
Ao lado da Tora escrita, por exemplo,
circulavam as tradições orais, que só
foram codificadas na Mishná no final
do segundo século.
Considere-se que muitas pessoas não
sabiam ler ou escrever. Quem sabia,
tinha pouco acesso a textos escritos.
O material de escrita, feito de um
vegetal chamado papiro, era caro e se
estragava com facilidade.
Por isso se preferia guardar a tradição
na memória.
Memórias treinadas e regras
rígidas de transmissão
garantiam a fidelidade do que
se transmitia adiante.
Parte disso ainda se observa
em textos do mesmo gênero
literário, pois eles preservam
um padrão básico em sua
forma e estrutura.
3.Expectativa do fim dos tempos
As primeiras comunidades
esperavam para breve a volta de
Cristo e o fim dos tempos. Elas
oravam maran atha (vem, Senhor
– 1 Co 16.22).
Paulo mesmo acreditava nisso (1
Ts 4.15; 1 Co 10.11; 15.51-52; Rm
13.11).
Quem tem essa esperança, não escreve
livros para futuras gerações.
Mesmo assim, é possível que já
entre 30 e 70 surgissem coleções
de textos, como a história da
paixão, parábolas (Mc 1.1-34),
controvérsias (Mc 2.1-3.6),
milagres (Mc 4.35-5.43), a fonte Q
(uma coletânia de palavras de
Jesus que Mateus e Lucas
utilizaram na redação de seus
evangelhos).
TERCEIRA ETAPA: REDAÇÃO DOS
DOCUMENTOS
(50-90: CARTAS; 70-90: EVANGELHOS)

A partir dos anos 50, parte da tradição oral


sobre Jesus foi incorporada nas cartas. A
partir de 70, ela foi incorporada nos
evangelhos.
As cartas não foram escritas, em princípio,
para as futuras gerações, mas para
responder a problemas urgentes das
comunidades destinatárias.
O mesmo se pode dizer do Apocalipse,
escrito em 95 para comunidades
perseguidas da província romana da
Ásia.
Atos também foi escrito na década de
90, para continuar o terceiro evangelho.
O livro revela a consciência de um
cristianismo duradouro, que precisa
saber de sua vinculação com Jesus,
Pedro e Paulo, e ter certeza de que sua
expansão não foi fortuita, mas guiada
pelo Espírito Santo.
Por que foram escritos os evangelhos?
Basicamente, por três motivos:
1. O horizonte da missão
O tempo passava e a esperança das
comunidades pela volta iminente de Cristo se
mostrou sem fundamento.
Elas aprenderam que deviam parar de olhar
para as alturas (At 1.11) e mobilizar suas
energias para o horizonte da missão histórica
que Deus havia confiado a elas. Para orientar
essa imensa tarefa, era preciso contar com
uma base mais segura e permanente do que
a tradição oral podia fornecer.
2. A morte de testemunhas
Em meados dos anos 60 já estavam
mortos os mais notáveis dentre os
apóstolos, como Pedro, Paulo e Tiago,
o irmão do Senhor.
O desaparecimento da primeira
geração de cristãos, que era uma
referência confiável durante a fase da
tradição oral, contribuiu para a
produção de obras escritas.
Pedro, por exemplo, foi morto em
Roma em meados da década de 60,
durante a perseguição de Nero aos
cristãos.
Uma antiga tradição diz que Marcos foi
escrito algum tempo mais tarde nessa
mesma cidade, com base nas
memórias de Pedro.
3. Preservar e atualizar a memória de Jesus

Os evangelhos foram escritos para


preservar a memória histórica de Jesus.
Isso é importante, pois a fé cristã não está
baseada em lendas, e sim, em eventos
radicados na história concreta.
O verbo se fez carne e habitou entre nós
(Jo 1.14 ). Jesus, mesmo sendo igual a
Deus, assumiu a condição humana e
morreu, na cruz, a morte reservada a
escravos
Mas os evangelhos não contam apenas
o que Jesus foi, e sim, também, o que
ele representa atualmente para as
comunidades nas quais eles brotaram.

Isso significa que a tradição, tanto em


sua fase oral como escrita, estava viva
nas comunidades, influenciando-as e
sendo por elas influenciada.
História de Jesus
O que os evangelhos narram é a
história de Jesus atualizada para
as respectivas comunidades. Isso
explica porque, mesmo
testemunhando o mesmo evento,
cada um deles possui suas
marcas e ênfases particulares.
QUARTA ETAPA: O PROCESSO DE
CANONIZAÇÃO (100-397)
No final do primeiro século, é
provável que todos os 27 livros já
estivessem redigidos, com uma ou
outra exceção.
Mas ainda não se tinha um Novo
Testamento.
Decisão

A decisão definitiva sobre os


novos livros normativos da fé
cristã só foi tomada em fins
do quarto século, quando se
encerrou o processo de
canonização.
Pode-se distinguir várias fases no
processo de canonização.

1. A autoridade de Jesus

Mesmo que a Escritura dos primeiros


cristãos fosse a Septuaginta, há
indícios para ampliação do cânon já no
período apostólico.
Desde o início, Jesus foi visto como
uma nova instância de autoridade ao
lado da Escritura.
Jesus atribuía autoridade
normativa à Escritura (Mt 5.17;Mc
10.17-19;12.28-31), mas também
ressaltava que nem tudo que nela
consta corresponde à vontade
original de Deus (Mc 10.1-12), ou
então descobre que nela há um
sentido mais profundo (Mt 5.21-
22).
2. A autoridade dos Apóstolos

A palavra dos apóstolos também vai


adquirindo valor normativo para as
comunidades.
Quando Paulo não encontra na
Escritura ou na tradição cristã uma
palavra apropriada para orientar as
comunidades, ele emite uma opinião
própria sobre o assunto.
Ele faz isso como alguém que
possui a autoridade do Senhor e o
seu Espírito (1 Co 7.25, 40).
Suas cartas são lidas nos cultos (1
Ts 5.27; Cl 4.16), tornando-se
parte da base doutrinal das
comunidades.
3. Coleção de textos
Na metade do segundo século surgem
coletâneas de textos cristãos
primitivos.
As cartas de Paulo formam uma
coleção ao lado das outras Escrituras
(2 Pe 3.15-16).
Os quatro evangelhos já circulam
como uma grandeza conjunta, pois o
final secundário de Marcos (16.9-20)
é elaborado com base nos outros três.
4. A contribuição de Marcião

Marcião, um herege gnóstico, mesmo


sem querer, contribuiu para uma
ampliação do cânon cristão.
Ele rejeitou o AT por acreditar que o
Deus nele revelado tinha criado um
mundo material e imperfeito e não
podia ser idêntico ao Pai perfeito e
amoroso de Jesus Cristo.
Rejeitadas suas idéias, ele fundou sua
própria igreja e criou um novo cânon,
formado pelo evangelho de Lucas
(depurado de suas partes judaicas) e
por dez cartas paulinas.
Além de resgatar o AT como parte de
seu cânon, a igreja de seu tempo foi
obrigada a definir-se em relação aos
escritos cristãos que gozavam de
autoridade.
5. Listas de livros utilizados

Nos séculos seguintes, várias listas de


livros reconhecidos como normativos
são conhecidas em diferentes regiões.
Mas todas possuem um núcleo básico
em comum.
Controvérsias maiores existem em
relação a Apocalipse, Hebreus, Tiago,
2 Pedro, 1 e 2 João, e Judas e alguns
outros escritos que foram excluídos.
(Dos 27, os não menci-
onados estão entre
Excluídos Incluídos Controversos
os incluídos)

Cânon Mu- Hb Ap. de Pedro Pastor de


ratoriano/ Sabedoria de Hermas
1 e 2 Pe
Roma Salomão (uso
200
3 Jo particular)

Hb,Tg,2 Pe, 2
Orígenes e 3 Jo,Jd,Her-
250 mes,Barnabé,
Didaqué, Ev.
aos Hebreus
Hermas,Bar-
Eusébio nabé,Ev.He- Apocalipse
300 breus,Ap. Pe-
dro,Didaqué
Numa carta pascal de 367, o
bispo Atanásio de Alexandria
enumera, pela primeira vez,
uma lista canônica com 27
livros, que se impôs na igreja
grega e foi reconhecida pela
igreja latina nos concílios de
Hipona, em 393, e Cartago, em
397.
Com base em que critérios aqueles
27 livros foram escolhidos como
normativos?
Os critérios foram se definindo no
confronto com o gnosticismo e o
montanismo, que negavam a
natureza humana de Jesus e sua
morte na cruz.
1. A antigüidade dos documentos

Os livros reconhecidos como canô-


nicos provêm do primeiro século,
um ou outro, talvez, do início do
segundo.
A Didaquê e as Cartas de Clemente
também cumprem esse critério,
mas não o critério seguinte.
2. Origem apostólica, real ou
vinculada
O primeiro e o quarto evangelho eram
atribuídos a discípulos de Jesus.
Marcos teria sido um com-
panheiro de Pedro; Lucas (terceiro
evangelho e Atos), de Paulo.
As cartas paulinas tinham caráter
apostólico.
Os demais escritos também foram
vinculados
a algum apóstolo.
A reivindicação apostólica,
porém, jamais era critério
absoluto.
Cartas escritas por Paulo (1
Co 5.9) ou em seu nome (2
Co 2.4; 2 Ts 2.2; Cl 4.16) não
sobreviveram.
Um evangelho atribuído a Pedro
foi desqualificado por seu teor
gnóstico.
Era igualmente essencial a
fidelidade ao testemunho
apostólico.
Distinguia-se assim o testemunho
dos primeiros cristãos dos
escritos posteriores.
3. A ampla aceitação e utilização do livro

Obtinham autoridade os livros que


ajudavam a edificar as comunidades e
tinham ampla aceitação.
Quando os 27 livros foram escolhidos
em fins do quarto século, tratou-se,
em verdade, de um reconhecimento
baseado numa convicção que há muito
tempo vinha se consolidando nas
comunidades.
O cânon, portanto, não é fruto de
uma resolução conciliar ou de uma
decisão hierárquica e centralizada
da igreja.
Também a carta de Atanásio não
representa uma decisão oficial
sobre o assunto.
Ela apenas constata o que está
em vias de tornar-se canônico na
igreja.
Igualmente os Concílios de Hipona
e Cartago, que homologaram a
proposta de Atanásio, tinham
competência regional, não
universal.
Pode-se dizer, portanto, que a
canonização aconteceu no interior
da igreja, mas não é produção
dela.
Aqueles 27 livros adquiriram
qualidade canônica por força
inerente, não por arranjos
institucionais.
Ao estabelecer tais livros
como norma, a igreja
renunciou à pretensão de
ser norma para si mesma,
submetendo-se ao cânon
e reconhecendo-o como
bússola para nortear sua
fé.
Referências
BROWN, Raymond . Introdução ao Novo
Testamento. p. 57-69;
KÜMMEL, Werner G. Introdução ao
Novo Testamento. p.627-664.
Autoria: Prof. Verner Hoefelmann
Faculdades EST

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