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CTLC – CURSO DE TEOLOGIA PARA LEIGOS E CONSAGRADOS

EVANGELHOS SINÓTICOS E ATOS DOS APÓSTOLOS


Apostila montada pelo Pe Willians
Roque de Brito para aplicar aulas
no curso de teologia para leigos e
consagrados da Diocese de Marília.

MARÍLIA-SP
2023
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APRESENTAÇÃO

MARÍLIA, 18 de janeiro de 2023

Esta apostila foi escrita com a finalidade de atender às necessidades de composição de um


material de estudos para as aulas do Curso de Teologia para Leigos e Consagrados da Região
Pastoral 1, da Diocese de Marília/SP. Sua primeira edição foi escrita, portanto, no primeiro
semestre de 2013.
No ano de 2018 ela passou por uma primeira pequena alteração, para adicionar imagens e
conteúdos que faltavam no material. O adicionamento das imagens teve a finalidade de ilustrar
melhor a geografia, a linha cronológica e outros conteúdos, facilitando na retenção de
informações importantes.
Em 2023, encerrou-se uma terceira atualização, iniciada em 2021. Desta vez, foi preparado um
novo layout para que o conteúdo fique mais agradável aos olhos. Além disso, os conteúdos dos
capítulos sobre o evangelho de Mateus e Lucas, bem como do Atos dos Apóstolos, foram
completamente revisados e ampliados. Para melhor compreensão, foram criadas imagens
exclusivas para serem incluídas na apostila.
Este material pode ser utilizado por todos os alunos do curso ou por qualquer pessoa que
desejar aplicar formações em suas comunidades. No entanto, solicitamos que não haja uma
reprodução em larga escala, pois quando ficar completamente concluído e prático, pretende-se
passar os direitos para sua editoração. Se reproduzido em alguma mídia, para apresentação,
solicita-se a gentileza de fazer a devida referência da fonte.
Desejo a todos um bom uso. Que ao utilizá-lo, possamos fazer um encontro com Jesus Cristo na
palavra, que ilumina a vida de toda pessoa.

Fraternalmente em Cristo!

Pe Willians Roque de Brito


Diocese de Marília/SP
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SUMÁRIO

1ª PARTE: CONTEXTUALIZAÇÃO..................................................................................................6
2ª PARTE: A REDAÇÃO DOS EVANGELHOS .......................................................................... 13
3ª PARTE: EVANGELHO SEGUNDO MARCOS ....................................................................... 20
4ª PARTE: EVANGELHO SEGUNDO MATEUS ....................................................................... 34
5ª PARTE: EVANGELHO SEGUNDO LUCAS ............................................................................ 49
6ª PARTE: OS ATOS DOS APÓSTOLOS..................................................................................... 63
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................................... 76
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1ª PARTE: CONTEXTUALIZAÇÃO

1 INTRODUÇÃO

Nosso Curso pretende abordar sistematicamente os pontos essenciais dos evangelhos sinóticos
(Mateus, Marcos e Lucas) e dos Atos dos Apóstolos. Como metodologia, será seguido o processo
de exposição teológica, literária e contextual dos textos, seguidos da leitura de grande parte de
seu conteúdo na bíblia. A intenção será descobrir que estes escritos são uma fonte inesgotável
para a vida e a fé cristã. Sendo fonte de vida e espiritualidade, os estudos não querem apenas
provocar um interesse científico, mas colaborar com os trabalhos catequéticos e pastorais. A
palavra do Senhor é viva e eficaz e, por isso, esse curso visará despertar o desejo de diálogo
orante com a Palavra do Senhor. Veremos a importância de descobrir as palavras e gestos de
Jesus para as comunidades cristãs às quais estes escritos foram dirigidos. Enfim, nosso objetivo
nesse curso é descobrir e aprofundar a Palavra do Senhor, que é sempre nova.
Buscaremos compreender de modo abrangente quem são os autores destes livros, as
comunidades às quais foram destinados, o que os evangelistas quiseram dizer às suas
comunidades, as datas e locais em que foram escritos. Apesar de todos os esforços, os estudos
bíblicos sempre estarão abertos a descobertas de novidades, pois é impossível ter o
conhecimento preciso de todo seu conteúdo, já que são escritos muito antigos. Tudo o que
estudarmos, portanto, jamais esgotará o significado e o conteúdo profundo desta fonte tão alta e
insuperável que são, particularmente, os evangelhos. Por isso, procuraremos também atualizar
na medida do possível, com discussões e debates pertinentes, alguns trechos fundamentais na
compreensão destes Sagrados Livros. E, para isso, não confiaremos somente nos estudos que
fizemos, nem em obras de alguns biblistas, mas, sobretudo, na assistência do Espírito de Deus,
primeiro e verdadeiro autor dos Escritos Sagrados (cf. DV 11).

2 OS EVANGELHOS SINÓTICOS

No cânon católico contêm quatro evangelhos1, a saber: Mateus, Marcos, Lucas e João. Aqui,
porém, dedicaremos especial atenção aos três primeiros. Os evangelhos segundo Mateus, Marcos
e Lucas são também chamados, juntos, de evangelhos sinóticos. Eles recebem este nome devido à
grande semelhança de passagens partilhadas entre eles. Cada evangelho procura transmitir o
que Jesus disse e fez, destacando um aspecto específico de sua mensagem e de seus gestos.
Vejamos as linhas gerais dos evangelhos sinóticos:

1 Os livros contidos na bíblia são chamados de livros Canônicos, pois, são reconhecidos pela Igreja, desde muito
tempo, como sendo inspirados pelo Senhor. Porém, existem inúmeros outros evangelhos atribuídos a diversos
outros autores, normalmente eles são atribuídos aos apóstolos. São considerados apócrifos por não serem, em seu
conteúdo, dignos de fé por completo. No entanto, muitas coisas da tradição cristã se buscam em fontes dos livros
apócrifos, tal como a indicação dos pais de Maria, avós maternos de Jesus.
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Evangelho segundo Marcos: Conforme Strabeli (2011), Marcos acentua a


pessoa de Jesus e fala de seu seguimento, pouco destacando a sua
comunidade, ou seja, os discípulos. Para ele, Jesus é o Messias enviado
por Deus e o homem de Nazaré. Seu messianismo, no entanto, se difere
completamente daquele esperado pelos judeus (político, religioso,
alguém que faria rebelião contra o império etc.), pois era também o Filho
do Homem2, encarnado na realidade de seu povo. Constantemente,
Marcos quer apresentar a pessoa de Jesus e sua identidade, mas convida
o próprio leitor a fazer o caminho de adesão e seguimento do Mestre.
Poderíamos dizer que seu evangelho é cristológico3.
Evangelho segundo Mateus: Este evangelho acentuará a Igreja como
comunidade de Jesus. Segundo Mateus, Jesus é o Mestre que dá a
conhecer a Deus e nos ensina a fazer a vontade do Pai. Por isso, sempre
convocará a comunidade cristã para a prática da Justiça e da
misericórdia. Uma asa não pode alçar pleno voo sem a outra, por isso,
não se pode separar a justiça divina de seu amor infinito (cf. Mt 20,1-16).
A essência de seu anúncio se encontra explicitado nas “Parábolas do
Reino” (cf. Mt 13). Por indicar o caminho para os discípulos, poderíamos
dizer que seu evangelho é eclesiológico4.
Evangelho segundo Lucas: Lucas quer apresentar a todos a salvação
oferecida por Deus. Para ele, Jesus veio ao mundo para salvar as pessoas
e, esta salvação, estende-se a todos os povos, não apenas aos da casa de
Israel. Poderíamos dizer que é o evangelho dos mais simples, pobres, dos
pecadores e, acima de tudo, da misericórdia de Deus. Por isso, estudiosos
afirmam que o seu evangelho apresenta uma catequese soteriológica5.
Também o livro dos Atos dos Apóstolos pode ser incluído na obra lucana
como uma segunda parte ou continuação de seu evangelho. Há muitos
estudiosos que defendem esta tese.

2 Segundo Murilo (2012), este título aparece já no Antigo Testamento e nos apócrifos. Desta forma, Javé chama o
profeta de filho do homem, para demonstrar a diferença entre o profeta e Deus. Assim, e referido com o termo
Hebraico Ben Adam [ser humano], bar enashi, mesma significado em aramaico. Na Mesopotâmia (religião do
Zoroastro), o mundo tem quatro períodos de 3 mil anos. O último milênio de cada período, inaugurado com a
chegada do SALVADOR, que se chama... ...FILHO DO HOMEM. Na apocalíptica intertestamentária é que filho do
homem poderá indicar o Messias. Em suma, originalmente, o termo Filho do Homem não queria de direcionar ao
messias, mas logo é atrelado a ele quando se descobre seu significado e associa-se a espera do Messias. Na língua de
Jesus, provavelmente, Filho do Homem significa Eu. Esse termo, em Ezequiel, significa ser humano; na Mesopotâmia,
salvador; na apocalíptica intertestamentária, Messias e em Jesus é difícil saber em que contexto esse termo foi dito.
3 Podemos assim dizer, pois se trata de um evangelho que tem o Cristo como centro. Não que os demais não O
tenham, porém, Marcos se preocupa, de uma forma especial, em responder “quem é Jesus?”, qual a identidade do
Messias?
4Podemos dizê-lo eclesiológico porque trata dos seguidores de Cristo, que é a sua Igreja, com especial atenção.
Mateus quer destinar seu evangelho a uma comunidade em particular e mostrar, como os ensinamentos de Jesus,
pode transformar para melhor a vida de seus seguidores.
5Soteriológico significa as coisas referentes à salvação. Esta palavra é uma derivação do grego soter, que significa
salvação. Indica que a centralidade do evangelho é apresentar Jesus como salvador do gênero humano.
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Como podemos observar, apesar das semelhanças de passagens compartilhadas entre si, os
evangelhos sinóticos têm inúmeras diferenças e particularidades. Para que tenhamos maior
elucidação do significado da expressão Evangelhos Sinóticos, veremos, agora, o que significam
tais expressões.

2.1 Evangelho

Segundo Marconcini (2009), em sua origem, a palavra evangelho não se referia aos quatro textos
sagrados acima mencionados. Antes, ela era utilizada para a designação de um anúncio
oralmente proferido verbalmente, como propõe a sua raiz grega, ευαγγέλιον (Euaggélion), que
significa uma boa (eu) notícia (aggélion). A partir dessa informação, pode-se apresentar ao
menos quatro momentos importantes de desenvolvimento do termo, até que chegasse a designar
os quatro evangelhos como os conhecemos atualmente.
Num primeiro momento, ela tinha uma correspondente, que era o termo hebraico bissár, que
significava evangelizar. Essa expressão indicava uma notícia que causava alegria ao povo como,
por exemplo, o nascimento de um filho (cf. Jr 20, 15), a vitória sobre os inimigos ou a morte do
adversário (cf. 1Sm 31,9; 2Sm 1,20; 18,19.20.27-31). Marconcini explica, porém, que
rapidamente este verbo hebraico adquiriu um significado religioso como a proclamação da
salvação na assembleia (cf. Sl 40,4.10). Também o profeta Isaías se utiliza do termo durante a
recondução do povo de Israel para Jerusalém no final do exílio babilônico (586-537a.C.) para
indicar a salvação universal (cf. Is 40,9). E seu sentido não parou de variar. Com o tempo a
palavra ficou esquecida e aparecia poucas vezes na bíblia, na variação besorah que, na verdade,
jamais foi traduzida por “evangelho”. Apesar disso, continuava a indicar uma alegre mensagem
ao povo e, ao mesmo tempo, uma recompensa para quem a transmitiu. Posteriormente, o termo
foi readquirindo um valor não religioso.
Depois desse primeiro momento, esta palavra desenvolveu a sua semântica ao passar a ser
utilizada no mundo grego, por ocasião de um anúncio de vitória na batalha, como resposta dos
deuses por meio de alguns oráculos, chegando a indicar um acontecimento importante de
qualquer natureza. Além disso, o termo evangelho foi muito utilizado para indicar anúncios
referentes a momentos importantes da vida dos imperadores, tal como seu nascimento,
maioridade, algumas de suas mensagens e decretos que queriam ou visavam instaurar a paz na
terra, entre outros assuntos que lhe são correlatos.
A terceira fase de compreensão nos faz adentrar no coração dos sinóticos. O próprio Jesus se
torna o significado mais certo e real dessa palavra. Enquanto Jesus ainda exercia seu ministério
público na Galileia o termo evangelho era uma identificação profunda “entre o que Jesus diz, faz e
é” (MARCONCINI, 2009, p.7).
A quarta fase que precede o evangelho redigido é o momento da pregação apostólica. Os
apóstolos se utilizavam deste termo para indicar todos os ensinamentos, ações, sobretudo, o fato
salvífico da morte e ressurreição de Jesus. Desta forma, o evangelho é sobre Jesus e é anunciado
por aqueles que foram escolhidos e enviados ao mundo para o seu anúncio e proclamação (cf. Mc
16,15). Os evangelhos são, portanto, como uma condensação da palavra e da vida de Jesus e têm
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uma forma de se expressar que não pode ser encontrada em nenhuma outra forma escrita do
tempo antigo.
Para Marconcini (2009):

Os evangelhos são, antes, proclamação de um acontecimento único e definitivo,


ou seja, a intervenção de Deus em Cristo, que chama resolutamente à conversão
todos os homens, que não encontrarão nada mais importante, nem no plano
pessoal nem no plano comunitário. A narração do acontecimento se configura
como testemunho de quem por décadas traduziu em vida a palavra de Jesus. Por
isso os evangelhos são também atualização, diálogo, catequese: dimensão esta
que nos dá a capacidade e a possibilidade de poder traduzi-los para a nossa época
e para a nossa vida pessoal. (MARCONCINI, 2009, p.9)

Para Marconcini, os evangelhos são muito mais que relatos ou histórias, mas a proclamação de
uma verdade única e irrepetível. Primeiramente, aquele momento enquanto o Senhor caminha
com o povo e anuncia a si mesmo, levando todos a consciência de que viera implantar o Reino de
Deus e; em seguida, o momento dos apóstolos, que representam a Igreja peregrina no mundo,
exercendo o mandato de seu Senhor, ou seja, o envio para evangelizar. Nesse sentido, os
evangelhos contribuem no diálogo com Deus e na catequese, sendo, por si, fonte inesgotável das
verdades relacionadas ao Filho de Deus, plenitude da revelação cristã (cf. Hb 1,1-4).

2.2 Sinótico

A palavra “sinótico” deriva do grego συνοψις (transliteração: synopsis) e é a junção de duas


palavras: olhar (opsis) e junto ou conjunto (syn). Este termo foi atribuído para designar os três
primeiros evangelhos pelo pesquisador alemão Johann Jakob Griesbach 6, em sua obra intitulada
de Synopsis Evangeliorum, a saber, Sinopse dos Evangelhos. Esta obra foi publicada em Halle, no
ano de 1776. Segundo Griesbach, os três primeiros evangelhos poderiam ser colocados em
colunas próximas, pois é possível observar muitas semelhanças na organização e ordenamento
dos fatos narrados. Entretanto, um olhar para os sinóticos nos faz recordar da seguinte
expressão agostiniana: “há entre eles uma concordância discordante” (Santo Agostinho). Ou seja,
é importante tomar consciência de que a unicidade literária dos três evangelhos não se trata de
uma concordância ou discordância essencial, mas de três textos distintos que sofreram mútua
influência.
Para Marconcini, é importante ressaltar que os evangelhos segundo Mateus, Marcos e Lucas
concordam quanto à sucessão dos fatos: o ministério de Jesus tem seu início na Galileia,
atravessa a Samaria e chega, por fim, a Jerusalém, onde se encontrará com sua morte e
ressurreição. Os três evangelhos também concordam quanto à sucessão interna de suas seções e

6Johann Jakob Griesbach (Butzbach, 4 janeiro de 1745 — Jena, 12 de março de 1812) foi um teólogo alemão,
professor a partir de 1775 na Universidade de Jena. Estudioso da Bíblia, é considerado um dos pais da crítica do
Novo Testamento. Esteve em contato com vários dos contemporâneos mais ilustres da região e da época, como
Herder, Goethe e Schiller, tendo cedido o auditório de sua casa em Jena, em 26 de maio de 1789, para que Schiller
pudesse realizar sua palestra inaugural da cátedra de História na Universidade.
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até mesmo na escolha de palavras similares. No que tange às diferenças, elas se apresentam de
formas diversas, fazendo-se presentes no uso de palavras diferentes em textos similares,
ressignificando a teologia dos escritos. Assim, o termo Sinótico quer indicar que estes três livros
são perfeitamente complementares entre si, inclusive em seus gêneros literários. No entanto, é
preciso tomar cuidado para interpretar um relato a partir da visão de um evangelista,
transpondo-o para os demais, pelo simples fato de estar contido nos três evangelhos de maneira
a não considerar as diferenças metodológicas e teológicas entre si.

3 ATOS DOS APÓSTOLOS

Para muitos historiadores, este livro foi separado posteriormente de sua primeira parte, a saber,
o Evangelho segundo Lucas. Por isso, trata-se do mesmo autor do terceiro evangelho. A redação
do livro dos Atos dos Apóstolos está situada na segunda geração de cristãos, que se iniciou a
partir do ano de 66d.C. Nesse período, há um esfriamento do cristianismo, porque aqueles que
foram as testemunhas oculares da vida, morte e ressurreição de Jesus estavam morrendo e a
parusia não tinha acontecido imediatamente, como acreditavam os primeiros cristãos. Pode-se
dizer que a comunidade cristã passou por seu primeiro momento de crise de fé e os motivos
eram os mais variados, a saber: (1) morte dos discípulos e discípulas de Jesus e o não retorno do
Senhor, até então; (2) reorganização do Judaísmo após a destruição do templo de Jerusalém, a
partir do acontecimento do Concílio de Jâmnia7 e; (3) repressão da parte do Império Romano,
particularmente dos imperadores Vespasiano (69-79d.C.), Tito (69-81d.C.) e Domiciano (81-
96d.C.), que decidiram prender, castigar e matar todos os que se considerassem cristãos.
Aqueles discípulos que eram encarregados de confirmar os primeiros cristãos na fé, costumavam
alertar suas comunidades para que permanecessem vivas e vigilantes, a fim de esperar a
segunda vinda de Jesus. Porém, a parusia nunca acontecia e eles começaram a caminhar sem
direção, já que eram perseguidos e Jesus não os vinha libertar. Consequentemente, os apóstolos
se decidiram por animar as comunidades através dos escritos, chamando-os a recordar que o
Senhor caminha sempre ao lado dos que nele creem. É nesse contexto que o Atos dos Apóstolos se
constituiu num reacender das comunidades que estavam desanimadas, vivendo valores até
mesmo anticristãos.
Por volta dos anos 65 a 70d.C. surgiu o texto de Marcos e, depois, viu-se um volume maior de
outros escritos. Portanto, as comunidades da segunda e terceira gerações serão as grandes
herdeiras dos escritos deixados pela segunda geração. O período do livro dos Atos dos Apóstolos

7 Antes de 90 d.C, os judeus nunca tiveram a real intenção de definir estritamente o seu canôn de livros sagrados.
Entre eles, porém, vários grupos como saduceus, fariseus e diversos outros que conhecemos, tinham uma espécie de
livros que costumavam indicar e contraindicar. No entanto, com o avanço do cristianismo, já no primeiro século,
com a destruição do Templo de Jerusalém (± 70 d.C.) e com a necessidade de estabelecer uma identidade judaica
eles realizaram a assembleia de Jâmnia (±90 d.C.). Entre outras definições dessa assembleia, estabeleceu-se todo o
cânon judaico, que é quase semelhante ao cânon católico do Antigo Testamento, com exceção dos deuterocanônicos7,
a saber: Tobias, Rute, 1 e 2 Macabeus, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico, Baruc e, partes de Ester e Daniel. Eram
livros considerados sagrados, porém foram excluídos para acabarem com as influências do helenismo, pois estes
escritos foram escritos fora do território de Israel e eram considerados como ameaças a fé judaica. (RETIRADO DA
APOSTILA DE INTRODUÇÃOÀ SAGRADA ESCRITURA, 2016, PE WILLIANS)
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apresenta sobre o que costumamos denominar de período apostólico, que se se estende do


evento da ressurreição de Jesus (±30d.C.) até a morte de Paulo em Roma (±66d.C.). Por assim
ser, o livro apresenta relatos acerca de todo o período apostólico, que se estende do ano 30 a 70
d.C. Como tudo na história da fé, antes de ser redigido é transmitido por via oral, a redação do
livro dos Apóstolos ocorreu no período chamado subapostólico (± 70-135d.C.). Segundo Richard,
esta obra teria sido escrita entre os anos 80-90d.C, provavelmente, em Éfeso. Nesta época, já
eram institucionalizados vários tipos de Igreja, e o livro dos Atos relata ao menos dois, a saber:
os cristãos de Jerusalém e os helenistas de Antioquia.
Ao retomar os escritos dos Atos e explorá-lo de forma específica, veremos que os problemas das
primeiras comunidades cristãs muito podem nos iluminar em nossa atuação pastoral. Apesar de
o livro estar subdividido em Atos de Pedro e Atos de Paulo na maioria das bíblias, nós veremos
uma parte tão importante quanto estas duas, a qual poderíamos chamar de Atos dos Helenistas,
que se inicia com a eleição dos sete helenistas (cf. At 6,1-7) e se conclui com a Assembleia de
Jerusalém (cf. At 15,1-35).

4. QUADRO DEMONSTRATIVO

Segue abaixo um quadro demonstrativo dos acontecimentos mais importantes do primeiro


século do cristianismo e como os primeiros cristãos foram se fundamentando para a formulação
das obras do Novo Testamento:
±66d.C.
Morte de ±80-90d.C.
Pedro e Composição do
Paulo Evangelho de
±36 d.C.
Conversão Mateus, Lucas e Atos
27d.C. de Paulo Viagens de dos Apóstolos
Vida pública Paulo: 3 ou
de Jesus: 4 viagens.
±3anos.

±30 d.C. ±55-66d.C.


Paixão, morte e Período
ressurreição de ±90-100 d.C.
±6 a.C. redacional das Período de
Jesus cartas paulinas
Nascimento Redação do
de Jesus Evangelho de João
e escritos joaninos
±49d.C.
Assembleia de Jerusalém
±70 d.C.
±70 d.C. Redação do
Destruição do Templo Evangelho
de Jerusalém de Marcos
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2ª PARTE: A REDAÇÃO DOS EVANGELHOS

1 DE JESUS AOS EVANGELHOS

Nos últimos dois séculos, muitas questões têm surgido no que tange à data, aos autores, às
comunidades para as quais foram escritos os evangelhos, entre outras situações. Sem dúvida, os
quatro evangelhos não se formaram do nada, eles certamente tiveram uma base segura. A
primeira base dos escritos foi o próprio Jesus, com seus gestos e palavras; depois, houve a fase
de transmissão oral dos acontecimentos e ensinamentos, além da composição de pequenos
escritos; por fim, chegamos às suas redações, que abordaram diferentes enfoques dos mesmos
fatos. Assim como os demais mestres da história, Jesus não deixou nada por escrito para seus
seguidores, na verdade, foram os seus discípulos que escreveram o Novo Testamento a partir
daquilo que testemunharam, pesquisaram ou ouviram (cf. Lc 1,1-4). Estes três momentos da
constituição dos evangelhos escritos podemos denominá-los da seguinte forma: pré-Pascal, pós-
Pascal e o período redacional. Vejamos resumidamente o que caracteriza estes três períodos.

1.1 O Período Pré-Pascal

Este período corresponde ao ministério e à vida pública de Jesus na Galileia, na Samaria e na


Judeia. Neste momento, o próprio Jesus ensinava pessoalmente os seus discípulos por gestos e
ações. Não se faz necessária a palavra escrita, já que o próprio Cristo, evangelho vivo, está no
meio deles. Jesus sabia que apenas a palavra viva era capaz de formar as pessoas. Quanto à
palavra escrita, era considerada por ele apenas um recurso a mais. Neste período, Cristo, Palavra
e Reino de Deus se identificam plenamente, fazendo parte de uma realidade única. Quando Cristo
fala do Reino de seu Pai que já é chegado, Ele fala de si mesmo.

1.2 O Período Pós-Pascal

Trata-se do momento seguinte à morte e ressurreição de Jesus. Ele subiu aos céus, enviou o
Espírito e, agora, os apóstolos pregam em seu nome. Assim, as ações e acontecimentos do Senhor
passam a ser refletidos nas reuniões das comunidades cristãs primitivas logo após sua morte e
ressurreição (cf. At 1,22; 4,33; 6,4; 19,37-43 etc.). As testemunhas oculares de Cristo passam a
transmitir de viva voz aquilo que ele fez e ensinou, ou seja, toda a comunicação do evangelho era
feita de forma oral. Trata-se daquele momento que nós chamamos de querigma8, ou seja, o

8Querigma é o primeiro anúncio, a boa notícia, a proclamação de uma novidade. O querigma é o anúncio do amor de
Deus, que salva o mundo, pela morte e ressurreição de Jesus. O querigma é uma notícia boa, envolvente, atraente,
encantadora. Por ser notícia, não tem muita explicação, nem muita doutrina. Ele facilita o encontro com Jesus Cristo,
a experiência do amor de Deus e o encantamento pelo evangelho, sendo o primeiro passo da iniciação cristã.
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primeiro anúncio do Ressuscitado. Estas testemunhas e comunidades eram, elas mesmas, as


“cartas do Senhor”, segundo Strabeli. Nesse período também se compõe alguns pequenos textos
litúrgicos ou catequéticos, para serem lidos em comunidade. Certamente os evangelistas fizeram
uso do conteúdo desses textos para escrever os respectivos evangelhos. Em muitos casos, eram
utilizados em reuniões litúrgicas os textos do Antigo Testamento, relidos à luz de Cristo e de sua
ressurreição. Foi nesse período que Paulo escreveu as suas cartas, que oferecem um conteúdo
riquíssimo aos evangelistas. Em seus escritos, Paulo exortava os fiéis a conservarem a Palavra
que tinham ouvido (cf. 2Ts 2,15; 2Tm 1,13). Ele mesmo diz que transmitia o que ele recebera (cf.
2Cor 15,3). Em suma, apesar da existência de pequenas perícopes9, a maior parte do conteúdo
dos evangelistas foi extraída de diversas tradições orais.

1.3 O Período Redacional

Trata-se do período em que os evangelhos começaram a ser redigidos, a partir do ano 70d.C. As
diversas necessidades das comunidades da segunda geração10 desembocaram na inevitável
composição dos evangelhos, para deixar por escrito o testemunho de Cristo. O primeiro
evangelho a ser escrito, segundo os exegetas atuais, foi o evangelho segundo Marcos (±70 d.C.),
em seguida os evangelhos segundo Mateus (± 80-90 d.C.) e Lucas (± 80-90d.C.). A grande maioria
dos pesquisadores concorda que estes textos foram escritos entre os anos 70-90 d.C., mas não é
demasiado recordar que se trata de datas aproximativas.
Com a morte dos apóstolos, começou a surgir um receio de se perder a mensagem original da
Boa Notícia11 - do grego ευαγγέλιον, traduzido por evangelho. A partir de então, os evangelhos
começaram a ser redigidos a partir das realidades de cada comunidade para as quais eles foram
endereçados. Podemos elencar três preocupações simultâneas que motivaram a composição dos
evangelhos escritos, a saber:
• Evocar de uma maneira eficiente a história passada de Jesus;
• Atualizar a tradição recebida, pois Jesus morto e ressuscitado é presente;
• Relação com toda a Escritura (A.T.). Embora não sejam livros propriamente históricos,
estão devidamente assentados na história e evocam dados reais a comunidade judaica
anterior ao ano 70 d.C.

9 Pequenas seções ou parágrafos de livros sagrados, especialmente a bíblia.


10Trata-se do período em que viveram os cristãos que não conheceram pessoalmente Jesus, mas conheceram os
seus apóstolos. Os historiadores costumam colocar essa fase entre os anos 66d.C., com as mortes de Pedro e Paulo, a
96d.C., com a morte de João.
11 A palavra “evangelho” é mencionada doze vezes pelos evangelistas, das quais, segundo Marconcini, quatro vezes
em Mateus (cf. Mt 4,23; 9,35; 24,14; 26,13) e oito vezes em Marcos (cf. Mc 1,14.15; 8,35; 10,29; 13,10; 14,9; 16,15).
Todas as vezes que a palavra está dita nos textos sagradas, elas saem da boca do próprio Jesus ou se refere
diretamente à sua pregação. Já em Lucas, prevalece o verbo “evangelizar”, encontrado dez vezes em sua obra (cf. Lc
1,19; 2,10; 3,18; 4,18.43; 7,22; 8,1; 9,6; 16,16; 20,1). Quando se utiliza deste termo, Lucas indica que Jesus veio
trazer a consolação predita pelos profetas (cf. Is 61,1.3). Assim sendo, Cristo é o portador da esperada notícia da
intervenção definitiva de Deus em benefício do povo.
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1.4 Sintetizando

Segundo Marconcini, podemos destacar resumidamente estas três etapas ou momentos da


comunidade cristã até que que culminou no período redacional dos evangelhos. Na comunidade
Pré-Pascal não havia a necessidade de escrever ou transmitir o evangelho, já que o próprio Jesus
o fazia, como palavra viva e enviada de Deus. Na comunidade Pós-Pascal, há a necessidade de
transmitir a boa notícia de viva voz, pois este foi o mandato do Senhor (cf. Mt 28,19-20; Mc
16,15) e o Senhor sempre cooperou na missão dos seus discípulos (cf. Mc 16,20). Durante esse
período de anúncio oral e querigmático vários fatos, como o querigma, a Assembleia de Jerusalém,
as cartas paulinas e diversos outras fontes ajudaram a desembocar, enfim, no período redacional.
Entre as características das comunidades pré-Pascal e pós-Pascal há uma linha de continuidade e
outra de descontinuidade. Na linha de continuidade percebemos os personagens, que são os
mesmos discípulos que o Senhor havia chamado. Na linha de descontinuidade perceberemos que
os personagens são os mesmos, porém, não são mais iguais, pois foram transformados pela
experiência do Ressuscitado. No momento em que eles redigiram os evangelhos, Jesus não era
considerado um mero Mestre do passado, mas o Senhor12 Ressuscitado, vivo e presente na vida
comunitária.

2 FONTES DOS EVANGELHOS

Atualmente, há várias teorias para explicar as origens e as fontes onde os evangelistas buscaram
informações para redigir os evangelhos. Lucas, por exemplo, nos deixa clara a sua preocupação
em ter realizado uma pesquisa acurada dos fatos que foram transmitidos de forma oral, além de
reconhecer a tentativa de outras pessoas para redigir os evangelhos (cf. Lc 1,1-4). Aquilo que as
primeiras comunidades pregaram ou redigiram evangelizar o para celebrar nos dias que se
sucederam a ascensão de Jesus, fez que os evangelistas encontrassem diversas fontes para seus
escritos. Não é mais possível encontrar os originais desses textos, mas é verificável quando se
lança olhar para as seções contidas nos evangelhos, especialmente o de Marcos. Estes supostos
textos são considerados parte de uma fonte que se convencionou chamar Quelle13 ou Fonte Q
pelos estudiosos da Sagrada Escritura, pois não se sabe ao certo quais seriam estas fontes. Por
ser o primeiro a ser escrito, segundo a maioria dos estudiosos, o evangelho de Marcos também
servirá como fonte para os evangelhos de Mateus e Lucas, e isso justificaria o seu conteúdo tão
semelhante no que tange à ordem e à narração dos fatos. Essa hipótese dá origem ao chamado
problema sinótico.

12Começa-se a chamar Jesus de Senhor (do grego Κυριος, cuja transliteração é Kyrios). Esse título, porém, não tem
mais o mesmo significado de quando os discípulos de Jesus dirigiam a Ele, mas evoca na pessoa de Jesus a sua
divindade. Tem-se início o desenvolvimento de uma cristologia mais elaborada.
13Quelle é uma palavra alemã que pode ser traduzida para o português como fonte. Esta(s) fonte(s) recebe(m) este
nome por não se saber com precisão que ela seria. Assim, os teólogos alemães, a princípio, quiseram designar as
fontes diversas que os evangelistas usaram para a composição de seus evangelhos.
16

2.1 Problema Sinótico

Originado de uma junção de duas palavras gregas, o termo sinótico significa “lançar um olhar
junto” ou “ver simultaneamente”. Deste termo nasce a expressão “problema sinótico” que se refere
a um dos aspectos de pesquisas dos três primeiros evangelhos, pois as narrativas e os discursos
de Jesus tanto em Mateus como em Marcos e Lucas têm muita semelhança entre si. De tal modo
que se fossem colocadas em colunas paralelas poderiam ser lidas comparativamente em um só
olhar, ou seja, sinopse/sinótico. Um mesmo relato pode ser narrado por um, dois ou pelos três
evangelistas. Apesar dessa semelhança na apresentação de seu conteúdo, há uma diferença
muito grande quando tomada por base as suas respectivas teologias. Segundo Santo Agostinho,
no entanto, há uma concordância discordante entre os sinóticos.
Qual dos evangelhos surgiu primeiro? Algum deles é a fonte dos demais? A resposta a essas
perguntas denominamos de “problema sinótico”. Ainda não existe tese conclusiva para
solucionar esse “problema”. Na verdade, há muitas teorias no campo acadêmico, um verdadeiro
emaranhado de hipóteses, sempre reformadas. Atualmente, desponta-se a Teoria das duas
Fontes que parece explicar melhor a concordância e discordância entre os sinóticos. Vejamos o
esquema desta teoria:

Colocando em números, o problema sinótico se apresenta da seguinte


forma, conforme Santos (2012, p.11):
1. Dos 661 versículos do Evangelho de Marcos, 600 estão também no de
Mateus, e 350 estão no de Lucas.
2. Os evangelhos de Mateus e Lucas têm 240 versículos em comum, e que não
constam no Evangelho de Marcos.
3. Além disso, tanto Mateus como Lucas têm versículos próprios a cada um.

A teoria das duas fontes é, portanto, a mais difundida atualmente. Ainda assim, não se pode
afirmar com precisão que ela corresponda aos fatos, sem erros. Para os exegetas que são
adeptos desta teoria, o evangelho de Marcos e a “fonte Q” seriam as bases para os evangelhos de
Lucas e Mateus. Isso justificaria o fato de 97% do evangelho segundo Marcos estar presente nos
17

evangelhos segundo Mateus e/ou Lucas. O que se percebe é que apenas 3% do evangelho de
Marcos constitui um material exclusivo, ou seja, contido apenas na sua própria redação. Porém, a
concordância existente entre Mateus e Lucas que não estão contidas em Marcos é considerada de
outra fonte especial, a qual foi designada de fonte Q. E, como já vimos, essa teoria da fonte Quelle
é um assunto ainda mais distante de ser encerrado, havendo inúmeras divergências nesse
sentido. Em termo de fé, porém, todos os evangelhos são fontes perenes e iluminam desde
sempre a caminhada dos discípulos de Jesus.

3 VALOR HISTÓRICO DOS EVANGELHOS14

Os Evangelhos são livros históricos? Jesus Cristo viveu realmente? Disse tudo aquilo que foi
escrito? Em primeiro lugar, dizemos que os Evangelhos, muito mais que narrativas de fatos
históricos, são baseados em fatos da vida e obra de Jesus Cristo. Não se pode provar fato por fato,
ou seja, com todas as minúcias. Por outro lado, não se pode negar o valor histórico geral dos
fatos, exemplificando: o fato de Jesus realizar milagres, ainda que alguns sejam narrados mais
teologicamente que como fatos. Quanto ao modo que os hagiógrafos escreveram, os costumes, a
cultura, as palavras, a mentalidade, correspondem às formas de se expressar das pessoas que
viviam naquela época. Nesses assuntos não há discordância.
Os impostos e as leis, as religiões e os grupos dentro do judaísmo (saduceus, publicanos, fariseus,
zelotes, herodianos etc.), as cidades e aldeias da época, a personalidade de Cristo, que às vezes
contradiz o que era comum aos homens de época etc. Todos esses e outros fatores formam um
conjunto de fatos quase impossível de serem criados em tão pouco tempo e repetido por tantas
pessoas, sobretudo porque estão organizados com coerência e perfeição. Há, ainda, outros fatos
que seriam inconcebíveis de considerar sua invenção, ainda que houvesse o interesse de
apresentar suas crenças para convencer outras pessoas, tais como: a paixão, a morte e a
ressurreição. Se hoje a cruz é considerada um símbolo de glória e do amor divino operado em
favor de nossa justificação, na época simbolizava uma das mais humilhantes condenações. Em
outras palavras, a história da paixão seria contraproducente15, já que as pessoas preferem
histórias mais gloriosas. Para qualquer charlatão que quisesse apregoar uma nova doutrina, pois
não seria interessante relatar diversas contradições contidas no Novo Testamento, como, por
exemplo, a covardia dos Apóstolos ao abandonarem o seu Mestre. Ou seja, esses limites jamais
seriam aceitos religiosamente para a sociedade daquela época.
Para concluir, pode-se dizer que os Evangelhos não são livros históricos no sentido atual
atribuído à essa palavra, mas jamais se pode negar de que eles sejam baseados em fatos. Os
evangelistas nunca tiveram a intenção de serem historiadores, mas pregadores, evangelizadores,

14Trecho retirado na íntegra da apostila da disciplina de Evangelhos Sinóticos da FAJOPA (Faculdade João Paulo II).
O Autor da apostila é o Ms. Pe. Sidnei de Paula Santos, que é padre na Diocese de Marília e professor na FAJOPA.
Apenas alguns trechos sofreram alguma alteração, ajuste ou adequação.
15Fosse uma história criada seria muito mais plausível que eles não tivessem elencado suas próprias fraquezas,
como muitos fazem ao descreverem um fato ou mesmo, ao criar um. Modelo épico para esta hipótese é o clássico “Os
Lusíadas”, onde Luis de Camões faz uma épica história que visa contar a glória dos lusitanos no caminho para as
Índias. Em momento algum Camões elenca as fraquezas dos portugueses, mas apenas as suas glórias e vitórias.
18

catequistas e instrumentos de Deus. Consequentemente, eles relatam fatos passados, no entanto,


a sua principal preocupação era responder aos anseios de seus contemporâneos. Ou seja,
preocupam-se, sobretudo, com a transmissão da fé ao público, ainda que não virem as costas aos
fatos. Alguns autores, além dos escritores bíblicos, também falaram da existência de Jesus Cristo.
Flávio Josefo16, fariseu e historiador contemporâneo a Jesus, conta detalhes daquele tempo,
vejamos:

Por essa época, apareceu Jesus, homem sábio, se é que há lugar para o
chamarmos homem. Porque Ele realizou coisas maravilhosas, foi o mestre
daqueles que recebem com júbilo a verdade, e arrastou muitos judeus e gregos.
Ele era o Cristo. Por denúncia dos príncipes da nossa nação, Pilatos condenou-o
ao suplício da cruz, mas os seus fiéis não renunciaram ao amor por Ele, porque ao
terceiro dia ele lhes apareceu ressuscitado, como o anunciaram os divinos
profetas juntamente com mil outros prodígios a seu respeito. Ainda hoje, subsiste
o grupo que, por sua causa, recebeu o nome de cristãos17 (JOSEFO, Antiguidades
Judaicas, XVIII, 63a)

3.1 Modos da interpretação histórica dos evangelhos

Permanecendo na questão histórica, além da consideração dada acima, surgiram diversas


escolas e teorias para abordar a historicidade dos evangelhos ao longo dos séculos. Há uma clara
evolução histórica na maneira de diversas escolas hermenêuticas para compreender os
evangelhos, das quais destacamos as três maiores tendências, a saber: 1) Interpretação Literal;
2) Negação de Valor e, por fim; 3) Valor substancial.
Desta forma, vislumbramos os três momentos históricos sobre a interpretação dos fatos
narrados e dos autores dos evangelhos. Atualmente, a terceira fase é a mais aceita e as duas
primeiras foram quase que completamente superadas. Elas servem apenas para uma melhor
compreensão histórica dos modos de interpretação e para compreendermos melhor como se
chegou à escola que defende o Valor Substancial dos Evangelhos. Vejamos abaixo um breve
panorama dessas etapas de interpretação bíblica.

3.1.1 A interpretação literal

O primeiro método de interpretação é o que chamamos de sentido literal do texto bíblico. Ele
quer mostrar qual o universo que o escritor sagrado tinha diante de si, como a visão
cosmológica, política, religiosa, econômica, social etc. Nesse sentido, recentemente aplicado à

16
Flávio Josefo, ou apenas Josefo (em latim: Flavius Josephus; 37 ou 38 — 100), também conhecido pelo seu nome
hebraico Yosef ben Mattityahu (‫יוסף בן מתתיהו‬, "José, filho de Matias" [Matias é variante de Mateus]), foi um
historiador e apologista judaico-romano, descendente de uma linhagem de importantes sacerdotes e reis, que
registrou in loco a destruição de Jerusalém, em 70 d.C., pelas tropas do imperador romano Vespasiano, comandadas
por seu filho Tito, futuro imperador. As obras de Josefo fornecem um importante panorama do judaísmo no século I.
17 Texto extraído de: https://cleofas.com.br/o-que-flavio-josefo-historiador-judeu-37-100-fariseu-escreveu-sobre-

jesus/, acessado em 27 de junho de 2022, às 18h18.


19

bíblia, o método histórico-crítico foi uma importante ferramenta para essa compreensão. O
método histórico-crítico aplica na interpretação da Sagrada Escritura as ferramentas da
sociologia, literatura, história, geografia, economia. Deste modo, o autor precisa ser
compreendido segundo as convenções literárias e históricas da época em que o texto foi escrito.

3.1.2 A negação de valor

Em um segundo momento, há uma postura de negação de valor histórico dos escritos bíblicos,
inclusive dos evangelhos. Isso, porém, nunca significou que fossem narrativas transmitidas e
seguidas pelas primeiras comunidades. Esta negação de valor teve seu advento com da História
das Formas18 ou Análise de Gênero - devido sua origem germânica, é conhecida como
Formgeschichte - e influenciou significativamente muitos estudiosos do século 20 d.C..

3.1.3 O valor substancial

Após idas e vindas, os intérpretes da Sagrada Escritura chegaram ao que se define por um
período de busca de um valor substancial dos evangelhos. Assim, entende-se que o escritor
bíblico não teve como primeiro objetivo a narração de fatos históricos, mas buscou narrar a ação
de Deus na história. Para isso, utilizou-se de diversos recursos literários, culturais, religiosos,
sociais de sua época. Mas estas coisas não tinham uma finalidade em si mesmas, pois a partir dos
Santos Padres, entende-se que os escritos bíblicos buscavam mais a transmissão catequética e o
anúncio do ressuscitado que histórico-geográfica.

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18Esta tradição ou escola de interpretação hermenêutica é conhecida como Formgeschichte (História das Formas) e
teve como pioneiros K. L. Schmid, Martin Dibelius e Rudolf Bultmann. Os três são contemporâneos e influenciaram
muito os estudos bíblicos no início do século XX.
20

3ª PARTE: EVANGELHO SEGUNDO MARCOS

1 INTRODUÇÃO AO EVANGELHO DE MARCOS

Antes de mais, vale recordar que o evangelho segundo Marcos essencialmente cristológico, pois
se preocupa em apresentar Jesus Cristo através de suas ações, seus gestos e da novidade que ele
veio anunciar. Para Fabris, este anúncio ocorre no percurso de um caminho, pelo qual todo
aquele que quer seguir a Cristo deve caminhar. Neste caminho, serão encontrados adversários
religiosos e políticos, discípulos e até familiares que não compreendem verdadeiramente a
missão do Messias. A pergunta que perpassa todos os diálogos é: quem é esse homem?
Por muitos séculos, porém, o Evangelho de Marcos foi relegado ao esquecimento, pois a sua
redação e linguagem eram consideradas a mais simples e sóbria dos evangelhos. Quando
adentramos em suas linhas, não contém nenhuma síntese sugestiva a exemplo do evangelho
segundo Mateus, que apresenta o Sermão da Montanha (Mt 5 – 7) e; muito menos, algo similar às
Parábolas da Misericórdia (Lc 15), apresentadas no evangelho segundo Lucas. Além disso, Marcos
escolheu narrar apenas a vida pública de Jesus, omitindo os relatos de seu nascimento e infância.
Mas os anos se passaram e surgiram novos métodos científicos de pesquisa que fizeram mudar
completamente esse panorama. E a sua sobriedade, que antes era entrave, atraiu a atenção de
muitos estudiosos. Com uma pesquisa muito mais acurada, descobriu-se que Marcos é nada
menos que o mais antigo dos escritos que recebem o nome de evangelho. O evangelho segundo
marcos é descoberto como a primeira obra ser composta e redigida de modo sistemático, sendo
o primeiro exemplar do evangelho de Jesus que os cristãos tiveram contato. Ou seja, o Evangelho
segundo Marcos passa de esquecido à inaugurador do novo gênero literário, que se
convencionou chamar de “Evangelho”.
Teologicamente, nenhuma das falas, caminhos, tempos, e reações narrados podem ser
entendidos ao acaso. Cada um dos elementos e percursos de Jesus assumem, para o evangelista,
um importante contexto teológico, fundamentando a sua catequese. Jesus não percorre os
lugares acidentalmente. Marcos narra, em suas linhas, fatos ocorridos durante a vida pública de
Jesus, mas ele buscou muito mais. Em cada elemento ele quis ressaltar a catequese de Jesus e
apontar o caminho para o seu seguimento. Ler o seu evangelho é mais que analisar as suas
estruturas. Lê-lo é como ter um roteiro de viajem nas mãos e ter o próprio Jesus como guia e
destino. Para Marcos, o seguimento de Jesus é abraçar a sua missão e caminhar com Ele
decididamente até o calvário, atravessando a morte, experimentando a graça da sua vida e
presença na comunidade cristã.

2 DATA, LOCAL, AUTOR E DESTINATÁRIOS

A tradição da Igreja afirma desde os primeiros séculos que o evangelho segundo Marcos fora
escrito por um jovem denominado João Marcos. Trata-se do mesmo jovem mencionado em Atos
dos Apóstolos (cf. At 12,12-15; 15,17). Ele seria filho de uma certa Maria e a comunidade se
reunia em sua casa. Ele, segundo os Padres da Igreja, seria primo de Barnabé (cf. Cl 4,10); e,
21

companheiro de Paulo em suas viagens missionárias (cf. At 12,25; 13,5). Na segunda carta de
Pedro encontramos a afirmação de que Marcos teria passado por Roma (cf. 2Pd 5,13). Já no
século 1d.C., a tradição afirmava que Marcos era secretário ou intérprete do apóstolo Pedro e,
consequentemente, seu evangelho seria uma síntese da catequese que o apóstolo fizera em
Roma. Quando observados os escritos antigos dos Santos Padres, vê-se que a maioria deles
concordavam com as definições acima. Vejamos a curiosa definição de Eusébio de Cesareia:

“O presbítero dizia o seguinte: Marcos, intérprete de Pedro, escreveu cuidadosa, não,


porém ordenadamente, as recordações das palavras ou ações do Senhor. Efetivamente,
ele jamais o ouvira, ou seguira o Senhor. Mas, conforme disse, mais tarde ele
conviveu com Pedro, que pregava segundo as necessidades dos ouvintes, mas não
elaborou uma síntese das palavras do Senhor. Assim, ao escrever Marcos de acordo
com suas lembranças, não cometeu erros. Tivera o único propósito de nada omitir do
que ouvira, nem imprimir algo de falso.” É isto o que Papias narra acerca de Marcos.
(EUSÉBIO DE CESAREIA, 2000, p.169)

Apesar das narrativas da tradição da Igreja, os exegetas atuais se divergem significativamente a


respeito da figura do autor do segundo evangelho. Como as dificuldades de estabelecer a
precisão a respeito da autoria do evangelho, os exegetas o continuam a chamar de Marcos, ainda
que não tenha sido o mesmo que os Padres da Igreja tenham descrito em suas cartas.
Quanto ao local da redação, a tradição da Igreja, desde o início do cristianismo, afirmava que
Marcos escrevera seu evangelho na capital do império, isto é, Roma. Atualmente é consensual
que o evangelho tenha sido escrito fora de territórios palestinenses. Portanto, concorda-se que
fora escrito fora de Israel, mas há uma desconfiança que fora redigido em Roma. Isso se
fundamenta na existência de muitos hebraísmos e explicações de termos próprios da cultura
judaica no evangelho de Marcos. Com isso, ele visava a melhor compreensão de seus leitores. Se
Marcos tivesse escrito a judeus, certamente não precisaria esclarecer o sentido de seus ritos,
hebraísmos etc. Todo judeu era um bom conhecedor de suas tradições. A respeito do uso de
latinismos como as palavras centurião, flagelo, vasos e outros revela que fora escrito dentro de
território sob domínio do Império Romano.
Os exegetas afirmam que o evangelho segundo Marcos fora redigido entre 65-75d.C. Contudo,
como quaisquer escritos antigos, é quase impossível garantir uma precisão absoluta. A grande
maioria afirma que teria sido escrito muito próximo ao ano 70 d.C., pouco antes ou depois da
destruição do Templo, pois faz clara referência à coação sofrida pelos judeus por parte do
Império Romano (cf. Mc 13,2).
Segundo Rivas, Marcos escrevera seu evangelho aos Cristãos de Roma. Eles, certamente,
encontravam-se aflitos pela perseguição deferida pelo império, especialmente nas épocas de
Nero e Vespasiano. Devido às perseguições, os fiéis ser perguntavam por que Deus não
intervinha de forma extraordinária para salvá-los. Por isso, ele se preocupou em apresentar
Jesus, como servo sofredor, mas fiel ao projeto de Deus. O discípulo de Jesus precisa carregar a
sua cruz e seguir atrás dele. Marcos alertará os cristãos para que não se desesperem e não
esperem uma intervenção fantástica de Deus. É preciso seguir o caminho de Jesus e fazer uma
adesão livre ao Salvador, que também é sofredor. Somente essa nova espiritualidade os ajudará a
suportar as perseguições com perseverança e fé. Só depois, então, alcançar a vitória daqueles
que serão recompensados por Deus, por terem morrido na justiça.
22

3 TEOLOGIA

Desde o primeiro versículo, Marcos apresenta a intenção de todo o seu evangelho: “Princípio do
Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1). A Boa Nova trazida pelo escritor tem uma
clara meta a propor aos seus leitores, a saber, ele deseja apresentar a pessoa de Jesus e a sua
identidade. Junto à apresentação de Jesus de Nazaré, Marcos anuncia a chegada do Reino dos
Céus. No entanto, o evangelista não tem a apresentação da pessoa de Jesus como intenção
exclusiva. Ele também quer mostrar a sua missão. Como o primeiro versículo se caracteriza
como um breve prólogo de todo o evangelho, vejamo-lo de uma forma mais pedagógica,
transcrevendo-o de uma outra maneira:
“Princípio do Evangelho de Jesus: (1) Cristo e (2) Filho de Deus” (Mc 1,1)

No exemplar acima, vemos a divisão do primeiro versículo em três partes. Evidencia-se a inteção
do evangelista, que era apresentar a pessoa de Jesus. Em seguida, apresenta-se dois títulos de
Jesus: Cristo e Filho de Deus. Esses títulos aparecerão em momentos cruciais no desenrolar do
evangelho. Jesus será reconhecido como Cristo pelo apóstolo Pedro, que professará essa
confiança em Cesareia de Filipe (cf. Mc 8,26-33), no entanto, ele esperava um Cristo glorioso e
sem cruz. O segundo título complementa o primeiro, pois revela qual a missão do Messias e não
somente a sua identidade. Ele reaparecerá em vários momentos, dos quais três deles são mais
importantes: o batismo (cf. Mc 1,9-11), a transfiguração (Mc 9,1-10) e a cruz (Mc 15,39). Sendo
que, dos três momentos, o terceiro é o mais decisivo, pois a manifestação do Messias justo e
seridor está saltando diante dos olhos do centurião. É preciso chegar até a Cruz para reconhecer
plenamente a identidade e a missão de Jesus.
Depois desse versículo que esclarece e instiga o leitor, Marcos propõe um caminho de encontro
com o verdadeiro modelo de reinado de Deus. Em seu percurso Jesus foi questionado muitas
vezes por diversas pessoas que continham uma visão fechada do messianismo. Entre os seus
interlocutores encontram-se Escribas (cf. Mc 1,22; 2,6; 3,22; 9,11-14; 12,35-38), fariseus (cf. Mc
2,18.24; 8,11; 10,2; 12,13), saduceus (cf. Mc 12,24), os herodianos (cf. Mc 12,13), anciãos e sumo
sacerdotes (cf. Mc 14,10; 15,3.10-11). Mas a incompreensão se estendeu além dos grupos
mencionados e chegou, até mesmo, aos seus discípulos (cf. Mc 8,32-33; 9,5-6; 14,37) e familiares
23

(cf. Mc 3,20-21.31-35). Apesar das inúmeras incompreensões, Jesus se aproveita de todas as


ocasiões para manifestar o seu messianismo, percorrendo um caminho gradativo e formativo
com os seus discípulos, desde a Galileia a Jerusalém. Esse caminho tem início no seu Batismo (cf.
Mc 1,9-11) até a sua morte de Cruz (cf. Mc 15,33-39) e Ressurreição (cf. Mc 16,6-7).
No evangelho segundo Marcos, Jesus se encontra em contínuo movimento e ação. Desta forma, o
evangelista dá pouco espaço para grandes discursos de Jesus e ressalta a sua ação
taumatúrgica19. Ele não perde tempo falando, debatendo ou com reconhecimentos humanos de
sua pessoa. A principal atividade de Jesus consiste em anunciar o Reino de Deus (cf. Mc 1,14-
15.39) e instruir os discípulos a este respeito (cf. Mc 8,31; 9,31), para continuarem a sua obra no
mundo. Marcos convida os leitores a seguir “com coragem e perseverança Jesus em sua
caminhada, e continuar anunciando com fidelidade e confiança o evangelho” (FABRIS, 2002, p.
427).
Para a apresentação mais clara da identidade e missão de Jesus, Marcos percorre um caminho
tendo como espaço geográfico a Galileia, que fica ao norte de Israel. Junto à Galileia aparecem
alguns lugares estrangeiros, especialmente Cesaréia de Filipe, onde ocorre a profissão de fé de
Pedro (cf. Mc 8,27-30), que professa: “Tu és o Cristo” (Mc 8,29). Apesar da bela proclamação, é
evidente que Pedro ainda não possuía a verdadeira consciência do que significavam essas suas
palavras, por isso, ele tentar repreender Jesus quando esse lhes anuncia a sua morte em
Jerusalém (cf. Mc 8,32-33).
Pedro herdou uma mentalidade já disseminada entre os judeus desde os tempos de Exílio da
Babilônia, que ocorrera de 587-537 a.C. Eles esperavam um messianismo triunfante. Portanto,
um Messias Servo e crucificado, apresentado por Jesus, não fazia sentido para eles. Mas o
evangelho apresenta uma completa inversão de valores e, para compreender a missão do Cristo
e de que tipo de reinado ele anunciava, é necessário estar parado diante da Cruz, como aquele
centurião romano e dizer: “Verdadeiramente este homem era filho de Deus” (Mc 15,39). Aquilo
que faltou à profissão de fé de Pedro agora é completado por um estrangeiro, ou seja, alguém que
não era discípulo e, nem mesmo, era judeu. “A cruz e a ressurreição agora discernem de maneira
inequívoca a sua tarefa e sua identidade messiânica” (FABRIS, 2002, p. 427).
A profissão de fé do centurião romano, que reconheceu a filiação divina de Jesus diante da Cruz,
revela com extrema clareza o que significa o novo reinado instituído por Deus. Não há uma
completa negação da glória, mas ela não se apresenta dissociada da Cruz. É, assim, o anúncio da
ressurreição que reacenderá as luzes apagadas pelas trevas da morte.

3.1 A identidade de Jesus

Revelar a identidade e missão de Jesus é o principal objetivo do evangelho de Marcos. Para o


evangelista, a resposta a Jesus consiste em reviver o seu caminho para compartilhar o seu
destino. Para isso, a identidade de Jesus vai se revelando gradativamente à medida que o leitor
percorre as suas linhas. É nesse contexto que Marcos apresenta diversos encontros entre Jesus e

19 Esta expressão também pode ser traduzida por capacidade ou ação de fazer milagres.
24

outras pessoas que, quase sempre, terminam com a seguinte pergunta: quem é esse homem?
Jesus é um ser divino ou só humano? Ou é divino-humano? É o Messias esperado? Quem é Jesus
afinal? Essa é uma pergunta teológica, que fundamental para toda a catequese marcana20.
Para Marcos, o seguimento de Jesus é uma consequência natural do conhecimento de sua
identidade e missão. Por isso, Cristo se revela gradativamente a partir de sua missão na Galileia,
em terras estrangeiras e; por fim, em Jerusalém. Em cada ambiente se desenrola a possibilidade
de uma nova possibilidade de aprofundar-se a respeito de Jesus.
As palavras e gestos de Jesus colaboram, constantemente, para que o leitor reconheça o
cumprimento das profecias messiânicas. De cada ação, o escritor do evangelho propõe uma
pergunta aos seus leitores. Quando Cristo expulsou o demônio de um homem na sinagoga, o
povo espantado perguntou: “o que é isso? Ele manda até nos espíritos maus!” (Mc 1,27). “Quem
é esse que perdoa pecados?” (Mc 2,7); Outros: “Nunca vimos uma coisa assim” (Mc 2,12);
“quem é esse que ressuscita mortos?” (Mc 5,39-43); “És tu o Messias?” (Mc 14,61). Ainda
existem muitas outras passagens através das quais Marcos revela o caminho para descobrir o
verdadeiro Messias.
Apesar do interesse em revelar a identidade de Jesus, Marcos não coloca nenhuma palavra dele a
respeito de si mesmo. Jesus quer revelar a sua identidade através das suas obras e opções, não
por meio de discursos e teorias. Por diversas vezes Ele pedia segredo ou discrição às pessoas,
como: “não conte a ninguém a esse respeito”. Jesus sempre falar a respeito de sua identidade,
exceto diante dos sumos sacerdotes do povo (cf. Mc 14,43), pois com o julgamento de cruz já
estabelecido, ninguém confundiria a sua identidade com o poder e a glória terrenos. No
momento de seu juízo já não há possibilidade de confundirem a sua identidade com uma espécie
de Messias triunfalista.
Segundo Brito (2013), o Messias é, de fato, triunfante. Seu messianismo, porém, se revela no
ápice de seu sofrimento. Ele é o servo, conforme a profecia de Isaías 53 e; o justo, conforme
Sabedoria 2 e o Salmo 31. Vejamos:

para conhecer Jesus não é ter posse de ideais populares do Messias, mas
envolver-se totalmente no projeto e na vontade do próprio Deus. Conhecer Jesus
não é conhecer ideias brilhantes e gloriosas do Messias, mas conhecer a
verdadeira pessoa de Jesus, que têm adversários, realiza milagres, instaura um
novo Reino, insere os excluídos, mas, sobretudo, morre na Cruz e ressuscita. Na
cruz fica inequívoco o reconhecimento do verdadeiro rei messiânico. Na cruz se
revela totalmente o poder de Deus.
O convite para a volta à Galileia, após a ressurreição, é um convite para que o
discípulo refaça o caminho do Senhor. Aquele que compreende plenamente o que
Deus revelou na Cruz, que quer aceitar e seguir a nova proposta de vida, não pode
ficar indiferente e fechado em seus redutos, mas deve refazer o caminho que o
próprio Mestre fez. Porém, da Galileia não se destina apenas para Jerusalém, mas,
para todo o mundo conhecido. O verdadeiro discípulo não pode cruzar os braços
e ver a história, mas ele é chamado a envolver-se com ela e se colocar a serviço.
(BRITO, 2013, p.59-60)

20 Termo criado para se referir às coisas relativas ao evangelista Marcos.


25

O evangelho de Marcos faz uma constante justaposição entre dois títulos atribuídos a Jesus, a
saber: Filho do Homem e Filho de Deus. À primeira vista, pode parecer uma oposição de ideias
distintas de Jesus, mas tais títulos revelam duas facetas da mesma moeda. Jesus será apresentado
como sofredor, humano e simultaneamente glorioso, ressuscitado, vitorioso. Esse estilo,
provavelmente visa alentar os cristãos que estavam sendo perseguidos pelo reinado de Nero e
de seus sucessores.

3.2 O Segredo Messiânico

Quando se lê o evangelho de Marcos, é possível identificar diversas vezes em que Jesus pede
segredo de sua identidade. Esse pedido se estende aos demônios, quando os repreende para que
se calem (cf. Mc 1,34; 3,11); a diversos doentes que são curados (cf. Mc 1,44-45; 5,33; 7,36; 8,26);
aos discípulos (cf. Mc 6,52; 8,29-30; 9,9). Ele também conta parábolas que mostram seu interesse
na discrição, para viver de forma mais simples e anônima (cf. Mc 4,10-13).
O teólogo alemão Willian Wrede21 denominou essa postura de Jesus de “Segredo Messiânico”.
Com essa expressão, ele queria se referir às referidas passagens que podemos observar no
evangelho de Marcos com repetições comuns em vários textos. Apesar de ser intitulado de
Segredo, a expressão também é mais um recurso claro a revelação da identidade de Jesus, pois
ele é essencialmente teológico e não histórico. A intenção de conservar a sua identidade em
segredo revela o perigo de considerá-la segundo as expectativas humanas. Desta maneira, uma
agitação anormal das pessoas em Israel poderia atrapalhar a mensagem de Jesus. Não se deve e
nem se pode conhecer Jesus instantaneamente, o conhecimento profundo e verdadeiro se dá no
caminho, não em fatos isolados, sobretudo naqueles que revelam um poder sobre-humano.

3.3 Subdivisões internas do Evangelho Segundo Marcos

11,1 - 16,8
1,16 - 8,26
8,27 - 10,52 Caminho de 16,9-16
1,1-15 Atividade de
Jesus para
A tividade de
Introdução
Jesus na Galileia
Jesus fora da Jerusalém e • Conlusão
e regiões
Galileia confronto
vizinhas
decisivo

No que se refere a metodologia utilizada para a subdivisão dos evangelhos, é possível encontrar
muitas formas e fórmulas. Em todas elas, a intenção do exegeta e apresentar o caminho
percorrido pelo evangelista para apresentar a pessoa de Jesus e a sua mensagem. Rinaldo Fabris
divide o evangelho em três grandes partes, descontando a sua introdução e a conclusão, vejamos:

21 Georg Friedrich Eduard William Wrede (10 de maio de 1859 – 23 de novembro de 1906) foi um teólogo
luterano alemão. Ele foi famoso pela sua investigação científica acerca da intenção de Jesus, ao pedir segredo às
pessoas acerca de sua identidade messiânica.
26

Os últimos versículos, que se seguem de Marcos 16,9-16, é considerado um trecho


deuterocanônico. Isso significa que ele não fazia parte da primeira redação do evangelho, trata-
se de um acréscimo posterior. Apresar disso, se reconhecimento canônico remonta às origens
das primeiras comunidades cristãs.

3.3.1 Introdução (Mc 1,1-16)

Na introdução do evangelho, Marcos faz uma breve preparação para contextualizar o ministério
de Jesus e o caminho a ser feito pelos discípulos, como vimos acima. Nessa preparação tem
grande relevância o primeiro versículo, a vocação de João Batista, os dias de jejum no deserto e a
primeira pregação de Jesus. Ela, porém, não revela quem é o Cristo, já que esse desnudamento
ocorre gradualmente durante todo o caminho discipular. João Batista, no entanto, dá o
entendimento inicial a respeito de Jesus: “Depois de mim, vem aquele que é mais forte do que eu,
de quem não sou digno de, abaixando-me, desatar a correia das sandálias” (Mc 1,7). Nesse
encontro entre o Batista e Jesus, no Jordão, encontramos a preparação para o ministério
messiânico que vai se desenrolar posteriormente na Galileia e a implantação do Reino de Deus.

3.3.2 Primeira Parte (Mc 1,16 – 8,26)

Essa parte inicial do evangelho se estende desde 1,16 – 8,26. Nela, Marcos apresenta os
elementos fundamentais da atividade de Jesus na Galileia e nas Regiões vizinhas. Poder-se-ia
classificá-la em três momentos, onde Jesus convida (cf. Mc 1,4 – 3,6), escolher (cf. Mc 3,7 – 5,43)
e envia os primeiros discípulos em missão (cf. Mc 6,1 – 8,26). Jesus é um anunciador que se
27

encontra sempre a caminho. Por isso, Cristo está em constante contato com as multidões que se
admiram, escutam, procuram para ser liberta de seus males e o seguem.
O movimento de Jesus para cumprir a sua missão age em consonância e simultaneamente ao de
formar os primeiros discípulos. Seguindo as etapas supramencionadas, Ele convoca pessoas
para o seu Reino (cf. Mc 1,16-20), forma-as e dá-lhes consciência crítica diante das situações
presentes no mundo (cf. Mc 1,21-22); ensina-as a combater a alienação e o fanatismo religioso
(cf. Mc 1,23-28); liberta-as das amarras para viver (cf. Mc 1,29-31); ensina-as a rezar,
procurando na oração a sua própria identidade (cf. Mc 1,35) e, por fim, envia-as como discípulas
para missão (cf. Mc 1,38-39), como forma de frutificar o discipulado. Nesse processo, Jesus revela
que discipulado e missão a serviço do Reino são duas facetas que devem se complementar na
vida cristã.
Esta parte se conclui com a narrativa da cura do cego de Betsaida (Mc 8,22-26). A cura é um
pequeno drama narrado no evangelho e serve para revelar aos leitores que o discípulo não é
capaz de ter uma visão clara de Jesus e da sua missão à primeira vista. Essa mensagem está
explicitada na necessidade de dois momentos para a realização da cura. Num primeiro momento,
o cego via o homem como se fossem árvores andando. Esse relato é pedagógico, conscientizando
os primeiros cristãos a respeito de sempre revisitar o anúncio de Jesus para conhecê-lo
plenamente. Para enxergar distintamente as realidades do mundo é preciso um processo de
educação e de vivências que lhes abram completamente a visão. A comunidade de Jesus e seus
adversários não sabiam quem era verdadeiramente Jesus, pois Ele os confunde. Até o momento,
a relação entre os discípulos e os adversários com Cristo foi de cegueira do coração, de
incredulidade, incompreensão e hostilidade (cf. Mc 3,5-6; 6,1-6a; 8,14-21).

3.3.3 A segunda parte (Mc 8,27 – 10,52)

Nesta segunda divisão pedagógica do evangelho, encontramos Jesus que sai da Galileia e ruma à
Jerusalém. Há uma primeira inversão de cenário no evangelho, pois Jesus sai do meio da multidão
e se isola com os seus discípulos, para aprofundar ainda mais a sua visão messiânica. É por isso
que nela se encontra a proclamação de fé de Pedro (cf. Mc 8,27-30) e os três anúncios de sua
Paixão (cf. Mc 8,31-33; 9,33-37; 10,32-34). A cura do cego de Betsaida é a moldura que faz a
transição para a importância de olharem mais cuidadosamente para Jesus. Entremeado na
proclamação de fé feita por Pedro e o início da subida para Jerusalém, encontra-se alguns
ensinamentos valiosos de Jesus para a vida em comunidade (cf. Mc 8,34 – 10,45). É necessário
abrir os olhos para o verdadeiro Messias.
Esta parte se encerra com a cura de outro cego, o Bartimeu (cf. Mc 10,49-51). Sua cura é sinal
evidente de fé. Seu grito, sufocado pelos discípulos aponta que ele supõe o verdadeiro
messianismo de Jesus, chamando-o “Filho de Davi”. O seu desejo é ser atingido pela compaixão
de Jesus e ser curado de sua cegueira. Como não era cego de nascença, o evangelista mostra a
importância de ver de novo, isto é, ver e distinguir corretamente o mestre. Após ser curado, ele
pôs-se imediatamente a seguir Jesus pelo caminho. Desta forma, Marcos ensina aos seus leitores
que compreender o verdadeiro Messias significa aceitar o desafio do seguimento como condição
de fidelidade. Os discípulos devem abrir bem os olhos, mudar a visão a respeito do messianismo
28

triunfalista para que possam enxergar claramente quem é Jesus e descobrir na sua pessoa o
Messias de Deus, não dos homens. É necessário ter a coragem do cego, e dar um salto qualitativo
para aceitar e seguir Jesus como Messias sofredor nesse novo caminho de subida para Jerusalém.
O Bartimeu torna-se, assim, o modelo do verdadeiro discípulo que não segue Jesus alimentando
ilusões de glória humana.

3.3.4 A Terceira parte (Mc 11,1 – 16,8)

A partir da terceira parte da divisão pedagógica, Jesus caminha para o seu conflito decisivo em
Jerusalém. “Jesus e os discípulos aproximaram-se de Jerusalém” (Mc 11,1) e adentrar a cidade,
centro do poder político, religioso, econômico e social da nação judaica. Ele foi acolhido como o
rei triunfalista (cf. Mc 11,1-11), no entanto, usou símbolos que deixavam claras as suas intenções
de promover a paz, não a rebelião. O jumentinho, que ele escolheu para entrar, mostra que não
veio para guerra, como faziam os exércitos daquela época ao montarem em seus cavalos. Sua
inversão na concepção de poder faz com que seja crucificado como um subversivo, pois adentra
em Jerusalém colocando em prática o que tivera anunciado pelo caminho, isto é, um Messias que
deveria sofrer e morrer para, enfim, ressuscitar. O verdadeiro discípulo o acompanha até o fim
dessa estrada. No entanto, os seus o abandonam. Por isso, apenas o centurião romano o pode
reconhecer, aos pés da Cruz, como Filho de Deus. Apesar do abandono, o evangelista mostra que
sempre é tempo de recomeçar o caminho. A pedido de Jesus, discípulos voltaram à Galileia, lugar
de onde Ele partiu para a missão que culminou no “enfrentamento” decisivo em Jerusalém. Da
Galileia, porém, eles não são enviados para Jerusalém, mas para todo o mundo. O mundo será o
lugar decisivo de sua missão.

3.4.5 A conclusão (Mc 16,9-16)

Como nos primeiros versículos, onde se encontra uma breve introdução ao ministério de Jesus,
esta parte não entra, costumeiramente, como uma divisão pedagógica do evangelho. Considerada
como inspirada pela tradição da Igreja, parece claro desde os primeiros cristãos que ela não fora
redigida necessariamente por Marcos. Muitos escritos antigos omitem esta parte final,
encerrando o evangelho em Mc 16,8. O trecho de Mc 16,9-16, porém, já era conhecido da
comunidade primitiva. Ao menos, é o que relatam Taciano22 e Santo Irineu23 em seus escritos.

22 Taciano, o Assírio (120–172 d.C.) foi um escritor do cristianismo primitivo, grande teólogo do século II. Seu
trabalho mais influente foi o Diatessarão, que era uma paráfrase bíblica, ou "harmonia", dos quatro evangelhos, que
se tornou o texto padrão nas igrejas siríacas até o século V, quando perdeu o lugar para os evangelhos da Peshitta.
23Irineu de Lião (130 – 202 d.C.) foi um bispo grego, teólogo e escritor que nasceu, segundo se crê, na província
romana da Ásia Menor Proconsular – a parte mais ocidental da atual Turquia – provavelmente Esmirna. Seu livro
mais famoso foi “Sobre a detecção e refutação da chamada Gnosis”, também conhecido como Contra Heresias (180
d.C.). Tal obra é um ataque minucioso ao gnosticismo, que era então uma séria ameaça à Igreja primitiva e,
especialmente, o sistema proposto pelo gnóstico Valentim. Como um dos primeiros grandes teólogos cristãos, ele
enfatizava os elementos da Igreja, especialmente o episcopado, as Escrituras e a tradição. Irineu escreveu que a
única forma de os cristãos se manterem unidos era aceitarem humildemente uma autoridade doutrinária dos
29

Desta forma, se a conclusão não fora escrita pelo próprio evangelista, como nos diz Swete, trata-
se de “uma autêntica relíquia da primeira geração cristã”.

4 ALGUNS TRECHOS EXPLICADOS

Para compreender alguns outros textos mais especificamente, segue-se apenas algumas
perícopes do evangelho de Marcos, tentando explicitar o seu sentido teológico. Cada trecho faz
parte de um caminho que almeja conduzir o discípulo a imitação do mestre. Assim, não se pode
interpretar a parte sem levar em consideração o objetivo final da interpretação de toda a obra de
Marcos.

4.1 Mc 1,14-20: A Boa Nova e os primeiros discípulos

Nos versículos 14-15, João Batista e Jesus, dois protagonistas que se encontraram no Jordão,
tomam rumos diferentes. Jesus segue adiante a sua missão e passa a anunciar publicamente o
evangelho e a caminhar pela Galileia. Simultaneamente, o evangelho relata a prisão de João que
fora entregue nas mãos de Herodes. Sua prisão antecipa, de certa forma, a respeito do destino de
Jesus, pois João foi preso por anunciar a vontade de Deus, denunciar a injustiças e chamar à
conversão. Neste trecho, Marcos convoca a comunidade a se converter e crer na Boa Nova que
está sendo anunciada: “cumpriu-se o tempo e está próximo o Reino de Deus. Arrependei-vos e
crede no evangelho” (Mc 1,15). Esta boa notícia é o tema central de todo o evangelho. Com a
expressão “cumpriu-se o tempo”, Marcos revela que é terminado o tempo da espera histórica,
pois o Reino de Deus já está presente. A única exigência para que o ouvinte possa se tornar um
discípulo (seguidor) é a conversão. Neste anúncio está concentrado, segundo Fabris, “a urgência
da Palavra de Deus como ressoava nos oráculos dos Profetas” (FABRIS, 2002, p. 437).
Entre os versículos 16-20, vemos este mesmo chamado à conversão ecoar nos aos ouvidos
primeiros discípulos. A vinda do Reino de Deus faz surgir novas relações entre as pessoas. O
encontro do Senhor com os seus primeiros discípulos, que eram pescadores, mostra-nos o
primeiro lugar em que Jesus se manifestou. Aqui, não encontramos apenas o momento em que se
inicia a comunidade de Jesus, mas também o modelo de resposta ao chamado que Deus fez e faz
em todos os lugares e tempos. Ao escutarem o chamado de Jesus, eles deram atenção e, em
seguida, o seguiram imediatamente, sem demora e sem colocar nada entre eles e a voz de Deus.
O evangelho conta que os discípulos deixaram tudo para trás e mudaram radicalmente suas
vidas. Existia, em Israel, os seguidores de alguns rabinos, onde havia pessoas que seguiam alguns
mestres para escutar os seus ensinamentos. Os discípulos seguem com uma postura ativa, pois
também colaborarão com a missão do mestre: “Vinde em meu seguimento e eu farei de vós
pescadores de homens” (Mc 1,17). A missão de Jesus, daquele dia em diante, será também a sua

concílios episcopais. Seus escritos, assim como os de Clemente e Inácio, são tidos como evidências iniciais da
primazia papal. Ele também foi a testemunha mais antiga do reconhecimento do caráter canônico dos quatro
evangelhos.
30

missão. Esse chamado faz ecoar todos os outros que Deus fizera aos profetas outrora, desta
forma, com a mesma autoridade, Jesus institui o seu grupo e os convida ao seguimento, mas
também ao anúncio. Esse relato já se encontra no início do evangelho, pois quer se apresentar
como modelo para todas as pessoas que desejam fazer parte do projeto de Deus, em Jesus.

4.2 Mc 1,21-31: O endemoninhado e a cura da sogra de Pedro

No relato da expulsão do demônio na sinagoga observamos um gesto e um ensinamento


libertador da parte de Jesus. Por isso, as pessoas se admiraram da autoridade que Jesus
demonstrava em suas palavras (cf. Mc 1,22). Aqui, ele mostra que não são apenas teorias, suas
palavras são confirmadas com uma ação miraculosa. Havia, na sinagoga, uma manifestação do
mal e certo fechamento das autoridades judaicas, Marcos diz que Jesus ensina como quem tem
autoridade, isto é, coloca em prática aquilo que é; diferente dos escribas, que ensinam sem
colocar em prática. A cura realizada por Jesus revela que Ele não é apenas mais forte, mas é
vencedor sobre a força maligna que oprime a humanidade.
Quando Jesus tomou a palavra a assembleia sinagogal de Cafarnaum, um espírito impuro
manifestou-se em um homem por causa do poder da palavra de Jesus. Isso provocou espanto,
pois nunca tinham visto um ensinamento com tanta autoridade. Entenda-se a palavra autoridade
no sentido que tem a origem grega: colocar para fora de si o próprio ser. Desta forma, podemos
entender que Jesus age como um verdadeiro profeta que veio instituir as pessoas a respeito de
um novo Reino e para isso, destrói gradativamente as forças adversárias a esse Reino. “O poder
de Deus em Jesus se manifesta [...] como força que reintegra o homem na plena dignidade e
liberdade” (FABRIS, 2002, p. 439). Portanto, a palavra e o agir de Jesus liberta a humanidade do
poder que o mal exerce sobre ela.
O segundo relato desse pequeno trecho é a cura da sogra de Pedro (Mc 1,29-31). O fato da cura
se situar imediatamente após o evento na sinagoga tem um sentido eclesial e teológico
importante para Marcos. O evangelista mostra que Jesus não entrou sozinho na casa de Pedro,
mas com alguns amigos. Diferente da sinagoga, onde todos os olhares se voltam para Jesus a fim
de avaliá-lo, a entrada na casa ocorre de modo espontâneo e eficaz. Este simples gesto, feito em
intimidade familiar, antecipa a vitória sobre a morte, pois a cena é construída com a sogra de
Pedro se levantando de sua cama como um morto que se levanta do túmulo. Os gestos de Jesus
não são espetaculares, mas são simples e familiares a tal ponto que promove a liberdade das
pessoas. Ele simplesmente a tomou pela mão e a auxiliou na retomada de suas atividades.
Essa mudança radical de ambiente, da sinagoga para a casa, revela que Jesus é mais bem
compreendido e servido nas casas, que não eram, até então, consideradas como lugar oficial de
aprendizado sobre a palavra de Deus. Quando queriam aprofundar sobre as escrituras, as
pessoas se dirigiam até a sinagoga, que Jesus acabara de deixar. Assim, Marcos mostra que o
Reino de Deus não é para ser anunciado apenas nas sinagogas ou em lugares oficiais, mas em
todo o mundo, nas casas das pessoas. Revela também a mudança de ambiente em que a primeira
comunidade cristã viveu para o seguimento de Jesus.
31

4.3 Mc 4,26-34: O Reino de Deus é comparado à semente

Este trecho é um dos raros materiais exclusivos de Marcos, pois não encontramos em nenhum
dos demais evangelhos sinóticos. A primeira parte destes versículos relata sobre o fato de a
semente crescer por si só (cf. Mc 4,26-29). Jesus começa a se utilizar de diversos elementos da
vida do povo para anunciar-lhe o Reino, pois ao mesmo tempo em que facilita a compreensão da
linguagem, permanece sempre um certo mistério, já que para compreender bem é preciso
conhecer Jesus mais profundamente. A pessoa que anuncia o Reino é comparada a um semeador
(v.26). Ela até lança suas sementes com as próprias mãos, mas dali em diante perde
completamente o controle do desenvolvimento das sementes, pois o que faz este reino crescer é
a força misteriosa contida na terra (v.27). O ponto culminante de toda semente é a colheita, pois
ela coroa aquela espera pelo crescimento e amadurecimento da planta. Da mesma maneira se
passa com o Reino de Deus. Ele se faz presente, as o seu crescimento é tão invisível quanto o
desenvolvimento das sementes. A forma de semear o Reino é o anúncio, mas por que ele parece
não crescer e se desenvolver? Com a parábola, Jesus responde que o segredo da sua
invisibilidade é o mistério. Além disso, mostra que o reinado de Deus está destinado à grandeza e
nada o poderá impedir de chegar ao pleno amadurecimento (v.29). Portanto, os discípulos não
precisam perder as esperanças enquanto não percebem o seu crescimento ao anunciá-lo.
Já na segunda parte (cf. Mc 4,30-34) não é material exclusivo de Marcos, pois encontramos
paralelos em Mateus (cf. 13,31-32) e Lucas (cf. 13,18-19). Este trecho faz uma comparação entre
a pequenez das sementes e o começo insignificante do Reino (Mc 4,31). Porém, como vimos, está
destinado a um fim maravilhoso (v.32), que nada pode impedir. Por isso, essa parábola se
constitui num convite à confiança em Deus, mesmo diante das tribulações vividas. E apesar de
tratar a grandeza da planta como destino inevitável do Reino, não quer apresentar apenas uma
visão para o futuro. Esta parábola é um convite à adesão a Deus que se manifesta
constantemente na história. Portanto, não é um convite para olhar o futuro, mas a aceitação
urgente do evangelho, que jamais perde a esperança nas promessas de Deus. “Só aquele que,
como discípulo, compartilha totalmente o destino de Jesus pode superar o escândalo de Deus que
se revela no cotidiano como no gesto confiante do semeador” (FABRIS, 2002, p. 468).

4.4 Mc 7,24-30: A cura da filha de uma siro-fenícia

Saindo do território da Galileia, Jesus desce às regiões mais baixas, de Tiro. Este episódio
acontece simultaneamente à cura do filho do centurião e pode ser encontrado em Mateus (cf.
8,5s) e Lucas (cf. 7,1s). Quando lemos o relato da cura, percebemos que ela ocorre à distância.
Jesus não entra da casa da mulher que lhe procura. Com isso, Marcos começa a romper com a
ideia preconceituosa herdada do judaísmo, que dividia as pessoas entre puras e impuras, onde as
estrangeiras eram consideradas impuras.
A mulher cananeia acorre a Jesus e lhe suplica a cura de sua filha, que estava possuída por um
demônio. À primeira vista, Marcos mostra Jesus agindo com palavras duras para ela: “Deixa que
primeiro os filhos se saciem porque não é bom tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos”
32

(Mc 7,27). Essa afirmação de Jesus é, na verdade, uma manifestação que Marcos faz ao leitor para
que conheça o pensamento judaico em relação aos estrangeiros, pois estes os consideravam e os
chamavam de cães. A expressão filhos indica os descendentes de Israel, ou seja, daquela nação
outrora escolhida por Deus. Os estrangeiros eram comparados aos cachorros, porque eram
considerados impuros.
A imagem utilizada por Jesus dá a impressão de que ele tivesse o mesmo preconceito religioso.
Porém, quando o evangelista prossegue na redação, observa-se a verdadeira chave de
compreensão para esse texto. Mas a própria mulher siro-fenícia se utiliza das imagens utilizadas
por Jesus, quando diz: “É verdade, Senhor; mas também os cachorrinhos comem, debaixo das
mesmas, as migalhas dos filhos” (Mc 7,28). A fala de Jesus se mostra assim, como um diálogo
inculturado, que a traz para um outro universo. Quando ela chama Jesus de Senhor (do grego
Κυριος - Kyrios), revela que também os povos estrangeiros podem reconhecer a visita de Deus,
pois é a única vez que Marcos utilizará tal título para Jesus antes da sua morte e ressurreição em
seu evangelho. Esta invocação é a mesma que a comunidade cristã se utilizava para se referir ao
Senhor Ressuscitado. Além disso, a mulher não é apenas uma pagã que tenta um milagre para a
sua filha. Mais que isso, ela representa todos os cristãos de origem estrangeira em relação à
Israel. Portanto, a resposta última de Jesus diante desta situação é o dom inestimável da
salvação: “Pelo que disseste, vai: o demônio saiu da tua filha” (Mc 7,29). Com esse gesto
inovador, Jesus antecipa a missão dos cristãos perante todos os povos da terra, pois, diferente do
antigo Israel, o novo Israel deve admitir pessoas advindas de todas as origens à mesa da
salvação.

5 REVISANDO

1. Quando foi escrito o evangelho de Marcos?


R.: O evangelho de Marcos foi escrito aproximadamente entre os anos 65-75d.C.
2. Quem Foi o autor do Evangelho?
R.: Segundo a tradição da Igreja desde os primeiros séculos, o autor teria sido Marcos ou João
Marcos. Ele seria secretário de Pedro e companheiro de Paulo. Muitos concordavam que seu
conteúdo fosse um resumo dos ensinamentos desses apóstolos. No entanto, a crítica questiona a
precisão dessa definição, chegando à conclusão de que é difícil definir quem é verdadeiramente o
autor. Apesar disso, como a descoberta dessa resposta permanece difícil, os exegetas atuais
continuam nominá-lo de Marcos.

3. Onde e para quem foi escrito?


R.: Segundo a tradição dos Padres a Igreja, evangelho de Marcos fora escrito em Roma e destinado
aos cristãos que lá residiam. Mais uma vez, porém, os exegetas atuais encontram muita
divergência para a precisão dessa afirmação. No entanto, eles concordam que fora escrito fora da
Palestina e dentro da circunscrição do Império Romano. Além disso, concordam que fora destinado
a cristãos de hábitos romanos, pois nele se encontra muitos latinismos e explicações de costumes
judaicos que não exigiriam explicações se fosse destinado a pessoas da mesma origem. Por isso,
33

Marcos pode ter escrito seu evangelho para qualquer comunidade que tivesse uma diversidade de
nacionalidades, porém, sob jurisdição do Império Romano.

4. Qual a mensagem central do evangelho?


R.: O evangelho de Marcos quer nos revelar quem é Jesus. Já no primeiro versículo encontramos a
definição (cf. Mc 1,1) de que Jesus é o Cristo e o Filho de Deus. Porém, o esclarecimento da definição
de Cristo (cf. Mc 8,29) e Filho de Deus (cf. Mc 15,39) é revelado no decorrer de um caminho feito do
início ao fim do evangelho. Neste caminho, Marcos mostra que o Cristo não é apenas um Senhor
triunfante, mas é o Cristo da Cruz, que a supera a destruição pela graça e o poder da ressurreição.
Para chegar à ressurreição e à glória é necessário percorrer o caminho da Cruz. A revelação do
caminho de Jesus é, simultaneamente, apresentação da estrada que o discípulo deve percorrer.
Desta forma, o evangelho de Marcos também quer ser uma espécie de mapa para que o discípulo
possa saber como agir segundo a vontade de seu Senhor.
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34

4ª PARTE: EVANGELHO SEGUNDO MATEUS

1 INTRODUÇÃO

O evangelho segundo Mateus é essencialmente o evangelho da comunidade do Senhor


Ressuscitado, ou seja, é um evangelho predominantemente eclesiológico. Isso significa que a sua
intenção foi dar pistas de ação e vida para os cristãos das primeiras comunidades. O evangelho
servirá de catequese para fortalecer e amadurecer a vida da comunidade mateana24. No
evangelho, Mateus não quer apenas propor uma adesão de fé, mas ele convida os discípulos a
sair da teoria e cultivar uma postura operante da vontade do Pai, que é a prática da justiça e da
misericórdia. Para melhor compreensão do texto, é muito importante conhecer data de sua
redação, o local, quem o escreveu e para quem foi escrito. Em seguida, abordaremos a sua
teologia e, por fim, a explicação de alguns de seus trechos.
Sua redação se trata do texto mais longo do Novo Testamento. Levando em conta o critério de
extensão, Mateus foi considerado, por muitos séculos, como o primeiro evangelho a ser escrito.
Essa mudança de concepção só aconteceu com o advento da exegese moderna. Após a realização
de pesquisas desenvolvidas a partir do século XVIII, estas informações começaram a ser
questionadas e, consequentemente, chegou-se à conclusão de Marcos fora o primeiro a redigir o
seu evangelho. Como no Evangelho de Marcos, Mateus se ocupará de dois eixos centrais: Jesus e
a comunidade. No entanto, diferente daquele, este dará um peso maior ao segundo eixo.
Segundo o evangelho de Mateus, Jesus é aquele que evidencia a vida da comunidade como forma
privilegiada de manter a sua memória e presença até que Ele venha. Sem dúvida alguma, Mateus
quer sublinhar que Cristo vive na Igreja e quer, por meio dela, semear constantemente o seu
Reino.

2 DATA, LOCAL, AUTOR E DESTINATÁRIOS

Quando abordamos dados como data, local e outras informações historiográficas de escritos tão
antigos como os evangelhos, nunca é demasiado afirmar sobre a dificuldade de atingir a precisão
dos fatos. Segundo Barbaglio (2002), o evangelho teria sido redigido por volta dos anos 80 d.C. O
conhecimento da destruição do templo e de conteúdos retirados de Marcos levam os estudiosos
a manterem uma visão quase unânime dessa hipótese. Desta forma, se contraporia à ideia da
tradição que afirma que fora redigido antes do evangelho de Marcos. Antes, este tem o segundo
evangelho como sua fonte de pesquisa, tal como a denominada “fonte Q”25. Seguindo a mesma
linha de raciocínio, a maioria concorda que ele fora escrito na Síria, talvez em Antioquia. Há uma

24Adjetivo cunhado para se referir aos escritos do evangelista e apóstolo Mateus.


A Explicação para a “fonte Q” já se trata daquela abordada no início do curso. A explicação pode ser revista no tópico
25

“problema sinótico”, na teoria das duas fontes.


35

curiosidade a respeito deste evangelho que é a possibilidade, segundo escritos de Pápias 26


(Século II d.C.), de que este texto tenha sido redigido originalmente em Hebraico. Mas o texto
conhecido está em língua grega e não é possível afirmar em que sentido o evangelho escrito em
hebraico esteja relacionado com a versão grega conhecida atualmente.
Quanto ao autor, a tradição da Igreja sempre afirmou que fora Mateus, ou Levi, o cobrador de
impostos chamado por Jesus no exercício de seu ofício (cf. Mt 9,9-13). Ou seja, ele seria um dos
doze apóstolos chamados por Jesus. No entanto, seguindo a crítica atual, Barbaglio dirá o
seguinte a respeito do autor: “Permanece anônimo, mas podem indicar alguns delineamentos
importantes de sua figura. Com toda probabilidade tratava-se de um cristão convertido do
judaísmo” (BARBAGLIO, 2002, p.43). Ou seja, Mateus era provavelmente um cristão advindo do
judaísmo, e isso se evidencia na sua forma de redigir o evangelho e no conhecimento profundo
que manifestava das simbologias, costumes e culturas judaicos. Possivelmente Mateus fosse um
homem autorizado e enviado para ensinar como verdadeiro guia de uma comunidade do
cristianismo primitivo. Segundo Barbaglio, a melhor definição de sua personalidade é de pastor
de almas, ou seja, alguém profundamente preocupado com os desafios eclesiais.
Provavelmente, os destinatários do evangelho foram os cristãos de Antioquia, na antiga Síria. A
grande maioria dos cristãos daquela região eram provindos do judaísmo, que fugiram na época
da diáspora do século II a.C. Mas, naquele momento, o Império Romano tinha características
cosmopolitas do mundo atual, isto é, tinha uma variedade de nações e culturas em todas as suas
principais cidades. Por isso, não se pode descartar a presença de cristãos de origem pagã, já que
Mateus frisa bem o universalismo salvífico.
Como a expectativa para a volta de Jesus fosse iminente e ele estivesse demorando para vir; e
devido à morte dos apóstolos; às perseguições sofridas por parte de judeus e romanos; os
cristãos da comunidade de Mateus estavam perdendo o entusiasmo e se tornaram preguiçosos
diante da prática do evangelho. Por isso, começaram a surgir muitos problemas que geravam um
contratestemunho eclesial, como a preguiça, as divisões eclesiais, arrogâncias unidas às
expressões orgulhosas etc. Por isso, Mateus decidiu escrever o seu evangelho. Para estes, o
evangelista apontará para o messianismo humilde e pobre de Jesus, mostrando sua
correspondência com as promessas proféticas do Antigo Testamento. A comunidade fiel é aquela
que segue e pratica o modelo de seu mestre.

3 TEOLOGIA

Segundo Barbaglio (2002), podemos dividir a teologia mateana em duas dobras ou eixos que se
requerem mutuamente. Trata-se da dobra cristológica e da eclesiológica. No entanto, faz-se
necessário dar notável importância à segunda, já que era a intenção do próprio evangelista. Na
primeira dobra, Mateus faz menção ao Antigo Testamento, mostrando a sua relevância do Antigo.

26 Pápias foi bispo de Hierápolis, na Frigia, durante o primeiro terço do século II d.C. Atualmente, esta região fica
situada na Turquia. Embora seja mencionado em outros escritos, não se encontra nenhum fragmento de sua obra.
Tudo o que resta são citações advindas de Irineu e Eusébio de Cesareia. Segundo se diz, ele teria sido companheiro
de Policarpo de Esmirna e, provavelmente, discípulo de João.
36

Em seguida, aponta Jesus como cumpridor das promessas feitas por Deus aos profetas, ao povo,
Abraão, Moisés, Davi. Na segunda dobra, Mateus indica que a comunidade deve seguir Jesus e
fazer a vontade do Pai, assim como Cristo fez. A comunidade mateana é convidada a olhar para
Cristo e ver nele um modelo para o seu agir ético e operante. Em suma, o centro do evangelho é
Jesus e sua ação de mestre, anunciador do reino e salvador dos Homens.

Na dobra cristológica, Mateus apresenta Jesus como cumprimento pleno das figuras do Antigo
Testamento. Nesta linha, quando expõe a ascendência de Jesus (cf. Mt 1,1-17), percebe-se que ele
logo faz a ligação, desde Abraão até José, a linhagem real da descendência de Davi. Além disso,
Mateus mostra que Jesus é vindo de uma virgem (cf. Mt 1,23); nascido em Belém como o próprio
Davi (cf. Mt 2,6); imigrante no Egito, como Moisés, e, em seguida, hóspede em Cafarnaum (cf. Mt
4,14-16). Em suma, para o evangelista, Jesus é o Filho de Deus, o Emanuel, o Deus conosco do
início (cf. Mt 1,23) ao fim dos tempos (cf. Mt 28,20), conforme prometera Deus no passado. Em
cada passo dado em sua obra, fazendo comparação com Antigo Testamento, o evangelista mostra
que toda a Lei e os Profetas contemplam, em Cristo, a sua plena realização. E se Jesus cumpre e
plenifica o sentido da Lei, ela não se realiza exatamente de acordo com uma expectativa dos
Judeus. Mais que isso, Jesus realiza o que já era esperado, levando toda a Lei Mosaica à sua
perfeição e pleno cumprimento, mas supera em muito toda a promessa. Jesus é aquele que veio
como Mestre, Arauto e Salvador para instaurar um Reino de justiça e misericórdia.
Na dobra eclesiológica, Mateus evidencia que o discípulo
deve fazer conforme Cristo ensinou, a saber, colocar em
prática a vontade do Pai que está no Céu. Ele alerta
constantemente que a comunidade Cristã não pode ficar
indiferente às provocações se lhes apresenta. Aqueles que
não fazem a vontade do Pai não fazem parte da família de
Jesus (cf. Mt 12,49-50). Apesar disso, aqueles que estão na
família de Jesus não podem se considerarem superiores
aos demais. Pelo contrário, o maior deve se fazer pequeno
como uma criança (cf. Mt 18,3-4). Apenas aquele que se
faz pequeno e humilde entrará no Reino dos Céus. Esta
pequenez, porém, não é observada no exercício de dons
carismáticos ou de forma apenas contemplativa e inoperante, ao contrário, os benditos do Pai
são aqueles que servem os irmãos em suas mais diversas necessidades (cf. Mt 25,31-46), já que
os discípulos não podem esconder os talentos recebidos da parte de Deus (cf. Mt 25,14-30).
Como imitadora de Jesus, a comunidade cristã tem o mandato de ensinar, anunciar o evangelho e
levar aos homens a graça da salvação a partir da vivência dos valores da Justiça e misericórdia
instaurados pelo Senhor outrora. Portanto, a missão da Igreja é a missão do Cristo.
37

3.1 Primeira dobra ou eixo: Cristologia

A exemplo do evangelho de Marcos, Jesus é apresentado como anunciador do Reino de Deus. No


entanto, Mateus acrescenta para a identidade de Jesus o título de Mestre dos discípulos. Essa
intenção fica evidente nos cinco grandes discursos de Jesus, a exemplo do “sermão da montanha”
(Mt 5,1 - 7,29). Tanto a introdução (cf. Mt 5,2) quanto na conclusão (cf. Mt 7,29) deste sermão
afirmam abertamente que Jesus ensinava, o que era atitude característica dos antigos mestres.
Em Marcos não havia uma acentuação os discursos de Jesus, que pouco falava. Já para Mateus os
ensinamentos de Jesus adquirirem um significado muito rigoroso, pois se trata da melhor forma
de interpretar a lei divina como expressão da vontade do Senhor que já havia sido revelada no
Antigo Testamento. Porém passa a adquirir, em Jesus, sua perfeita e plena significação. O Reino
de Deus não é apenas uma promessa, adiante, bate na porta da existência dos homens.
A partir da interpretação de Jesus como plena realização das promessas antigas, Mateus mostra
que os homens são chamados a uma mudança radical em suas vidas a fim de construir uma
existência nova. Ou seja, estão convocados a aprender e praticar uma nova forma de ser que não
mude apenas a suas relações pessoais, mas, sobretudo, as relações interpessoais. É por isso que o
apelo de Jesus estará sempre unido ao primeiro anúncio onde ele faz apelo à mudança de vida
(cf. Mt 4,17). Para Mateus a salvação sempre é uma graça derramada constantemente por Deus,
no entanto, não deixa de ser uma vocação que implica uma resposta decisiva do homem aos seus
apelos.
Segundo Barbaglio:

Jesus - sublinha Mateus - é o revelador perfeito e definitivo da vontade do Pai e o


supremo mestre da vida dos homens. A sua missão não tem outra finalidade: não
penseis que vim anular a lei de Moisés e o ensinamento dos profetas; não vim anulá-
los, mas para completá-los (5,17). Na prática, ele operou um processo da
radicalização das exigências divinas, ab-rogando qualquer tolerância,
preenchendo toda lacuna (5,21-48). (BARBAGLIO, 2002, p.54)

Ao adentrar o evangelho de Mateus, sempre que se busca uma definição para a pessoa de Jesus, é
necessário compreendê-lo como promessa que se cumpre. Cristo vem de uma linhagem real que
se baseia no messianismo davídico por isso nasce em Belém (cf. Mt 1, 1-17; 2,1-6); nasce de uma
virgem (cf. Mt 1, 18); é o Deus conosco predito pelos profetas (cf. Mt 1,22s); é o novo Moisés que
foge para o Egito e retorna a terra de Israel e, depois, sobe ao monte para ensinar aos seus a
vontade de Deus (cf. Mt 2,13-23; 5,1 - 7,29); passa quarenta dias no deserto como o povo de
Deus, em alusão aos quarenta anos no deserto (cf. Mt 4,1-3). No entanto, em todas essas figuras,
Jesus supera as antigas, pois além de cumpri-las ele as levará ao aperfeiçoamento (cf. Mt 5,17.20-
47). “Na prática, ele operou um processo de radicalização das exigências divinas, ab-rogando
qualquer tolerância, preenchendo toda lacuna (cf. Mt 5,21-48)” (BARBAGLIO, 2002, p.54).
Na pessoa de Jesus, como mestre e modelo, a ação humana sempre estará sobre o imperativo do
agir segundo a vontade de Deus, pois o homem é chamado a não fazer distinção entre bons e
maus. Assim, segundo Fabris, Mateus não indicará à sua comunidade uma nova ética, antes,
colocará todo reto agir ético do homem sob as asas da realização da vontade de Deus. Como
38

verdadeiro mestre, tudo o que Jesus diz adquire um valor inestimável pelo simples fato de ser ele
mesmo quem o diz. A própria multidão entenderá bem que se encontra diante de um mestre
original, em muito distinto dos mestres judaicos que eles conheciam, pois costumavam ensinar
sem praticar e viver o que ensinava.
Segundo Barbaglio, “Obediência à vontade do Pai, práxis de amor misericordioso e
indiscriminado e seguimento de Jesus formam um todo. É evidente que estamos longe de
qualquer ideal ético; o confronto do homem não acontece com normas morais” (BARBAGLIO,
2002, p.55). Aos que fazem a vontade do Pai, seguindo o exemplo de Jesus, é concedida a graça
de fazer parte de sua verdadeira família (cf. Mt 12,46-50).
Fique claro, porém, que o anúncio e o ensinamento de Mateus jamais esgotarão a riqueza e a
novidade da pessoa de Jesus. As curas, os milagres e todos os atos de Jesus contribuem para que
a comunidade mateana possa enxergar nele o servo obediente ao Pai que assume as
enfermidades do homem para redimi-lo. Mesmo na hora extrema da cruz ele jamais perdeu o
controle da situação, o que fez transparecer a sua majestade divina. E, após a ressurreição, Cristo
é a alma de sua Igreja que percebe a sua presença de forma viva e eficaz (cf. Mt 28, 19-20).
Segundo Barbaglio, Mateus atribui vários títulos a Jesus:

[...] Ele é o revelador da última palavra de Deus à humanidade, e como tal


transcende a figura de Moisés; encarna a espera do AT polarizada sobre o filho de
Davi; percorreu o caminho do servo de Deus sofredor libertando os homens do
mal e sofrendo na sua carne; filho de Deus e Senhor glorioso, está presente na sua
Igreja; como juiz último será envolvido pela glória própria do Filho do Homem.
(BARBAGLIO, 2002, p.58)

Nesses títulos ressaltados por Mateus, encontramos a perspectiva da visão que a comunidade
nutria a respeito da pessoa de Jesus. Em todo o seu significado e realidade Cristo se faz presente
na Igreja, sustentando-a em todas as dificuldades. No entanto, Mateus alerta para o fato de que a
comunidade deve abraçá-lo decididamente, pois ele virá novamente para julgar com o peso da
justiça e da misericórdia. Esse julgamento não visa à ruína do homem, antes, almejará a
glorificação da Igreja, do Reino de Deus e, sobretudo, do próprio Deus.

3.2 Segunda dobra ou eixo: Eclesiologia ou Teologia do Reino de Deus

Em seu evangelho, Mateus apresentou Jesus como Messias prometido desde o Antigo
Testamento ao povo de Israel. E apesar de Jesus realizar a expectativa do povo de Deus, Ele não
foi aceito por todos os seus. E a Igreja nasce nesse contexto de rejeição da parte dos Judeus (cf.
Mt 21,33-46). Por isso, o evangelho tem como sua principal finalidade a orientação da
comunidade de cristã, que Mateus identificará como o “Novo Israel”. É nesta perspectiva que o
evangelista dará enorme importância à sua comunidade e o tema eclesiológico adquire extrema
relevância. A partir dessa acentuação comunitária de Mateus, os exegetas definem o seu escrito
como evangelho eclesiástico. E a comunidade que recebeu o seu evangelho servirá de luz para
reinterpretar a definição de povo de Deus a partir de uma releitura do Antigo Testamento.
39

Segundo Barbaglio, Mateus dá profunda importância à temática do “povo ou Reino de Deus”,


“comunidade dos discípulos de Cristo”, “comunidade aberta ao mundo”, “comunidade que
caminha à luz do juízo final”, entre outros temas em seu evangelho. Para Mateus, a Igreja é uma
evolução histórica do povo de Deus, antes restrito às fronteiras de Israel. No Antigo Testamento,
Israel era considerado o povo escolhido e eleito de Deus. Porém, com a chegada de Cristo, a
própria Igreja passa a assumir esta identidade de povo escolhido e recebe a missão de fazer
frutificar a presença do Reino.
E esta releitura da Igreja enquanto novo povo de Deus é feita a partir de diversas imagens do
Antigo Testamento que são consideradas tipológicas27 do Novo Testamento. Neste aspecto, a
Igreja de Cristo assumirá a identidade de novo Israel, pois é agora a escolhida de Deus. No antigo
testamento, segundo Barbaglio (2002), Israel era compreendido como forma concreta e tangível
na qual tomou corpo a realidade da graça divina e da fé humana. Foi através da nação israelita
que Deus tornou concreta a sua revelação, a aliança e as promessas feitas ao seu povo. Para
Mateus, porém, essa eleição de Israel tem um caráter primário, transitório e precário, pois está
destinada a preparar os caminhos para o verdadeiro Povo de Deus. A igreja era, portanto, a
plenitude e o amadurecimento último da formação do povo. Israel fora constituído por Deus a
fim de preparar o Israel futuro, isto é, a Igreja. Deste modo, O Antigo Israel se torna uma profecia,
prefiguração e prenúncio da comunidade messiânica; pois, com a vinda de Cristo, ele cessou de
ser a forma histórica do Povo de Deus. Nesta perspectiva, Barbaglio diz o seguinte:

O texto mais claro e compreensível, todavia, parece ser 21,43: O Reino de Deus vos
será tirado e será dado a um povo que o fará frutificar. O Judaísmo cessou de ser o
lugar social e histórico da presença da graça salvífica. A Igreja tornou-se o lugar
concreto no qual o Reino tomou forma na história humana. (BARBAGLIO, 2002,
p.59-60)

A citação acima se contextualiza diante da parábola dos “vinhateiros homicidas” (cf. Mt 21,33-
46). Jesus, ao contá-la, claramente dirigiu sua palavra aos chefes do judaísmo já que, em Mt
21,45, Mateus diz o seguinte: “Os chefes dos sacerdotes e os fariseus, ouvindo estas parábolas,
perceberam que Jesus se referia a eles”. No entanto, as autoridades judaicas não podem ser
confundidas com todo o povo de Israel. Por isso, em Mt 21,42, Jesus esclarece que o motivo pelo
qual quis constituir um novo povo eleito consistia no fato de ter sido rejeitado. Mas o evangelista
deixa claro, também, que embora a Igreja assuma esse papel de tornar-se o povo escolhido ela
não se identifica plenamente com o Reino de Deus. O Reino é sempre superior a Igreja e se trata
das realidades salvíficas relacionadas ao fim último da humanidade. Apesar de ser menor e
menos importante que o reinado de Deus, a Igreja antecipa, de certo modo, esta salvação futura,

27
Tipologia, na teologia cristã e exegese bíblica, é uma doutrina ou teoria relativa à relação entre o Antigo
Testamento com o Novo Testamento. Eventos, pessoas ou declarações no Antigo Testamento são vistos como tipos
prefigurados ou substituídos por antítipos, eventos ou aspectos de Cristo ou de sua revelação descritas no Novo
Testamento. Por exemplo, Jonas pode ser visto como o tipo de Cristo em que emergiu da barriga do peixe e,
portanto, pareceu ressurgir da morte. Na versão mais completa da teoria da tipologia, todo o propósito do Antigo
Testamento é visto como meramente a provisão de tipos para Cristo, o antítipo ou cumprimento. A teoria começou
na Igreja Primitiva, teve sua maior influência na Alta Idade Média e continuou a ser popular, especialmente no
Calvinismo, após a Reforma Protestante, mas em períodos subsequentes lhe foi dada menor ênfase.
40

pois nela contêm os germes do mundo desejado por Deus. É na vida em comunidade que se deve
fazer despontar as alegrias e gozos previstos para o fim dos tempos.
A Igreja, como novo Israel, não oferece mais animais em sacrifícios,
mas é redimida pelo sangue de Cristo. Ele se doa à Igreja e é
por isso que nela se manifesta a graça de Deus e o perdão
para os pecados cometidos. A salvação é um dom
comunitário e, por isso, deve encontrar a pessoa na
comunidade cristã, pois ninguém se salva sozinho.
“Para Mateus a Igreja é o verdadeiro povo de Deus,
comunidade dos últimos tempos, sinal visível da
salvação para os homens” (BARBAGLIO, 2002, p.59).
Apesar disso, nunca se deve esquecer que a Igreja não é
igual ao Reino Deus, apenas o encaminha e antecipa de
modo parcial por ser o seu sinal visível durante a história.
Enquanto não passa o tempo presente, a Igreja será
importante, mas é apenas uma parte desse reinado absoluto de
Deus.
Segundo Barbaglio (2002), Mateus não apresenta muitas informações acerca da estrutura de sua
comunidade, porém, é possível perceber e extrair alguns elementos interessantes de sua
estrutura eclesial. Segundo o teólogo, pode-se distinguir ao menos quatro grupos distintos na
comunidade mateana. São eles:

1. Os profetas (cf. Mt 7,22; 10,41; 23,34);


2. Os sábios (cf. Mt 23,34);
3. Os escribas cristãos (cf. Mt 13,52);
4. Os pequenos (cf. Mt 10,42; 18,6.10.14).

Entre esses, o grupo dos “pequenos” era pouco considerado na comunidade, já que eram
pessoas de grande simplicidade. Apesar disso, eles eram muito ativos e se empenhavam como os
demais grupos na missão. Por isso, Mateus chama atenção diversas vezes para que os membros
das comunidades tenham em grande estima os pequeninos (cf. Mt 18,1-5).
Além da organização eclesial por grupos de origem dos cristãos, é preciso considerar que já
existiam dois estados de vida distintos e complementares entre si: o matrimonial e o celibatário.
E desde muito cedo, Mateus dará preferência ao estilo de vida celibatário, que surgiu de uma
opção de entrega total e de amor ao Reino (cf. Mt 19,10-12). Vejamos a citação evangélica:

Os discípulos lhes disseram: “se for essa a situação do homem em relação a


mulher não convém se casar”. Jesus então lhes disse: “nem todos aceitam essa
sentença, mas só aqueles a quem é concedido. Com efeito, há eunucos que assim
nasceram no útero da mãe, á eunucos que foram feitos eunucos pelos homens, e
há eunucos que fizeram a si mesmos eunucos por causa do Reino dos Céus. Quem
puder aceitar, que aceite. (Mateus 19,10-12)
41

Por eunuco deve-se entender homens que castrados que serviam as cortes imperiais e as casas
das pessoas nobres. Por isso, Mateus mostra o celibato como continência voluntária em favor e
por amor ao Reino de Deus. “A realidade do reino futuro (22,23-33) tende a antecipar-se na
existência daqueles que se lhe abrem na esperança” (BARBAGLIO, 2002, p.64). Como no Reino
dos Céus as pessoas não se tomarão em casamento, o celibato antecipa para o presente o sinal
visível do Reino. Porém, não se deve pensar que todos os presbíteros já fossem celibatários na
comunidade de Mateus, pois se tratava de uma decisão pessoal, não imposta pela comunidade
cristã.
Diante de tantas particularidades presentes na comunidade, os primeiros cristãos se sentiram
tentados a se considerarem superiores aos demais, por um ou outro motivo. Nesse sentido,
Mateus mostra que a comunidade não deve ser ideológica, considerando-se superior às demais.
O discipulado deve ser uma imitação total de Cristo que, não se fechando em si, abre-se
completamente ao mundo inteiro. Ele não se fez maior, mas servo de todos. É a estreita união
com Cristo que deve caracterizar a Igreja cristã, o novo Israel. Quando lido sob esta perspectiva, o
relato do chamamento das primeiras duplas de discípulos apresenta uma pista importante para
o estilo de vida que a comunidade deve cultivar. Trata-se de assumir um novo estilo de vida
muito mais radical, desenraizando-se da vida comum dos pescadores e passando a viver com ele.
A reação de Pedro, André, Tiago e João desafia e questiona cristãos em todos os tempos, pois
“deixando imediatamente as redes, o seguiram” (Mt 4,20), em seguida, Tiago e João “deixando
imediatamente o barco e o pai, o seguiram” (Mt 4,22).
Portanto, Mateus ensina que para ser discípulo verdadeiro de Cristo é necessário compartilhar
da existência do Filho de Deus, já que é preciso deixar tudo para segui-lo. Nada deve se antepor
ao convite insistente do Senhor (cf. Mt 8,19-22; 10,37). Como Barbaglio (2002) nos diz, o
caminho do mestre o levará inevitavelmente à Cruz (cf. Mt 16,21) de tal modo que o discípulo
não pode esperar outro destino diferente disso para si mesmo. Estas palavras foram escritas na
intenção de confortar a comunidade perseguida nos tempos em que Mateus as escreveu, pois é
justamente nas dificuldades e perseguições que se manifesta a essência do “novo Israel”, que
saberá suportar, com perseverança e fé, as calúnias.
Barbaglio afirma em seu comentário ao evangelho de Mateus:

Em suma, é uma comunidade que vive sob o olhar do Pai. Somente a ele dedica a
própria existência de fidelidade, purificada de qualquer instrumentalização da
religião: Não pratiqueis a vossa religião para obter a admissão das pessoas. Não
podeis esperar nenhuma recompensa do vosso Pai celeste (6,1). Somente dele se
espera um reconhecimento que vai além dos próprios méritos: E teu Pai, que vê
aquilo que está escondido, dar-te-á a recompensa (6,4.6.18). (BARBAGLIO, 2002,
p.67)

A Igreja deve nutrir entre si uma relação fraterna e cordial. Mas, apesar desta relação íntima com
a comunidade, ela jamais deverá se fechar em si mesma, pois a salvação é universal e destinada a
todas as pessoas. Por isso, a comunidade cristã deve estar aberta ao mundo. “A Igreja tem uma
missão a realizar no mundo” (BARBAGLIO, 2002, p.67) e esta missão deve ser levada com
empenho pelos cristãos. Este anúncio de salvação não é apenas para os membros da Igreja, que
42

não é um clube fechado, mas deve ser testemunhado a todo o mundo (cf. Mt 24,14). Nesse
sentido, Mateus ligará a missão da Igreja com a promessa feita a Abraão: “Abençoarei aqueles que
te abençoarem e aqueles que te amaldiçoarem amaldiçoarei, e em ti dir-se-ão benditas todas as
tribos da Terra” (Gn 12,3). É do próprio Abraão que Jesus será descendente (cf. Mt 1,1) e nele se
inicia o cumprimento da promessa ao seu pai.
Mas é à luz da construção e da expectativa do Juízo Final que a Igreja deve ser compreendida. Ela
não deve se construir pensando apenas no tempo presente, mas preparando as pessoas para a
vida futura. Mateus ressalta que, no dia do juízo, a verdade será posta à luz e todos poderão
observar as dobras da história. Deus resplandecerá diante de todos, por isso, os cristãos são
chamados à obediência a sua vontade e a sua palavra (cf. Mt 7,21). Mateus ressalta, porém, que
está obediência não é a reprodução daquilo que os mestres do judaísmo viviam (cf. Mt 5,20).
Diante dos problemas reais de sua comunidade, Mateus alerta para que os cristãos de sua época
não sejam inoperantes com os talentos que Deus lhes deu (cf. Mt 25,30) e, muito menos,
insensatos (cf. Mt 25,12). Seu interesse em enfocar o juízo final é prático, pois, segundo
Barbaglio, “Mateus tem diante de si uma comunidade cristã preguiçosa e descomprometida”
(BARBAGLIO, 2002, p.70). Atentos aos sinais dos tempos, a comunidade cristã não pode cultivar
a falsa segurança, pois o que salva o homem são os critérios construídos pela práxis do amor e
não as teorias.
Para concluir, Barbaglio nos afirma o seguinte:

A demora de sua vinda (24,48; 25,5.19) não pode justificar a desatenção. A


perspectiva do juízo da enorme seriedade aos apelos à vigilância (24,42; 25,13),
ao estar prontos (24,44), ao viver na fidelidade operativa à palavra de Jesus,
como testemunham as parábolas dos mordomos (24,45-51) e dos talentos
(25,14-30). [...] A abertura ao futuro não significa fuga do hoje, mas tensão que
qualifica o presente como tempo em que deve realizar-se como povo e fazer
frutificar o Reino de Deus. (BARBAGLIO, 2002, p. 71)

Portanto, no seu evangelho, Mateus retoma o convite à ação vigilante da comunidade. Esta vigilância é
manifestada nas suas diversas necessidades e na assistência de seus membros mais carentes de
quaisquer coisas.

3.3 Esquema ou divisão do evangelho

Existem muitos esquemas apresentados para sistematizar e apresentar o evangelho de Mateus. Logo
abaixo pode-se encontrar dois esquemas que se complementam entre si. O primeiro aborda o
evangelho dividido em cinco livros, tendo uma parte discursiva e outra narrativa, fazendo clara alusão
aos cinco livros da lei mosaica. O segundo, mostra o evangelho em forma de quiasmo28, onde sempre a

28Estrutura em que as palavras da primeira frase são repetidas, na segunda, mas com a ordem inversa. Os escritores
bíblicos se utilizam muitas vezes desse recurso. Como as ordens são inversas, a primeira mensagem aparece na
última, a segunda na penúltima e assim sucessivamente. Ao centro, encontra-se a mensagem que não tem repetição
43

mensagem central se encontrará no meio do evangelho e o início e o fim terão pontos de abordagem
comuns, ou seja, muito semelhantes. Os dois esquemas apresentados abaixo, no entanto, evidenciam
Cristo e o seu Reino, conforme destrinchado na cristologia e eclesiologia do evangelho.

3.3.1 O esquema dos cinco livros

Segundo o modelo estabelecido nesse esquema de cinco livros, a intenção do evangelista Mateus
seria a utilização de uma imagem muito familiar aos cristãos advindos do universo judaico: os
cinco livros da Lei mosaica. Como Jesus é o novo Moisés, que veio cumprir e plenificar as
promessas de Deus, feitas no antigo testamento, essa linguagem atingiria mais facilmente a
compreensão de quem fosse familiarizado com o pentateuco. Os cinco livros são precedidos pela
introdução, que é um evangelho da infância de Jesus (Mateus 1 e 2) e por uma conclusão, que
mostra como a pascoa de Jesus salva e liberta (Mateus 26 a 28). Cada um dos livros é subdividido
em uma parte discursiva, onde Jesus transmite oralmente os seus ensinamentos e, uma parte
narrativa, onde o evangelista mostra a ação de Jesus, confirmando as suas falas. As cores são
para indicar a correlação de conteúdo entre as partes. O livro 1 e o livro 5 falam a respeito do
reino de Deus e da sua realização histórica e escatológica. O livro 2 e o livro 4 abordam a respeito
dos discípulos de Jesus e a sua missão de continuar a viver os seus ensinamentos. E o livro 3 têm
o coração da mensagem do evangelho, pois o Reino e a sua justiça só serão vividos por aqueles
que livremente o acolhem: a semente é lançada em todos os corações.

3.3.2 O esquema do Quiasmo ou Quiasma

e, portanto, torna-se a mensagem central do texto. Nesse estilo linguístico, a mensagem mais importante aparece no
centro da redação.
44

Como se pode ver nessa demonstração do quiasmo literário em Mateus, há clara exposição do
conteúdo em correlação entre o começo e o final, seguindo a ordem inversa, culminando no
centro do evangelho com as parábolas do Reino (13,1-53). E a mais importante entre estas
parábolas é a do semeador (Mt 13,3b-9). Através dela, o evangelista deixa claro que todas as
pessoas podem acolher a palavra de Jesus e a proposta do Reino, mas a acolhida depende de cada
coração e da prioridade que cada pessoa atribui a sua mensagem. No evangelho de Mateus
vemos uma tendência a apresentar o Reino de Deus como continuidade do Judaísmo, porém, esta
continuidade supera e aperfeiçoa a anterior. Assim, Cristo vem primeiro aos judeus, ou seja, aos
seus, porém, se abre a toda a humanidade (Mt 15,21-28). É a Igreja que terá a missão de
manifestar essa nova realidade ao mundo.

3.4 Breve exposição teológica

Apesar de parecer, Mateus não escreveu apenas para pessoas cultas e eruditas. Pelo contrário,
todo o conteúdo de seu evangelho se encontra presente na maneira como escolheu fazer a sua
apresentação. Provavelmente, o evangelista começou a redação pelo miolo do Evangelho, onde
se encontram as palavras e ações da vida pública de Jesus. Ao final, ele acrescentou a introdução,
que fala do nascimento e vida oculta de Jesus; e os capítulos conclusivos, que expõe os
acontecimentos da sua paixão, morte e ressurreição.

3.3.1 Nascimento e vida oculta (Mt 1 – 2)

Os dois primeiros capítulos constituem o “Evangelho da infância”, que explicita as origens de


Jesus e as circunstâncias do seu nascimento. De uma forma muito envolvente, Mateus demonstra
como as profecias messiânicas encontram o seu cumprimento com o nascimento de Jesus. O
relato também sugere, na perseguição de Herodes e na atitude adversa de Jerusalém (cf. Mt 2,3),
qual será o destino do menino e a férrea oposição que futuramente encontrará. Refazendo o
caminho do seu povo do Egito para a terra prometida, Jesus se apresenta não apenas como Deus
presente na história, mas como o enviado que a revive e reescreve.

3.3.2 Vida pública (Mt 3 – 25)

O Evangelho de Mateus apresenta Jesus como o “novo Moisés” e, portanto, também é


compreendido como a “nova Lei”. Por isso, boa parte dos teólogos dividem a vida de Jesus em
cinco livrinhos, para recordar os cinco livros da Torah, também chamada de “Pentateuco”29. Cada
livrinho, por sua vez, está subdividido em duas partes, uma narrativa e outra discursiva. No
primeiro livrinho, encontramos a primeira pregação de Jesus e o convite que faz aos seus

29Pentateuco significa cinco (penta) rolos ou estojos onde se guardavam os rolos (teucos). Os livros que compõem o
pentateuco são: Gêneses, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.
45

primeiros seguidores. Em seguida, profere o Sermão da Montanha, que se apresenta como nova
lei para a vivência autêntica do evangelho, baseada na justiça e na misericórdia. O Segundo
livrinho desenvolve-se a partir da missão de Jesus na Galileia e o compartilhamento da missão
com os doze. O terceiro é o livro central. Nele Jesus conta parábolas que anunciam a presença e o
universalismo do Reino de Deus. No quarto, Jesus orienta a vida comunitária, pois havia muitos
problemas a serem superados nas primeiras comunidades. No quinto e último livrinho, Mateus
apresenta a escatologia e o juízo final para deixar a comunidade em constante atenção a fim de
que ela não negligencie o convite de Jesus a conversão e à justiça.

3.3.3 Paixão, morte e ressurreição (Mt 26–28).

Essa tradição da paixão de Jesus, o evangelista herda de Marcos e, por isso, o evangelho alcança,
no acontecimento do Gólgota, seu ponto mais alto. Jesus é o messias esperado, mas, diferente de
toda espera, seu messianismo amadurece e desabrocha na Cruz. Apesar de entregue nas mãos de
seus adversários, a ressurreição sinaliza que a vida tem sempre a última palavra e, a partir do
encontro com o Ressuscitado, a comunidade mateana descobre seu fundamento e vocação.
Depois de fazer todo o seu percurso, Jesus envia a comunidade para tudo mundo. Agora a
própria Igreja deverá ser sinal da sua presença e fazer, ela mesmo, discípulos para o Mestre.

4 EXPLICAÇÃO DE ALGUNS TRECHOS

A seguir, serão trabalhados alguns trechos bíblicos extraídos de Mateus para ajudar na chave de
leitura de todo o seu evangelho. A intenção é apresentar sumariamente a explicação destes
trechos, com ideias extraídas da obra de Giuseppe Barbaglio.

4.1 Mt 5,1-12: As bem-aventuranças

Os v.1-2 introduz o leitor à parte discursiva do primeiro Livro, cuja divisão vimos acima.
Portanto, não seria trecho exclusivo das Bem-aventuranças, mas de todo o Sermão da Montanha.
Em poucas palavras, Mateus é capaz de expor as seguintes informações: (1) quem ensinará, (2)
onde, (3) o povo que está na montanha, (4) os discípulos. A multidão, segundo Barbaglio, está no
fundo como ouvinte e, preparada. No final do sermão ela ficará perplexa com tamanha novidade
nas palavras de Jesus (cf. Mt 7,28-29). Nesta introdução Jesus é apresentado como Mestre, como
aquele que ensina.
Nos vv.3-12 deparamos com as bem-aventuranças. Segundo Barbaglio, este trecho pode ser
dividido em duas estrofes. A primeira se estende dos versículos 3 a 6 e, a segunda, dos versículos
7 a 10. No início da primeira estrofe e no fim da segunda Mateus expõe a promessa de Jesus a
respeito do Reino dos Céus. O Reino é dos pobres em espírito e dos justos (vv.3 e 10). Tanto na
primeira quando na segunda parte, encontramos o verbo que se refere ao Reino de Deus no
presente, ao contrário das demais bem-aventuranças. Desta maneira, Mateus revela que o Reino
46

já está entre nós, indicando que já está instaurada a pátria da justiça. Apesar de presente e atual,
a sua construção acontece passo a passo mediante a atitude de quem corresponde a sua vocação,
até que se concretize em um futuro iminente.
Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus (v.3): Indica que o reino dos céus é
destinado aos humildes. As virtudes da humildade e simplicidade expressam bem o que significa
pobre em Espírito. Trata-se de um curvar-se diante de Deus ao invés de erguer-se de forma
orgulhosa. Possuir o Reino dos Céus significa ter, já no mundo, parte do gozo da vida eterna. Os
pobres em espírito, por sua humildade, têm a graça de antecipar a vinda do Reino. Como não
buscam grandezas, encontram-se plenamente satisfeitos em Deus.
Felizes os mansos porque herdarão a terra (v.4): Os mansos, segundo Barbaglio, são aqueles que
se relacionam sem o uso da violência. Eles se apresentam sem armas diante dos outros.
Certamente, Mateus baseou esta afirmação no Salmo 37, que aconselha a mansidão contra os
malvados, já que quem o guarda é o Senhor. A pessoa com a virtude da mansidão deixa o seu
destino e cuidado nas mãos de Deus. Por isso, Jesus é apresentado como modelo de mansidão e
do como se deve agir (cf. Mt 11,29).
Felizes os aflitos porque serão consolados (v.5): Esta promessa já não está no presente, mas indica
que o Reino terá promessas que se concluirão noutra ocasião. Segundo Barbaglio, ela se destina
aos que sofrem aflições, para que se mantenham mansos diante de um mundo que ainda se
encontra sob a ação das forças malignas e de morte. Há, também, o entendimento do choro pela
compaixão com os que sofrem. Sua consolação consiste na salvação final, na vida eterna.
Felizes os que têm fome e sede da justiça, porque serão saciados (v.6): Usando da metáfora dos
famintos e sedentos, Mateus quer indicar que a busca pela justiça deve ser sempre operante,
nunca estática. Ninguém, em sã consciência, espera o alimento cair do céu, a menos que não
tenha outra escolha. Não é apenas uma procura por um ideal de vida, antes, uma procura ativa e
engajada por um mundo real possível. Ser praticante da Justiça significa fazer aquilo que é da
vontade do Pai. Quando se fala da saciedade, lançando a realidade para o futuro, indica que
aqueles que assim agirem serão “cumulados de uma felicidade escatológica” (BARBAGLIO, 2002,
p.114).
Felizes os misericordiosos porque alcançarão misericórdia (v.7): A prática do perdão comunitário
(cf. Mt 18,33) não é apenas um ideal de vida. Para Jesus, não há justiça se não houver
misericórdia nas relações comunitárias. Segundo Barbaglio, neste contexto de misericórdia
também se compreende pela ajuda oferecida aos necessitados, conforme a parábola do juízo
final, no sermão escatológico (cf. Mt 25,35-37). Aqueles que vivem da misericórdia também
receberão de Deus a mesma misericórdia.
Felizes os puros no coração, porque verão a Deus (v.8): No antigo Israel, a pureza legal era algo
que se devia ser muito considerado, sem a qual, não se tinha a bênção de Javé. Jesus, modificando
esta “lei”, não consiste apenas em não fazer o mal, mas também em não o desejar no coração. A
pureza, portanto, não é o cumprimento de leis e ritos, antes, são puros no profundo de seu ser.
Verão a Deus porque não externalizam com fachadas sua pureza, mas porque são puros no
íntimo. Estes, estarão em plena comunhão com Deus.
Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus (v.9): Segundo Barbaglio,
“Jesus se congratula com aqueles que estabelecem a paz” (BARBAGLIO, 2002, p.114). De início,
47

Mateus quer alertar a comunidade eclesial para a convivência pacífica. Mas não se pode negar
que este pedido está além-fronteiras da própria Igreja. Desta forma, ele afirma como sendo são
filhos de Deus todas as pessoas que contribuem concretamente com atitudes misericordiosas e
fraternas no mundo.
Felizes os que são perseguidos por causa da Justiça, porque deles é o Reino dos Céus (v.10): Assim
como na primeira bem-aventurança, Mateus afirma com a conjugação do verbo no presente que
o Reino de Deus já está entre os perseguidos. Primeiro, porque se assemelham ao próprio Jesus,
que exerce o seu reinado a partir da cruz e ressurreição. Segundo, por fazerem de suas vidas
conforme o querer de Deus. E a justiça, para Mateus, é colocar em prática a vontade de Deus, que
jamais se desatrela da misericórdia que conduz à paz.
Nos dois últimos versículos (v.11-12), Jesus parece se dirigir particularmente aos seus
discípulos. Pois, Ele não usa mais o verbo em terceira pessoa, antes, em segunda, para indicar a
proximidade da mensagem que desejou transmitir aos seus. Quando compara os discípulos aos
profetas, indicam que esses serão os seus sucessores, já que serão perseguidos como eles foram.
Provavelmente, Jesus não tenha encontrado muitas dificuldades para indicar que dias difíceis
viriam sobre seus discípulos, já que também era esta a sua própria sorte. Porém, faz-se
necessário ver para além dos sofrimentos, pois serão recompensados os que são perseguidos
pelo nome de seu Senhor. Com uma alegre notícia a todos, Mateus chama os discípulos do Cristo,
a sua Igreja a ter firme olhar na alegria futura: “Alegrai-vos e regozijai-vos, porque será grande a
vossa recompensa nos céus, pois foi assim que perseguiram os profetas, que vieram antes de vós”
(Mt 5,12).

4.2 Mt 13,1-9: O semeador

No capítulo 13 do evangelho, Mateus apresenta a importância da Palavra de Deus na construção


do Reino. Não se pode esquecer, inclusive, às quais implicâncias a palavra e o Reino devem nos
submeter. Durante todo o capítulo, o evangelista apresenta muitos conselhos a respeito do
Reino, da sua realidade terrena e os seus mistérios. Jesus fala em parábolas, segundo Barbaglio
(2002), para facilitar a compreensão da multidão (cf. Mt 13,2) acerca do evangelho. Com essas
parábolas Jesus tenta encorajar os discípulos e defender eficazmente sua missão messiânica.
Deus revela a realidade do Reino aos simples, isto é, aos seus discípulos e às pessoas de boa
vontade. Entre outras, encontra-se a parábola do Semeador. Nos primeiros versículos (13,1-3a),
encontramos uma breve introdução, que novamente coloca Jesus sentado, postura comum dos
mestres judaicos no momento do ensino.
Na parábola, o centro do relato é o ato de semear, que em três casos não tem nenhum efeito.
Apenas no último caso, quando cai em terra boa, a semente produz os seus frutos.
Provavelmente, Mateus apresenta essa parábola para animar os discípulos que enfrentavam o
fracasso e a resistência no ato da evangelização. Também Jesus enfrentou muito insucesso na sua
missão até então. Por isso, ao redor dele havia um ambiente de crise de fé e esperança, pois a
maioria duvidava que Ele fosse o messias esperado. Esse ambiente descrente inspirou Jesus a
contar as parábolas do Reino e, com a parábola do semeador, Ele quer recuperar a confiança das
pessoas e de seus discípulos em seu projeto. Apesar da semeadura não produzir frutos desejados
48

em muitos momentos, é necessário manter-se firme na fé, pois é inevitável que em algum
momento a semente encontre território no qual ela frutificará. Isso indica que entre a missão de
Jesus e a vinda de seu Reino existe um vínculo que não pode ser dissolvido pelo tempo. Por isso,
é necessário manter-se firme na fé e essa firmeza deve ser operante, sem deixar de semear. As
sementes precisam ser lançadas em todos os corações.
A ação do semeador, que espalha com mãos cheias as sementes interpela aos ouvintes para que
não desanimem, para que se mantenham no caminho. Segundo Barbaglio, Mateus alerta os
discípulos que o Reino “é confiança, apesar de tudo, vitoriosa sobre forças terríveis do passado
que tendem a fechar a porta da existência ao futuro que bate” (BARBAGLIO, 2002, p.214). Se,
porventura, alguém não crê no anúncio, deve-se exclusivamente ao seu direito de renunciar as
exigências do Reino. Sua renúncia, no entanto, tem consequências que cada pessoa precisa estar
ciente de colher.

5 RESUMINDO

1. Quando foi escrito o evangelho de Mateus?


R.: O evangelho de Mateus foi escrito aproximadamente entre os anos 80-90 d.C.

2. Quem Foi o autor do Evangelho?


R.: Embora o evangelho não identifique o seu autor, a tradição da Igreja atribui, desde os primeiros
séculos, este evangelho a Mateus ou Levi, cobrador de impostos (cf. Mt 9,9-13). Segundo a tradição,
tratava-se do cobrador de impostos chamado por Jesus a ser discípulo e, após a ressurreição,
tornou-se um dos doze apóstolos.

3. Onde e para quem foi escrito?


R.: Segundo os pesquisadores atuais, este evangelho foi escrito em Antioquia, na Síria, para os
Cristãos que lá viviam. Provavelmente, esses cristãos eram, em sua maioria, advindos do judaísmo,
daí o estilo linguístico utilizado por Mateus. Essa comunidade era formada, na sua maioria, por
judeus da diáspora. É uma comunidade com tendências religiosas ligadas diretamente ao judaísmo,
fato esse, nos constantes provérbios e ditos judaicos, particularmente aqueles ligados à observância
da Lei. Isso tudo gerou problemas e conflitos, dando origem ao Concílio de Jerusalém (cf. At 15).

4. Qual a mensagem central do evangelho?


R.: Segundo Barbaglio, podemos distinguir a teologia mateana em duas dobras que se requerem
mutuamente: a cristológica (Jesus) e a eclesiológica (Reino de Deus). Mas é notório que o
evangelista tenha dado mais relevância à eclesiologia. Jesus é compreendido como o cumprimento
das profecias, herdeiro do trono de Davi e novo Moisés. Cristo não veio abolir, mas dar pleno
cumprimento à lei e às promessas. O Reino, para Mateus, manifesta-se na comunidade que deve
seguir sempre a vontade do Pai, assim como Cristo fez. A Igreja é convidada a olhar para Cristo e
ver nele um modelo para o seu agir ético e operante. Em suma, o centro do evangelho é Jesus em
sua ação de mestre, anunciador do reino e salvador dos Homens.
49

5ª PARTE: EVANGELHO SEGUNDO LUCAS

1 INTRODUÇÃO

Segundo a tradição, Lucas é alguém que faz parte da segunda geração de cristãos. Isso significa
que ele não conheceu Jesus pessoalmente, mas conheceu os apóstolos de Jesus. Tornando-se
membro da comunidade Cristã após o ano 70 d.C., ele não conviveu com a maioria dos apóstolos
e faz parte de uma Igreja que denominamos de subapostólica30. Na sua mensagem, todas as
pessoas se tornam destinatárias da salvação trazida por Jesus, o que os teólogos chamam de
universalismo salvífico. Além disso, ele mostra uma profunda atenção aos mais necessitados,
enfatizando o Espírito agindo sobre a pessoa de Jesus e conduzindo os passos da Igreja. Na
verdade, a sua obra está dividida em duas partes. A primeira é o evangelho e, a segunda, os Atos
dos Apóstolos. Por isso, veremos o seu conteúdo em suas duas etapas, a começar pelo evangelho.

2 DATA, LOCAL, AUTOR E DESTINATÁRIOS

O evangelho segundo Lucas é datado, pela maioria dos estudiosos, entre os anos 80-90 d.C. Não
custa recordar que se trata de hipóteses, não de fatos. Para chegar a essa conclusão, os teólogos
partem de duas justificativas. Primeiro, o autor escreve pormenorizadamente sobre a destruição
do templo de Jerusalém (cf. Lc 21,20-22; 19,42), que ocorreu no ano 70 d.C. Seria difícil tamanha
precisão se não houvesse tempo para que a notícia se propagasse até sua região. Além disso, é
difícil que tenha sido escrito antes do ano 80 d.C., já que tinha conhecimento da obra de Marcos,
de onde extraiu uma de suas fontes.
Diferente dos demais evangelhos, Lucas não nos apresenta um ambiente definido de onde o teria
escrito. Porém, segundo testemunhos como o de Irineu, situado no século segundo, é provável
que tenha escrito este evangelho na Grécia Meridional, talvez o tenha escrito na cidade de
Corinto. Segundo Fabris, é mais correto afirmar que fora escrito em territórios não palestinenses.
Segundo Fabris (2006), deve-se ter claro que Lucas é um cristão convertido e faz parte da
segunda geração, proveniente de um ambiente helenista e pertencente a uma classe social alta.
Pelos seus escritos, nota-se que é uma pessoa culta, pois escreve com maestria o grego koinè31.
Lucas era conhecedor da retórica grega e da exegese judaica e muito familiarizado com a versão
grega do Antigo Testamento (LXX); um gentio que, entre os anos 80-85 d.C., escreve a
comunidades cristãs fora de Israel (CASALEGNO, 2003, p. 235-240), que não entendem a cultura
na qual surgiu a mensagem de Jesus. Para os antigos Padres da Igreja, trata-se da mesma pessoa
que acompanhou Paulo e Barnabé em suas viagens missionárias. Fabris (2006) afirma que

30A História da Igreja Primitiva sempre foi dividida, por vários biblistas, em três períodos no que diz respeito à sua
origem, a saber: 1ª Geração (Apostólica) se dá entre os anos 30 e 67 d.C.; a 2ª Geração (Subapostólica) vai de 67 a 97
d.C.; e a 3ª Geração (pós-apostólica) que começa a partir do ano 97 d.C.
31 Era uma forma mais vulgar, ou melhor, popular do Grego.
50

alguns eram mais taxativos em dizer que Lucas era médico32 e, por isso, seria atento às
necessidades dos pobres. Lucas seria originário de Antioquia da Síria, celibatário, discípulo dos
apóstolos e, como vimos, companheiro de Paulo.
Também não fica muito claro quem foram os destinatários do seu evangelho. O que se tem, de
início, é que Lucas destina sua obra a um desconhecido Teófilo33 (cf. Lc 1,3), que traduzido para o
português, significa amigo de Deus ou temente a Deus. Esse Teófilo tanto pode ser uma pessoa,
como os pagãos que estavam aderindo à fé, pois eles eram chamados de tementes a Deus. Mas
também pode ser cada leitor, pois o evangelho sempre é atual. Conforme López, “o auditório de
Lucas desconhece o universo bíblico e, consequentemente, a história sagrada na qual Jesus de
Nazaré tem suas raízes e referenciais” (LÓPEZ, 2011, p.16). Porém, segundo Rivas (2008), este
destinatário se encontra em um contexto típico da segunda geração de cristãos, já que existia
muitos cristãos convertidos de outras culturas não judaicas, advindos de todo o mundo,
diferente de como era característico nas primeiras décadas do cristianismo.
Como havia convivência entre judeu-cristãos e gentio-cristãos, Lucas destinará sua obra para
apaziguar a relação entre eles. Após as viagens missionárias de Paulo, a Igreja se expande e era
necessário estabelecer uma ordem para a confusão que surgira: para ser cristão é ou não é
necessário passar pela circuncisão e praticar alguns costumes judaicos? A resposta para essas
perguntas não se encontra completamente no evangelho. É preciso ler a segunda parte da obra
lucana34, para compreendê-lo. No entanto, Lucas inicia a solução para essa problemática na
opção por um universalismo salvífico e, desde já, tenta solucionar as tensões existentes no
cristianismo de sua época.

3 TEOLOGIA DO EVANGELHO DE LUCAS

Lucas trabalha muitas temáticas em seu evangelho, mas o universalismo salvífico é a sua
principal mensagem. Ou seja, para o evangelista a salvação é um dom a todos os povos, não só
para os judeus. Segundo Fabris (2006), Lucas parte dessa mensagem para apresentar Jesus como
profeta (cf. Lc 9,8.19; 4,24) e salvador (cf. Lc 22,25; 2,11; 1,47.69). O menino, vindo da virgem,
será a luz das nações (cf. Lc 2,29-32). Ou seja, não é uma exclusividade dos judeus. Jesus veio
para romper as fronteiras e levar a salvação a todos os homens de boa vontade (cf. Lc 2,14). Da
parte dos gentios, porém, não se deve negar que esta luz vem de Israel, para quem fora feita a
promessa da salvação, que na história. Para Lucas, todos estes aspectos manifestam o grande
perdão de Deus para com a humanidade, a imensa misericórdia divina (cf. Lc 15, 11-32).

32Segundo Fabris (2006) alguns autores do início do cristianismo afirmam esta possibilidade de ser médico devido
à utilização de alguns termos clínicos, próprios de seu tempo. Porém, a sua linguagem não é muito diferente de
qualquer helenista culto de seu tempo.
33A palavra Teófilo é uma transliteração do grego Θεόφιλος. Teo, em grego, significa Deus e, Filos, amigo. Por isso,
ao uni-las, Lucas quer evocar todos os amigos de Deus.
34Para Rivas (2008) e Fabris (2006), a obra lucana é composta por duas partes, a saber: O Evangelho de Lucas e os
Atos dos Apóstolos. Estas duas partes formam uma unidade literária, apesar de atualmente estarem divididas.
51

O universalismo, no entanto, não está desconectado de uma primeira imagem de Jesus, que
caminha da Galileia a Jerusalém. Por sinal, a capital de Israel será lugar central dos eventos
salvíficos para Lucas. Segundo López (2011), há uma ambivalência que se implica mutuamente.
Jerusalém é o centro histórico da obra salvífica realizada por Jesus. Mas o mundo é o lugar
teológico onde se realiza o universalismo salvífico, já que a salvação é destinada a todos os
homens. Nesse caminho de Jesus, Lucas apresenta, como em Marcos, uma espécie de manual
para o caminhante que deseja voltar para a casa do Pai. Caminho pelo qual o próprio Jesus
caminha com o discípulo.
De início, pode-se observar um jogral entre as figuras de João Batista e Jesus, entre o anúncio do
nascimento de um e de outro, no encontro entre eles ainda no ventre de suas mães. A
comparação entre ambos serve de preparação para o ministério de Jesus. Vejamos alguns dos
elementos comparativos entre os dois personagens:
Comparativos entre João e Jesus no início do evangelho de Lucas (cf. 1,5 – 2,20)
JOÃO BATISTA JESUS
O Anjo Gabriel anuncia o nascimento de João O Anjo Gabriel anuncia o nascimento de Jesus a
Batista a Zacarias, no templo (1,5-25) Maria, em Nazaré (1,26-38)
Isabel louva a Deus pela visita de Jesus e Maria louva a Deus pela exultação de Isabel
Maria (1,39-47) (1,48-56)
O pronunciamento de Zacarias a respeito do O pronunciamento dos anjos sobre o
significado de João no plano salvífico de Deus significado do menino Jesus na manjedoura
(1,57-80) (2,1-20)
Filho de um casal de idosos Filho de um casal jovem
Zacarias temeu e duvidou Maria tremeu e confiou
A partir dessa comparação, Lucas tem a intenção de mostrar que Jesus veio para completar a
antiga lei. O evangelho da infância mostra a transição entre o ministério de João Batista,
representando do Antigo Testamento e, Jesus, iniciador da Nova Aliança.
Segundo Fabris (2006) apresentação de sua mensagem no evangelho pode ser subdivididas em
seis grandes unidades temáticas35, a saber: Infância de Jesus (1,4 - 2,52); o ministério de Jesus na
Galileia (3,1 - 9,50); a caminhada para Jerusalém (9,51 - 19,28); o ministério de Jesus em
Jerusalém (19,28 - 21,38) e; Paixão-ressurreição (22 - 24). Estas seis unidades dão o tom de
como Jesus realiza o projeto de Deus que tem o lugar de partida na sinagoga de Nazaré, desde a
proclamação do ano jubilar (cf. Lc 4,18-19).

3.1 Universalismo Salvífico

Após o evento da morte-ressurreição de Jesus e suas várias aparições aos discípulos, Jesus indica
aos seus discípulos que a sua mensagem não deve ficar restrita nas fronteiras de Israel. Apesar

35Estas divisões são apenas maneiras pedagógicas de apresentar cada momento e acontecimento dos evangelhos.
Portanto, a depender do teólogo que a apresenta, pode-se variar a quantidade de partes no evangelho. No geral, os
exegetas o subdividem entre quatro e seis partes.
52

de Lucas apresentar a cidade santa como local central dos eventos da salvação, ele mostra que
Jesus mesmo deu o mandato aos seus discípulos para que anunciassem esta mensagem a todos
os povos, fazendo-a atingir os confins da terra (cf. Lc 24,46-48). Segundo Rivas (2008), fazia
parte das profecias messiânicas que o anúncio do evangelho chegasse todos os povos. O desejo
de Jesus em constituir uma mensagem que atinja cada pessoa humana é claro sinal de
cumprimento das promessas de Deus.
Segundo Rivas (2008), evangelho e universalismos são termos sinônimos em Lucas. Deus quer
que a salvação se manifeste a todos os homens, porém, essa salvação só chegará pela pregação
dos apóstolos, para quem Jesus deu o mandato de anunciar. O universalismo nada mais é que a
necessidade de pregar o evangelho a todas as nações. Mateus desenvolve essa mentalidade de
salvação universal nas parábolas do semeador, mas é em Lucas que ela atinge a sua mais
relevância. O Querigma, como se pode observar nos demais evangelhos, é o que eles têm em
comum. Mas a centralidade da salvação universal é própria de Lucas. Nos “Atos dos Apóstolos”,
segunda parte de sua obra, Lucas expõe como o Espírito Santo auxilia a comunidade a cumprir
este desejo do Senhor e as profecias que prometiam fazer de todos os povos o povo de Deus.
Segundo Fabris (2006):

A salvação evangélica, como aquela anunciada pelos profetas, diz respeito a todos
os homens, sem distinções ou etiquetas culturais, raciais ou religiosas; alcança os
homens na situação histórica concreta, mas tem uma conclusão que supera a
história (21,28: “quando começarem a acontecer estas coisas, erguei-vos e
levantai a cabeça, porque vossa libertação está próxima”). (FABRIS, 2006, p.18)

Para Fabris, Lucas apresenta o roteiro de libertação da humanidade em relação ao mal que a
assola. Este mal é manifestado de muitas formas: em doenças, medos, mentiras, injustiças e
muitos outros. Nesse caminho para a liberdade, Jesus é o personagem central, o libertador da
humanidade, pois ele mesmo é livre. No seu caminho, Cristo tira do mal as pessoas que Ele vai
encontrando.

3.2 Jesus no evangelho de Lucas

Para Lucas, Jesus pode ser considerado sob dois títulos, a saber: Profeta e Salvador. Estas duas
características são essencialmente complementares. Segundo Fabris, é completamente
impossível compreender a missão de Jesus sem uma destas características tão importantes.
Estas duas características são paradigmas lucanos para apresentar a pessoa e o papel histórico
de Jesus.
Segundo Fabris (2006), Jesus é conhecido e saudado como profeta ou um deles (cf. Lc 9,8.19;
4,24) durante toda a sua missão. O próprio evangelista apresenta Jesus sob o modelo de profeta.
Na sinagoga de Nazaré, cujo relato se encontra em Lucas 4,18-21, Jesus retoma o texto de Isaías
se utiliza de duas expressões que qualificam todos os profetas, a saber: homem da Palavra e do
53

Espírito. Ele sempre anuncia a palavra com autoridade, agindo sob o sinal do Espírito Santo.
Segundo Fabris (2006):

Na linha dos profetas clássicos também se interpreta a morte violenta de Jesus.


Ele deve realizar até o fim a sua missão de anúncio e libertação, para levar a
termo e dar uma fundamentação nova à esperança de todos os profetas, na
cidade que está no centro da história salvífica, Jerusalém (13,32-34). (FABRIS,
2006, p.18)

Segundo Fabris (2006), a morte de Jesus é a raiz e o fundamento da Nova Aliança, que era
esperada no tempo messiânico. Nessa missão, o profeta, servo fiel de Deus, será aquele que
anuncia e faz a mediação para a nova realidade (cf. Lc 22,20). Esta nova realidade está carregada
do cumprimento da promessa salvífica, da boa nova, anunciada desde tempos mais antigos.
Outro aspecto importante, conforme Fabris (2006), é a apresentação de Jesus como salvador da
humanidade (sôterem, que é uma derivação do grego σοτήρ). Esse título, por sinal, é uma
novidade lucana a Jesus e ele o utiliza desde a infância, no início do evangelho (cf. Lc 1,47; 2,11).
Para Lucas, Jesus Salvador veio especialmente aos mais pobres e necessitados. Ele vem ao
encontro do homem pecador e lhe confere a graça do regresso à casa do Pai (cf. Lucas 15,1-32). A
expressão salvador, porém, não era uma novidade do cristianismo, mas estava presente nas
religiões mistéricas e nos palácios, na época de Jesus. Por isso, embora Jesus seja chamado de
Salvador, Ele se diversifica da visão que as religiões mistéricas e imperial que pudesse recair
sobre ele. Segundo Fabris (2006), a dimensão soteriológica de Jesus superava toda a expectativa
aproximada de messianismo popular. O Salvador Jesus, segundo Fabris (2006) comunica à
humanidade uma possibilidade de partir de dentro, partir a um projeto novo, a saber, o homem
sempre disponível para o amor fiel e generoso. A salvação só se opera na medida que a pessoa
adere livremente no seu caminho de aceitação.

3.2.1 Alguns trechos a respeito dos títulos de Jesus em Lucas

Jesus Salvador
• Lc 1,68s: “E fez surgir um poderoso salvador...”
• Lc 2,11: “Hoje nasceu para vós o Salvador...”
• Lc 2,31: “Meus olhos viram a tua salvação...”
• Lc 17,19: “Levanta-te e vai, tua fé te salvou...”
• Lc 18,26: “Quem, então pode salvar-se...”
• Lc 19,10: “O Filho do homem veio buscar e salvar...”

Jesus Profeta: homem da Palavra e do Espírito


• Lc 4,1-13: Ele resiste ao mal (demônio);
• Lc 4,14-30: Prega em nome de Deus;
• Lc 7,11-16: Ressuscita o filho da viúva (alusão à Elias)
• Lc 8,22-25: Acalma tempestades (confiança);
• Lc 9,10-17: Multiplica os pães (alusão à Elias, Moisés etc.);
• Lc 13,31-35: Questionador do poder político;
54

3.3 Preferência pelos pobres

Não poucas vezes os ricos e os pobres são mencionados no terceiro evangelho. Normalmente, a
apresentação dos ricos e da riqueza é feita sob um aspecto negativo. Lucas apresenta a riqueza
como empecilho à salvação humana e à mudança de vida. Segundo Rivas (2008), já podemos
observar este aspecto desde o magnificat, o canto de Maria: “Derrubou do trono os poderosos e
exaltou os humildes. Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos” (Lc 1,52-
53). Além desse trecho, encontraremos muitos outros no Evangelho de Lucas (cf. Lc 6,20.24;
12,16-21; 18,24-25) que questionarão a situação de riqueza.
Ao contrário dos ricos, os pobres são vistos com predileção pelo evangelista. O anúncio do
Evangelho lhes é destinado na medida em que lhes anuncia que a sua situação de penúria, um
dia, vai ser transformada pelo poder salvador de Deus. Não faltam passagens para fundamentar
essa visão teológica lucana. O anúncio de libertação dos oprimidos pode ser observado, por
exemplo, no sermão da planície, em Lc 6,20-21, e na parábola do Rico e do pobre Lázaro, em Lc
18,24-25.
Apesar dessa distinção entre ricos e pobres, Lucas nunca elogiará a pobreza como algo que deve
ser buscado. Na verdade, ele anuncia que os humildes serão elevados (cf. Lc 1,52-53; 6,20-21).
Mesmo na parábola do Rico e do Lázaro, já mencionada acima, não apresenta o rico como um
homem malvado e, muito menos, o pobre como exemplo de piedade. Basta ver que, tomando
consciência de seu erro, o rico desejou salvar seus parentes. No entanto, a parábola anuncia aos
pobres que sua situação irá mudar, pois, quem só recebeu males em vida, receberá bens na vida
eterna (cf. Lc 16,25).
Segundo Rivas (2008), Lucas não quer condenar os ricos ao inferno, mas convidar a comunidade
cristã para que seja atenta à partilha de seus bens e ao sofrimento dos pobres. Uma comunidade
que exclua os pobres não faz a opção por Jesus. Não por acaso o evangelista apresenta vários
modelos, em seu evangelho, para que a comunidade possa se inspirar a imitar ou evitar. Como os
Atos dos Apóstolos é a continuação do evangelho, Lucas apresenta a Igreja primitiva como
comunidade que possuía um só coração e uma só alma, a tal pontos que seus bens não eram
considerados apenas seus (cf. At 4,32), mas de todos os membros.
Numa outra leitura, para ressaltar o universalismo salvífico, Lucas interpreta o rico como sendo
o povo judeu e, os pobres, como o povo pagão. Assim, ele conclui que os primeiros, que são ricos,
devem partilhar a riqueza do evangelho com aqueles que não o conhecem. Pois, se todos devem
partilhar suas riquezas, a primeira que deve ser compartilhada é a salvação. Assim se conclui que
Lucas aborda primeiramente a pobreza social, mas não negligencia a pobreza espiritual dos
povos.

3.3.1 Alguns trechos bíblicos que apresentam a opção preferencial pelos pobres

• Lc 1,52: Derrubou os poderosos, elevou os pobres;


• Lc 2,1-20: Hospedaria X por pobres pastores
• Lc 6,20: “Bem-aventurados os pobres...”
55

• Lc 6,24: “Ai de vós, os ricos...”


• Lc 9,3: Não leveis nada pelo caminho
• Lc 9,57-62: O Filho não tem onde reclinar a cabeça
• Lc 10,4: Não levar dinheiro na cintura
• Lc 16,9-13: Não servir a Deus e ao dinheiro
• Lc 16,19-31: O rico e o pobre Lázaro
• Lc 18,18-30: Vende tudo, dá aos pobres e me segue
• Lc 19,1-10: História de Zaqueu

3.4 O evangelho da Alegria

O evangelho de Lucas é o evangelho da alegria. O evangelista convida a seguir Jesus com prazer,
não com o medo. Desde o início do evangelho, fala-se da alegria, a começar por Maria: “alegra-te,
cheia de graça” (Lc 1,28). Jesus, antes mesmo de nascer, já irradia alegria desde o seio da mãe: “a
criança saltou de alegria no meu ventre” (Lc 1,44). “Não tenham medo! Eu anuncio para vocês a
Boa Notícia, que será uma grande alegria para todo o povo” (Lc 2,10). Lucas também fala da
alegria que Deus sente diante da conversão e da acolhida dos pecadores (cf. Lc 15,7.10.32). Isto é,
Lucas quer apresentar um Jesus que dá alegria e prazer. o seguimento de Jesus não deve ser
motivado pelo medo ou obrigação, mas porque o discípulo descobre a alegria de seguir Jesus e
servir à construção do Reino.

3.4.1 Alguns trechos em que Lucas fala da alegria

• Lc 1,14: “Ele será motivo de alegria e gozo...”;


• Lc 1,28: “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor...”;
• Lc 1,44: A criança pulou de alegria no ventre...
• Lc 2,10: “Anuncio-vos uma grande alegria...”
• Lc 15,6.9: “Alegrai-vos comigo...”
• Lc 15,32: “Era preciso festejarmos e alegrar-nos...”
• Lc 24,50: “Voltaram a Jerusalém, com grande alegria...”

3.5 O Evangelho da misericórdia de Deus

A cristologia de Lucas revela Jesus como eminentemente compassivo-misericordioso (Lc 7,13;


10,33; 15,20), Salvador de todos (Lc 2,32), curador de todas as doenças (Lc 19,5; 15,2);
acolhedor dos samaritanos (Lc 10,29-37; 17,11-19); acolhedor amoroso das mulheres (Lc 8,2-3;
23,49) e praticamente da “comunhão de mesa” com pecadores ao sentar-se à mesa e comer junto
com eles (Lc 5,29-30; 15,2; 19,7). Todos esses gestos, palavras, ações e atitudes de Jesus revelam
que ele deseja ardentemente o bem de todos, pois veio buscar e salvar o que estava perdido.
56

3.5.1 Alguns trechos que mostram a importância da misericórdia em Lucas

• Lc 1,25: O Senhor afastou o desprezo de Isabel;


• Lc 1,50: Sua misericórdia se estende por gerações;
• Lc 1,72: “Mostrou misericórdia aos nossos pais...”
• Lc 6,36: “Sede misericordiosos como vosso Pai...”
• Lc 7,13: Compadeceu-se pela viúva de Naim;
• Lc 10,25-37: Próximo é o que usou misericórdia
• Lc 15,1-32: As parábolas da misericórdia
• Lc 18,39: “Filho de Davi, tem misericórdia de mim...”
• Lc 23,39-43: Para o ladrão arrependido, perdão e salvação...

3.6 O evangelho do Espírito Santo

Uma das características marcantes na obra de Lucas é a presença do Espírito Santo. Tanto o
Evangelho quanto os Atos dos Apóstolos estão repletos de notícias sobre sua ação. No início do
Evangelho, a presença do Espírito Santo é intensa, podendo ser observada no nascimento de João
Batista, de Jesus, em Simeão, Ana. Observa-se a sua presença no batismo de Jesus e na sua oração
no deserto. A partir do anúncio da missão de Jesus na sinagoga de Nazaré, Lucas não fala mais
sobre a presença do Espírito Santo, mas ela fica subentendida. No final do evangelho, Lucas o
menciona novamente como promessa aos discípulos. Vislumbrando a segunda parte de sua obra,
os Atos dos Apóstolos, o Espírito é visto em todas as ações da comunidade cristã. Para Lucas, o
Espírito de Deus é aquele que conduz e dá a característica profética a Jesus e aos seus discípulos.

3.6.1 Algumas passagens sobre a ação do Espírito Santo no evangelho

• Lc 1,15: João Batista será repleto do ES desde o ventre;


• Lc 1,35: O ES descerá sobre ti e te cobrirá com a sombra;
• Lc 1,41: Isabel ficou repleta do ES;
• Lc 2,25: O ES revelou a chegada de Jesus a Simeão;
• Lc 3,16: Ele vos batizará com o ES e com fogo;
• Lc 3,22: O ES desceu sobre ele como pomba;
• Lc 4,1.14: O ES conduziu Jesus ao deserto e à sinagoga;
• Lc 4,18: “O Espírito do Senhor está sobre mim...”
• Lc 24,48s: Serão as testemunhas com a força que vem do alto

3.7 Divisão do Evangelho

Segundo Fabris (2006), o evangelho de Lucas pode ser dividido em cinco unidades maiores.
Como se trata de um evangelho sinótico, é possível observar os mesmos ordenamentos dos fatos
já estudados em Mateus e Marcos, partindo do ministério de Jesus que se inicia na Galileia e se
57

encerrando em Jerusalém. Apesar do mesmo ordenamento dos fatos, o caminho feito por Lucas
segue um roteiro próprio onde, no centro, aparecerão as parábolas da misericórdia. Em Marcos,
o centro da mensagem era a proclamação da fé messiânica de Pedro e, em Mateus, as parábolas
do Reino.

3.7.1 Evangelho da infância ou origens de Jesus (1 - 2)

No início de seu evangelho, Lucas apresenta uma breve introdução acerca da infância de Jesus.
Por meio dela, o evangelista faz a inserção de Jesus dentro do universo judaico para indicar que a
salvação veio de Israel e se estenderá por todas as nações. Neste pequeno trecho se encontra
uma profissão de fé no Jesus Messias, Filho de Deus, salvador da humanidade. Jesus é salvador e
Senhor da humanidade (cf. Lc 2,11). Esta proclamação de fé se enquadra em pequenas cenas em
que vemos o cântico de Zacarias, Isabel, Simeão, Ana, os Anjos e muitos outros eventos.

3.7.2 Atividade na Galileia (3,1 - 9,50)

Lucas seguirá a mesma sequência inicial de Mateus e Marcos ilustrando João Batista, o batismo e
as tentações de Jesus no deserto. No entanto, ele dá a essa sequência um enfoque histórico-
teológico que lhe é próprio. Lucas tem o devido cuidado de desenvolver a narrativa a tal ponto
que, quando Jesus aparece em cena na sua missão, desaparece aos poucos a figura do Batista.
Esse movimento é uma clara alusão para a passagem de bastão do Antigo para o Novo
Testamento. Em Nazaré, com um discurso inaugural (cf. Lc 4,18-21), Jesus anuncia a todos o
cumprimento da salvação e se autoproclama como operador dela. A salvação, porém, não é
apenas para os que se encontram em Israel, mas vai ao encontro do estrangeiro, do excluído. A
meta da sua caminhada é a cidade de Jerusalém, lugar do seu último e decisivo combate (cf.
Lc22,3.53). Na Galileia, ele também indicará o sermão da planície36, novo projeto de vida para os
discípulos. “Jesus é o messias que deve cumprir o “êxodo” em Jerusalém (9,31), a passagem à
glória por meio do sofrimento e da ignomínia da cruz. A partir deste momento, inicia-se a grande
viagem que levará Jesus ao centro da história salvífica: Jerusalém” (FABRIS, 2006, p.15).

3.7.3 A caminhada rumo a Jerusalém (9,51 - 19,28)

Segundo Fabris, Lucas aproveitou o roteiro para a caminhada para Jerusalém de Marcos e da
tradição oral das primeiras comunidades. Ele não faz, porém, uma linha geográfica tão delineada
como a de Marcos. Antes seguir pelo caminho, Jesus dá instrução aos seus discípulos da condição
para segui-lo (cf. Lc 9,51 – 10,42) e muitas outras coisas. No caminho, muitos se propõe a seguir
Jesus. Uns efetivam esse desejo, renunciando a tudo, outros não. Por isso, Lucas cria uma

36No evangelho de Mateus, este sermão equivale ao sermão da Montanha. Algumas de suas invocações são
semelhantes, no entanto, Lucas dá outro enfoque teológico.
58

moldura teológica própria. Jesus se encontra a caminho (cf. Lc 9,57; 10,38) e muita gente o segue
(cf. Lc 14,25). Nesta viagem, Jesus se dirige para aquela cidade que era símbolo da expectativa de
todo povo de Deus e onde se depositava todas as esperanças, Jerusalém. Lá, Ele cumpre todas as
profecias feitas pelos antepassados. É nesta terceira unidade que se encontra o coração da sua
mensagem, que são as parábolas da misericórdia (14 - 15). Nelas, os leitores de seu evangelho
podem intuir o etilo inovador da ação de Deus, que não veio para julgar e condenar, mas salvar.

3.7.4 A última visita à cidade de Jerusalém (19,29 - 21,38)

Todos aqueles que acompanharam Jesus durante seu percurso até Jerusalém podem descobrir
que esta última visita é uma chance oferecida por Deus ao seu povo, a fim de que aceitassem a
salvação (cf. Lc 19,41.44). Mas Cristo se lamenta por não ser aceito pelos seus, chorando sobre a
sua cidade. Segundo Fabris (2006), percebe-se, a partir de então, uma ruptura com tudo o que
era antigo, de tal modo, que o projeto de Deus passará a continuar em um novo povo. Por isso,
toda a perspectiva desse momento prepara a instituição da nova aliança feita na eucaristia, que
abrirá a última seção do evangelho.

3.7.5 Paixão e Ressurreição (22,1 - 24,53)

Nesta parte final, Lucas amplia a narração da instituição eucarística de tal modo em relação aos
demais evangelistas, que colocada lado a lado com a ceia pascal antiga, ela pareça realmente
como a Páscoa do novo povo de Deus (cf. Lc 22,14-20). Seguindo o esboço de uma despedida, a
última ceia serve de norma para a comunidade e para os discípulos de Jesus (cf. Lc 22,24-38). Na
ceia, a comunidade aprende a viver a comunhão com Deus e os apóstolos e a partilha. Jesus é o
profeta rejeitado autoridades judaicas e romanas, sendo Ele mesmo modelo de fidelidade e
bondade para seu povo, pois é acolhedor e salvador dos pecadores. O evento da ressurreição de
Jesus omitirá que sua volta à Galileia justamente para indicar que Jerusalém é o centro da
história salvífica para todo o Israel e de onde brotará a salvação universal. Até pelo contrário,
quando ressuscitado, Jesus segue dois discípulos, motivando-os a voltar para Jerusalém. O
destaque dado à cidade de Jerusalém tem a intenção de apresentar os eventos salvíficos lá
ocorridos para que, a partir de lá, a comunidade continue a anunciar o evangelho. Assim, o
evangelista introduz a passagem para a segunda parte de sua obra, os Atos dos Apóstolos, que
desenrolará o anúncio efetuado pela Igreja. A aparição de Jesus ressuscitado converge para uma
cena-mãe, segundo Fabris (2006), onde Jesus transmite o encargo da evangelização aos seus
apóstolos e a todos os batizados (cf. Lc 24,44-49).

3.8 Concluindo

Esta temática do universalismo salvífico se inicia no evangelho, mas se concluirá na vida eclesial
apresentada em Atos dos Apóstolos. No início da obra Lucas apresenta Jesus teologicamente e os
59

adjetivos como os de Senhor, profeta e salvador da humanidade. Não alguém fechado a limites e
fronteiras, mas como um salvador universal que, partindo de Jerusalém, lugar central da
expectativa messiânica, envia os seus discípulos por todo mundo a anunciar o evangelho da
salvação.

4 ALGUNS TRECHOS EXPLICADOS

Apresentaremos, aqui, algumas poucas passagens para ilustrar biblicamente o conteúdo


teológico do evangelho de Lucas. É propriamente nos textos que se pode conhecer melhor a
pessoa de Jesus, que sempre será apresentado como profeta poderoso em palavras e ações
movidas por inspiração do Espírito de Deus com o objetivo de salvar toda a humanidade.

4.1 Lc 1,39-56: Visita de Maria a Isabel e o Magnificat

Segundo Fabris (2006), no episódio da visita a Isabel ocorre uma ampliação e confirmação no
anúncio do anjo a Maria, ocorrido na cena precedente (cf. Lc 1,26-38). Nesse momento, Lucas
quer apresentar duas figuras importantíssimas anunciadas no Antigo Testamento: João e Jesus.
No encontro entre ambos, que ainda estavam no ventre de suas mães, vemos um dos primeiros
atos lucanos de profissão de fé na encarnação. No ventre, o precursor saúda Jesus, dando-lhe as
boas-vindas.
A saudação feita por Isabel a Maria não é uma novidade bíblica, mas remonta a exclamação do rei
Davi quando recebeu a arca da aliança: “como poderá vir a mim a arca do Senhor?” (2Sm 6,9).
Usando-se da mesma expressão de Davi, Lucas apresenta Maria como a nova arca da aliança,
porque traz consigo a presença de Deus em Jesus, iniciador da Nova Aliança. Por isso, Maria é
reconhecida como mulher bendita entre todas. O Antigo (João) se depara com o Novo (Jesus) e se
estremece diante dele. Lucas atribui um significado profundo à maternidade de Maria, pois ela “é
aquela que acreditou na eficácia da palavra de Deus” (FABRIS, 2006, p.34).
Após esse encontro, Lucas nos apresenta o seu primeiro comentário lírico, o Magnificat. Maria
entoa um canto de louvor e agradecimento a Deus, onde, em três momentos distintos e
interligados, são evocados todos os eventos da história da salvação humana. Esta história é
apresentada numa nova perspectiva de seu cumprimento messiânico, não mais como mera
esperança. Primeiramente, Lucas exalta o diálogo entre a serva humilde e a ação eficaz daquele
que é santo e fiel (cf. Lc1,48-50). Em seguida, repassa por toda a história da realidade humana,
evocando e louvando pela promessa futura de um mundo melhor, que já começa a se cumprir. Na
evocação deste mundo novo, os poderosos que sempre bem-vistos pelos homens, começam a ser
questionados em suas ações soberbas. Essa promessa não é apenas uma ideologia ou utopia, mas
se fundamenta na fidelidade de Deus, que nunca volta atrás em sua palavra. Nesse sentido,
segundo Fabris (2006), o magnificat pode expressar bem a oração dos pobres que é anuncia em
Maria de Nazaré, serva fiel do Senhor.
60

4.2 Lc 15,11-32: A parábola do filho reencontrado ou do “filho pródigo”

Eis a parábola mais importante entre as “parábolas da misericórdia”. A parábola do filho pródigo
é o ponto alto deste corpo, fechando com maestria a temática da misericórdia de Deus. No fundo,
seu ponto central é o pai, pois é ele que dará a unidade entre as duas cenas que podemos
observar na figura dos dois irmãos: o filho mais jovem (15,11-24) e o filho mais velho (15,25-
32).
A mensagem principal está contida no v. 24: “Este meu filho estava morto e tornou a viver, estava
perdido e foi encontrado”. Assim, o evangelista alerta seus leitores para o valor central do amor e
da bondade divina, que está sempre disposta a transformar no âmago as expectativas e
esquemas humanos.
Com a situação do filho mais novo, longe do pai, Lucas evoca o máximo da miséria humana que
se lembra com saudade da casa paterna. Ele não quer, com o arrependimento, mostrar um
modelo de conversão, pois o filho ainda não mudou de vida. Na verdade, só decidiu retornar
porque passa fome e nem o alimento impuro lhe permitiram. Ele se recorda que encontra
alimento na casa de seu pai, onde nem os servos têm fome, quanto mais os filhos. Seu retorno é
por interesse. Assim, Lucas aponta de forma decisiva para o pai, que sempre aguarda o retorno
de seu filho. No fundo, a iniciativa é sempre do pai.
Como pano de fundo a essa cena, há um grande contraste na relação entre o pai e o filho maior.
Aqui, o pai manifesta o mesmo amor que não se ofende ou reage negativamente à raiva, ao ciúme
e ao menosprezo do filho mais velho. Ao dizer “este teu filho”, o maior comete um fratricídio e,
por isso, também mata o seu pai. Mas o pai quer que ambos, o mais novo e o mais velho, o que o
abandona e o que se revolta, participem da mesma alegria em sua casa. Esta obra prima sela com
maestria as parábolas precedentes. Ela quer ser um convite à descoberta da imagem do pai de
amor que acolhe com uma bondade que abraça toda e qualquer realidade de limite humano.
Provavelmente Lucas tenha escrito esta parábola para fazer alusão aos judeus e aos pagãos, para
reconciliar as duas origens culturais presentes em sua comunidade.

4.3 Lc 24,13-35: A aparição de Jesus aos discípulos de Emaús

Aqui, segundo Fabris (2006), Lucas exerce um fascínio impressionante mesmo entre os
estudiosos ateus. Com certeza, isso revela a sua habilidade em compor uma história ao mesmo
tempo catequética e capaz de provocar um sentimento de expectativa nos leitores, que
esperavam que os discípulos reconhecessem o ressuscitado no caminho. Desde o início da
perícope, os leitores sabem que o estrangeiro é o Cristo ressuscitado. No entanto, fica-nos claro
que os discípulos que caminhavam para Emaús não o sabiam, pois os seus olhos estão vendados
e o rosto sombrio. Provavelmente Lucas foi buscar este arranjo nas catequeses das comunidades
de seu tempo, a fim de revelar a identidade salvífica de Cristo e a alegria que sente aqueles que
encontram o ressuscitado na comunidade.
Com este relato, Lucas quer nos dizer que o fato ocorrido em Jerusalém, do Cristo na cruz, é um
escândalo para qualquer pessoa (Lc 24,18-20). Assim, a pergunta dos discípulos representava a
61

questão que todos os iniciantes na fé se faziam: “Tu és o único entre os peregrinos de Jerusalém
que não sabe o que aconteceu nestes dias?” (Lc 24,18). Aqui fica patente o medo que eles sentiam
do fracasso do Messias. Aquele profeta poderoso em obras e em sinais, que veio cumprir as
profecias antigas teria falhado? Sua esperança foi crucificada? No entanto, eles estavam
enganados na interpretação das escrituras e o Messias que eles esperavam não era ainda o
verdadeiro. Eles nutriam a visão popular e triunfalista do messias. Por isso, Jesus lhes devolve o
questionamento: “Não era preciso que o messias sofresse estas coisas para poder assim entrar na
sua glória?” (Lc 24,26). A partir de então, Jesus faz uma catequese, passando por Moisés e todos
os profetas.
Por fim, fazendo que iria passar adiante, ao se despedir deles, Jesus foi convidado por eles a
permanecer. Realmente, eles ainda estavam nas trevas e Jesus já se apresentava novamente
como única luz que lhes fazia arder o coração, ainda que não o tivesse reconhecido. Quando
Cristo pronuncia as palavras da bênção sobre pão e o parte entre eles, então eles o reconhecem.
Ao ser reconhecido Jesus desaparece de suas vistas. Nessa perspectiva, Lucas mostra que os
discípulos só serão capazes de reconhecer o ressuscitado após uma longa caminhada com a
palavra de Deus, que manifesta toda a história da salvação humana. Esse encontro com a palavra
encontra o seu ponto mais alto no partir o pão, que manifesta a mais profunda comunhão
comunitária. No entanto, esta alegria não para na mesa, eles correm ao encontro dos apóstolos,
vão reencontrar os seus, de onde eles tinham se dispersado. Lá, são confirmados na fé e voltam a
fazer parte do local central da história da salvação, que é Jerusalém.

5 RESUMINDO

1. Quando foi escrito o evangelho de Mateus?


R.: O evangelho de Lucas foi escrito aproximadamente entre os anos 80-90 d.C.

2. Quem Foi o autor do Evangelho?


R.: É difícil delimitar o autor, no entanto, Lucas é considerado o escritor deste evangelho desde
muito cedo. Em todo caso, a tradição e os exegetas são unânimes em dizer que se tratava de uma
pessoa culta, parte da segunda geração de cristãos (67-97d.C.). Segundo antiga tradição, Lucas
também foi companheiro de Paulo e Barnabé em suas viagens missionárias. Sendo mais taxativos,
alguns afirmam que ele seria médico, originário de Antioquia da Síria e celibatário.

3. Onde e para quem foi escrito?


R.: Não se sabe ao certo onde foi escrito este evangelho, é certo, porém, que foi redigido fora da
Palestina. Com base em relatos de Irineu de Lião, provavelmente fora redigido na Grécia
Meridional, talvez em Corinto. Quanto aos destinatários não fica claro, porém, ele endereça o
evangelho a certo Teófilo (cf. Lc 1,3). Não se sabe, porém, se este era um amigo ou conhecido
pessoal ou se era destinado a todo amigo de Deus, o que significa este nome. O destinatário se
encontra, certamente, no contexto fixo da segunda geração de cristãos, que já não tinha mais entre
si os apóstolos.
62

4. Qual a mensagem central do evangelho?


R.: A mensagem central de Lucas é a salvação destinada a todos os povos. Para isso, Jesus é o
poderoso profeta que veio trazer a salvação a toda humanidade. Deste modo, Ele é identificado
como profeta e salvador. O universalismo salvífico é a pressuposição da salvação para todos os
homens de boa vontade, sendo ele judeu ou não. O lugar central desta salvação é a cidade de
Jerusalém, porém, sob o impulso do Espírito Santo, os discípulos são chamados a evangelizar sem
parar em fronteiras. De lá, os discípulos, que são impulsionados pela certeza da ressurreição, serão
arautos da mensagem salvífica de todas as nações.
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6ª PARTE: OS ATOS DOS APÓSTOLOS

1 INTRODUÇÃO

Segundo Mazzarollo (1996), ao escrever Atos dos Apóstolos, segunda parte de sua obra, Lucas
almejou colocar seus leitores em contato com os primeiros anos de formação da Igreja. “Se o
evangelho narra a vida e a atuação de Jesus, os Atos descrevem quilo que aconteceu depois: o
anúncio da Palavra por seus discípulos e a vida das comunidades fundadas por eles; são na
realidade a história do anúncio cristão no início da Igreja” (MAZZAROLLO, 1996, p.7)
Por isso, o livro desperta tanto fascínio e interesse em vários seguimentos da comunidade cristã.
Ele relata a maneira como os primeiros cristãos receberam o anúncio da salvação bem como a
forma em que saíram em missão, como decorrência desse caminho. Enfim, Lucas detalha como a
Igreja primitiva foi se firmando no decorrer da história, a partir do evento fundante de
Pentecostes, dilatando completamente as suas fronteiras.

2 DATA, LOCAL, AUTOR E DESTINATÁRIOS

Segundo Richard (2001), Lucas compôs os Atos dos Apóstolos entre os anos 80-90 d.C.. Ou seja,
sua redação ocorreu no mesmo período em que foi escrito o seu evangelho. Diversos teólogos
concordam que, no princípio, se tratava de uma mesma obra. Posteriormente, por questões
pedagógicas, a obra foi dividida em duas partes. Nota-se na obra, diversos pontos teológicos e
históricos comuns entre Evangelho e Atos.
Partindo da conclusão de que o autor desta obra é o mesmo do terceiro evangelho, o evangelista
Lucas, dispensaremos a sua apresentação. Segundo Richard (2001), é provável que este livro
tenha sido escrito em Éfeso, importante província do Império Romano.
Quanto ao destinatário, podemos observar que se trata do mesmo contido no terceiro evangelho,
a saber, Teófilo. Porém, como naquele caso, fica muito difícil descobrir se trata de um amigo de
Lucas ou algum conhecido, ou tivesse a intenção de ser mais amplo e atingir a todos os homens
de boa vontade que se julgassem serem amigos de Deus.

3 TEOLOGIA DOS ATOS DOS APÓSTOLOS

Como tem o mesmo autor e, possivelmente, tratava-se da mesma obra, a teologia desenvolvida
nos Atos é, basicamente, a mesma já apresentada no evangelho. Apesar disso, há um destaque
importante que se deve mencionar: no evangelho, Cristo era o propagador do Reino; nos Atos, a
Igreja o será sob o impulso do Espírito Santo. Segundo Mazzarollo (1996), o evangelho narra a
atuação de Jesus a caminho de Jerusalém, centro histórico-salvífico. O Atos dos Apóstolos narra a
atuação missionária dos primeiros cristãos, que partem de Jerusalém, impulsionados pelo
Espírito, a todo mundo. Essa mudança de perspectiva ocorre de forma muito gradativa e, às
64

duras penas, os primeiros cristãos precisaram discernir qual a melhor forma de anunciar a
palavra de Deus.
Nos primeiros anos, a comunidade Cristã não tinha uma estrutura muito desenvolvida do
cristianismo. Por isso, herdou muitos dos costumes do judaísmo, entre eles, o da circuncisão. À
medida que outros grupos e culturas entravam em contato com o evangelho, esse modelo
precisou ser repensado, já que era imprescindível evangelizar e acolher novas culturas. Desta
maneira, a primeira comunidade precisa refletir a respeito da necessidade de ingressar ou não
nos grupos judaicos para depois tornar-se cristão. É no caminho que descobriram que o
evangelho deveria ser anunciado a todos os povos, eliminando de sua cultura apenas aquilo que
não fosse compatível com a mensagem de Jesus.
Tanto no evangelho quanto no Atos, Lucas enfatiza a ação do Espírito Santo como impulsionador
e condutor da ação de Cristo e da Igreja. No evangelho, observa-se sua ação em diversos
momentos, sobretudo até o início do ministério público de Jesus: na anunciação, no batismo, no
deserto, na sinagoga de Nazaré etc. No final, Ele promete o Espírito aos seus discípulos, pedindo
que não saiam de Jerusalém. No Atos dos Apóstolos, Lucas enfatiza essa promessa desde o início
e mostra como o Espírito desceu sobre os primeiros cristãos e centenas de pessoas ali presentes,
no Templo de Jerusalém. A missão do Espírito, portanto, será a dilatação da Igreja para que o
Reino de Deus e suas verdades sejam ouvidos nos mais longínquos lugares do mundo.
O livro vai mostrando diversas etapas nas quais vai se revelando, passo a passo, como os
primeiros cristãos foram abandonando suas tradições judaicas em benefício de inúmeros povos
serem acolhidos à fé. Os passos dados para essa clareza foram:

Entre os passos mencionados acima, a narrativa da Assembleia de Jerusalém (± 49 d.C.)


encontra-se no centro de toda narrativa do livro, pois ela realiza uma ampliação profunda na
visão da missão e da essência da própria Igreja. Hoje, essa primeira assembleia é o modelo para
todos os Concílios e, não por acaso, é entendida como sendo o primeiro. A partir de então a Igreja
passa a alterar a sua organização e acolhe com novo vigor as comunidades já existentes tem
65

outros lugares, oficializando-as definitivamente. Assim, os primeiros Cristãos param de se


autocompreender como judeus convertidos que acolheram Jesus, mas como irmãos na fé e
peregrinos do caminho do Senhor.
A decisão de acolher todos os povos ao batismo e oficializá-los na comunidade cristã é o desfecho
de um processo de abertura que se iniciou com a escolha dos sete servidores das mesas e das
viúvas (cf. At 6,1-7). Antes dessa primeira oficialização dos sete servidores, os cristãos que não
fossem de origem judaica sofriam um preconceito da parte dos demais. Mais que isso, eram
vistos como deturpadores da verdade. Por isso, o concílio de Jerusalém tratou de pôr fim a
seguinte problemática: “era necessário ser circunciso antes de ser batizado?”. Este foi o assunto
central da Assembleia de Jerusalém (cf. At 15,1-35). Junto à questão da circuncisão estava a
necessidade ou não de uma prática judaica. E, como vimos, ficou decidido que as comunidades
estrangeiras deveriam ser acolhidas com o mesmo empenho das que tiveram origem judaica,
mandando que se observe apenas aquilo que contradiga à fé. Com essa decisão tomada, Paulo
recebe uma carta de envio para poder evangelizar a Europa. Por isso, o livro mostra com maior
intensidade o número e os feitos de suas viagens para a evangelização.
Portanto, o capítulo 15 se constitui no fio condutor que ajuda a interpretar a obra de Lucas. Ele
relata passo a passo da abertura da Igreja de Jerusalém para se autocompreender como uma
Igreja universal. Mas, como vimos pelos passos mencionados, a assembleia não pode ser
compreendida isoladamente. Ela se encontra intimamente ligada à ação do Espírito Santo, que
descera em Pentecostes. Esse projeto universal já é apresentado no primeiro capítulo do livro e
desenvolvido no seu desenrolar. Toda a obra é uma verdadeira apresentação de uma dinâmica
missionária indispensável para a autocompreensão da Igreja e para entender os seus primeiros
atos de institucionalização.

3.1 O verdadeiro sentido da história

Para Lucas, o verdadeiro sentido da história universal é a salvação divina operada em Jesus
Cristo. Por isso, diz-se que sua mensagem é soteriológica. A partir dessa mensagem, o evangelista
relê a tradição veterotestamentária que, onde se promete a visita do alto. Essa visita foi
preparada por João Batista, narrada em todo o evangelho da infância (cf. Lc 1 – 2), especialmente
esclarecida em Lucas 1,78, que diz: “Graças ao misericordioso coração do nosso Deus, o sol que
nasce do alto nos visitará”. Essa mensagem precisa chegar a todos os povos da terra e, para isso,
contará com o trabalho dos discípulos (cf. At 1,8). Lucas apresenta um grande passo para a
efetivação desse processo com a narração da evangelização de Roma, centro referencial de poder
e cultura em sua época (cf. At 28,11-31).

3.2 O processo de inculturação

Segundo Mazzarollo (1996), os primeiros cristãos não tinham uma organização sistemática de
suas comunidades. Por isso, ainda eram uma pequena seita do judaísmo, o grupo dos que
acolhiam Jesus como Messias enviado. O livro de Atos tenta responder a uma pergunta relevante
66

para a sua época: como manter-se fiel à palavra de Deus e aceitar as diferentes culturas que a
acolhiam em outras regiões simultaneamente? Seria preciso romper com o judaísmo?
Paulatinamente, vai acontecendo uma ruptura do absolutismo da cultura semítica para o
acolhimento das potencialidades positivas de outras culturas. A obra apresenta os seguintes
passos para a multiplicidade dessa aceitação:
SAMARITANOS: A palavra de Deus rompe barreiras entre judeus e samaritanos (cf. At 8,5-25);
BRANCOS E NEGROS: O batismo do homem etíope e a pregação de Filipe (cf. At 8,26-40)
NÃO-JUDEUS: O batismo de Cornélio, sua família e seus servos (cf. At 10,1-47; 15,26-40)
SIMPLES E INTELECTUAIS: O rompimento da barreira intelectual (cf. At 17,19-34)
Apesar do belo caminho de inculturação, o anúncio do evangelho nos territórios considerados
judaicos, ele não se resumia apenas na aceitação. Era preciso romper com costumes contrários
aos princípios do evangelho. Por isso, Lucas também apresenta elementos culturais que eram
rechaçados pela primeira comunidade cristã, vejamos:
DEIFICAÇÃO: A aclamação da pessoa como deuses e deusas (cf. At 14,11-13);
EXPLORAÇÃO: Exploração dos médiuns (cf. At 16,16-18);
SIMONIA: imposição de interesses comerciais sobre os religiosos (19,23-40).

3.3 O apostolado missionário

Lucas apresenta desde o evangelho a importância de anunciar a palavra a todos os povos. Para
isso, defende uma Igreja com capacidade missionária, capaz de chegar às regiões mais distantes
do império. Não por acaso, ele nutre uma visão positiva do Império Romano, que possuía uma
organização que facilitava a organização desse processo. E para defender a natureza missionária
da Igreja, o autor apresenta Paulo como apóstolo modelo e símbolo da evangelização.
Dentre as características que se pode destacar do apóstolo Paulo, vê-se a sua constante
proximidade com Pedro (cf. At 9,26-29; 13,3) como gesto de fidelidade e comunhão com a Igreja.
Ademais, Paulo procura tirar o sustento de seu próprio trabalho para não se tornar pesado às
comunidades nascentes e, para isso, fazia valer de sua profissão de artesão de tendas (cf. At
18,3). Por fim, apresenta-o como verdadeiro evangelizador, pastor e anunciador da palavra de
Deus, fazendo-o gratuitamente (cf. At 20,17-38).

3.4 Prolepse: Olhar para o futuro

O Atos dos Apóstolos, como já vimos, foi redigido por volta do ano 80 d.C. Assim, quando o autor
o escreve, toda a história narrada tinha se passado. Apesar disso, ele se utiliza de diversas
maneiras uma linguagem que anunciava como se estivesse vivendo o presente dos fatos, fazendo
que as previsões posteriores fossem anunciadas sob a perspectiva de futuro. A esse recurso
67

literário, os biblistas chamam de prolepse elíptica37. O recurso de utilizar certos anúncios como
profecias serve para recordar aos leitores que todo o ocorrido seguiu os desígnios de Deus para a
comunidade. Por meio das prolepses, Lucas apresenta ideias claras, porém, é o leitor quem as
deve interpretar, já que o sentido do texto permanece intencionalmente ambíguo. Se, por um
lado, a interpretação é pessoal; por outro, ela deve seguir o contexto no qual ela está inserida na
redação. Se o leitor abordar o texto sem conhecimento prévio da história da comunidade, poderá
permanecer um mistério para ele o sentido do texto. Vejamos alguns modelos:
Lc 2,34-35: Alguém que ao mesmo tempo constrói e destrói
Lc 9,51: Este trecho fala da assunção [elevação, subida], porém, não fica claro se é em relação à
ascensão ou com relação à subida a Jerusalém para Paixão-morte-ressurreição
Lc 12,49: Este trecho também apresenta uma ambiguidade em relação ao “fogo
At 9,15-16: Paulo será um instrumento de poder e simultaneamente de fraqueza, sofrimento
At 13,2: Mostra a eleição de Paulo, Barnabé e Silas para subirem à Jerusalém

3.5 Os Sermões Missionários

O relato está cheio de grandes sermões da revelam o caráter querigmático do anúncio nos
tempos apostólicos. Normalmente, esses sermões possuem uma introdução, que explica a

37 Por prolepse, entende-se previsão de algo ainda não conhecido ou acontecido; uma antevisão ou antecipação dos
fatos. Já o termo elíptico é retomado da geometria. Trata-se de uma curva simples e fechada em que as distâncias
entre os pontos ocupam a mesma distância. Assim, por prolepse elíptica entende-se a previsão de algo que já
conhecido pela comunidade e, portanto, não é uma adivinhação ou profecia. Trata-se, também, de uma espécie de
texto com duplo sentido, onde o leitor pode assumir a liberdade entre uma ou outra interpretação.
68

circunstância que envolve a mensagem anunciada. Em seguida, apresenta-se uma parte central
que revela os desígnios salvíficos de Deus, que contém: a atividade evangelizadora de Jesus, a
paixão e a morte de Jesus, a ressurreição, a volta às escrituras veterotestamentárias que dão
sentido às profecias ditas pelos profetas. Por fim, o discurso se conclui com um convite à
conversão e à fé e a promessa do dom salvífico do perdão dos pecados.

3.6 As primeiras comunidades cristãs

Existe, no Atos dos Apóstolos, três pequenos trechos para abordar as relações nas primeiras
comunidades cristãs. Esses relatos são chamados de sumários, que se constitui em um resumo
dos fatos. Sua intenção é enumerar exemplos positivos e ideais para as comunidades cristãs de
todos os tempos. Na primeira metade do livro (At 1 – 15), encontram-se três sumários que
discursam sobre a vida em comunidade. O texto extraído de Atos 2,42-43 serve de base para os
demais (cf. At 1,12-14; 5,42). Por isso, será feira uma pequena análise de At 2,42-43:

Como se vê, Lucas apresenta claramente algumas qualidades que as primeiras comunidades
buscavam como ideal de vida. Os três pontos essenciais que caracterizavam a comunidade eram:
a comunhão nos ensinamentos dos apóstolos, a oração e a fração o pão e, a vida de comunhão
fraterna. Estas três características eram confirmadas pelos sinais e prodígios, como forma de
ratificar que Deus estava ao lado desse ideal de vida.
69

4 O conteúdo teológico do texto

Segundo Mazzarollo (1996), o Atos dos


Apóstolos pode ser dividido em cinco
grandes unidades, onde adquire
importância o método seguido por Lucas
para demonstrar gradativamente a
expansão da Igreja e a importância de
Paulo e da comunidade de Antioquia nesse
processo de expansão. A Igreja saiu de
uma comunidade nascente em Jerusalém,
estendendo-se por obra de Deus, a todo o
mundo conhecido da época. Vejamos o
quadro cronológico abaixo:
Para teólogo chileno Pablo Richard (1999), porém, o livro dos Atos dos Apóstolos pode ser
dividido em quatro unidades, a saber, Introdução (At 1,1-11); o movimento de Jesus em
Jerusalém (Atos de Pedro) (At 1,12 - 5,42); de Jerusalém a Antioquia (comunidade dos
helenistas) (At 6,1 -15,35) e; de Antioquia à Roma (Atos de Paulo) (At 15,36 - 28,31). A terceira
parte, no entanto, que diz respeito à comunidade dos helenistas é o coração dos Atos dos
Apóstolos, pois a boa estrutura desta comunidade questionou a comunidade apostólica, levando-
a, após a assembleia de Jerusalém, a abrir-se à missão universal. Apesar da diferença na
estruturação da apresentação do conteúdo, ambos concordam com a importância da
comunidade de Antioquia e do Apóstolo Paulo para a expansão da Igreja primitiva. Por isso,
segue abaixo uma breve explicação do texto com base nesse segundo método de divisão, que é
um pouco menos elaborado e mais simples.

4.1 Introdução (1,1-11)

Nessa unidade, Lucas sintetiza os efeitos da ressureição na vida das primeiras comunidades,
especialmente a apostólica. Os cinco primeiros versículos, que constituem o prólogo da obra,
foram acrescentados posteriormente para introduzir a segunda unidade da obra lucana, o Atos
dos Apóstolos, assim que foi desmembrada do evangelho. Se no prólogo do evangelho ocorre a
retomada do Antigo Testamento, no prólogo dos Atos dos Apóstolos podemos observar um
resumo do que ocorreu no evangelho.
No versículo 1,5, Lucas apresenta a promessa do Espírito Santo em forma de prolepse elíptica.
Por meio desse recurso literário, Lucas faz o leitor lançar um olhar para o futuro a partir de sua
interpretação pessoal. Pela introdução se tem a certeza de que o Espírito de Deus descerá sobre
os discípulos e lhes dará força para a missão.
Chegado ao relato da ascensão, a promessa “da força do alto” fica ainda mais evidente. No
versículo 6, Lucas mostra que os discípulos ainda não compreenderam a missão do Messias. Essa
incompreensão se expressa na seguinte pergunta: “Senhor é agora o tempo que irás restaurar a
70

realeza em Israel?” (At 1,6). Nesta pergunta, os seguidores de Jesus evidenciam que ainda o
compreendem como o sucessor de Davi (cf. Is 11,1-538), ou seja, como uma solução nacionalista
para a opressão sofrida do Império Romano. Segundo Richard (1999), Jesus toma clara distância
deste projeto teocrático-político que o associava mesclava a promessa do Reino de Deus com as
expectativas de Israel. Assim, Ele mostra aos discípulos que o sujeito da ação no mundo não seria
mais Ele, mas o Espírito Santo.
Na ascensão, evidencia-se que a Igreja não deve esperar do céu a solução para todos os seus
problemas. É preciso que cada cristão se encoraje na construção de um novo mundo. Não só
olhar para cima, é preciso evangelizar todos os povos, preparando a nova vinda de Jesus (cf At
1,10s). Por isso, os cristãos também eram reconhecidos, por Lucas, como aqueles que pertencem
ao caminho. Esse anúncio da boa nova precisa ser impulsionado pela alegria do Ressuscitado e
pela força do Espírito. Cristo e o Espírito é que animarão a comunidade no seu caminho.

4.2 O movimento de Jesus em Jerusalém (1,12 - 5,42)

Segundo Richard (1999), em Atos 1,13 pode-se notar uma primeira característica essencial da
comunidade cristã: ela não se reúne mais no templo, mas nas casas. Dessa mudança de ambiente
é que vai consolidar o termo grego ekklesia (εκκλησία), que significa assembleia convocada por
Deus. Ali, naquele cenáculo, lugar da última ceia, a comunidade está reunida com os irmãos do
Senhor39, que não são mais os seus familiares, mas todos os que aderem à fé.

38 Este trecho do profeta Isaías 11,1-5 afirma: “Do tronco de Jessé sairá um ramo, um broto nascerá de suas raízes.
Sobre ele pousará o espírito de Javé: espírito de sabedoria e inteligência, espírito de conselho e fortaleza, espírito de
conhecimento e temor de Javé. A sua inspiração estará no temor de Javé. Ele não julgará pelas aparências, nem dará
a sentença só por ouvir. Ele julgará os fracos com justiça, dará sentenças retas aos pobres da terra. Ele ferirá o
violento com o cetro de sua boca, e matará o ímpio com o sopro de seus lábios. A justiça é a correia de sua cintura, é
a fidelidade que lhe aperta os rins.”
39 Segundo Mazzarollo (1996), o termo grego adelfos, traduzido por irmãos, compreende uma grande gama de

relações parentescos ou mesmo a pertença a um clã. A partir da fala de Jesus, em Marcos 6,3, o termo passa a
designar os membros das comunidades cristãs.
71

Em Atos 2,1-12, encontra-se o fundamento de todas as futuras ações apostólicas, que é a


narração do Pentecostes. Este relato pode relido sob as características de duas tradições
primitivas, uma mais recente e outra mais antiga, conforme apresentada na imagem. A tradição
mais antiga está em Atos 1-4.12-13. Ela traz uma característica a leitura apocalíptica e
carismática do acontecimento de Pentecostes. Se bem observados os versículos, pode-se ver
sinais como línguas de fogo e outros semelhantes aos da embriaguez. A primeira tradição,
porém, é formada por Atos 2,5-11 e tem uma característica profética e missionária do Espírito.
Por isso, essa linha teológica enfatiza os ouvintes da primeira pregação pública do Evangelho,
que escutaram os discípulos falarem em suas línguas, mesmo sendo eles estrangeiros. Essa
tradição profético-missionária revela a perda do medo de evangelizar e ensina aos discípulos
que o evangelho deve ser anunciado segundo a cultura de cada povo.
Após a descida do Espírito Santo, Pedro faz o seu primeiro discurso. Seu discurso é sinal de que
recebera a força do alto. Ele perde o medo que antes tivera e anuncia com convicção as verdades
evangélicas. No eu discurso, Pedro explica a todos os presentes o que ocorreu em Pentecostes (cf.
At 2,14-21). Depois, em Atos 2,22-36, Ele se dirige aos judeus, que ouviram, viram, seguiram e
crucificaram Jesus. Anuncia-lhes que ele ressuscitou e que deseja perdoar o pecado de todos. Sua
pregação promoveu a conversão de muitos homens presentes. Nesta sequência, Lucas deixa
claro aquele que conduzirá a Igreja à parusia, trata-se do Espírito Santo.
Em seguida, observa-se Lucas apresenta os prodígios realizados pelos apóstolos, para confirmar
a ação do Espírito na vida da Igreja. É o mesmo Espírito que também a encoraja a viver de um
modo novo, autêntico e conforme o anúncio de Jesus. A comunhão fraterna e a unidade são
apresentadas como dons de Pentecostes para a comunidade. Para esclarecer os novos princípios
comunitários que devem reger a Igreja, Lucas apresenta três sumários, já apresentados acima.
Assim se encerra a exclusividade da Igreja em Jerusalém, logo, o Espírito a expandirá para outros
lugares, desafiando os apóstolos a novas conversões. Esta unidade termina com a consolidação
da comunidade de Jerusalém já introduzindo esta comunidade nas primeiras missões fora dos
muros hierosolimitas.

4.3. De Jerusalém à Antioquia (6,1 - 15,35)


Da eleição dos sete servidores40 de Antioquia até a assembleia de Jerusalém estão narrados os
fatos que definitivamente conduzem a mudança de perspectiva da Igreja, que sai de uma seita do
judaísmo a uma comunidade universal, aberta a todos os povos. Os sete helenistas eram cristãos
oriundos de língua e cultura gregas. Eles se caracterizavam pela atuação profética, sendo críticos
em relação à Lei e ao Templo de Jerusalém. Essa postura está implícita no discurso que foi feito
para a acusação contra Estêvão (cf. At 6,13-14). Apesar das resistências, Lucas apresenta modo
como a comunidade dos helenistas foi se consolidando e se autoafirmando aos olhos dos

40A tradição afirma que este relato narra o surgimento da diaconia católica. O termo Diakonos é de origem grega e
era utilizado para designar pessoas que ocupavam o posto de servidor, auxiliar e/ou ajudante. Todos os primeiros
sete servidores eram helenistas, ou seja, homens de cultura grega. Eram eles: Estêvão, homem cheio de fé e do
Espírito Santo; e Filipe, Prócoro, Nicanor, Timon, Pármenas, e Nicolau de Antioquia, um pagão que seguia a religião
dos judeus.
72

apóstolos. A eleição dos sete helenistas ou diáconos41 surge em meio a primeira crise eclesial,
ainda nas primeiras décadas cristãs. Uma pequena assembleia surge como forma de resolução,
mas é o Espírito Santo que conduz a Pedro. O gesto de imposição das mãos sobre os helenistas
deixa claro que estes receberam uma missão de Deus e da Igreja. Esse acontecimento abre as
portas para o acolhimento e a oficialização das comunidades helenistas.
Com a eleição dos sete helenistas,
Lucas nos insere definitivamente à
expansão da Igreja. À medida que
o Espírito Santo atuando nos
acontecimentos da história, a
Igreja se abre às novas realidades
e demandas de evangelização. Essa
aceitação, porém, não foi tão
simples e fácil. Foi preciso superar
um preconceito que já durava
muitos séculos entre os hebreus
com relação aos helenistas. Com
esse pano de fundo, o autor mostra nas entrelinhas que o movimento do Espírito e a dimensão
missionária da Igreja devem ser colocados acima de todas as diferenças históricas. Por isso,
Lucas fala muitas vezes dos helenistas como homens cheios do Espírito Santo (cf. At
6,3.5.8.10.55). Com a escolha dos sete fica superada a discriminação institucionalizada,
garantindo também a missão em favor dos samaritanos e dos gentios.
Lucas lança um olhar completamente positivo sobre a comunidade dos helenistas de Antioquia.
Por isso, destaca sobremaneira a atuação de Estêvão. EM seguida, também apresenta o seu
martírio como um ato injusto do Sinédrio. Antes de morrer, Lucas relata que os membros do
Sinédrio ouviram uma forte denúncia da parte de Estêvão (cf. Atos 7,1-54), por isso, o
condenaram à morte. Antes de morrer, no entanto, o helenista agiu como Jesus, rezando pelos
seus perseguidores e o seu rosto se transfigurou como o de um anjo (cf. Atos 6,15; 7,60). Este
acontecimento indica dentre todos os povos Deus é capaz de suscitar pessoas que imitem os
mesmos gestos do Senhor em suas vidas. Assim, inicia-se a defesa dos cristãos helenistas.
Não é por acaso que o autor do livro insere a figura de Paulo exatamente neste momento, pois ele
será o grande defensor da autonomia e da prática cristã dessas comunidades (cf. At 7,58). Na
morte de Estêvão, ele era um jovem e empenhado judeu. A vocação de Paulo (cf. At 9,1-18; 22,5-
16; 26,9-18) é fundamental para a consolidação dos cristãos de origem grega e, posteriormente,

41 Segundo Mazzarollo (1996), em Atos 6,1-7, encontramos expressões como “servir as mesas” e “serviço da
palavra”. Servir, em grego, é διακονέιν; e, serviço é διακονία. Costuma-se, por isso, relacionar esse texto com o
surgimento do diaconato, primeiro grau da ordem sacerdotal. Mas isso é uma interpretação ulterior. Não se pode
afirmar com precisão que Estêvão e os demais helenistas tenham sido ordenados diáconos. Inclusive, como o
próprio texto dá a entender, a diaconia da palavra era conferia aos doze, ainda não era compartilhada. Apesar disso,
o texto exprime relativamente bem a missão dos diáconos, ainda para os dias atuais, e serve como inspiração para
aqueles que aspiram a essa ordem sagrada.
73

de todas as demais culturas. Paulo é o segundo movimento do Espírito para a consolidação da


comunidade helenista e a evangelização inculturada42 de todos os povos.
Depois destes eventos, sucedem-se vários outros que culminarão na reunião eclesial de
Jerusalém. São eles: a conversão de Paulo (cf. At 9,1-18); a visita de Pedro à casa de Cornélio (cf.
At 10,1-48), a fundação da Igreja de Antioquia (cf. At 11,19-26), a missão de Paulo e Barnabé (cf.
At 13 - 14) e, por fim, o tão aguardado concílio ou assembleia de Jerusalém (cf. At 15,1-29).
Mediante esses eventos, a comunidade cristã encontra, pouco a pouco, uma solução para a Igreja
de Antioquia e para os cristãos não circuncidados, vindos do mundo gentio. Na vocação de Paulo,
mostra que ele o encontrou no caminho. Caminho, nada mais é que a primeira nomenclatura
dada a Igreja: “o que são do caminho”. Portanto, Saulo tem um encontro com Jesus na
comunidade. Mas era ainda muito rigoroso e queria perseguir Cristãos de outras culturas. E o
próprio Deus disse a Ananias: “vai, pois agora eu designei Saulo para dar testemunho ao Sumo
Sacerdote, as autoridades dos judeus e aos reis pagãos” (At 9,15). Depois, passou a chamar-se
Paulo, mostrando a nova postura de se inculturar entre os Cristãos de outras origens. Sua
conversão é um marco decisivo para que o Espírito convença a comunidade a deixar de ser um
grupo fechado do judaísmo.
Outro momento importante, após a conversão de Paulo, foi o batismo de Cornélio e todos os que
pertenciam à sua casa (cf. At 10,1-48). O capítulo 10 revela que o centurião, ainda pagão, sentiu o
desejo de conhecer o evangelho. Nesse contexto, Deus utilizou-se o próprio Pedro. A visão de
diversos animais serve de sinal para que Pedro reconheça que não se deve julgar ninguém pelas
aparências (cf. At 10,9-16). E ele mesmo afirma, inspirado por Deus: “Dou-me conta, em verdade,
de que Deus não faz acepção de pessoas, mas que, em qualquer nação, quem o teme e pratica
justiça, lhe é agradável.” (At 10,34-35). Estas são as palavras de Pedro, após ver as obras que o
Espírito realizou na casa de Cornélio e batizar toda a sua casa. Esse acontecimento foi tão
importante e decisivo que o apóstolo o utilizará na assembleia de Jerusalém para testemunhar
em favor de Paulo, Silas e Barnabé, que defendiam o batismo dos “pagãos”.
Em Antioquia, foi a primeira vez que os cristãos deixaram de pregar apenas nas sinagogas
judaicas e passaram a anunciar o evangelho a outros povos da cidade (cf. At 11-19-21). Foi em
Antioquia a primeira vez que os cristãos receberam esse nome, para designar que eles eram
seguidores de Jesus. Lucas ressalta a importância da comunidade de Antioquia que, inclusive,
faziam coletas generosas para ajudar os cristãos de Jerusalém (cf At 11,27-30). Portanto, a
fundação dessa comunidade permitiu mais um passo na expansão eclesial empreitada pela ação
de Deus, através do Espírito Santo.
Os capítulos 13 a 15 são o nó central do livro de Atos e relatam a primeira viagem missionária de
Barnabé e Paulo e a posterior deliberação de Jerusalém que oficializa e admite os não-judeus
dentro da Igreja. Lucas apresenta o início desse novo processo quando alguns cristãos

42 O termo inculturação significa assumir, para si, todos os valores e crenças positivos de outras culturas. Entende-se
que a revelação não é cultural e, por isso, pode ser adaptada nos costumes e ritos de cada povo. Apesar disso,
elimina-se tudo o que não se caracteriza como elemento positivo, ou seja, essencialmente contrário à mensagem do
evangelho (ex.: comércio do sagrado, pena de morte, poligamia e outras coisas).
74

judaizantes43 atormentavam muitas comunidades, dizendo que elas voltassem ou passassem a


praticar costumes antigos do judaísmo (cf. At 13,44-52; 15,1). Assim, a liberdade concedida por
Paulo e Barnabé aos pagãos gera inúmeros conflitos em Antioquia da Psídia. Por isso, eles voltam
à Jerusalém para resolver definitivamente a questão. Lá, defendem a inclusão dos pagãos na
comunidade, contando vários testemunhos de sua conversão. Também Pedro, em meio à
discussão, diz “Ora, conhecedor dos corações, que é Deus, deu testemunho em favor deles,
concedendo-lhes o Espírito Santo assim como a nós” (At 15,8), lembrando-se do ocorrido na casa
de Cornélio. A assembleia também contou com o testemunho de Tiago44, o irmão do Senhor,
muito considerado entre os primeiros cristãos (cf. At 15,13-21) Diante de tantas defesas e
contestações, Lucas relata que a comunidade decidiu, enfim, acolher a necessidade de
evangelização dos pagãos (cf. At 15,22-29), dando apenas algumas orientações a respeito de
alguns costumes.

4.4 De Antioquia a Roma (15,36 - 28,31)

Nesta última parte, o Atos dos Apóstolos apresentará o caminho que a expansão da Igreja
percorreu, desde a evangelização da Ásia Menor, Grécia e Roma. Destaca-se o início de um novo
período para a Igreja: a Igreja Missionária. Quando chega a Roma, inicia-se o terceiro momento,
da Igreja universal. Pouco a pouco Lucas apresenta o processo de universalização da Igreja, que
não sonhava em sair de Jerusalém nos primeiros versículos, mas que chega à Roma, por ação do
Espírito Santo.

43Os judaizantes aparecem no Novo Testamento como pessoas que procuravam incorporar no Evangelho certas
exigências da lei judaica. Eles eram cristãos de origem judaica, geralmente, provenientes de Jerusalém. Esse grupo
passou a gerar problemas quando ao invés de cultivarem eles mesmos os hábitos judaicos, começaram a influenciar
outras pessoas dentro das igrejas cristãs a agirem como eles, impondo aos demais uma discriminação.
44Dentro do discurso de Tiago, destaca-se: “... julgo que não se devam molestar aqueles que, dentre os gentios, se
convertam a Deus” (At 15,19).
75

Nesse processo, Lucas destacará as ações do apóstolo Paulo, que realizou muitas viagens para a
evangelização dos povos. Em todas as cidades ele ia primeiro às sinagogas, mas sempre se
esforçava para aprender e a evangelizar todas as culturas. Assim, esta última sessão da obra
costuma ser chama pelos biblistas de Atos de Paulo, já que destacará as viagens missionárias que
este fará até o fim de seu ministério após a Assembleia de Jerusalém.
De início, Paulo e Barnabé saem para visitar as comunidades que já haviam sido fundadas antes
da Assembleia de Jerusalém com a finalidade de confirmá-las na fé (cf. At 15,36 – 18,22). Depois,
funda algumas novas comunidades na Ásia Menor e na Macedônia, além de regiões próximas à
Israel (cf. At 18,23 – 21,14). A cada viagem o apóstolo somava mais cidades a serem visitadas,
pois almejava confirmar na fé as que já foram evangelizadas e evangelizar novos ambientes. A
última viagem, enfim, ele conseguiu apelando ao juízo do imperador, pois era cidadão romano.
Ao narrar todos os acontecimentos, Lucas claramente intenciona a confirmação da sua
mensagem: o universalismo salvífico. A cada povo evangelizado se confirmava que a decisão da
Igreja, de acolher os não judeus, foi a mais acertada. Em suas visitas, faltaram desafios, mas Lucas
deixa evidente que Deus sempre os confirmava na sua pregação por meio de sinais miraculosos,
como no caso de Trôade (cf. At 20,7-12).
Lucas conclui o Atos dos Apóstolos com uma expressão de admiração saída da boca do apóstolo
Paulo, que disse: “Ficai, pois, sabendo que aos gentios é enviada agora esta salvação de Deus; e eles
a ouvirão” (cf. At 28,28). Assim, a chave histórica do autor mostra que nada impedirá a ação do
Espírito e a sua missão: a dilatação do reinado de Deus. Deste modo, Lucas conclui sua obra
dizendo que com toda liberdade o evangelho era anunciado, sem restrições a todos os povos.
Esta foi a sua intenção desde o início da exposição do evangelho, primeira parte de sua obra.

5 CONCLUINDO

Lucas convida o leitor de sua obra, o “excelentíssimo Teófilo”, a permitir a ação de Deus na
condução de seu trabalho missionário. A primazia é de Deus e ele deseja salvar todos os povos. A
comunidade missionária não deve por empecilhos para o anúncio da fé, as deixar-se mover pelo
Espírito para fazer a vontade de Deus.
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REFERÊNCIAS

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