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Seleções: o mundo cada vez melhor

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qualidade em variadas áreas do conhecimento, apresentando-o de forma
concisa e objetiva. Isso fez com que nos tornássemos parte da história e
educação das pessoas em mais de 45 países, sempre informando, divertindo
e emocionando nossos leitores.
Continuando a desempenhar esse papel, estamos sempre buscando
novos meios e novos canais de comunicação e acompanhando a evolução
global a fim de atender às necessidades do homem de hoje. Sempre
pensando em um mundo melhor, para que você também esteja cada vez
melhor.
Conheça Seleções e nosso conteúdo nas páginas:
Sumário

Introdução

Evangelho Segundo São Mateus

Evangelho Segundo São Marcos

Evangelho Segundo São Lucas

Evangelho Segundo São João


Introdução

Como surgiram os evangelhos

O s primeiros cristãos não estabeleceram um cânone de textos sagrados.


Sua fé concentrava-se em Jesus, suas palavras e ações. Os cristãos não
necessitavam de livros sobre ele, porque, como os apóstolos, eram pessoas
que o conheceram. Histórias testemunhadas, que incluíam milagres, eram
muito mais convincentes do que qualquer documento escrito. Além disso,
Jesus não escrevera nenhum de seus ensinamentos, pois sua prática era o
discurso destes ensinamentos. E também não orientou aos discípulos para
que escrevessem o que haviam visto, mas para que percorressem o mundo
propagando os seus ensinamentos.
Mas, à medida que a Igreja continuava a crescer e os apóstolos
começavam a morrer, os cristãos decidiram que era hora de escrever os
feitos e os ditos de Jesus, transmitidos antes oralmente; estes se tornaram os
evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, escritos de cerca de 70 d.C.
até o fim desse século.
A primeira menção aos evangelhos aparece nos textos de Papias, bispo
de Hierápolis, onde hoje é a Turquia, e segundo relatos do apóstolo João.
Escrevendo nas primeiras décadas do século II, Papias indicou que conhecia
e aceitava os evangelhos, embora preferisse as tradições orais – a “voz viva
do ancião” que fora ensinada pelos apóstolos.
Curiosamente, a mais antiga coletânea conhecida de textos cristãos,
julgada aceitável pela Igreja, foi compilada por um homem mais tarde
condenado como “o primogênito de Satanás”. Marcião, comerciante bem-
sucedido da navegação e filho de um bispo na Ásia Menor, rejeitou todo o
Antigo Testamento – inclusive seu Deus, que Marcião considerava cruel.
Dizia que o Deus do Novo Testamento – o pai de Jesus – era uma divindade
única e amorosa. Além disso, Marcião insistia em que Jesus nunca se
tornou de fato humano, mas só parecia humano. Em cerca de 140 d.C.,
Marcião recomendou que a Igreja se unisse à verdade, adotando como
autorizadas as dez epístolas de Paulo e o Evangelho de Lucas – os quais
Marcião editou livremente, apagando as referências ao Antigo Testamento e
à humanidade, morte e ressurreição de Jesus. Marcião foi excomungado
quatro anos depois. Sua obra, porém, pareceu servir como um alerta para a
Igreja, impelindo os líderes a examinar quais textos eram confiáveis.
Em meados do século II, vários na Igreja achavam que os textos cristãos
mais reverenciados não eram sagrados, e que eles ainda podiam ser
aperfeiçoados. Taciano, professor sírio, decidiu juntar os quatro evangelhos
em um único, retirando as duplicações e harmonizando as discrepâncias
aparentes. Sua obra, Diatessaron (“harmonia de quatro”), foi concluída em
cerca de 170 e continuou sendo o evangelho autorizado em muitas igrejas
sírias até o século V d.C. Mas, passados mais alguns anos, Ireneu, bispo de
Lyon, na atual França, resistiu vigorosamente a essa harmonização dos
evangelhos. Insistiu em preservar todos os quatro separadamente, mas
considerando-os como testemunhos autorizados da vida de Jesus. O
religioso descreveu os evangelhos como os quatro pilares da Igreja.
Em A vida de Jesus em quatro Evangelhos, você fará descobertas além
das linhas escritas por Mateus, Marcos, Lucas e João e conhecerá melhor a
história de Jesus contada em riqueza de detalhes e fatos históricos.

Os editores.
• Evangelho Segundo São Mateus •
É muito provável que Mateus não seja o mais antigo dos quatro evangelhos;
atribui-se em geral essa distinção a Marcos. Mas há alguns motivos
significativos para ele vir em primeiro lugar no cânone do Novo Testamento.
Como biografia de Jesus, Mateus apresenta temas cristãos diferentes, tais
como: uma forte ênfase em Jesus como o Messias, seu nascimento da Virgem
Maria, batismo, orador dos assuntos sagrados, os ritos da Última Ceia, o
papel principal para o apóstolo Pedro, e a promessa de contínua presença de
Jesus. Além disso, o primeiro Evangelho contém elementos judaicos, como a
estrutura poética, os argumentos de escribas, uma ênfase na lei, observância
e religiosidade, o emprego de números simbólicos, as citações das escrituras
para indicar o cumprimento de profecias e a genealogia que dá início ao
texto.
Como os outros três evangelhos, Mateus foi escrito em grego, a língua do
comércio e da cultura no Império Romano. E composto evidentemente nos
anos 80 do primeiro século da era cristã, talvez por um membro judeu da
Igreja cristã em Antioquia, na Síria. O autor anônimo parece conhecer bem a
destruição do templo em 70 d.C. e descreve os fariseus, grupo bastante ativo
naquela época, como os principais adversários de Jesus. No segundo século,
deu-se o nome de Mateus, discípulo de Jesus, ao primeiro Evangelho, a fim
de emprestar-lhe autoridade – embora não haja provas de que ele foi o autor
de sua composição.
O Evangelho é cuidadosamente ordenado em torno de cinco discursos
considerados principais de Jesus que pontuam a narrativa biográfica: o
Sermão da Montanha (capítulos 5-7), instruções para os discípulos
missionários (capítulo 18) e a parte que fala sobre as coisas últimas
(capítulos 24-25). Todos levam ao poderoso relato da crucificação e
ressurreição de Jesus.

Livro da genealogia de Jesus Cristo, filho de Davi, filho de Abraão.


MT 1:1

E mbora os leitores modernos pensem muitas vezes em genealogias como


trechos especialmente maçantes das escrituras, para Mateus e seus
leitores a ascendência de Jesus foi importante. Mostrava um padrão de ordem
e propósito em toda a história de Israel levando ao seu nascimento, e ajudava
os primeiros leitores cristãos a entender como Deus estava envolvido na
história de Jesus. Mateus começa afirmando que Jesus é o Messias, ou Cristo,
um título que significa “o ungido”. Este título refere-se à acalentada
esperança dos judeus de que um dia Deus enviaria um rei ungido,
descendente do rei Davi, para restaurar Israel como nação e cumprir a
promessa feita por Deus de que a dinastia de Davi “será firme para sempre”
(2 Sam 7:16). A primeira afirmação do Evangelho de Mateus é que na
verdade Jesus cumpre essa promessa feita há longa data: ele é o Messias.
Mateus teve de sacrificar um pouco a exatidão em sua genealogia,
omitindo várias gerações e incluindo alguns nomes duas vezes. Mas para o
autor a importância simbólica do padrão, expressando a verdade de que Deus
se envolveu nos acontecimentos que levaram ao nascimento de Jesus, era
mais significativa do que a lista exata de nomes, que, em sua maioria,
qualquer pessoa poderia consultar nas genealogias no Primeiro Livro das
Crônicas.
Embora a genealogia de Jesus, como todas as listas da época, fosse
elaborada através de ancestrais homens, Mateus também indica a
surpreendente singularidade deste livro, destacando quatro mulheres entre a
longa lista de homens: Tamar, Raab, Rute e a mulher de Urias, Betsabée.
Essas mulheres não eram israelitas ou possuíam uma história que envolvesse
uma certa irregularidade, mostrando, desta forma, que Deus podia usar
pessoas de modos inesperados para realizar seu desígnio e que os gentios
eram representados na ancestralidade do Messias. Uma jovem virgem
chamada Maria seria a quinta nesta série de peculiares escolhas do Senhor.

Ora, a Conceição de Jesus Cristo foi desta maneira: Estando já


Maria, sua mãe, desposada com José antes de coabitarem, se achou
ter ela concebido por obra do Espírito Santo. MT 1:18

M ateus e Lucas contam o nascimento de Jesus, mas as duas narrativas


são bastante diferentes em suas ênfases e conteúdo. Mateus salienta a
ancestralidade régia de Jesus e descreve seu nascimento como um confronto
entre os reinos deste mundo, como representado por Herodes, o Grande, e
Jesus, o novo rei de Deus, nascido de uma virgem no cumprimento da
profecia.
Mateus começa com a situação peculiar que envolve a descoberta da
gravidez de uma jovem noiva chamada Maria. Um noivado ou promessa de
casamento naqueles dias era um compromisso quase tão sério quanto o
próprio casamento, e José, como era justo e não queria difamá-la, prefere
divorciar-se a acusá-la no tribunal. Só a intervenção divina – um anjo que
aparece a José no primeiro de seus quatro sonhos – muda a sua decisão. O
anjo diz a José que o filho gerado em Maria é obra do Espírito Santo e lhe dá
o nome de Jesus (“ele salvará”) para significar seu papel como salvador de
seu povo.
A frase “Mas tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que falou o
Senhor pelo profeta” (Mt 1:22) traz pela primeira vez uma citação do Antigo
Testamento – aqui Isaías 7:14, que fala de uma jovem concebendo um filho
cujo nome é Emanuel, que quer dizer “Deus conosco”. Em 13 fórmulas quase
idênticas, Mateus mostra como Jesus cumpre e dá novo sentido às profecias
do Antigo Testamento.
Tendo pois nascido Jesus em Belém de Judá, em tempo do rei
Herodes, eis que vieram do Oriente uns magos a Jerusalém, dizendo:
Onde está o rei dos judeus, que é nascido? MT 2:1-2

C ontada apenas em Mateus, a história dos sábios, ou magos, é uma


haggadah, que recorre a materiais das escrituras para estabelecer uma
questão teológica. As fontes aqui são: Números 24:17, Isaías 60:1-7 e
Jeremias 23:5. Admitindo não saber que o rei messiânico dos judeus deveria
nascer em Belém, os magos revelam um desconhecimento das escrituras que
os identificam como gentios. Ao escrever na época em que muitos cristãos
judeus eram contrários a partilhar a novidade sobre a missão de Jesus com os
gentios, Mateus passa a redimir todos os povos, não apenas os judeus.
A tradição da existência dos três magos baseia-se em seus três presentes:
ouro, olíbano (espécie de incenso feito de resina aromática) e mirra (unguento
usado como balsâmico e em perfumes). Como são guiados por uma estrela, os
magos parecem ter sido astrólogos, provavelmente da Pérsia. Magos, como
são chamados, é o plural de magus, palavra grega para feiticeiro ou mágico.
Só muito tempo depois, foram os “sábios” chamados de reis e receberam os
nomes de Gaspar, Melquior e Baltazar – dos quais, segundo a tradição, um
era negro.

Eis-que apareceu um anjo do Senhor em sonhos a José e lhe disse:


Levanta-te, e toma o menino, e sua mãe, e foge para o Egito. MT 2:13

A o fugir e retornar do Egito, a Sagrada Família lembra a permanência


temporária dos israelitas na terra dos faraós, contada no livro do Gênesis
e do Êxodo. O massacre das crianças inocentes de Belém ordenado por
Herodes é comparável à matança de crianças hebreias que foi empreendida
pelo faraó – destino do qual Moisés escapou graças à engenhosidade de sua
mãe, assim como Jesus pela fuga a tempo dos seus pais. Cada uma das três
cenas – a fuga para o Egito, a matança das crianças e a volta para a terra de
Israel – contém uma das citações de uma profecia do Antigo Testamento
então realizada.
Avisado durante o sono sobre o perigo de retornar à Judeia, onde Herodes
fora sucedido por seu filho igualmente cruel, Arquelau, José leva a mulher e o
filho para a Galileia e passa a morar em Nazaré. Estudiosos ficaram
intrigados com a profecia final do Antigo Testamento: “Que [o menino] será
chamado Nazareno” (Mt 2:23). Por causa da semelhança sonora entre a
palavra em aramaico “Nazaré” e uma palavra hebraica traduzida como
“ramificação”, eles sugerem que Mateus se referia a um oráculo do profeta
Isaías: “E sairá uma vara do tronco de Jessé, e uma flor brotará da sua raiz”
(Is 11:1).
Mateus realiza um salto de quase trinta anos, da época em que a família
regressa ao Egito até o momento em que João Batista começa a pregar na
Judeia, na beira do rio Jordão. A mensagem de João é um apelo ao povo para
que este se arrependa, faça uma mudança radical de valores e compromissos,
porque – ele afirma – o reino dos céus está próximo. A expressão “reino dos
céus” de João Batista significa o governo de Deus na vida das pessoas, e ele
esperava que esse governo se manifestasse de uma maneira poderosa em um
futuro próximo.
O estilo de pregar e as vestes estranhas de João Batista faziam os que o
viam pensarem nos antigos profetas como Elias, por exemplo. Depois que as
pessoas se arrependiam e confessavam seus pecados, movidas pela mensagem
de João, ele as mergulhava no rio Jordão. Banhos de purificação eram
comuns no Judaísmo, mas esse tipo de batismo, como símbolo de penitência e
preparação para o reino vindouro era tão singular que deu a João seu apelido
de “Batizador” ou Batista. O profeta também falava em termos misteriosos do
mais poderoso que haveria de vir depois dele e “vos batizará no Espírito
Santo, e em fogo” (Mt 3:11).
Jesus, quando adulto, juntou-se à multidão que era batizada. João Batista
reconheceu-o como alguém maior que ele mesmo, e só por insistência de
Jesus o profeta concordou em batizá-lo no rio Jordão. Este momento assinala
o início do ministério de Jesus, pois lhe é transmitida uma revelação tripla:
ele vê os céus se abrirem acima; vê o Espírito de Deus descer como uma
pomba; e ouve a voz de Deus reconhecendo-o como seu filho amado.

Então foi levado Jesus pelo espírito ao deserto, para ser tentado
pelo diabo. MT 4:1

L ogo após a divina proclamação de Jesus como o Filho de Deus, esta


identidade é posta à prova. Enfraquecido pela fome após ter jejuado
quarenta dias e quarenta noites, ele enfrenta o diabo (palavra que significa
“caluniador” ou “acusador”, como também a palavra hebraica Satan
[Satanás]. O diabo também é chamado de “o tentador”, ou o que põe a pessoa
à prova).
O relato deste misterioso encontro em Mateus é apresentado de uma
maneira formal, estilizada, marcada por frases repetidas e três tentações
explícitas. Estas chegam em uma rápida sucessão. Jesus repele cada uma
citando as escrituras, sobretudo trechos do Deuteronômio.
O “tentador” começa desafiando a identidade de Jesus como Filho de
Deus, exortando-o a provar seu poder, transformando pedras em pão para
aliviar sua fome. Jesus cita Deuteronômio 8:3. Em seguida, o diabo exorta
Jesus a fazer com que Deus prove seu amor por ele, lançando-se do pináculo
da casa de Deus, o templo em Jerusalém. Jesus recusa, citando mais uma vez
o Deuteronômio, em sua passagem de 6:16. E, por fim, o “caluniador” afirma
controlar todos os reinos do mundo, e os oferece a Jesus se ele se esquecer do
reino de Deus e adorar Satanás. Jesus mostra que já tinha uma autoridade
superior à de Satanás, mandando-o embora e citando Deuteronômio 6:13:
“Temerás ao Senhor teu Deus, e só a Ele servirás.”
Em seguida à derrota de Satanás, Jesus começou seu ministério na
Galileia. Ao contrário de João Batista, ele vai a todas as aldeias e cidades.
Não esperava que seguidores o procurassem, mas com misteriosa autoridade
chamou os discípulos a irem atrás dele, como os pescadores Pedro, André,
Tiago e João, que largaram tudo para segui-lo. E, quando começou a
demonstrar seu poder ajudando os enfermos e doentes, sua fama correu por
toda a região.

E vendo Jesus a grande multidão do povo, subiu a um monte, e


depois de se ter sentado, se chegaram para o pé dele os seus
discípulos. E ele abrindo a sua boca os ensinava dizendo: Bem-
aventurados os pobres de espírito, porque deles é o reino dos céus.
MT 5:1-3

N o início de sua narrativa sobre o ministério, Mateus inclui uma extensa e


desafiante apresentação dos ensinamentos de Jesus, chamada, por
tradição, Sermão da Montanha (Mt 5-7). Comparações com outros
evangelhos sugerem que o sermão seja uma coletânea de ensinamentos que
talvez tenham sido pregados em épocas diferentes. Mas Mateus reúne-os para
que os leitores possam sentir todo o alcance e impacto da proclamação de
Jesus. Grande parte do material também se baseia em Lucas. Os capítulos 5 e
7, por exemplo, têm numerosos paralelos com o chamado Sermão da
Montanha que está em Lucas 6:20-49.
No sermão, Jesus ensina os discípulos e a multidão. Ele inicia com as
tradicionalmente chamadas bem-aventuranças ou bênçãos; estas começam
definindo um novo conjunto de valores que convém ao reino de Deus. A
verdadeira bênção ou felicidade – ele diz – é encontrada onde as pessoas
comuns menos esperam. Frases como “pobres de espírito”, “os que choram”,
“os mansos”, “os pacíficos”, ou “os que padecem perseguição por amor à
justiça” definem uma compreensão de profunda felicidade e bem-aventurança
muito diferentes dos valores superficiais da sociedade. Jesus afirma que
aqueles que partilham esses valores são o povo mais importante – o sal da
terra e a luz do mundo.
Sua mensagem, declara, enfático, não abole a lei e os profetas do Antigo
Testamento, mas dá-lhes cumprimento. No entanto, ele logo estabelece seis
contrapontos entre a compreensão tradicional da lei, como reguladora do
comportamento externo, e o seu próprio ensinamento, que busca transformar
o coração e os valores mais profundos da pessoa para que as ações fluam
deste novo ponto. Em termos tradicionais, deveríamos amar o próximo e
odiar o inimigo, mas Jesus quer criar um novo coração que ame até o inimigo.

• A Terra Santa na Época de Jesus •

Com a morte de Herodes, o Grande, em 4 a.C., seu domínio foi


dividido entre três de seus filhos. De Jerusalém, Arquelau governava
como rei a Judeia, Idumeia e Samaria. O irmão caçula, Herodes Antipas,
era tetrarca da Galileia e Pereia, territórios separados pela Decápole,
uma liga de dez cidades sobretudo a leste do rio Jordão. O meio-irmão
deles Filipe era tetrarca das áreas habitadas sobretudo pelos gentios no
norte e leste do mar da Galileia. A irmã de Herodes, Salomé, recebeu
Fasaelis e várias cidades na costa mediterrânea. Na verdade, todos eram
vassalos do imperador romano, representado por seu procurador em
Jerusalém – Pôncio Pilatos –, na época da prisão, julgamento e execução
de Jesus.
Com a exceção da breve temporada no Egito, contada por Mateus,
Jesus passou a maior parte da infância e vida adulta na Galileia. Após
ser desdenhado em sua cidade natal de Nazaré, estabeleceu-se em
Cafarnaum, uma aldeia pesqueira no litoral norte do mar da Galileia.
Parece que suas únicas jornadas foram uma viagem ao vale do rio
Jordão, para ser batizado por João, visitas missionárias a Gadara e outras
cidades da Decápole, Cesareia de Filipe e Tiro, cerca de 100 quilômetros
ao norte, e peregrinações de festas a Jerusalém, aproximadamente 130
quilômetros ao sul.

Guardai-vos, não façais as vossas boas obras diante dos homens,


com o fim de serdes vistos por eles: doutra sorte não tereis a
recompensa da mão de vosso Pai, que está nos céus. MT 6:1

N a parte central do Sermão da Montanha, Jesus volta sua atenção para as


práticas tradicionais da devoção religiosa: fazer caridade, orar e jejuar.
Adverte que qualquer uma dessas coisas pode ser feita com a finalidade de
obter louvor das pessoas, tornando os atos hipócritas e inúteis para uma
relação com Deus. Só a devoção feita sem exibição ou motivação posterior,
que flui de um coração transformado, é importante para Deus.
Jesus ensina a seus discípulos uma oração muito breve, como exemplo: a
Oração do Senhor, ou o “Pai Nosso”. Nela, o discípulo afirma a santidade de
Deus, que seja feita a sua vontade, assim na terra, como no céu, que venha o
seu reino, e depois faz os pedidos básicos a Deus.
Além de condenar a hipocrisia como falsa devoção, Jesus adverte que o
dinheiro é um grande perigo para a verdadeira confiança em Deus: “Não
podeis servir a Deus, e às riquezas” (Mt 6:24). Em vez disso, exorta seus
discípulos à profunda confiança em Deus como um pai que os conhece
intimamente, ama-os e sempre cuidará deles.

Todo aquele pois que ouve estas minhas palavras, e as observa, será
comparado ao homem sábio, que edificou a sua casa sobre rocha. MT
7:24

P or fim, Jesus enfatiza a seriedade do desafio que faz a seus discípulos no


sermão. Adverte-os para que não tenham juízos preconcebidos e contra o
perigo de enganar-se a si mesmos. De forma bastante pitoresca, pergunta-lhes
por que veem um cisco no olho do irmão, e não veem a trave em seus
próprios olhos.
Ao mesmo tempo que devem exercer sempre a autocrítica, os discípulos
precisam compreender que estavam em uma busca. Que não fossem passivos,
pondo a lei de Deus primeiro na vida, mas pedissem, procurassem
ativamente, e batessem às portas, pois quem busca acha. Assim como os pais
se alegram em dar presentes aos filhos, também Deus quer dar-lhes as bem-
aventuranças de seu reino, mas eles precisam pedir.
Como preceito básico para a ação “que flui do coração”, Jesus dá aos
seguidores o princípio depois chamado Regra de Ouro: “E assim tudo o que
vós quereis que vos façam os homens, fazei-o também vós a eles” (Mt 7:12).
Jesus estava ciente do caráter exigente de seu ensinamento. Descreve-o como
uma “porta estreita”. Cumprir mandamentos externos sempre foi mais fácil
que a profunda transformação íntima exigida para que a pessoa ame seus
inimigos, confie tudo a Deus, e viva sem hipocrisias. Mas Jesus afirma que
esta porta estreita é o caminho que guia para a vida.
O sermão conclui com uma imagem forte para esclarecer aos discípulos o
que está em jogo em sua resposta ao ensinamento de Jesus. Ouvir o
ensinamento e agir de acordo com ele criam uma vida que se parece com
erguer uma casa sobre a rocha. E não transformar essas palavras em ação
constrói uma vida igual a uma casa costruída em areia movediça. Em outras
palavras, tudo está em jogo.

E eis que sobreveio do mar uma grande tempestade, de modo que a


barca se cobria das ondas, e entretanto ele dormia. Então se
chegaram a ele seus discípulos, e o acordaram, dizendo: Senhor,
salva-nos, que perecemos. MT 8:24-25

E m seguida à poderosa apresentação das palavras do Messias no Sermão


da Montanha, Mateus oferece uma série igualmente impressionante dos
feitos messiânicos. Conta dez milagres de Jesus, divididos em três grupos.
Mateus extraiu esses relatos de diferentes partes do Evangelho de Marcos e
de outras fontes, e em vários casos mudou a ordem dos fatos em Marcos.
Mateus não estava interessado em apresentar uma história sequencial, mas em
dar uma visão geral desses feitos comparável à sua avaliação do ensinamento
de Jesus.
Os três grupos de milagres separam-se uns dos outros por narrativas que
se concentram no discipulado. Essas narrativas ajudam Mateus a mostrar que
os milagres de Jesus são não apenas feitos de poder bruto, mas também agem
com sentidos profundos que contribuem para definir o discipulado.
O primeiro grupo de milagres (Mt 8:1-17) mostra Jesus estendendo a mão
a pessoas que não faziam parte da sociedade religiosa de sua época. Leprosos
eram proscritos intocáveis que tinham de avisar aos demais para que se
afastassem, gritando “imundo!”. Jesus, contudo, escolhe tocar um leproso e
curar-lhe a doença. No milagre seguinte, foi um centurião gentio, mercenário
desprezado e empregado para impor a autoridade de Herodes Antipas, que
reconhece o poder de Jesus tão de imediato que ele se encanta com sua fé. As
fronteiras entre puros e impuros, judeus e gentios, começam a ruir.
Na primeira narrativa sobre o discipulado (Mt 8:18-22), a autoridade de
Jesus é traduzida como um chamado desafiador. O discípulo precisa enfrentar
de bom grado a privação para segui-lo e absolutamente nada – nem sequer
sepultar o pai – pode ser posto acima do chamado do Senhor.
O segundo grupo de milagres (Mt 8:24-9:8) discorre sobre a autoridade
do Messias, ao mostrar Jesus superando a força da natureza, quando salva
seus seguidores de uma tempestade. O Messias domina, assim, o poder
demoníaco para libertar dois gentios, vencendo até o poder do pecado, e,
perdoando-os de um paralítico blasfemo, realizando sua cura.
Na segunda seção narrativa (Mt 9:9-17), Jesus recruta proscritos
religiosos como seus seguidores. Chama Mateus, um desprezado coletor de
impostos, que se torna seu discípulo, e participa de um banquete com um
grupo de coletores de impostos e pecadores.
O último grupo de milagres (Mt 9:18-34) completa a imagem
surpreendente do Messias. Jesus dá nova esperança à mulher desamparada
que lhe toca a barra da túnica. Conquista até mesmo poder sobre a morte de
uma menina enquanto os presentes fazem escárnio dessa possibilidade.
Devolve a visão a um cego e a voz a um mudo. Demonstra sua compaixão ao
ver a multidão de gente, “porque estavam fatigadas, e quebrantadas como
ovelhas que não têm pastor” (Mt 9:36).

Vede que eu vos mando como ovelhas no meio de lobos. Sede logo
prudentes como as serpentes, e simples como as pombas. MT 10:16

A pós descrever os poderosos feitos do Messias, Mateus apresenta o


segundo dos discursos de Jesus, aquele em que ele nomeia 12 de seus
mais leais discípulos como apóstolos. A palavra “discípulo” significa aluno
ou estudante; “apóstolo” quer dizer emissário, enviado em missão especial.
As carências das infelizes multidões junto com a urgência da mensagem do
reino de Deus motivam a escolha desses homens por Jesus para uma missão
especial, porém limitada. Os 12 apóstolos, cujos nomes Mateus dá em 10:2-4,
são enviados a cidades judaicas apenas. Jesus instruiu explicitamente os 12
apóstolos a nada levarem com eles – dinheiro, roupas, nem sequer sandálias
–, nada, exceto a sua mensagem de que o reino dos céus estava próximo,
assim como a vitória contra as doenças e o poder sobre o mal que ele lhes
estava transferindo. Precisavam aprender a não depender de seus recursos
pessoais, mas somente do poder de Deus.
Jesus descreve com alguns detalhes parte dos conflitos e perseguições que
aguardam os 12 – em uma linguagem que antecipa a obra missionária após a
morte do Messias. A mensagem do reino de Deus provoca profundas
transformações que provocam conflitos e oposições inevitáveis. Mas Jesus
tranquiliza-os, dizendo-lhes que ninguém precisa temer nada a não ser a
Deus, e Deus ama-os e preocupa-se com eles. Portanto, que vivam sem medo.

Vinde a mim todos os que andais em trabalho, e vos achais


carregados, e eu vos aliviarei. MT 11:28

M ateus descreve o período após a convocação dos 12 apóstolos como


uma época de controvérsias em torno de Jesus, uma época de oposição
cada vez mais perigosa à sua obra. As questões começam com uma de João
Batista, preso por Herodes Antipas. Como ouvira falar das obras do Messias,
ele envia seus discípulos para certificar-se, perguntando a Jesus se ele é na
verdade “o que há de vir” (Mt 11:14). Jesus diz àqueles que o indagavam que
relatem o que ouviram e viram: ele cura, ressuscita e transmite aos pobres as
boas-novas do Evangelho.
Mas a questão que se torna cada vez mais controvertida e perigosa é a
observância do sábado. Os adversários de Jesus insistiam em evitar qualquer
aparência de trabalho, enquanto Jesus insistia que Deus designou o sábado
para o bem e nunca para o mal. A controvérsia acirra-se ao ponto de os
oponentes de Jesus começarem a conspirar para matá-lo e afirmar que todos
os seus feitos admiráveis derivavam do poder de Satanás.

E lhe falou muitas coisas por parábolas, dizendo: Eis aí que saiu o
que semeia. MT 13:3
E
m meio a tantas controvérsias, Mateus descreve o terceiro discurso de Jesu
o ensinamento através das parábolas. A história do semeador que lança
sementes com a mão (Mt 13:3-9, 18-23) reflete como a mensagem do
reino dos céus era transmitida e chegava às pessoas. O destino da semente (ou
mensagem) revela a condição da terra (ou coração) na qual ela cai. Alguns
solos são áridos e improdutivos; outros, frutíferos a princípio, mas, por várias
razões, acabavam secando antes da colheita; e outros ainda têm boa terra e
rendiam muitos frutos.
Para vários ouvintes, estas parábolas continuavam sendo apenas histórias
interessantes. Mas, para aqueles que captam seu sentido mais profundo, elas
serviriam como uma poderosa revelação do reino dos céus. Os que
compreendem a mensagem do reino, explica Jesus, encontram uma coisa tão
valiosa (“tesouro escondido no campo”, ou “boas pérolas” Mt 13:44, 45) que
venderiam tudo o que têm pelo prazer que sentiriam ao encontrá-lo, e
venderiam qualquer propriedade para ganhar seu lugar no reino. Daí em
diante, o reino dos céus é o centro de sua própria existência.

Ensinando por Parábolas

Um contador de histórias magistral. Jesus empregou esse dom


quando pregou a discípulos e multidões. Em vez de fazer a observação
de que Deus é mais bondoso do que as pessoas imaginam, ele narra a
história do dono de uma vinha que pagou aos trabalhadores que tinham
de receber por uma hora o salário de um dia inteiro.
No Novo Testamento, uma parábola pode ser um provérbio fácil de
entender ou uma história extensa – desde que ensine uma lição
espiritual, ilustrando-a com imagens da vida quotidiana. Como exemplo,
há a passagem em que Jesus empregou um ditado ao advertir um fariseu
contra a hipocrisia: “Tira primeiro a trave do teu olho: e depois verás
para tirar o argueiro do olho de teu irmão”(Lc 6:42).
Jesus não inventou a parábola; outros mestres já usavam essa técnica
– em particular os filósofos gregos do século V a.C., Platão e
Aristóteles. E mil anos antes de Jesus, o profeta Natan usou uma
parábola para questionar o rei Davi sobre seu pecado com Betsabée (2
Sam 12). Jesus, contudo, empregou parábolas com tanta frequência que
se tornaram sua marca registrada; há cerca de quarenta nos evangelhos.
A maioria aparece em Mateus e Lucas, e várias aparecem repetidas.
Algumas poucas encontram-se em Marcos; e nenhuma em João.
Por que Jesus usava tantas parábolas é um mistério. Em algumas
ocasiões, ele pretendia ajudar seus ouvintes a entender ideias espirituais
difíceis, como a existência do reino dos céus. Por isso, aproveitava
situações conhecidas de pastores, lavradores, donas de casa e viajantes.
Mas em outras vezes as parábolas eram tão densamente simbólicas que
tinham de ser explicadas até para seus discípulos. Jesus insistia que em
suas parábolas contivessem mensagens espirituais a todos: “Quem tem
ouvidos de ouvir, ouça” (Mc 4:9), “O que tem ouvidos de ouvir, ouça”
(Mt 13:43). Tais imagens significavam aqueles que buscavam a verdade
sobre o mistério de Deus. Mas, para as pessoas que resistiam à sua
mensagem, as parábolas pareciam muitas vezes histórias enigmáticas.

Porventura não é este o filho do carpinteiro? Não se chamava sua


mãe Maria?... Mas Jesus lhes disse: Não há profeta sem honra senão
na sua pátria e na sua casa. MT 13:55, 57

A questão de saber quem é Jesus e a importância de suas palavras e obras


continua encantando muitas pessoas. Quando ele foi para a sua cidade
natal, Nazaré, as pessoas achavam que o conheciam e ele não passava de um
morador local cuja família ainda vivia entre eles. Os preconceitos dos
conterrâneos fizeram com que se escandalizassem com a mensagem profética
de Jesus, e ele saiu da cidade.
Notícias de Jesus chegaram até à corte de Herodes Antipas. O tetrarca, em
uma atitude ensandecida, mandara degolar João Batista no cárcere para
satisfazer um desejo de aniversário, e a consciência culpada de Herodes
convence-o de que Jesus é João ressuscitado dos mortos.
Mas Jesus revela quem é pelos seus atos. Quando uma multidão leva-lhe
os enfermos à região desértica, ele tem compaixão e cura-os a todos, e depois
alimenta mais de cinco mil apenas com alguns pães e dois peixes – servindo
ternamente às necessidades das pessoas através do poder de Deus.
Ao contar o incidente em que Jesus caminha sobre as águas do mar,
Mateus diz que Pedro também queria juntar-se a ele, e Jesus assente.
Contudo, quando Pedro desviou os olhos do Messias e sentiu medo do vento,
começou a afundar, e Jesus teve de salvá-lo. É Jesus quem desafia os
discípulos a arriscarem tudo por sua confiança nele, mas que estaria lá para
ajudá-los quando suas fraquezas humanas trouxessem aflições.
Intensifica-se a controvérsia sobre a recusa de Jesus a praticar todos os
rituais de purificação que são de suma importância para os fariseus. Jesus
chega a insistir em que não havia nada fora do homem que, ao entrar pela
boca, possa contaminá-lo; e que os males que vêm de dentro, não as mãos
sujas, representam o verdadeiro perigo para o homem.

Disse-lhes Jesus: E vós quem dizeis que sou eu? Respondendo,


Simão Pedro disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo. MT 16:15-16

E m meio a todas as controvérsias, os discípulos de Jesus também lutavam


para entender quem Jesus era de fato e o que significava sua identidade
para as suas vidas. Mesmo após várias experiências quanto ao poder de Jesus,
os discípulos tinham dificuldade, em qualquer situação nova, de
simplesmente confiar no amor abundante de Deus. Começavam a entender
algumas coisas sobre seu mestre, mas ainda não tinham assimilado
inteiramente o sentido do milagre da multiplicação dos pães e a alimentação
de cinco mil pessoas.
Ao viajarem para o norte da Galileia, para a fonte do rio Jordão, Jesus
perguntou-lhes o que dizia a opinião popular sobre a sua identidade. Os
discípulos contaram-lhe sobre os rumores de que ele seria João Batista ou um
dos profetas antigos.
Jesus então dirige a pergunta a eles: “E vós quem dizeis que sou eu?”
Quando Pedro respondeu por todos, dizendo que Jesus era o Messias e “o
Filho do Deus vivo”, Jesus abençoa-o por fazer esta confissão. “Também eu
te digo que tu és Pedro [Petros]”, diz Jesus em um jogo de palavras, “e sobre
esta pedra [petra] edificarei a minha igreja” (Mt 16:18).
Os discípulos, contudo, ainda tinham muito a aprender. Quando Jesus
começou a dizer-lhes que precisava ir a Jerusalém, padecer e ser morto, Pedro
não suportou palavras tão fortes como aquelas. Na compreensão que tinha do
Messias não cabiam fatos tão inimagináveis, e ele acaba por repreender Jesus.
Assim como abençoara Pedro por seu entendimento parcial, Jesus o condenou
enfaticamente por se recusar a ouvir o restante da mensagem. Não apenas ele
tinha de morrer, proclamou Jesus, mas todos os que quisessem ser
verdadeiramente seus seguidores tinham de negar-se a si mesmos e carregar a
sua cruz. Só perdendo a vida mundana podia um discípulo conquistar a vida
eterna.

E transfigurou-se diante deles. E o seu rosto ficou refulgente como o


sol: e as suas vestiduras se fizeram brancas como a neve. MT 17:2

S e Pedro se afligiu quando Jesus começou a falar de seu padecimento


próximo, os acontecimentos da semana seguinte sem dúvida agravaram o
emaranhado de pensamentos contraditórios presentes em sua cabeça. Jesus
levou seu círculo mais íntimo de discípulos – Pedro, Tiago e João – ao topo
de uma montanha. Ali eles tiveram a experiência do que o Messias chamava
de visão: eles o viram transformado e envolto em uma aparência de glória. As
imagens dos reverenciados Moisés e Elias, que representavam a lei e os
profetas, pareciam falar com Jesus.
Pedro esforçou-se para dar sentido àquele momento. Ele achou que a
visão revelava que Jesus era tão grande quanto Moisés e Elias, e propôs,
irrefletidamente, construir tabernáculos para os três. A voz de Deus, contudo,
saindo de nuvem luminosa, declarou: “Este é aquele meu querido Filho, em
quem tenho posto toda a minha complacência. Ouvi-o” (Mt 17:5).
Ao descerem a montanha, os três discípulos perguntaram a Jesus por que
“dizem os escribas que importava vir Elias primeiro?” (Mt 17:10). Jesus
levou-os a ver que João Batista já cumprira aquele papel.
Mas quando retornam para a multidão, Jesus foi mais uma vez
confrontado com a necessidade de curar que demonstrava a grande distância
da fé plena em Deus a que se acha a multidão e até seus próprios discípulos.
Ele lhes falou do poder infinito da fé em Deus, mesmo que tivessem “fé como
um grão de mostarda” (Mt 17:19).

Então chegando-se Pedro a ele, perguntou: Senhor, quantas vezes


poderá pecar meu irmão contra mim, que eu lhe perdoe? Será até
sete vezes? MT 18:21

O quarto discurso de Jesus no Evangelho de Mateus enfatiza a


responsabilidade mútua, a reconciliação e o perdão entre seus
seguidores. O discurso origina-se de uma compreensão errada do reino dos
céus pelos discípulos. Para eles, falar de um reino implica hierarquia, posição
e poder; e Jesus explicou-lhes o lugar que eles ocupam nessa hierarquia:
começa virando essas concepções de cabeça para baixo: “Se vos não
converterdes, e vos não fizerdes como meninos” (Mt 18:3), e agirem como
cortesãos poderosos, não entrarão no reino de Deus.
Jesus advertiu os apóstolos de que eles precisavam ser responsáveis uns
pelos outros e não deixar que nenhuma pessoa aparentemente insignificante
falte com sua fé. Como fez muitas vezes, ele empregou uma hipérbole para
falar que era preferível cortar a orelha, o pé, ou arrancar o olho de uma
pessoa, a permitir que ela seja lançada no fogo eterno. O Messias contou
então a parábola da ovelha desgarrada para falar da preocupação de Deus com
quem se desvia do caminho certo, e desejava que nenhum dos discípulos se
perdesse.
Como exemplo, Jesus descreveu o procedimento a ser adotado quando um
discípulo pecasse contra o outro. Passo a passo, eles deveriam buscar
compreensão e reconciliação mútuas. Apenas como um último recurso,
quando o que pecou recusar até mesmo os esforços de toda a Igreja para
resolver o problema, deve-se excluir o pecador do corpo dos discípulos.
Quando Pedro perguntou se deveria perdoar sete vezes um colega
discípulo, Jesus multiplica o número por setenta e sete vezes – isto é, não há
limite para a quantidade de perdão.

Mas entre vós todo o que quiser ser o maior, esse seja o que vos
sirva (...) Assim como o Filho do homem não veio para ser servido,
mas para servir, e para dar sua vida em redenção por muitos. MT
20:26, 28

C om este acontecimento, Jesus terminou seus vários meses de ministério


na Galileia e partiu para a região a leste do Jordão. Grandes multidões
seguiram-no, mas poucos entendiam o que estava em jogo na mudança para
mais perto de Jerusalém. Nesta nova localidade, Jesus continuou a instruir
seus discípulos sobre várias questões, e a compreensão se revelou difícil para
eles.
Em relação ao divórcio, Jesus exortava os discípulos a rejeitar a prática de
divórcio por parte do marido, comum na época dele, e a retornar ao desígnio
original de Deus de que marido e mulher permaneçam juntos para sempre
(Gên 2:24).
O exemplo de um jovem rico que chegou querendo fazer uma boa ação
para ganhar vida eterna serve como advertência contra os perigos da riqueza.
Jesus exortou o rapaz a livrar-se do domínio que suas posses exerciam sobre
ele, vendendo-as e dando-as aos pobres. Sua recusa motiva-o a declarar que
“mais fácil é passar um camelo pelo fundo duma agulha, do que entrar um
rico no reino dos céus” (Mt 19:24).
Quando Jesus mais uma vez profetiza seu sofrimento e até sua
crucificação, seus discípulos insistiram ainda na esperança de um reino
glorioso. A mãe de Tiago e João pediu que Jesus fizesse de seus filhos os
principais ministros de seu reino. Jesus tentou novamente remodelar os
valores deles. Só seria possível encontrar a grandeza no serviço humilde,
assim como o Filho do homem não veio para ser servido, mas para servir e
dar sua vida pela humanidade.

E tanto as gentes que iam adiante, como as que iam atrás, gritavam,
dizendo: Hosana ao filho de Davi! Bendito o que vem em nome do
Senhor! Hosana nas maiores alturas! MT 21:9

Q uando Jesus chega a Jerusalém, é inevitável um confronto entre ele e as


ricas autoridades religiosas do templo. O sumo sacerdote Caiafás e seu
clã trabalhavam em colaboração com as autoridades romanas e não iriam
tolerar ninguém que não aceitasse a política de vantagens mútuas
estabelecida.
Ao entrar em Jerusalém pouco antes da Páscoa, Jesus faz questão de
aproximar-se da cidade de uma maneira que lembrasse às multidões reunidas
em festa, uma conhecida profecia de Zacarias, em que o rei de Sião entra na
cidade montado em um humilde jumento. Todos reconhecem esse símbolo
profético e reagem entusiasticamente com gritos de alegria e comemoração.
Logo à chegada, Jesus desafia as autoridades do templo, expulsando os que
vendiam e compravam mercadorias, para restaurar o templo como uma casa
de oração e cura.
Toda ação e ensinamento de Jesus concentrou-se nesse desafio. Quando
os sacerdotes questionaram sua autoridade, ele ridiculariza-os, mostrando que
não conseguiram reconhecer a obra profética de João Batista. Compara-os a
um filho que promete trabalhar para seu pai e depois nada faz. Com palavras
cáusticas, Jesus denuncia-os, dizendo que “os publicanos [coletores de
impostos] e as meretrizes vos levarão a dianteira para o reino de Deus” (Mt
21:31). Mas ele sabia que seus ataques às autoridades corruptas provocariam
uma reação inevitável.

Então retirando-se os fariseus, consultaram entre si como o


surpreenderiam no que falasse. MT 22:15

A princípio, as autoridades subestimaram Jesus. Pensavam que podiam


enredá-lo em um discurso difícil de ser entendido por alguém do povo,
além de perguntas capciosas. Alguns fariseus abordam-lhe perguntando se era
lícito pagar ou não tributo ao imperador. Jesus responde de forma igualmente
astuciosa que os estimula a cumprir suas responsabilidades para com Deus.
Os saduceus em seguida tentam um antigo enigma com a intenção de fazer a
fé na ressurreição parecer ridícula. Jesus destrói o aristocrata que era muito
ignorante quanto às escrituras e ao verdadeiro poder de Deus.
Quando um advogado fariseu faz uma pergunta relacionada ao maior dos
vários mandamentos da lei, Jesus responde-lhe de uma maneira que reflete
todo o seu ensinamento. O mandamento máximo é o que flui do íntimo: amar
a Deus de alma e coração. E semelhante a este é o segundo mandamento:
amar ao próximo como a si mesmo.
Por fim, Jesus volta seu ataque à hipocrisia e à arrogância dos fariseus e
ao desejo de fazer sua exigente interpretação da lei aplicar-se a todos. Eles
criaram tal muralha de regulamentações de purificação, rituais, práticas e
argumentos sobre minúcias, afirmava Jesus, que impediam que as pessoas
fizessem parte do reino de Deus. Esses métodos, visando apenas ao
comportamento exterior, também não transformavam o coração. Talvez
pareçam formosos por fora, mas quase sempre asquerosos por dentro.

E estando ele assentado no monte das Oliveiras, se chegaram a ele


seus discípulos à puridade, perguntando-lhe: Dize-nos, quando
sucederão estas coisas? E que sinal haverá da tua vinda, e da
consumação do século? MT 24:3

O quinto e último discurso de Jesus no Evangelho de Mateus acompanha o


momento em que Jesus pela última vez deixa o templo. Embora a
construção fosse imponente e bela, Jesus profetizou sobre o dia em que “não
ficará aqui pedra sobre pedra” (Mt 24:2). Esta previsão foi realizada em 70
d.C., quando os romanos destruíram o templo.
Jesus previu primeiro as tribulações que se abateriam sobre Jerusalém e
levariam à destruição do templo. Em seguida, apontou além desse dia o
tempo em que o Filho do homem retornaria, “e virá sobre as nuvens do céu
com grande poder, e majestade” (Mt 24:30). E advertiu os discípulos contra a
tentativa de prever esses acontecimentos, pois ninguém além de Deus poderia
saber sobre este dia.
Ele exorta os discípulos a serem sempre vigilantes, a viverem cada dia
preparados para a gloriosa volta de seu Senhor. Por uma vívida série de
comparações estabelecidas com fatos da cultura judaica, tais como a época do
Grande Dilúvio, ou um ladrão assombrando uma casa, ou um servo à espera
do retorno do Senhor, ou virgens aguardando as bodas, Jesus ensina-os a
sempre preparar-se para a chegada. Além disso, pela parábola dos servos a
quem o amo confiou grandes somas de dinheiro, ele ensina-os a não apenas
esperar que retorne, mas que façam bom uso de seu tempo e das
oportunidades que lhes são oferecidas.
A conclusão do discurso e de todo o ensinamento de Jesus no Evangelho
de Mateus chega à sua descrição da cena do juízo final, momento em que o
Filho do homem, como rei, separa todas as pessoas à direita e à esquerda. As
da direita são benditas e têm direito a herdar o reino que Deus preparou. As
da esquerda são banidas para o fogo eterno. Para as da direita, diz o rei:
“Porque tive fome, e destes-me de comer: tive sede, e destes-me de beber: era
hóspede, e recolhestes-me” (Mt 25:35). As da esquerda são malditas porque
não haviam feito estes e outros atos semelhantes de caridade.
Mas nenhum dos dois lados se lembra de quando serviu o rei ou não o
serviu desta maneira. A cada grupo de pessoas, o rei revela que “quantas
vezes o deixastes de fazer a um destes pequeninos, a mim o deixastes de
fazer” (Mt 25:45).

Estando eles, porém, ceando, tomou Jesus o pão e benzeu-o e partiu-


o e deu-o a seus discípulos, e disse: Tomai, e comei, este é o meu
corpo. MT 26:26

C om a aproximação da Páscoa, os inimigos de Jesus conspiraram para se


livrar dele após a festa. Não se dão conta de que outro horário, marcado
por Deus, determinará o curso dos eventos. Na quarta-feira antes da Páscoa,
Jesus hospeda-se em Betânia e visita a casa de Simão, o leproso, talvez um
dos que haviam sido por ele curados. Uma mulher chega até ele e, com um
gesto extravagante, despeja grande quantidade de bálsamo sobre sua cabeça.
Alguns dos discípulos ficam indignados com tal desperdício, mas Jesus
interpreta-o como uma unção que anteciparia seu enterro.
Judas Iscariotes, possivelmente compreendendo afinal que as esperanças
alimentadas por muitos de que uma revolução nacional não se realizaria,
decide entregar Jesus aos inimigos por trinta moedas de prata.
Ao chegar a Páscoa – que se estendeu do pôr do sol de quinta-feira ao de
sexta-feira – Jesus reúne-se com seus discípulos em uma casa particular em
Jerusalém. A atmosfera enche-se de pressentimentos quando o Mestre
começa anunciando que um dos discípulos iria traí-lo. Durante a ceia, Jesus
usa o pão e o vinho da Páscoa para mostrar o significado dos acontecimentos
prestes a acontecer; parte um pão e diz que é seu corpo e pede aos discípulos
que o comam. Toma um cálice de vinho e pede-lhes que o bebam, dizendo:
“este é o meu sangue do novo testamento, que será derramado por muitos
para remissão de pecados” (Mt 26:28).
Jesus conhecia as boas intenções e também as fraquezas dos discípulos, e
previu que Pedro negaria conhecê-lo naquela mesma noite. Enquanto Judas se
retirava a fim de fazer planos para a traição, o grupo restante saiu de
Jerusalém para o monte das Oliveiras. Ali, em um lugar chamado Getsêmani,
Jesus ora a Deus e encontra forças para enfrentar o horror que iria acontecer.

Este, o príncipe dos sacerdotes, lhe disse: Eu te conjuro pelo Deus


vivo, que nos digas se tu és o Cristo, filho de Deus. MT 26:63

O s fatos se sucedem rapidamente. Judas chega com um grupo, armado


com espadas e paus, e identifica Jesus, dando-lhe um beijo. Jesus prevê
a violência, e ordena que um de seus seguidores tornasse a guardar a espada.
Enquanto seus discípulos fogem, Jesus é levado como prisioneiro de volta à
cidade.
Um julgamento de improviso é realizado à noite na casa do corrupto
pontífice Caiafás. O igualmente corrupto sinédrio convocado por Caiafás
julga e arrebanha falsas testemunhas para imputarem crimes a Jesus. Mas o
tribunal ilegal acaba cedendo à exigência de Caiafás para que Jesus diga se
era ou não o Cristo, filho de Deus. Quando Jesus se recusa a negar esse título
e declara que logo eles veriam o Filho do homem sentado à direita do poder e
glória de Deus, Caiafás e seus aliados o condenam por blasfêmia. Quando
chegou a manhã, o veredicto da meia-noite foi ratificado pelo clã do alto
sacerdócio e os anciãos aristocráticos, sendo Jesus levado a Pilatos, o
governador romano, para a sentença e execução.
Enquanto Jesus se acha diante de seus poderosos acusadores e é
condenado, Pedro fica no átrio do lado de fora, vacilando diante de uma
criada e curiosos, negando que conhece Jesus. Mas, quando se dá conta de
seu erro, chora lágrimas amargas de arrependimento. Até Judas se arrepende
da maldade de sua traição e devolve o dinheiro que recebeu, mas não
consegue abrandar sua culpa e enforca-se.

E depois que o crucificaram, repartiram as suas vestiduras,


lançando sortes (...) Puseram-lhe também sobre a cabeça esta
inscrição, que declarava a causa de sua morte: ESTE É JESUS, REI
DOS JUDEUS. MT 27:35, 37

M ateus conta o julgamento de Jesus diante de Pilatos e a crucificação de


forma muito parecida com a de Marcos, mas com alguns acréscimos
importantes. Para o governador romano Pilatos, a única questão que importa é
a da traição: “Tu és o rei dos judeus?” A ambígua resposta de Jesus “Tu o
dizes” (Mt 27:11) não constitui, contudo, um caso convincente, e Pilatos
decide usar a popularidade de Jesus com o povo para conseguir que a
multidão condene Barrabás. Mateus observa que a mulher de Pilatos teve
premonições em um sonho de que Jesus era inocente e advertiu o marido.
Mas Pilatos já permitira que o povo escolhesse Barrabás como o prisioneiro a
receber o indulto de festa religiosa, condenando assim Jesus.
Pilatos lava simbolicamente as mãos enquanto a turba exaltada recebe a
responsabilidade pela morte de um homem acusado de blasfêmia. Só Jesus
sabia que esses acontecimentos haviam sido decididos em Getsêmani e que
sua morte era para expiar os pecados de todas as pessoas, não apenas as
envolvidas naquele dia.
Após ser flagelado e escarnecido, Jesus é levado a Gólgota para a
crucificação. Como Marcos, Mateus destaca os detalhes dos fatos que
confirmam as escrituras, em especial os Salmos 22 e 69. Por exemplo, o
misterioso grito de Jesus na cruz, “Deus meu, Deus meu, por que me
desamparaste?” (Mt 27:46), lembra o grito que está em Salmos 22:1.
Quando Jesus exala o último suspiro, Mateus relata a ocorrência de
impressionantes prodígios. O véu do Templo rasga-se; a terra treme; muitos
dos santos que haviam morrido saem das sepulturas e aparecem na cidade.
Para Mateus, esses fatos extraordinários são apenas provas de que a morte de
Jesus é parte de uma grande transição: o fim de uma época e o início de uma
nova era.

Mas o anjo, falando primeiro, disse às mulheres: Vós outras não


tenhais medo: porque sei que vindes buscar a Jesus, que foi
crucificado. Ele já aqui não está, porque ressuscitou como tinha
dito. Vinde, e vede o lugar onde o Senhor estava posto. MT 28:5-6

M ateus, como os outros evangelistas, não descreve a ressurreição de


Jesus objetivamente. Comenta que algumas discípulas que o haviam
seguido desde a Galileia observaram sua crucificação e que José de
Arimateia, um discípulo rico, tomou o corpo e depositou-o no seu sepulcro.
Com a aprovação de Pilatos, as autoridades hebreias tapam o túmulo e põem
sentinelas a postos para impedir que os discípulos de Jesus roubassem o
corpo. E o sábado transcorre tranquilamente.
Na manhã de domingo, quando Maria Madalena e Maria, mãe de Tiago e
José, aproximam-se da sepultura, há um violento terremoto. Um anjo do
Senhor desce e revira a pedra que a tampava. O que o anjo revela, contudo, é
um sepulcro vazio. Jesus já havia ressuscitado dos mortos.
Mateus enfatiza que as mulheres recebem a mesma mensagem do anjo e
do próprio Jesus, quando ele vai ao encontro delas, ao saírem correndo,
amedrontadas, do sepulcro vazio, e diz-lhes: “Não temais, ide, dai as novas a
meus irmãos para que vão à Galileia, que lá me verão” (Mt 28:10)
Enquanto os guardas são subornados pelos sumos sacerdotes e os anciãos
para esconder o fato da ressurreição, os discípulos partem às pressas para o
norte, para a Galileia. No topo de uma montanha próxima, os 11 ouvem Jesus
anunciar uma nova era em que “todo o poder no céu e na terra” (Mt 28:18)
pertence-lhe. E manda que sigam em frente para levar sua mensagem a todas
as nações, batizando as pessoas em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo, e ensinando-as a obedecer seus mandamentos. Nas últimas palavras do
Evangelho, Jesus dá aos discípulos a garantia que o designa como Emanuel,
que quer dizer “Deus conosco”, no início de Mateus: “Eu estou convosco
todos os dias”, promete-lhes Jesus, “até à consumação do século” (Mt 1:23,
28:20)
• Evangelho Segundo São Marcos •
O mais breve dos quatro evangelhos e provavelmente o primeiro a ser
escrito, o Evangelho de Marcos surgiu em um momento decisivo da história
cristã.
Embora estudiosos discordem sobre sua data e lugar de origem, é
possível que tenha surgido próximo à época da destruição de Jerusalém em
70 d.C. e para gentios cristãos que viviam fora da Palestina, talvez na
Itália. Desde a morte de Jesus, seus seguidores disseminaram a mensagem
de seus feitos e ensinamentos oralmente. Centenas de narrativas sobre
Jesus eram bem conhecidas. Alguns cristãos haviam compilado coletâneas
de provérbios de Jesus, mas Marcos foi evidentemente o primeiro a redigir
seus feitos e ensinamentos em uma narrativa unificada. Um dos mais
importantes feitos deste autor foi enfatizar os acontecimentos em torno da
crucificação de Jesus – a narrativa da Paixão. Na verdade, o Evangelho de
Marcos tem sido descrito muitas vezes como uma narrativa da Paixão com
uma introdução extensa. Os primeiros capítulos mostram que a oposição à
mensagem de Jesus transformou-se em conspirações para destruí-lo. Os
capítulos posteriores estruturam-se em torno das três previsões de sua
morte e ressurreição. O terço final do Evangelho é dedicado aos últimos
dias da vida de Jesus.
A narrativa de Marcos é vívida e de ritmo acelerado; uma de suas
palavras preferidas é “imediatamente” ou “logo” – eythys no original
grego. Mas o autor conta sempre fatos com sua mensagem em mente. Não
pretendia apenas narrar informação interessante; queria também
proclamar as boas novas do que Deus fizera, enviando Jesus, e criar ou
fortalecer a fé em seus leitores.
O Evangelho em si não dá qualquer indicação de seu autor. No segundo
século, foi atribuído a João Marcos, um dos primeiros cristãos de
Jerusalém e – segundo o livro Atos dos Apóstolos – companheiro de Pedro
e Paulo. A tradição também mantém que o Evangelho baseou-se realmente
na pregação de Pedro relatada por Marcos, logo depois da morte do
apóstolo em Roma. O próprio livro, contudo, não dá qualquer indicação
clara dessa origem.

Princípio do Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus. MC 1:1

M arcos é o único dos quatro evangelistas que emprega o termo “boa-


nova” (do grego evangélion, e em latim evangeliu, ou evangelho),
em sua sentença de abertura, como designação para o livro como um todo.
O termo “boa-nova” transmite o entusiasmo dos primeiros cristãos que, ao
contarem a história de Jesus, partilhavam o anúncio de um acontecimento
maravilhoso – que iria transformar a vida humana. Além disso, o termo
enfatiza que o Evangelho de Marcos é um livro com forte mensagem.
Desde o início, o autor quer que os leitores conheçam a finalidade
fundamental de sua escrita – mostrar que Jesus é Cristo, o Filho de Deus.
Marcos começa a história não com o nascimento de Jesus, como
fizeram Mateus e depois Lucas, mas com o início do ministério de Jesus na
Galileia, ou, em termos mais específicos, com a obra de João Batista, que
antecipou a vinda de Jesus. Ele cita os profetas do Antigo Testamento,
Malaquias e Isaías (embora só dê o nome do último), que teriam profetizado
o papel que desempenharia João, a voz a clamar no deserto, a fim de
preparar o caminho para o Senhor.
O batismo de João não foi diferente dos rituais de purificação, comuns
na vida religiosa daquela época. Foi um símbolo de penitência e uma
mudança fundamental de direção na vida, antecipando aquele que, como
disse João, “batizar-vos-á no Espírito Santo” (Mc 1:8).
Jesus aparece em cena pela primeira vez como um seguidor de João,
participando de seu batismo junto com outras pessoas. O batismo de Jesus,
contudo, é marcado por sinais: os céus se abrem e o Espírito Santo desce e
pousa sobre ele em forma de uma pomba, e o próprio Deus afirma a
identidade de Jesus: “Tu és aquele meu filho singularmente amado, em ti
tenho posto toda a minha complacência” (Mc 1:11).
De forma sucinta, Marcos resume os quarenta dias de tentação no
deserto sofrida por Jesus (contados de forma mais completa em Mateus e
Lucas) e situa o início do ministério de Jesus na época em que João Batista
é preso e retirado de sua obra profética. Jesus sai da Judeia e da área do rio
Jordão onde João era conhecido e segue rumo ao norte para a Galileia com
uma mensagem urgente: “Pois que o tempo está cumprido, e se aproximou
o reino de Deus: fazei penitência, e crede no Evangelho” (Mc 1:15).
A autoridade personificada por Jesus é imediatamente manifestada
quando ele passa pelo mar da Galileia e convoca pescadores no meio do
trabalho para que o sigam. Eles logo largam suas redes, deixam as famílias
e companheiros de trabalho, e seguem-no.

E ficaram todos tão espantados, que uns a outros se perguntavam,


dizendo: Que é isto? Que nova doutrina é esta? Porque ele põe
preceito com império até aos espíritos imundos, e obedecem-lhe.
MC 1:27

E m seguida à convocação dos discípulos, Marcos reforça a revelação da


autoridade de Jesus aos leitores, fazendo-os viver a experiência de um
dia inteiro na vida do Messias, um sábado. Primeiro mostra-o na cidade de
Cafarnaum no litoral norte, ensinando na sinagoga local. O povo reconhece
que sua maneira de ensinar é diferente da instrução tradicional a que estão
acostumados. Jesus não cita a autoridade de antigos escribas, rabinos, nem
da tradição oral, mas fala como se ele mesmo tivesse o direito de
estabelecer a verdade de seu ensinamento.
Rapidamente, a sinagoga parece à beira do caos quando “um homem
possesso do espírito imundo” interrompe a instrução. O possuído parecia
falar com a voz do mundo demoníaco e conhecer Jesus com a mesma
clarividência que a voz do céu o conhecera no batismo. Aterrorizada, a voz
grita: “Que tens tu conosco, Jesus Nazareno? Viestes a perder-nos? Bem sei
quem és, que és o Santo Deus” (Mc 1:23, 24). Jesus silencia o espírito
imundo e ordena-lhe que saísse do homem.
Todos percebem instantaneamente a ligação entre a impressionante
autoridade do ensinamento de Jesus e o domínio sobre o espírito
demoníaco. Ele ministrava-lhes um novo ensinamento – “como quem tinha
autoridade” (Mc 1:22).
Nos primeiros parágrafos de seu Evangelho, Marcos faz aos leitores
uma afirmação tripla da identidade de Jesus – por suas próprias palavras na
primeira frase do livro, pela voz de Deus e pela do espírito imundo. Juntos
com ele, os leitores sabem, então, quem é Jesus e começam a antecipar o
momento em que as pessoas comuns em volta de Jesus também iriam saber
quem ele era.
O dia continua enquanto Jesus cura uma febre da sogra de Simão Pedro.
Quando termina o sábado, ao pôr do sol, as pessoas começam a
movimentar-se mais livremente e juntam-se à volta de Jesus com suas
necessidades de cura ou de expulsão de espíritos maus.
Marcos conclui seu dia na vida de Jesus na madrugada da manhã
seguinte quando ele busca a solidão em um lugar deserto para rezar. Mas
Simão tenta levá-lo de volta para a multidão. Insistindo em que disseminar
sua pregação tinha prioridade, Jesus vai para as aldeias e cidades
circunvizinhas na Galileia.

Qual é mais fácil, dizer ao paralítico: Os teus pecados te são


perdoados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda? MC 2:9

M arcos em seguida descreve que o ministério de Jesus rompe algumas


convenções religiosas. As reações positivas e negativas aos seus atos
criam uma atmosfera em que os líderes religiosos se sentem ameaçados e
começam a buscar a ruína dele.
A lei religiosa daquela época exigia que pessoas com qualquer uma das
várias doenças cutâneas, que naquela época se agrupavam sob o termo de
lepra, fossem separadas de todas as demais e consideradas imundas
enquanto tivessem a doença (Lev 13:45-46). Um desses leprosos aproxima-
se de Jesus e implora para ser curado: “Se queres, podes limpar-me” (Mc
1:40). Compadecido, Jesus ignora as leis de purificação do judaísmo e
estende a mão para tocar o homem intocável, curando-o instantaneamente
com uma palavra.
Jesus ordenou severamente que o homem não contasse sobre a cura a
ninguém exceto aos sacerdotes, que tinham de certificar-se do seu novo
status. Embora conseguisse com apenas uma ordem conseguir a obediência
de um espírito imundo, Jesus não tem poder algum sobre pessoas comuns.
A obediência a ele tem de ser feita livremente, e, neste caso, o homem
curado fala sobre sua purificação a todo mundo. Em consequência, as
multidões que afluem de todas as partes até Jesus tornam-se tão
esmagadoras que ele mal consegue mover-se.
Quando Jesus volta para Cafarnaum, o lugar fica tão apinhado de gente
que ninguém consegue penetrar na massa humana. Nessa situação, conta
Marcos, quatro homens, determinados a levar um amigo paralítico a Jesus,
fazem uma abertura no telhado da casa através da qual o arriam sobre o
leito.
Jesus quase sempre reage às situações de forma surpreendente. Em vez
de apenas curar o homem, ele primeiro diz-lhe: “Filho, perdoados te são os
teus pecados” (Mc 2:5) – palavras que sem dúvida provocam a ira de
escribas religiosos que achavam que Jesus estava usurpando as
prerrogativas de Deus. Mas para ele todos os aspectos de seu ministério
extraordinário são unidos. Assim como antes sua autoridade sobre o espírito
imundo servira para confirmar a autoridade de sua pregação, o dom de curar
a paralisia física com uma palavra confirma o ministério como algo muito
mais importante para perdoar a devastação do pecado com o perdão. Todos
os presentes ficaram admirados, dizendo: “Nunca tal vimos” (Mc 2:12).

E indo passando, viu a Levi, filho de Alfeu, assentado no telônio, e


lhe disse: Segue-me. E ele, levantando-se, o foi seguindo. MC 2:14

J esus vai de encontro a uma outra convenção religiosa ao incluir entre


seus seguidores pessoas como o coletor de impostos Levi (chamado
Mateus no Evangelho de Mateus), desprezado por causa de sua profissão.
Para os fariseus, Jesus não parecia exigir penitência suficiente antes de agir
amigavelmente com aquela gente. Ele come com os pecadores e não os
considera em um plano diferente, inferior, em relação às pessoas
visivelmente religiosas. Na verdade, Jesus parecia ter mais esperança
quanto aos pecadores do que pelos que se autoproclamavam justos. Quando
falou dos fariseus como “justos”, suas palavras eram cheias de ironia.
Jejuar era uma importante prática de devoção religiosa, observada ao
mesmo tempo pelos “discípulos de João, e os dos fariseus” (Mc 2:18).
Contudo, Jesus evita o jejum, insistindo em que ele e os discípulos precisam
ser fiéis ao caráter particular de seu próprio ministério. As boas-novas que
Jesus proclama como “vinho novo” exigem novos padrões de pensamento e
novas manifestações de devoção religiosa – “odres novos” (Mc 2:22).
Quando os discípulos violam a prática convencional do sábado,
colhendo espigas para comer no dia de descanso, Jesus defende-os com a
afirmação radical de que há uma hierarquia de valores nos mandamentos de
Deus. Fazer alguma coisa de bom pelo homem é mais importante que evitar
estritamente toda aparência de trabalho no sábado.
A controvérsia sobre os desafios de Jesus à devoção religiosa acirra-se
em um sábado em que um homem com a mão ressecada aparece na
sinagoga. Intensifica-se a sensação de ameaça iminente quando todos
observam Jesus para ver se ele iria curar o homem, e, desse modo, trabalhar
no dia de descanso. Jesus não procura perseguição, mas quer apenas ser fiel
ao sentido integral de sua proclamação. Acham-se aí envolvidas questões
fundamentais de como entender os mandamentos de Deus. Jesus podia ter
desistido e esperar um momento melhor, mas se recusa a ser desleal quanto
ao aspecto de urgência de sua mensagem – e de quem ele é. Diz ao homem
“Estende a tua mão” (Mc 3:5). Diante de indignada oposição, ele cura o
homem e, como mostra Marcos, avança no caminho de sua crucificação.

Visão do Conjunto

Todos os quatro evangelhos falam da vida e ensinamentos de


Jesus. Mas os três primeiros – Mateus, Marcos e Lucas –, por serem
parecidos, são chamados de evangelhos sinópticos, cuja origem é a
palavra grega que significa “vista do conjunto”. Os leitores que
estudam esses livros em uma edição em que os textos relacionados são
impressos lado a lado logo descobrem semelhanças impressionantes.
Presentes em todos os três livros, e na mesma ordem, encontram-se
relatos do batismo e da tentação de Jesus, a convocação dos discípulos
e abrandamento da tempestade, a transfiguração, a pregação no
templo, a última ceia, a crucificação e a ressurreição. Ainda mais
surpreendente é que, um trecho após o outro, as palavras são
exatamente, ou quase, as mesmas. Por exemplo, todos os três
evangelhos usam as mesmas palavras para as instruções de Jesus
referentes à alimentação dos cinco mil: “Dai-lhes vós outros de
comer” (Mt 14:16; Mc 6:37; Lc 9:13).
Uma explicação para essas semelhanças vem de santo Agostinho,
teólogo do século IV. O autor de A cidade de Deus propôs que Mateus
foi escrito primeiro, Marcos baseou-se nele, e Lucas redigiu segundo
os dois anteriores. Estudiosos hoje, porém, em geral concordam que o
evangelho mais breve, o de Marcos, foi escrito primeiro, e o de
Mateus e Lucas o trataram como sua fonte principal.
Marcos, contudo, não foi a única fonte para Mateus e Lucas. O
último salientou fontes extras no primeiro versículo de seu evangelho.
Parece que uma das fontes usadas por Mateus e Lucas foi uma
coletânea de ditos e ensinamentos de Jesus que lamentavelmente se
perdeu. Estudiosos intitulam-na Fonte de Provérbios ou “Q”, da
palavra alemã Quelle, que quer dizer “fonte”.

E os escribas, que haviam baixado de Jerusalém, diziam: Ele está


possesso de Belzebu, e em virtude do príncipe dos demônios, é que
expele os demônios. MT 3:22

M arcos descreve como era confuso estar perto de Jesus naqueles dias.
As notícias deste ousado mestre, que desafiava as autoridades
tradicionais, fazia curas e dava esperanças a todas as espécies de gente,
atraíam multidões de lugares distantes do sul, leste e norte. Quando pessoas
possuídas por demônios clamaram que ele era filho de Deus, a especulação
tomou vulto. Os judeus jamais pensaram em Deus tendo um filho, a não ser
o rei, que, na Antiguidade, era descrito em termos metafóricos como filho
de Deus. Poderia a palavra dos espíritos imundos conter alguma verdade?
Para escapar às hordas e especulações ensandecidas, Jesus subiu
sozinho a uma colina e depois chamou para junto de si 12 dos mais íntimos
e leais seguidores a fim de nomeá-los apóstolos (que vem da palavra grega
“enviar a serviço”). Eles deveriam permanecer então com Jesus, mas depois
foram enviados como seus emissários. Ao contrário das multidões que
chegavam por curiosidade ou em busca de milagres, ou das autoridades que
observavam Jesus apenas para condená-lo, esses iriam ser os que chegavam
para ver com clareza quem era realmente Jesus. Marcos mostra, contudo,
que os 12 se achavam apenas no início do que seria uma árdua luta.
A oposição a Jesus intensificou-se. Sua postura destemida contra as
autoridades religiosas convencionais convence até a sua família de que “ele
está furioso” (Mc 3:21). Os escribas de Jerusalém eram ainda mais severos,
dizendo que ele é um agente de Belzebu ou Satanás. Esta acusação, diz
Jesus, era o oposto da verdade. Ele estava empenhado em uma luta em que
seus aliados eram definidos não por laços de família nem pela autoridade
tradicional, mas pelo compromisso de fazer a vontade de Deus.

E lhes disse: A vós outros é concedido saber o mistério do reino de


Deus: mas aos que são de fora tudo se lhes propõe em parábolas.
MT 4:11

U ma das formas de Jesus lidar com as diversas atitudes para consigo sua
mensagem era narrar histórias breves, as parábolas. A parábola
envolve um certo elemento de comparação ou paralelo entre um sentido
superficial e outro mais profundo. O sentido superficial é logo entendido,
mas a compreensão do mais profundo pelo ouvinte depende de ele ter, como
diz Jesus, “ouvidos de ouvir” (Mc 4:9). Jesus conta a parábola do semeador
a semear em quatro tipos de solo, para destacar as várias reações às suas
mensagens. Algumas pessoas são como solo em um caminho duro, onde as
aves comem as sementes. Algumas são como o solo rochoso: reagem
positivamente à mensagem, mas não conseguem enfrentar as dificuldades
que ela acarreta. Algumas são como solo cheio de espinhos: seu amor por
dinheiro e outros desejos sufocam a mensagem. Mas algumas são como
solo fértil, e a mensagem produz uma colheita prodigiosa. Muitos, ele diz,
embora ouçam, “não entendem”, mas, quando alguém aceita a mensagem, a
compreensão multiplica-se, “porque ao que já tem, dar-se-lhe-á” (Mc 4:12,
25).
Jesus ajudava seus discípulos a verem nas parábolas “o segredo do reino
de Deus”, embora manifestasse surpresa com a dificuldade que tinham para
entendê-lo. Por meio de suas parábolas, ele exibia total confiança em que,
apesar da oposição à sua missão, o reino de Deus prosperaria. Era como a
semente que brotava da terra nutridora e produzia uma colheita completa.
Como um pequeno grão de mostarda que produzia um arbusto enorme.

E levantando-se ameaçou o vento, e disse para o mar: Cala-te,


emudece. E cessou o vento, e seguiu-se uma grande bonança. MT
4:39

A pesar dos muitos fatos espantosos que testemunhavam e de serem


escolhidos para o círculo mais íntimo de Jesus, os discípulos, como
Marcos mostrou, tinham dificuldade em progredir do compromisso com
Jesus como mestre para a fé em Jesus como muito mais que um mestre.
Marcos enfatiza a dificuldade de chegar à fé na história de Jesus acalmando
uma tempestade no mar da Galileia.
Ao atravessarem para a outra costa do mar, Jesus adormece, e se levanta
uma violenta tempestade de vento. O pânico e a falta de confiança dos
discípulos são claramente captados em seus gritos para despertar Jesus:
“Mestre, a ti não se dá que pereçamos?” Jesus acorda e com uma palavra
transforma o caos e o perigo em uma calma bonança. Mas então se volta
para o perigo mais profundo: “Por que sois vós assim tímidos? Ainda não
tendes fé?” A fé em Jesus, que pode aplacar o medo, ainda precisa brotar.
Mas esse fato ajudava a transformar o medo das forças externas que os
discípulos sentiam, fazendo-os ficar “sobremaneira penetrados de temor”
diante de Jesus, além de contribuir para que se dessem conta de que a
maneira como entendiam seu mestre antes era frágil demais para se aplicar
a ele, e disseram: “Quem julgas que é este, que até o vento e o mar lhe
obedecem?” (Mc 4:38, 40-41).
Do outro lado do mar, eles entraram na região gentia dos gerasenos.
Com vívidos detalhes, Marcos conta que Jesus encontrou um homem que
incorporava a força destrutiva do poder demoníaco. Como antes, o espírito
do mal reconhece-o como “Jesus, Filho de Deus Altíssimo” (Mc 5:7), e
apresenta-se com o nome de Legião (grande unidade do exército romano)
porque muitos espíritos o possuíam. Sem qualquer esforço, Jesus expulsou
o exército de demônios e lançou-os em uma vara de porcos – acomodando
convenientemente espíritos imundos em animais imundos. Os habitantes do
território tiveram tanto medo do poder de Jesus que lhe pediram para
retirar-se dali. Mas o homem curado tornou-se o primeiro mensageiro de
Jesus entre os gentios, contando a todos o que Deus fizera por ele através de
Jesus.

Mas Jesus, tendo ouvido o que eles falavam, disse ao príncipe da


sinagoga: Não tenhas medo. Crê somente. MC 5:36

J esus retornou ao território judeu e encontrou duas situações onde ele era
necessário: uma questão de vida e morte, e um tipo de contaminação
ritual (que é como uma morte religiosa perpétua). Em Marcos, há a
narrativa das circunstâncias com muito mais detalhes que em Mateus e
Lucas.
Jairo, um líder da sinagoga, implorou a Jesus que fosse com ele e
curasse a filha à beira da morte. Jesus logo seguiu Jairo, acompanhado por
uma multidão de gente, mas foi interrompido em sua missão urgente por
uma mulher na multidão que lhe tocou a túnica. A mulher sofria de uma
hemorragia constante que, segundo a lei religiosa, a tornava ritualmente
contaminada e a excluía de todos os ritos de devoção. Deus trabalhou
através de Jesus e, quando ela o toca, fica imediatamente curada. Ele sente
o que aconteceu e insiste em identificar a mulher, elogiando então sua fé,
que vencera seu medo e fizera-a agir.
Mas o atraso parece trágico quando mensageiros anunciam que a filha
de Jairo havia morrido. Contudo, mesmo o poder da morte não arrefece
Jesus. Para os outros, a morte é o fim da esperança, mas para ele não é mais
que um sono do qual ele pode acordar a menina com uma palavra.

Mas Jesus lhes dizia: Um profeta só deixa de ser honrado na sua


pátria, e na sua casa, e entre os seus parentes. MC 6:4

O poder demoníaco, o sofrimento físico incurável, e até a morte – nada


podia impedir a força de Deus agindo em Jesus. Mas os incrédulos são
outra história. Contra eles, Jesus recusa-se a impor sua vontade. Quando
volta para a sinagoga de sua cidade natal, Nazaré (embora Marcos não
mencione o nome da cidade em seu evangelho), a familiaridade das pessoas
com o rapaz fez com que desconfiem dele. Jesus não passava de um
carpinteiro local, cuja mãe, irmãos e irmãs elas conheciam, e
escandalizaram-se quando ele afirmou seu ensinamento. Jesus, claro, não
podia realizar suas obras milagrosas em Nazaré sem sentir que se estava
impondo aos seus concidadãos, e recusou-se a ter tal atitude. Ele entendia
bem os sentimentos dos conterrâneos por ele, mas mesmo assim ficou
admirado com o nível de sua incredulidade.
Depois que os discípulos passaram pela experiência dos ensinamentos
de Jesus e testemunharam o alcance total de sua autoridade e da reação das
pessoas a ele, Jesus envia os 12 apóstolos divididos em pares a aldeias na
Galileia. Ordenou-lhes que não levassem recursos a não ser a mensagem e o
poder para curar que ele lhes dava.
Para assinalar o intervalo, enquanto os discípulos estavam viajando,
Marcos conta os fatos detalhados que levaram à decapitação de João
Batista. A promessa de Herodes Antipas à filha vingativa de sua mulher
impele-o a oferecer “num prato a cabeça de João Batista” (Mc 6:25). A
culpa de Herodes levou-o a temer a identidade daquele Jesus de que ouvira
falar e a concluir que ele era João ressurgido dos mortos.

E ao desembarcar viu Jesus uma grande multidão de povo, e teve


compaixão deles, porque eram como ovelhas que não têm pastor; e
começou a ensinar-lhes muitas coisas. MC 6:34

A o voltarem de sua missão, os 12 tinham muito o que partilhar com


Jesus, e ele tentava afastá-los da contínua pressão da multidão para
que pudessem descansar. A privação das pessoas não seria negada, porém,
e, antes que Jesus e seus discípulos conseguissem chegar a um lugar
isolado, uma multidão de gente que os viu partir correu para lá e chegou
antes deles. Jesus respondeu aos pedidos deles não com frustração, mas
com compaixão, e dividiu com todos sua mensagem do amor de Deus.
Milhares esforçavam- -se por ouvir durante horas até o dia começar a
escurecer.
Apesar de toda a experiência que tiveram em suas missões, os
discípulos só viam a situação de uma multidão faminta como um desastre
ameaçador e exortam Jesus a mandá-la embora. Sabiam que alimentar toda
aquela gente exigiria mais da metade do que ganhavam em um ano, e mal
tinham pão e peixe para alimentar dois ou três deles.
Mas Jesus percebe a situação pelo prisma do poder de Deus, ilimitado
pelos recursos existentes. Com Deus, os cinco pães e os dois peixes
disponíveis tornam-se fartura para as mais de cinco mil pessoas.
Por fim, ele mandou os discípulos de barco para a outra margem do
lago, dispensou a multidão e encontrou algumas horas sozinho para orar. De
madrugada, ele viu os discípulos ainda no lago e saiu andando em direção a
eles sobre as águas. Os discípulos, apesar de terem visto coisas espantosas
antes, continuaram achando impossível aceitar aquele fato
extraordinariamente milagroso. Seus pensamentos os remeteram a medos de
fantasmas da infância, e só a paz de Jesus dominou o pavor que eles
sentiam. A luta para crer, pensar e ver em novos padrões é profundamente
difícil.

Não há coisa fora do homem que entrando nele o possa manchar,


mas as que saem do homem, essas são as que fazem imundo ao
homem. MC 7:15

O s fariseus e outros líderes religiosos se reagruparam para desafiar


Jesus mais uma vez. Esses homens levavam muito a sério as
regulamentações de purificação do templo e tentaram estabelecer um
padrão de normas de higiene ritual para muitas situações da vida
quotidiana. Para eles, essas práticas expressavam uma rigorosa devoção a
Deus, uma das quais Jesus e seus discípulos pareciam escarnecer. Quando
interpelam Jesus sobre a questão, ele diz- -lhes que entenderam errado o
que Deus quer e substituíram pela tradição de mãos puras o mandamento
central de Deus, a pureza do coração. A rigorosa devoção deles era mais
aparente que real, observava Jesus. Quando pareciam estar devotando seus
recursos a Deus, ele afirmava, estavam na verdade negando esses recursos
aos pais e, desse modo, desobedecendo a um dos Dez Mandamentos.
Jesus chegou a declarar que nada que venha de fora, que entre no
homem, pode causar qualquer impureza que tenha importância espiritual.
Só os males que brotam do coração humano contaminam de verdade. Esta
declaração radical é a base para a rejeição posterior do sistema de
purificação ritual adotado pelo Cristianismo.
Da Galileia, Jesus viajou rumo ao norte para as regiões de gentios ao
redor de Tiro e Sidônia. Mesmo lá, sua reputação o precedera. Uma mulher
siro-fenícia recusou-se a ser dissuadida pelo desejo de privacidade de Jesus
com seus discípulos. Ele se admirou com sua tenacidade e humildade, e
curou sua filha de seu sofrimento.
Ao voltar para casa, ele visitou a liga de cidades orientais conhecida
como Decápole, onde curou outros enfermos, entre eles um surdo. As
pessoas ficavam cada vez mais admiradas, dizendo: “Ele tudo tem feito
bem” (Mc 7:37).

E pôs-lhes Jesus um preceito, em que dizia: Vede bem, e acautelai-


vos do fermento dos fariseus, e do fermento de Herodes. MC 8:15

M arcos quis mostrar pelo exemplo dos discípulos a tremenda


dificuldade que sentem os seres humanos de aprender a pensar de
uma forma que leve verdadeiramente em conta o poder de Deus, e também
de confiar nesse poder. Repetidas vezes, ele revela que os padrões de
pensamento dos discípulos se embaraçam nos preconceitos e atitudes
triviais dos seres humanos. Um dos mais impressionantes exemplos usados
por ele é ter alimentado os quatro mil (Mc 8:1-10) logo em seguida ao que
aconteceu anteriormente com os cinco mil, outra ocasião em que foi saciada
a fome de uma multidão. Embora já houvessem visto Jesus alimentar um
grande número de pessoas com recursos parcos, os discípulos continuaram
não conseguindo alcançar além de seu próprio senso de fraqueza e limitação
para imaginar e confiar no poder de Deus. Jesus possuía este poder e não
produzia nada além do necessário.
A autoridade dele na palavra e na ação foi demonstrada repetidas vezes,
e, no entanto, alguns fariseus não a levaram em conta, pedindo-lhe algum
prodígio especial do céu para provar seu prestígio como profeta. Mas Jesus
se recusou categoricamente a ter tal atitude e deixou-os, embarcando com
os discípulos para a outra margem do lago.
Jesus adverte os discípulos contra o fermento dos fariseus e de Herodes
– isto é, a influência insidiosa deles. Na verdade, os discípulos se
esqueceram de levar pão suficiente e acharam que Jesus tinha percebido.
Mais uma vez, Marcos enfatiza a dificuldade da transformação deles.
“Tendo olhos não vedes?” (Mc 8:18), perguntou-lhes Jesus. A cura gradual
de um cego logo depois simboliza o processo passo a passo pelo qual eles
devem passar para ver o mundo com novos olhos.

E começou a declarar-lhes que importava que o Filho do homem


padecesse muito, e que fosse rejeitado pelos anciãos, e pelos
príncipes dos sacerdotes, e pelos escribas, e que fosse entregue à
morte: e que ressuscitasse depois de três dias. MC 8:31

U m passo importante na transformação dos discípulos foi um


acontecimento perto da fonte do rio Jordão, quando viajavam com
Jesus. Ele primeiro pergunta sobre a ignorância popular referente à sua
identidade, mas depois dirige a questão em termos diretos aos discípulos:
“E vós outros quem dizeis que sou eu?” Pedro responde simples e
profundamente: “Tu és o Cristo” (Mc 8:29).
Pela primeira vez no Evangelho de Marcos, um ser humano normal
reconhece e confessa a identidade de Jesus. Embora seja visivelmente um
enorme passo, a severidade e a falta de entusiasmo da reação de Jesus
foram surpreendentes.
Ele logo começou a declarar algo totalmente inesperado, isto é, que
precisava padecer muito, ser entregue à morte e ressuscitar. Pedro acabara
de afirmar sua convicção de que Jesus era o Messias, título que, para a
maioria dos judeus, significava um rei ungido que iria restaurar a nação de
Israel, sentado no trono de Davi, e derrubar o governo gentio. As
declarações de Jesus sobre sofrimento e morte pareciam contradizer seu
papel como Messias, e Pedro protestou.
Jesus respondeu-lhe com os termos mais fortes possíveis, mostrando
que ele e os outros discípulos apenas começaram a entender a maneira
inesperada que Deus escolheu para enviar o tão esperado Messias. Na
verdade, Jesus afirmava que a marca de seu sofrimento precisava ser a de
todo discípulo: “Se alguém me quer seguir, negue-se a si mesmo: e tome a
sua cruz, e siga-me.” (Mc 8:34)
E lhes apareceu Elias com Moisés e estavam falando com Jesus.
MC 9:4

E nquanto Pedro e os outros tentavam reconciliar suas próprias ideias


sobre o Messias com a previsão de Jesus e seu sofrimento e morte
próximos, ele acrescentou outro ingrediente à luta mental e espiritual dos
discípulos. Cerca de uma semana após a confissão de Pedro, Jesus levou os
discípulos mais íntimos – Pedro, Tiago e João – ao cume de um monte
afastado. Lá eles veem Jesus em uma glória resplandecente, sobrenatural,
falando com Elias e Moisés, representantes dos profetas e da lei. Foram,
então, tomados de medo e não sabiam o que significava aquela visão. Mas
Pedro tentou interpretá-la. Jesus, o rabi deles, deveria ter uma posição igual
à de Moisés e Elias – de supremo louvor.
Mas o próprio Deus interveio para mostrar o entendimento ainda
confuso de Pedro. Jesus deve ficar muito acima de Moisés e Elias: “Este é o
meu filho diletíssimo: Ouvi-o.” Ao descerem a montanha, as ordens de
Jesus foram para que guardassem segredo da visão até que ele “houvesse
ressurgido dos mortos” (Mc 9:6, 9), declaração que só aprofunda as
questões que ocupavam suas mentes.
Quando os quatro se reuniram aos outros discípulos, constataram que
eles não haviam conseguido expulsar um espírito que causava graves
convulsões em um jovem. O pai dele se voltou para Jesus: “Se tu podes
alguma coisa, ajuda-nos, tem compaixão de nós.” A resposta de Jesus
expressa a confiança em Deus que os discípulos acham tão difícil entender:
“Se tu podes crer, tudo é possível ao que crê.” O grito angustiado do pai
manifestou, por sua vez, a difícil jornada humana à verdadeira fé: “Sim,
Senhor, eu creio! Ajuda tu a minha incredulidade!” (Mc 9:22-23).

E sentando-se chamou aos doze, e lhes disse: Se algum quer ser o


primeiro, será o último de todos, e o servo de todos. MC 9:34

J esus sabia que seus discípulos precisavam ser submetidos a uma grande
transformação em termos de pensamento, e começa a concentrar todos os
seus esforços em ensiná-los pessoalmente. A transformação tinha de surgir
da compreensão que teriam do sofrimento dele. E assim, pela segunda vez,
Jesus deu-lhes uma mostra de sua futura traição, morte e ressurreição. Mas
unir em seus corações o conceito de Messias com traição, sofrimento e
morte exigia-lhes repensar tudo que achavam que sabiam sobre como Deus
salvaria seu povo: “Mas eles não entendiam o discurso: e tinham medo de
lho perguntar” (Mc 9:31).
O que eles entendiam era a glória do Messias, e discutiam entre si qual
deles teria as maiores posições no reino vindouro. Mais uma vez, Jesus
tentou mudar-lhes a maneira de pensar. Tomou nos braços um menino para
mostrar que a grandeza não poderia ser encontrada no poder e na posição.
Quando se acolhe uma criança desamparada, serve-se a Jesus e a Deus, que
o enviou.
Jesus insistia em que não pensassem em si como um círculo fechado
que fazia milagres em seu nome: “Porque quem não é contra nós é por nós.”
Na verdade, eles precisavam ter muito cuidado para não corromper a fé
cada vez mais frágil de “um destes pequenos que creem em mim” (Mc 9:39,
41). Do mesmo modo, em termos mais fortes possíveis, Jesus adverte-os a
cortar qualquer motivo em si mesmos que bloqueasse ou destruísse sua fé
em Deus e impedisse-os de entrar em seu reino.

E tendo saído Jesus para se pôr a caminho, veio correndo um


homem, e com o joelho em terra diante dele, lhe fez esta súplica:
Bom Mestre, que devo eu fazer para alcançar a vida eterna? MC
10:17

Q uando o ministério de Jesus na Galileia chega ao fim, ele viaja com os


discípulos para a região da Judeia (controlada pelos romanos), no sul,
e da Pereia, a leste do Jordão (controlada por Herodes Antipas). Mais uma
vez, multidões juntaram-se em volta do Messias enquanto ele pregava.
Quando os fariseus lhe perguntavam sobre divórcio, ele os lembrava do
desígnio original de Deus para o casamento e insistia em que nenhuma
união marital poderia ser dissolvida sem que se estivesse cometendo
pecado. Quando pais se aproximavam com os filhos para Jesus abençoá-los,
os discípulos despertavam a raiva do Mestre ao impedir a aproximação das
crianças. Eles já haviam esquecido o que ele lhes ensinara e o isolavam
daqueles que eram os habitantes certos do reino de Deus.
E ao jovem rico que se ajoelha diante dele e pergunta o que precisa
fazer para alcançar a vida eterna, Jesus põe-se a relacionar instruções
convencionais sobre obediência aos mandamentos de Deus. Mas logo
percebe o único ídolo que escravizava a vida do jovem – sua riqueza. E
indica-lhe o caminho da liberdade, aconselhando-o a vender seus bens e
segui-lo. Quando o jovem parte desgostoso, porque era muito rico, Jesus
aproveita a oportunidade para ajudar os discípulos a entenderem aquele
episódio. Mais uma vez, seus valores têm de sofrer uma reviravolta. A
riqueza não é um selo da aprovação de Deus, mas um obstáculo quase
intransponível para entrar no reino de Deus.
Quando chega a Jerusalém, Jesus fala aos discípulos pela terceira vez de
seu padecimento e morte próximos. Mais uma vez, contudo, os discípulos
só conseguiram captar a esperança de glória futura. Tiago e João pedem que
lhes conceda os lugares mais honrosos no glorioso reino por vir. Jesus
repele o pedido, exortando os discípulos a seguir seu exemplo: “O Filho do
homem não veio a ser servido, mas a servir, e a dar a sua vida para redenção
de muitos” (Mc 10:45).

Que queres tu que eu te faça? O cego pois lhe respondeu: Mestre,


que eu tenha vista. Então lhe disse Jesus: Vai, a tua fé te sarou. E
no mesmo ponto viu, e o foi seguindo pelo caminho. MC 10:51-52

N o estágio final de sua fatídica jornada a Jerusalém, Jesus cura um


mendigo cego chamado Bartimeu ao sair de Jericó – cura que em
alguns aspectos simboliza a viagem do crente ao discipulado. Bartimeu
grita por misericórdia e chega a Jesus apesar de muitos obstáculos. Sua fé
dá-lhe uma nova visão, e ele imediatamente segue o Mestre.
Quando Jesus chega às imediações da cidade de Jerusalém, está
próxima a festa da Páscoa e as pessoas têm expectativas messiânicas. Ele
envia dois de seus discípulos a uma aldeia para trazer um jumentinho preso
que nunca fora montado. Jesus queria atiçar o imaginário das pessoas,
encenando a famosa profecia em Zacarias 9:9, de que o rei messiânico de
Jerusalém chegaria triunfante e humilde, cavalgando não um imponente
cavalo de guerra de rei mas um humilde jumento.
No domingo antes da Páscoa, ao verem Jesus chegar montado no
jumento à Cidade Santa, as pessoas reagiram com entusiasmo.
Reconheceram a mensagem profética e enfileiraram-se na estrada adiante e
atrás dele, e todos lhe gritaram vivas, abençoando o que chegou em nome
do Senhor na renovação próxima do reino de Davi. Mais tarde, naquele dia,
Jesus chegou afinal ao portão oriental da cidade, que abria para o
esplêndido complexo do templo, construído por Herodes, o Grande.
Marcos, em contraste com Mateus, indica que Jesus espera até o dia
seguinte para seu dramático desafio às autoridades sacerdotais.

Chegaram pois a Jerusalém. E, havendo entrado no Templo,


começou a lançar fora os que vendiam e compravam no Templo, e
derrubou as mesas dos banqueiros, e as cadeiras dos que vendiam
pombas. MC 11:15

M arcos compõe a história da volta de Jesus a Jerusalém com um


incidente que ajuda, em termos simbólicos, a mostrar o sentido de
suas ações no templo. Na manhã de segunda-feira, ele vai até uma figueira e
constata que existem apenas folhas. E condena-a, dizendo que não se
comerá mais seus frutos. Também condena a aristocracia religiosa em volta
do sumo sacerdote Caiafás. O elaborado ritual do templo oculta a falta de
verdadeira devoção e serviço a Deus.
Jesus entra no templo naquela manhã como um antigo profeta cheio de
justa indignação quanto ao comércio corrupto que transformara a “Casa de
Deus” num “covil de ladrões” (Mc 11:17). Irado, ele enxota os compradores
e vendedores. Os sacerdotes principais achavam intolerável sua interrupção
de um dia inteiro de trabalho no templo e imediatamente começam a tramar
meios para matá-lo.
Na terça-feira de manhã, os discípulos encontram a figueira seca até as
raízes – este era ao mesmo tempo um sinal profético do destino da
aristocracia do templo e uma aula prática do poder da fé em Deus para os
discípulos. Quando Jesus retorna ao templo, os líderes religiosos pedem-lhe
provas de autoridade profética para suas ações. Mas Jesus interpela-os com
uma pergunta relacionada à avaliação deles sobre João Batista, a fim de
mostrar-lhes que eles não tinham legitimidade alguma para receber tais
provas. Condenou-os categoricamente, contando à multidão presente uma
parábola sobre lavradores que eram assassinos.

Então se chegou um dos escribas, que os tinha ouvido disputar e,


vendo que lhes havia respondido bem, lhe perguntou qual era o
primeiro de todos os mandamentos. MC 12:28

J esus passou a terça-feira no templo, pregando e respondendo a perguntas.


Os fariseus e partidários de Herodes tentaram usar uma questão ardilosa
para pegar Jesus em alguma afirmação incriminatória ou impopular. O
feitiço virou contra os feiticeiros, e o Messias desafiou-os a dar mais “a
Deus o que é de Deus” (Mc 12:17).
Depois foi a vez dos saduceus, cuja maioria era de sacerdotes
aristocráticos que não acreditavam na ressurreição dos mortos. Por isso,
fizeram uma pergunta sobre uma mulher que sobreviveu a sete maridos,
pergunta destinada a ridicularizar a ideia da ressurreição dos mortos. Jesus
ataca-os, dizendo que eles não conhecem as Escrituras nem o poder de Deus
(Mc 12:17).
Por fim, um professor de lei suscita uma questão mais séria, clássica,
relacionada ao mais importante mandamento da lei. Sem hesitação, Jesus
citou como mais importante o mandamento de amar ao Senhor Deus com
todo o teu ser, seguido pelo de amar o próximo como a ti mesmo. O escriba
concorda, e Jesus elogia-lhe a percepção: “Não estás longe do reino de
Deus” (Mc 12:34).

Quando porém vós virdes estar a abominação da desolação, onde


não deve estar, o que lê, entenda: então os que estiverem em
Judeia, fujam para os montes. MC 13:14

Q uando Jesus deixa o templo pela última vez, no entardecer daquela


terça-feira, seus discípulos galileus continuam entusiasmados com a
magnificência do prédio que Herodes construíra. Na verdade, era um dos
maiores e mais opulentos complexos religiosos no mundo greco-romano.
Jesus, contudo, prevê o arrasamento do templo, fato que ocorreu em 70
d.C., na época em que os exércitos destruíram Jerusalém. Descreve-se a
profanação romana do lugar sagrado como “a abominação da desolação”, e
é evidente que estava acontecendo ou acontecera pouco tempo antes de
Marcos escrever seu Evangelho, pois ele acrescentou: “o que lê, entenda”.
As previsões de Jesus se estendem muito além da destruição do templo,
da futura missão dos discípulos e sua perseguição, do surgimento de falsos
Cristos e profetas, e vão até o advento do Filho de Deus com poder e glória
para congregar seus seguidores de todas as partes da terra. Só Deus saberia
quando iriam ocorrer esses fatos, insiste Jesus, e por isso os discípulos
deveriam ficar atentos. “O que eu porém vos digo a vós, isto digo a todos:
Vigiai” (Mc 13:37).

E quando eles estavam à mesa e ceavam, disse-lhes Jesus: Em


verdade vos digo, que um de vós que comigo come, me há de
entregar. MC 14:18

J esus passou o dia seguinte em Betânia e participou de um banquete na


casa de um homem chamado Simão, o leproso. O banquete tornou-se um
importante acontecimento no momento em que chega uma mulher com um
vaso de alabastro cheio de precioso bálsamo e, sem uma palavra, derrama
todo o conteúdo sobre a cabeça de Jesus. Esta misteriosa ação não possuía
nenhum significado claro. O que queria dizer esse desperdício, então?
Alguns dos comensais julgaram tratar-se de uma extravagância que
demonstrava indiferença pelos pobres. Mas Jesus defendeu a mulher,
interpretando seu ato como se ela embalsamasse “o corpo para a sepultura”
(Mc 14:8). Pois já em Jerusalém, seus inimigos encontraram um meio de
levar sua morte a cabo. Judas Iscariotes procurou-os para oferecer a traição
de Jesus em troca de dinheiro.
Na quinta-feira, fazem-se os preparativos para a festa da Páscoa que
começa ao pôr do sol. Quando Jesus chega com os discípulos a um salão
grande, no segundo andar de uma casa em Jerusalém, é compreensível que
o grupo estivesse animado. Ele entrara na cidade triunfante e enfrentara
com êxito todos os desafios durante a semana. Portanto, é um golpe
esmagador quando começa anunciando que um dos discípulos ali vai traí-lo.
Contudo, continua a partilhar a refeição sem identificar o traidor.
Jesus previra repetidas vezes sua morte próxima, mas nesse momento
ele grava seu significado para sempre nos corações dos discípulos. Com
graças a Deus, distribui-lhes pedaços partidos do pão. “Tomai”, diz, “este é
o meu corpo”. E depois toma um cálice de vinho e serve a todos: “Este é o
meu sangue do Novo Testamento”, diz, “que será derramado por muitos”
(Mc 14:22, 24). Tais presentes simbólicos lhes são dados não por sua força
ou mérito, mas em meio às suas fraquezas. Todos se desgarrarão, avisa-lhes
Jesus; até Pedro iria negá-lo três vezes antes do dia raiar.
E disse: Abba, Pai, todas as coisas te são possíveis; traspassa de
mim este cálice, porém não se faça o que eu quero senão o que tu
queres. MC 14:36

J esus atravessa o vale a leste de Jerusalém e sobe o monte das Oliveiras


até um lugar chamado Getsêmani, que quer dizer “lagar de olivas”. Sente
uma tristeza mortal e extrema angústia com a perspectiva da dor espiritual
que enfrenta. Em uma oração expressa o pavor, dirigindo-se a Deus como
“Abba”, palavra infantil semelhante a papai, e pedindo libertação. Mas
nenhuma voz do céu intervém. Erguendo-se da terra onde se prostrara para
orar, Jesus encontra os discípulos adormecidos.
Em uma rápida sequência, chega Judas, o traidor, com uma tropa de
gente armada. Jesus é preso e levado à residência do sumo sacerdote.
Marcos descreve um julgamento noturno, em que o sumo sacerdote preside
uma busca de testemunhas contra Jesus, mas não encontra sequer duas que
concordassem. Por fim, frustrado, o sumo sacerdote pergunta diretamente a
Jesus: “És tu o Cristo, Filho de Deus bendito?” E Jesus responde-lhe
apenas: “Sou” (Mc 14:61-62). Bem próximas às palavras exatas que abrem
o Evangelho de Marcos, passam então a ser a acusação que condena Jesus à
morte na cruz por blasfêmia.
No mesmo momento em que Jesus confessa sua identidade e é
condenado, Pedro, no pátio abaixo, nega sua identidade como seguidor de
Cristo. Também condenado por sua própria consciência, ele “começou a
chorar” (Mc 14:72).

E à hora de noa deu Jesus um grande brado, dizendo: Eli, Eli,


lamma sabacthani? que quer dizer: Deus meu, Deus meu, por que
me desamparaste? MC 15:34

N a manhã de sexta-feira, o veredicto urdido pelo sumo sacerdote é


ratificado, e Jesus enviado a Pôncio Pilatos, o prefeito romano. Pilatos
tem apenas uma preocupação, saber se o judeu diante dele está tentando
derrubar o governo romano e tornar-se um rei. Quando Jesus não se
defende, o prefeito aparentemente conclui que, embora ele não represente
ameaça alguma a Roma, sua popularidade é uma ameaça aos líderes do
templo. Pilatos tenta manipular a situação, usando uma anistia tradicional
de Páscoa pela qual o povo ganha a soltura de um prisioneiro romano. Ele
espera que o povo escolha Jesus e condene um rebelde político chamado
Barrabás. O povo, contudo, odeia o governo romano e não hesita em
escolher a libertação de Barrabás. Sela-se então o destino de Jesus.
Os fatos que sucedem são: os soldados romanos açoitam Jesus,
escarnecem dele como rei dos judeus e levam-no para Gólgota (“lugar do
calvário”). Às 9 horas da manhã, Jesus é crucificado. Marcos observa
muitos detalhes que reproduzem as palavras das escrituras, entre elas
Salmos 22 e 69. Abandonado por seus seguidores e ali pendurado e despido
na cruz, Jesus sofre insultos e maus-tratos de todos os lados.
Do meio-dia às 3 horas da tarde, um céu enegrecido cobre a terra. Jesus,
então, solta um grito lancinante com palavras tão cheias de angústia e
mistério que Marcos apresenta-as em aramaico antes de traduzi-las para os
leitores: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” As palavras
vêm do primeiro versículo de Salmos 22, mas neste contexto expressa o
profundo sofrimento e abandono espiritual que Jesus sente na cruz, muito
mais doloroso que qualquer dor física. Seu grande brado causa apenas
confusão entre os que se achavam próximos. Quando Jesus morre, porém,
um centurião romano diz, com misteriosa percepção: “Verdadeiramente este
homem era Filho de Deus” (Mc 15:39).

E diziam elas entre si: Quem nos há de revolver a pedra da boca


do sepulcro? Mas olhando viram revolvida a pedra, e era ela muito
grande. MC 16:3-4

U m discípulo rico chamado José de Arimateia pede a Pilatos o corpo de


Jesus, e, como se aproximava o sábado, ele logo o amortalha em um
lençol e deposita-o em um sepulcro. Este processo é observado por várias
mulheres, seguidoras e sustentadoras de Jesus na Galileia, que haviam
viajado com ele para Jerusalém.
Passado o sábado, Maria Madalena, aparentemente a líder do grupo,
chega com duas outras mulheres para cobrir o corpo de Jesus com
especiarias aromáticas, segundo o costume. Ao chegarem ao lugar onde
Jesus estava sepultado, encontram o sepulcro aberto e um jovem de roupas
brancas sentado no lugar em que se estendera Jesus. Ele se dirige a elas com
tranquilizadora calma: “Vós buscais a Jesus Nazareno, que foi crucificado.
Ele ressurgiu, já não está aqui.” O jovem de branco instruiu as mulheres
para que dissessem aos discípulos que Jesus iria esperá-los na Galileia e que
“lá o vereis como ele vos disse”. Ao ouvir essas palavras espantosas, as
mulheres saíram correndo da sepultura, mas a “ninguém disseram coisa
alguma, porque estavam possuídas de medo” (Mc 16:6-8).
Com essas surpreendentes revelações, chega ao fim o texto de Marcos.
São desconcertantes a maneira como deixam a história em suspenso, por
vezes, no meio da frase. Tal característica fez com que se realizassem várias
tentativas diferentes na Antiguidade para acrescentar um final adequado ao
Evangelho. Na verdade, muitos estudiosos sugeriram que a conclusão
original de Marcos foi de algum modo perdida. O conhecido final (Mc
16:9-20) começou a ser acrescentado rotineiramente ao texto de Marcos só
depois do século IV d.C.
Se Marcos encerrou seu Evangelho com o versículo 8, a conclusão seria
apenas o exemplo final da compreensão errônea e da luta que
caracterizaram os seguidores de Jesus em toda a narrativa. Não foi a força
nem a coragem deles, mas a autoridade de Jesus e o poder de Deus, que
teriam feito uma semente de mostarda brotar e gerar uma grande planta. E
assim foram capazes de alimentar milhares de pessoas com pouco mais que
o almoço de uma família, construindo o reino de Deus em meio às
fraquezas dos frágeis mensageiros humanos. Mas a própria existência do
Evangelho de Marcos presta testemunho do fato de que o poder de Deus é
suficiente. “As boas novas de Jesus Cristo, o Filho de Deus” floresceram e
cresceram.
• Evangelho Segundo São Lucas •
Dos quatro evangelhos, apenas o de Lucas é acompanhado de um segundo
volume: os Atos dos Apóstolos. Escritos pelo mesmo autor, os dois livros
revelam uma esplêndida visão de como o Espírito de Deus agiu na vida de
Jesus e dos primeiros crentes, para levar ao mundo a mensagem de
salvação. Juntos, o Evangelho de Lucas e os Atos formam cerca de um
quarto do Novo Testamento. Embora nenhuma destas obras diga o nome do
autor, os líderes eclesiásticos do século II atribuíram ambos os livros a um
antigo cristão a quem Paulo descreveu como “o muito amado Lucas,
médico” (Col 4:14). Escrito provavelmente na década de 80 do século I
d.C., a obra trata da Igreja em geral e não reflete as preocupações de um
grupo particular, nem a situação de um grupo geográfico específico.
No prólogo (Lc 1:1-4), Lucas descreve claramente seu empreendimento.
Primeiro, observa que foram “muitos” os que se dedicaram a pôr em ordem
a narrativa dos relatos da primeira geração de crentes que “viram com seus
próprios olhos” o nascimento do Cristianismo. A comparação com os
outros dois Evangelhos Sinópticos indica que Lucas certamente leu pelo
menos um exemplar de Marcos e partilhou com Mateus uma coletânea de
ensinamentos de Jesus, às vezes chamada “Q”, ou Quelle, palavra alemã
para “fonte”. Lucas também teve acesso a várias tradições extras, orais e
escritas, sobre Jesus, entre elas histórias de seu nascimento, aparições pós-
ressurreição e outros fatos de sua vida.
A narrativa de Lucas mostra que Deus ordenara esses fatos do início ao
fim para que o cristão, como Teófilo (que quer dizer “o que ama Deus”),
tivesse certeza da verdade deles. Neste quadro global, o Evangelho de Lucas
tece uma rica tapeçaria de temas relacionados, como a importância da
oração, a orientação do Espírito Santo, a preocupação de Deus com os
pobres, os perigos da riqueza e da cobiça, as discípulas, a importância de
Jerusalém e a compaixão de Cristo.
E estando Isabel no sexto mês, foi enviado por Deus o anjo Gabriel a
uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um
varão que se chamava José, da casa de Davi, e o nome da virgem era
Maria. LC 1:26-27

L ucas faz um prefácio de sua história a respeito do milagroso nascimento


de Jesus com um relato do nascimento de João Batista. Este foi muito
parecido com o de vários outros no Antigo Testamento – a saber, Isaac, Jacó,
Sansão e Samuel. Como ocorreu com aqueles nascimentos, Deus intervém
para dar um filho a uma mulher que antes era estéril, criando assim um líder
para seu povo. O anjo Gabriel aparece ao sacerdote Zacarias e diz-lhe que
seu filho cumpriria o papel de Elias, profetizado em Malaquias 4:5, que
retornaria com a missão de preparar para o Senhor um povo perfeito.
Embora Zacarias duvide do anjo e fique mudo como punição, a idosa Isabel
de fato engravida.
Seis meses depois, Gabriel aparece mais uma vez para anunciar um
nascimento, desta vez a uma jovem na Galileia, chamada Maria, que ainda
era uma virgem solteira e que, portanto, devia contar com vinte e poucos
anos. Gabriel prediz que o nascimento de seu filho vai significar o início de
uma nova era. Como virgem, será concebida pelo poder do Espírito Santo e
dará à luz um menino que herdará o trono de seu pai Davi, a ser chamado
Filho de Deus. Maria responde com fé e submissão: “Eis aqui a escrava do
Senhor, faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1:38).
Gabriel também fala da gravidez de Isabel a Maria, e Maria sai às
pressas para a Judeia a fim de visitar sua parenta. Assim que a vê, Isabel
reconhece Maria como “a mãe de meu Senhor”; até o bebê em seu ventre
“deu saltos de prazer” (Lc 1:43, 44). Ela responde com palavras poéticas
chamadas tradicionalmente “O Magnificat”: “A minha alma glorifica o
Senhor. E o meu espírito se alegrou por extremo em Deus, meu Salvador”
(Lc 1:46-47). Baseadas em grande parte na oração de Ana, em 1 Samuel
2:1-10, as palavras de Maria revelam sua profunda compreensão do que
Deus está fazendo por ela e seu povo.
De modo semelhante, quando João nasce e é batizado com este nome
por seu pai, Zacarias comemora com poesia o grande destino do filho como
profeta.

Não temais: porque eis aqui vos venho anunciar um grande gozo,
que o será para todo o povo! E é que hoje vos nasceu na cidade de
Davi o Salvador, que é o Cristo Senhor. LC 2:10-11

M ateus e Lucas falam do nascimento de Jesus, mas com ênfases


profundamente diferentes. Mateus narra as revelações ao esposo de
Maria, José, a vinda dos reis magos, a matança por Herodes das crianças
inocentes de Belém e a fuga da família para o Egito. Lucas descreve a visita
de Gabriel a Maria, o recenseamento romano que levou Maria e José para
Belém, o recém-nascido deitado em uma manjedoura porque a estalagem
estava cheia e o anúncio angelical aos pastores.
A ênfase de Lucas é dada à natureza humilde do nascimento de Jesus. Os
augustos e poderosos aparecem apenas no édito do recenseamento do
imperador que, ironicamente, cumpre a profecia de que o Messias viria da
cidade natal de Davi. Em poucas palavras, Lucas dá a entender que Jesus
nasceu em um estábulo, pois foi posto em uma manjedoura. O anúncio do
nascimento do Messias e Salvador não é transmitido aos poderosos do
mundo, mas aos pastores, que partem para encontrar o Senhor em forma de
menino em um estábulo.
Maria e José passaram mais de um mês na Judeia, cumprindo os ritos
exigidos pela lei para a circuncisão de Jesus, após oito dias, e a purificação
de Maria, 33 dias depois do nascimento de seu filho (Lev 12:3, 4-8). Levam
então Jesus ao templo em Jerusalém como o filho primogênito para oferecer
o sacrifício da redenção. Sua oferenda de duas rolas ou dois pombinhos
indica que eles são pobres demais para consagrar um cordeiro. No templo,
um velho chamado Simeão, que recebera a promessa de Deus de que não
morreria antes de ver o Messias, louva a criança como o cumprimento da
palavra de Deus, mas adverte Maria de que ele também vai trazer sofrimento
e este será “uma espada que traspassará a tua mesma alma”. De modo
semelhante, Ana, profetisa de idade avançada que mora no templo, dá graças
a Deus e fala de Jesus como um sinal “da redenção de Israel” (Lc 2:35, 38).
E depois Lucas narra que Maria e José levam Jesus para casa em Nazaré.

E ele lhes respondeu: Para que me buscáveis? não sabíeis que


importa ocupar-me nas coisas que são do serviço de meu Pai? LC
2:49

A única história sobre a vida de Jesus entre o nascimento e o batismo, já


com quase trinta anos, realizado por João Batista, é narrada em Lucas.
Casal devoto, Maria e José tinham o hábito de ir todos os anos a Jerusalém
para comemorar a Páscoa. Aos 12 anos, Jesus aceita a responsabilidade de
obedecer à lei sozinho e não apenas acompanhar os pais. A história de Jesus,
que some da companhia de Maria e José e é encontrado três dias depois
entre os doutores no templo, destaca a precoce compreensão que o jovem
tem das escrituras e da tradição, além da consciência da responsabilidade
perante Deus: “Não sabíeis que importa ocupar-me nas coisas que são do
serviço de meu Pai?” Mas, com a humildade de uma criança, ele volta para
Nazaré com a família e cresce “em sabedoria, e em idade, e em graça diante
de Deus e dos homens” (Lc 2:52).

Veio a palavra do Senhor sobre João, filho de Zacarias, no deserto.


E ele foi discorrendo por toda a terra do Jordão, pregando o
batismo de penitência para remissão de pecados. LC 3:2-3

P revendo o início do ministério de Jesus, Lucas, assim como os outros


três evangelistas, descreve a obra de João Batista. Em frases que
lembram as introduções dos livros proféticos no Antigo Testamento, Lucas
dá a data aproximada (cerca de 26 d.C.) de quando João recebe sua
convocação, enfatizando não apenas as palavras ardentes e proféticas de
João, mas também suas instruções sobre compaixão e honestidade.
Descrevendo o fim do ministério de João Batista e seu encarceramento por
Herodes Antipas, e antes de contar o batismo de Jesus, Lucas sugere ao
mesmo tempo a ligação entre Jesus e João, e a separação que aconteceu
entre eles.
Ao entoar uma prece depois do batismo, Jesus recebe a manifestação da
chegada do Espírito Santo como uma pomba e a aclamação de Deus a
clamar do céu: “Tu és aquele meu Filho especialmente amado; em ti é que
tenho posto toda a minha complacência” (Lc 3:22).
Lucas conclui sua narrativa dos preparativos para o ministério de Jesus
relatando sua genealogia. Como Mateus, remonta a ancestralidade de Jesus a
Davi e aos patriarcas, mas, de forma diferente da de Mateus, determina uma
linha de descendência não nobre de Davi até Jesus. Lucas também estende
toda a genealogia de Jesus ao passado desde Abraão a “Adão, que foi criado
por Deus” (Lc 3:38).

E foi-lhe dado o livro do profeta Isaías. E quando desenrolou o


livro, achou o lugar onde estava escrito: O Espírito do Senhor
repousou sobre mim, pelo que Ele me consagrou com a sua unção,
e enviou-me a pregar o Evangelho aos pobres. LC 4:17-18

L ucas começa seu relato do ministério de Jesus enfatizando que ele


voltou do Jordão “cheio pois do Espírito Santo” (Lc 4:1) e passou
quarenta dias de jejum no deserto sendo tentado pelo diabo. Como Mateus,
Lucas narra três tentações: satisfação de desejos físicos, luta por poder e
glória e demonstração de orgulho e autoafirmação, ao obrigar Deus a provar
a si mesmo. Jesus descarta cada tentação com uma palavra das escrituras.
O poder do Espírito Santo acompanha-o quando, na Galileia, ele surge
em público, ensinando em sinagogas e sendo bem recebido. Na sinagoga de
Nazaré, que ele frequentava, Jesus lê Isaías 61, proclamando com ousadia
que as palavras estavam sendo cumpridas naquele momento. A princípio,
todos o louvam. Mas, quando ele revela que seu ministério se estenderá
também aos gentios e estrangeiros, as pessoas se enfurecem e tentam matá-
lo. Embora tenha cumprido as profecias da escritura, Jesus derrubou muitas
expectativas populares relacionadas àquelas profecias.
Jesus mudou sua pregação para Cafarnaum, na praia do mar da Galileia,
atraindo grandes multidões.

E logo que acabou de falar disse a Simão: Faze-te mais ao largo, e


soltai as vossas redes para pescar. E respondendo, Simão lhe disse:
Mestre, depois de trabalharmos toda a noite, não apanhamos coisa
alguma: porém sobre a tua palavra soltarei a rede. LC 5:4-5

O admirável mestre e curador estava pronto para arrebanhar discípulos.


Primeiro chama um pescador chamado Simão, cuja sogra ele antes
curara de uma febre. Agora usa o barco de Simão como um púlpito para
pregar às multidões que afluíam a ele. Lição concluída, Jesus diz a Simão
que avance mar adentro e lance a rede em água profunda para um arrastão.
Embora frustrado por uma noite de pesca sem sucesso, Simão obedece a
Jesus. Quando a rede sobe com grande abundância de peixes, Simão
compreende o poder de Jesus. A princípio, fica tão atemorizado que suplica
ao Mestre: “Retira-te de mim, Senhor, que sou um homem pecador.” Mas
Jesus chama Simão e seus companheiros, Tiago e João, filhos de Zebedeu,
para que o seguissem. “Desta hora em diante serás pescador de homens” (Lc
5:8, 10), ele diz aos humildes trabalhadores.
À medida que reúne discípulos realmente fiéis, Jesus continua a
desencadear controvérsias por suas ações. Certa vez, quando um leproso lhe
suplicou que o curasse, ele ignorou a proibição ritual relacionada ao contato
com leprosos. Jesus toca o homem e cura-o. A multidão em volta torna-se
tão imensa que alguns homens chegam a cavar uma abertura no telhado de
uma casa para descer pelo teto um amigo paralisado no leito até o pátio onde
Jesus estava curando os enfermos. Jesus provoca espanto e oposição quando
perdoa os pecados do homem e depois o cura, mostrando, assim, um sinal de
que tinha “sobre a terra poder de perdoar pecados” (Lc 5:24).
Como consequência destes atos, intensifica-se a oposição daqueles que
exigiam obediência rigorosa à lei, principalmente depois que Jesus chama
para que o siga como discípulo um coletor de impostos chamado Levi e
banqueteia com outros cobradores e pecadores. Ele também se recusa a
seguir as práticas religiosas comuns de jejum, defendendo seus discípulos
quando cortam espigas de trigo para serem consumidas no sábado. E ao
curar um homem com a mão atrofiada, diante de um grupo de fariseus e
escribas na sinagoga em outro sábado, seus inimigos passam a buscar um
meio de reprimir o que passou a ser um ministério perigosamente
revolucionário.

E levantando ele os olhos para seus discípulos, dizia: Bem-


aventurados vós os pobres: porque vosso é o reino de Deus. Bem-
aventurados os que agora tendes fome: porque vós sereis fartos.
Bem-aventurados os que agora chorais: porque vós vos rireis. LC
6:20-21

J esus encontrou força para seu ministério passando noites inteiras


entoando preces a Deus. Após uma destas noites, chama os discípulos
para junto de si e nomeia 12 como seus apóstolos, ou emissários enviados
para um trabalho missionário especial. É neste contexto que Lucas narra o
chamado Sermão da Montanha, que também está em Mateus 5-7.
Jesus estava cercado por discípulos e uma enorme multidão que chegou
da Judeia e Jerusalém ao sul, e da região de Tiro e Sidônia ao norte. Nesta
ocasião, seus ensinamentos incluem quatro bênçãos (ou bem-aventuranças)
e quatro maldições que mostram o juízo do Senhor sobre os valores
construídos para a sociedade à sua volta. Os bem-aventurados por Deus, ele
diz, são os pobres, os que têm fome, os que choram e que são os odiados e
excluídos por causa de sua devoção ao Filho do homem. Os que mereciam
maldição, na verdade, seriam os ricos que riem e são louvados pelos
homens.
Jesus convidou os discípulos a praticarem o amor e a caridade,
estendendo estes sentimentos aos que os odiavam e maltratavam e aos seus
inimigos. Amor e caridade têm poder, ele ensinava, não como uma reação
racional ao tratamento justo que nos era dado, mas quando fazemos aos
outros o bem que esperamos que façam a nós: “Amai pois a vossos
inimigos; fazei bem, e emprestai, sem daí esperardes nada... e sereis filhos
do Altíssimo... Sede pois misericordiosos, como também vosso pai é
misericordioso” (Lc 6:35-36).
Jesus exortava a multidão de seguidores a não julgar nem condenar, mas
perdoar e lembrar-se de como era fácil identificar o defeito no outro,
perguntando: “Por que vês tu um argueiro no olho de teu irmão, e não
reparas na trave, que tens no teu olho?” (Lc 6:41). Colocar esses
ensinamentos em ação, explicava Jesus, era como construir uma casa
fundada sobre rocha, tão firme que resistisse à inundação da vida, que a
atingiria com impetuosidade por todos os lados, mas que a deixasse
inabalável.

Ide referir a João o que tendes ouvido, e visto: Que os cegos veem,
os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os surdos ouvem, os
mortos ressuscitam, aos pobres é anunciado o Evangelho: e que é
bem-aventurado todo aquele que se não escandalizar a meu
respeito. LC 7:22-23

J esus sempre provocou reações fortes, negativas e positivas. Um centurião


no exército de Herodes Antipas estabelecera laços estreitos com a
população judia e soube do poder do Messias. Quando um de seus criados
muito estimado adoeceu, ele enviou alguns judeus para pedirem ajuda a
Jesus. Contudo, no momento em que Jesus se aproxima da casa, o soldado
manda-lhe por amigos o recado de que não é digno de uma visita sua, mas
que reconhece o poder de Jesus e acredita que uma só palavra dele curaria o
criado. Jesus admira-se com tais palavras e expõe a fé desse soldado como
um exemplo a seus seguidores.
A extensão da autoridade de Jesus foi demonstrada de forma ainda mais
vívida quando ele encontra um cortejo fúnebre pelo filho único de uma
viúva perto do portão da cidade de Naim. Movido por compaixão pela mãe,
Jesus dirige-se ao morto e ordena-lhe que se levante, e ele volta à vida. Um
tremendo e respeitoso temor apodera-se de todos os presentes, que se põem
a glorificá-lo como um grande profeta.
Mesmo na prisão, João Batista ouve relatos dos prodígios de Jesus e
envia dois de seus seguidores para perguntar-lhe: “És tu o que hás de vir, ou
é outro o que esperamos?” (Lc 7:19). Jesus manda os mensageiros de volta
para contar o que viram e ouviram. Jesus se refere a João como mais que um
profeta: João Batista era aquele que foi enviado para preparar seu caminho.
Jesus observa, contudo, que, embora ele e João fossem muito diferentes um
do outro, a mensagem dos dois vinha sendo desprezada pelas pessoas
levianas da época.
Certa vez, quando Jesus estava recostado à mesa jantando com um
fariseu chamado Simão, chegou por trás dele uma mulher, conhecida por
todos como pecadora, chorando e regando-lhe os pés com suas lágrimas,
enxugando-os com os cabelos, beijando-os e ungindo-os com o bálsamo que
levara em um vaso. Simão encara isso como prova de que Jesus não era um
profeta, pois, se fosse, não deixaria uma mulher daquelas tocá-lo. Jesus
contesta Simão, dizendo-lhe que não o julgasse mas visse que as ações da
mulher demonstravam seu grande amor e desejo de perdão pelos pecados, o
que ele concede: “A tua fé te salvou: vai-te em paz” (Lc 7:50).

Ninguém pois acende uma lâmpada, e a cobre com alguma vasilha,


ou a põe debaixo da cama: põe-na sim sobre um candeeiro, para
que vejam a luz os que entram. LC 8:16

E m uma passagem bastante próxima a elementos que encontrou em


Marcos, Lucas conta que Jesus usa a parábola do semeador e a terra
para descrever as respostas das pessoas à mensagem de Deus que ele
proclamou. Essas respostas variam da rejeição total à aceitação. Para Jesus,
contudo, a mensagem era como uma candeia que não se poderia encobrir,
mas cada pessoa – pela resposta que lhe dá – apresenta um julgamento de si
mesma: “Vede pois como ouvis”, ele diz. Até sua família terrena não tem
direito a status especial algum; Jesus diz que sua verdadeira família, mãe e
irmãos, são “aqueles que ouvem a palavra de Deus, e a põem por obra” (Lc
8:18, 21).
Um dia, ao atravessar o mar da Galileia com alguns discípulos, Jesus
adormece enquanto se forma uma tempestade de vento. Apesar de toda sua
experiência como pescadores naquele imenso lago, os discípulos ficam
apavorados – até Jesus acordar e, no mesmo instante, acalmar o vendaval.
Sentem-se então atemorizados e admirados no íntimo do coração. “Quem
cuidas que é este”, perguntam-se uns aos outros, “que assim manda aos
ventos e ao mar, e eles lhe obedecem?” (Lc 8:25).
Quando chegam à outra margem do lago, entram em território gentio,
uma terra habitada por povos conhecidos como gerasenos ou gadarenos,
nome proveniente de sua cidade principal. Ali, Jesus cura um homem
possuído por uma legião de demônios que o reconhece de imediato como o
Filho de Deus e mostra temor por ele. Quando os habitantes da região
presenciam o poder de Jesus – manifestado ao atirar os demônios em uma
vara de porcos que se precipita depois pelo despenhadeiro no mar e morre
afogada – também ficam profundamente atemorizados e rogam-lhe que se
retirasse de sua terra. Após mandar o homem livre dos demônios de volta
para casa, a fim de contar tudo que Deus fez por ele, Jesus refaz a travessia
do lago até a Galileia.
Lucas mais uma vez segue de perto a narrativa de Marcos ao contar os
grandes milagres em que Jesus demonstra ainda mais seu poder sobre a vida
e a morte. Primeiro, ele cura uma mulher cujo sangramento ninguém
conseguia estancar. Ela foi curada apenas tocando a túnica de Jesus. Em
seguida, ressuscita dos mortos a filha de 12 anos de um líder da sinagoga
chamado Jairo.

E dizia a todos: Se alguém quer vir após de mim, negue-se a si


mesmo, tome a sua cruz cada dia, e siga-me. LC 9:23

N arrando os acontecimentos desde a partida de Jesus da Galileia rumo


ao seu último destino, Jerusalém, Lucas acompanha muito de perto a
história de Marcos nos capítulos de 6 a 9 – com a exceção de que não inclui
qualquer material semelhante a Marcos 6:45-8:26. Essa maneira de
condensar a narrativa ajuda Lucas a apresentar vários acontecimentos, que
se concentram na identidade de Jesus, em estreita proximidade com a
convicção de Pedro de que Jesus era o há muito esperado Messias, um
momento decisivo na história.
Jesus envia os 12 apóstolos a aldeias da Galileia para realizarem curas e
proclamarem o reino de Deus. Despacha-os na missão sem roupas e
alimentos extras, mas com a mensagem de sua salvação e o poder que lhes
concedeu para curar enfermos e expulsar espíritos maus dos possuídos.
Nessa época, chega ao conhecimento de Herodes Antipas um boato de que
Jesus era João Batista ressuscitado dos mortos, ou mesmo algum outro
profeta. “Eu mandei degolar a João”, ele diz: “quem és pois este, de quem
ouço semelhantes coisas?” (Lc 9:9).
Quando os apóstolos retornaram, Jesus mostrou sua característica de
provedor, alimentando uma multidão de cinco mil pessoas com apenas
alguns pães e peixes. Quando chega a este ponto, Lucas passa diretamente
para o momento em que o Mestre pergunta aos discípulos: “Quem dizem as
gentes que sou eu?” (Lc 9:18), e eles relatam uma hipótese muito
semelhante à ouvida por Herodes. Assim que Pedro se referiu a ele como o
Messias, Jesus logo começou a falar aos discípulos de seu padecimento e
morte próximos, e a associar esse sofrimento à vida deles, dizendo-lhes: “Se
alguém quer vir após de mim, negue-se a si mesmo, e tome a sua cruz cada
dia, e siga-me” (Lc 9:23).
Cerca de uma semana depois, Jesus deixou três de seus discípulos
saberem dos planos futuros que já se achavam prontos. Apareceu-lhes então
em glória, com Moisés e Elias falando de sua partida prestes a cumprir-se
em Jerusalém, e do que ele ia realizar lá. Embora Jesus continuasse a
mostrar-lhes a grandeza de Deus em suas obras e a falar-lhes de sua traição e
sofrimento próximos, era extremamente complexo para os discípulos tal
discurso, pois eles não absorviam o sentido de sua palavra “e lhes era tão
obscura, que não a compreendiam”. Em vez disso, discutiam sobre qual
deles era o maior, de modo que Jesus recorre a um menino para ensinar- -
lhes “quem dentre vós todos é o menor, esse é o maior” (Lc 9:45, 48).

E aconteceu que sendo chegado o tempo da sua assunção, mostrou


ele um semblante intrépido e resoluto para ir para Jerusalém. LC
9:51

N esta passagem, Lucas chega a um momento decisivo em seu


Evangelho. Em uma única sentença, Marcos contou que Jesus saiu da
Galileia “e foi para os confins da Judeia, na banda dalém do Jordão” (Mc
10:1). Lucas amplia o breve relato da viagem de Jesus para cerca de dez
capítulos, e a jornada a Jerusalém torna-se o tema organizador da segunda
metade de sua narrativa do ministério de Jesus. Na estrutura do texto de
Lucas, a viagem inclui-se em duas categorias: a primeira (Lc 9:51-13: 35)
conclui com o lamento de Jesus sobre Jerusalém; a segunda (Lc 14:1-19:44)
termina com Jesus chorando sobre a Cidade Santa. A maior parte do extenso
material referente ao ministério de Jesus não encontrado em Marcos está
contida nessa seção de Lucas.
Ao reconhecer que a hora de sua morte estava próxima, Jesus parte com
profética determinação. A caminho de Samaria, ao sul, ele sofre rejeição,
pois seu destino era o que os samaritanos consideravam o santuário rival em
Jerusalém. Em compensação, várias pessoas se oferecem voluntariamente
para segui-lo como seus discípulos, e Jesus teve de adverti-las das
exigências do discipulado.
Assim como enviara em missão os 12 apóstolos, Jesus despacha em
missão 70 discípulos na sua frente sem quaisquer recursos, a não ser o poder
de curar e a mensagem do reino de Deus. Quando os setenta retornam,
cheios de alegria com a derrota do poder demoníaco, Jesus regozija-se com
eles. Dá graças a Deus por ter escolhido aquelas pessoas do povo como
discípulos para cumprir a sua vontade e as bendiz, pois elas estavam vendo a
realização das esperanças e aspirações dos profetas e reis da Antiguidade.

Quem foi Maria Madalena?

No início de seu ministério, Jesus curou várias mulheres ricas que


depois se tornaram suas seguidoras. Segundo a tradição, é provável que
Maria Madalena, exorcizada de sete demônios, tenha sido a líder deste
grupo que apoiava Jesus e seus 12 apóstolos e “que lhes assistiam de
suas posses” (Lc 8:3). O nome de Maria indica que ela veio da aldeia
de Magdala, na costa ocidental do mar da Galileia, perto do centro de
atuação de Jesus em Cafarnaum.
Alguns dos primeiros autores cristãos afirmaram que Maria
Madalena era uma pecadora anônima, possivelmente uma prostituta,
que se infiltrara no jantar do fariseu para banhar com suas lágrimas os
pés de Jesus e secá-los com seus cabelos. Mas este fato é bastante
improvável, porque uma mulher com esta história não teria sido
companheira da esposa de um administrador de Herodes Antipas, como
observou Lucas.
Maria Madalena estava entre as poucas mulheres corajosas que
permaneceram com Jesus até o fim, ficando ao lado de Maria, sua mãe,
aos pés da cruz, demorando-se para vê-lo enterrado e indo à sua
sepultura na manhã de domingo. Sozinha (como em Marcos e João), ou
com outra mulher (como em Mateus), ela foi a primeira a ver Jesus nos
céus.

E respondendo o Senhor, lhe disse: Marta, Marta, tu andas muito


inquieta e te embaraças com o cuidar em muitas coisas. Entretanto
só uma coisa é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que lhe
não será tirada. LC 10:41-42
uitos temas da pregação de Jesus surgem durante a jornada a Jerusalém

M mestre da lei pergunta o que deveria fazer para herdar a vida eterna.
Jesus devolve-lhe a pergunta e concorda com um erudito quando ele
cita os grandes mandamentos: amar a Deus e ao próximo como a si mesmo.
“Faze isso, e viverás” (Lc 10:28). Quando o advogado indaga sobre a
definição de “próximo”, Jesus responde-lhe com a parábola do Bom
Samaritano a fim de mostrar que não poderia haver limites à
responsabilidade com um próximo. Após um sacerdote e um levita
ignorarem a agonia de um homem roubado e deixado à morte na beira da
estrada, um samaritano que ali passava, ao vê-lo, se enche de compaixão e
trata o ferido.
Mais uma vez, veio à tona a questão do que seria fundamental para a
vida – mas de forma diferente – quando Jesus visitou suas amigas Maria e
Marta. Maria passava seu tempo aprendendo os ensinamentos de Jesus,
enquanto Marta estava às voltas com as responsabilidades de servir o
convidado. Jesus exortou Marta a concentrar-se, como Maria, em seu
ensinamento sobre o que era realmente necessário na vida.
Em outra ocasião, os discípulos de Jesus pedem-lhe que os ensinem a
orar, e ele dá-lhes a breve e bem concentrada oração, conhecida através dos
séculos como “Oração do Senhor” ou “Pai Nosso”. Também os ensinava a
ser persistentes na oração e confiar em Deus, pois “o vosso Pai celestial dará
espírito bom aos que lho pedirem!” (Lc 11:13).
Os adversários de Jesus começaram a atribuir seu poder a forças
demoníacas. Jesus ridicularizava esta inversão da realidade que faria Satanás
ficar também “dividido contra si mesmo”. Mas como era pelo poder de Deus
que ele expulsava demônios, disse Jesus, “é certo que chegou a vós o reino
de Deus”. Bem-aventurados sejam, acrescenta, “aqueles que ouvem a
palavra de Deus, e a guardam” (Lc 11:18, 20, 28).

Depois lhes disse: Guardai-vos, e acautelai-vos de toda a avareza:


porque a vida de cada um não consiste na abundância das coisas
que possui. LC 12:15

Q uando um fariseu o convidou para um jantar com outros fariseus e


eruditos, Jesus aceita, mas se recusa a seguir seus rituais de purificação
antes de comer. O anfitrião expressa seu espanto em relação a esta atitude, e
Jesus responde-lhe com crítica enérgica às práticas religiosas dos fariseus.
Elas definem sua relação com Deus pelo desempenho meticuloso de atos de
obediência precisamente delineados, até pagar “o dízimo da hortelã, e da
arruda, e de toda casta de ervas”. Mas como a ênfase é no desempenho
visível, a prática dos fariseus é oca, negligenciando “a justiça, e o amor de
Deus!” (Lc 11:42). Esta crítica desencadeia a hostilidade cada vez maior dos
fariseus contra Jesus, que advertiu os discípulos de que a hipocrisia dos
fariseus era o fermento deles.
Enquanto a hostilidade se intensifica, Jesus ensina os discípulos a não
temerem ninguém, exceto Deus, que os ama profundamente: “E até os
cabelos da vossa cabeça, todos estão contados” (Lc 12:7). Eles precisavam
ser corajosos ao defenderem sua fé diante da oposição, com a crença de que
o Espírito Santo lhes ensinaria o que dizer.
Repetidas vezes, Jesus advertiu-os contra o poder corruptor da cobiça
por riqueza. Para ilustrar este ensinamento, Jesus conta a história do
fazendeiro rico que um dia, por ter acumulado abundantes colheitas em seus
celeiros, compraz-se, julgando que tinha muitos anos de segurança e fartura
pela frente, mas que morreu naquela mesma noite.
Jesus exorta-os a aprender e realizar a busca fundamental, que é confiar
em Deus para todas as necessidades da vida e não viver cheios de angústia.
Se Deus alimenta as aves e veste as açucenas, “quanto mais a vós, homens
de pouca fé?” Em vez disso diz-lhes “buscai primeiro o Reino de Deus e a
sua justiça: e em cima dar-se-vos-ão todas estas coisas como acessórias” (Lc
12:28, 31).

Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, e apedrejas os que a


ti são enviados, quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, bem
como uma ave recolhe os do seu ninho debaixo das asas, e tu não
quiseste? LC 13:34

J esus instrui, então, seus discípulos a não se inquietarem, mas deveriam


usar urgentemente o breve tempo que lhes foi designado: “Estejam
cingidos os vossos lombos, e nas vossas mãos tochas acesas” (Lc 12:35).
Eles levariam suas vidas com fidelidade e prudência, ensinou Jesus, se
quisessem estar sempre prontos para o fim da vida. Jesus percebeu que seu
apelo para que o povo servisse ao Reino de Deus causaria divisão e conflito:
“Eu vim trazer fogo à terra, e que quero eu senão que ele se acenda?” (Lc
12:49). De modo semelhante, seus discípulos deveriam ficar prontos para os
conflitos que teriam lugar mais à frente. Deveriam moldar a vida pelo
arrependimento para gerar frutos como uma boa figueira.
Conflitos irrompem-se mais uma vez em um sábado em que Jesus cura
uma mulher que fora aleijada durante 18 anos e é repreendido pelo líder da
sinagoga. Jesus, por sua vez, revida a crítica, causando consternação aos
adversários, enquanto o povo regozija por vê-lo praticar uma ação tão
gloriosa.
Jesus exortou, nesta ocasião, seus discípulos a compreenderem que,
apesar da visível oposição, o reino de Deus é poderoso, semelhante a um
pequeno grão de mostarda que cresceu até tornar-se uma grande árvore, ou
como um pouco de fermento que fermenta um grande volume de massa.
Todos devem esforçar-se por seguir os ensinamentos do Senhor e assim
entrar na porta estreita do reino dos Céus.
Quando alguns fariseus previnem Jesus de que Herodes queria matá-lo,
ele responde-lhes que precisava cumprir seu próprio tempo. Ele sabe, no
entanto, que precisava ir para Jerusalém porque, como explicou com
profunda ironia, “não convém que um profeta morra fora de Jerusalém” (Lc
13:33). Preparando-se para partir na segunda metade da viagem, ele
lamentou a Cidade Santa que matou os profetas e agora não queria aceitá-lo.
Ao chegar, prediz que o povo um dia diria: “Bendito o que vem em nome do
Senhor” (Lc 13:35).

Mas quando deres algum banquete, convida os pobres, os aleijados,


os coxos, e os cegos: e serás bem-aventurado, porque esses não têm
com que te retribuir: mas ser-te-á isso retribuído na ressurreição
dos justos. LC 14:13-14

E m outra ocasião, Jesus participou de um banquete de sábado com um


príncipe fariseu e seus amigos, mas a tensão pairava no ar. Eles
observavam Jesus, quando um homem com os sintomas de hidropisia surgiu
de repente diante dele. Reconhecendo, contudo, a ameaça, Jesus não hesitou
em curar o homem no sábado. Virou-se então para os anfitriões hostis para
censurar-lhes o amor pela honra em tais banquetes. Ensina-os a agir com
humildade e convidar para os seus jantares os pobres carentes, em vez de os
ricos que podem retribuir esses banquetes.
Para enfatizar sua denúncia aos fariseus, Jesus emprega uma parábola
sobre um grande banquete. Quando chega a hora da ceia, todos os
convidados apresentaram desculpas esfarrapadas para não comparecer.
Furioso, o anfitrião despachou então os servos às ruas e aos becos da cidade,
dizendo: “Traze-me cá quantos pobres, e aleijados, e cegos, e coxos achares”
(Lc 14:21), pois nenhum dos que foram convidados se dignaram a provar de
seu banquete.
Os seguidores sem entusiasmo, pregava Jesus, não seriam aceitos no
reino de Deus. Segundo ele, a vocação para o discipulado precisava ocupar o
primeiro lugar na vida de um indivíduo. Tudo o que uma pessoa definiria
como seu – bens materiais, pais, família, até mesmo a vida – teria de render-
se à vocação do discipulado. Embora respeite todas essas relações
familiares, ele sabe que jamais devem tomar o lugar de Deus. Um discípulo
precisa avaliar o custo: “Assim pois qualquer de vós que não dá de mão a
tudo o que possui, não pode ser meu discípulo” (Lc 14:33).

Tirai depressa o seu primeiro vestido [o melhor], e vesti-lho, e


metei-lhe um anel no dedo, e os sapatos nos pés! Trazei também um
vitelo bem gordo, matai-o, para comermos e para nos regalarmos!
Porque este meu filho era morto, e reviveu! Tinha-se perdido, e
achou-se. LC 15:22-24

O s adversários de Jesus criticaram-no muitas vezes por recusar-se a


separar-se dos pecadores. Quando pecadores conhecidos, como
cobradores de impostos, aproximam-se para ouvi-lo, os fariseus e os
escribas acusam: “Este recebe os pecadores, e come com eles” (Lc 15:2).
Jesus responde-lhes contando três parábolas sobre aqueles que estavam
perdidos e se encontraram.
A primeira refere-se a um pastor que ficou tão contrariado com a perda
de uma ovelha que deixou 99 no deserto enquanto procurava a desgarrada.
Ao encontrá-la, põe-na sobre o ombro, cheio de alegria. De modo
semelhante, a mulher que perdera uma única moeda vasculha
incansavelmente toda a casa até encontrá-la, e comemora, feliz, com as
amigas. “Assim vos digo eu”, diz Jesus, “que haverá júbilo entre os anjos de
Deus por um pecador que faz penitência” (Lc 15:10).
A terceira e mais elaborada parábola de Jesus é sobre um pai e seus dois
filhos. O caçula pediu a herança adiantada e partiu para uma terra distante,
onde logo dissipou toda a riqueza e acabou na pobreza e degradação.
Compreendendo sua má ação, o rapaz resolveu voltar para casa, não para
reivindicar seu status original como filho, mas para pedir que fosse
empregado como diarista. Ao se aproximar de casa, ensaiando a confissão
de culpa que iria fazer, o pai avistou-o de longe e correu ao seu encontro. A
alegria do pai não permitiu um discurso de culpa, e ele insistiu em
comemorar a volta do filho com comida, música e dança. Quando voltou do
campo, o filho mais velho ficou indignado com essa recepção ao irmão
inconsequente e recusou-se a participar da festa. O pai tentou então,
carinhosamente, fazê-lo entrar, mas sem abrir mão de sua felicidade: “Era
porém necessário que houvesse banquete, e festim, pois que este teu irmão
era morto, e reviveu: tinha-se perdido, e achou-se” (Lc 15:32).

Havia um homem muito rico, que se vestia de púrpura, e de linho


finíssimo: e que todos os dias se banqueteava esplendidamente.
Havia também um pobre mendigo, por nome Lázaro, todo coberto
de chagas, que estava deitado à sua porta. E que desejava fartar-se
das migalhas que caíam da mesa do rico, mas ninguém lhas dava: e
os cães vinham lamber-lhe as úlceras. LC 16:19-21

Q uestões sobre dinheiro, seus perigos e empregos corretos, eram uma


preocupação frequente das pessoas a quem Jesus ensinava. Certa vez,
ele contou uma parábola sobre um administrador astucioso, mas desonesto,
que fora flagrado malversando a riqueza de seu empregador. Quando viu que
ia ser demitido, o administrador usou suas últimas horas de autoridade sobre
as propriedades para reduzir as dívidas de muitos que deviam dinheiro a seu
patrão. Com esta atitude, ele assegurou que todos o ajudassem quando fosse
demitido. Os discípulos, afirma Jesus, deviam ser igualmente astuciosos.
Embora o dinheiro tenha uma influência corrompedora, eles deviam
empregá-lo com eficácia para ajudar os outros, praticando o bem, e, desse
modo, também, diz-lhes, “granjeeis amigos” para que quando “vós vierdes a
faltar, vos recebam eles nos tabernáculos eternos” (Lc 16:9). Mas não se
deve subestimar o perigo da riqueza, e Jesus personifica isso como um deus
demoníaco. Ninguém pode servir a dois amos: “Vós não podeis servir a
Deus e às riquezas” (Lc 16:13).

Para mostrar que Deus muitas vezes inverte os valores humanos,


Jesus contou uma parábola sobre um rico que se regalava enquanto
um mendigo chamado Lázaro passava fome diante de seu portão e
cães lambiam-lhe as chagas. Os anjos transportaram Lázaro para
ficar ao lado de Abraão em um reino de deleite, enquanto o rico foi
sepultado no inferno, a sofrer os tormentos do fogo. O rico
implorou a Abraão que enviasse Lázaro com uma gota de água
para aliviar-lhe a sede, e, quando isso lhe foi negado, pediu que o
Senhor levasse Lázaro de volta à terra para avisar seus irmãos da
punição que os aguardava. Esta parábola ilustra que as pessoas
precisam aprender a agir fielmente a serviço do amor segundo o
ensinamento que receberam; precisam compreender que suas ações
na vida têm consequências eternas.

O reino de Deus não virá com mostras algumas exteriores: nem


dirão: Ei-lo aqui, ou ei-lo acolá. Porque eis aqui está o Reino de
Deus dentro de vós. LC 17:20-21

J esus aconselhava os discípulos a preocupar-se uns com os outros. Eles


precisavam tomar um grande cuidado para não fazer ninguém tropeçar na
fé que tinham em Deus. Quando uma pessoa os ofendesse, deveriam perdoar
repetidas vezes e não se esquecerem da grandeza de Deus. Com uma fé do
tamanho de um grão de mostarda, Deus lhes daria poder para grandes feitos,
mas jamais deveriam reivindicar que Deus lhes estivesse devendo alguma
coisa. Após terem feito o máximo possível, continuavam sendo servos
simples de Deus, dizendo: “Fizemos o que devíamos fazer” (Lc 17:10).
Essa relação com Deus estaria aberta a qualquer um. Certa vez, quando
Jesus curou dez leprosos, apenas um samaritano voltou para agradecê-lo e
ele disse: “Tua fé te salvou” (Lc 17:19).
Jesus ignorava toda especulação sobre quando viria o reino de Deus. Na
verdade, ensinou que o reino já estava presente em sua própria obra. Quanto
ao advento futuro do Filho do Homem, esse dia seria repentino e
universalmente reconhecido, e Jesus anunciava: “Porque assim como o
relâmpago, que fuzilando na região inferior do céu, faz clarão desde uma até
à outra parte: assim será o Filho do Homem no seu dia” (Lc 17:24). A única
preparação seria a prontidão contínua.

O publicano, pelo contrário, posto lá de longe, não ousava nem


ainda levantar os olhos ao céu, mas batia nos peitos, dizendo: Meu
Deus, sê propício a mim pecador. LC 18:13

A través dos ensinamentos e das ações, Jesus ajudava os discípulos a


entender como deviam relacionar-se com Deus, com as outras pessoas
e com as diversas circunstâncias de suas vidas. Conta a parábola de uma
viúva desamparada que importuna com tanta persistência um juiz corrupto
que ele acaba fazendo-lhe justiça em seu processo. Quanto não faria,
ensinava Jesus, um Deus justo e amoroso aos que dele necessitarem?
É importante dirigir-se ao Senhor com humildade, pois esta ação é o que
corresponderia à realidade da situação humana perante Deus. Jesus fala de
um fariseu que fazia preces a Deus com certa arrogância e vaidade,
enquanto um coletor de impostos pediu apenas: “Meu Deus, sê propício a
mim pecador!” Este homem, não o outro, foi abençoado, e disse Jesus,
“porque todo o que se exalta, será humilhado: e todo o que se humilha será
exaltado” (Lc 18: 13-14). Mais uma vez, Jesus acolhe as crianças que são
levadas a ele: “Todo o que não receber o Reino de Deus, como um menino,
não entrará nele” (Lc 18:17).
Quando um governante rico, também devoto e obediente à lei,
perguntou-lhe o que deveria fazer para possuir a vida eterna, Jesus ajudou-o
a concentrar-se em uma área que bloqueasse o verdadeiro discipulado:
“Vende tudo quanto tens, e dá-o aos pobres, e terás um tesouro no céu, e
depois vem, e segue-me” (Lc 18:22).

Zaqueu, posto na presença do Senhor, disse-lhe: Senhor: Eu estou


para dar aos pobres a metade dos meus bens: e naquilo em que eu
tiver defraudado a alguém, pagar-lho-ei quadruplicado. Sobre o
que lhe disse Jesus: Hoje entrou a salvação nesta casa. LC 19:8-9

Q uando sua viagem a Jerusalém aproximava-se do fim, Jesus mais uma


vez falou aos discípulos sobre o escarnecimento e sofrimento que o
aguardavam, mas Lucas observou que eles simplesmente não conseguiam
entender aquele discurso. Em contraste com aquela cegueira dos discípulos,
Jesus começaria a cumprir o estágio final de sua viagem, dando visão a um
cego em Jericó que clamava por piedade. Ao receber a visão, o homem
começou a seguir Jesus.
Uma segunda manifestação do poder transformador do reino celestial
também aconteceu em Jericó, na pessoa de Zaqueu, um dos principais
coletores de impostos, que enriqueceu com seu comércio fraudulento e
opressivo. De pequena estatura, Zaqueu sobe em uma árvore para ver Jesus,
que o localiza, ao erguer os olhos, e decide ir à sua casa, apesar das sérias
críticas que recebe por relacionar-se com um homem daqueles. Ao fim da
conversa, Zaqueu vira outro homem, prometendo ajudar os pobres e restituir
o dinheiro que ganhou fraudando os próximos.
Nas imediações de Jerusalém, Jesus conta uma parábola do nobre que
distribuiu seu dinheiro aos servos para que o administrassem enquanto ele ia
tomar posse de um reino em uma região distante. Quando voltou, exigiu que
cada servo mostrasse como empregara os recursos que lhes dera. E louvou
então os que foram ousados e lucraram, e condenou os tímidos e temerosos.
Ao aproximar-se da cidade, Jesus entra montando um jumento pelas ruas
cheias de mantos estendidos pelas multidões de discípulos que gritam:
“Bendito o rei que vem em nome do Senhor!” (Lc 19:38).

Então lhes disse o Senhor: Pagai logo a César o que é de César: e


a Deus o que é de Deus. LC 20:25

L ucas acompanhou muito de perto a narrativa de Marcos, ao descrever


sua pregação no período, embora não enfatizasse este período como
uma única semana; porém, relatou de forma mais geral que Jesus “todos os
dias ensinava no Templo” (Lc 19:47).
Ao entrar no templo, a primeira ação de Jesus foi a de expulsar todos os
que vendiam e compravam ali, e restabelecê-lo como uma casa de oração.
Os principais sacerdotes resolvem matá-lo, mas não ousam “porque todo o
povo estava suspenso quando o ouvia” (Lc 19:48).
Como em Marcos, Lucas enumera as tentativas de encurralar e condenar
Jesus por seus ensinamentos. Primeiro, os principais sacerdotes e outras
autoridades do templo desafiam-no a mostrar a autoridade que tem para
praticar suas ações. Jesus responde-lhes, desafiando-os a reconhecer a
autoridade de João Batista. Quando eles hesitam, Jesus condena-os através
da parábola de uns arrendatários perversos. Esta passagem lembra uma
outra, que está em Isaías 5:17.
Em seguida, os chefes dos sacerdotes mandam espiões encurralá-lo em
uma questão sobre pagamento de tributos ao imperador. Jesus, contudo, vira
o feitiço contra os feiticeiros, exortando-os não apenas a pagar o que é
devido ao imperador, mas também a servir a Deus.
Em seguida, ele enfrentou uma questão dos saduceus relacionada à
ressurreição, mas respondeu tão bem que mesmo alguns dos escribas do
templo elogiaram suas respostas. A maioria dos escribas, contudo, cai sob a
condenação de Jesus, por ser orgulhosa e dada à falsidade e à ostentação.
Em contraposição, ele aponta uma viúva pobre que possuía apenas duas
moedas, mas dá-las a Deus em total confiança.

Vigiai pois, orando em todo o tempo, a fim de que vos façais dignos
de evitar todos estes males, que têm de suceder, e de vos
apresentardes com confiança diante do Filho do Homem. LC 21:36

C hegando ao fim de seus ensinamentos no templo, Jesus anuncia aos


discípulos que não ficaria pedra sobre pedra daquele edifício. Lucas
mais uma vez repete Marcos em sua narrativa, embora tenha destacado
elementos do discurso de Jesus indicando que se passaria algum tempo até
que se cumprissem a destruição do templo e a volta do Filho do Homem.
Jesus advertiu que muitos males “devem suceder primeiro, mas não será
logo o fim” (Lc 21:9). Previu a perseguição de seus discípulos e avisou:
“Quando virdes pois que Jerusalém é sitiada de um exército, então sabei que
está próxima a sua desolação”; na verdade, “Jerusalém será pisada dos
gentios: até se completarem os tempos das nações”. Só após muitos
prodígios, “verão o Filho do Homem, que virá sobre uma nuvem” e então
saberão que “está perto a vossa redenção” (Lc 21:20, 24, 27-28). Os
discípulos deveriam ficar alertas e orar o tempo todo enquanto aguardavam
seu retorno.

Prosseguiu logo Jesus: Pois agora quem tem bolsa, tome-a, e


também alforje; e o que a não tem, venda a sua túnica e compre
espada. Porque vos digo, que é necessário que se veja cumprido em
mim ainda isto que está escrito: “E foi reputado por um dos
iníquos.” LC 22:36-37

D escrevendo os últimos dias de Jesus, Lucas tomou como base a


narrativa de Marcos, mas acrescenta detalhes à sua história da Última
Ceia. Com a aproximação da Páscoa, Satanás, que saíra de perto de Jesus
após sua tentação, toma o coração de Judas Iscariotes. Chegada a hora da
ceia, Jesus reúne-se com os apóstolos em um cenáculo em Jerusalém.
Ao começarem a refeição, Jesus expressa seu desejo de comungar a
Páscoa com seus seguidores, mas diz que não comeria mais “até que ela se
cumpra no Reino de Deus” (Lc 22:16). Distribui-lhes então o pão partido,
dizendo: “Este é o meu corpo, que se dá por vós: fazei isto em memória de
mim.” Após a ceia, ele ofereceu aos apóstolos um cálice de vinho, dizendo:
“Este cálice é o Novo Testamento em meu sangue, que será derramado por
vós” (Lc 22:19-20).
Em seguida, Jesus revelou que um dos comensais iria traí-lo, e os
discípulos se põem a discutir sobre qual deles devia ser considerado o mais
importante. E Jesus aproveitou sua própria função de servir a refeição como
um exemplo de grandeza: “Porque qual é maior, o que está sentado à mesa,
ou o que serve?” (Lc 22:27).
E começa a falar aos apóstolos das bênçãos e também dos perigos que se
encontram adiante deles. Satanás pediu com insistência para joeirar todos
eles como trigo, mas Jesus pedira a Deus por Pedro, rogando que sua fé
fosse forte o bastante para fortalecer os demais; mesmo assim, ele afirma,
Pedro iria negar três vezes que o conhecia. Antes, eles haviam partido em
missão sem recursos; mas agora precisavam estar equipados para qualquer
situação.
Dali eles saíram em direção ao monte das Oliveiras, onde Jesus faz uma
prece a Deus e se entrega à vontade do Pai. Logo depois, chega Judas com
um grupo armado para prendê- -lo. “Esta é a vossa hora, e o poder das
trevas” (Lc 22:53).

E dizia a Jesus: Senhor, lembra-te de mim, quando entrares no teu


reino! E Jesus lhe respondeu: Em verdade te digo: que hoje serás
comigo no paraíso. LC 23:42-43

L ucas indica em seu texto que, após a prisão, Jesus foi levado à casa do
sumo pontífice. Cheio de temor, Pedro entrou no pátio para aquecer-se
junto a uma fogueira. Três pessoas interpelaram-no sobre o acontecido, e
três vezes ele negou conhecer Jesus. Então “voltando-se o Senhor pôs olhos
em Pedro” (Lc 22:61). E, lembrando-se das palavras que Jesus lhe dissera,
chorou amargamente.
Ao amanhecer, Jesus foi julgado e condenado pelos anciãos do povo, os
principais sacerdotes e os escribas, pelas supostas afirmações de que ele
seria o Messias e o Filho de Deus. Em rápida sequência, eles levam Jesus a
Pilatos, o governador romano, para que se fizessem as acusações: recusa-se
a pagar os tributos e proclama-se a si mesmo como Cristo Rei. Pilatos
reconhece que as acusações eram forjadas, mas como Herodes Antipas
estava em Jerusalém para as festividades da Páscoa, e o território de
Herodes englobava a Galileia, ao saber que Jesus era galileu ele o envia a
Herodes para ser interrogado. Herodes alegra-se com a oportunidade de
interrogar um famoso profeta, de quem muito ouvira falar, e talvez de até
ver um de seus milagres. Mas, quando Jesus responde-lhe com um silêncio
de pedra, Herodes manda-o de volta ao governador romano. Naquele dia,
acrescenta Lucas, “ficaram amigos Herodes e Pilatos, porque estavam antes
inimigos um do outro” (Lc 23:12).
Embora considerasse Jesus inocente de qualquer crime, Pilatos deturpa o
processo e, consequentemente, o julgamento, condenando-o à crucificação,
ao ser pressionado por uma multidão que clama por sua morte. Ao ser
crucificado, Jesus reconhece o fato maior da salvação que Pilatos, os
sacerdotes e as multidões não conseguiam ver: “Pai, perdoa-lhes, porque não
sabem o que fazem” (Lc 23:34). Lucas diz que Jesus estava tomado por um
sentimento de paz durante todas as terríveis horas da crucificação. Quando
um dos criminosos crucificados com ele pede-lhe misericórdia, Jesus
responde: “Em verdade te digo: que hoje serás comigo no paraíso.” Mesmo
em suas últimas palavras, Jesus fala como o salmista: “Pai, nas tuas mãos
encomendo o meu espírito” (Lc 23:43, 46; Sl 31:5).

Estando sentado com eles à mesa, tomou o pão, e o abençoou, e


tendo-o partido lho dava. No mesmo tempo se lhes abriam os olhos,
e o conheceram: mas ele desapareceu-lhes de diante dos olhos. LC
24:30-31

P ouco antes de começar o sábado, Jesus foi retirado da cruz e posto em


um sepulcro por José de Arimateia enquanto as mulheres que o haviam
acompanhado desde a Galileia observavam a cena. Ao amanhecer do
primeiro dia da semana, as mulheres ali voltaram e encontraram a pedra que
tampava a sepultura removida e o corpo desaparecido. Dois homens vestidos
com roupas brilhantes aparecem e lembram as previsões de Jesus, dizendo
que ele ressuscitaria. Maria Madalena e outras mulheres também se
recordam, mas, quando contam esses fatos aos apóstolos, estes não lhes dão
crédito, pois o que elas diziam pareceu-lhes “como desvario” (Lc 24:11).
Mais tarde, naquele mesmo dia, relata Lucas, dois discípulos
caminhavam para a aldeia vizinha de Emaús quando Jesus apareceu e seguiu
com eles. Não o reconhecendo, eles contam a história de sua própria
crucificação àquele aparente estranho que, por sua vez, estimulou-os a crer
em tudo que os profetas haviam previsto sobre o Messias. Os dois convidam
o estranho a cear com eles naquela noite, mas, quando Jesus parte e dá-lhes
o pão, os discípulos o reconhecem e ele desaparece diante de seus olhos. Os
dois saem às pressas para Jerusalém, onde ficam sabendo que Jesus também
apareceu a Pedro.
Enquanto os discípulos conversavam sobre as aparições, Jesus aparece
no meio deles com uma saudação de “Paz”. Nesta ocasião, demonstrou-lhes
sua materialidade comendo à vista deles e deixando que o apalpassem. E
Jesus fala ao grupo, abrindo-lhes as mentes para todos os mistérios de seu
sofrimento que antes haviam permanecido ocultos, e ajuda-os a entender que
as escrituras se haviam cumprido.
Jesus, nesta ocasião, ordena-lhes que ficassem em Jerusalém “até que
sejais revestidos de virtude lá do alto” (Lc 24:49), prometida por Deus. Ao
sair caminhando com eles para a aldeia vizinha de Betânia, Jesus os abençoa
e é elevado aos céus, e os discípulos voltam para Jerusalém para adorá-lo
com grande júbilo.
• Evangelho Segundo São João •
O Evangelho de João apresenta uma visão radicalmente diferente da história
de Jesus nos outros evangelhos. Mateus, Marcos e Lucas são tão semelhantes
na maneira de narrar a história que são chamados de os Evangelhos
Sinópticos (do grego “vendo juntos”). João, por outro lado, é chamado de o
Evangelho Espiritual, porque faz mais que relatar os fatos da vida de Jesus –
explica que os acontecimentos revelavam sobre ele. O evangelista escolhe
cuidadosamente apenas fatos que ajudam a responder questões como: “Quem
é Jesus?” O motivo acha-se na meta declarada próximo à conclusão: “Mas
foram escritos estes [prodígios], a fim de que vós creiais que Jesus é o Cristo,
filho de Deus” (Jo 20:31).
Orientado por esse objetivo, João fala apenas sobre sete milagres, que ele
chama de “sinais”, e que provam a divindade de Jesus. O Evangelho também
preserva longas conversas de Jesus sobre quem era ele e por que Deus o
enviara. O autor diz que não incluiu muitas façanhas de Jesus; pois, se
fossem incluídas uma por uma, ele diz, “nem no mundo todo poderiam caber
os livros, que delas se houvessem de escrever” (Jo 21:25). Os fatos narrados
pelos outros evangelistas, mas ausentes em João, incluem o nascimento de
Jesus, o seu batismo e a tentação pela qual passou, sua expulsão de
demônios, os ensinamentos por parábolas, a bênção do pão e do vinho na
Última Ceia e o julgamento perante o conselho que o condenou. Mas João
enriquece nosso conhecimento de Jesus narrando fatos excluídos dos
Evangelhos Sinópticos: as núpcias em Caná, o encontro com a samaritana, a
ressurreição de Lázaro, o lava-pés dos discípulos, o encargo dado por Jesus
ao discípulo amado para que cuide de sua mãe depois de sua morte, e o
encontro pós-ressurreição com o incrédulo Tomé.
A teologia presente do Evangelho sugere que tenha sido escrito em fins do
primeiro século, talvez na década de noventa. Embora o autor não revele seu
nome, uma tradição que data pelo menos do segundo século atribui a obra a
João, o filho de Zebedeu, um dos mais próximos discípulos de Jesus. A
conspícua ausência de João dos relatos, junto com suas referências
simbólicas ao discípulo, “ao qual amava Jesus” (Jo 13:23), dá alguma
credibilidade à tradição de que João escreveu o Evangelho na velhice,
quando morava em Éfeso. Se assim o for, ele talvez o tenha escrito para
ajudar os judeus convertidos ao Cristianismo a defender suas crenças contra
os que insistiam em que Jesus não era o Messias.

No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era


Deus. JO 1:1

A surpreendente introdução ao Evangelho de João, extraída das palavras de


abertura de Gênesis, afirma ousadamente a divindade de Jesus. No
despontar da criação, Jesus “estava com Deus” e ainda “era Deus”. João não
tenta explicar o mistério de como duas entidades distintas poderiam ser uma
única. Ele simplesmente o declara, depois passa o resto de seu Evangelho
mostrando que os milagres e ensinamentos de Jesus revelam que Jesus é Deus.
Ao descrevê-lo como o Verbo (da palavra grega logos), João emprega um
termo técnico que transmite poderosamente quem é Jesus de uma maneira que
tanto os gentios quanto os judeus pudessem entender. Entre os filósofos
gregos, o logos é a razão cósmica, a força divina que estruturou o universo.
Entre os estudiosos judeus, o “Verbo” representa ao mesmo tempo a
mensagem e o poder de Deus. Os judeus entenderiam que João chama Jesus
de a personificação de toda a revelação de Deus nas escrituras – a mensagem.
Também veriam João associar intimamente Jesus com Deus, que teria o poder
de criar apenas falando: “Disse Deus: Faça-se a luz. E fez-se a luz” (Gên 1:3).
Ao descrever Jesus, diz João: “Todas as coisas foram feitas por ele: e nada do
que foi feito, foi feito sem ele” (Jo 1:3).
Mateus reconstitui a árvore genealógica de Jesus a Abraão, para revelá-lo
como o Messias dos judeus; a genealogia de Lucas remonta a Adão, para
descrever Jesus como o Salvador da Humanidade. João leva-o até o princípio
de tudo, para revelá-lo como parte de Deus, o Criador.
João, que escreve com rico simbolismo e sobrepõe várias camadas de
sentido às palavras, parece levar o termo logos ainda mais longe. Chamando
Jesus de o “Verbo”, ele também anuncia o que pretende provar em seu
Evangelho: Jesus é a verdadeira expressão de Deus. Assim como uma palavra
revela um pensamento invisível, Jesus revela a invisível presença de Deus.

E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós. JO 1:14

O s judeus entenderam e aceitaram a ideia de Deus viver entre eles, e João


determina essa compreensão empregando uma palavra para “habitou”
que significa literalmente “armar uma tenda”. Os judeus logo compreenderam
que João comparava Jesus ao tabernáculo, uma tenda central de culto que os
israelitas usaram durante os quarenta anos que vagaram pelo deserto. Esta
tenda, localizada no centro do acampamento, representava a morada terrena de
Deus – como o tabernáculo nos séculos posteriores. “Eu estabelecerei a minha
morada no meio de vós”, disse Deus aos israelitas. “Eu andarei entre vós, e
serei o vosso Deus” (Lev 26:11, 12). Quando o tabernáculo foi consagrado, a
nuvem da presença de Deus que estivera conduzindo os israelitas pelo deserto
entrou e “cobriu o tabernáculo do testemunho” (Êx 40:32). Ela só se retirava
nas ocasiões em que Deus queria que o povo levantasse acampamento e o
seguisse na viagem à terra prometida.
O que nem os estudiosos judeus ou os filósofos gregos aceitavam,
contudo, era a ideia de Deus tornar-se humano. Para os gregos, divindade era
um ideal misterioso invisível e eterno – não físico e temporal. Para os judeus,
a glória de Deus não podia sequer ser testemunhada por um ser humano,
quanto mais estar contida em um deles. Quando Moisés pediu a Deus para vê-
lo em toda a sua glória, Deus respondeu: “Tu não poderás ver o meu rosto:
porque nenhum homem me verá sem morrer” (Êx 33:20). Deus, contudo,
permite que Moisés se esconda na fenda de uma rocha por ele apontada para
que tenha uma visão fugaz de suas costas quando Ele passar (Êx 34:6). As
palavras para amor e fidelidade também podem ser traduzidas como graça e
verdade. João talvez tivesse esta tradução em mente quando diz que em Jesus
“vimos a sua glória, a sua glória como de Filho unigênito do Pai, cheio de
graça e de verdade” (Jo 1:14).
João explica que, como foi morar em meio a seu povo no tabernáculo,
Deus voltou mais uma vez – desta, em carne e sangue de Jesus. “Ninguém
jamais viu a Deus”, diz João, chamando atenção para a história de Moisés.
Mas isso agora mudou. “O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse é
quem o deu a conhecer” (Jo 1:18). Graças à encarnação – Deus chegando à
terra em carne – quando uma pessoa olha o rosto de Jesus, vê o rosto de Deus:
“Eu e o Pai somos uma mesma coisa” (Jo 10:30).

E dali a três dias se celebraram umas bodas em Caná de Galileia


(...) a mãe de Jesus lhe disse: Eles não têm vinho. JO 2:1, 3

L ogo depois que Jesus escolheu seus discípulos, o grupo participa de um


casamento em Caná, aldeia cerca de 16 quilômetros a noroeste de Nazaré,
cidade natal de Jesus. As cerimônias nupciais judaicas em geral duravam uma
semana, e nesse período era responsabilidade do anfitrião dar de comer e
beber aos convidados.
Maria, mãe de Jesus, descobre que o estoque de vinho havia acabado.
Quando ela fala ao filho sobre este fato, sua resposta é surpreendente:
“Mulher, que importa isso a mim e a vós? Ainda não é chegada a minha hora”
(Jo 2:4). João não explica por que Jesus se dirige a Maria dessa maneira
impessoal, usando uma palavra muito estranha como forma de um filho falar
com sua mãe. “Mulher”, porém, é como ele, da cruz, se dirigirá a ela, quando
a entrega aos cuidados de um novo filho, “ao discípulo que ele amava” (Jo
19:26), possivelmente o próprio João. No Evangelho, também não há
explicação sobre o que Jesus queria dizer com “a minha hora”. Contudo, mais
uma vez, como revela o Evangelho, a ligação parece ser com a crucificação.
Momentos antes de sua prisão, ele diz: “Mas para padecer nesta hora é que eu
vim a ela” (Jo 12:27). Jesus percebe em Caná que a realização de milagres
desencadearia uma série de acontecimentos que culminariam em sua morte.
Maria compreendeu que a vida do filho deveria seguir os desígnios
divinos, mas também sabia como seria constrangedor para o casal de nubentes
ficar sem vinho. Depois, discretamente, diz aos servos da casa para que
fizessem tudo o que Jesus dissesse. Ele então transforma água em vinho, e por
esse primeiro milagre “deu Jesus princípio aos seus”, diz João, “... revelando
sua glória”; e seus discípulos acreditaram nele (Jo 2:11).
João estrutura os primeiros 11 capítulos de seu Evangelho em torno de
sete desses “sinais,” ou milagres, provando que Jesus é Deus. Alguns leitores,
tentando entender por que João opta pelo milagre das núpcias em Caná como
um dos sete, encontram pistas no rico simbolismo tão predominante neste
Evangelho. Nas bodas, Jesus demonstra seu poder criativo, transformando a
substância natural da água na criação de vinho novo. Não apenas faz isso em
termos físicos, mas espirituais. Como declara Paulo mais tarde: “Se algum
pois é de Cristo, é uma nova criatura, passou o que era velho. Notai que tudo
se fez novo” (2 Cor 5:17).

Porque assim amou Deus ao mundo, que lhe deu seu Filho unigênito:
para que todo o que crê nele não pereça, mas tenha a vida eterna. JO
3:16

E ste versículo, talvez o mais conhecido de todo o Novo Testamento, foi


chamado pelo reformador Martinho Lutero de “o evangelho em
miniatura”. Na verdade, ele resume a mensagem de todos os quatro
evangelhos – revelando a profundidade do amor de Deus pela humanidade,
que Jesus é Filho de Deus e que a salvação chegaria pela crença em Jesus.
João fala sobre Jesus, dizendo essas palavras em uma conversa particular
com Nicodemos, um fariseu e líder dos judeus. Nicodemos vai procurá-lo à
noite, talvez para evitar ser visto com o aparente agitador – que, tendo
chegado a Jerusalém para a Páscoa, interrompeu as atividades do templo,
enxotando comerciantes que trabalhavam na casa de Deus.
“Rabi”, diz Nicodemos, “sabemos que és Mestre, vindo da parte de Deus,
porque ninguém pode fazer estes milagres, que tu fazes, se Deus não estiver
com ele.” Parece que Jesus percebe que Nicodemos o procurou para aprender,
por isso se põe a apresentar a essência de sua mensagem. Mas, quando ele diz
que não pode ver o reino de Deus “senão aquele que renascer de novo”,
Nicodemos fica confuso e pergunta como pode um homem “tornar a entrar no
ventre de sua mãe, e nascer outra vez?” (Jo 3:2, 3, 4).
Jesus se frustra ao ver que um mestre da Bíblia e guia espiritual, como o
fariseu Nicodemos, não entendia o que ele falava. Mas ele continua a lição,
explicando que se referia a um renascimento espiritual – talvez o profetizado
por Ezequiel: “E dar-vos-ei um coração novo, e porei um novo espírito no
meio de vós” (Ez 36:26). Acrescenta que esse renascimento espiritual só se
tornará possível depois de “levantado o Filho do Homem” (Jo 3:14), uma
frase simbólica apontando para sua morte na cruz.
O sacrifício de Deus ao oferecer “seu Filho unigênito” lembra a linguagem
de Abraão ao oferecer seu filho Isaac em holocausto. Quando chegou a hora
de Abraão realizar sua prova de fé, Isaac perguntou onde estava a vítima para
o holocausto. “Deus proverá nisso” (Gên 22:8), responde Abraão. Pouco
depois, quando o pai ergue o cutelo para sacrificar o filho, um anjo o detém.
Os autores do Novo Testamento viram nesta história uma prefiguração do
supremo sacrifício oferecido por Deus, “o que ainda a seu próprio Filho não
perdoou, mas por nós todos o entregou” (Rom 8:32).

Mas o que beber da água que eu lhe hei de dar, nunca jamais terá
sede. JO 4:13

Q uando Jesus deixa Jerusalém e volta para a Galileia mais uma vez, logo
se vê em um lugar muito pouco auspicioso, conversando com uma
interlocutora humilde; o poço de uma aldeia, no campo montanhoso da
Samaria, falando com uma mulher do povo. Segundo o costume judaico,
rabinos não deviam conversar em público com mulheres, porque as pessoas
podiam começar a maldizer. Os judeus também evitavam a Samaria por causa
de uma rivalidade muito antiga entre os dois povos. Eles consideravam os
samaritanos um povo mestiço – israelitas que se casaram com estrangeiros
depois da anexação do norte do reino judaico pelo Império Assírio, em cerca
de 722 a.C. A rixa aprofundou-se quando os samaritanos construíram seu
próprio templo em cerca de 400 a.C., e mais uma vez quando os judeus o
destruíram cerca de trezentos anos depois.
Jesus e seus discípulos chegaram à aldeia samaritana de Sicar por volta do
meio-dia. Fatigado, Jesus sentou-se à borda do poço enquanto os discípulos
saíram para comprar comida. Enquanto Jesus estava ali descansando, uma
mulher chega com um balde para retirar água e ele pede que ela lhe desse de
beber. A mulher fica surpresa com o fato de um judeu pedir-lhe alguma coisa
e diz-lhe isso. Jesus responde: “Se tu conheceras o dom de Deus, e quem é o
que te diz: Dá-me de beber: tu certamente lhe pediras, e ele te daria a ti da
água viva” (Jo 4:10). Além disso, acrescentou Jesus, essa água especial sacia a
sede para sempre – uma perspectiva sedutora para alguém que mora na árida
Samaria.
A mulher interpreta de forma errada as palavras de Jesus, pois entende as
suas palavras em termos literais, como fizera antes Nicodemos. “Água viva” é
uma expressão comum para água fresca corrente, que flui de uma fonte ou rio.
A mulher pede a Jesus um pouco dessa água mágica, “para eu não ter mais
sede, nem vir aqui tirá-la” (Jo 4:15).
Jesus usa sua visão milagrosa e a história pessoal da mulher para ajudá-la
a compreender que ele não se referia à água física. Ele descrevia a si mesmo
como a fonte de água espiritual. De maneira semelhante à usada por Jeremias
ao descrever Deus: “o Senhor, que é a fonte das águas vivas” (Jer 17:13).
Jesus começou a descrever a vida daquela mulher para ela mesma: ela havia
se casado cinco vezes e estava vivendo com um homem que não era seu
marido. Diante destas palavras, a mulher vai correndo à cidade e traz muita
gente para conhecer Jesus. Em consequência, muitos samaritanos na cidade se
convencem de que ele é “verdadeiramente o Salvador do mundo” (Jo 4:42).
Acolhido ao voltar para a Galileia, Jesus realiza seu segundo milagre: a
cura do filho de um funcionário gentio.

Disse-lhe Jesus [ao enfermo]: Levanta-te, toma a tua cama, e anda.


JO 5:8

J esus volta a Jerusalém para participar de uma das festas judaicas. Ali, vê
um homem enfermo há 38 anos, deitado em um tapete junto a uma piscina
famosa por seus cinco pórticos – galerias com colunas em que se apoiavam
telhados. Arqueólogos descobriram as ruínas de uma dessas piscinas na
entrada de um pátio onde antes se erguia o templo.
O enfermo estava deitado com outros inválidos. Havia uma lenda que
dizia que de vez em quando um anjo toca a água e cria uma ondulação; a
primeira pessoa que estivesse na piscina após este acontecimento seria curada.
Em um milagre narrado apenas em João, Jesus cura o enfermo e diz-lhe que
pegue a cama e ande. Quando os líderes judeus tomam conhecimento do
ocorrido, não manifestam alegria alguma pela cura desse homem. Ao
contrário, condenam o milagre como uma violação do sábado, o dia de
descanso judaico, pois o Antigo Testamento ensina que os judeus não devem
trabalhar no sábado. Os fariseus, estritos cumpridores da lei, seguem uma
longa lista de proibições de sábado. Também a cura nesse dia – exceto em
casos de vida ou morte – é uma das atividades condenadas.
Ao enfrentar essa acusação, Jesus oferece uma resposta breve, mas
surpreendente: Se Deus, seu Pai, trabalhava no sábado, ele também iria fazê-
lo. Os judeus, em contrapartida, retaliam e tramam matá-lo “porque não
somente quebrantava o sábado, mas também dizia que Deus era seu Pai,
fazendo-se igual a Deus” (Jo 5:18).

Jesus disse para Filipe: Com que compraremos nós o pão, de que
estes necessitam para comer? JO 6:5

A pós o término da viagem pela Galileia, Jesus e os discípulos descansam.


Fizeram a travessia do mar da Galileia e seguem para as montanhas a
leste. Mas uma multidão de cinco mil pessoas ficou tão fascinada com os
milagres e ensinamentos de Jesus que o seguiu ao longo da praia até essa área
um pouco erma. É aí que ele realiza um milagre tão espantoso que se torna o
único narrado pelos quatro evangelistas. Com cinco pães de cevada e dois
peixes, Jesus alimenta a todos. Depois de saciados, os discípulos enchem 12
cestas com os pedaços que sobram.
A multidão fica maravilhada. Muitos acreditam que o tão esperado
Messias chegara afinal e decidem coroar Jesus rei de Israel. Ele, contudo, ao
perceber este desejo, retira-se sozinho para o monte. Naquela noite, prova seu
domínio sobre a natureza, caminhando milagrosamente sobre a água para
chegar ao barco de seus discípulos e volta com eles para a costa ocidental do
mar da Galileia. Mais uma vez, as multidões vão atrás dele. De modo
surpreendente, Jesus se aborrece com essas pessoas, cuja maioria é de
lavradores e pescadores que lutam para sobreviver. Acusa-as de segui-lo
apenas para obterem mais comida. Diz-lhes então: “Trabalhai, não pela
comida que perece, mas pela que dura até à vida eterna” (Jo 6:27).
Eles entendem que Jesus estava lhes dizendo que fizessem o trabalho de
Deus, e por isso perguntaram-lhe o que precisavam realizar para isso. “A obra
de Deus é esta, que creiais naquele que ele enviou” (Jo 6:29). A multidão
pediu a Jesus que realizasse outro milagre para provar que ele vinha de Deus.
Ironicamente, essas pessoas, que ainda na véspera comeram pão e peixe
produzidos por milagre, pedem-lhe que repita o milagre atribuído a Moisés:
dar-lhes o maná do céu. Isto, diziam, iria provar que Jesus era o novo profeta e
mensageiro da mesma grandeza de Moisés.
Jesus logo lhes corrige a interpretação da escritura. Foi Deus, não Moisés,
que lhes deu o maná, lembrou-lhes. Além disso, foi Deus que mais uma vez
lhes deu o pão “que desceu do céu, e que dá vida ao mundo” (Jo 6:33).
Quando as pessoas pediram esse pão, Jesus respondeu: “Eu sou o pão da vida”
(Jo 6:35) – o maná de Deus que alimenta a alma. Esta é a primeira das sete
descrições de Jesus que revelam a si mesmo – cada uma começando com “EU
SOU” –, o nome do Senhor falando do arbusto em chamas usado para
identificar-se com Moisés: “EU SOU aquele, que sou (...) o que tu hás de
dizer aos filhos de Israel” (Êx 3:14).
João revela nessa história, através de um rico simbolismo, que Jesus e
Deus são uma só pessoa, que Jesus tem os recursos para satisfazer mais que as
necessidades físicas e espirituais do povo.

O que de vós outros está sem pecado, seja o primeiro que a apedreje.
JO 8:7

É provável que a história de Jesus e a mulher flagrada em adultério viesse


de uma coletânea de histórias separadas do Evangelho de João. Os
primeiros manuscritos gregos de João não a incluem; outras fontes antigas
colocam-na no Evangelho de Lucas. Para além da questão da origem, a
sabedoria e a compaixão que a história revela sobre Jesus sugerem que é
autêntica.
Certa manhã, Jesus ensinava a uma multidão no pátio do templo. Um
grupo de escribas e fariseus, especialistas na lei judaica, interrompeu sua
pregação levando-lhe uma mulher flagrada no ato de adultério.
“Na lei”, dizem os adversários intrusos, “[Moisés] mandou-nos apedrejar a
estas tais. Que dizes tu logo?” (Jo 8:5).
Esta é uma das muitas tentativas de encurralar Jesus. As pessoas sabiam
que ele perdoava a pecadores, portanto os líderes judeus desconfiavam de que
ele iria preferir soltar a mulher. Se o fizesse, desobedeceria à lei judaica. Mas,
se concordasse com a pena de morte, desafiaria a lei romana. As autoridades
romanas que ocupavam e governavam a região se outorgavam o direito
exclusivo de executar criminosos.
As tensões se acirraram enquanto todos esperavam o que Jesus diria.
Diante da multidão de olhos fixos nele, Jesus abaixou-se e escreveu na terra
com o dedo – segundo algumas fontes antigas, ele relacionou os pecados dos
acusadores da mulher. Este ato indica sua autoridade divina, pois era uma
referência aos Dez Mandamentos escritos “pelo dedo de Deus” (Êx 31:18).
Por fim, Jesus falou. Aprovou a execução – sob a condição de que aquele
dentre eles sem pecado fosse o primeiro a atirar a pedra. Tratava-se de uma
resposta engenhosa, pois não existia tal pessoa no grupo. Um por um, os
especialistas na lei judaica vão-se retirando. Jesus volta-se para a acusada e a
liberta, embora sem condenar-lhe o pecado. “Vai e não peques mais” (Jo
8:11).

Eu entretanto, que estou no mundo, sou a luz do mundo. JO 9:5

E m um sábado, Jesus nota um mendigo que era cego de nascença.


“Mestre”, perguntaram-lhe seus discípulos, “que pecado fez este, ou
fizeram seus pais, para nascer cego?” Era uma crença comum entre os judeus
da época que esse tipo de tragédia vinha como punição de Deus. Jesus assim
refuta: “Nem foi por pecado que ele fizesse, nem seus pais: mas foi para se
manifestarem nele as obras de Deus” (Jo 9:3).
Depois Jesus se define como “a luz do mundo”, descrição cativante aos
ouvidos de um cego. E logo cospe no chão, fazendo uma papa de saliva e
barro que passa nos olhos do mendigo. Em seguida, manda o homem lavar os
olhos na piscina de Siloé. João explica que Siloé quer dizer “o Enviado”,
talvez para simbolizar que Jesus foi enviado por Deus para trazer luz
espiritual ao mundo.
O cego faz o que Jesus instruiu e sua visão é restaurada. A notícia chega
aos fariseus, que se enfurecem ao saber que ele mais uma vez violara o
sábado. Interrogam o homem, depois os seus pais, para confirmar se ele
nascera mesmo cego. Crivaram-no então de perguntas uma segunda vez e
condenaram Jesus em público como pecador por haver violado o sábado. “Se
ele é pecador, não sei. O que só sei, é que, sendo eu antes cego, vejo agora”
(Jo 9:25).
Os fariseus acusavam o homem desorientado de ser um dos discípulos de
Jesus, e na mesma hora excomungam da sinagoga. Jesus depois encontra o
homem curado, que confessa sua crença fervorosa nele, como Filho de Deus,
o Messias.
“Eu vim a este mundo a exercitar um juízo”, diz-lhe Jesus, “a fim de que
os que não veem, vejam, e os que veem, se façam cegos” (Jo 9:39). Estas
palavras causam perplexidade, mas no contexto pressupõem que a crença em
Jesus abre os olhos espirituais das pessoas. A dúvida, sobretudo entre os que
se julgavam espiritualmente perceptivos, provou apenas que eram cegos e
pecaminosos.
Os profetas diziam que quando o Messias chegasse, “verão os olhos dos
cegos” (Is 29:18). Curando os cegos, e realizando outros milagres de cura,
Jesus convence, naquele momento, inúmeras pessoas de que ele é o há muito
esperado mensageiro enviado por Deus.

Eu sou o bom pastor. JO 10:11

J esus muitas vezes se descreveu, a si e ao reino do céu, empregando


imagens verbais às quais as pessoas tinham familiaridade. Quando se
chamava de bom pastor, e de rebanho o povo de Deus, seus ouvintes
entendiam que ele se referia a uma relação, de confiança e cuidado, entre
ovelhas e pastor, e assim criava uma atmosfera própria ao entendimento de
suas ideias.
“Eu sou a porta das ovelhas” (Jo 10:7), por exemplo, significa que ele era
a única entrada para a pastagem de Deus. Seus ouvintes sabiam que uma
pastagem típica de ovelhas era um curral de muros de pedra. A entrada era
apenas uma abertura pela qual as ovelhas poderiam passar. Os pastores ficam
a noite toda na entrada, servindo de portão humano que mantém as ovelhas
dentro e os predadores fora. Dentro da pastagem, o rebanho está seguro. Com
esta vívida metáfora, Jesus ensinava que todo aquele que entrar na pastagem
de Deus, por meio dele, “será salvo” (Jo 10:9). Esta imagem também lembra
às pessoas que os pastores às vezes arriscam sua vida pelo rebanho. Davi,
como pastor em Belém, combateu leões e ursos que tentaram arrebatar
algumas das ovelhas. Jesus dizia ainda, como um presságio da crucificação,
que não iria apenas arriscar sua vida, mas dá-la.
Ao ouvir Jesus descrever-se como um pastor espiritual, os estudiosos
judeus provavelmente se lembram de que vários profetas disseram que Deus
ia chegar um dia para conduzir seu povo como um pastor (Is: 40:11; Jer 23:3;
Ez 34:11-12). Alguns judeus pegam pedras para matar Jesus pela blasfêmia de
que “te fazes Deus a ti mesmo” (Jo 10:33). Mas ele escapa de seus algozes e
retira-se de Jerusalém.

Saiu o que estivera morto, ligados os pés e mãos com as ataduras, e


o seu rosto estava envolto num lenço. JO 11:44
ressurreição de Lázaro – narrada apenas no Evangelho de João – é o últim

A mais dramático dos sete “prodígios”, ou milagres, que João usa para
provar a divindade de Jesus.
Depois que Lázaro adoeceu e começou a agonizar em Betânia, suas irmãs,
Maria e Marta, mandam avisar o amigo Jesus. Esperavam que ele viesse
imediatamente para curar o irmão. Porém Jesus deixa-se ficar mais dois dias
onde estava. “Esta enfermidade...”, ele explica aos discípulos, destina-se “... a
dar glória a Deus, para o Filho de Deus ser glorificado por ela” (Jo 11:4).
Quando Jesus chega, soube que Lázaro morrera havia quatro dias. Muitos
judeus da época acreditavam que a alma da pessoa demorava-se junto ao
corpo por três dias para o caso de o corpo ser ressuscitado. No quarto dia, toda
a esperança de reunir alma e corpo se dissipava.
Família e amigos de Lázaro encontravam-se na casa de Maria e Marta em
uma aldeia nos arredores de Jerusalém. Ao vê-los chorando, desconsolados,
Jesus também cai em prantos. Depois, vai com os enlutados até a sepultura.
Para assombro do grupo, ele ordena que abram o sepulcro. Marta protesta
no mesmo instante, argumentando que o corpo em decomposição ia cheirar
mal. Ao que Jesus responde, com brandura: “Não te disse eu, que se tu creres
verás a glória de Deus?” É então retirada a pedra que cobria a sepultura, e ele
clama em alta voz: “Lázaro, sai para fora!” (Jo 11:40, 43). Diante do choque
horrorizado dos enlutados, Lázaro sai, envolto em ataduras da cabeça aos pés.
Para muitas pessoas, este milagre prova que Jesus tinha poder sobre a vida
e a morte, e que ele era ao mesmo tempo o Messias e o Filho de Deus. Mas
vários líderes judeus continuam descrentes. Pior, viam Jesus como uma
ameaça extrema e imediata à segurança nacional judaica. Temiam que a nação
se congregasse em volta dele como o Messias e que depois desencadeasse
uma revolução pela independência, a qual Roma inevitavelmente esmagaria.
“Se o deixamos assim livre, crerão todos nele: e virão os romanos e tirar-nos-
ão o nosso lugar e a nossa gente” (Jo 11:48).
Por mais espantoso que pudesse parecer, a solução que apresentavam era
matar Jesus e o homem que ele ressuscitou dos mortos. João não conta o que
aconteceu com Lázaro, mas escreve sobre alguns dos mais reveladores
momentos de Jesus na Terra.

Tomou Maria então uma libra de bálsamo, feito de nardo puro de


grande preço, e ungiu os pés de Jesus, e lhe enxugou os pés com os
seus cabelos. JO 12:3
N
o sábado, seis dias antes da crucificação, Jesus voltou à casa de Lázaro e s
irmãs, Maria e Marta. Ali, ele e seus discípulos participaram de uma ceia
servida em sua homenagem. A um dado momento da refeição, ou talvez
logo depois, Maria trouxe um frasco de alabastro com bálsamo caro,
perfumado, importado das montanhas do Himalaia, na Índia. O perfume valia
cerca de um ano de salário para um trabalhador comum da época. Maria passa
o bálsamo nos pés de Jesus, depois tira o excesso com os cabelos.
Maria, desta forma, expressava sua devoção a Jesus, pois as pessoas, por
vezes, ungiam com bálsamo caro os bem-amados e os convidados especiais.
Mas também usavam essências perfumadas para ungir os mortos, como
substituto do embalsamamento – evitando com isso o cheiro da
decomposição. Talvez Maria tenha tido este ato como uma forma
particularmente adequada de agradecer a Jesus por ter ressuscitado seu irmão.
Os outros três evangelhos falam de uma unção semelhante, que pode ter
ocorrido em outra ocasião.
Judas opõe-se a essa extravagância. Diz que Maria deveria ter vendido o
perfume e dado o dinheiro a Jesus para ele distribuir entre os pobres ou ela
mesmo poderia tê-lo feito. João conta que Judas levava a bolsa do dinheiro
para os discípulos e que de vez em quando o roubava. O salário de um ano
teria sido uma tentação irresistível para o tesoureiro desonesto.
Mas Jesus respondeu: “Deixai-a que ela guarde isto para o dia da minha
sepultura” (Jo 12:7). Embora Maria talvez não pretendesse fazer da unção
uma celebração, Jesus sabe que logo será morto. E interpreta o ato dela como
o rito final judaico: uma unção para o enterro.

Hosana, bendito seja o Rei de Israel, que vem em nome do Senhor! JO


12:13

M uitos judeus da época de Jesus aguardavam ansiosamente o Messias


prometido por Deus. Acreditavam que ele teria o sangue real de Davi,
libertaria o povo de Roma e restauraria a glória de Israel. Esta paixão
nacionalista percorria um ciclo todo ano até chegar ao clímax durante a
Páscoa, uma comemoração de primavera que celebrava a libertação de Israel
da servidão egípcia. O governador romano da Judeia tinha tanta convicção do
perigo que ordenava rotineiramente o envio de tropas extras a Jerusalém,
destinadas a controlar as multidões entusiásticas que chegavam de todo o
Oriente Médio.
Um grande número de judeus que ouvira falar de Jesus, em especial de
Lázaro ressurgido dos mortos, dá vazão à expectativa contida e ao júbilo de
glória. Aqueles judeus tinham certeza de que ele era o Messias e que a Páscoa
daquele ano iria ser marcada por uma nova emancipação. Quando as
multidões souberam que ele estava a caminho de Jerusalém, vindo da vizinha
Betânia, aglomeraram-se ao longo da estrada para recebê-lo como se
estivessem à espera de um guerreiro triunfante voltando da guerra.
Por toda sua passagem, pessoas estendem um tapete de mantos e ramos de
palmas recém-cortados. Por fim, captam uma visão dele surgindo no topo do
monte das Oliveiras, montado em um jumento. Jesus, que em geral caminha,
tomou providências para entrar na cidade nessa ocasião em um jumento para
cumprir a profecia de Zacarias: “Enche-te de júbilo, ó filha de Jerusalém! Eis
aí, o teu rei virá a ti, justo e salvador! Ele é pobre, e vem montado sobre uma
jumenta, e sobre o potrinho da jumenta” (Zac 9:9). Jesus chega determinado a
confirmar ao povo que ele era de fato o Salvador prometido – embora não
fosse o rei guerreiro que estavam esperando.
“Hosana!”, clama o povo, palavra hebraica que quer dizer “salve-nos”. Era
exatamente o que Jesus pretendia fazer durante aquela semana fatídica,
embora não da maneira como previa a multidão da festa.

Depois lançou água numa bacia, e começou a lavar os pés aos


discípulos, e limpar-lhos com a toalha com que estava cingido. JO 13:5

J oão conta a Última Ceia de forma ímpar. Omite a bênção e a distribuição


do pão e do vinho, comemorado pelos cristãos como o ato religioso da
Eucaristia, ou comunhão. Talvez não os tivesse incluído porque os cristãos da
época conheciam muito bem essa história; muitos estudiosos veem que, dos
quatro evangelhos, o de João foi o último a ser escrito. Em vez de repetir a
cena, ele relata um incidente revelador que ocorreu pouco antes de a refeição
ser servida – um acontecimento excluído dos outros evangelhos, mas que
mostrou dramaticamente por que Jesus viera à Terra.
Ele se enrola em uma toalha, enche de água uma bacia e começa a lavar os
pés dos discípulos. É uma lição exemplar e impressionante de humildade, pois
Jesus troca seu papel de Senhor pelo do servo da casa. “O mesmo Filho do
Homem não veio a ser servido, mas a servir, e a dar a sua vida para redenção
de muitos” (Mc 10:45). Na Última Ceia, Jesus mais uma vez serve seus
convivas, depois anima os discípulos a seguirem seu exemplo servindo uns
aos outros.
O lava-pés, contudo, é mais que uma lição de humildade. A lavagem é um
símbolo da expurgação de pecado que a morte de Jesus dará a todos os que
creem nele. Vê-se isto na severa resposta de Jesus quando Pedro se opõe à
lavagem de seus próprios pés: “Se eu te não lavar, não terás parte comigo” (Jo
13:8). Mais tarde, a primeira geração de cristãos se regozijaria com esse ato de
devoção: “Levanta-te, e recebe o batismo, e lava os teus pecados” (At 22:16).
No decorrer da festa da Páscoa, Jesus anuncia que um dos 12 iria traí-lo e
confidencia a Judas que sabia ser ele o traidor. Silenciosamente, Judas sai de
mansinho para a noite em sua missão nefasta.

E depois que eu for, e vos aparelhar o lugar: virei outra vez, e tomar-
vos-ei para mim mesmo, para que onde eu estou estejais vós também.
JO 14:3

J esus acabava de dar aos discípulos uma notícia dilacerante: ele iria morrer.
Durante os últimos e vários anos, esses homens dedicaram sua vida ao
Mestre. A perspectiva de sua morte iminente deixou-os arrasados.
“Não se turbe o vosso coração”, tranquiliza-os Jesus. “Credes em Deus,
crede também em mim.” Então explica que precisava retornar à casa de seu
Pai para preparar-lhes um lugar. Depois, disse que voltaria e os levaria
consigo para que “vós sabeis para onde eu vou, e sabeis o caminho” (Jo 14:1,
4), ele acrescentou. Tomé logo contestou, dizendo que não sabia para onde
Jesus iria, nem como chegar lá.
“Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida. Ninguém vem ao Pai senão por
mim” (Jo 14:6). Graças a ensinamentos como este, os cristãos da primeira
geração descreviam-se como seguidores de O Caminho. Para eles, Jesus era o
único caminho para a vida eterna.
Não fica claro o que Jesus quis dizer quando explicou que viria outra vez.
Estudiosos especulam que ele talvez se referisse às suas aparições pós-
ressurreição, ou à descida do Espírito Santo sobre os apóstolos no Pentecostes,
ou à sua presença mística nos rituais da Igreja, ou ainda uma aparição logo
após a morte, quando escoltaria os fiéis para sua recompensa eterna. Contudo,
muitos estudiosos acham que Jesus se referia a um retorno mais literal
conhecido como Segundo Advento – após o qual levaria todos os fiéis para o
céu.
Até este retorno, promete Jesus aos discípulos, ele iria responder
pessoalmente a qualquer pedido que avançasse a obra por ele iniciada – o
sentido provável de: “E tudo o que pedirdes ao Pai em meu nome, eu vo-lo
farei” (Jo 14:13). Além disso, acrescenta Jesus, o Pai mandará o Espírito
Santo para lembrá-los do que ele lhes ensinou, e ensinar-lhes mais.

Eu sou a videira verdadeira. JO 15:1

O s profetas do Antigo Testamento descreveram repetidas vezes a nação de


Israel como uma videira preferida que Deus plantou na terra de Canaã e
cuidou com toda atenção – mas ela só produziu frutos ruins, como uma vinha
selvagem (Is 5:1-7; Jer 2:21; Ez 19:10-14). Embora figurada, esta linguagem é
incrivelmente clara para os israelitas que viviam de uma terra rica em
vinhedos. Os profetas acusavam Israel de desobedecer a Deus e fazer o que
lhe aprouvesse. Por isso, Deus tratou-os como um vinicultor trata as vinhas
improdutivas, que eram queimadas e escavadas (Sl 79:17). Em toda a longa
história da apostasia de Israel, Deus puniu a nação por sua desobediência. No
fim, Israel não cumpriu seu propósito de “luz das gentes, a fim de seres tu a
salvação que eu envio até à última extremidade da terra” (Is 49:6).
Jesus, contudo, realiza essa missão, sendo completamente obediente à
vontade do Senhor. Por isso, descreve-se como a “videira verdadeira”.
Simeão, o profeta ancião que abençoa o menino Jesus, previra seu
sucesso: “Porque já os meus olhos viram o Salvador que tu nos deste”, disse
Simeão, orando a Deus, “...como lume para ser revelado aos gentios, e para
glória do teu povo de Israel” (Lc 2:30, 32).
Continuando a ensinar aos discípulos quem era ele e por que viera, Jesus
amplia a analogia da videira. Descreve seus seguidores como ramos que darão
muitos frutos. Fazem isso obedecendo a todos os mandamentos de Jesus – dos
quais um dos mais importantes é se amarem uns aos outros. Os que não são
seguidores de Jesus, porém, são como ramos murchos: “Será lançado fora
como a vara, e secará, e enfeixá-lo-ão, e lançá-lo-ão no fogo, e ali arderá” (Jo
15:6). Jesus adverte-os de que essas pessoas, como a nação desobediente de
Israel, ceifarão uma colheita de tragédia e destruição.

Pai, é chegada a hora, glorifica a teu Filho, para que teu Filho te
glorifique a ti. JO 17:1
m sua mais longa oração que é relatada – presente apenas no Evangelho de

E João –, Jesus faz várias súplicas a Deus Pai. Roga por si mesmo, pelos
apóstolos e pela Igreja, aqueles que depois hão de crer nele por meio dos
apóstolos.
Ele ergue os olhos ao céu e reconhece que se aproxima a hora de sua
crucificação. Por isso, as palavras que agora profere representam seus desejos
mais profundos. Ao dizer que já concluiu a obra que Deus lhe encarregou que
fizesse, Jesus roga ao pai que o glorificasse nele e que lhe fosse restituída a
glória ao lado dele, que ele teve “antes que houvesse mundo” (Jo 17:5). Pediu
também ao Pai que este regozijo lhe fosse restituído de uma maneira que
revelasse nele a glória eterna do próprio Senhor e mostrasse que Jesus Cristo
fora enviado por ele para glorificá-lo na Terra.
Em nome dos apóstolos, que Jesus também envia ao mundo, como o Pai o
enviara, ele roga a Deus: “Santifica-os na verdade. A tua palavra é a verdade”
(Jo 17:17). “Santificar” quer dizer consagrar ou reservar a Deus. Jesus pede
que os discípulos permaneçam santificados em Deus e na verdade sobre a
salvação, em vez de voltarem a fazer parte das pessoas mundanas que
rejeitaram tanto o Senhor quanto aquele que fora enviado por Ele.
Jesus também pede por todos que irão crer nele pelo testemunho dos
apóstolos. Sua oração que irá se tornar a característica da disseminação da
Igreja “para que eles sejam um, como também nós somos um” (Jo 17:22). É
uma súplica pela unidade. Jesus quer que seus seguidores vivam em harmonia
uns com os outros. Quer vê-los unidos pelo mesmo tipo de amor que une o Pai
e o Filho, “para que o mundo conheça que tu me enviaste e que tu os amaste,
como amaste também a mim” (Jo 17:23).

A coorte pois, e o tribuno, e os quadrilheiros dos judeus prenderam a


Jesus, e o manietaram. JO 18:12

A o fim da Última Ceia, junto com as instruções e oração que oferece,


Jesus leva os discípulos a um jardim nas imediações da cidade. Ali,
aguarda sua prisão. Uma patrulha formada de soldados romanos e guardas do
templo, guiada por Judas, encontra Jesus e prende-o. Pedro tenta impedi-los,
desembainhando a espada e cortando fora a orelha do servo do pontífice
chamado Malco. Nenhum dos evangelhos explica por que Judas trai seu
mestre. O mais provável é que houvesse passado a desprezar um Messias que
prometia não a glória de um novo reino de Israel, mas apenas sofrimento e
morte para alcançar o reino de Deus.
Líderes religiosos julgam Jesus durante a noite, em uma sessão de
emergência do sinédrio, tribunal, em Jerusalém, formado por um conselho de
setenta membros entre sacerdotes, anciãos e escribas. Bem cedo, na manhã
seguinte, levam-no a Pilatos, o governador romano da Judeia. Quando Pilatos
disse aos judeus que julgassem Jesus segundo a lei judaica, eles respondem:
“A nós não nos é permitido matar ninguém” (Jo 18:31). Queriam que Pilatos
declarasse a sentença e desse as ordens de execução. Pilatos interrogou Jesus,
perguntando-lhe se ele era o rei dos judeus. Jesus responde que seu reino não
era deste mundo. Após concluir o interrogatório e não ver crime algum nele,
Pilatos tenta repetidas vezes convencer os judeus a não executarem Jesus.
“Pois eu hei de crucificar o vosso rei?” – ele pergunta. “Nós não temos outro
rei senão César” (Jo 19:15), eles respondem.
Este momento poderosamente simbólico é o clímax da narrativa de João
sobre o julgamento. Os líderes espirituais do povo judeu acabaram de rejeitar
o reino de Deus, como Israel fizera antes. No início da história de Israel, o
povo não tinha outro rei senão Deus. Então, um dia, pediram que o profeta
Samuel escolhesse um rei para eles, o que deixa Samuel arrasado, sentindo-se
um fracasso. Deus, contudo, consolou o profeta ancião, dizendo: “Ouve a voz
desse povo em tudo o que eles te dizem. Porque não é a ti que eles rejeitam,
mas a mim, para eu não reinar sobre eles” (1 Sam 8:7). Quando os judeus
rejeitaram Jesus, estavam repetindo mais uma vez a história de rejeitar Deus
como rei.
Diante de oposição tão persistente a Jesus, Pilatos entrega-o aos judeus
para execução – uma sentença de morte a ser realizada imediatamente.

[Eles] o crucificaram, e com ele outros dois, um de uma parte, outro


de outra, e Jesus no meio. JO 19:18

A o descrever a crucificação, João deixou de fora muitos detalhes narrados


nos outros evangelhos – como Simão, de Cirene, que vinha do campo, e
foi recrutado para levar a cruz de Jesus às costas até Gólgota. João, em seu
texto, estava mais interessado em destacar fatos que revelassem Jesus como o
Messias.
Um dos primeiros desses fatos é quando Pilatos encomenda uma placa
com um título afixada na cruz: “JESUS NAZARENO, REI DOS JUDEUS”
(Jo 19:19). Este título foi escrito em três línguas – hebraico, na verdade
aramaico, a língua falada por Jesus; latim, a de Roma; e grego, a mais
disseminada no império. Os líderes judeus protestaram contra a placa,
argumentando que apenas Jesus se achava um rei. Pilatos não os atende, e
João relata o incidente, porque considera o título uma afirmação correta.
João apresenta outros detalhes da crucificação para mostrar que a morte de
Jesus cumpria a profecia. Foi executado entre dois criminosos, fato que os
primeiros cristãos iriam associar com o servo agonizante de Isaías que,
quando morreu, “foi posto no número dos malfeitores” (Is 53:12). Soldados
fizeram apostas pelas roupas de Jesus para ver quem iria ganhá-las, cena que
lembra Sl 22:19 – “lançaram sorte sobre a minha túnica”. Além disso, Jesus
morre antes de os soldados conseguirem quebrar-lhe as pernas, um ato que
apressa a execução por impossibilitar à vítima impulsionar-se acima para
buscar ar. Varam-no com uma lança para certificar-se de que ele estava morto.
A escritura fala daquele que será trespassado e nem sequer um de seus ossos
se quebrará (Sl 34:21; Zac 12:10).
“Tudo está cumprido” (Jo 19:30), diz Jesus. E abaixa a cabeça e entrega
seu espírito. João não descreve estas últimas palavras de Jesus como uma
proclamação de derrota, mas de vitória. Ele concluíra o que Deus lhe mandara
fazer: “O bom pastor dá a própria vida pelas suas ovelhas” (Jo 10:11).
José de Arimateia, rico membro do sinédrio, mas também discípulo
secreto de Jesus, obtém permissão de Pilatos para enterrá-lo. José, que se
opusera à decisão do conselho judaico, escolhe um sepulcro vazio em um
jardim próximo. Um fariseu ajuda-o a resgatar o corpo: Nicodemos, o homem
a quem Jesus disse certa vez: “Importa-vos nascer outra vez” (Jo 3:7). Juntos,
envolveram o corpo de Jesus em lençóis de linho tecidos com especiarias.
Depois, depositam-no com delicadeza no sepulcro, fecham a entrada e
retornam à cidade para cumprir a devoção religiosa de um sábado funesto.

No primeiro dia porém da semana veio Maria Madalena ao sepulcro


de manhã, fazendo ainda escuro: e viu que a campa estava tirada do
sepulcro. JO 20:1

N enhum dos seguidores de Jesus parecia preparado para as estonteantes


descobertas que começaram na manhã de domingo – embora Mateus e
Lucas tenham narrado que Jesus disse aos discípulos que ia ser morto e
ressuscitar no terceiro dia (Mt 16:21; Lc 9:22). Talvez achassem que a
ressurreição a que ele se referiu fosse para o reino do céu, pois muitos judeus
acreditavam que a alma demorava-se junto ao cadáver por três dias antes de
partir.
As versões evangélicas da ressurreição variam um pouco, possivelmente
porque os autores se basearam em diferentes testemunhos oculares. João deu a
entender que Maria Madalena, seguidora de Jesus, foi ao sepulcro sozinha. Os
outros três evangelistas relatam que havia uma ou mais companheiras ao
chegar lá.
João diz que, quando Maria Madalena chegou à sepultura e descobriu que
a tampa de pedra fora retirada, ela logo conclui que alguém roubou o cadáver
e corre ao encontro de Pedro e de outro discípulo, “a quem Jesus amava” (Jo
20:2). De volta ao jardim, Maria chora diante do sepulcro. “Mulher, por que
choras?” (Jo 20:15), pergunta Jesus. Em prantos, Maria não o reconhece.
Acha que é o jardineiro, e pergunta para onde foi levado o corpo de seu
Senhor. Jesus responde com uma palavra: “Maria.” Imediatamente, a mulher
aos soluços vê quem ele era. Talvez a mulher tivesse estendido o braço para
tocá-lo, pois as palavras seguintes do Senhor são: “Não me toques, porque
ainda não subi a meu Pai” (Jo 20:16, 17). É possível que esteja tranquilizando-
a de que ainda não retornou ao céu; ela terá mais tempo com ele lá.
Jesus aparece aos discípulos mais tarde naquele dia, mas Tomé não estava
presente. Quando ele chega, Jesus já saíra. Só o Evangelho de João conta a
história de Tomé de Pouca Fé. “Eu se não vir nas suas mãos a abertura dos
cravos”, diz Tomé aos outros discípulos, “... não hei de crer” (Jo 20:25). Jesus
volta no domingo e estende as mãos com as feridas cicatrizadas a Tomé, que
imediatamente acreditou que o Mestre estava diante dele. “Tu creste, Tomé,
porque me viste? Bem-aventurados os que não viram e creram” (Jo 20:29).
João não conta a ascensão de Jesus ao céu, mas relata em compensação
uma história inédita de Jesus aparecendo mais uma vez aos discípulos no mar
da Galileia. Sete deles haviam pescado sem sucesso durante a noite toda. Ao
se aproximarem da praia, ouvem Jesus chamá-los dali, dizendo-lhes que
lançassem a rede pelo lado direito da embarcação. Embora não o reconheçam,
obedecem-lhe – e arrastam uma rede cheíssima de peixes. Os primeiros
cristãos viram neste milagre um símbolo do rápido crescimento da igreja,
originado pelos pescadores humildes a quem Jesus certa vez dissera: “Vinde
após mim, e farei com que vós sejais pescadores de homens” (Mt 4:19).
Outros muitos prodígios ainda fez também Jesus... Mas foram
escritos estes, a fim de que vós creiais que Jesus é o Cristo, filho de
Deus: e de que, crendo-o assim, tenhais a vida em seu nome. JO 20:30,
31

E ste trecho declara o objetivo do Evangelho. Ao escolher o que escrever e


o que omitir, João orienta-se por esta única meta. Escolhe os
ensinamentos e milagres de Jesus que ajudariam a convencer a todos de que
ele era ao mesmo tempo o Messias e o Filho de Deus. João faz isso porque
está convencido de que, assim que passarem a acreditar em Jesus, as pessoas
vão entrar no reino de Deus um dia e desfrutar da companhia de Jesus num
lugar que ele preparara para elas.
O Evangelho de João conclui com um belo tributo à multidão de prodígios
que Jesus realizou enquanto viveu na Terra: “Muitas outras coisas porém há
ainda, que fez Jesus: as quais, se se escrevessem uma por uma, creio que nem
no mundo todo poderiam caber os livros, que delas se houvessem de escrever”
(Jo 21:25).
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Adaptado de Guia Completo da Bíblia, publicado por Reader’s Digest Association

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil a
partir de 2009.

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Marina Goes

Revisão:
Camila Dias

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e-ISBN: 978-85-7645-541-7

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