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MARÍLIA-SP
2023
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APRESENTAÇÃO
Fraternalmente em Cristo!
SUMÁRIO
1ª PARTE: CONTEXTUALIZAÇÃO..................................................................................................6
2ª PARTE: A REDAÇÃO DOS EVANGELHOS .......................................................................... 13
3ª PARTE: EVANGELHO SEGUNDO MARCOS ....................................................................... 20
4ª PARTE: EVANGELHO SEGUNDO MATEUS ....................................................................... 34
5ª PARTE: EVANGELHO SEGUNDO LUCAS ............................................................................ 49
6ª PARTE: OS ATOS DOS APÓSTOLOS..................................................................................... 63
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................................... 76
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1ª PARTE: CONTEXTUALIZAÇÃO
1 INTRODUÇÃO
Nosso Curso pretende abordar sistematicamente os pontos essenciais dos evangelhos sinóticos
(Mateus, Marcos e Lucas) e dos Atos dos Apóstolos. Como metodologia, será seguido o processo
de exposição teológica, literária e contextual dos textos, seguidos da leitura de grande parte de
seu conteúdo na bíblia. A intenção será descobrir que estes escritos são uma fonte inesgotável
para a vida e a fé cristã. Sendo fonte de vida e espiritualidade, os estudos não querem apenas
provocar um interesse científico, mas colaborar com os trabalhos catequéticos e pastorais. A
palavra do Senhor é viva e eficaz e, por isso, esse curso visará despertar o desejo de diálogo
orante com a Palavra do Senhor. Veremos a importância de descobrir as palavras e gestos de
Jesus para as comunidades cristãs às quais estes escritos foram dirigidos. Enfim, nosso objetivo
nesse curso é descobrir e aprofundar a Palavra do Senhor, que é sempre nova.
Buscaremos compreender de modo abrangente quem são os autores destes livros, as
comunidades às quais foram destinados, o que os evangelistas quiseram dizer às suas
comunidades, as datas e locais em que foram escritos. Apesar de todos os esforços, os estudos
bíblicos sempre estarão abertos a descobertas de novidades, pois é impossível ter o
conhecimento preciso de todo seu conteúdo, já que são escritos muito antigos. Tudo o que
estudarmos, portanto, jamais esgotará o significado e o conteúdo profundo desta fonte tão alta e
insuperável que são, particularmente, os evangelhos. Por isso, procuraremos também atualizar
na medida do possível, com discussões e debates pertinentes, alguns trechos fundamentais na
compreensão destes Sagrados Livros. E, para isso, não confiaremos somente nos estudos que
fizemos, nem em obras de alguns biblistas, mas, sobretudo, na assistência do Espírito de Deus,
primeiro e verdadeiro autor dos Escritos Sagrados (cf. DV 11).
2 OS EVANGELHOS SINÓTICOS
No cânon católico contêm quatro evangelhos1, a saber: Mateus, Marcos, Lucas e João. Aqui,
porém, dedicaremos especial atenção aos três primeiros. Os evangelhos segundo Mateus, Marcos
e Lucas são também chamados, juntos, de evangelhos sinóticos. Eles recebem este nome devido à
grande semelhança de passagens partilhadas entre eles. Cada evangelho procura transmitir o
que Jesus disse e fez, destacando um aspecto específico de sua mensagem e de seus gestos.
Vejamos as linhas gerais dos evangelhos sinóticos:
1 Os livros contidos na bíblia são chamados de livros Canônicos, pois, são reconhecidos pela Igreja, desde muito
tempo, como sendo inspirados pelo Senhor. Porém, existem inúmeros outros evangelhos atribuídos a diversos
outros autores, normalmente eles são atribuídos aos apóstolos. São considerados apócrifos por não serem, em seu
conteúdo, dignos de fé por completo. No entanto, muitas coisas da tradição cristã se buscam em fontes dos livros
apócrifos, tal como a indicação dos pais de Maria, avós maternos de Jesus.
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2 Segundo Murilo (2012), este título aparece já no Antigo Testamento e nos apócrifos. Desta forma, Javé chama o
profeta de filho do homem, para demonstrar a diferença entre o profeta e Deus. Assim, e referido com o termo
Hebraico Ben Adam [ser humano], bar enashi, mesma significado em aramaico. Na Mesopotâmia (religião do
Zoroastro), o mundo tem quatro períodos de 3 mil anos. O último milênio de cada período, inaugurado com a
chegada do SALVADOR, que se chama... ...FILHO DO HOMEM. Na apocalíptica intertestamentária é que filho do
homem poderá indicar o Messias. Em suma, originalmente, o termo Filho do Homem não queria de direcionar ao
messias, mas logo é atrelado a ele quando se descobre seu significado e associa-se a espera do Messias. Na língua de
Jesus, provavelmente, Filho do Homem significa Eu. Esse termo, em Ezequiel, significa ser humano; na Mesopotâmia,
salvador; na apocalíptica intertestamentária, Messias e em Jesus é difícil saber em que contexto esse termo foi dito.
3 Podemos assim dizer, pois se trata de um evangelho que tem o Cristo como centro. Não que os demais não O
tenham, porém, Marcos se preocupa, de uma forma especial, em responder “quem é Jesus?”, qual a identidade do
Messias?
4Podemos dizê-lo eclesiológico porque trata dos seguidores de Cristo, que é a sua Igreja, com especial atenção.
Mateus quer destinar seu evangelho a uma comunidade em particular e mostrar, como os ensinamentos de Jesus,
pode transformar para melhor a vida de seus seguidores.
5Soteriológico significa as coisas referentes à salvação. Esta palavra é uma derivação do grego soter, que significa
salvação. Indica que a centralidade do evangelho é apresentar Jesus como salvador do gênero humano.
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Como podemos observar, apesar das semelhanças de passagens compartilhadas entre si, os
evangelhos sinóticos têm inúmeras diferenças e particularidades. Para que tenhamos maior
elucidação do significado da expressão Evangelhos Sinóticos, veremos, agora, o que significam
tais expressões.
2.1 Evangelho
Segundo Marconcini (2009), em sua origem, a palavra evangelho não se referia aos quatro textos
sagrados acima mencionados. Antes, ela era utilizada para a designação de um anúncio
oralmente proferido verbalmente, como propõe a sua raiz grega, ευαγγέλιον (Euaggélion), que
significa uma boa (eu) notícia (aggélion). A partir dessa informação, pode-se apresentar ao
menos quatro momentos importantes de desenvolvimento do termo, até que chegasse a designar
os quatro evangelhos como os conhecemos atualmente.
Num primeiro momento, ela tinha uma correspondente, que era o termo hebraico bissár, que
significava evangelizar. Essa expressão indicava uma notícia que causava alegria ao povo como,
por exemplo, o nascimento de um filho (cf. Jr 20, 15), a vitória sobre os inimigos ou a morte do
adversário (cf. 1Sm 31,9; 2Sm 1,20; 18,19.20.27-31). Marconcini explica, porém, que
rapidamente este verbo hebraico adquiriu um significado religioso como a proclamação da
salvação na assembleia (cf. Sl 40,4.10). Também o profeta Isaías se utiliza do termo durante a
recondução do povo de Israel para Jerusalém no final do exílio babilônico (586-537a.C.) para
indicar a salvação universal (cf. Is 40,9). E seu sentido não parou de variar. Com o tempo a
palavra ficou esquecida e aparecia poucas vezes na bíblia, na variação besorah que, na verdade,
jamais foi traduzida por “evangelho”. Apesar disso, continuava a indicar uma alegre mensagem
ao povo e, ao mesmo tempo, uma recompensa para quem a transmitiu. Posteriormente, o termo
foi readquirindo um valor não religioso.
Depois desse primeiro momento, esta palavra desenvolveu a sua semântica ao passar a ser
utilizada no mundo grego, por ocasião de um anúncio de vitória na batalha, como resposta dos
deuses por meio de alguns oráculos, chegando a indicar um acontecimento importante de
qualquer natureza. Além disso, o termo evangelho foi muito utilizado para indicar anúncios
referentes a momentos importantes da vida dos imperadores, tal como seu nascimento,
maioridade, algumas de suas mensagens e decretos que queriam ou visavam instaurar a paz na
terra, entre outros assuntos que lhe são correlatos.
A terceira fase de compreensão nos faz adentrar no coração dos sinóticos. O próprio Jesus se
torna o significado mais certo e real dessa palavra. Enquanto Jesus ainda exercia seu ministério
público na Galileia o termo evangelho era uma identificação profunda “entre o que Jesus diz, faz e
é” (MARCONCINI, 2009, p.7).
A quarta fase que precede o evangelho redigido é o momento da pregação apostólica. Os
apóstolos se utilizavam deste termo para indicar todos os ensinamentos, ações, sobretudo, o fato
salvífico da morte e ressurreição de Jesus. Desta forma, o evangelho é sobre Jesus e é anunciado
por aqueles que foram escolhidos e enviados ao mundo para o seu anúncio e proclamação (cf. Mc
16,15). Os evangelhos são, portanto, como uma condensação da palavra e da vida de Jesus e têm
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uma forma de se expressar que não pode ser encontrada em nenhuma outra forma escrita do
tempo antigo.
Para Marconcini (2009):
Para Marconcini, os evangelhos são muito mais que relatos ou histórias, mas a proclamação de
uma verdade única e irrepetível. Primeiramente, aquele momento enquanto o Senhor caminha
com o povo e anuncia a si mesmo, levando todos a consciência de que viera implantar o Reino de
Deus e; em seguida, o momento dos apóstolos, que representam a Igreja peregrina no mundo,
exercendo o mandato de seu Senhor, ou seja, o envio para evangelizar. Nesse sentido, os
evangelhos contribuem no diálogo com Deus e na catequese, sendo, por si, fonte inesgotável das
verdades relacionadas ao Filho de Deus, plenitude da revelação cristã (cf. Hb 1,1-4).
2.2 Sinótico
6Johann Jakob Griesbach (Butzbach, 4 janeiro de 1745 — Jena, 12 de março de 1812) foi um teólogo alemão,
professor a partir de 1775 na Universidade de Jena. Estudioso da Bíblia, é considerado um dos pais da crítica do
Novo Testamento. Esteve em contato com vários dos contemporâneos mais ilustres da região e da época, como
Herder, Goethe e Schiller, tendo cedido o auditório de sua casa em Jena, em 26 de maio de 1789, para que Schiller
pudesse realizar sua palestra inaugural da cátedra de História na Universidade.
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até mesmo na escolha de palavras similares. No que tange às diferenças, elas se apresentam de
formas diversas, fazendo-se presentes no uso de palavras diferentes em textos similares,
ressignificando a teologia dos escritos. Assim, o termo Sinótico quer indicar que estes três livros
são perfeitamente complementares entre si, inclusive em seus gêneros literários. No entanto, é
preciso tomar cuidado para interpretar um relato a partir da visão de um evangelista,
transpondo-o para os demais, pelo simples fato de estar contido nos três evangelhos de maneira
a não considerar as diferenças metodológicas e teológicas entre si.
Para muitos historiadores, este livro foi separado posteriormente de sua primeira parte, a saber,
o Evangelho segundo Lucas. Por isso, trata-se do mesmo autor do terceiro evangelho. A redação
do livro dos Atos dos Apóstolos está situada na segunda geração de cristãos, que se iniciou a
partir do ano de 66d.C. Nesse período, há um esfriamento do cristianismo, porque aqueles que
foram as testemunhas oculares da vida, morte e ressurreição de Jesus estavam morrendo e a
parusia não tinha acontecido imediatamente, como acreditavam os primeiros cristãos. Pode-se
dizer que a comunidade cristã passou por seu primeiro momento de crise de fé e os motivos
eram os mais variados, a saber: (1) morte dos discípulos e discípulas de Jesus e o não retorno do
Senhor, até então; (2) reorganização do Judaísmo após a destruição do templo de Jerusalém, a
partir do acontecimento do Concílio de Jâmnia7 e; (3) repressão da parte do Império Romano,
particularmente dos imperadores Vespasiano (69-79d.C.), Tito (69-81d.C.) e Domiciano (81-
96d.C.), que decidiram prender, castigar e matar todos os que se considerassem cristãos.
Aqueles discípulos que eram encarregados de confirmar os primeiros cristãos na fé, costumavam
alertar suas comunidades para que permanecessem vivas e vigilantes, a fim de esperar a
segunda vinda de Jesus. Porém, a parusia nunca acontecia e eles começaram a caminhar sem
direção, já que eram perseguidos e Jesus não os vinha libertar. Consequentemente, os apóstolos
se decidiram por animar as comunidades através dos escritos, chamando-os a recordar que o
Senhor caminha sempre ao lado dos que nele creem. É nesse contexto que o Atos dos Apóstolos se
constituiu num reacender das comunidades que estavam desanimadas, vivendo valores até
mesmo anticristãos.
Por volta dos anos 65 a 70d.C. surgiu o texto de Marcos e, depois, viu-se um volume maior de
outros escritos. Portanto, as comunidades da segunda e terceira gerações serão as grandes
herdeiras dos escritos deixados pela segunda geração. O período do livro dos Atos dos Apóstolos
7 Antes de 90 d.C, os judeus nunca tiveram a real intenção de definir estritamente o seu canôn de livros sagrados.
Entre eles, porém, vários grupos como saduceus, fariseus e diversos outros que conhecemos, tinham uma espécie de
livros que costumavam indicar e contraindicar. No entanto, com o avanço do cristianismo, já no primeiro século,
com a destruição do Templo de Jerusalém (± 70 d.C.) e com a necessidade de estabelecer uma identidade judaica
eles realizaram a assembleia de Jâmnia (±90 d.C.). Entre outras definições dessa assembleia, estabeleceu-se todo o
cânon judaico, que é quase semelhante ao cânon católico do Antigo Testamento, com exceção dos deuterocanônicos7,
a saber: Tobias, Rute, 1 e 2 Macabeus, Sabedoria de Salomão, Eclesiástico, Baruc e, partes de Ester e Daniel. Eram
livros considerados sagrados, porém foram excluídos para acabarem com as influências do helenismo, pois estes
escritos foram escritos fora do território de Israel e eram considerados como ameaças a fé judaica. (RETIRADO DA
APOSTILA DE INTRODUÇÃOÀ SAGRADA ESCRITURA, 2016, PE WILLIANS)
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4. QUADRO DEMONSTRATIVO
Nos últimos dois séculos, muitas questões têm surgido no que tange à data, aos autores, às
comunidades para as quais foram escritos os evangelhos, entre outras situações. Sem dúvida, os
quatro evangelhos não se formaram do nada, eles certamente tiveram uma base segura. A
primeira base dos escritos foi o próprio Jesus, com seus gestos e palavras; depois, houve a fase
de transmissão oral dos acontecimentos e ensinamentos, além da composição de pequenos
escritos; por fim, chegamos às suas redações, que abordaram diferentes enfoques dos mesmos
fatos. Assim como os demais mestres da história, Jesus não deixou nada por escrito para seus
seguidores, na verdade, foram os seus discípulos que escreveram o Novo Testamento a partir
daquilo que testemunharam, pesquisaram ou ouviram (cf. Lc 1,1-4). Estes três momentos da
constituição dos evangelhos escritos podemos denominá-los da seguinte forma: pré-Pascal, pós-
Pascal e o período redacional. Vejamos resumidamente o que caracteriza estes três períodos.
Trata-se do momento seguinte à morte e ressurreição de Jesus. Ele subiu aos céus, enviou o
Espírito e, agora, os apóstolos pregam em seu nome. Assim, as ações e acontecimentos do Senhor
passam a ser refletidos nas reuniões das comunidades cristãs primitivas logo após sua morte e
ressurreição (cf. At 1,22; 4,33; 6,4; 19,37-43 etc.). As testemunhas oculares de Cristo passam a
transmitir de viva voz aquilo que ele fez e ensinou, ou seja, toda a comunicação do evangelho era
feita de forma oral. Trata-se daquele momento que nós chamamos de querigma8, ou seja, o
8Querigma é o primeiro anúncio, a boa notícia, a proclamação de uma novidade. O querigma é o anúncio do amor de
Deus, que salva o mundo, pela morte e ressurreição de Jesus. O querigma é uma notícia boa, envolvente, atraente,
encantadora. Por ser notícia, não tem muita explicação, nem muita doutrina. Ele facilita o encontro com Jesus Cristo,
a experiência do amor de Deus e o encantamento pelo evangelho, sendo o primeiro passo da iniciação cristã.
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Trata-se do período em que os evangelhos começaram a ser redigidos, a partir do ano 70d.C. As
diversas necessidades das comunidades da segunda geração10 desembocaram na inevitável
composição dos evangelhos, para deixar por escrito o testemunho de Cristo. O primeiro
evangelho a ser escrito, segundo os exegetas atuais, foi o evangelho segundo Marcos (±70 d.C.),
em seguida os evangelhos segundo Mateus (± 80-90 d.C.) e Lucas (± 80-90d.C.). A grande maioria
dos pesquisadores concorda que estes textos foram escritos entre os anos 70-90 d.C., mas não é
demasiado recordar que se trata de datas aproximativas.
Com a morte dos apóstolos, começou a surgir um receio de se perder a mensagem original da
Boa Notícia11 - do grego ευαγγέλιον, traduzido por evangelho. A partir de então, os evangelhos
começaram a ser redigidos a partir das realidades de cada comunidade para as quais eles foram
endereçados. Podemos elencar três preocupações simultâneas que motivaram a composição dos
evangelhos escritos, a saber:
• Evocar de uma maneira eficiente a história passada de Jesus;
• Atualizar a tradição recebida, pois Jesus morto e ressuscitado é presente;
• Relação com toda a Escritura (A.T.). Embora não sejam livros propriamente históricos,
estão devidamente assentados na história e evocam dados reais a comunidade judaica
anterior ao ano 70 d.C.
1.4 Sintetizando
Atualmente, há várias teorias para explicar as origens e as fontes onde os evangelistas buscaram
informações para redigir os evangelhos. Lucas, por exemplo, nos deixa clara a sua preocupação
em ter realizado uma pesquisa acurada dos fatos que foram transmitidos de forma oral, além de
reconhecer a tentativa de outras pessoas para redigir os evangelhos (cf. Lc 1,1-4). Aquilo que as
primeiras comunidades pregaram ou redigiram evangelizar o para celebrar nos dias que se
sucederam a ascensão de Jesus, fez que os evangelistas encontrassem diversas fontes para seus
escritos. Não é mais possível encontrar os originais desses textos, mas é verificável quando se
lança olhar para as seções contidas nos evangelhos, especialmente o de Marcos. Estes supostos
textos são considerados parte de uma fonte que se convencionou chamar Quelle13 ou Fonte Q
pelos estudiosos da Sagrada Escritura, pois não se sabe ao certo quais seriam estas fontes. Por
ser o primeiro a ser escrito, segundo a maioria dos estudiosos, o evangelho de Marcos também
servirá como fonte para os evangelhos de Mateus e Lucas, e isso justificaria o seu conteúdo tão
semelhante no que tange à ordem e à narração dos fatos. Essa hipótese dá origem ao chamado
problema sinótico.
12Começa-se a chamar Jesus de Senhor (do grego Κυριος, cuja transliteração é Kyrios). Esse título, porém, não tem
mais o mesmo significado de quando os discípulos de Jesus dirigiam a Ele, mas evoca na pessoa de Jesus a sua
divindade. Tem-se início o desenvolvimento de uma cristologia mais elaborada.
13Quelle é uma palavra alemã que pode ser traduzida para o português como fonte. Esta(s) fonte(s) recebe(m) este
nome por não se saber com precisão que ela seria. Assim, os teólogos alemães, a princípio, quiseram designar as
fontes diversas que os evangelistas usaram para a composição de seus evangelhos.
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Originado de uma junção de duas palavras gregas, o termo sinótico significa “lançar um olhar
junto” ou “ver simultaneamente”. Deste termo nasce a expressão “problema sinótico” que se refere
a um dos aspectos de pesquisas dos três primeiros evangelhos, pois as narrativas e os discursos
de Jesus tanto em Mateus como em Marcos e Lucas têm muita semelhança entre si. De tal modo
que se fossem colocadas em colunas paralelas poderiam ser lidas comparativamente em um só
olhar, ou seja, sinopse/sinótico. Um mesmo relato pode ser narrado por um, dois ou pelos três
evangelistas. Apesar dessa semelhança na apresentação de seu conteúdo, há uma diferença
muito grande quando tomada por base as suas respectivas teologias. Segundo Santo Agostinho,
no entanto, há uma concordância discordante entre os sinóticos.
Qual dos evangelhos surgiu primeiro? Algum deles é a fonte dos demais? A resposta a essas
perguntas denominamos de “problema sinótico”. Ainda não existe tese conclusiva para
solucionar esse “problema”. Na verdade, há muitas teorias no campo acadêmico, um verdadeiro
emaranhado de hipóteses, sempre reformadas. Atualmente, desponta-se a Teoria das duas
Fontes que parece explicar melhor a concordância e discordância entre os sinóticos. Vejamos o
esquema desta teoria:
A teoria das duas fontes é, portanto, a mais difundida atualmente. Ainda assim, não se pode
afirmar com precisão que ela corresponda aos fatos, sem erros. Para os exegetas que são
adeptos desta teoria, o evangelho de Marcos e a “fonte Q” seriam as bases para os evangelhos de
Lucas e Mateus. Isso justificaria o fato de 97% do evangelho segundo Marcos estar presente nos
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evangelhos segundo Mateus e/ou Lucas. O que se percebe é que apenas 3% do evangelho de
Marcos constitui um material exclusivo, ou seja, contido apenas na sua própria redação. Porém, a
concordância existente entre Mateus e Lucas que não estão contidas em Marcos é considerada de
outra fonte especial, a qual foi designada de fonte Q. E, como já vimos, essa teoria da fonte Quelle
é um assunto ainda mais distante de ser encerrado, havendo inúmeras divergências nesse
sentido. Em termo de fé, porém, todos os evangelhos são fontes perenes e iluminam desde
sempre a caminhada dos discípulos de Jesus.
Os Evangelhos são livros históricos? Jesus Cristo viveu realmente? Disse tudo aquilo que foi
escrito? Em primeiro lugar, dizemos que os Evangelhos, muito mais que narrativas de fatos
históricos, são baseados em fatos da vida e obra de Jesus Cristo. Não se pode provar fato por fato,
ou seja, com todas as minúcias. Por outro lado, não se pode negar o valor histórico geral dos
fatos, exemplificando: o fato de Jesus realizar milagres, ainda que alguns sejam narrados mais
teologicamente que como fatos. Quanto ao modo que os hagiógrafos escreveram, os costumes, a
cultura, as palavras, a mentalidade, correspondem às formas de se expressar das pessoas que
viviam naquela época. Nesses assuntos não há discordância.
Os impostos e as leis, as religiões e os grupos dentro do judaísmo (saduceus, publicanos, fariseus,
zelotes, herodianos etc.), as cidades e aldeias da época, a personalidade de Cristo, que às vezes
contradiz o que era comum aos homens de época etc. Todos esses e outros fatores formam um
conjunto de fatos quase impossível de serem criados em tão pouco tempo e repetido por tantas
pessoas, sobretudo porque estão organizados com coerência e perfeição. Há, ainda, outros fatos
que seriam inconcebíveis de considerar sua invenção, ainda que houvesse o interesse de
apresentar suas crenças para convencer outras pessoas, tais como: a paixão, a morte e a
ressurreição. Se hoje a cruz é considerada um símbolo de glória e do amor divino operado em
favor de nossa justificação, na época simbolizava uma das mais humilhantes condenações. Em
outras palavras, a história da paixão seria contraproducente15, já que as pessoas preferem
histórias mais gloriosas. Para qualquer charlatão que quisesse apregoar uma nova doutrina, pois
não seria interessante relatar diversas contradições contidas no Novo Testamento, como, por
exemplo, a covardia dos Apóstolos ao abandonarem o seu Mestre. Ou seja, esses limites jamais
seriam aceitos religiosamente para a sociedade daquela época.
Para concluir, pode-se dizer que os Evangelhos não são livros históricos no sentido atual
atribuído à essa palavra, mas jamais se pode negar de que eles sejam baseados em fatos. Os
evangelistas nunca tiveram a intenção de serem historiadores, mas pregadores, evangelizadores,
14Trecho retirado na íntegra da apostila da disciplina de Evangelhos Sinóticos da FAJOPA (Faculdade João Paulo II).
O Autor da apostila é o Ms. Pe. Sidnei de Paula Santos, que é padre na Diocese de Marília e professor na FAJOPA.
Apenas alguns trechos sofreram alguma alteração, ajuste ou adequação.
15Fosse uma história criada seria muito mais plausível que eles não tivessem elencado suas próprias fraquezas,
como muitos fazem ao descreverem um fato ou mesmo, ao criar um. Modelo épico para esta hipótese é o clássico “Os
Lusíadas”, onde Luis de Camões faz uma épica história que visa contar a glória dos lusitanos no caminho para as
Índias. Em momento algum Camões elenca as fraquezas dos portugueses, mas apenas as suas glórias e vitórias.
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Por essa época, apareceu Jesus, homem sábio, se é que há lugar para o
chamarmos homem. Porque Ele realizou coisas maravilhosas, foi o mestre
daqueles que recebem com júbilo a verdade, e arrastou muitos judeus e gregos.
Ele era o Cristo. Por denúncia dos príncipes da nossa nação, Pilatos condenou-o
ao suplício da cruz, mas os seus fiéis não renunciaram ao amor por Ele, porque ao
terceiro dia ele lhes apareceu ressuscitado, como o anunciaram os divinos
profetas juntamente com mil outros prodígios a seu respeito. Ainda hoje, subsiste
o grupo que, por sua causa, recebeu o nome de cristãos17 (JOSEFO, Antiguidades
Judaicas, XVIII, 63a)
O primeiro método de interpretação é o que chamamos de sentido literal do texto bíblico. Ele
quer mostrar qual o universo que o escritor sagrado tinha diante de si, como a visão
cosmológica, política, religiosa, econômica, social etc. Nesse sentido, recentemente aplicado à
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Flávio Josefo, ou apenas Josefo (em latim: Flavius Josephus; 37 ou 38 — 100), também conhecido pelo seu nome
hebraico Yosef ben Mattityahu (יוסף בן מתתיהו, "José, filho de Matias" [Matias é variante de Mateus]), foi um
historiador e apologista judaico-romano, descendente de uma linhagem de importantes sacerdotes e reis, que
registrou in loco a destruição de Jerusalém, em 70 d.C., pelas tropas do imperador romano Vespasiano, comandadas
por seu filho Tito, futuro imperador. As obras de Josefo fornecem um importante panorama do judaísmo no século I.
17 Texto extraído de: https://cleofas.com.br/o-que-flavio-josefo-historiador-judeu-37-100-fariseu-escreveu-sobre-
bíblia, o método histórico-crítico foi uma importante ferramenta para essa compreensão. O
método histórico-crítico aplica na interpretação da Sagrada Escritura as ferramentas da
sociologia, literatura, história, geografia, economia. Deste modo, o autor precisa ser
compreendido segundo as convenções literárias e históricas da época em que o texto foi escrito.
Em um segundo momento, há uma postura de negação de valor histórico dos escritos bíblicos,
inclusive dos evangelhos. Isso, porém, nunca significou que fossem narrativas transmitidas e
seguidas pelas primeiras comunidades. Esta negação de valor teve seu advento com da História
das Formas18 ou Análise de Gênero - devido sua origem germânica, é conhecida como
Formgeschichte - e influenciou significativamente muitos estudiosos do século 20 d.C..
Após idas e vindas, os intérpretes da Sagrada Escritura chegaram ao que se define por um
período de busca de um valor substancial dos evangelhos. Assim, entende-se que o escritor
bíblico não teve como primeiro objetivo a narração de fatos históricos, mas buscou narrar a ação
de Deus na história. Para isso, utilizou-se de diversos recursos literários, culturais, religiosos,
sociais de sua época. Mas estas coisas não tinham uma finalidade em si mesmas, pois a partir dos
Santos Padres, entende-se que os escritos bíblicos buscavam mais a transmissão catequética e o
anúncio do ressuscitado que histórico-geográfica.
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18Esta tradição ou escola de interpretação hermenêutica é conhecida como Formgeschichte (História das Formas) e
teve como pioneiros K. L. Schmid, Martin Dibelius e Rudolf Bultmann. Os três são contemporâneos e influenciaram
muito os estudos bíblicos no início do século XX.
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Antes de mais, vale recordar que o evangelho segundo Marcos essencialmente cristológico, pois
se preocupa em apresentar Jesus Cristo através de suas ações, seus gestos e da novidade que ele
veio anunciar. Para Fabris, este anúncio ocorre no percurso de um caminho, pelo qual todo
aquele que quer seguir a Cristo deve caminhar. Neste caminho, serão encontrados adversários
religiosos e políticos, discípulos e até familiares que não compreendem verdadeiramente a
missão do Messias. A pergunta que perpassa todos os diálogos é: quem é esse homem?
Por muitos séculos, porém, o Evangelho de Marcos foi relegado ao esquecimento, pois a sua
redação e linguagem eram consideradas a mais simples e sóbria dos evangelhos. Quando
adentramos em suas linhas, não contém nenhuma síntese sugestiva a exemplo do evangelho
segundo Mateus, que apresenta o Sermão da Montanha (Mt 5 – 7) e; muito menos, algo similar às
Parábolas da Misericórdia (Lc 15), apresentadas no evangelho segundo Lucas. Além disso, Marcos
escolheu narrar apenas a vida pública de Jesus, omitindo os relatos de seu nascimento e infância.
Mas os anos se passaram e surgiram novos métodos científicos de pesquisa que fizeram mudar
completamente esse panorama. E a sua sobriedade, que antes era entrave, atraiu a atenção de
muitos estudiosos. Com uma pesquisa muito mais acurada, descobriu-se que Marcos é nada
menos que o mais antigo dos escritos que recebem o nome de evangelho. O evangelho segundo
marcos é descoberto como a primeira obra ser composta e redigida de modo sistemático, sendo
o primeiro exemplar do evangelho de Jesus que os cristãos tiveram contato. Ou seja, o Evangelho
segundo Marcos passa de esquecido à inaugurador do novo gênero literário, que se
convencionou chamar de “Evangelho”.
Teologicamente, nenhuma das falas, caminhos, tempos, e reações narrados podem ser
entendidos ao acaso. Cada um dos elementos e percursos de Jesus assumem, para o evangelista,
um importante contexto teológico, fundamentando a sua catequese. Jesus não percorre os
lugares acidentalmente. Marcos narra, em suas linhas, fatos ocorridos durante a vida pública de
Jesus, mas ele buscou muito mais. Em cada elemento ele quis ressaltar a catequese de Jesus e
apontar o caminho para o seu seguimento. Ler o seu evangelho é mais que analisar as suas
estruturas. Lê-lo é como ter um roteiro de viajem nas mãos e ter o próprio Jesus como guia e
destino. Para Marcos, o seguimento de Jesus é abraçar a sua missão e caminhar com Ele
decididamente até o calvário, atravessando a morte, experimentando a graça da sua vida e
presença na comunidade cristã.
A tradição da Igreja afirma desde os primeiros séculos que o evangelho segundo Marcos fora
escrito por um jovem denominado João Marcos. Trata-se do mesmo jovem mencionado em Atos
dos Apóstolos (cf. At 12,12-15; 15,17). Ele seria filho de uma certa Maria e a comunidade se
reunia em sua casa. Ele, segundo os Padres da Igreja, seria primo de Barnabé (cf. Cl 4,10); e,
21
companheiro de Paulo em suas viagens missionárias (cf. At 12,25; 13,5). Na segunda carta de
Pedro encontramos a afirmação de que Marcos teria passado por Roma (cf. 2Pd 5,13). Já no
século 1d.C., a tradição afirmava que Marcos era secretário ou intérprete do apóstolo Pedro e,
consequentemente, seu evangelho seria uma síntese da catequese que o apóstolo fizera em
Roma. Quando observados os escritos antigos dos Santos Padres, vê-se que a maioria deles
concordavam com as definições acima. Vejamos a curiosa definição de Eusébio de Cesareia:
3 TEOLOGIA
Desde o primeiro versículo, Marcos apresenta a intenção de todo o seu evangelho: “Princípio do
Evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (Mc 1,1). A Boa Nova trazida pelo escritor tem uma
clara meta a propor aos seus leitores, a saber, ele deseja apresentar a pessoa de Jesus e a sua
identidade. Junto à apresentação de Jesus de Nazaré, Marcos anuncia a chegada do Reino dos
Céus. No entanto, o evangelista não tem a apresentação da pessoa de Jesus como intenção
exclusiva. Ele também quer mostrar a sua missão. Como o primeiro versículo se caracteriza
como um breve prólogo de todo o evangelho, vejamo-lo de uma forma mais pedagógica,
transcrevendo-o de uma outra maneira:
“Princípio do Evangelho de Jesus: (1) Cristo e (2) Filho de Deus” (Mc 1,1)
No exemplar acima, vemos a divisão do primeiro versículo em três partes. Evidencia-se a inteção
do evangelista, que era apresentar a pessoa de Jesus. Em seguida, apresenta-se dois títulos de
Jesus: Cristo e Filho de Deus. Esses títulos aparecerão em momentos cruciais no desenrolar do
evangelho. Jesus será reconhecido como Cristo pelo apóstolo Pedro, que professará essa
confiança em Cesareia de Filipe (cf. Mc 8,26-33), no entanto, ele esperava um Cristo glorioso e
sem cruz. O segundo título complementa o primeiro, pois revela qual a missão do Messias e não
somente a sua identidade. Ele reaparecerá em vários momentos, dos quais três deles são mais
importantes: o batismo (cf. Mc 1,9-11), a transfiguração (Mc 9,1-10) e a cruz (Mc 15,39). Sendo
que, dos três momentos, o terceiro é o mais decisivo, pois a manifestação do Messias justo e
seridor está saltando diante dos olhos do centurião. É preciso chegar até a Cruz para reconhecer
plenamente a identidade e a missão de Jesus.
Depois desse versículo que esclarece e instiga o leitor, Marcos propõe um caminho de encontro
com o verdadeiro modelo de reinado de Deus. Em seu percurso Jesus foi questionado muitas
vezes por diversas pessoas que continham uma visão fechada do messianismo. Entre os seus
interlocutores encontram-se Escribas (cf. Mc 1,22; 2,6; 3,22; 9,11-14; 12,35-38), fariseus (cf. Mc
2,18.24; 8,11; 10,2; 12,13), saduceus (cf. Mc 12,24), os herodianos (cf. Mc 12,13), anciãos e sumo
sacerdotes (cf. Mc 14,10; 15,3.10-11). Mas a incompreensão se estendeu além dos grupos
mencionados e chegou, até mesmo, aos seus discípulos (cf. Mc 8,32-33; 9,5-6; 14,37) e familiares
23
19 Esta expressão também pode ser traduzida por capacidade ou ação de fazer milagres.
24
outras pessoas que, quase sempre, terminam com a seguinte pergunta: quem é esse homem?
Jesus é um ser divino ou só humano? Ou é divino-humano? É o Messias esperado? Quem é Jesus
afinal? Essa é uma pergunta teológica, que fundamental para toda a catequese marcana20.
Para Marcos, o seguimento de Jesus é uma consequência natural do conhecimento de sua
identidade e missão. Por isso, Cristo se revela gradativamente a partir de sua missão na Galileia,
em terras estrangeiras e; por fim, em Jerusalém. Em cada ambiente se desenrola a possibilidade
de uma nova possibilidade de aprofundar-se a respeito de Jesus.
As palavras e gestos de Jesus colaboram, constantemente, para que o leitor reconheça o
cumprimento das profecias messiânicas. De cada ação, o escritor do evangelho propõe uma
pergunta aos seus leitores. Quando Cristo expulsou o demônio de um homem na sinagoga, o
povo espantado perguntou: “o que é isso? Ele manda até nos espíritos maus!” (Mc 1,27). “Quem
é esse que perdoa pecados?” (Mc 2,7); Outros: “Nunca vimos uma coisa assim” (Mc 2,12);
“quem é esse que ressuscita mortos?” (Mc 5,39-43); “És tu o Messias?” (Mc 14,61). Ainda
existem muitas outras passagens através das quais Marcos revela o caminho para descobrir o
verdadeiro Messias.
Apesar do interesse em revelar a identidade de Jesus, Marcos não coloca nenhuma palavra dele a
respeito de si mesmo. Jesus quer revelar a sua identidade através das suas obras e opções, não
por meio de discursos e teorias. Por diversas vezes Ele pedia segredo ou discrição às pessoas,
como: “não conte a ninguém a esse respeito”. Jesus sempre falar a respeito de sua identidade,
exceto diante dos sumos sacerdotes do povo (cf. Mc 14,43), pois com o julgamento de cruz já
estabelecido, ninguém confundiria a sua identidade com o poder e a glória terrenos. No
momento de seu juízo já não há possibilidade de confundirem a sua identidade com uma espécie
de Messias triunfalista.
Segundo Brito (2013), o Messias é, de fato, triunfante. Seu messianismo, porém, se revela no
ápice de seu sofrimento. Ele é o servo, conforme a profecia de Isaías 53 e; o justo, conforme
Sabedoria 2 e o Salmo 31. Vejamos:
para conhecer Jesus não é ter posse de ideais populares do Messias, mas
envolver-se totalmente no projeto e na vontade do próprio Deus. Conhecer Jesus
não é conhecer ideias brilhantes e gloriosas do Messias, mas conhecer a
verdadeira pessoa de Jesus, que têm adversários, realiza milagres, instaura um
novo Reino, insere os excluídos, mas, sobretudo, morre na Cruz e ressuscita. Na
cruz fica inequívoco o reconhecimento do verdadeiro rei messiânico. Na cruz se
revela totalmente o poder de Deus.
O convite para a volta à Galileia, após a ressurreição, é um convite para que o
discípulo refaça o caminho do Senhor. Aquele que compreende plenamente o que
Deus revelou na Cruz, que quer aceitar e seguir a nova proposta de vida, não pode
ficar indiferente e fechado em seus redutos, mas deve refazer o caminho que o
próprio Mestre fez. Porém, da Galileia não se destina apenas para Jerusalém, mas,
para todo o mundo conhecido. O verdadeiro discípulo não pode cruzar os braços
e ver a história, mas ele é chamado a envolver-se com ela e se colocar a serviço.
(BRITO, 2013, p.59-60)
O evangelho de Marcos faz uma constante justaposição entre dois títulos atribuídos a Jesus, a
saber: Filho do Homem e Filho de Deus. À primeira vista, pode parecer uma oposição de ideias
distintas de Jesus, mas tais títulos revelam duas facetas da mesma moeda. Jesus será apresentado
como sofredor, humano e simultaneamente glorioso, ressuscitado, vitorioso. Esse estilo,
provavelmente visa alentar os cristãos que estavam sendo perseguidos pelo reinado de Nero e
de seus sucessores.
Quando se lê o evangelho de Marcos, é possível identificar diversas vezes em que Jesus pede
segredo de sua identidade. Esse pedido se estende aos demônios, quando os repreende para que
se calem (cf. Mc 1,34; 3,11); a diversos doentes que são curados (cf. Mc 1,44-45; 5,33; 7,36; 8,26);
aos discípulos (cf. Mc 6,52; 8,29-30; 9,9). Ele também conta parábolas que mostram seu interesse
na discrição, para viver de forma mais simples e anônima (cf. Mc 4,10-13).
O teólogo alemão Willian Wrede21 denominou essa postura de Jesus de “Segredo Messiânico”.
Com essa expressão, ele queria se referir às referidas passagens que podemos observar no
evangelho de Marcos com repetições comuns em vários textos. Apesar de ser intitulado de
Segredo, a expressão também é mais um recurso claro a revelação da identidade de Jesus, pois
ele é essencialmente teológico e não histórico. A intenção de conservar a sua identidade em
segredo revela o perigo de considerá-la segundo as expectativas humanas. Desta maneira, uma
agitação anormal das pessoas em Israel poderia atrapalhar a mensagem de Jesus. Não se deve e
nem se pode conhecer Jesus instantaneamente, o conhecimento profundo e verdadeiro se dá no
caminho, não em fatos isolados, sobretudo naqueles que revelam um poder sobre-humano.
11,1 - 16,8
1,16 - 8,26
8,27 - 10,52 Caminho de 16,9-16
1,1-15 Atividade de
Jesus para
A tividade de
Introdução
Jesus na Galileia
Jesus fora da Jerusalém e • Conlusão
e regiões
Galileia confronto
vizinhas
decisivo
No que se refere a metodologia utilizada para a subdivisão dos evangelhos, é possível encontrar
muitas formas e fórmulas. Em todas elas, a intenção do exegeta e apresentar o caminho
percorrido pelo evangelista para apresentar a pessoa de Jesus e a sua mensagem. Rinaldo Fabris
divide o evangelho em três grandes partes, descontando a sua introdução e a conclusão, vejamos:
21 Georg Friedrich Eduard William Wrede (10 de maio de 1859 – 23 de novembro de 1906) foi um teólogo
luterano alemão. Ele foi famoso pela sua investigação científica acerca da intenção de Jesus, ao pedir segredo às
pessoas acerca de sua identidade messiânica.
26
Na introdução do evangelho, Marcos faz uma breve preparação para contextualizar o ministério
de Jesus e o caminho a ser feito pelos discípulos, como vimos acima. Nessa preparação tem
grande relevância o primeiro versículo, a vocação de João Batista, os dias de jejum no deserto e a
primeira pregação de Jesus. Ela, porém, não revela quem é o Cristo, já que esse desnudamento
ocorre gradualmente durante todo o caminho discipular. João Batista, no entanto, dá o
entendimento inicial a respeito de Jesus: “Depois de mim, vem aquele que é mais forte do que eu,
de quem não sou digno de, abaixando-me, desatar a correia das sandálias” (Mc 1,7). Nesse
encontro entre o Batista e Jesus, no Jordão, encontramos a preparação para o ministério
messiânico que vai se desenrolar posteriormente na Galileia e a implantação do Reino de Deus.
Essa parte inicial do evangelho se estende desde 1,16 – 8,26. Nela, Marcos apresenta os
elementos fundamentais da atividade de Jesus na Galileia e nas Regiões vizinhas. Poder-se-ia
classificá-la em três momentos, onde Jesus convida (cf. Mc 1,4 – 3,6), escolher (cf. Mc 3,7 – 5,43)
e envia os primeiros discípulos em missão (cf. Mc 6,1 – 8,26). Jesus é um anunciador que se
27
encontra sempre a caminho. Por isso, Cristo está em constante contato com as multidões que se
admiram, escutam, procuram para ser liberta de seus males e o seguem.
O movimento de Jesus para cumprir a sua missão age em consonância e simultaneamente ao de
formar os primeiros discípulos. Seguindo as etapas supramencionadas, Ele convoca pessoas
para o seu Reino (cf. Mc 1,16-20), forma-as e dá-lhes consciência crítica diante das situações
presentes no mundo (cf. Mc 1,21-22); ensina-as a combater a alienação e o fanatismo religioso
(cf. Mc 1,23-28); liberta-as das amarras para viver (cf. Mc 1,29-31); ensina-as a rezar,
procurando na oração a sua própria identidade (cf. Mc 1,35) e, por fim, envia-as como discípulas
para missão (cf. Mc 1,38-39), como forma de frutificar o discipulado. Nesse processo, Jesus revela
que discipulado e missão a serviço do Reino são duas facetas que devem se complementar na
vida cristã.
Esta parte se conclui com a narrativa da cura do cego de Betsaida (Mc 8,22-26). A cura é um
pequeno drama narrado no evangelho e serve para revelar aos leitores que o discípulo não é
capaz de ter uma visão clara de Jesus e da sua missão à primeira vista. Essa mensagem está
explicitada na necessidade de dois momentos para a realização da cura. Num primeiro momento,
o cego via o homem como se fossem árvores andando. Esse relato é pedagógico, conscientizando
os primeiros cristãos a respeito de sempre revisitar o anúncio de Jesus para conhecê-lo
plenamente. Para enxergar distintamente as realidades do mundo é preciso um processo de
educação e de vivências que lhes abram completamente a visão. A comunidade de Jesus e seus
adversários não sabiam quem era verdadeiramente Jesus, pois Ele os confunde. Até o momento,
a relação entre os discípulos e os adversários com Cristo foi de cegueira do coração, de
incredulidade, incompreensão e hostilidade (cf. Mc 3,5-6; 6,1-6a; 8,14-21).
Nesta segunda divisão pedagógica do evangelho, encontramos Jesus que sai da Galileia e ruma à
Jerusalém. Há uma primeira inversão de cenário no evangelho, pois Jesus sai do meio da multidão
e se isola com os seus discípulos, para aprofundar ainda mais a sua visão messiânica. É por isso
que nela se encontra a proclamação de fé de Pedro (cf. Mc 8,27-30) e os três anúncios de sua
Paixão (cf. Mc 8,31-33; 9,33-37; 10,32-34). A cura do cego de Betsaida é a moldura que faz a
transição para a importância de olharem mais cuidadosamente para Jesus. Entremeado na
proclamação de fé feita por Pedro e o início da subida para Jerusalém, encontra-se alguns
ensinamentos valiosos de Jesus para a vida em comunidade (cf. Mc 8,34 – 10,45). É necessário
abrir os olhos para o verdadeiro Messias.
Esta parte se encerra com a cura de outro cego, o Bartimeu (cf. Mc 10,49-51). Sua cura é sinal
evidente de fé. Seu grito, sufocado pelos discípulos aponta que ele supõe o verdadeiro
messianismo de Jesus, chamando-o “Filho de Davi”. O seu desejo é ser atingido pela compaixão
de Jesus e ser curado de sua cegueira. Como não era cego de nascença, o evangelista mostra a
importância de ver de novo, isto é, ver e distinguir corretamente o mestre. Após ser curado, ele
pôs-se imediatamente a seguir Jesus pelo caminho. Desta forma, Marcos ensina aos seus leitores
que compreender o verdadeiro Messias significa aceitar o desafio do seguimento como condição
de fidelidade. Os discípulos devem abrir bem os olhos, mudar a visão a respeito do messianismo
28
triunfalista para que possam enxergar claramente quem é Jesus e descobrir na sua pessoa o
Messias de Deus, não dos homens. É necessário ter a coragem do cego, e dar um salto qualitativo
para aceitar e seguir Jesus como Messias sofredor nesse novo caminho de subida para Jerusalém.
O Bartimeu torna-se, assim, o modelo do verdadeiro discípulo que não segue Jesus alimentando
ilusões de glória humana.
A partir da terceira parte da divisão pedagógica, Jesus caminha para o seu conflito decisivo em
Jerusalém. “Jesus e os discípulos aproximaram-se de Jerusalém” (Mc 11,1) e adentrar a cidade,
centro do poder político, religioso, econômico e social da nação judaica. Ele foi acolhido como o
rei triunfalista (cf. Mc 11,1-11), no entanto, usou símbolos que deixavam claras as suas intenções
de promover a paz, não a rebelião. O jumentinho, que ele escolheu para entrar, mostra que não
veio para guerra, como faziam os exércitos daquela época ao montarem em seus cavalos. Sua
inversão na concepção de poder faz com que seja crucificado como um subversivo, pois adentra
em Jerusalém colocando em prática o que tivera anunciado pelo caminho, isto é, um Messias que
deveria sofrer e morrer para, enfim, ressuscitar. O verdadeiro discípulo o acompanha até o fim
dessa estrada. No entanto, os seus o abandonam. Por isso, apenas o centurião romano o pode
reconhecer, aos pés da Cruz, como Filho de Deus. Apesar do abandono, o evangelista mostra que
sempre é tempo de recomeçar o caminho. A pedido de Jesus, discípulos voltaram à Galileia, lugar
de onde Ele partiu para a missão que culminou no “enfrentamento” decisivo em Jerusalém. Da
Galileia, porém, eles não são enviados para Jerusalém, mas para todo o mundo. O mundo será o
lugar decisivo de sua missão.
Como nos primeiros versículos, onde se encontra uma breve introdução ao ministério de Jesus,
esta parte não entra, costumeiramente, como uma divisão pedagógica do evangelho. Considerada
como inspirada pela tradição da Igreja, parece claro desde os primeiros cristãos que ela não fora
redigida necessariamente por Marcos. Muitos escritos antigos omitem esta parte final,
encerrando o evangelho em Mc 16,8. O trecho de Mc 16,9-16, porém, já era conhecido da
comunidade primitiva. Ao menos, é o que relatam Taciano22 e Santo Irineu23 em seus escritos.
22 Taciano, o Assírio (120–172 d.C.) foi um escritor do cristianismo primitivo, grande teólogo do século II. Seu
trabalho mais influente foi o Diatessarão, que era uma paráfrase bíblica, ou "harmonia", dos quatro evangelhos, que
se tornou o texto padrão nas igrejas siríacas até o século V, quando perdeu o lugar para os evangelhos da Peshitta.
23Irineu de Lião (130 – 202 d.C.) foi um bispo grego, teólogo e escritor que nasceu, segundo se crê, na província
romana da Ásia Menor Proconsular – a parte mais ocidental da atual Turquia – provavelmente Esmirna. Seu livro
mais famoso foi “Sobre a detecção e refutação da chamada Gnosis”, também conhecido como Contra Heresias (180
d.C.). Tal obra é um ataque minucioso ao gnosticismo, que era então uma séria ameaça à Igreja primitiva e,
especialmente, o sistema proposto pelo gnóstico Valentim. Como um dos primeiros grandes teólogos cristãos, ele
enfatizava os elementos da Igreja, especialmente o episcopado, as Escrituras e a tradição. Irineu escreveu que a
única forma de os cristãos se manterem unidos era aceitarem humildemente uma autoridade doutrinária dos
29
Desta forma, se a conclusão não fora escrita pelo próprio evangelista, como nos diz Swete, trata-
se de “uma autêntica relíquia da primeira geração cristã”.
Para compreender alguns outros textos mais especificamente, segue-se apenas algumas
perícopes do evangelho de Marcos, tentando explicitar o seu sentido teológico. Cada trecho faz
parte de um caminho que almeja conduzir o discípulo a imitação do mestre. Assim, não se pode
interpretar a parte sem levar em consideração o objetivo final da interpretação de toda a obra de
Marcos.
Nos versículos 14-15, João Batista e Jesus, dois protagonistas que se encontraram no Jordão,
tomam rumos diferentes. Jesus segue adiante a sua missão e passa a anunciar publicamente o
evangelho e a caminhar pela Galileia. Simultaneamente, o evangelho relata a prisão de João que
fora entregue nas mãos de Herodes. Sua prisão antecipa, de certa forma, a respeito do destino de
Jesus, pois João foi preso por anunciar a vontade de Deus, denunciar a injustiças e chamar à
conversão. Neste trecho, Marcos convoca a comunidade a se converter e crer na Boa Nova que
está sendo anunciada: “cumpriu-se o tempo e está próximo o Reino de Deus. Arrependei-vos e
crede no evangelho” (Mc 1,15). Esta boa notícia é o tema central de todo o evangelho. Com a
expressão “cumpriu-se o tempo”, Marcos revela que é terminado o tempo da espera histórica,
pois o Reino de Deus já está presente. A única exigência para que o ouvinte possa se tornar um
discípulo (seguidor) é a conversão. Neste anúncio está concentrado, segundo Fabris, “a urgência
da Palavra de Deus como ressoava nos oráculos dos Profetas” (FABRIS, 2002, p. 437).
Entre os versículos 16-20, vemos este mesmo chamado à conversão ecoar nos aos ouvidos
primeiros discípulos. A vinda do Reino de Deus faz surgir novas relações entre as pessoas. O
encontro do Senhor com os seus primeiros discípulos, que eram pescadores, mostra-nos o
primeiro lugar em que Jesus se manifestou. Aqui, não encontramos apenas o momento em que se
inicia a comunidade de Jesus, mas também o modelo de resposta ao chamado que Deus fez e faz
em todos os lugares e tempos. Ao escutarem o chamado de Jesus, eles deram atenção e, em
seguida, o seguiram imediatamente, sem demora e sem colocar nada entre eles e a voz de Deus.
O evangelho conta que os discípulos deixaram tudo para trás e mudaram radicalmente suas
vidas. Existia, em Israel, os seguidores de alguns rabinos, onde havia pessoas que seguiam alguns
mestres para escutar os seus ensinamentos. Os discípulos seguem com uma postura ativa, pois
também colaborarão com a missão do mestre: “Vinde em meu seguimento e eu farei de vós
pescadores de homens” (Mc 1,17). A missão de Jesus, daquele dia em diante, será também a sua
concílios episcopais. Seus escritos, assim como os de Clemente e Inácio, são tidos como evidências iniciais da
primazia papal. Ele também foi a testemunha mais antiga do reconhecimento do caráter canônico dos quatro
evangelhos.
30
missão. Esse chamado faz ecoar todos os outros que Deus fizera aos profetas outrora, desta
forma, com a mesma autoridade, Jesus institui o seu grupo e os convida ao seguimento, mas
também ao anúncio. Esse relato já se encontra no início do evangelho, pois quer se apresentar
como modelo para todas as pessoas que desejam fazer parte do projeto de Deus, em Jesus.
Este trecho é um dos raros materiais exclusivos de Marcos, pois não encontramos em nenhum
dos demais evangelhos sinóticos. A primeira parte destes versículos relata sobre o fato de a
semente crescer por si só (cf. Mc 4,26-29). Jesus começa a se utilizar de diversos elementos da
vida do povo para anunciar-lhe o Reino, pois ao mesmo tempo em que facilita a compreensão da
linguagem, permanece sempre um certo mistério, já que para compreender bem é preciso
conhecer Jesus mais profundamente. A pessoa que anuncia o Reino é comparada a um semeador
(v.26). Ela até lança suas sementes com as próprias mãos, mas dali em diante perde
completamente o controle do desenvolvimento das sementes, pois o que faz este reino crescer é
a força misteriosa contida na terra (v.27). O ponto culminante de toda semente é a colheita, pois
ela coroa aquela espera pelo crescimento e amadurecimento da planta. Da mesma maneira se
passa com o Reino de Deus. Ele se faz presente, as o seu crescimento é tão invisível quanto o
desenvolvimento das sementes. A forma de semear o Reino é o anúncio, mas por que ele parece
não crescer e se desenvolver? Com a parábola, Jesus responde que o segredo da sua
invisibilidade é o mistério. Além disso, mostra que o reinado de Deus está destinado à grandeza e
nada o poderá impedir de chegar ao pleno amadurecimento (v.29). Portanto, os discípulos não
precisam perder as esperanças enquanto não percebem o seu crescimento ao anunciá-lo.
Já na segunda parte (cf. Mc 4,30-34) não é material exclusivo de Marcos, pois encontramos
paralelos em Mateus (cf. 13,31-32) e Lucas (cf. 13,18-19). Este trecho faz uma comparação entre
a pequenez das sementes e o começo insignificante do Reino (Mc 4,31). Porém, como vimos, está
destinado a um fim maravilhoso (v.32), que nada pode impedir. Por isso, essa parábola se
constitui num convite à confiança em Deus, mesmo diante das tribulações vividas. E apesar de
tratar a grandeza da planta como destino inevitável do Reino, não quer apresentar apenas uma
visão para o futuro. Esta parábola é um convite à adesão a Deus que se manifesta
constantemente na história. Portanto, não é um convite para olhar o futuro, mas a aceitação
urgente do evangelho, que jamais perde a esperança nas promessas de Deus. “Só aquele que,
como discípulo, compartilha totalmente o destino de Jesus pode superar o escândalo de Deus que
se revela no cotidiano como no gesto confiante do semeador” (FABRIS, 2002, p. 468).
Saindo do território da Galileia, Jesus desce às regiões mais baixas, de Tiro. Este episódio
acontece simultaneamente à cura do filho do centurião e pode ser encontrado em Mateus (cf.
8,5s) e Lucas (cf. 7,1s). Quando lemos o relato da cura, percebemos que ela ocorre à distância.
Jesus não entra da casa da mulher que lhe procura. Com isso, Marcos começa a romper com a
ideia preconceituosa herdada do judaísmo, que dividia as pessoas entre puras e impuras, onde as
estrangeiras eram consideradas impuras.
A mulher cananeia acorre a Jesus e lhe suplica a cura de sua filha, que estava possuída por um
demônio. À primeira vista, Marcos mostra Jesus agindo com palavras duras para ela: “Deixa que
primeiro os filhos se saciem porque não é bom tirar o pão dos filhos e atirá-lo aos cachorrinhos”
32
(Mc 7,27). Essa afirmação de Jesus é, na verdade, uma manifestação que Marcos faz ao leitor para
que conheça o pensamento judaico em relação aos estrangeiros, pois estes os consideravam e os
chamavam de cães. A expressão filhos indica os descendentes de Israel, ou seja, daquela nação
outrora escolhida por Deus. Os estrangeiros eram comparados aos cachorros, porque eram
considerados impuros.
A imagem utilizada por Jesus dá a impressão de que ele tivesse o mesmo preconceito religioso.
Porém, quando o evangelista prossegue na redação, observa-se a verdadeira chave de
compreensão para esse texto. Mas a própria mulher siro-fenícia se utiliza das imagens utilizadas
por Jesus, quando diz: “É verdade, Senhor; mas também os cachorrinhos comem, debaixo das
mesmas, as migalhas dos filhos” (Mc 7,28). A fala de Jesus se mostra assim, como um diálogo
inculturado, que a traz para um outro universo. Quando ela chama Jesus de Senhor (do grego
Κυριος - Kyrios), revela que também os povos estrangeiros podem reconhecer a visita de Deus,
pois é a única vez que Marcos utilizará tal título para Jesus antes da sua morte e ressurreição em
seu evangelho. Esta invocação é a mesma que a comunidade cristã se utilizava para se referir ao
Senhor Ressuscitado. Além disso, a mulher não é apenas uma pagã que tenta um milagre para a
sua filha. Mais que isso, ela representa todos os cristãos de origem estrangeira em relação à
Israel. Portanto, a resposta última de Jesus diante desta situação é o dom inestimável da
salvação: “Pelo que disseste, vai: o demônio saiu da tua filha” (Mc 7,29). Com esse gesto
inovador, Jesus antecipa a missão dos cristãos perante todos os povos da terra, pois, diferente do
antigo Israel, o novo Israel deve admitir pessoas advindas de todas as origens à mesa da
salvação.
5 REVISANDO
Marcos pode ter escrito seu evangelho para qualquer comunidade que tivesse uma diversidade de
nacionalidades, porém, sob jurisdição do Império Romano.
1 INTRODUÇÃO
Quando abordamos dados como data, local e outras informações historiográficas de escritos tão
antigos como os evangelhos, nunca é demasiado afirmar sobre a dificuldade de atingir a precisão
dos fatos. Segundo Barbaglio (2002), o evangelho teria sido redigido por volta dos anos 80 d.C. O
conhecimento da destruição do templo e de conteúdos retirados de Marcos levam os estudiosos
a manterem uma visão quase unânime dessa hipótese. Desta forma, se contraporia à ideia da
tradição que afirma que fora redigido antes do evangelho de Marcos. Antes, este tem o segundo
evangelho como sua fonte de pesquisa, tal como a denominada “fonte Q”25. Seguindo a mesma
linha de raciocínio, a maioria concorda que ele fora escrito na Síria, talvez em Antioquia. Há uma
3 TEOLOGIA
Segundo Barbaglio (2002), podemos dividir a teologia mateana em duas dobras ou eixos que se
requerem mutuamente. Trata-se da dobra cristológica e da eclesiológica. No entanto, faz-se
necessário dar notável importância à segunda, já que era a intenção do próprio evangelista. Na
primeira dobra, Mateus faz menção ao Antigo Testamento, mostrando a sua relevância do Antigo.
26 Pápias foi bispo de Hierápolis, na Frigia, durante o primeiro terço do século II d.C. Atualmente, esta região fica
situada na Turquia. Embora seja mencionado em outros escritos, não se encontra nenhum fragmento de sua obra.
Tudo o que resta são citações advindas de Irineu e Eusébio de Cesareia. Segundo se diz, ele teria sido companheiro
de Policarpo de Esmirna e, provavelmente, discípulo de João.
36
Em seguida, aponta Jesus como cumpridor das promessas feitas por Deus aos profetas, ao povo,
Abraão, Moisés, Davi. Na segunda dobra, Mateus indica que a comunidade deve seguir Jesus e
fazer a vontade do Pai, assim como Cristo fez. A comunidade mateana é convidada a olhar para
Cristo e ver nele um modelo para o seu agir ético e operante. Em suma, o centro do evangelho é
Jesus e sua ação de mestre, anunciador do reino e salvador dos Homens.
Na dobra cristológica, Mateus apresenta Jesus como cumprimento pleno das figuras do Antigo
Testamento. Nesta linha, quando expõe a ascendência de Jesus (cf. Mt 1,1-17), percebe-se que ele
logo faz a ligação, desde Abraão até José, a linhagem real da descendência de Davi. Além disso,
Mateus mostra que Jesus é vindo de uma virgem (cf. Mt 1,23); nascido em Belém como o próprio
Davi (cf. Mt 2,6); imigrante no Egito, como Moisés, e, em seguida, hóspede em Cafarnaum (cf. Mt
4,14-16). Em suma, para o evangelista, Jesus é o Filho de Deus, o Emanuel, o Deus conosco do
início (cf. Mt 1,23) ao fim dos tempos (cf. Mt 28,20), conforme prometera Deus no passado. Em
cada passo dado em sua obra, fazendo comparação com Antigo Testamento, o evangelista mostra
que toda a Lei e os Profetas contemplam, em Cristo, a sua plena realização. E se Jesus cumpre e
plenifica o sentido da Lei, ela não se realiza exatamente de acordo com uma expectativa dos
Judeus. Mais que isso, Jesus realiza o que já era esperado, levando toda a Lei Mosaica à sua
perfeição e pleno cumprimento, mas supera em muito toda a promessa. Jesus é aquele que veio
como Mestre, Arauto e Salvador para instaurar um Reino de justiça e misericórdia.
Na dobra eclesiológica, Mateus evidencia que o discípulo
deve fazer conforme Cristo ensinou, a saber, colocar em
prática a vontade do Pai que está no Céu. Ele alerta
constantemente que a comunidade Cristã não pode ficar
indiferente às provocações se lhes apresenta. Aqueles que
não fazem a vontade do Pai não fazem parte da família de
Jesus (cf. Mt 12,49-50). Apesar disso, aqueles que estão na
família de Jesus não podem se considerarem superiores
aos demais. Pelo contrário, o maior deve se fazer pequeno
como uma criança (cf. Mt 18,3-4). Apenas aquele que se
faz pequeno e humilde entrará no Reino dos Céus. Esta
pequenez, porém, não é observada no exercício de dons
carismáticos ou de forma apenas contemplativa e inoperante, ao contrário, os benditos do Pai
são aqueles que servem os irmãos em suas mais diversas necessidades (cf. Mt 25,31-46), já que
os discípulos não podem esconder os talentos recebidos da parte de Deus (cf. Mt 25,14-30).
Como imitadora de Jesus, a comunidade cristã tem o mandato de ensinar, anunciar o evangelho e
levar aos homens a graça da salvação a partir da vivência dos valores da Justiça e misericórdia
instaurados pelo Senhor outrora. Portanto, a missão da Igreja é a missão do Cristo.
37
Ao adentrar o evangelho de Mateus, sempre que se busca uma definição para a pessoa de Jesus, é
necessário compreendê-lo como promessa que se cumpre. Cristo vem de uma linhagem real que
se baseia no messianismo davídico por isso nasce em Belém (cf. Mt 1, 1-17; 2,1-6); nasce de uma
virgem (cf. Mt 1, 18); é o Deus conosco predito pelos profetas (cf. Mt 1,22s); é o novo Moisés que
foge para o Egito e retorna a terra de Israel e, depois, sobe ao monte para ensinar aos seus a
vontade de Deus (cf. Mt 2,13-23; 5,1 - 7,29); passa quarenta dias no deserto como o povo de
Deus, em alusão aos quarenta anos no deserto (cf. Mt 4,1-3). No entanto, em todas essas figuras,
Jesus supera as antigas, pois além de cumpri-las ele as levará ao aperfeiçoamento (cf. Mt 5,17.20-
47). “Na prática, ele operou um processo de radicalização das exigências divinas, ab-rogando
qualquer tolerância, preenchendo toda lacuna (cf. Mt 5,21-48)” (BARBAGLIO, 2002, p.54).
Na pessoa de Jesus, como mestre e modelo, a ação humana sempre estará sobre o imperativo do
agir segundo a vontade de Deus, pois o homem é chamado a não fazer distinção entre bons e
maus. Assim, segundo Fabris, Mateus não indicará à sua comunidade uma nova ética, antes,
colocará todo reto agir ético do homem sob as asas da realização da vontade de Deus. Como
38
verdadeiro mestre, tudo o que Jesus diz adquire um valor inestimável pelo simples fato de ser ele
mesmo quem o diz. A própria multidão entenderá bem que se encontra diante de um mestre
original, em muito distinto dos mestres judaicos que eles conheciam, pois costumavam ensinar
sem praticar e viver o que ensinava.
Segundo Barbaglio, “Obediência à vontade do Pai, práxis de amor misericordioso e
indiscriminado e seguimento de Jesus formam um todo. É evidente que estamos longe de
qualquer ideal ético; o confronto do homem não acontece com normas morais” (BARBAGLIO,
2002, p.55). Aos que fazem a vontade do Pai, seguindo o exemplo de Jesus, é concedida a graça
de fazer parte de sua verdadeira família (cf. Mt 12,46-50).
Fique claro, porém, que o anúncio e o ensinamento de Mateus jamais esgotarão a riqueza e a
novidade da pessoa de Jesus. As curas, os milagres e todos os atos de Jesus contribuem para que
a comunidade mateana possa enxergar nele o servo obediente ao Pai que assume as
enfermidades do homem para redimi-lo. Mesmo na hora extrema da cruz ele jamais perdeu o
controle da situação, o que fez transparecer a sua majestade divina. E, após a ressurreição, Cristo
é a alma de sua Igreja que percebe a sua presença de forma viva e eficaz (cf. Mt 28, 19-20).
Segundo Barbaglio, Mateus atribui vários títulos a Jesus:
Nesses títulos ressaltados por Mateus, encontramos a perspectiva da visão que a comunidade
nutria a respeito da pessoa de Jesus. Em todo o seu significado e realidade Cristo se faz presente
na Igreja, sustentando-a em todas as dificuldades. No entanto, Mateus alerta para o fato de que a
comunidade deve abraçá-lo decididamente, pois ele virá novamente para julgar com o peso da
justiça e da misericórdia. Esse julgamento não visa à ruína do homem, antes, almejará a
glorificação da Igreja, do Reino de Deus e, sobretudo, do próprio Deus.
Em seu evangelho, Mateus apresentou Jesus como Messias prometido desde o Antigo
Testamento ao povo de Israel. E apesar de Jesus realizar a expectativa do povo de Deus, Ele não
foi aceito por todos os seus. E a Igreja nasce nesse contexto de rejeição da parte dos Judeus (cf.
Mt 21,33-46). Por isso, o evangelho tem como sua principal finalidade a orientação da
comunidade de cristã, que Mateus identificará como o “Novo Israel”. É nesta perspectiva que o
evangelista dará enorme importância à sua comunidade e o tema eclesiológico adquire extrema
relevância. A partir dessa acentuação comunitária de Mateus, os exegetas definem o seu escrito
como evangelho eclesiástico. E a comunidade que recebeu o seu evangelho servirá de luz para
reinterpretar a definição de povo de Deus a partir de uma releitura do Antigo Testamento.
39
O texto mais claro e compreensível, todavia, parece ser 21,43: O Reino de Deus vos
será tirado e será dado a um povo que o fará frutificar. O Judaísmo cessou de ser o
lugar social e histórico da presença da graça salvífica. A Igreja tornou-se o lugar
concreto no qual o Reino tomou forma na história humana. (BARBAGLIO, 2002,
p.59-60)
A citação acima se contextualiza diante da parábola dos “vinhateiros homicidas” (cf. Mt 21,33-
46). Jesus, ao contá-la, claramente dirigiu sua palavra aos chefes do judaísmo já que, em Mt
21,45, Mateus diz o seguinte: “Os chefes dos sacerdotes e os fariseus, ouvindo estas parábolas,
perceberam que Jesus se referia a eles”. No entanto, as autoridades judaicas não podem ser
confundidas com todo o povo de Israel. Por isso, em Mt 21,42, Jesus esclarece que o motivo pelo
qual quis constituir um novo povo eleito consistia no fato de ter sido rejeitado. Mas o evangelista
deixa claro, também, que embora a Igreja assuma esse papel de tornar-se o povo escolhido ela
não se identifica plenamente com o Reino de Deus. O Reino é sempre superior a Igreja e se trata
das realidades salvíficas relacionadas ao fim último da humanidade. Apesar de ser menor e
menos importante que o reinado de Deus, a Igreja antecipa, de certo modo, esta salvação futura,
27
Tipologia, na teologia cristã e exegese bíblica, é uma doutrina ou teoria relativa à relação entre o Antigo
Testamento com o Novo Testamento. Eventos, pessoas ou declarações no Antigo Testamento são vistos como tipos
prefigurados ou substituídos por antítipos, eventos ou aspectos de Cristo ou de sua revelação descritas no Novo
Testamento. Por exemplo, Jonas pode ser visto como o tipo de Cristo em que emergiu da barriga do peixe e,
portanto, pareceu ressurgir da morte. Na versão mais completa da teoria da tipologia, todo o propósito do Antigo
Testamento é visto como meramente a provisão de tipos para Cristo, o antítipo ou cumprimento. A teoria começou
na Igreja Primitiva, teve sua maior influência na Alta Idade Média e continuou a ser popular, especialmente no
Calvinismo, após a Reforma Protestante, mas em períodos subsequentes lhe foi dada menor ênfase.
40
pois nela contêm os germes do mundo desejado por Deus. É na vida em comunidade que se deve
fazer despontar as alegrias e gozos previstos para o fim dos tempos.
A Igreja, como novo Israel, não oferece mais animais em sacrifícios,
mas é redimida pelo sangue de Cristo. Ele se doa à Igreja e é
por isso que nela se manifesta a graça de Deus e o perdão
para os pecados cometidos. A salvação é um dom
comunitário e, por isso, deve encontrar a pessoa na
comunidade cristã, pois ninguém se salva sozinho.
“Para Mateus a Igreja é o verdadeiro povo de Deus,
comunidade dos últimos tempos, sinal visível da
salvação para os homens” (BARBAGLIO, 2002, p.59).
Apesar disso, nunca se deve esquecer que a Igreja não é
igual ao Reino Deus, apenas o encaminha e antecipa de
modo parcial por ser o seu sinal visível durante a história.
Enquanto não passa o tempo presente, a Igreja será
importante, mas é apenas uma parte desse reinado absoluto de
Deus.
Segundo Barbaglio (2002), Mateus não apresenta muitas informações acerca da estrutura de sua
comunidade, porém, é possível perceber e extrair alguns elementos interessantes de sua
estrutura eclesial. Segundo o teólogo, pode-se distinguir ao menos quatro grupos distintos na
comunidade mateana. São eles:
Entre esses, o grupo dos “pequenos” era pouco considerado na comunidade, já que eram
pessoas de grande simplicidade. Apesar disso, eles eram muito ativos e se empenhavam como os
demais grupos na missão. Por isso, Mateus chama atenção diversas vezes para que os membros
das comunidades tenham em grande estima os pequeninos (cf. Mt 18,1-5).
Além da organização eclesial por grupos de origem dos cristãos, é preciso considerar que já
existiam dois estados de vida distintos e complementares entre si: o matrimonial e o celibatário.
E desde muito cedo, Mateus dará preferência ao estilo de vida celibatário, que surgiu de uma
opção de entrega total e de amor ao Reino (cf. Mt 19,10-12). Vejamos a citação evangélica:
Por eunuco deve-se entender homens que castrados que serviam as cortes imperiais e as casas
das pessoas nobres. Por isso, Mateus mostra o celibato como continência voluntária em favor e
por amor ao Reino de Deus. “A realidade do reino futuro (22,23-33) tende a antecipar-se na
existência daqueles que se lhe abrem na esperança” (BARBAGLIO, 2002, p.64). Como no Reino
dos Céus as pessoas não se tomarão em casamento, o celibato antecipa para o presente o sinal
visível do Reino. Porém, não se deve pensar que todos os presbíteros já fossem celibatários na
comunidade de Mateus, pois se tratava de uma decisão pessoal, não imposta pela comunidade
cristã.
Diante de tantas particularidades presentes na comunidade, os primeiros cristãos se sentiram
tentados a se considerarem superiores aos demais, por um ou outro motivo. Nesse sentido,
Mateus mostra que a comunidade não deve ser ideológica, considerando-se superior às demais.
O discipulado deve ser uma imitação total de Cristo que, não se fechando em si, abre-se
completamente ao mundo inteiro. Ele não se fez maior, mas servo de todos. É a estreita união
com Cristo que deve caracterizar a Igreja cristã, o novo Israel. Quando lido sob esta perspectiva, o
relato do chamamento das primeiras duplas de discípulos apresenta uma pista importante para
o estilo de vida que a comunidade deve cultivar. Trata-se de assumir um novo estilo de vida
muito mais radical, desenraizando-se da vida comum dos pescadores e passando a viver com ele.
A reação de Pedro, André, Tiago e João desafia e questiona cristãos em todos os tempos, pois
“deixando imediatamente as redes, o seguiram” (Mt 4,20), em seguida, Tiago e João “deixando
imediatamente o barco e o pai, o seguiram” (Mt 4,22).
Portanto, Mateus ensina que para ser discípulo verdadeiro de Cristo é necessário compartilhar
da existência do Filho de Deus, já que é preciso deixar tudo para segui-lo. Nada deve se antepor
ao convite insistente do Senhor (cf. Mt 8,19-22; 10,37). Como Barbaglio (2002) nos diz, o
caminho do mestre o levará inevitavelmente à Cruz (cf. Mt 16,21) de tal modo que o discípulo
não pode esperar outro destino diferente disso para si mesmo. Estas palavras foram escritas na
intenção de confortar a comunidade perseguida nos tempos em que Mateus as escreveu, pois é
justamente nas dificuldades e perseguições que se manifesta a essência do “novo Israel”, que
saberá suportar, com perseverança e fé, as calúnias.
Barbaglio afirma em seu comentário ao evangelho de Mateus:
Em suma, é uma comunidade que vive sob o olhar do Pai. Somente a ele dedica a
própria existência de fidelidade, purificada de qualquer instrumentalização da
religião: Não pratiqueis a vossa religião para obter a admissão das pessoas. Não
podeis esperar nenhuma recompensa do vosso Pai celeste (6,1). Somente dele se
espera um reconhecimento que vai além dos próprios méritos: E teu Pai, que vê
aquilo que está escondido, dar-te-á a recompensa (6,4.6.18). (BARBAGLIO, 2002,
p.67)
A Igreja deve nutrir entre si uma relação fraterna e cordial. Mas, apesar desta relação íntima com
a comunidade, ela jamais deverá se fechar em si mesma, pois a salvação é universal e destinada a
todas as pessoas. Por isso, a comunidade cristã deve estar aberta ao mundo. “A Igreja tem uma
missão a realizar no mundo” (BARBAGLIO, 2002, p.67) e esta missão deve ser levada com
empenho pelos cristãos. Este anúncio de salvação não é apenas para os membros da Igreja, que
42
não é um clube fechado, mas deve ser testemunhado a todo o mundo (cf. Mt 24,14). Nesse
sentido, Mateus ligará a missão da Igreja com a promessa feita a Abraão: “Abençoarei aqueles que
te abençoarem e aqueles que te amaldiçoarem amaldiçoarei, e em ti dir-se-ão benditas todas as
tribos da Terra” (Gn 12,3). É do próprio Abraão que Jesus será descendente (cf. Mt 1,1) e nele se
inicia o cumprimento da promessa ao seu pai.
Mas é à luz da construção e da expectativa do Juízo Final que a Igreja deve ser compreendida. Ela
não deve se construir pensando apenas no tempo presente, mas preparando as pessoas para a
vida futura. Mateus ressalta que, no dia do juízo, a verdade será posta à luz e todos poderão
observar as dobras da história. Deus resplandecerá diante de todos, por isso, os cristãos são
chamados à obediência a sua vontade e a sua palavra (cf. Mt 7,21). Mateus ressalta, porém, que
está obediência não é a reprodução daquilo que os mestres do judaísmo viviam (cf. Mt 5,20).
Diante dos problemas reais de sua comunidade, Mateus alerta para que os cristãos de sua época
não sejam inoperantes com os talentos que Deus lhes deu (cf. Mt 25,30) e, muito menos,
insensatos (cf. Mt 25,12). Seu interesse em enfocar o juízo final é prático, pois, segundo
Barbaglio, “Mateus tem diante de si uma comunidade cristã preguiçosa e descomprometida”
(BARBAGLIO, 2002, p.70). Atentos aos sinais dos tempos, a comunidade cristã não pode cultivar
a falsa segurança, pois o que salva o homem são os critérios construídos pela práxis do amor e
não as teorias.
Para concluir, Barbaglio nos afirma o seguinte:
Portanto, no seu evangelho, Mateus retoma o convite à ação vigilante da comunidade. Esta vigilância é
manifestada nas suas diversas necessidades e na assistência de seus membros mais carentes de
quaisquer coisas.
Existem muitos esquemas apresentados para sistematizar e apresentar o evangelho de Mateus. Logo
abaixo pode-se encontrar dois esquemas que se complementam entre si. O primeiro aborda o
evangelho dividido em cinco livros, tendo uma parte discursiva e outra narrativa, fazendo clara alusão
aos cinco livros da lei mosaica. O segundo, mostra o evangelho em forma de quiasmo28, onde sempre a
28Estrutura em que as palavras da primeira frase são repetidas, na segunda, mas com a ordem inversa. Os escritores
bíblicos se utilizam muitas vezes desse recurso. Como as ordens são inversas, a primeira mensagem aparece na
última, a segunda na penúltima e assim sucessivamente. Ao centro, encontra-se a mensagem que não tem repetição
43
mensagem central se encontrará no meio do evangelho e o início e o fim terão pontos de abordagem
comuns, ou seja, muito semelhantes. Os dois esquemas apresentados abaixo, no entanto, evidenciam
Cristo e o seu Reino, conforme destrinchado na cristologia e eclesiologia do evangelho.
Segundo o modelo estabelecido nesse esquema de cinco livros, a intenção do evangelista Mateus
seria a utilização de uma imagem muito familiar aos cristãos advindos do universo judaico: os
cinco livros da Lei mosaica. Como Jesus é o novo Moisés, que veio cumprir e plenificar as
promessas de Deus, feitas no antigo testamento, essa linguagem atingiria mais facilmente a
compreensão de quem fosse familiarizado com o pentateuco. Os cinco livros são precedidos pela
introdução, que é um evangelho da infância de Jesus (Mateus 1 e 2) e por uma conclusão, que
mostra como a pascoa de Jesus salva e liberta (Mateus 26 a 28). Cada um dos livros é subdividido
em uma parte discursiva, onde Jesus transmite oralmente os seus ensinamentos e, uma parte
narrativa, onde o evangelista mostra a ação de Jesus, confirmando as suas falas. As cores são
para indicar a correlação de conteúdo entre as partes. O livro 1 e o livro 5 falam a respeito do
reino de Deus e da sua realização histórica e escatológica. O livro 2 e o livro 4 abordam a respeito
dos discípulos de Jesus e a sua missão de continuar a viver os seus ensinamentos. E o livro 3 têm
o coração da mensagem do evangelho, pois o Reino e a sua justiça só serão vividos por aqueles
que livremente o acolhem: a semente é lançada em todos os corações.
e, portanto, torna-se a mensagem central do texto. Nesse estilo linguístico, a mensagem mais importante aparece no
centro da redação.
44
Como se pode ver nessa demonstração do quiasmo literário em Mateus, há clara exposição do
conteúdo em correlação entre o começo e o final, seguindo a ordem inversa, culminando no
centro do evangelho com as parábolas do Reino (13,1-53). E a mais importante entre estas
parábolas é a do semeador (Mt 13,3b-9). Através dela, o evangelista deixa claro que todas as
pessoas podem acolher a palavra de Jesus e a proposta do Reino, mas a acolhida depende de cada
coração e da prioridade que cada pessoa atribui a sua mensagem. No evangelho de Mateus
vemos uma tendência a apresentar o Reino de Deus como continuidade do Judaísmo, porém, esta
continuidade supera e aperfeiçoa a anterior. Assim, Cristo vem primeiro aos judeus, ou seja, aos
seus, porém, se abre a toda a humanidade (Mt 15,21-28). É a Igreja que terá a missão de
manifestar essa nova realidade ao mundo.
Apesar de parecer, Mateus não escreveu apenas para pessoas cultas e eruditas. Pelo contrário,
todo o conteúdo de seu evangelho se encontra presente na maneira como escolheu fazer a sua
apresentação. Provavelmente, o evangelista começou a redação pelo miolo do Evangelho, onde
se encontram as palavras e ações da vida pública de Jesus. Ao final, ele acrescentou a introdução,
que fala do nascimento e vida oculta de Jesus; e os capítulos conclusivos, que expõe os
acontecimentos da sua paixão, morte e ressurreição.
29Pentateuco significa cinco (penta) rolos ou estojos onde se guardavam os rolos (teucos). Os livros que compõem o
pentateuco são: Gêneses, Êxodo, Levítico, Números, Deuteronômio.
45
primeiros seguidores. Em seguida, profere o Sermão da Montanha, que se apresenta como nova
lei para a vivência autêntica do evangelho, baseada na justiça e na misericórdia. O Segundo
livrinho desenvolve-se a partir da missão de Jesus na Galileia e o compartilhamento da missão
com os doze. O terceiro é o livro central. Nele Jesus conta parábolas que anunciam a presença e o
universalismo do Reino de Deus. No quarto, Jesus orienta a vida comunitária, pois havia muitos
problemas a serem superados nas primeiras comunidades. No quinto e último livrinho, Mateus
apresenta a escatologia e o juízo final para deixar a comunidade em constante atenção a fim de
que ela não negligencie o convite de Jesus a conversão e à justiça.
Essa tradição da paixão de Jesus, o evangelista herda de Marcos e, por isso, o evangelho alcança,
no acontecimento do Gólgota, seu ponto mais alto. Jesus é o messias esperado, mas, diferente de
toda espera, seu messianismo amadurece e desabrocha na Cruz. Apesar de entregue nas mãos de
seus adversários, a ressurreição sinaliza que a vida tem sempre a última palavra e, a partir do
encontro com o Ressuscitado, a comunidade mateana descobre seu fundamento e vocação.
Depois de fazer todo o seu percurso, Jesus envia a comunidade para tudo mundo. Agora a
própria Igreja deverá ser sinal da sua presença e fazer, ela mesmo, discípulos para o Mestre.
A seguir, serão trabalhados alguns trechos bíblicos extraídos de Mateus para ajudar na chave de
leitura de todo o seu evangelho. A intenção é apresentar sumariamente a explicação destes
trechos, com ideias extraídas da obra de Giuseppe Barbaglio.
Os v.1-2 introduz o leitor à parte discursiva do primeiro Livro, cuja divisão vimos acima.
Portanto, não seria trecho exclusivo das Bem-aventuranças, mas de todo o Sermão da Montanha.
Em poucas palavras, Mateus é capaz de expor as seguintes informações: (1) quem ensinará, (2)
onde, (3) o povo que está na montanha, (4) os discípulos. A multidão, segundo Barbaglio, está no
fundo como ouvinte e, preparada. No final do sermão ela ficará perplexa com tamanha novidade
nas palavras de Jesus (cf. Mt 7,28-29). Nesta introdução Jesus é apresentado como Mestre, como
aquele que ensina.
Nos vv.3-12 deparamos com as bem-aventuranças. Segundo Barbaglio, este trecho pode ser
dividido em duas estrofes. A primeira se estende dos versículos 3 a 6 e, a segunda, dos versículos
7 a 10. No início da primeira estrofe e no fim da segunda Mateus expõe a promessa de Jesus a
respeito do Reino dos Céus. O Reino é dos pobres em espírito e dos justos (vv.3 e 10). Tanto na
primeira quando na segunda parte, encontramos o verbo que se refere ao Reino de Deus no
presente, ao contrário das demais bem-aventuranças. Desta maneira, Mateus revela que o Reino
46
já está entre nós, indicando que já está instaurada a pátria da justiça. Apesar de presente e atual,
a sua construção acontece passo a passo mediante a atitude de quem corresponde a sua vocação,
até que se concretize em um futuro iminente.
Felizes os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus (v.3): Indica que o reino dos céus é
destinado aos humildes. As virtudes da humildade e simplicidade expressam bem o que significa
pobre em Espírito. Trata-se de um curvar-se diante de Deus ao invés de erguer-se de forma
orgulhosa. Possuir o Reino dos Céus significa ter, já no mundo, parte do gozo da vida eterna. Os
pobres em espírito, por sua humildade, têm a graça de antecipar a vinda do Reino. Como não
buscam grandezas, encontram-se plenamente satisfeitos em Deus.
Felizes os mansos porque herdarão a terra (v.4): Os mansos, segundo Barbaglio, são aqueles que
se relacionam sem o uso da violência. Eles se apresentam sem armas diante dos outros.
Certamente, Mateus baseou esta afirmação no Salmo 37, que aconselha a mansidão contra os
malvados, já que quem o guarda é o Senhor. A pessoa com a virtude da mansidão deixa o seu
destino e cuidado nas mãos de Deus. Por isso, Jesus é apresentado como modelo de mansidão e
do como se deve agir (cf. Mt 11,29).
Felizes os aflitos porque serão consolados (v.5): Esta promessa já não está no presente, mas indica
que o Reino terá promessas que se concluirão noutra ocasião. Segundo Barbaglio, ela se destina
aos que sofrem aflições, para que se mantenham mansos diante de um mundo que ainda se
encontra sob a ação das forças malignas e de morte. Há, também, o entendimento do choro pela
compaixão com os que sofrem. Sua consolação consiste na salvação final, na vida eterna.
Felizes os que têm fome e sede da justiça, porque serão saciados (v.6): Usando da metáfora dos
famintos e sedentos, Mateus quer indicar que a busca pela justiça deve ser sempre operante,
nunca estática. Ninguém, em sã consciência, espera o alimento cair do céu, a menos que não
tenha outra escolha. Não é apenas uma procura por um ideal de vida, antes, uma procura ativa e
engajada por um mundo real possível. Ser praticante da Justiça significa fazer aquilo que é da
vontade do Pai. Quando se fala da saciedade, lançando a realidade para o futuro, indica que
aqueles que assim agirem serão “cumulados de uma felicidade escatológica” (BARBAGLIO, 2002,
p.114).
Felizes os misericordiosos porque alcançarão misericórdia (v.7): A prática do perdão comunitário
(cf. Mt 18,33) não é apenas um ideal de vida. Para Jesus, não há justiça se não houver
misericórdia nas relações comunitárias. Segundo Barbaglio, neste contexto de misericórdia
também se compreende pela ajuda oferecida aos necessitados, conforme a parábola do juízo
final, no sermão escatológico (cf. Mt 25,35-37). Aqueles que vivem da misericórdia também
receberão de Deus a mesma misericórdia.
Felizes os puros no coração, porque verão a Deus (v.8): No antigo Israel, a pureza legal era algo
que se devia ser muito considerado, sem a qual, não se tinha a bênção de Javé. Jesus, modificando
esta “lei”, não consiste apenas em não fazer o mal, mas também em não o desejar no coração. A
pureza, portanto, não é o cumprimento de leis e ritos, antes, são puros no profundo de seu ser.
Verão a Deus porque não externalizam com fachadas sua pureza, mas porque são puros no
íntimo. Estes, estarão em plena comunhão com Deus.
Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus (v.9): Segundo Barbaglio,
“Jesus se congratula com aqueles que estabelecem a paz” (BARBAGLIO, 2002, p.114). De início,
47
Mateus quer alertar a comunidade eclesial para a convivência pacífica. Mas não se pode negar
que este pedido está além-fronteiras da própria Igreja. Desta forma, ele afirma como sendo são
filhos de Deus todas as pessoas que contribuem concretamente com atitudes misericordiosas e
fraternas no mundo.
Felizes os que são perseguidos por causa da Justiça, porque deles é o Reino dos Céus (v.10): Assim
como na primeira bem-aventurança, Mateus afirma com a conjugação do verbo no presente que
o Reino de Deus já está entre os perseguidos. Primeiro, porque se assemelham ao próprio Jesus,
que exerce o seu reinado a partir da cruz e ressurreição. Segundo, por fazerem de suas vidas
conforme o querer de Deus. E a justiça, para Mateus, é colocar em prática a vontade de Deus, que
jamais se desatrela da misericórdia que conduz à paz.
Nos dois últimos versículos (v.11-12), Jesus parece se dirigir particularmente aos seus
discípulos. Pois, Ele não usa mais o verbo em terceira pessoa, antes, em segunda, para indicar a
proximidade da mensagem que desejou transmitir aos seus. Quando compara os discípulos aos
profetas, indicam que esses serão os seus sucessores, já que serão perseguidos como eles foram.
Provavelmente, Jesus não tenha encontrado muitas dificuldades para indicar que dias difíceis
viriam sobre seus discípulos, já que também era esta a sua própria sorte. Porém, faz-se
necessário ver para além dos sofrimentos, pois serão recompensados os que são perseguidos
pelo nome de seu Senhor. Com uma alegre notícia a todos, Mateus chama os discípulos do Cristo,
a sua Igreja a ter firme olhar na alegria futura: “Alegrai-vos e regozijai-vos, porque será grande a
vossa recompensa nos céus, pois foi assim que perseguiram os profetas, que vieram antes de vós”
(Mt 5,12).
em muitos momentos, é necessário manter-se firme na fé, pois é inevitável que em algum
momento a semente encontre território no qual ela frutificará. Isso indica que entre a missão de
Jesus e a vinda de seu Reino existe um vínculo que não pode ser dissolvido pelo tempo. Por isso,
é necessário manter-se firme na fé e essa firmeza deve ser operante, sem deixar de semear. As
sementes precisam ser lançadas em todos os corações.
A ação do semeador, que espalha com mãos cheias as sementes interpela aos ouvintes para que
não desanimem, para que se mantenham no caminho. Segundo Barbaglio, Mateus alerta os
discípulos que o Reino “é confiança, apesar de tudo, vitoriosa sobre forças terríveis do passado
que tendem a fechar a porta da existência ao futuro que bate” (BARBAGLIO, 2002, p.214). Se,
porventura, alguém não crê no anúncio, deve-se exclusivamente ao seu direito de renunciar as
exigências do Reino. Sua renúncia, no entanto, tem consequências que cada pessoa precisa estar
ciente de colher.
5 RESUMINDO
1 INTRODUÇÃO
Segundo a tradição, Lucas é alguém que faz parte da segunda geração de cristãos. Isso significa
que ele não conheceu Jesus pessoalmente, mas conheceu os apóstolos de Jesus. Tornando-se
membro da comunidade Cristã após o ano 70 d.C., ele não conviveu com a maioria dos apóstolos
e faz parte de uma Igreja que denominamos de subapostólica30. Na sua mensagem, todas as
pessoas se tornam destinatárias da salvação trazida por Jesus, o que os teólogos chamam de
universalismo salvífico. Além disso, ele mostra uma profunda atenção aos mais necessitados,
enfatizando o Espírito agindo sobre a pessoa de Jesus e conduzindo os passos da Igreja. Na
verdade, a sua obra está dividida em duas partes. A primeira é o evangelho e, a segunda, os Atos
dos Apóstolos. Por isso, veremos o seu conteúdo em suas duas etapas, a começar pelo evangelho.
O evangelho segundo Lucas é datado, pela maioria dos estudiosos, entre os anos 80-90 d.C. Não
custa recordar que se trata de hipóteses, não de fatos. Para chegar a essa conclusão, os teólogos
partem de duas justificativas. Primeiro, o autor escreve pormenorizadamente sobre a destruição
do templo de Jerusalém (cf. Lc 21,20-22; 19,42), que ocorreu no ano 70 d.C. Seria difícil tamanha
precisão se não houvesse tempo para que a notícia se propagasse até sua região. Além disso, é
difícil que tenha sido escrito antes do ano 80 d.C., já que tinha conhecimento da obra de Marcos,
de onde extraiu uma de suas fontes.
Diferente dos demais evangelhos, Lucas não nos apresenta um ambiente definido de onde o teria
escrito. Porém, segundo testemunhos como o de Irineu, situado no século segundo, é provável
que tenha escrito este evangelho na Grécia Meridional, talvez o tenha escrito na cidade de
Corinto. Segundo Fabris, é mais correto afirmar que fora escrito em territórios não palestinenses.
Segundo Fabris (2006), deve-se ter claro que Lucas é um cristão convertido e faz parte da
segunda geração, proveniente de um ambiente helenista e pertencente a uma classe social alta.
Pelos seus escritos, nota-se que é uma pessoa culta, pois escreve com maestria o grego koinè31.
Lucas era conhecedor da retórica grega e da exegese judaica e muito familiarizado com a versão
grega do Antigo Testamento (LXX); um gentio que, entre os anos 80-85 d.C., escreve a
comunidades cristãs fora de Israel (CASALEGNO, 2003, p. 235-240), que não entendem a cultura
na qual surgiu a mensagem de Jesus. Para os antigos Padres da Igreja, trata-se da mesma pessoa
que acompanhou Paulo e Barnabé em suas viagens missionárias. Fabris (2006) afirma que
30A História da Igreja Primitiva sempre foi dividida, por vários biblistas, em três períodos no que diz respeito à sua
origem, a saber: 1ª Geração (Apostólica) se dá entre os anos 30 e 67 d.C.; a 2ª Geração (Subapostólica) vai de 67 a 97
d.C.; e a 3ª Geração (pós-apostólica) que começa a partir do ano 97 d.C.
31 Era uma forma mais vulgar, ou melhor, popular do Grego.
50
alguns eram mais taxativos em dizer que Lucas era médico32 e, por isso, seria atento às
necessidades dos pobres. Lucas seria originário de Antioquia da Síria, celibatário, discípulo dos
apóstolos e, como vimos, companheiro de Paulo.
Também não fica muito claro quem foram os destinatários do seu evangelho. O que se tem, de
início, é que Lucas destina sua obra a um desconhecido Teófilo33 (cf. Lc 1,3), que traduzido para o
português, significa amigo de Deus ou temente a Deus. Esse Teófilo tanto pode ser uma pessoa,
como os pagãos que estavam aderindo à fé, pois eles eram chamados de tementes a Deus. Mas
também pode ser cada leitor, pois o evangelho sempre é atual. Conforme López, “o auditório de
Lucas desconhece o universo bíblico e, consequentemente, a história sagrada na qual Jesus de
Nazaré tem suas raízes e referenciais” (LÓPEZ, 2011, p.16). Porém, segundo Rivas (2008), este
destinatário se encontra em um contexto típico da segunda geração de cristãos, já que existia
muitos cristãos convertidos de outras culturas não judaicas, advindos de todo o mundo,
diferente de como era característico nas primeiras décadas do cristianismo.
Como havia convivência entre judeu-cristãos e gentio-cristãos, Lucas destinará sua obra para
apaziguar a relação entre eles. Após as viagens missionárias de Paulo, a Igreja se expande e era
necessário estabelecer uma ordem para a confusão que surgira: para ser cristão é ou não é
necessário passar pela circuncisão e praticar alguns costumes judaicos? A resposta para essas
perguntas não se encontra completamente no evangelho. É preciso ler a segunda parte da obra
lucana34, para compreendê-lo. No entanto, Lucas inicia a solução para essa problemática na
opção por um universalismo salvífico e, desde já, tenta solucionar as tensões existentes no
cristianismo de sua época.
Lucas trabalha muitas temáticas em seu evangelho, mas o universalismo salvífico é a sua
principal mensagem. Ou seja, para o evangelista a salvação é um dom a todos os povos, não só
para os judeus. Segundo Fabris (2006), Lucas parte dessa mensagem para apresentar Jesus como
profeta (cf. Lc 9,8.19; 4,24) e salvador (cf. Lc 22,25; 2,11; 1,47.69). O menino, vindo da virgem,
será a luz das nações (cf. Lc 2,29-32). Ou seja, não é uma exclusividade dos judeus. Jesus veio
para romper as fronteiras e levar a salvação a todos os homens de boa vontade (cf. Lc 2,14). Da
parte dos gentios, porém, não se deve negar que esta luz vem de Israel, para quem fora feita a
promessa da salvação, que na história. Para Lucas, todos estes aspectos manifestam o grande
perdão de Deus para com a humanidade, a imensa misericórdia divina (cf. Lc 15, 11-32).
32Segundo Fabris (2006) alguns autores do início do cristianismo afirmam esta possibilidade de ser médico devido
à utilização de alguns termos clínicos, próprios de seu tempo. Porém, a sua linguagem não é muito diferente de
qualquer helenista culto de seu tempo.
33A palavra Teófilo é uma transliteração do grego Θεόφιλος. Teo, em grego, significa Deus e, Filos, amigo. Por isso,
ao uni-las, Lucas quer evocar todos os amigos de Deus.
34Para Rivas (2008) e Fabris (2006), a obra lucana é composta por duas partes, a saber: O Evangelho de Lucas e os
Atos dos Apóstolos. Estas duas partes formam uma unidade literária, apesar de atualmente estarem divididas.
51
O universalismo, no entanto, não está desconectado de uma primeira imagem de Jesus, que
caminha da Galileia a Jerusalém. Por sinal, a capital de Israel será lugar central dos eventos
salvíficos para Lucas. Segundo López (2011), há uma ambivalência que se implica mutuamente.
Jerusalém é o centro histórico da obra salvífica realizada por Jesus. Mas o mundo é o lugar
teológico onde se realiza o universalismo salvífico, já que a salvação é destinada a todos os
homens. Nesse caminho de Jesus, Lucas apresenta, como em Marcos, uma espécie de manual
para o caminhante que deseja voltar para a casa do Pai. Caminho pelo qual o próprio Jesus
caminha com o discípulo.
De início, pode-se observar um jogral entre as figuras de João Batista e Jesus, entre o anúncio do
nascimento de um e de outro, no encontro entre eles ainda no ventre de suas mães. A
comparação entre ambos serve de preparação para o ministério de Jesus. Vejamos alguns dos
elementos comparativos entre os dois personagens:
Comparativos entre João e Jesus no início do evangelho de Lucas (cf. 1,5 – 2,20)
JOÃO BATISTA JESUS
O Anjo Gabriel anuncia o nascimento de João O Anjo Gabriel anuncia o nascimento de Jesus a
Batista a Zacarias, no templo (1,5-25) Maria, em Nazaré (1,26-38)
Isabel louva a Deus pela visita de Jesus e Maria louva a Deus pela exultação de Isabel
Maria (1,39-47) (1,48-56)
O pronunciamento de Zacarias a respeito do O pronunciamento dos anjos sobre o
significado de João no plano salvífico de Deus significado do menino Jesus na manjedoura
(1,57-80) (2,1-20)
Filho de um casal de idosos Filho de um casal jovem
Zacarias temeu e duvidou Maria tremeu e confiou
A partir dessa comparação, Lucas tem a intenção de mostrar que Jesus veio para completar a
antiga lei. O evangelho da infância mostra a transição entre o ministério de João Batista,
representando do Antigo Testamento e, Jesus, iniciador da Nova Aliança.
Segundo Fabris (2006) apresentação de sua mensagem no evangelho pode ser subdivididas em
seis grandes unidades temáticas35, a saber: Infância de Jesus (1,4 - 2,52); o ministério de Jesus na
Galileia (3,1 - 9,50); a caminhada para Jerusalém (9,51 - 19,28); o ministério de Jesus em
Jerusalém (19,28 - 21,38) e; Paixão-ressurreição (22 - 24). Estas seis unidades dão o tom de
como Jesus realiza o projeto de Deus que tem o lugar de partida na sinagoga de Nazaré, desde a
proclamação do ano jubilar (cf. Lc 4,18-19).
Após o evento da morte-ressurreição de Jesus e suas várias aparições aos discípulos, Jesus indica
aos seus discípulos que a sua mensagem não deve ficar restrita nas fronteiras de Israel. Apesar
35Estas divisões são apenas maneiras pedagógicas de apresentar cada momento e acontecimento dos evangelhos.
Portanto, a depender do teólogo que a apresenta, pode-se variar a quantidade de partes no evangelho. No geral, os
exegetas o subdividem entre quatro e seis partes.
52
de Lucas apresentar a cidade santa como local central dos eventos da salvação, ele mostra que
Jesus mesmo deu o mandato aos seus discípulos para que anunciassem esta mensagem a todos
os povos, fazendo-a atingir os confins da terra (cf. Lc 24,46-48). Segundo Rivas (2008), fazia
parte das profecias messiânicas que o anúncio do evangelho chegasse todos os povos. O desejo
de Jesus em constituir uma mensagem que atinja cada pessoa humana é claro sinal de
cumprimento das promessas de Deus.
Segundo Rivas (2008), evangelho e universalismos são termos sinônimos em Lucas. Deus quer
que a salvação se manifeste a todos os homens, porém, essa salvação só chegará pela pregação
dos apóstolos, para quem Jesus deu o mandato de anunciar. O universalismo nada mais é que a
necessidade de pregar o evangelho a todas as nações. Mateus desenvolve essa mentalidade de
salvação universal nas parábolas do semeador, mas é em Lucas que ela atinge a sua mais
relevância. O Querigma, como se pode observar nos demais evangelhos, é o que eles têm em
comum. Mas a centralidade da salvação universal é própria de Lucas. Nos “Atos dos Apóstolos”,
segunda parte de sua obra, Lucas expõe como o Espírito Santo auxilia a comunidade a cumprir
este desejo do Senhor e as profecias que prometiam fazer de todos os povos o povo de Deus.
Segundo Fabris (2006):
A salvação evangélica, como aquela anunciada pelos profetas, diz respeito a todos
os homens, sem distinções ou etiquetas culturais, raciais ou religiosas; alcança os
homens na situação histórica concreta, mas tem uma conclusão que supera a
história (21,28: “quando começarem a acontecer estas coisas, erguei-vos e
levantai a cabeça, porque vossa libertação está próxima”). (FABRIS, 2006, p.18)
Para Fabris, Lucas apresenta o roteiro de libertação da humanidade em relação ao mal que a
assola. Este mal é manifestado de muitas formas: em doenças, medos, mentiras, injustiças e
muitos outros. Nesse caminho para a liberdade, Jesus é o personagem central, o libertador da
humanidade, pois ele mesmo é livre. No seu caminho, Cristo tira do mal as pessoas que Ele vai
encontrando.
Para Lucas, Jesus pode ser considerado sob dois títulos, a saber: Profeta e Salvador. Estas duas
características são essencialmente complementares. Segundo Fabris, é completamente
impossível compreender a missão de Jesus sem uma destas características tão importantes.
Estas duas características são paradigmas lucanos para apresentar a pessoa e o papel histórico
de Jesus.
Segundo Fabris (2006), Jesus é conhecido e saudado como profeta ou um deles (cf. Lc 9,8.19;
4,24) durante toda a sua missão. O próprio evangelista apresenta Jesus sob o modelo de profeta.
Na sinagoga de Nazaré, cujo relato se encontra em Lucas 4,18-21, Jesus retoma o texto de Isaías
se utiliza de duas expressões que qualificam todos os profetas, a saber: homem da Palavra e do
53
Espírito. Ele sempre anuncia a palavra com autoridade, agindo sob o sinal do Espírito Santo.
Segundo Fabris (2006):
Segundo Fabris (2006), a morte de Jesus é a raiz e o fundamento da Nova Aliança, que era
esperada no tempo messiânico. Nessa missão, o profeta, servo fiel de Deus, será aquele que
anuncia e faz a mediação para a nova realidade (cf. Lc 22,20). Esta nova realidade está carregada
do cumprimento da promessa salvífica, da boa nova, anunciada desde tempos mais antigos.
Outro aspecto importante, conforme Fabris (2006), é a apresentação de Jesus como salvador da
humanidade (sôterem, que é uma derivação do grego σοτήρ). Esse título, por sinal, é uma
novidade lucana a Jesus e ele o utiliza desde a infância, no início do evangelho (cf. Lc 1,47; 2,11).
Para Lucas, Jesus Salvador veio especialmente aos mais pobres e necessitados. Ele vem ao
encontro do homem pecador e lhe confere a graça do regresso à casa do Pai (cf. Lucas 15,1-32). A
expressão salvador, porém, não era uma novidade do cristianismo, mas estava presente nas
religiões mistéricas e nos palácios, na época de Jesus. Por isso, embora Jesus seja chamado de
Salvador, Ele se diversifica da visão que as religiões mistéricas e imperial que pudesse recair
sobre ele. Segundo Fabris (2006), a dimensão soteriológica de Jesus superava toda a expectativa
aproximada de messianismo popular. O Salvador Jesus, segundo Fabris (2006) comunica à
humanidade uma possibilidade de partir de dentro, partir a um projeto novo, a saber, o homem
sempre disponível para o amor fiel e generoso. A salvação só se opera na medida que a pessoa
adere livremente no seu caminho de aceitação.
Jesus Salvador
• Lc 1,68s: “E fez surgir um poderoso salvador...”
• Lc 2,11: “Hoje nasceu para vós o Salvador...”
• Lc 2,31: “Meus olhos viram a tua salvação...”
• Lc 17,19: “Levanta-te e vai, tua fé te salvou...”
• Lc 18,26: “Quem, então pode salvar-se...”
• Lc 19,10: “O Filho do homem veio buscar e salvar...”
Não poucas vezes os ricos e os pobres são mencionados no terceiro evangelho. Normalmente, a
apresentação dos ricos e da riqueza é feita sob um aspecto negativo. Lucas apresenta a riqueza
como empecilho à salvação humana e à mudança de vida. Segundo Rivas (2008), já podemos
observar este aspecto desde o magnificat, o canto de Maria: “Derrubou do trono os poderosos e
exaltou os humildes. Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos” (Lc 1,52-
53). Além desse trecho, encontraremos muitos outros no Evangelho de Lucas (cf. Lc 6,20.24;
12,16-21; 18,24-25) que questionarão a situação de riqueza.
Ao contrário dos ricos, os pobres são vistos com predileção pelo evangelista. O anúncio do
Evangelho lhes é destinado na medida em que lhes anuncia que a sua situação de penúria, um
dia, vai ser transformada pelo poder salvador de Deus. Não faltam passagens para fundamentar
essa visão teológica lucana. O anúncio de libertação dos oprimidos pode ser observado, por
exemplo, no sermão da planície, em Lc 6,20-21, e na parábola do Rico e do pobre Lázaro, em Lc
18,24-25.
Apesar dessa distinção entre ricos e pobres, Lucas nunca elogiará a pobreza como algo que deve
ser buscado. Na verdade, ele anuncia que os humildes serão elevados (cf. Lc 1,52-53; 6,20-21).
Mesmo na parábola do Rico e do Lázaro, já mencionada acima, não apresenta o rico como um
homem malvado e, muito menos, o pobre como exemplo de piedade. Basta ver que, tomando
consciência de seu erro, o rico desejou salvar seus parentes. No entanto, a parábola anuncia aos
pobres que sua situação irá mudar, pois, quem só recebeu males em vida, receberá bens na vida
eterna (cf. Lc 16,25).
Segundo Rivas (2008), Lucas não quer condenar os ricos ao inferno, mas convidar a comunidade
cristã para que seja atenta à partilha de seus bens e ao sofrimento dos pobres. Uma comunidade
que exclua os pobres não faz a opção por Jesus. Não por acaso o evangelista apresenta vários
modelos, em seu evangelho, para que a comunidade possa se inspirar a imitar ou evitar. Como os
Atos dos Apóstolos é a continuação do evangelho, Lucas apresenta a Igreja primitiva como
comunidade que possuía um só coração e uma só alma, a tal pontos que seus bens não eram
considerados apenas seus (cf. At 4,32), mas de todos os membros.
Numa outra leitura, para ressaltar o universalismo salvífico, Lucas interpreta o rico como sendo
o povo judeu e, os pobres, como o povo pagão. Assim, ele conclui que os primeiros, que são ricos,
devem partilhar a riqueza do evangelho com aqueles que não o conhecem. Pois, se todos devem
partilhar suas riquezas, a primeira que deve ser compartilhada é a salvação. Assim se conclui que
Lucas aborda primeiramente a pobreza social, mas não negligencia a pobreza espiritual dos
povos.
3.3.1 Alguns trechos bíblicos que apresentam a opção preferencial pelos pobres
O evangelho de Lucas é o evangelho da alegria. O evangelista convida a seguir Jesus com prazer,
não com o medo. Desde o início do evangelho, fala-se da alegria, a começar por Maria: “alegra-te,
cheia de graça” (Lc 1,28). Jesus, antes mesmo de nascer, já irradia alegria desde o seio da mãe: “a
criança saltou de alegria no meu ventre” (Lc 1,44). “Não tenham medo! Eu anuncio para vocês a
Boa Notícia, que será uma grande alegria para todo o povo” (Lc 2,10). Lucas também fala da
alegria que Deus sente diante da conversão e da acolhida dos pecadores (cf. Lc 15,7.10.32). Isto é,
Lucas quer apresentar um Jesus que dá alegria e prazer. o seguimento de Jesus não deve ser
motivado pelo medo ou obrigação, mas porque o discípulo descobre a alegria de seguir Jesus e
servir à construção do Reino.
Uma das características marcantes na obra de Lucas é a presença do Espírito Santo. Tanto o
Evangelho quanto os Atos dos Apóstolos estão repletos de notícias sobre sua ação. No início do
Evangelho, a presença do Espírito Santo é intensa, podendo ser observada no nascimento de João
Batista, de Jesus, em Simeão, Ana. Observa-se a sua presença no batismo de Jesus e na sua oração
no deserto. A partir do anúncio da missão de Jesus na sinagoga de Nazaré, Lucas não fala mais
sobre a presença do Espírito Santo, mas ela fica subentendida. No final do evangelho, Lucas o
menciona novamente como promessa aos discípulos. Vislumbrando a segunda parte de sua obra,
os Atos dos Apóstolos, o Espírito é visto em todas as ações da comunidade cristã. Para Lucas, o
Espírito de Deus é aquele que conduz e dá a característica profética a Jesus e aos seus discípulos.
Segundo Fabris (2006), o evangelho de Lucas pode ser dividido em cinco unidades maiores.
Como se trata de um evangelho sinótico, é possível observar os mesmos ordenamentos dos fatos
já estudados em Mateus e Marcos, partindo do ministério de Jesus que se inicia na Galileia e se
57
encerrando em Jerusalém. Apesar do mesmo ordenamento dos fatos, o caminho feito por Lucas
segue um roteiro próprio onde, no centro, aparecerão as parábolas da misericórdia. Em Marcos,
o centro da mensagem era a proclamação da fé messiânica de Pedro e, em Mateus, as parábolas
do Reino.
No início de seu evangelho, Lucas apresenta uma breve introdução acerca da infância de Jesus.
Por meio dela, o evangelista faz a inserção de Jesus dentro do universo judaico para indicar que a
salvação veio de Israel e se estenderá por todas as nações. Neste pequeno trecho se encontra
uma profissão de fé no Jesus Messias, Filho de Deus, salvador da humanidade. Jesus é salvador e
Senhor da humanidade (cf. Lc 2,11). Esta proclamação de fé se enquadra em pequenas cenas em
que vemos o cântico de Zacarias, Isabel, Simeão, Ana, os Anjos e muitos outros eventos.
Lucas seguirá a mesma sequência inicial de Mateus e Marcos ilustrando João Batista, o batismo e
as tentações de Jesus no deserto. No entanto, ele dá a essa sequência um enfoque histórico-
teológico que lhe é próprio. Lucas tem o devido cuidado de desenvolver a narrativa a tal ponto
que, quando Jesus aparece em cena na sua missão, desaparece aos poucos a figura do Batista.
Esse movimento é uma clara alusão para a passagem de bastão do Antigo para o Novo
Testamento. Em Nazaré, com um discurso inaugural (cf. Lc 4,18-21), Jesus anuncia a todos o
cumprimento da salvação e se autoproclama como operador dela. A salvação, porém, não é
apenas para os que se encontram em Israel, mas vai ao encontro do estrangeiro, do excluído. A
meta da sua caminhada é a cidade de Jerusalém, lugar do seu último e decisivo combate (cf.
Lc22,3.53). Na Galileia, ele também indicará o sermão da planície36, novo projeto de vida para os
discípulos. “Jesus é o messias que deve cumprir o “êxodo” em Jerusalém (9,31), a passagem à
glória por meio do sofrimento e da ignomínia da cruz. A partir deste momento, inicia-se a grande
viagem que levará Jesus ao centro da história salvífica: Jerusalém” (FABRIS, 2006, p.15).
Segundo Fabris, Lucas aproveitou o roteiro para a caminhada para Jerusalém de Marcos e da
tradição oral das primeiras comunidades. Ele não faz, porém, uma linha geográfica tão delineada
como a de Marcos. Antes seguir pelo caminho, Jesus dá instrução aos seus discípulos da condição
para segui-lo (cf. Lc 9,51 – 10,42) e muitas outras coisas. No caminho, muitos se propõe a seguir
Jesus. Uns efetivam esse desejo, renunciando a tudo, outros não. Por isso, Lucas cria uma
36No evangelho de Mateus, este sermão equivale ao sermão da Montanha. Algumas de suas invocações são
semelhantes, no entanto, Lucas dá outro enfoque teológico.
58
moldura teológica própria. Jesus se encontra a caminho (cf. Lc 9,57; 10,38) e muita gente o segue
(cf. Lc 14,25). Nesta viagem, Jesus se dirige para aquela cidade que era símbolo da expectativa de
todo povo de Deus e onde se depositava todas as esperanças, Jerusalém. Lá, Ele cumpre todas as
profecias feitas pelos antepassados. É nesta terceira unidade que se encontra o coração da sua
mensagem, que são as parábolas da misericórdia (14 - 15). Nelas, os leitores de seu evangelho
podem intuir o etilo inovador da ação de Deus, que não veio para julgar e condenar, mas salvar.
Todos aqueles que acompanharam Jesus durante seu percurso até Jerusalém podem descobrir
que esta última visita é uma chance oferecida por Deus ao seu povo, a fim de que aceitassem a
salvação (cf. Lc 19,41.44). Mas Cristo se lamenta por não ser aceito pelos seus, chorando sobre a
sua cidade. Segundo Fabris (2006), percebe-se, a partir de então, uma ruptura com tudo o que
era antigo, de tal modo, que o projeto de Deus passará a continuar em um novo povo. Por isso,
toda a perspectiva desse momento prepara a instituição da nova aliança feita na eucaristia, que
abrirá a última seção do evangelho.
Nesta parte final, Lucas amplia a narração da instituição eucarística de tal modo em relação aos
demais evangelistas, que colocada lado a lado com a ceia pascal antiga, ela pareça realmente
como a Páscoa do novo povo de Deus (cf. Lc 22,14-20). Seguindo o esboço de uma despedida, a
última ceia serve de norma para a comunidade e para os discípulos de Jesus (cf. Lc 22,24-38). Na
ceia, a comunidade aprende a viver a comunhão com Deus e os apóstolos e a partilha. Jesus é o
profeta rejeitado autoridades judaicas e romanas, sendo Ele mesmo modelo de fidelidade e
bondade para seu povo, pois é acolhedor e salvador dos pecadores. O evento da ressurreição de
Jesus omitirá que sua volta à Galileia justamente para indicar que Jerusalém é o centro da
história salvífica para todo o Israel e de onde brotará a salvação universal. Até pelo contrário,
quando ressuscitado, Jesus segue dois discípulos, motivando-os a voltar para Jerusalém. O
destaque dado à cidade de Jerusalém tem a intenção de apresentar os eventos salvíficos lá
ocorridos para que, a partir de lá, a comunidade continue a anunciar o evangelho. Assim, o
evangelista introduz a passagem para a segunda parte de sua obra, os Atos dos Apóstolos, que
desenrolará o anúncio efetuado pela Igreja. A aparição de Jesus ressuscitado converge para uma
cena-mãe, segundo Fabris (2006), onde Jesus transmite o encargo da evangelização aos seus
apóstolos e a todos os batizados (cf. Lc 24,44-49).
3.8 Concluindo
Esta temática do universalismo salvífico se inicia no evangelho, mas se concluirá na vida eclesial
apresentada em Atos dos Apóstolos. No início da obra Lucas apresenta Jesus teologicamente e os
59
adjetivos como os de Senhor, profeta e salvador da humanidade. Não alguém fechado a limites e
fronteiras, mas como um salvador universal que, partindo de Jerusalém, lugar central da
expectativa messiânica, envia os seus discípulos por todo mundo a anunciar o evangelho da
salvação.
Segundo Fabris (2006), no episódio da visita a Isabel ocorre uma ampliação e confirmação no
anúncio do anjo a Maria, ocorrido na cena precedente (cf. Lc 1,26-38). Nesse momento, Lucas
quer apresentar duas figuras importantíssimas anunciadas no Antigo Testamento: João e Jesus.
No encontro entre ambos, que ainda estavam no ventre de suas mães, vemos um dos primeiros
atos lucanos de profissão de fé na encarnação. No ventre, o precursor saúda Jesus, dando-lhe as
boas-vindas.
A saudação feita por Isabel a Maria não é uma novidade bíblica, mas remonta a exclamação do rei
Davi quando recebeu a arca da aliança: “como poderá vir a mim a arca do Senhor?” (2Sm 6,9).
Usando-se da mesma expressão de Davi, Lucas apresenta Maria como a nova arca da aliança,
porque traz consigo a presença de Deus em Jesus, iniciador da Nova Aliança. Por isso, Maria é
reconhecida como mulher bendita entre todas. O Antigo (João) se depara com o Novo (Jesus) e se
estremece diante dele. Lucas atribui um significado profundo à maternidade de Maria, pois ela “é
aquela que acreditou na eficácia da palavra de Deus” (FABRIS, 2006, p.34).
Após esse encontro, Lucas nos apresenta o seu primeiro comentário lírico, o Magnificat. Maria
entoa um canto de louvor e agradecimento a Deus, onde, em três momentos distintos e
interligados, são evocados todos os eventos da história da salvação humana. Esta história é
apresentada numa nova perspectiva de seu cumprimento messiânico, não mais como mera
esperança. Primeiramente, Lucas exalta o diálogo entre a serva humilde e a ação eficaz daquele
que é santo e fiel (cf. Lc1,48-50). Em seguida, repassa por toda a história da realidade humana,
evocando e louvando pela promessa futura de um mundo melhor, que já começa a se cumprir. Na
evocação deste mundo novo, os poderosos que sempre bem-vistos pelos homens, começam a ser
questionados em suas ações soberbas. Essa promessa não é apenas uma ideologia ou utopia, mas
se fundamenta na fidelidade de Deus, que nunca volta atrás em sua palavra. Nesse sentido,
segundo Fabris (2006), o magnificat pode expressar bem a oração dos pobres que é anuncia em
Maria de Nazaré, serva fiel do Senhor.
60
Eis a parábola mais importante entre as “parábolas da misericórdia”. A parábola do filho pródigo
é o ponto alto deste corpo, fechando com maestria a temática da misericórdia de Deus. No fundo,
seu ponto central é o pai, pois é ele que dará a unidade entre as duas cenas que podemos
observar na figura dos dois irmãos: o filho mais jovem (15,11-24) e o filho mais velho (15,25-
32).
A mensagem principal está contida no v. 24: “Este meu filho estava morto e tornou a viver, estava
perdido e foi encontrado”. Assim, o evangelista alerta seus leitores para o valor central do amor e
da bondade divina, que está sempre disposta a transformar no âmago as expectativas e
esquemas humanos.
Com a situação do filho mais novo, longe do pai, Lucas evoca o máximo da miséria humana que
se lembra com saudade da casa paterna. Ele não quer, com o arrependimento, mostrar um
modelo de conversão, pois o filho ainda não mudou de vida. Na verdade, só decidiu retornar
porque passa fome e nem o alimento impuro lhe permitiram. Ele se recorda que encontra
alimento na casa de seu pai, onde nem os servos têm fome, quanto mais os filhos. Seu retorno é
por interesse. Assim, Lucas aponta de forma decisiva para o pai, que sempre aguarda o retorno
de seu filho. No fundo, a iniciativa é sempre do pai.
Como pano de fundo a essa cena, há um grande contraste na relação entre o pai e o filho maior.
Aqui, o pai manifesta o mesmo amor que não se ofende ou reage negativamente à raiva, ao ciúme
e ao menosprezo do filho mais velho. Ao dizer “este teu filho”, o maior comete um fratricídio e,
por isso, também mata o seu pai. Mas o pai quer que ambos, o mais novo e o mais velho, o que o
abandona e o que se revolta, participem da mesma alegria em sua casa. Esta obra prima sela com
maestria as parábolas precedentes. Ela quer ser um convite à descoberta da imagem do pai de
amor que acolhe com uma bondade que abraça toda e qualquer realidade de limite humano.
Provavelmente Lucas tenha escrito esta parábola para fazer alusão aos judeus e aos pagãos, para
reconciliar as duas origens culturais presentes em sua comunidade.
Aqui, segundo Fabris (2006), Lucas exerce um fascínio impressionante mesmo entre os
estudiosos ateus. Com certeza, isso revela a sua habilidade em compor uma história ao mesmo
tempo catequética e capaz de provocar um sentimento de expectativa nos leitores, que
esperavam que os discípulos reconhecessem o ressuscitado no caminho. Desde o início da
perícope, os leitores sabem que o estrangeiro é o Cristo ressuscitado. No entanto, fica-nos claro
que os discípulos que caminhavam para Emaús não o sabiam, pois os seus olhos estão vendados
e o rosto sombrio. Provavelmente Lucas foi buscar este arranjo nas catequeses das comunidades
de seu tempo, a fim de revelar a identidade salvífica de Cristo e a alegria que sente aqueles que
encontram o ressuscitado na comunidade.
Com este relato, Lucas quer nos dizer que o fato ocorrido em Jerusalém, do Cristo na cruz, é um
escândalo para qualquer pessoa (Lc 24,18-20). Assim, a pergunta dos discípulos representava a
61
questão que todos os iniciantes na fé se faziam: “Tu és o único entre os peregrinos de Jerusalém
que não sabe o que aconteceu nestes dias?” (Lc 24,18). Aqui fica patente o medo que eles sentiam
do fracasso do Messias. Aquele profeta poderoso em obras e em sinais, que veio cumprir as
profecias antigas teria falhado? Sua esperança foi crucificada? No entanto, eles estavam
enganados na interpretação das escrituras e o Messias que eles esperavam não era ainda o
verdadeiro. Eles nutriam a visão popular e triunfalista do messias. Por isso, Jesus lhes devolve o
questionamento: “Não era preciso que o messias sofresse estas coisas para poder assim entrar na
sua glória?” (Lc 24,26). A partir de então, Jesus faz uma catequese, passando por Moisés e todos
os profetas.
Por fim, fazendo que iria passar adiante, ao se despedir deles, Jesus foi convidado por eles a
permanecer. Realmente, eles ainda estavam nas trevas e Jesus já se apresentava novamente
como única luz que lhes fazia arder o coração, ainda que não o tivesse reconhecido. Quando
Cristo pronuncia as palavras da bênção sobre pão e o parte entre eles, então eles o reconhecem.
Ao ser reconhecido Jesus desaparece de suas vistas. Nessa perspectiva, Lucas mostra que os
discípulos só serão capazes de reconhecer o ressuscitado após uma longa caminhada com a
palavra de Deus, que manifesta toda a história da salvação humana. Esse encontro com a palavra
encontra o seu ponto mais alto no partir o pão, que manifesta a mais profunda comunhão
comunitária. No entanto, esta alegria não para na mesa, eles correm ao encontro dos apóstolos,
vão reencontrar os seus, de onde eles tinham se dispersado. Lá, são confirmados na fé e voltam a
fazer parte do local central da história da salvação, que é Jerusalém.
5 RESUMINDO
1 INTRODUÇÃO
Segundo Mazzarollo (1996), ao escrever Atos dos Apóstolos, segunda parte de sua obra, Lucas
almejou colocar seus leitores em contato com os primeiros anos de formação da Igreja. “Se o
evangelho narra a vida e a atuação de Jesus, os Atos descrevem quilo que aconteceu depois: o
anúncio da Palavra por seus discípulos e a vida das comunidades fundadas por eles; são na
realidade a história do anúncio cristão no início da Igreja” (MAZZAROLLO, 1996, p.7)
Por isso, o livro desperta tanto fascínio e interesse em vários seguimentos da comunidade cristã.
Ele relata a maneira como os primeiros cristãos receberam o anúncio da salvação bem como a
forma em que saíram em missão, como decorrência desse caminho. Enfim, Lucas detalha como a
Igreja primitiva foi se firmando no decorrer da história, a partir do evento fundante de
Pentecostes, dilatando completamente as suas fronteiras.
Segundo Richard (2001), Lucas compôs os Atos dos Apóstolos entre os anos 80-90 d.C.. Ou seja,
sua redação ocorreu no mesmo período em que foi escrito o seu evangelho. Diversos teólogos
concordam que, no princípio, se tratava de uma mesma obra. Posteriormente, por questões
pedagógicas, a obra foi dividida em duas partes. Nota-se na obra, diversos pontos teológicos e
históricos comuns entre Evangelho e Atos.
Partindo da conclusão de que o autor desta obra é o mesmo do terceiro evangelho, o evangelista
Lucas, dispensaremos a sua apresentação. Segundo Richard (2001), é provável que este livro
tenha sido escrito em Éfeso, importante província do Império Romano.
Quanto ao destinatário, podemos observar que se trata do mesmo contido no terceiro evangelho,
a saber, Teófilo. Porém, como naquele caso, fica muito difícil descobrir se trata de um amigo de
Lucas ou algum conhecido, ou tivesse a intenção de ser mais amplo e atingir a todos os homens
de boa vontade que se julgassem serem amigos de Deus.
Como tem o mesmo autor e, possivelmente, tratava-se da mesma obra, a teologia desenvolvida
nos Atos é, basicamente, a mesma já apresentada no evangelho. Apesar disso, há um destaque
importante que se deve mencionar: no evangelho, Cristo era o propagador do Reino; nos Atos, a
Igreja o será sob o impulso do Espírito Santo. Segundo Mazzarollo (1996), o evangelho narra a
atuação de Jesus a caminho de Jerusalém, centro histórico-salvífico. O Atos dos Apóstolos narra a
atuação missionária dos primeiros cristãos, que partem de Jerusalém, impulsionados pelo
Espírito, a todo mundo. Essa mudança de perspectiva ocorre de forma muito gradativa e, às
64
duras penas, os primeiros cristãos precisaram discernir qual a melhor forma de anunciar a
palavra de Deus.
Nos primeiros anos, a comunidade Cristã não tinha uma estrutura muito desenvolvida do
cristianismo. Por isso, herdou muitos dos costumes do judaísmo, entre eles, o da circuncisão. À
medida que outros grupos e culturas entravam em contato com o evangelho, esse modelo
precisou ser repensado, já que era imprescindível evangelizar e acolher novas culturas. Desta
maneira, a primeira comunidade precisa refletir a respeito da necessidade de ingressar ou não
nos grupos judaicos para depois tornar-se cristão. É no caminho que descobriram que o
evangelho deveria ser anunciado a todos os povos, eliminando de sua cultura apenas aquilo que
não fosse compatível com a mensagem de Jesus.
Tanto no evangelho quanto no Atos, Lucas enfatiza a ação do Espírito Santo como impulsionador
e condutor da ação de Cristo e da Igreja. No evangelho, observa-se sua ação em diversos
momentos, sobretudo até o início do ministério público de Jesus: na anunciação, no batismo, no
deserto, na sinagoga de Nazaré etc. No final, Ele promete o Espírito aos seus discípulos, pedindo
que não saiam de Jerusalém. No Atos dos Apóstolos, Lucas enfatiza essa promessa desde o início
e mostra como o Espírito desceu sobre os primeiros cristãos e centenas de pessoas ali presentes,
no Templo de Jerusalém. A missão do Espírito, portanto, será a dilatação da Igreja para que o
Reino de Deus e suas verdades sejam ouvidos nos mais longínquos lugares do mundo.
O livro vai mostrando diversas etapas nas quais vai se revelando, passo a passo, como os
primeiros cristãos foram abandonando suas tradições judaicas em benefício de inúmeros povos
serem acolhidos à fé. Os passos dados para essa clareza foram:
Para Lucas, o verdadeiro sentido da história universal é a salvação divina operada em Jesus
Cristo. Por isso, diz-se que sua mensagem é soteriológica. A partir dessa mensagem, o evangelista
relê a tradição veterotestamentária que, onde se promete a visita do alto. Essa visita foi
preparada por João Batista, narrada em todo o evangelho da infância (cf. Lc 1 – 2), especialmente
esclarecida em Lucas 1,78, que diz: “Graças ao misericordioso coração do nosso Deus, o sol que
nasce do alto nos visitará”. Essa mensagem precisa chegar a todos os povos da terra e, para isso,
contará com o trabalho dos discípulos (cf. At 1,8). Lucas apresenta um grande passo para a
efetivação desse processo com a narração da evangelização de Roma, centro referencial de poder
e cultura em sua época (cf. At 28,11-31).
Segundo Mazzarollo (1996), os primeiros cristãos não tinham uma organização sistemática de
suas comunidades. Por isso, ainda eram uma pequena seita do judaísmo, o grupo dos que
acolhiam Jesus como Messias enviado. O livro de Atos tenta responder a uma pergunta relevante
66
para a sua época: como manter-se fiel à palavra de Deus e aceitar as diferentes culturas que a
acolhiam em outras regiões simultaneamente? Seria preciso romper com o judaísmo?
Paulatinamente, vai acontecendo uma ruptura do absolutismo da cultura semítica para o
acolhimento das potencialidades positivas de outras culturas. A obra apresenta os seguintes
passos para a multiplicidade dessa aceitação:
SAMARITANOS: A palavra de Deus rompe barreiras entre judeus e samaritanos (cf. At 8,5-25);
BRANCOS E NEGROS: O batismo do homem etíope e a pregação de Filipe (cf. At 8,26-40)
NÃO-JUDEUS: O batismo de Cornélio, sua família e seus servos (cf. At 10,1-47; 15,26-40)
SIMPLES E INTELECTUAIS: O rompimento da barreira intelectual (cf. At 17,19-34)
Apesar do belo caminho de inculturação, o anúncio do evangelho nos territórios considerados
judaicos, ele não se resumia apenas na aceitação. Era preciso romper com costumes contrários
aos princípios do evangelho. Por isso, Lucas também apresenta elementos culturais que eram
rechaçados pela primeira comunidade cristã, vejamos:
DEIFICAÇÃO: A aclamação da pessoa como deuses e deusas (cf. At 14,11-13);
EXPLORAÇÃO: Exploração dos médiuns (cf. At 16,16-18);
SIMONIA: imposição de interesses comerciais sobre os religiosos (19,23-40).
Lucas apresenta desde o evangelho a importância de anunciar a palavra a todos os povos. Para
isso, defende uma Igreja com capacidade missionária, capaz de chegar às regiões mais distantes
do império. Não por acaso, ele nutre uma visão positiva do Império Romano, que possuía uma
organização que facilitava a organização desse processo. E para defender a natureza missionária
da Igreja, o autor apresenta Paulo como apóstolo modelo e símbolo da evangelização.
Dentre as características que se pode destacar do apóstolo Paulo, vê-se a sua constante
proximidade com Pedro (cf. At 9,26-29; 13,3) como gesto de fidelidade e comunhão com a Igreja.
Ademais, Paulo procura tirar o sustento de seu próprio trabalho para não se tornar pesado às
comunidades nascentes e, para isso, fazia valer de sua profissão de artesão de tendas (cf. At
18,3). Por fim, apresenta-o como verdadeiro evangelizador, pastor e anunciador da palavra de
Deus, fazendo-o gratuitamente (cf. At 20,17-38).
O Atos dos Apóstolos, como já vimos, foi redigido por volta do ano 80 d.C. Assim, quando o autor
o escreve, toda a história narrada tinha se passado. Apesar disso, ele se utiliza de diversas
maneiras uma linguagem que anunciava como se estivesse vivendo o presente dos fatos, fazendo
que as previsões posteriores fossem anunciadas sob a perspectiva de futuro. A esse recurso
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literário, os biblistas chamam de prolepse elíptica37. O recurso de utilizar certos anúncios como
profecias serve para recordar aos leitores que todo o ocorrido seguiu os desígnios de Deus para a
comunidade. Por meio das prolepses, Lucas apresenta ideias claras, porém, é o leitor quem as
deve interpretar, já que o sentido do texto permanece intencionalmente ambíguo. Se, por um
lado, a interpretação é pessoal; por outro, ela deve seguir o contexto no qual ela está inserida na
redação. Se o leitor abordar o texto sem conhecimento prévio da história da comunidade, poderá
permanecer um mistério para ele o sentido do texto. Vejamos alguns modelos:
Lc 2,34-35: Alguém que ao mesmo tempo constrói e destrói
Lc 9,51: Este trecho fala da assunção [elevação, subida], porém, não fica claro se é em relação à
ascensão ou com relação à subida a Jerusalém para Paixão-morte-ressurreição
Lc 12,49: Este trecho também apresenta uma ambiguidade em relação ao “fogo
At 9,15-16: Paulo será um instrumento de poder e simultaneamente de fraqueza, sofrimento
At 13,2: Mostra a eleição de Paulo, Barnabé e Silas para subirem à Jerusalém
O relato está cheio de grandes sermões da revelam o caráter querigmático do anúncio nos
tempos apostólicos. Normalmente, esses sermões possuem uma introdução, que explica a
37 Por prolepse, entende-se previsão de algo ainda não conhecido ou acontecido; uma antevisão ou antecipação dos
fatos. Já o termo elíptico é retomado da geometria. Trata-se de uma curva simples e fechada em que as distâncias
entre os pontos ocupam a mesma distância. Assim, por prolepse elíptica entende-se a previsão de algo que já
conhecido pela comunidade e, portanto, não é uma adivinhação ou profecia. Trata-se, também, de uma espécie de
texto com duplo sentido, onde o leitor pode assumir a liberdade entre uma ou outra interpretação.
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circunstância que envolve a mensagem anunciada. Em seguida, apresenta-se uma parte central
que revela os desígnios salvíficos de Deus, que contém: a atividade evangelizadora de Jesus, a
paixão e a morte de Jesus, a ressurreição, a volta às escrituras veterotestamentárias que dão
sentido às profecias ditas pelos profetas. Por fim, o discurso se conclui com um convite à
conversão e à fé e a promessa do dom salvífico do perdão dos pecados.
Existe, no Atos dos Apóstolos, três pequenos trechos para abordar as relações nas primeiras
comunidades cristãs. Esses relatos são chamados de sumários, que se constitui em um resumo
dos fatos. Sua intenção é enumerar exemplos positivos e ideais para as comunidades cristãs de
todos os tempos. Na primeira metade do livro (At 1 – 15), encontram-se três sumários que
discursam sobre a vida em comunidade. O texto extraído de Atos 2,42-43 serve de base para os
demais (cf. At 1,12-14; 5,42). Por isso, será feira uma pequena análise de At 2,42-43:
Como se vê, Lucas apresenta claramente algumas qualidades que as primeiras comunidades
buscavam como ideal de vida. Os três pontos essenciais que caracterizavam a comunidade eram:
a comunhão nos ensinamentos dos apóstolos, a oração e a fração o pão e, a vida de comunhão
fraterna. Estas três características eram confirmadas pelos sinais e prodígios, como forma de
ratificar que Deus estava ao lado desse ideal de vida.
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Nessa unidade, Lucas sintetiza os efeitos da ressureição na vida das primeiras comunidades,
especialmente a apostólica. Os cinco primeiros versículos, que constituem o prólogo da obra,
foram acrescentados posteriormente para introduzir a segunda unidade da obra lucana, o Atos
dos Apóstolos, assim que foi desmembrada do evangelho. Se no prólogo do evangelho ocorre a
retomada do Antigo Testamento, no prólogo dos Atos dos Apóstolos podemos observar um
resumo do que ocorreu no evangelho.
No versículo 1,5, Lucas apresenta a promessa do Espírito Santo em forma de prolepse elíptica.
Por meio desse recurso literário, Lucas faz o leitor lançar um olhar para o futuro a partir de sua
interpretação pessoal. Pela introdução se tem a certeza de que o Espírito de Deus descerá sobre
os discípulos e lhes dará força para a missão.
Chegado ao relato da ascensão, a promessa “da força do alto” fica ainda mais evidente. No
versículo 6, Lucas mostra que os discípulos ainda não compreenderam a missão do Messias. Essa
incompreensão se expressa na seguinte pergunta: “Senhor é agora o tempo que irás restaurar a
70
realeza em Israel?” (At 1,6). Nesta pergunta, os seguidores de Jesus evidenciam que ainda o
compreendem como o sucessor de Davi (cf. Is 11,1-538), ou seja, como uma solução nacionalista
para a opressão sofrida do Império Romano. Segundo Richard (1999), Jesus toma clara distância
deste projeto teocrático-político que o associava mesclava a promessa do Reino de Deus com as
expectativas de Israel. Assim, Ele mostra aos discípulos que o sujeito da ação no mundo não seria
mais Ele, mas o Espírito Santo.
Na ascensão, evidencia-se que a Igreja não deve esperar do céu a solução para todos os seus
problemas. É preciso que cada cristão se encoraje na construção de um novo mundo. Não só
olhar para cima, é preciso evangelizar todos os povos, preparando a nova vinda de Jesus (cf At
1,10s). Por isso, os cristãos também eram reconhecidos, por Lucas, como aqueles que pertencem
ao caminho. Esse anúncio da boa nova precisa ser impulsionado pela alegria do Ressuscitado e
pela força do Espírito. Cristo e o Espírito é que animarão a comunidade no seu caminho.
Segundo Richard (1999), em Atos 1,13 pode-se notar uma primeira característica essencial da
comunidade cristã: ela não se reúne mais no templo, mas nas casas. Dessa mudança de ambiente
é que vai consolidar o termo grego ekklesia (εκκλησία), que significa assembleia convocada por
Deus. Ali, naquele cenáculo, lugar da última ceia, a comunidade está reunida com os irmãos do
Senhor39, que não são mais os seus familiares, mas todos os que aderem à fé.
38 Este trecho do profeta Isaías 11,1-5 afirma: “Do tronco de Jessé sairá um ramo, um broto nascerá de suas raízes.
Sobre ele pousará o espírito de Javé: espírito de sabedoria e inteligência, espírito de conselho e fortaleza, espírito de
conhecimento e temor de Javé. A sua inspiração estará no temor de Javé. Ele não julgará pelas aparências, nem dará
a sentença só por ouvir. Ele julgará os fracos com justiça, dará sentenças retas aos pobres da terra. Ele ferirá o
violento com o cetro de sua boca, e matará o ímpio com o sopro de seus lábios. A justiça é a correia de sua cintura, é
a fidelidade que lhe aperta os rins.”
39 Segundo Mazzarollo (1996), o termo grego adelfos, traduzido por irmãos, compreende uma grande gama de
relações parentescos ou mesmo a pertença a um clã. A partir da fala de Jesus, em Marcos 6,3, o termo passa a
designar os membros das comunidades cristãs.
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40A tradição afirma que este relato narra o surgimento da diaconia católica. O termo Diakonos é de origem grega e
era utilizado para designar pessoas que ocupavam o posto de servidor, auxiliar e/ou ajudante. Todos os primeiros
sete servidores eram helenistas, ou seja, homens de cultura grega. Eram eles: Estêvão, homem cheio de fé e do
Espírito Santo; e Filipe, Prócoro, Nicanor, Timon, Pármenas, e Nicolau de Antioquia, um pagão que seguia a religião
dos judeus.
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apóstolos. A eleição dos sete helenistas ou diáconos41 surge em meio a primeira crise eclesial,
ainda nas primeiras décadas cristãs. Uma pequena assembleia surge como forma de resolução,
mas é o Espírito Santo que conduz a Pedro. O gesto de imposição das mãos sobre os helenistas
deixa claro que estes receberam uma missão de Deus e da Igreja. Esse acontecimento abre as
portas para o acolhimento e a oficialização das comunidades helenistas.
Com a eleição dos sete helenistas,
Lucas nos insere definitivamente à
expansão da Igreja. À medida que
o Espírito Santo atuando nos
acontecimentos da história, a
Igreja se abre às novas realidades
e demandas de evangelização. Essa
aceitação, porém, não foi tão
simples e fácil. Foi preciso superar
um preconceito que já durava
muitos séculos entre os hebreus
com relação aos helenistas. Com
esse pano de fundo, o autor mostra nas entrelinhas que o movimento do Espírito e a dimensão
missionária da Igreja devem ser colocados acima de todas as diferenças históricas. Por isso,
Lucas fala muitas vezes dos helenistas como homens cheios do Espírito Santo (cf. At
6,3.5.8.10.55). Com a escolha dos sete fica superada a discriminação institucionalizada,
garantindo também a missão em favor dos samaritanos e dos gentios.
Lucas lança um olhar completamente positivo sobre a comunidade dos helenistas de Antioquia.
Por isso, destaca sobremaneira a atuação de Estêvão. EM seguida, também apresenta o seu
martírio como um ato injusto do Sinédrio. Antes de morrer, Lucas relata que os membros do
Sinédrio ouviram uma forte denúncia da parte de Estêvão (cf. Atos 7,1-54), por isso, o
condenaram à morte. Antes de morrer, no entanto, o helenista agiu como Jesus, rezando pelos
seus perseguidores e o seu rosto se transfigurou como o de um anjo (cf. Atos 6,15; 7,60). Este
acontecimento indica dentre todos os povos Deus é capaz de suscitar pessoas que imitem os
mesmos gestos do Senhor em suas vidas. Assim, inicia-se a defesa dos cristãos helenistas.
Não é por acaso que o autor do livro insere a figura de Paulo exatamente neste momento, pois ele
será o grande defensor da autonomia e da prática cristã dessas comunidades (cf. At 7,58). Na
morte de Estêvão, ele era um jovem e empenhado judeu. A vocação de Paulo (cf. At 9,1-18; 22,5-
16; 26,9-18) é fundamental para a consolidação dos cristãos de origem grega e, posteriormente,
41 Segundo Mazzarollo (1996), em Atos 6,1-7, encontramos expressões como “servir as mesas” e “serviço da
palavra”. Servir, em grego, é διακονέιν; e, serviço é διακονία. Costuma-se, por isso, relacionar esse texto com o
surgimento do diaconato, primeiro grau da ordem sacerdotal. Mas isso é uma interpretação ulterior. Não se pode
afirmar com precisão que Estêvão e os demais helenistas tenham sido ordenados diáconos. Inclusive, como o
próprio texto dá a entender, a diaconia da palavra era conferia aos doze, ainda não era compartilhada. Apesar disso,
o texto exprime relativamente bem a missão dos diáconos, ainda para os dias atuais, e serve como inspiração para
aqueles que aspiram a essa ordem sagrada.
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42 O termo inculturação significa assumir, para si, todos os valores e crenças positivos de outras culturas. Entende-se
que a revelação não é cultural e, por isso, pode ser adaptada nos costumes e ritos de cada povo. Apesar disso,
elimina-se tudo o que não se caracteriza como elemento positivo, ou seja, essencialmente contrário à mensagem do
evangelho (ex.: comércio do sagrado, pena de morte, poligamia e outras coisas).
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Nesta última parte, o Atos dos Apóstolos apresentará o caminho que a expansão da Igreja
percorreu, desde a evangelização da Ásia Menor, Grécia e Roma. Destaca-se o início de um novo
período para a Igreja: a Igreja Missionária. Quando chega a Roma, inicia-se o terceiro momento,
da Igreja universal. Pouco a pouco Lucas apresenta o processo de universalização da Igreja, que
não sonhava em sair de Jerusalém nos primeiros versículos, mas que chega à Roma, por ação do
Espírito Santo.
43Os judaizantes aparecem no Novo Testamento como pessoas que procuravam incorporar no Evangelho certas
exigências da lei judaica. Eles eram cristãos de origem judaica, geralmente, provenientes de Jerusalém. Esse grupo
passou a gerar problemas quando ao invés de cultivarem eles mesmos os hábitos judaicos, começaram a influenciar
outras pessoas dentro das igrejas cristãs a agirem como eles, impondo aos demais uma discriminação.
44Dentro do discurso de Tiago, destaca-se: “... julgo que não se devam molestar aqueles que, dentre os gentios, se
convertam a Deus” (At 15,19).
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Nesse processo, Lucas destacará as ações do apóstolo Paulo, que realizou muitas viagens para a
evangelização dos povos. Em todas as cidades ele ia primeiro às sinagogas, mas sempre se
esforçava para aprender e a evangelizar todas as culturas. Assim, esta última sessão da obra
costuma ser chama pelos biblistas de Atos de Paulo, já que destacará as viagens missionárias que
este fará até o fim de seu ministério após a Assembleia de Jerusalém.
De início, Paulo e Barnabé saem para visitar as comunidades que já haviam sido fundadas antes
da Assembleia de Jerusalém com a finalidade de confirmá-las na fé (cf. At 15,36 – 18,22). Depois,
funda algumas novas comunidades na Ásia Menor e na Macedônia, além de regiões próximas à
Israel (cf. At 18,23 – 21,14). A cada viagem o apóstolo somava mais cidades a serem visitadas,
pois almejava confirmar na fé as que já foram evangelizadas e evangelizar novos ambientes. A
última viagem, enfim, ele conseguiu apelando ao juízo do imperador, pois era cidadão romano.
Ao narrar todos os acontecimentos, Lucas claramente intenciona a confirmação da sua
mensagem: o universalismo salvífico. A cada povo evangelizado se confirmava que a decisão da
Igreja, de acolher os não judeus, foi a mais acertada. Em suas visitas, faltaram desafios, mas Lucas
deixa evidente que Deus sempre os confirmava na sua pregação por meio de sinais miraculosos,
como no caso de Trôade (cf. At 20,7-12).
Lucas conclui o Atos dos Apóstolos com uma expressão de admiração saída da boca do apóstolo
Paulo, que disse: “Ficai, pois, sabendo que aos gentios é enviada agora esta salvação de Deus; e eles
a ouvirão” (cf. At 28,28). Assim, a chave histórica do autor mostra que nada impedirá a ação do
Espírito e a sua missão: a dilatação do reinado de Deus. Deste modo, Lucas conclui sua obra
dizendo que com toda liberdade o evangelho era anunciado, sem restrições a todos os povos.
Esta foi a sua intenção desde o início da exposição do evangelho, primeira parte de sua obra.
5 CONCLUINDO
Lucas convida o leitor de sua obra, o “excelentíssimo Teófilo”, a permitir a ação de Deus na
condução de seu trabalho missionário. A primazia é de Deus e ele deseja salvar todos os povos. A
comunidade missionária não deve por empecilhos para o anúncio da fé, as deixar-se mover pelo
Espírito para fazer a vontade de Deus.
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REFERÊNCIAS
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STRABELI, Mauro Aristides. Apostila: Evangelhos Sinóticos e João. Marília: Fajopa, 2011.
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ANOTAÇÕES
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