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Estudo Sobre a Palavra de Deus (Sinopse)

Comentário Bíblico
do
Novo Testamento
Atos dos Apóstolos

Autor
John Nelson Darby

Tradutor
Martins do Vale

Revisor
Josué da Silva Matos

2019
www.boasemente.com.br
www.palavrasdoevangelho.com

ATOS DOS APÓSTOLOS


INTRODUÇÃO

Os Atos dos Apóstolos dividem-se essencialmente em três


partes.
A primeira é formada pelo capítulo 1; a segunda vai desde o
capítulo 2 até ao fim do capítulo 12; e a terceira vai desde o capítulo
13 até ao fim.
Os capítulos 11 e 12 podem ser chamados capítulos de
transição sendo fundados no acontecimento relatado no capítulo 10.
O capítulo 1 apresenta-nos o que está relacionado com a
ressurreição do Senhor.
Os capítulos 2 a 12 apresentam-nos a maravilhosa obra do
Espírito Santo, de que Jerusalém e os Judeus são o centro, mas
que se estende pela livre ação do Espírito de Deus,
independentemente, mas não separada dos doze e de Jerusalém
como centro.
Os capítulos 13 e seguintes apresentam-nos a obra de Paulo,
tendo Antioquia como ponto de partida de uma missão mais distinta.
O capítulo 15 liga estas duas primeiras partes, para manter a
unidade no prosseguimento da obra.
Sem dúvida vemos também, na segunda parte, Gentios como
tal admitidos no meio dos discípulos, mas ligando-se à obra que se
fazia entre os Judeus. Mas estes rejeitaram o testemunho do
Espírito Santo a um Cristo glorificado, do mesmo modo como tinham
rejeitado o Filho de Deus na Sua humilhação, e Deus preparou uma
obra no exterior deles, na qual o apóstolo dos Gentios pôs bases
que anulam a distinção entre Judeus e Gentios, e os ligam uns aos
outros, como estando igualmente mortos nos seus delitos e pecados
— e a Cristo Cabeça do Seu corpo (a Igreja), no Céu (1).
Passemos agora ao estudo desses mesmos capítulos.

(1) É triste, mas instrutivo, ver, na última divisão deste livro,


como a energia espiritual de um apóstolo como Paulo acaba à
sombra de uma prisão, quanto à sua atividade exterior. Mas até
nisso podemos ver a sabedoria de Deus. O Romanismo que se
vangloria de ter sido fundado pelos apóstolos, nunca viu um
apóstolo em Roma, a não ser como prisioneiro! E segundo a
epístola aos Romanos, o Cristianismo já ali tinha sido implantado
muito antes dessa data!

CAPÍTULO 1

Este primeiro capítulo dá-nos a descrição do que concerne a


Jesus ressuscitado e aos atos dos apóstolos, antes da descida do
Espírito Santo. As comunicações do Senhor, que ali encontramos,
apresentam vários pontos muito interessantes.
Jesus, Homem ressuscitado, age e fala pelo Espírito Santo,
após a Sua ressurreição, como tinha feito antes — precioso penhor
da nossa própria posição, lembrando-nos que também nós teremos
o Espírito Santo após a nossa ressurreição, e que a sua energia,
não estando já ocupada a modelar e a mortificar a carne, poderá ser
consagrada inteiramente à alegria e à adoração eternas e ao serviço
que nos será confiado da parte de Deus. Em seguida, o Senhor
ressuscitado dá aos Seus discípulos mandamentos em relação com
a nova posição que eles tomam. A sua vida e o seu serviço devem
ser formados e dirigidos tendo em vista a Sua ressurreição, verdade
esta acerca da qual eles tinham sobejas e irrecusáveis provas.
Estavam ainda na Terra, mas eram aqui peregrinos, tendo
sempre diante dos olhos da sua fé Aquele que, ressuscitado de
entre os mortos, os tinha precedido. Todavia, as suas relações com
Ele ainda se prendem à sua posição sobre a Terra. Jesus fala-lhes
do Reino e das coisas que ao Reino dizem respeito. Jerusalém era
o ponto de partida do ministério deles, mais ainda do que do Seu
próprio; porque Jesus tinha reunido os pobres do Rebanho ali, onde
Ele os tinha encontrado, particularmente na Galileia (1).

(1) A missão dada aos discípulos em Lucas 24:47-49 foi


cumprida em Atos. Os discursos de Pedro e de Paulo são disso a
prova, particularmente nos capítulos 2 e 13. Não é essa a missão
que nos aparece em Mateus 28:19, que se dirige apenas aos
Gentios. A missão do Evangelho de Lucas está em relação com a
subida do Senhor a Betânia; a de Mateus é dada por um Cristo
ressuscitado, na Galileia, onde Ele tinha encontrado “os pobres do
Rebanho” (confrontar com Mateus 4:15).

Mas agora a ressurreição, tendo feito de Cristo, em poder, o


vaso das santidades asseguradas de Davi, chama de novo Israel a
reconhecei como Príncipe e Salvador, Aquele que tinha rejeitado
como Messias, vindo à Terra. As epístolas de Pedro ligam-se a este
ponto de vista do Evangelho.
No entanto, para exercerem esse ministério, os discípulos
deviam esperar o cumprimento da promessa do Pai, a saber, o
Espírito Santo, do qual eles deviam ser batizados, segundo o
testemunho de João: Aquilo que o Senhor lhes assegurava devia
suceder dentro de poucos dias.
A vinda do Espírito Santo, assim prometida, fazia ao mesmo
tempo sair os discípulos do campo das ideias puramente temporais
dos Judeus: A promessa do Espírito Santo, da parte do Pai, era algo
muito diferente da restauração do Reino de Israel pelo poder de
Jeová, o Deus de julgamento.
Não competia aos discípulos conhecer o tempo e a época
dessa restauração cujo conhecimento o Pai guardava em Seu
poder; mas eles mesmos receberiam o poder do Espírito Santo, que
desceria sobre eles, e serviriam de testemunhas a Jesus como eles
O tinham conhecido e segundo a manifestação de Si (próprio, após
a Sua ressurreição) em Jerusalém, em toda a Judeia, na Samaria e
até aos confins da Terra, fazendo assim de Jerusalém o centro e o
ponto de partida da obra que eles deviam realizar, segundo a
missão expressa em Lucas 24:47.
Entretanto o seu testemunho era fundado sobre o fato de que
eles tinham visto o seu Senhor e Mestre arrebatado de entre eles e
recebido nas nuvens do céu que O esconderam aos seus olhos.
Olhavam ainda, de olhar fixo no alto, quando dois mensageiros do
Céu vêm anunciar-lhes que esse Jesus, que acabava de ser
elevado de entre ales ao Céu, havia do voltar da mesma maneira.
Portanto, tratava-se aqui da manifestação de Jesus no mundo,
abaixo do Céu. Jesus voltará a este mundo para ser visto pelos
homens.
Não temos aqui o arrebatamento da Igreja nem a associação
da Igreja com Ele durante a Sua ausência. Agora, com o
conhecimento de Jesus arrebatado do mundo e devendo voltar ao
mundo, termos e elementos de todo o ensinamento deles, os
apóstolos voltam a Jerusalém para esperarem o Espírito Santo, que
lhes tinha sido prometido.
Não se dirigem para a Galileia, pois vão ser testemunhas em
Jerusalém dos direitos celestes do Cristo rejeitado sobre a Terra por
Jerusalém e pelos Judeus (2).

(2) Neste sentido, não se trata de uma continuação da


missão de Cristo sobre a Terra. Esta é continuada pela missão que
nos aparece em Mateus 28 e tem o seu ponto de partida na Galileia.

Os versos que acabamos de examinar mostram claramente a


posição em que os discípulos estavam colocados e a missão que
lhes era confiada. No entanto, antes de receberem o Espírito Santo
para a cumprirem, outras circunstâncias características
encontravam o seu lugar no mesmo capítulo. Os discípulos,
conduzidos por Pedro nesse caminho, atuam segundo o
conhecimento da Escritura, antes de serem dotados do poder do
Alto. Assim, estas duas coisas são distintas: o conhecimento da
Escritura e o dom do poder do Alto.
Parece que, mesmo sem Pedro ter sido diretamente
conduzido pelo Espírito Santo, o Espírito pôs o Seu selo sobre o que
foi feito aqui segundo a Palavra do Antigo Testamento,
compreendida pelo apóstolo. Já vimos que Cristo, após a Sua
ressurreição, tinha aberto o entendimento de alguns discípulos para
compreenderam as Escrituras.
Não tendo ainda recebido o Espírito Santo, os apóstolos
atuam segundo um princípio judaico: Lançam sorte, isto é,
apresentam a sorte a Jeová, para que Ele decida. No entanto, a
sorte não era tudo, e não era tirada sem fazerem uma distinção. A
autoridade apostólica derivava do fato da nomeação dos após todos
ter sido feita pelo próprio Senhor Jesus; o conhecimento das
Escrituras fazia compreender aos discípulos reunidos o que devia
ter lugar. O alvo que o Senhor tinha marcado ao serviço deles
limitava a sua escolha ao pequenino círculo daqueles que possuíam
as quantidades necessárias para atingir esse alvo.
Deviam ser capazes, pelos seus antecedentes, assim, como
o tinha dito Jesus, de serem Suas testemunhas, porque tinham
estado com Ele desde o princípio, e deviam ser agora capazes de
também testemunhar que esse mesmo Jesus, que os Judeus tintam
rejeitado e crucificado, estava realmente bem ressuscitado de entre
os mortos. Aqui, antes do dom do Espírito Santo, a autoridade
apostólica é exercida em Jerusalém sobre o princípio judaico. Não
havia ali nem procura nem exercício do espírito humano.
A frase: “tome outro o seu encargo” guiava a conduta deles
quanto às qualificações necessárias. O que as decidia era a
necessidade de serem as testemunhas da carreira terrestre, depois
da ressurreição e da ascensão de Jesus.
A sorte de Jeová designava o indivíduo que devia tomar o
lugar de Judas. Dois homens, José, chamado Barsabás (que tinha
por cognome o Justo) e Matias são escolhidos como possuindo as
qualidades exigidas, e a sorte caiu sobre Matias, que tomou lugar
com os onze apóstolos (verso 26).
Mas ainda lhes faltava a todos o prometido poder do Espírito
Santo.

CAPÍTULO 2

A narrativa deste capítulo, em resposta ao espírito de


dependência que se manifestava nas orações comuns dos
discípulos, revela-nos o cumprimento da promessa que lhes tinha
sido feita.
O Espírito vem de cima, do Céu, no Seu próprio poder,
possuir e encher a habitação que Lhe tinha sido preparada.
Este fato, de suma importância quanto ao estado do homem
neste mundo, tem aqui um caráter muito simples, pois não se trata
das causas desse dom maravilhoso, nem da obra de que ele
depende, nem da glória com a qual ele está em relação e que
revelou, e da qual ele foi a garantia, tendo nós somente aqui o fato
do seu poder. Os discípulos estavam agora, por esse dom,
“revestidos do poder do Alto”.
Todavia, a forma como esse poder apareceu é característica:
Sobre Jesus, o Espírito Santo desceu sob a forma de uma pomba,
porque Jesus não devia fazer ouvir a Sua voz nas ruas, nem
esmagar a cana quebrada, nem apagar o morrão que fumega. Mas
aqui o que descia era o poder de Deus em testemunho, a Palavra
semelhante ao fogo consumidor, que julga o que encontra diante
dele.
Tão obstante, o poder do Espírito Santo era em graça, e a
Sua ação saía dos estreitos limites das ordenanças judaicas para
anunciar as maravilhas de Deus a toda a nação e língua sob o sol.
O Espírito é como um vento impetuoso do Céu que se manifesta
aos discípulos e vem colocar-se sobre eles sob a forma de línguas
de fogo. Esta maravilha atrai a multidão; e a realidade desta
operação divina é verificada pelo fato de pessoas oriundas de
muitos países diferentes, ouvirem, cada uma na língua do país de
onde tinham saído para virem a Jerusalém, esses pobres Galileus
anunciarem-lhes as maravilhosas obras de Deus (1).

(1) A ideia racionalista de que se tratava de uma espécie de


algaravia, produto dos seus cérebros excitados (precisamente o que
pensavam os assistentes judeus incrédulos), é simplesmente
absurda. Imagine-se Paulo dando graças a Deus por ininteligível
mais do que eles todos, e Deus dando um dom para interpretar essa
algaravia!

Os Judeus, não compreendendo o que os discípulos diziam


troçavam deles, e então Pedro, na língua dos seus compatriotas,
declarava-lhes, segundo as próprias profecias hebraicas, o
verdadeiro caráter do que estava a acontecer. O apóstolo, no seu
discurso, fundamenta-se na ressurreição de Jesus, predita pelo rei-
profeta, e na Sua exaltação à direita de Deus. Exaltado em cima, no
Céu, esse Jesus, que eles tinham crucificado, tinha recebido a
promessa do Pai e derramado o que produzia os efeitos que eles
ouviam e viam. Deviam, pois, saber que Deus tinha feito Senhor e
Cristo esse Jesus que eles tinham crucificado.
Podemos notar aqui o caráter desse testemunho: É
essencialmente o testemunho de Pedro. Não vai além de afirmar o
fato de que Aquele que tinha sido rejeitado, foi feito, no Céu, Senhor
e Cristo. Começa por Jesus, conhecido dos Judeus sobre a Terra, e
estabelece a verdade da Sua ressurreição e da Sua exaltação à
posição de Senhor — porque Deus assim O fez. Pedro nem mesmo
O proclama como sendo o Filho de Deus. E veremos que, se Pedro
o não faz nos Atos, Paulo, pelo contrário, faze-o desde o instante da
sua conversão. Pedro verifica o resultado, em poder, nesse
momento, e não fala do Reino. Somente recorda que o Espírito
Santo estava prometido para os últimos dias, e faz alusão ao terrível
dia do julgamento, que devia vir e que seria precedido de sinais e
prodígios pavorosos. Sem falar do cumprimento da promessa do
Reino, cuja época o Pai guardava para Si, Pedro põe o fato do dom
do Espírito Santo em relação com a responsabilidade de Israel, para
com quem Deus agia ainda em graça, anunciando-lhe um Cristo
glorificado e dando-lhe as provas da Sua gloria, tomada agora
sensível a todos pelo envio do Espírito Santo. É a presença do
Espírito Santo, segundo os Versos 26-27 do capítulo 15 de João.
No entanto o testemunho como um todo, é fundado sobre a
missão de Lucas 24, ao mesmo tempo que a executa.
Simplesmente em Lucas não temos nada do batismo. Veja-se
Lucas 24:47-49, ao qual esta passagem corresponde plenamente.
O testemunho era dirigido aos Judeus, porém, não se limitava
a eles (2) e chamava à separação do conselho de um povo que
corria apressadamente para o julgamento: “Salvai-vos desta
geração perversa”. Esta separação fundava-se sobre uma obra real
e moral: “Arrependei-vos”.

(2) O testemunho é prestado em termos tais que, aplicando-


se inteiramente aos Judeus de Jerusalém e aos da Dispersão, abre,
entretanto as portas aos Gentios, segundo a soberania de Deus. “A
todos aqueles que estivessem longe”, diz o apóstolo, “enquanto o
Senhor, nosso Deus, os chamará a Si”. Deus é sempre o Deus do
homem — e chama quem Ele quer.

Todo o seu passado devia ser julgado. Isto era publicamente


demonstrado na sua recepção entre os Cristãos, pelo batismo, em
vista de receberem a remissão dos seus pecados e de participaram
do dom celeste do Espírito Santo.
“Arrependei-vos, e cada um de vós seja batizado em nome
de Jesus Cristo, para perdão dos pecados; e recebereis o dom do
Espírito Santo”. Esta obra era individual. Havia o julgamento sobre
todo o passado, a admissão no meio deles pelo batismo, e, em
consequência disso, a participação do Espírito Santo que habitava
ali aonde vinham todos aqueles cujos corações tinham sido tocados
pelo arrependimento. Vemos logo a diferença entre a mudança
moral já operada, o arrependimento produzido por uma aflição
seguindo Deus, e a recepção do Espírito Santo.
Esta recepção era a consequência da remissão dos seus
pecados, à qual eram levados. O dom do Espírito Santo dependia,
de modo regular, da admissão deles entre os Cristãos, a casa onde
Deus habitava, construída em Nome de Jesus. Em seguida o
apóstolo declara aos Judeus que a promessa pertence a eles e aos
seus filhos — à Casa de Israel. Mas os desígnios de Deus, no dom
do Espírito Santo, ultrapassavam os limites do antigo povo de Deus.
A promessa pertencia também Aqueles que estavam longe, porque
ela se cumpria em relação com a fé em Cristo. Estendia-se a todos
aqueles que, pela graça, entravam na nova casa, a todos aqueles
que o Senhor, o Deus de Israel, chamasse. O chamamento de Deus
caracterizava a bênção.
Israel, com os seus filhos, estava reconhecido; mas um
Remanescente era chamado de entre eles. Os Gentios também
eram chamados e participavam da bênção.
O resultado desse dom inefável do Espírito Santo é-nos
contado: Não era somente uma mudança moral, mas um poder que
punha de lado todos os motivos que individualizavam aqueles que o
tinham recebido, unindo-os como se fossem uma só alma e um só
pensamento. Perseveravam na doutrina dos apóstolos. Estavam em
comunhão todos, uns com os outros e com os apóstolos. Partiam o
pão e passavam o tempo em orações. O sentimento da presença de
Deus em poder no meio deles, e prodígios e milagres eram
operados pela mão dos apóstolos. Os crentes estavam unidos pelos
mais estreitos laços. Não falavam dos seus direitos individuais e
partilhavam tudo com os outros o que possuíam e segundo as
necessidades de cada um. Estavam todos os dias no templo, lugar
onde todo o Israel cumpria em público os seus serviços religiosos, e
tinham, além disso, o seu próprio serviço à parte entre eles, partindo
o pão diariamente em suas casas. Comiam com alegria e
simplicidade de coração, louvando a Deus e atraindo sobre eles a
simpatia do povo que os rodeava.
Assim, a Igreja estava formada e o Senhor juntava-lhe todos
os dias o Remanescente de Israel, que Deus queria preservar dos
julgamentos que deviam abater-se sobre um povo culpado da
rejeição do Filho de Deus — o seu Messias, e de uma ruína futura
ainda mais terrível. Deus trazia para a Igreja, por Ele assim
reconhecida pela presença do Espírito Santo, aqueles que Ele
preservava em Israel. Tinha começado uma nova ordem de coisas,
caracterizada pela presença do Espírito Santo (3).

(3) Deus nunca habitou com o homem — sem excluir Adão


ou Abraão — a não ser na base da redenção (comparar Êxodo
29:46).

E era na Igreja que se verificava essa nova ordem, na Igreja,


onde se encontrava a presença de Deus! Embora a antiga ordem de
coisas subsistisse até que o julgamento fosse executado, a Igreja
formava já a Casa de Deus! Até aqui, era formada em relação com
Israel, na paciência de Deus, mas separada em poder, como
morada de Deus.
A Igreja era, pois, formada pelo poder do Espírito Santo,
descido do Céu, e fundada sobre este testemunho de Jesus Cristo,
que tinha sido rejeitado, fora elevado ao Céu, sendo feito, da parte
de Deus, Senhor e Cristo. A Igreja compunha-se do Remanescente
judaico, daqueles que deveriam ser preservados de entre esse
povo, mas sob a condição de introduzir em si própria os Gentios,
quando Deus lambem os chamasse.

CAPÍTULO 3

Aqui o Espírito Santo, por intermédio de Pedro, dirige o Seu


testemunho ao povo. Deus usava ainda de paciência para com o
Seu povo insensato. Usava mais do que de paciência: agia em
graça para com o Seu povo, em virtude da morte e da intercessão
de Jesus. Mas ai! ...
Era em vão! Os chefes do povo, incrédulos, reduziam a
Palavra ao silêncio (1).
(1) É impressionante ver os desígnios de Deus e o seu
cumprimento em graça (na medida em que esse cumprimento tinha
então lugar), tão claramente distintos da responsabilidade daqueles
a quem Deus Se dirigia. No capítulo 2, Pedro diz: “Salvai-vos desta
geração perversa”. Deus arregimentava os Seus, segundo o Seu
conhecimento do que ia acontecer. No capítulo 3 diz: “Deus enviou-
O para vos abençoar, desviando-se, cada um de vós, das vossas
maldades”, Ele tinha-O enviado com esse fim, e a Sua paciência
esperava ainda, embora agisse atualmente em graça, segundo o
resultado por Ele conhecido. Encontramos isto muitas vezes em
Jeremias. Se eles se tivessem arrependido, Deus teria, certamente,
desviado o julgamento, como nos diz Jeremias.

A atenção do povo é atraída por um milagre que tinha


restituído a força a um pobre estropiado, conhecido de todos
aqueles que frequentavam o templo E à multidão, precipitando-se
para ver aquele que acabava de ser curado, Pedro prega-lhe a
Cristo. “O Deus de nossos pais, diz-lhe ele, glorificou a Seu Filho
Jesus, a quem vós entregastes e perante a face de Pilatos
negastes”; “vos negastes o Santo e o Justo, quando Pilatos tinha
decidido soltá-Lo”. Eles tinham negado o Santo e o Justo, tinham
pedido que lhes fosse concedido um assassino, tinham levado à
morte o Príncipe da vida! Mas Deus O tinha ressuscitado. E o Seu
Nome, pela fé, tinha curado o paralítico. Ora, a graça podia estimar
que eles o tinham feito por ignorância, assim como os seus chefes.
Vemos aqui o Espírito Santo responder à intercessão de Jesus: “Pai,
perdoa-lhes, porque eles não sabem o que fazem”. Devedores de
dez mil talentos, o Grande Rei faz-Lhes graça, enviando a
mensagem de misericórdia que os chama ao arrependimento. E é
ao arrependimento que Pedro convida os Judeus: “Arrependei-vos”,
diz ele, “e convertei-vos, para que sejam apagados os vossos
pecados, e venham assim os tempos do refrigério, pela presença do
Senhor; e envie Ele a Jesus Cristo, que já dantes vos foi pregado, o
qual convém que o Céu contenha, até aos tempos da restauração
de tudo, dos quais Deus falou, pela boca de todos os Seus santos
profetas, desde o princípio” (versos 19-21). Pedro propõe assim o
arrependimento aos Judeus, como nação, anunciando-lhes que, se
eles se arrependerem, Jesus, já elevado ao Céu, voltará, e que o
cumprimento da plena benção, de que os profetas tinham falado,
teria lugar em favor deles. O regresso de Jesus para tal fim
dependia e depende ainda do arrependimento dos Judeus.
Enquanto espera, Jesus permanece no Céu.
De resto, diz Pedro, Jesus é o Profeta que Moisés anunciou,
e todo aquele que não O escutar será exterminado de entre o povo
(versos 22-23). A Sua voz vibra ainda, em graça especial, pela boca
dos Seus discípulos. Todos os profetas falaram destes dias. Vós
sois os filhos dos profetas, os herdeiros naturais das bênçãos que
eles anunciaram para Israel, assim como das promessas feitas a
Abraão, de uma semente sua, na qual todas as nações seriam
abençoadas; a vós também, por conseguinte, tendo Deus suscitado
o Seu Servo Jesus (2), O enviou em bênção para vós, desviando-
vos, a cada um, das vossas maldades (versos 24-26).

(2) Isto refere-se ao tempo da Sua vida sobre a Terra, embora


na Sua intercessão houvesse um renovamento de graça, em
testemunho a um Cristo glorificado, que voltaria, se eles se
arrependessem.

Numa palavra, o povo é convidado por Pedro a voltar a Deus


pelo arrependimento e a gozar de todas as promessas feitas a
Israel. O próprio Messias voltaria do Céu para fazer gozar o Seu
povo da bênção de Deus. O apóstolo dirige-se a toda a nação como
sendo os herdeiros naturais das promessas feitas a Abraão.

CAPÍTULO 4

Mas, como os apóstolos falavam ao povo, os sacerdotes e o


comandante do templo e os saduceus vêm prendê-los.
Estavam alarmadas por eles pregarem a ressurreição, que a
sua incredulidade e o seu sistema dogmático não aceitavam.
Os apóstolos são metidos na prisão, porque era já tarde. A
esperança de Israel fora posta de lado. Por muito grande e muito
paciente que ela tenha sido, a graça de Deus falara em vão! Não
obstante, muitos de entre aqueles que tinham ouvido a Palavra de
Deus, creem e já cinco mil homens confessam o Senhor Jesus!
Vimos a mensagem que Deus, em Sua graça, enviava a Israel, pela
boca de Pedro. Vamos ver agora, não só o acolhimento que ela
recebeu da parte dos chefes do povo, acolhimento já assinalado,
mas também a resposta deliberada do coração destes, se coração
lhe podemos chamar. No dia seguinte os chefes, os anciãos e os
escribas, assim como Anás e seus parentes, reúnem-se em
Jerusalém, e, colocando os apóstolos perante a Assembleia,
perguntam-lhes por meio de que poder e em que Nome eles tinham
operado aquele milagre do homem paralítico (versos 5-7).
Então Pedro, cheio do Espírito Santo, declara com a maior
prontidão e inteira ousadia a todo o Israel que era por Jesus, que a
nação tinha crucificado e que Deus tinha ressuscitado, que aquele
homem tinha sido curado. Eis a questão posta bem formalmente
entre Deus e os chefes de Israel, e isto pelo Espírito de Deus. Jesus
era a Pedra rejeitada pelos edificadores e que se tornara a pedra
angular; a salvação não se encontrava em nenhuma outra parte.
Como os adversários e os chefes o apóstolo não usa de nenhuma
deferência, mas faz tudo para ganhar, para Cristo, o povo ignorante
e extraviado. O Sinédrio reconhece aqueles que tem na sua frente
como tendo sido os companheiros de Jesus. O homem curado
estava ali. Que poderiam eles dizer ou fazer em face do povo,
testemunha do milagre? Outra coisa não sabem fazer além de
mostrarem uma decidida vontade contra o Senhor e contra o Seu
testemunho, e ceder perante a opinião pública, tão necessária à sua
importância pessoal, e à qual eles não ousavam resistir. Ordenam
então aos apóstolos que não mais ensinassem em Nome de Jesus,
e fazem-lhes ameaças.
Podemos notar aqui que Satanás tinha instrumentos
saduceus ordenados contra a doutrina da ressurreição, como tinha
tido nos fariseus instrumentos contra um Cristo vivo. Devemos, pois,
esperar e contar sempre com uma sistemática oposição de Satanás
contra a verdade.
Ora Pedro e João não deixam nenhuma dúvida quanto ao
seu procedimento: Deus tinha-lhes ordenado que pregassem a
Jesus, portanto, a proibição pronunciada pelo homem não poderia
ter qualquer efeito sobre eles. “Não podemos deixar de falar das
coisas que temos visto e ouvido”, dizem eles (versos 19-20). Que
singular posição esta em que os chefes do povo se encontram aqui!
Um tal testemunho mostra claramente que os condutores de Israel
estão descaídos da posição de intérpretes da vontade de Deus. No
entanto, os apóstolos não os atacam; Deus os julgará. Mas agem
diretamente da parte de Deus, e, quanto à obra que Deus lhes
confiou, não têm em nenhuma consideração a autoridade desses
condutores de Israel. O testemunho de Deus estava com os
apóstolos, e não com os chefes do templo; e a presença de Deus
estava na Igreja — e não no templo!
(Entre parêntesis: Recordamos mais uma vez que a Igreja, a
verdadeira Igreja é formada por todos os crentes sinceros, estejam
eles onde estiverem — e não por edifícios ou instituições que sejam
obra de homens). (N. do T.).
Pedro e João votam para os seus, porque havia já um povo à
parte e reconheciam-se uns aos outros. E todos, movidos pelo
Espírito Santo (porque era lá, e não no templo, que Deus habitava
pelo Seu Espírito), elevavam as suas vozes ao Deus governador de
todas as coisas, reconhecendo que esta oposição dos chefes era,
ao mesmo tempo, o cumprimento da Palavra, dos desígnios o das
intenções de Deus. As ameaças de que eram objeto constituíam
ocasião para pediram a Deus que manifestasse o Seu poder em
relação com o Nome de Jesus. Numa palavra, o mundo
(compreendendo os Judeus, que dele faziam parte, na sua
oposição) levantou-se contra Jesus, servo de Deus, e mostra-se
oposto ao testemunho que Lhe é prestado. O Espírito Santo é a
força desse testemunho, quer na coragem de que davam prova as
testemunhas (verso 8), quer na Sua própria presença no meio da
Igreja (verso 31) quer na energia do serviço (verso 33), quer nos
frutos de novo produzidos no anelo dos santos com uma energia
que manifesta que o Espírito ultrapassa nos corações todos os
motivos que influem sobre o homem e o faz andar por outros de que
Ele é a fonte. Como vimos já, a energia do Espírito, em presença da
oposição, cria os Seus frutos naturais entre aqueles em cujo meio
Ele habitava. Outras pessoas vendem também os seus bens e
depositam o produto da venda aos pés dos apóstolos.
Entre estes menciona-se um homem que ao Espírito de Deus
aprouve distinguir, a saber, Barnabé, da ilha de Chipre.
Em suma, o capítulo que acabamos de percorrer verifica, por
um lado, o estado espiritual dos Judeus, a rejeição que eles fizeram
ao testemunho que, em graça, lhes foi dirigido, e, por outro, o poder
do Espírito Santo, a presença de Deus e a Sua direção entre os
discípulos.
Estes três capítulos (2 a 4) apresentam a primeira formação
da Igreja e o precioso caráter que o Espírito Santo, habitando nela,
lhe imprime. Ele apresenta-a na frescura da sua primeira beleza, tal
como Deus a formou, e como Sua habitação.

CAPÍTULO 5

Mas ai! ... Também ali se revela o mal! Se o poderoso Espírito


de Deus está na Igreja, a carne também se encontra naqueles que a
compõem. Querem ter o crédito que dá a dedicação produzida pelo
Espírito Santo, mas querem tê-lo sem a fé em Deus e sem a
renúncia de si mesmos, que fazem todo o valor dessa dedicação e
toda a sua verdade. Todavia, isto constitui mais uma ocasião para a
manifestação do poder do Espírito de Deus e da presença de Deus
dentro da Igreja, como defesa contra o mal, do mesmo modo como
o capítulo precedente tinha revelado a Sua energia e os preciosos
frutos da Sua graça.
Quando se não encontra o simples fruto e o poder do bem,
tais como os descrevemos mais acima, encontra-se o poder do bem
contra o mal. O estado atual da Igreja, como um todo, já não é
senão o poder do mal superando o bem. Mas se Deus não suporta o
mal onde Ele não habita, muito menos o suportaria onde Ele habita.
Todavia, seja qual for a energia do testemunho que Ele faz prestar
junto dos que estão de fora, usa de toda a paciência, até ao ponto
de não haver ver mais remédio! Quanto mais a Sua presença se
realiza e se manifesta (e na proporção em que isso se faz), mais
Deus se mostra intolerante a respeito do mal. E não poderia ser de
outro modo. Deus julga no meio dos santos. Ele quer a santidade —
e na medida da manifestação de Si mesmo. Ananias e Safira,
desconhecendo a presença do Espírito Santo, de que eles
pretendiam seguir o impulso, caem mortos diante do Deus que eles,
na sua cegueira, queriam enganar (versos 1-10). Deus estava na
Igreja. Poderoso testemunho este, embora penoso, prestado à Sua
presença! O temor penetra nos corações, por dentro e por fora! Com
efeito, é algo de muito sério a presença de Deus, seja qual for a
bênção. O efeito desta manifestação da presença de Deus morando
com os homens, que Ele reconhecia como Seus, é muito grande.
Enormes multidões se juntam, pela fé, à confissão do Nome
do Senhor, pelo menos de entre o povo, porque os outros não o
ousavam. Quanto mais elevada é a posição que o homem ocupa no
mundo, mais se receia do mesmo mundo que ali o colocou. Também
o testemunho prestado pelos milagres ao poder de Deus, agindo por
intermédio dos discípulos, se mostra de uma maneira ainda mais
impressionante do que dantes, de sorte que vinham de longe para
dele aproveitarem. Os apóstolos permaneciam caos tau temente
juntos no pórtico de Salomão (verso 12).
Mas, ai!... Essas manifestações do poder de Deus ligavam-se
aos desprezados discípulos de Jesus e operavam-se fora da rotina
em que a própria importância dos principais sacerdotes dos Judeus
se encontrava necessariamente comprometida.
O progresso que fazia aquilo que eles rejeitavam e a atenção
que os milagres atraíam sobre os apóstolos excitam a oposição e a
inveja deles — e lançam os apóstolos na prisão (verses 17-18).
Neste mundo o bem atua sempre em presença do poder do mal! ...
Mas um outro poder, diferente do poder do Espírito na Igreja,
se manifesta aqui. A providência de Deus, violando pela Sua obra e
exercendo-se pelo ministério dos anjos, confunde todos os planos
dos incrédulos chefes de Israel, que puseram os apóstolos na
prisão: Um anjo do Senhor abre-lhes a prisão e envia-os para
prosseguirem a sua tarefa habitual no templo! Os guardas, enviados
à prisão pelo concílio, encontraram-na fechada e tudo em boa
ordem, mas os apóstolos não estavam lá!
Enquanto os sacerdotes se interrogam e se inquietam por
causa desta inesperada circunstância, alguém anuncia ao concílio
que os apóstolos estão no templo, ensinando o povo. O concílio,
confundido e alarmado, manda buscá-los, embora com brandura,
por temer o povo. Deus, quando quer prestar um testemunho, toma
em Sua mão as rédeas de tudo, até que esse testemunho seja
prestado. O sumo sacerdote interroga os apóstolos, lembrando-lhes
a proibição que lhes tinha sido feita (versos 27-28). Desta vez a
resposta de Pedro é mais curta do que a precedente, e anuncia
antes um partido tomado do que a intenção de dar um testemunho,
argumentando com aqueles que não queriam escutar e que se
mostravam adversários. No entanto a constância da sua resposta é
a mesma de antes: Importa mais obedecer a Deus do que aos
homens. Opostos a Deus, os chefes de Israel já não eram senão
homens.
E, caracterizando-os assim, tudo estava decidido: a sua
oposição a Deus era evidente. O Deus de seus pais tinha
ressuscitado Jesus, que os anciãos de Israel tinham crucificado.
Os apóstolos eram as suas testemunhas, assim como o
Espírito Santo, dado Aqueles que se Lhe submetiam. Tudo estava já
dito. Estava claramente anunciada a posição relativa dos chefes de
Israel e das testemunhas do seu Deus. Pedro, em nome dos
apóstolos, toma formalmente da parte de Deus de Jesus Cristo, a
posição de testemunha, de acordo com o Espírito Santo que, como
selo dado aos crentes, prestava testemunho ao Nome do Senhor.
Todavia, não se encontra em Pedro nem orgulho nem
vontade própria. Ele devia obedecer a Deus, muito embora tomando
ainda o seu lugar em Israel: “O Deus de nossos pais”, diz ele; toma,
portanto, o lugar do testemunho para Deus em Israel.
O conselho de Gamaliel prevalece, para desviar os projetos
do concílio (versos 33 e 35), porque Deus tem sempre os Seus
instrumentos preparados, talvez sem nós sabermos, quando
fazemos a Sua vontade. Não obstante, mandam açoitar os
apóstolos, proibindo-os de pregar, e mandam-nos embora. E o fato
de os seus perseguidores não saberem que fazer torna mais
evidente que a sua vontade e o seu procedimento eram opostos à
vontade e aos caninhos de Deus.
Pelo contrário, como o caminho se nos torna simples quando
se é enviado de Deus e se tem a consciência de fazermos a Sua
vontade! “Importa obedecer a Deus”!...
O objeto desta última parte do capítulo consiste em mostrar
que os cuidados providenciais que Deus manifestava, quer
miraculosamente, por meio dos anjos, quer dispondo homens para
cumprirem os Seus desígnios, se exerciam em favor da Igreja, do
mesmo modo como o Seu Espírito ali prestava testemunho e ali
manifestara o Seu poder. Os apóstolos, nada assustados, voltam
felizes por terem sido adiados dignos de sofrerem pelo Nome de
Jesus. E todos os dias, no templo e nas casas, não cessavam de
pregar e de anunciar a Boa Nova de Jesus, o Cristo. Por muito
fracos que eles fossem, avançavam sempre, porque era o próprio
Deus que defendia o Seu testemunho.

CAPÍTULOS 6-7

Infelizmente, outros males assaltavam a Igreja. No meio do


poder do Espírito, a carne começa a manifestar-se por causa de
certas circunstâncias contraditórias dos discípulos, mesmo em
coisas onde a graça se tinha particularmente manifestado, na
medida em que essas coisas estavam relacionadas com a carne. Os
Helenistas (Judeus nascidos nas regiões gregas ou pagãs)
murmuravam contra os Hebreus (nativos da Judeia), porque as
viúvas destes eram, segundo eles pretendiam, favorecidas na
distribuição dos bens dados à Igreja pelos seus membros. Mas até
aqui a sabedoria dada pelo Espírito faz face à dificuldade,
aproveitando a ocasião para dar andamento à obra, segundo as
necessidades que surgiam: São nomeadas sete pessoas para
empreenderam essa obra, porque os apóstolos não queriam
abandonar o seu próprio trabalho por causa disso.
Encontramos aqui, nos casos de Filipe e de Estêvão, a
verdade do que Paulo diz: “Os que servirem bem como diáconos,
adquirirão para si uma boa posição, e muita confiança na fé que há
em Cristo Jesus” (1 Timóteo 3:13).
Note-se que os apóstolos, na sua obra, põem a oração antes
da pregação. O combate dos obreiros do Senhor com o poder do
mal dava-se mais particularmente nesses exercícios feitos em
particular, A realização do poder de Deus operava-se ali também
pela força e pela sabedoria que lhes eram necessárias. Para que
eles pudessem agir diretamente da parte de Deus era necessário
que a graça e a unção fossem mantidas em seus corações.
Note-se também a graça que, sob a influência do Santo
Espírito de Deus, se revela nesta ocupação: Todos os nomes das
pessoas encarregadas do cuidado das viúvas são nomes helenistas!
A influência da Palavra alargavam e sempre mais e mais e
muitos sacerdotes se submetiam à fé. Assim, e até ao presente, a
oposição do exterior e o mal que se tinha encontrado no interior não
fizeram senão oferecer uma boa ocasião para o progresso da obra,
pela manifestação da presença de Deus no seio da Igreja. Note-se
bem este fato: Não se trata apenas de o Espírito fazer o bem pelo
Seu testemunho, pois embora o mal esteja lá, no exterior e no
interior da Igreja, onde o poder do Espírito se manifesta, esse
mesmo mal não faz senão prestar um bom testemunho à eficácia da
presença do Espírito divino! Existia o mal, mas havia também o
poder necessário para se lhe opor! Todavia, isso mostrava que até o
pão do Pentecostes continha fermento.
O poder do Espírito fazia-se sentir mais particularmente em
Estêvão, homem cheio de graça e de poder. Os judeus helenistas
opunham sê-lhe, mas, não podendo resistir-lhe, acusam-no perante
o Sinédrio, imputando-lhe, em particular, o anunciar da destruição
do templo e da cidade em Nome de Jesus, assim como a mudança
dos costumes e da lei.
Aqui, note-se, vemos o livre poder do Espírito Santo sem que
outras, como, por exemplo, os apóstolos, estabelecidos pelo próprio
Cristo, dirijam a obra; não é a autoridade nos apóstolos, nem nos
Judeus da Palestina. O Espírito distribui a quem Ele quer: É o
piedoso e dedicado helenista que presta o último testemunho aos
chefes da nação.
Se, por um lado, alguns sacerdotes creem, por outro lado,
alguns Judeus, tendo a sua origem fora da Judeia, prestam
testemunho e abrem o caminho a um outro testemunho muito mais
amplo; mas, ao mesmo tempo, vemos a rejeição definitiva dos
Judeus, considerados moralmente como base e centro do
testemunho e do ajuntamento divino, que se realizava no mundo.
Até aqui, Jerusalém era o centro do testemunho e da congregação.
Pedro tinha prestado testemunho a um Cristo glorioso prometendo
que Ele voltaria se eles se arrependessem, mas eles silenciaram
esse testemunho. Agora, pela boca de Estêvão, o julgamento é
levado sobre eles pelo Espírito — e eles mostram-se abertamente
contrários a esse testemunho. Assim, não são os apóstolos que, em
virtude de uma autoridade oficial, rompem com Jerusalém. A livre
ação do Espírito Santo antecipa uma rotura que nem mesmo teve
lugar de maneira a fazer parte da narrativa escriturística. O fado
cumpre-se pelo poder de Deus. A manifestação no Céu do
testemunho suscitado pelo Espírito para anunciar os Judeus como
adversários e proclamar a sua queda colocou o centro da
congregação, segundo o Espírito, no Céu — nesse Céu aonde a fiel
testemunha, cheia desse Espírito, subiu. Já sobre a Terra ela tinha a
aparência de um anjo aos olhos do Sinédrio que a julgava (Capítulo
6:15). Mas o endurecimento dos seus corações não permitia aos
seus assassinos que parassem no caminho da hostilidade contra o
testemunho prestado a Cristo, testemunho que sobressai aqui muito
particularmente como sendo o testemunho do Espírito Santo.
Estêvão (1) não tinha, que nós saibamos, conhecido a Jesus
durante a Sua permanecia neste mundo; certamente não tinha sido
estabelecido, como os apóstolos foram, para ser testemunha dessa
permanência. Estêvão era simplesmente um órgão do Espírito
Santo, que distribui os Seus dons como quer.

(1) Estêvão é a expressão do poder do Espírito Santo para


prestar testemunho a Cristo Glorificado, apresentado agora sob
esse caráter a Israel, que O tinha já rejeitado na Sua humilhação.
Depois da queda de Adão, até ao dilúvio, embora Deus não
deixasse o homem sem testemunho, este estava, de fato,
abandonado a si próprio. Não havia a seu respeito nem caminhos
nem instituições especiais de Deus. O resultado foi o dilúvio,
destinado, por assim dizer, a purificar a Terra da sua horrível
corrupção e da sua violência.
O mundo, renovado pelo dilúvio, torna-se o teatro onde Deus
começa a manifestar os seus caminhos para com o homem. Com
Noé o governo foi estabelecido; mas Abraão foi o objeto do
chamamento de Deus pela eleição de graça, e as promessas foram-
lhe dadas quando o mundo se voltou para os demônios. Com
Abraão começa a história do povo de Deus, mas a questão da
justiça não estava ainda posta. Foi-o mais tarde pela lei, que a
justiça do homem reclamava. Em seguida os profetas vieram prestar
testemunho à paciente graça de Deus. Finalmente foi enviado o
Filho, como último apelo de Deus para produzir fruto, e último
testemunho da Sua graça, — mas foi rejeitado!
A seguir à intercessão de Cristo, o Espírito Santo presta
testemunho a Sua glória por intermédio do apóstolo Pedro (capítulo
3), para trazer o povo ao arrependimento. Agora, pela boca de
Estêvão, o Espírito Santo ocupa-se da atitude deles perante a glória
de Cristo.

Estêvão traça a história dos Judeus, desde o princípio dos


caminhos de Deus a respeito deles, isto é, desde Abraão, que é
chamado para relação do Deus de glória, e que, embora lento a
obedecer, é conduzido a Canaã pela paciente graça de Deus. No
entanto Abraão era estrangeiro na terra da promessa, e foi-lhe
anunciado que a escravatura seria o quinhão dos seus
descendentes até que Deus interviesse em graça (capítulo 7:5 e
seguintes). O quinhão do bem-aventurado patriarca não consistia,
pois, em estar de posse das promessas, mas em ser estrangeiro; e
a sorte dos seus descendentes era de serem cativos, até que Deus
os livrasse com mão forte. Nada de mais impressionante do que a
calma superioridade em tais circunstancias, manifestada por
Estêvão. Conta aos Judeus uma história que eles não podiam
negar, uma história de que eles se vangloriavam, mas que os
condenava inteiramente. Eles faziam “como tinham feito os seus
pais” (verso 51). No entanto dois personagens se destacam na
narrativa de Estevão em relação com a bondade de Deus para com
Israel nessa recuada época: José e Moisés. Israel tinha-os rejeitado
a ambos. Tinha entregado José aos Gentios e rejeitado Moisés
como chefe e como juiz. Era a história do Cristo que, de fato, será,
no devido tempo ordenado por Deus, o Redentor de Israel. Esta é a
base do argumento de Estêvão, mas há dois outros elementos
importantes no seu discurso: Os Judeus tinham sempre rejeitado o
testemunho do Espírito Santo nos profetas que tinham falado de
Cristo, o qual eles tinham agora traído e morto; e, por outro lado,
segundo Moisés, tinham adorado os falsos deuses, mesmo depois
da sua saída do Egito. E esta falta, por grande que fosse a
paciência de Deus, e agora, que tinham levado ao máximo a sua
iniquidade, deveria conduzi-los muito além de Babilônia, que tinha
sido o lugar da sua punição (2).

(2) Note-se aqui que, por muito prolongada que tenha sido a
paciência de Deus não resulta dela o arrependimento. E a primeira
falta, a primeira separação de Deus leva o castigo até ao fim.

Trata-se de um dos mais impressionantes resumos de toda a


sua história — a história do homem ao qual Deus dá todos os meios
de restauração. É assim apresentada a plena medida da sua
culpabilidade. O povo tinha recebido a lei e não a tinha guardado;
tinha rejeitado os profetas que tinham prestado testemunho a Cristo;
tinha traído e morto o próprio Cristo: Aqueles homens resistiam
sempre ao Espírito Santo. Aquilo em que eles punham a sua
confiança — o templo — Deus o rejeitava. O próprio Deus tinha sido
como que estrangeiro na terra de Canaã; e se Salomão lhe
construirá uma casa, era para que o Espírito Santo declarasse,
como tinha feito já pela boca do profeta, que o Céu era o trono de
Deus e a Terra o estrado de Seus pés.
Deus, cujo domínio se estendia pelo infinito, não quereria
morar em casas de pedra, obra das suas mãos. A história dos
Judeus resume-se numa sentença que se liga aos últimos dias
desse povo e ao julgamento executado contra ele: Eles sempre
resistiam ao Espírito Santo, do mesmo modo como sempre tinham
desobedecido à lei (capítulo 7:51-53). O Judaísmo estava julgado; a
longa paciência de Deus e todos os seus caminhos de graça para
com o homem estavam exauridos — porque Israel era o homem sob
o governo especial e sob os cuidados de Deus. Agora a sua
culpabilidade não é simplesmente o pecado, mas o pecado a
despeito de tudo o que Deus tem feito pelo homem.
É o ponto culminante da sua história. A lei, os profetas,
Cristo, o Espírito Santo, tudo foi tentado — e o homem ficou o
inimigo de Deus! A Cruz tinha já, realmente, provado isso, mas este
novo fato juntara-lhe a rejeição do testemunho prestado pelo
Espírito Santo a um Cristo glorificado.
Era o fim do homem. Tudo recomeçaria agora com o segundo
Homem, nas suas relações permanentes com o Céu.
Convencidos em suas consciências e endurecidos de
coração, os membros do Sinédrio tinham a alma cheia de raiva e
rilhavam os dentes contra Estêvão. Mas se Estêvão devia prestar
esse testemunho definitivo contra Israel, devia mais ainda colocá-lo
na sua verdadeira posição por uma expressão viva da posição do
crente, em virtude da presença do Espírito Santo neste mundo e
nele habitando.
Na história dos Judeus vemos o homem resistindo sempre ao
Espírito Santo; na história de Estevão vemos um homem cheio do
Espírito Santo, como consequência da redenção.
Eis os elementos desta tocante e notável cena que faz época
na história da Igreja. Os chefes de Israel estão a rilhar os dentes de
raiva contra o poderoso e convincente testemunho do Espírito de
que Estêvão estava cheio. Eles tinham rejeitado um Cristo
glorificado, do mesmo modo como tinham levado à morte um Cristo
humilhado. Vamos ver quais foram os efeitos da presença do
Espírito para Estêvão: Tem os olhos fixos no Céu, agora plenamente
aberto à fé. É para o Céu que o Espírito dirige os seus
pensamentos, tornando-os capazes de ali se fixarem. O Espírito
revela Aquele que está assim cheio d'Ele a glória de Deus, em cima,
no Céu, e Jesus nessa glória, à direita de Deus, quer dizer, na sede
do poder, como Filho do homem, numa posição muito mais elevada
do que nos aparece no Salmo 2, ou seja a do Salmo 8, embora não
estejam ainda todas as coisas postas sob Seus pés (comparar João
1:50, 52). Em seguida o Espírito dá-lhe a força necessária para que
o testemunho seja prestado em presença do poder de Satanás,
assassino desde o princípio.
“Eis que vejo os céus abertos”, diz Estêvão. Tal é, pois, a
posição do verdadeiro crente, uma posição celeste sobre a Terra,
em presença do mundo que rejeitou o Cristo, do mundo assassino.
O crente, vivendo após a morte, penetra no céu pelo poder do
Espírito e vê o Filho do homem à direita de Deus. Estevão não diz:
“Eu vejo Jesus”. Aqui o Espírito caracteriza-O como Filho do
homem! Não é à glória de Deus que Estevão presta testemunho
(essa glória era natural no Céu), mas ao Filho do homem na glória,
estando o Céu aberto para Estêvão.
Em seguida diz: “Senhor Jesus, recebe o meu espírito”.
Presta assim um testemunho completo e perfeito ao estado
da alma do crente, após a morte com Cristo glorificado — e é disso
o primeiro exemplo.
Pelo que concerne ao progresso que fez o testemunho, o
assunto desse testemunho agora já não é que Jesus é o Messias, e
que Ele voltará, se o povo se arrepender (o que, aliás, não deixa de
ser verdade); o assunto do testemunho é agora o Filho do homem
no Céu, Céu também aberto ao homem cheio do Espírito Santo; no
Céu, o objeto da esperança e do testemunho daqueles que
pertencem a Deus, e ao qual Ele vai levar as almas dos Seus
remidos. A paciência de Deus agia ainda, sem dúvida, em Israel,
mas o Espírito Santo abria novas cenas e novas esperanças diante
do crente (3).

(3) O Espírito Santo abre o Céu perante os nossos olhos e


torna-nos capazes de os fixarmos sobre o que ali se encontra.
Forma-nos sobre a Terra segundo o caráter de Jesus. Quanto à
mudança que se operava no progresso dos caminhos de Deus, era,
suponho eu, a realização pelo Espírito do efeito do rasgar o véu.
Jesus está ainda de pé, porque até à rejeição do testemunho do
Espírito por Israel, Ele não se assentava definitivamente, para
esperar a época do julgamento dos Seus inimigos. Ficava na
posição de Sumo Sacerdote, de pé, diante de Deus, entrando com
Ele o crente, pelo Espírito, adentro do véu, e tendo a alma lá em
Cima, porque agora, pelo sangue de Cristo, por esse caminho novo
e vivo, a alma podia entrar no santuário. Por outro lado os Judeus,
tendo feito com o testemunho do Espírito Santo o mesmo que
fizeram com Jesus, tendo, por assim dizer, na pessoa de Estêvão,
enviado uma mensagem após Jesus, para dizerem: “Não queremos
que este reine sobre nós” (Lucas 19:14), o Cristo toma o Seu lugar
definitivamente, como assentado no Céu, até julgar os Seus
inimigos, que não quiseram que Ele reinasse sobre eles. É nesta
última posição que Ele é visto na epistola aos Hebreus. Assim,
nesta epístola, os Hebreus que criam são exortados a sair do campo
de Israel, seguindo a vítima, cujo sangue era levado ao santuário,
antecipando assim o Julgamento que, indiretamente, caiu sobre
Jerusalém, por meios Romanos, para pôr a nação de lado, visto
esse julgamento vir finalmente a ser executado pelo próprio Senhor
Jesus. A posição de Estêvão assemelha-se por conseguinte, à de
Jesus, sendo o seu testemunho aquele que o Espírito presta a
Jesus glorificado. Isto torna o grande princípio da epistola aos
Hebreus muito claro. A doutrina da Igreja, anunciada por Paulo,
após a revelação no caminho de Damasco, vai mais longe: Declara
a união dos Cristãos com Jesus no Céu, e não apenas a sua
entrada no lugar santo, através do véu rasgado, nesse lugar aonde
só o sumo sacerdote entrava primeiramente dentro do véu que
escondia Deus ao Povo.

Mas note-se que Estêvão, como consequência do fato de que


vê Jesus no Céu, assemelha-se perfeitamente a Jesus sobre a Terra
— fato este bem precioso para mós em graça. Simplesmente, em
todos os casos a glória da Sua pessoa é mantida com o maior
cuidado. Jesus, embora o Céu Lhe fosse aberto, era Ele mesmo o
objeto da contemplação do Céu, publicamente reconhecido e selado
pelo Pai. Jesus não tinha necessidade de uma visão que
apresentasse um objeto à Sua fé, e essa visão não produzia n'Ele
nenhuma transformação à mesma imagem, pela revelação da glória.
Mas o “Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito”, encontra-se nas
palavras de Estêvão: “Senhor Jesus, recebe o meu espírito”; e a
afeição por Israel que o Salvador exprime nestas palavras: “Pai,
perdoai-lhes, porque eles não sabem o que fazem”, encontra-se nas
de Estêvão: “Senhor, não lhes imputes este pecado”.
Simplesmente, agora o Espírito Santo não diz que eles não
sabem o que fazem; eles agora já não tinham desculpa: sabiam o
que faziam, pois sabiam que Jesus tinha ressuscitado.
Note-se ainda que (e isto faz sobressair mais ainda a posição
especial de Estêvão como vaso do testemunho do Espírito Santo,
quando esse testemunho era definitivamente rejeitado por Israel,
assim como o caráter divino e a Pessoa de Jesus, mesmo naquilo
em que o Seu discípulo mais se Lhe assemelha) o Céu se abriu a
Jesus, que o Espírito Santo desce sobre Ele e que foi reconhecido
Filho de Deus. Depois o Céu é aberto sobre Ele e os anjos sobem e
descem sobre o Filho do homem. Somente não houve objeto
apresentado a Jesus. Ele próprio é o objeto dos olhares do Céu. O
Céu abrir-se-á aio fim do século e o próprio Senhor Jesus sairá
sobre o cavalo branco, quer dizer em julgamento e em triunfo. Aqui
o Céu é aberto, mas é ao discípulo do Senhor, e o Cristão, cheio do
Espírito Santo, vê o Céu e o que nele há: Vê Jesus à direita do
Deus. Jesus é sempre o objeto apresentado, primeiro ao Céu e
depois ao homem crente, cheio do Espírito Santo, de modo que,
quanto ao objeto da fé e à posição do crente, a cena que está
perante nós é definitivamente característica.
Jesus não tem objeto, mas é o objeto do Céu, quando se
abre; o crente tem um objeto, e esse objeto é o próprio Senhor
Jesus no Céu, quando ele está aberto. Rejeitado, e rejeitado pelos
Judeus como tinha sido Jesus, partilhando os sofrimentos do
Salvador e cheio do Seu Espírito de graça, os olhares do bem-
aventurado mártir são fixados no Céu, que o Espírito Santo lhe abre,
e ele vê lá o Filho do homem, pronto para receber o seu espírito. O
testemunho do que resta para revelar dos desígnios de Deus virá
mais tarde. Mas vemos já que não é somente a Jesus que o Céu
deve receber antes do restabelecimento das coisas de que os
profetas têm falado, mas que deve receber também as almas dos
Seus remidos até ao momento da ressurreição, assim como toda a
Igreja, em espírito desligado do mundo que rejeitou o Salvador, e do
Judaísmo que se opõe ao testemunho do Espírito Santo.
O Judaísmo já não é reconhecido, já não deixa lugar à
paciência de Deus, É substituído pelo Céu e pela Igreja que,
enquanto fiel, segue o seu Mestre no Céu, em espírito, esperando o
Seu regresso.
Paulo assistiu à morte da fiel testemunha do Salvador e nela
consentiu (4).

(4) Podemos notar aqui que o santuário, por assim dizer, está
agora aberto a todos os fiéis. Pela morte de Cristo, o véu foi bem
rasgado, mas a graça de Deus agia ainda para com os Judeus,
como tal considerados, e propunha-lhes o regresso de Jesus à
Terra, ou seja, fora do véu, se eles se arrependessem; de modo que
a bênção e os termos de refrigério, com a vinda de Jesus,
anunciados pelos profetas, teriam tido lugar sobre a Terra. Mas
agora o objeto apresentado Aqueles que tinham ouvidos para ouvir
já não era um Messias, filho de Davi, mas um Filho do homem no
Céu. E, pelo Espírito Santo neste mundo, o Céu aberto é visto e
conhecido, e o Grande Sumo Sacerdote, que está de pé à direita de
Deus, já não é escondido atrás de um véu. Tudo está agora aberto
ao fiel, que vê a glória e Aquele que nela entrou, para os Seus. É
por esta razão, suponho, que Jesus é visto de pé. Não tinha ainda
tomado definitivamente o Seu lugar como assentado no trono
celeste, até que o testemunho à Sua exaltação, prestado a Israel
pelo Espírito Santo, tivesse sido definitivamente rejeitado sobre a
Terra. O livre testemunho do Espírito que se manifesta aqui e na
continuação do livro é de grande interesse, sem tocar, como
veremos, na autoridade apostólica, exercida do lugar que Deus lhe
tinha destinado. Quanto aos Judeus, enquanto o Sumo Sacerdote
não sair do Santuário, não podem saber que a Sua obra para a
nação é aceite. No dia das expiações devem esperar a Sua saída
para o saberem. Mas para nós, Cristãos, o Espírito Santo saiu, e
embora o Senhor esteja ainda escondido, nós temos já a Sua santa
presença, pelo Espírito, em nós e no nosso meio.

Termina aqui a primeira fase da Igreja de Deus, a sua história


em relação direta com os Judeus e Jerusalém como centro ao qual
se reportava o trabalho dos apóstolos “a começar por Jerusalém”,
cumprindo-se, portanto, num Remanescente crente, no seio do qual
Israel é convidado a entrar, como objeto, enquanto povo, do amor e
dos cuidados de Deus — convite que eles recusaram. Alguns fatos
acessórios se seguem, que alargam a esfera da obra e conservam a
unidade do conjunto, antes da revelação formal da vocação dos
Gentios propriamente ditos, e da Igreja como “um só corpo”, obra
que se realiza independentemente de Jerusalém e fora da Terra.
Estes fato, que a Palavra de Deus nos apresenta agora, são o
trabalho de Filipe, a conversão de Samaria, as conversões do
Etíope e de Cornélio, com a visão de Pedro, que tem lugar após a
vocação de Saulo, admitido como um Judeu muito estimado da sua
nação, como tal considerada. São ainda os trabalhos de Pedro em
toda a região de Canaã, e enfim as relações estabelecidas entre os
apóstolos em Jerusalém e os Gentios convertidos em Antioquia.
Temos aqui igualmente a oposição de Herodes, o falso rei dos
Judeus, e os cuidados que Deus tem ainda de Pedro. Vem depois o
julgamento de Deus sobre o rei. Em seguida vemos a obra feita
diretamente no meio dos Gentios.
Esta obra tem Antioquia como ponto de partida, já preparado
pela conversão de Saulo, por meios e com uma revelação muito
particular. Sigamos então os detalhes desses capítulos.

CAPÍTULO 8

Logo a seguir à morte de Estêvão estala uma feroz


perseguição. A vitória exterior, alcançada assim por um ódio ao qual
a providência de Deus permitia realizar plenamente esse ato de
violência e de morte, abre os diques à raiva dos chefes dos Judeus,
inimigas do Evangelho. Uma vez rompida a barreira que as retinha,
as ondas da paixão transbordavam por toda a parte. O homem é
contido habitualmente por um pouco de consciência, por hábitos,
por uma certa ideia dos direitos dos outros; mas uma vez quebrado
o impedimento, o ódio (o espírito de morte no coração) sacia-se,
permitindo-o Deus, em atos que mostram bem o que o homem ê,
quando entregue a si próprio. Mas esse ódio realiza a vontade de
Deus, à qual, de outro modo, talvez o homem tivesse faltado, ou não
a teria mesmo podido fazer a certos respeitos, quer dizer, a vontade
de Deus em julgamento soberano. A dispersão da Igreja era o
julgamento de Israel, julgamento que os próprios discípulos teriam
tido dificuldade em aceitar e pôr em execução, como dando assim
continuidade à comunicação de uma luz maior. Quaisquer que
sejam as bênçãos e a energia na esfera em que o Espírito de Deus
atua, os caminhos de Deus, que tudo dirige, estão sempre em Suas
mãos.
Toda a Igreja é, pois, dispersa, exceto os apóstolos.
E ainda a respeito destes, a questão é de se saber se eles
fizeram bem em ficar em Jerusalém, e se uma fé mais simples não
os teria afastado e não teria poupado à Igreja muitos combates
espirituais e dificuldades que se ligavam ao fato de Jerusalém
continuar a ser um centro de autoridade (1).

(1) Isto de modo nenhum impede a manifestação da


soberana sabedoria de Deus. O desenvolvimento da doutrina da
Igreja, de uma Igreja UNA, Corpo de Cristo, tal como nos é ensinado
por Paulo, chamada para fora do Judaísmo pela revelação de um
Cristo celeste, tem sido muito mais perfeito e sem misturas. Todavia,
esses caminhos de soberana sabedoria divina não mudam em nada
a responsabilidade do homem. A unidade exterior da Igreja foi
conservada pela manutenção das relações entre os diversos lugares
onde ela já se encontrava e Jerusalém — até que a obra no meio
dos Gentios, fora do Judaísmo, tornara essas relações
extremamente difíceis e precárias. No entanto, e mesmo assim, a
graça e a sabedoria de Deus tornaram-se muito mais evidentes.

O próprio Senhor tinha dito aos discípulos, tendo em vista


Israel: “Quando vos perseguirem numa cidade, fugi para outra”; e
após a Sua ressurreição ordenou-lhes que fossem por todo o mundo
e fizessem discípulos de todas as nações. Ora, a verdade é que não
vemos o cumprimento desta ordem na história dos Atos dos
Apóstolos, nem da obra realizada entre os Gentios, e, como vemos
em Gálatas 2, devido a um entendimento especial em os apóstolos
em Jerusalém, esse trabalho foi confiado a Paulo e colocado num
pé inteiramente novo. A Palavra de Deus não nos diz nada acerca
do cumprimento dessa missão dos doze para com os Gentios. O
poder de Deus manifestava-se em Pedro para com a circuncisão, e
em Paulo para com os Gentios (ver Gálatas 2:8). Poder-se-ia dizer
que os doze não foram perseguidos. Isto é possível, e eu não
decido nada acerca deste ponto. Mas o certo é que as passagens
em que o Senhor nos fala da missão dos doze junto dos Gentios
não têm cumprimento na história bíblica — e um outro entendimento
teve lugar, uma outra ordem de coisas surgiu e substituiu o que o
Senhor tinha inicialmente prescrito. E é certo também que os
Judeus prejudicados tiveram de fato, em seguida, uma influência tal
que o próprio Pedro teve grande dificuldade em se lhe subtrair.
Os que foram dispersos pregavam por toda a parte a Boa
Nova, Todavia, antes de alguns deles chegarem a Antioquia,
dirigiram-se somente aos Judeus (capítulo 11:19).
Entretanto Filipe desce a Samaria e anuncia-lhes a Cristo,
operando milagres (versos 5 e seguintes). Todos ali lhe prestam
atenção e são batizados — até aquele que até ali os tinha seduzido
com a sua magia, e a tal ponto que lhe chamavam “o grande poder
de Deus”! Também este se submete a um outro poder que fazia
empalidecer as suas mentirosas habilidades — poder que o
convenceu tanto mais da sua realidade e eficácia quanto era certo
ele ter consciência da falsidade das suas próprias pretensões.
Assim, os apóstolos não sentem nenhuma dificuldade acerca
de Samaria e enviam para ali Pedro e João “a quem impuseram as
mãos e eles receberam o Espírito Santo”. Aliás, a história de Jesus
deverá ter esclarecido os apóstolos a esse respeito. Os Samaritanos
não eram Gentios! Todavia, foi um evangelista helénico quem
trabalhou nessa região.
Uma nova verdade sobressai aqui, em relação com os
progressos regulares da Igreja, a saber, que os apóstolos conferiam
o Espírito Santo pela oração e imposição de mãos — fato muito
importante na história dos caminhos de Deus (versos 14-19). De
resto, a Samaria era uma conquista que nem toda a energia do
Judaísmo nunca tenha conseguido fazer. A sua conversão era um
novo e brilhante triunfo para o Evangelho. No aspecto espiritual, era
à Igreja que competia subjugar o mundo. Jerusalém era posta de
lado. Sob esse ponto de vista, o seu tempo terminara.
A presença do Espírito Santo, atuando em Pedro, guarda
ainda a Igreja da entrada dos hipócritas, que são os instrumentos de
Satanás. Esse grande e poderoso feito, a presença de Deus no seio
da Igreja e a manifestação nela dessa presença punha em evidência
o estado moral que as circunstâncias tinham escondido. Arrebatado
pela força da corrente, Simão, o mágico, tinha-se submetido pela
sua inteligência à autoridade de Jesus, cujo Nome era glorificado
pelo ministério de Filipe. Mas o verdadeiro estado do coração de
Simão, o desejo da sua própria glória, a total oposição entre o seu
estado moral e todo o princípio, toda a luz de Deus se manifestam
em presença do simples fato de um homem poder conferir o poder
cujos efeitos ele viu.
E pensa poder comprar esse poder com dinheiro! É assim
que a incredulidade do homem, que parece ter recebido a revelação
de Deus e ter sido, exteriormente, convencido da verdade se
manifesta. E manifestasse por algo tão grosseiramente afastado de
Deus, para todo aquele que tiver o Espírito do Senhor em seu
coração, que até uma criança, instruída pelo Senhor, se aperceberia
do caráter de um tal homem.
Assim, Samaria, onde a obra constituía o fruto da ação
independente de que já falamos, é posta em relação com o antigo
centro, que era em Jerusalém, onde os apóstolos se encontravam
ainda. Porém, o fato de o Espírito Santo ter sido concedido aos
Samaritanos era já um passo imenso no desenvolvimento da Igreja.
Os Samaritanos eram, sem dúvida alguma, circuncisos e
reconheciam a lei, embora o templo tivesse, para eles, e em certa
medida, perdido a sua importância. O corpo dos fiéis tinha adquirido
mais consistência. E embora os discípulos permanecessem ainda
em Jerusalém, tratava-se de um ganho muito positivo, porque,
recebendo o Evangelho, a Samaria entrava em relação com a sua
antiga rival e a ela se submetia. E fazia-o mesmo enquanto os
próprios apóstolos se encontravam em relação visível com ela.
Nesses tempos de perseguição, os apóstolos não iam,
provavelmente, ao templo.
Mas Deus abria-lhes uma ampla porta no exterior e elas
abandonavam-no, bem compensados na sua obra (porque a energia
do Espírito Santo estava no meio deles) do sucesso que tinham tido
os chefes de Israel, interrompendo essa obra em Jerusalém.
Em suma, o que nos é apresentado aqui é a uma ação do
Espírito exercendo-se em outros crentes, que não os apóstolos, e
fora de Jerusalém, onde essa ação e essa energia tinham sido
rejeitadas. Encontramos ao mesmo tempo aqui a manutenção das
relações dos novos convertidos com os apóstolos e com Jerusalém,
pela ação centralizadora destes e pelo poder e autoridade de que
estavam revestidos. Tendo cumprido a sua obra e evangelizado
várias aldeias dos Samaritanos, Pedro e João, os dois apóstolos
que foram enviados a Samaria, voltam a Jerusalém (verso 25). Mas
a obra continua fora de Jerusalém, e por outros meios.
Filipe, que nos apresenta o caráter de uma pronta obediência
em simplicidade de coração, e que não questiona, é chamado para
outro lugar, deixando aquela obra a que toda a sua importância
pessoal se teria ligado, se ele o tivesse querido, e um lugar onde o
respeito e o afeto o rodeavam: “Levanta-te, e vai para a banda do
sul, ao caminho que desce de Jerusalém para Gaza”, diz-lhe o anjo
do Senhor (verso 26). Ora, esse lugar era um deserto.
A pronta obediência de Filipe não o deixa pensar na diferença
que existe entre a Samaria e Gaza; ele pensa apenas na vontade do
Senhor. E vai!
O Evangelho estende-se agora aos prosélitos de entre os
Gentios e faz o seu caminho até ao fundo da Abissínia.
O tesoureiro da rainha de Candace é admitido entre os
discípulos do Senhor pelo batismo que selava a sua fé no
testemunho do profeta Isaías. E parte jubiloso por ter conseguido
uma salvação que, com sacrifício, tinha vindo, de um país
longínquo, procurar a Jerusalém, nos deveres e das cerimónias
legais, mas com fé na Palavra de Deus. Belo quadro este da graça
do Evangelho! Este homem leva agora com ele e para o seu país o
que a graça tinha proporcionado no deserto; leva aquilo que a sua
penosa viagem a Jerusalém, lhe não poderia oferecer! Mas os
infelizes Judeus, rejeitando a Jesus, rejeitando o Espírito Santo,
repelindo o Evangelho da graça que lhes tinha sido apresentado em
Jerusalém, ficam fora de toda a graça.
Depois o Espírito do Senhor arrebata Filipe, que se achou em
Azoto (versos 39-40) porque todo o poder de Deus se acha ao
serviço do Filho do homem, para o cumprimento do testemunho da
Sua glória. Filipe evangeliza as cidades até Cesareia. Mas uma obra
e um obreiro de outro caráter começa agora a mostrar-se em cena.

CAPÍTULOS 9-11

Vimos a oposição encarniçada dos chefes de Israel contra o


testemunho do Espírito Santo, e a sua obstinação em repelir a
paciente graça de Deus. Israel rejeitava todo o trabalho do Deus da
graça em seu favor, Saulo torna-se o apóstolo do ódio dos Judeus
contra os discípulos de Jesus, contra os servos de Deus. Não
contente ainda de os procurar em Jerusalém, pede cartas do sumo
sacerdote para ir prendê-los nas cidades estrangeiras! Quando
Israel está em plena oposição contra Deus Saulo é o ardente
missionário da sua maldade! Por ignorância, sem dúvida, mas é o
escravo voluntário dos seus preconceitos judaicos.
Ocupado assim em perseguir os discípulos do Senhor, Saulo
aproxima-se de Damasco. Ali, em plena carreira de uma vontade
não quebrada, o Senhor Jesus detém-no: Uma luz vinda do Céu
brilha em volta de Saulo, envolvendo-o da Sua glória
resplandecente. Caindo por terra, Saulo ouve uma voz que lhe diz:
“Saulo, Saulo! Por que me persegues?” (verso 4). A glória que o
tinha deitado por terra, acompanhada como era por esta voz, não
deixa nenhuma dúvida no espírito de Saulo quanto à origem da
solene comunicação que lhe era feita. Para ele, ela estava revestida
da autoridade de Deus. Quebrada a sua vontade, lançado por terra
o seu orgulho, submetido o seu espírito, ele pergunta: “Quem és tu,
Senhor?”. A autoridade d'Aquele que lhe falava não poderia ser
posta em causa.
O seu coração submete-se a essa autoridade. Ora, o glorioso
personagem de quem ela emanava era Jesus! A carreira, da
vontade própria de Saulo estava terminada para sempre!
Aliás, Saulo não só fazia a descoberta que o Senhor da
glória, que lhe aparecia, era o próprio Jesus, mas também que esse
Jesus reconhecia os pobres discípulos, que Saulo queria levar
presos para Jerusalém, como sendo Ele mesmo: “Eu sou Jesus, a
quem tu persegues”.
Quantas coisas maravilhosas se não revelaram nessas
poucas palavras! O Senhor da glória declara que Ele é o Jesus que
Saulo perseguia, e que os Seus discípulos eram UM com Ele.
Assim, os Judeus estavam em plena guerra contra o próprio Senhor.
Todo o sistema religioso que eles sustentavam, toda a lei, toda a
sua autoridade oficial, todas as ordenanças de Deus não os
impediam de estarem em guerra aberta contra o Senhor. O próprio
Saulo, armado da autoridade deles, estava empenhado em destruir
o Nome e o povo do Senhor, em o eliminar de sobre a Terra.
Terrível descoberta esta, que tanto perturbava a alma de
Saulo; revelação tão poderosa nos seus efeitos que não deixava
nem um simples elemento moral da alma deste enérgico homem
subsistir diante da sua força. Modificar os seus pontos de vista
precedentes era inútil. O seu zelo pelo Judaísmo era um zelo contra
o Senhor. E a sua consciência não tinha feito senão alimentar esse
zelo. As autoridades, estabelecidas por Deus, essas autoridades
que a auréola dos séculos cobria e cuja dignidade era realçada
pelas desgraças de Israel, que já não tinha senão a sua religião,
essas autoridades tinham sancionado e favorecido os esforços de
Saulo contra o Senhor. Esse Jesus, que eles rejeitavam, era o
próprio SENHOR! E o testemunho que eles procuravam suprimir era
o Seu testemunho!
Que extraordinária mudança para Saulo! Que nova posição
tomava também a própria obra no pensamento dos apóstolos que
tinham ficado em Jerusalém, quando todos os outros tinham sido
dispersos. É evidente que os apóstolos tinham sido fiéis a Jesus,
qualquer que tivesse sido a oposição dos chefes de Israel, mas
eram eles próprios em relação com a nação. Em Saulo, porém, a
obra é muito mais profunda. Ele estava desencaminhado, sem
dúvida, mais a sua própria consciência (porque ele pensava que era
preciso fazer algo contra o Nome de Jesus, o Nazareno) fazia dele
um inimigo do Senhor. Uma justiça sem mácula, segundo a lei
(conforme a medida do homem), deixavam mais que endurecido, cm
oposição aberta contra o Senhor. Agora os seus superiores e as
autoridades da sua antiga religião, tudo alquilo em que a sua alma
se baseava, tanto moral como religiosamente, tudo estava para
sempre feito em pedaços! Nele o homem, o seu eu, estava
inteiramente aniquilado diante de Deus.
Nada restava nele, a não ser a descoberta da sua inimizade
contra Deus e a sua própria vontade quebrada — neles que, uma
hora antes, era ainda o homem religioso, ansioso, sem censura!
Embora a revelação de Cristo o tenha conduzido logo muito mais
longe, comparamos algumas passagens, tais como Gálatas 2:20;
Filipenses 3; 2 Coríntios 1:9; 4:10, e muitas outras.
Outros pontos importantes são aqui postos em evidencia:
Saulo mão tinha conhecido Jesus sobre a Terra. Não tinha, como os
doze, de prestar testemunho por ter conhecido o Senhor desde o
princípio da Sua carreira pública, anunciando que Ele fora feito
Senhor e Cristo. O Jesus que ele conhece não é um Jesus que sobe
ao Céu, aonde se não vê mais. O Senhor aparece-Lhe pela primeira
vez no Céu; e, como Senhor da glória, declara-lhe que Ele é o Jesus
a quem Saulo perseguia. Um Senhor glorioso é o único que Paulo
conhece. O seu Evangelho, como ele diz, é o Evangelho da glória.
Se ele tivesse conhecido o Cristo, segundo a carne, já O não
conheceria desse modo. E o seu Evangelho já não seria o
Evangelho da glória.
Mas um outro princípio importante se encontra ainda aqui: O
Senhor da glória tem os Seus membros sobre a Terra. Ele diz a
Saulo: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues” (verso 5). Os Cristãos
faziam parte d’Ele próprio; os Seus pobres discípulos eram carne da
Sua carne, ossos de Seus ossos. Ele considerava-os e acarinhava-
os como sendo a Sua própria carne. A glória e a unidade dos santos
com Jesus, seu Chefe no Céu, são as verdades que se ligam à
conversão de Saulo, à revelação de Jesus à sua alma, à criação da
fé no seu coração, inimigo confesso do Cristianismo.
Mas essa criação operou-se também de uma maneira que
derrubava completamente o Judaísmo em todo o seu alcance para a
alma de Saulo, para essa alma de cuja existência o Judaísmo fazia
parte integrante, caracterizando inteiramente essa existência.
Tiramos de uma narrativa subsequente dessa visão (capítulo
26:27) um outro ponto notável pelas suas relações com a carreira de
Paulo. O Senhor diz-lhe: “Livrando-te deste povo, e dos Gentios, a
quem agora te envio”. O objetivo moral de Saulo separava-o agora
tanto do povo como dos Gentios. Separava-o dos Judeus com toda
a certeza, mas também não fazia dele um Gentio, porque estava
unido a um Cristo glorificado. Quanto à sua posição espiritual, já não
era nem Judeu nem Gentio: Era Cristão!
Toda a sua vida, todo o seu ministério decorriam agora da
sua associação com um Cristo celeste e glorificado.
No entanto Saulo entra na Igreja por meios vulgares — tal
como Jesus em Israel — tomando o seu lugar humildemente, ali,
onde a verdade de Deus se encontrava estabelecida pelo Seu
poder. Cego durante três dias, e naturalmente preocupado por
causa da descoberta que acabava de fazer, Saulo não come nem
bebe. Mas a sua cegueira dava-lhe uma prova continua e sem
equívoco da verdade do acontecimento. E a sua fé era confirmada
pela chegada de Ananias que, sem ter saído da cidade, pôde
declarar-lhe, da parte do Senhor, que sabia o que lhe tinha
acontecido.
Circunstância tanto mais impressionante quanto é certo Saulo
tê-lo visto, numa visão, vir restituir-lhe a vista. Com efeito, Ananias
vem e restaura-lhe a vista. Saulo fica a ver e é batizado (verso 18).
Em seguida alimenta-se e sente-se fortalecido.
É notável o diálogo de Jesus com Ananias, pois mostra-nos
com que evidência o Senhor se revelava nesses dias, e a santa
liberdade e a confiança com que o fiel discípulo conversava com
Ele. O Senhor fala-lhe como qualquer homem falaria com um seu
amigo, dando-lhe detalhes de lugar e de circunstâncias. Ananias
argumenta com o Senhor abertamente e com toda a confiança
acerca de Saulo, e Jesus responde-lhe, não com severa autoridade,
embora Ananias tivesse de obedecer, mas com explicações plenas
de graça, fazendo dele Seu confidente e declarando-lhe que esse
Saulo era um vaso de eleição, para levar o Seu Nome perante os
Gentios, perante reis e perante os filhes de Israel, e que Ele lhe
mostraria o quanto Saulo teria de sofrer por causa do Seu Nome.
Saulo não tarda em confessar e proclamar a sua fé, e o que
ele diz é eminentemente digno de nota. Prega nas sinagogas que
Jesus é o Filho de Deus. Foi a primeira vez que Cristo foi assim
anunciado. Tinha já sido o Senhor e o Cristo. O Messias rejeitado
era exaltado em cima, no Céu. Mas aqui é apresentada a doutrina
simples, quanto à glória pessoal do Salvador: Jesus é o Filho de
Deus!
Note-se também aqui que, nas palavras de Jesus a Ananias,
os filhos de Israel vem em último lugar. Saulo não começa ainda o
seu ministério público. A sua pregação não é por assim dizer, senão
a expressão da sua fidelidade pessoal, do seu zelo, da sua fé no
meio daqueles com quem estava naturalmente ligado. Mas a
oposição não tarda a manifestar-se na nação que não queria ter um
Cristo segundo os desígnios de Deus — e os discípulos descem
Saulo, dentro de um cesto, pelo muro. Por intervenção de Barnabé,
homem de bem e cheio do Espírito Santo e de fé, em quem a graça
tinha feito valer a verdade em relação ao novo discípulo, o temível
Saulo encontra o seu lugar entre os irmãos, mesmo em Jerusalém
(versos 23-29) (1).

(1) Isto teve lugar mais tarde, segundo parece, mas é


mencionado aqui a fim de marcar a Saulo, por assim dizer, o seu
lugar entre os Cristãos.

Que maravilhoso triunfo do Senhor! E que singular posição a


de Saulo naquela cidade, se não estivesse absorvido pelo
pensamento do próprio Senhor Jesus. Em Jerusalém disputa com
os Helenistas. Ele próprio era um deles. Os Hebreus não são a sua
esfera natural; querem matar o novo convertido, que é levado pelos
discípulos para Cesareia, para junto do mar, e, de lá, enviam-no
para Tarso, sua cidade natal.
O triunfo da graça tem, sob a mão de Deus, reduzido o
Inimigo ao silêncio. As Igrejas são agora deixadas em paz. Edificam-
se, andam no temor de Deus e na consolação do Espírito Santo, os
dois grandes elementos da bênção, e aumentam em número. As
perseguições cumprem, afinal, os desígnios de Deus. A paz que Ele
concede dá aos Seus a ocasião de se aperfeiçoarem no Seu
conhecimento e na graça (verso 31). Na verdade, aprendemos a
conhecer os caminhos e o governo de Deus no meio da imperfeição
do homem.
Estando a paz estabelecida pela bondade de Deus — único
recurso dos que confiam verdadeiramente n'Ele e na total
submissão à Sua vontade — Pedro percorre todo o país de Israel. O
Espírito de Deus conta-nos esta circunstância aqui, entre o
chamamento de Saulo e o seu trabalho de apóstolo, para nos fazer
ver, estou certo, a energia apostólica em Pedro, subsistindo mesmo
quando o chamamento de Paulo devia introduzir novas luzes e nova
obra sob relações diferentes e muito importantes. O Espírito Santo
põe assim o Seu selo sobre a obra que tinha sido feita antes, como
sendo obra Sua; algum progresso que cumpriu os Seus planos. E
mostra, ao mesmo tempo, a introdução dos Gentios na Igreja, tal
como tinha sido fundada no princípio pela graça, conservando assim
a unidade e pondo o Seu selo sobre uma obra que a graça celeste
tinha realizado.
A Igreja existia. A doutrina da sua unidade como corpo de
Cristo, fora do mundo, não era ainda posta em evidência, A
recepção de Cornélio não anunciava essa unidade, mas abria o
caminho à sua manifestação. O poder não diminuído de Pedro, a
sua autoridade apostólica no meio dos fiéis, a entrada de Cornélio
na casa espiritual de Deus, em relação com o ministério deste
apóstolo, e isto após o chamamento de Saulo, que abria uma outra
perspectiva, numa palavra, o conjunto dos fato expostos aqui
confirma o que tinha sido feito precedentemente. A obra já realizada
não era, de modo nenhum, posta de lado, para dar lugar a outra. No
entanto a visão de Pedro não revela a Igreja como corpo de Cristo,
nem tão pouco a admissão de Cornélio, respeito. Estes dois fato
mostram que, em todo o mundo, todo aquele que teme a Deus Lhe
é agradável; quer dizer o favor de Deus não era limitado somente
aos Judeus, e não era necessário o homem tornar-se Judeu para
participar da salvação em Cristo. A unidade do corpo, liga ao seu
Chefe no Céu, não sobressaía do fato da admissão dos Gentios
piedosos ao número dos salvos, mas esse fato preparava o caminho
para a promulgação desta verdade, pois que, de fato, o Gentio, sem
se tornar Judeu, era admitido no seio dos herdeiros do Reino sobre
a Terra.
O fato que constitui o fundamento da existência da Igreja
sobre a Terra realiza-se individualmente, embora a própria verdade
da unidade do corpo não fosse ensinada. O arrependimento para a
vida eterna era concedido aos Gentios, como tal considerados. O
Espírito Santo, selo da bênção cristã entre os Judeus, fruto da
redenção realizada por Jesus, era dado tanto aos Gentios como aos
Judeus. Os fiéis desta nação talvez se admirassem, mas não havia
lugar para resistir a Deus! Por graça, eles podiam bem-dizer a Deus
pelo dom soberanamente concedido aos Gentios.
Portanto, desde o capítulo 9, verso 32, ao capítulo 11, verso
18, encontramos o poder do Espírito de Deus com Pedro, no meio
de Israel e a admissão dos Gentios na Igreja terrestre, sem que
estes tivessem de se tornar Judeus, ou de se submeterem à antiga
ordem de coisas, que agora terminava. O selo do Espírito é posto
sobre eles, e os chefes da Igreja que estava em Jerusalém, e os
mais zelosos dos circuncisos aceitam o fato, como sendo a vontade
de Deus, e submetendo-se a Ele, louvando o Seu Nome, apesar dos
seus preconceitos. A porta está, pois, aberta aos Gentios.
Era um passo imenso dado em frente!
Mas a preciosa doutrina da Igreja ficava ainda por pôr em
evidência. Pedro tinha anunciado o chamamento dos Gentios no
seu primeiro discurso. Mas realizar esse apelo e formular as suas
condições em relação com o que historicamente existia exigia a
intervenção, a autoridade e a revelação de Deus. O progresso que
se tinha feito no desenvolvimento da verdade pela paciente graça de
Deus é evidente, porque, certamente, não é a sabedoria do homem
que foi a origem desse desenvolvimento. Inteiramente judia no
começo, a obra que se fez em Jerusalém era acompanhada da
declaração feita ao povo Judeu que, se ele se arrependesse, Jesus
voltaria. Mas esse testemunho de graça é rejeitado e as primícias da
Igreja, na pessoa de um daqueles que trazia aquele testemunho,
entram no Céu. O Espírito, na Sua liberdade soberana, opera em
Samaria e entre os prosélitos. Sendo a Igreja dispersa pela
perseguição, Saulo é chamado pela revelação de um Cristo glorioso
e por um testemunho ouvido da própria boca de Jesus, testemunho
esse que implica a união dos santos sobre a Terra com Ele, seu
Chefe, no Céu, como sendo um só corpo. Em seguida um Gentio
piedoso e já convertido pela graça, mas ainda Gentio, recebe a fé
em Cristo e o Espírito Santo. Assim, o apóstolo e os discípulos mais
ligados ao Judaísmo reconhecem-no como sendo designado pelo
testemunho do próprio Deus e pela descida do Espírito Santo sobre
ele, como sendo da sua fé. Pedro recebe o novo discípulo pelo
batismo; os outros recebem-no, aceitando o ato de Pedro.
Note-se aqui que a salvação não consiste somente no fato de
se ser vivificado e de se ser piedoso, mas na libertação completa
que Deus, para nos apresentar em justiça perante a Sua face,
concede Aquele que tem já a vida por operação divina. Cornélio era
piedoso e consequente na sua piedade, — mas agora ouve falar de
uma obra realizada em seu favor pela qual ele pode ser, e é salvo.
Enfim, o seio do Espírito colocado sobre a fé em Jesus (2),
eis o testemunho pelo qual reconhecemos aqueles que Deus aceita.
Temos assim plena evidência para a compreensão do homem.

(2) Se examinarmos cuidadosamente as afirmações e os fato


registrados nas Escrituras, encontraremos, estou certo, e quanto
aos pormenores, que o que é selado é a fé na obra de Jesus, para
remissão dos pecados.

O verso 19 do capítulo 11 começa a parte histórica da nova


ordem de coisas pela qual o ministério de Paulo se distingue. De
entre aqueles que tinham sido dispersos por ocasião da morte de
Estêvão, alguns foram até Antioquia anunciando o Senhor Jesus.
Estes homens estavam mais habituados a lidar com os Gregos do
que os Judeus da Judeia, pois eram de Chipre e de Cirene. Dirigem-
se, pois; nesta antiga capital dos Selêucidas, aos Gregos, e muitos
de entre estes recebem a Palavra e convertem-se ao Senhor. A
Igreja om Jerusalém, já preparada pela conversão de Cornélio, pela
qual Deus lhe tinha ensinado a admissão dos Gentios entre os
Cristãos, aceita também o fato da admissão desses Gregos de
Antioquia, e envia para lá Barnabé, natural de Chipre, homem de
bem e cheio do Espírito Santo. O coração de Barnabé fica cheio de
alegria ao ver a obra da graça do Deus nesta cidade. Com efeito um
grande número de pessoas aceita o Senhor e a Ele se junta.
No entanto, tudo se liga ainda à obra em Jerusalém, embora
estendendo-se agora também aos Gentios. Não bastando já a obra,
ao que parece, e conduzido por Deus, Barnabé vai procurar Saulo a
Tarso, aonde este se tinha dirigido, por terem querido matá-lo em
Jerusalém (capítulo 9:29). Estes dois homens reúnem-se com a
Igreja de Antioquia e ensinam a muita gente. Mas tudo isso se
passa ainda em ligação com Jerusalém, repito. Alguns profetas
anunciando grande fome descem de Jerusalém a Antioquia.
As relações do rebanho de Antioquia com Jerusalém, como
centro, manifestam-se e estreitam-se pelo envio de socorros a essa
metrópole religiosa do Judaísmo, assim como do Cristianismo,
considerado como tendo o seu início no Remanescente de Israel,
que cria em Jesus como sendo o Cristo prometido. O próprio
Barnabé e Saulo são encarregados de levarem os socorros que os
Cristãos de Antioquia enviam aos seus irmãos necessitados e
sobem a Jerusalém para efetuarem esse serviço. Esta circunstância
leva-nos a Jerusalém, onde o Espírito tem ainda algo de novo nos
caminhos de Deus para nos mostrar.

CAPÍTULO 12

Herodes, para agradar aos Judeus, põe-se a perseguir a


Igreja em Jerusalém. Podemos notar aqui que o conjunto de
Cristãos, que se tinha formado em Antioquia, é também chamada
“Assembleia” (Igreja), o que ainda não tinha tido lugar em nenhuma
outra parte. Até ali os crentes eram tidos como fazendo parte
integrante da obra de que Jerusalém era o centro, do mesmo modo
como os Judeus, onde quer que estivessem, o eram em ralação
com esse mesmo centro do seu sistema religioso. Todo o Judeu, por
muito numerosa que fosse a Assembleia da sinagoga que ele
frequentasse, ou por grande que fosse a influência do Rabino, era,
como Judeu, da alçada de Jerusalém. Barnabé e Saulo juntam-se à
Assembleia ou Igreja em Antioquia — uma Igreja local que, embora
ligada a Jerusalém, tinha a consciência da sua existência distinta;
formou-se, cresceu, e, a partir daí, outras Igrejas, que não
dependiam de nenhuma metrópole, começam a estabelecer-se.
Algumas edições trazem Igreja em lugar de Igrejas, no capítulo 9,
verso 31.
Mas isso em nada modifica o pensamento geral de que eram
agora formadas Igrejas locais, distintas de Jerusalém, inicialmente
formadas por Gentios.
Para se reconciliar com Jerusalém, Herodes, rei ímpio, e
figura, sob certos aspectos, do Anticristo que deve erguer-se no fim,
põe-se a perseguir o Remanescente fiel em Jerusalém. Não são
somente os Judeus que presiguem esse Remanescente. O rei que,
como Judeus, eles detestam, junta-se a eles pelo seu ódio ao
testemunho celeste, e procura ganhá-los por esse meio. Faz morrer
Tiago ao fio da espada e continua, fazendo prender também a
Pedro e metendo-o na prisão. Mas Deus guarda o Seu servo! E, em
resposta às orações dos santos, livra-o por intermédio do Seu anjo.
Permite ao mundo matar alguns desses santos, felizes testemunhas
da sua posição celeste em Jesus, e preserva outros para
continuarem o testemunho sobre a Terra, apesar de todo o poder
aparentemente irresistível do Ira migo, poder esse que o Senhor
frustra pela manifestação do poder que Lhe pertence, a Ele e só a
Ele, e de que Ele usa como quer e quando quer. Os pobres santos,
orando instantemente (eles tinham reuniões de oração nesses dias),
têm dificuldade em crer que Deus os tenha, realmente, ouvido,
quando Pedro chega à porta (versos 12-36). Os desejos do homem
são muitas vezes apresentados a Deus sinceramente, mas a fé não
os acompanha, não sabe mesmo nada contar com Ele...
Herodes, confundido pelo poder de Aquele ao qual ele
resistia, atua cruelmente contra os instrumentos do seu Ódio, e vai a
Cesareia, sede gentia do seu poder. Ali, enquanto manifesta a sua
glória, e recebe a homenagem aduladora do povo, como se ele
fosse um deus, o próprio Deus o fere mostrando assim que Ele é o
Senhor e Governador do mundo, por maior que seja o orgulho do
homem.
A Palavra de Deus crescia e multiplicava-se pela Sua graça,
e Barnabé e Saulo, tendo cumprida o seu ministério, voltam a
Antioquia, levando com eles João, de sobrenome Marcos.

CAPÍTULO 13

Chegamos agora ao início da história direta de uma obra,


mova sob diversos e importantes aspectos, que se liga à missão de
Paulo e que tem o seu ponto de partida da intervenção imediata do
Espírito Santo. Agora já não é Cristo sobre a Terra, enviando pela
Sua autoridade pessoal os doze, só mais tarde dotados do poder do
Espírito Santo, vindo do Alto, para anunciar a ascensão do Salvador
ao Céu e o Seu regresso, e para juntar, sob a bandeira da fé, os que
cressem n'Ele. Paulo viu a Cristo em glória e juntou-se, por
conseguinte, à Igreja já formada. Mas aqui não encontramos um
Cristo, pessoalmente presente, para enviar aquele que Ele chamou
como testemunha da presença do Messias sobre a Terra, ou como
testemunha da rejeição de Aquele que essa mesma testemunha
assim teria conhecido. Aqui é o próprio Espírito Santo que envia
Paulo, Envia-o, não de Jerusalém, mas sim de uma cidade grega
onde Ele tinha, por Seu livre e soberano poder, convertido e
congregado alguns Gentios. Sem dúvida que alguns Judeus se
encontravam também entre eles, mas os crentes, tanto Judeus
como Gentios, formavam uma – Assembleia ou Igreja, cuja
existência fora primeiramente assinalada pelo fato de o Evangelho
ter sido anunciado aos Gregos.
Neste capítulo encontramo-nos na Assembleia de Antioquia,
e no meio da ação independente do Espírito de Deus (1).

(1) A ação do Espírito é sempre independente; mas eu falo


aqui da Sua ação fora da autoridade dos apóstolos. Nem esta
autoridade é a origem de que é feito, nem o que é feito se lhe refere.
Ali se encontram alguns profetas e, entre eles, Saulo.
Jejuavam e ocupavam-se do serviço do Senhor. O Espírito Santo
ordena-lhes que separem para Si Barnabé e Saulo, para a obra para
a qual Ele os tinha chamado.
Esta é a origem do ministério destes dois apóstolos.
É evidente que este ministério prestava testemunho Aquele
em quem eles tinham crido e que pelo menos Saulo tinha visto, e,
assim designados, atuam sob a autoridade do Senhor Jesus; mas a
fonte positiva da sua missão, a todos manifesta, é o Espírito Santo.
Foi o Espírito Santo que os chamou para a obra. São, portanto,
enviados pelo Espírito Santo (verso 4), princípio este da máxima
importância quanto aos caminhos do Senhor sobre a Terra. Saímos
de Jerusalém, do Judaísmo, do que era a força dos apóstolos,
nomeados pelo Senhor, durante a Sua permanência neste mundo.
Cristo, como nos diz Paulo, já não é conhecido segundo a carne.
Eles têm de lutar contra o espírito judaico, e gerir esse espírito,
enquanto ele for sincero; mas as fontes da sua obra já não estão em
relação com o sistema judaico. A sua obra já não reconhece esse
sistema como ponto de partida. Um Cristo glorioso no Céu, que
reconhece os discípulos como membros do Seu próprio corpo, como
fazendo parte de Si mesmo no Céu, — uma missão da parte do
Espírito sobre a terra, missão que não conhece senão a energia do
Espírito (prestando testemunho, bem entendido, a Cristo) como
fonte de ação e de autoridade — tal é a obra que começa agora e
que é confiada a Barnabé e a Saulo. É certo que Barnabé serve de
ligação entre os dois sistemas: Ele tinha feito parte da antiga ordem
de coisas, estabelecida em Jerusalém, mas ele próprio era um
Helenista de Chipre. Foi ele quem apresentou Saulo aos apóstolos,
após a conversão deste no caminho de Damasco. Ele tinha um
coração mais generoso, mais acessível aos testemunhos divinos da
graça do que os próprios apóstolos e do que os outros Judeus,
mergulhados em estreito Judaísmo, porque Deus a tudo provê na
Sua graça. Quando isso se torna necessário, aparecem sempre
Barnabés do mesmo modo como Nicodemos e Josés, ou mesmo
Gaimaliéis. Sob este aspecto, a ação de Deus é notável em toda a
história de que nos ocupamos. Quem dera que, fazendo a Sua
vontade pelo Espírito, nós soubéssemos confiar-nos inteiramente
Aquele que de tudo dispõe!
Todavia, o laço formado entre a antiga obra e a nova, pela
participação de Barnabé nesta última, em breve se rompe. Barnabé,
por muito abençoado que estivesse, apreciava ainda um pouco a
velha bandeira, os velhos odres — ele, que é, pessoalmente, o
objeto de um tão belo testemunho da parte do Espírito Santo, e em
quem se vê, com efeito, um caráter delicioso! Mais tarde quis levar
consigo o seu parente Marcos (Col. 4:10), que tinha voltado a
Jerusalém, quase desde o princípio da evangelização que se
realizava nos países gentios, por intermédio de Saulo e de Barnabé
— continuando Saulo a sua obra com alguns instrumentos que Deus
formou sob a mão do apóstolo, com um Silas, que tinha querido ficar
em Antioquia (estando concluído o serviço particular que se lhe
tinha confiado em Jerusalém), quando teria podido naturalmente
voltar a esta cidade com Judas Tadeu.
Voltando ao ponto da narrativa a que tínhamos chegado:
Barnabé e Saulo, enviados pelo Espírito Santo, tendo João (Marcos)
para os ajudar com os seus serviços, dirige-se a Selêucia e depois a
Chipre; e estando em Salamina, cidade de Chipre, pregara ali a
Palavra de Deus nas sinagogas dos Judeus. Portanto, qualquer que
fosse a energia do Espírito, Ele atua sempre em relação com os
desígnios e as promessas de Deus — e isto com perfeita paciência!
Até ao fim da sua vida, qualquer que tenha sido a oposição dos
Judeus e por muito irritante e encarniçada que ela tenha podido ser,
o apóstolo continua seguindo o caminho que os desígnios de Deus
lhe tinham marcado: Dirige-se primeiramente aos Judeus e depois
aos Gentios.
Quando, pela fé, nos encontrávamos “dentro” da Assembleia
de Deus, onde a verdade, e a graça eram plenamente revelados,
não havia nenhuma diferença entre Judeus e Gentios. Deus é UM
no Seu caráter. Ele é plenamente revelado e o véu é rasgado de alto
a baixo. O pecado é também um no seu caráter, e é oposto a Deus.
O fundo da verdade não muda, e a unidade da Igreja liga-se à altura
de graça de Deus, e desce até ao conjunto profundo do pecado,
acerca do qual esta graça se manifestou. Mas quanto aos caminhos
de Deus sobre a Terra, os Judeus tinham o primeiro lugar, e o
Espírito, que está acima de tudo, pode prestar-Se, em plena
liberdade, a todos os soberanos caminhos de Deus, como Cristo,
que Se fez servo em graça, se submeteu — e agora, sumamente
elevado, os reúne todas n'Ele, como Chefe e Centro. É a essa glória
que o Espírito Santo presta testemunho, para realizar neste mundo
tudo o que se faz pela graça, adaptando-se assim, em graça, aos
Judeus. Mais isso não O impede de trazer um julgamento claro e
positivo sobre o estado desse povo, quando a ocasião o torna
necessário.
Logo no início do ministério de Paulo estas duas coisas se
apresentam juntas, a saber, a consideração do apóstolo para com
os Judeus, segundo os caminhos de Deus, e o julgamento que o
apóstolo pronuncia sobre eles, quando se opõem ao testemunho
que dirige aos Gentios. Já fizemos notar que Saulo começa pelos
Judeus. Tendo atravessado Chipre, chega a Pafos, sede do
governo. Aqui o procônsul, homem prudente e refletido, pede para
ouvir o Evangelho. Obcecado por um falso profeta, que explorava as
necessidades da sua alma ignorante, mas ao mesmo tempo ávida
de qualquer coisa que pudesse encher o vazio moral que ele sentia
no nada das cerimónias pagãs e na desgostante imoralidade da
maior parte delas, Sérgio Paulo manda vir Barnabé e Saulo. Ele
mas opõe-se ao testemunho deles. Era natural, porque o feiticeiro
deveria perder a sua influência sobre o governador, se este
recebesse a verdade que Saulo pregava. Ora, Elimas era Judeu.
Saulo, que é, também, (chamado “Paulo”) (2), cheio do
Espírito Santo, pronuncia da parte de Deus, sobre Elimas, uma
sentença que o priva da vista por algum tempo — sentença essa
que foi executada no mesmo instante pela poderosa mão de Deus.
O procônsul, espantado do poder que acompanhava a palavra de
Paulo, submete-se ao Evangelho de Deus.

(2) Não sei se a mudança de nome que é assinalada nesta


ocasião, e cujo alcance tem excitado a curiosidade dos
etimologistas, é ou não uma simples alteração pela qual se perdia a
forma judia do nome do apóstolo, para revestir um aspecto Romano
ou Gentio.
Eu não duvido de que nesse miserável encantador nós
encontremos o quadro dos Judeus dessa época, feridos de cegueira
por algum tempo, porque, roídos de inveja por causa da influência
do Evangelho e para levar ao máximo os seus pecados, opunham-
se a que este Evangelho fosse pregado aos Gentios. O estado deles
já está julgado e a sua verdadeira história é-nos contada da missão
de Paulo.
Opostos à graça e procurando destruir o seu efeito sobre os
Gentios, foram, feridos de cegueira, mas de uma cegueira que será
apenas temporária.
Tendo partido dali, Paulo e os seus companheiros dirigem-se
à Ásia Menor (versos 13 e seguintes), e agora Paulo toma
definitivamente o seu lugar aos olhos do historiador espirado pelo
Espírito Santo. Todos os que o acompanham são “aqueles que
estavam com Paulo”. Quando chegaram a Perge, João (Marcos)
deixa-os para voltar a Jerusalém. A sua partida era uma
manifestação, sob uma forma bem mais doce e mais moderada do
que outras, da influência judaica, mas também um fato que
evidenciava que ali, onde essa influência se exercesse, se não
produzisse oposição, tirava, pelo menos, o vigor necessário para a
obra de Deus, tal como ela se desenvolvia agora entre os Gentios.
Entretanto Barnabé prossegue ainda o seu caminho e
continua a trabalhar na obra com Paulo. Este, uma vez chegado a
Antioquia, da Pisídia, dirige-se de novo primeiramente aos Judeus
(verso 14). Vão num sábado à sinagoga, e, aproveitando o convite
dos chefes, anuncia a Jesus, rejeitado pelos Judeus em Jerusalém
e crucificado, mas ressuscitado pelo poder de Deus, por Quem
podiam agora ser justificados de tudo aquilo de que a lei de Moisés
os não podia justificar. Aqui o discurso de Paulo aproxima-se muito
do testemunho que Pedro e muito particularmente do começo da
Epístola aos Hebreus, quanto ao caráter do testemunho.
Assim, o verso 33 é muito semelhante ao testemunho de
Pedro, que encontramos no capítulo 3 de Atos. No verso 31, Paulo
coloca os doze distintamente na posição de testemunhas junto de
Israel, como sendo aqueles que tinham pessoalmente
acompanhado o Senhor, e que O tinham visto após a Sua
ressurreição: “Eles são Suas testemunhas perante o povo”, diz ele.
Mas o testemunho do apóstolo (que entra na ordem da pregação de
Pedro quanto ao cumprimento das promessas pela vinda de Jesus,
e quanto à declaração que as graças asseguradas de Davi
encontram estabelecidas na Sua ressurreição) afastasse, todavia,
num ponto importante: Paulo não toca no assunto que Deus fez
Jesus Senhor e Cristo. Mas anuncia que a remissão dos pecados é
proclamada no Nome de Jesus, exortando os seus ouvintes a não
negligenciarem essa grande salvação, Muitos seguiram a Paulo (3)
e a Barnabé, após esta pregação, e estes exortam-nos a
permanecerem na graça que lhes foi anunciada (versos 42-43).

(3) Aqui Paulo é colocado antes de Barnabé. No capítulo


precedente, Barnabé vinha em primeiro lugar.

No sábado seguinte uma grande multidão aflui à pregação,


tendo os Gentios pedido que este Evangelho da graça lhes fosse de
novo anunciado. As suas almas tinham encontrado mais verdade na
doutrina do único e verdadeiro Deus, reconhecido dos Judeus, do
que no culto insensato dos pagãos. Este já não oferecia à
inteligência despertada, mas não satisfeita, um alimento que a
contentasse. A inteligência assim despertada, sobretudo no seu
aspecto moral, dizia já muito, para deixar a imaginação divertir-se
com cerimónias que não tinham encanto senão para a ignorância
que se deixa seduzir pelo luxo das festas às quais se tinha,
habituado e pelas quais o elemento religioso da carne era
lisonjeado.
No entanto, embora a verdade, friamente reconhecida, de um
único e verdadeiro Deus desembaraçasse o espírito de tudo o que
impressionava na mitologia insensata e imoral do paganismo; esta
verdade de modo nenhum alimentava a alma, como o fazia o
poderoso testemunho de Deus atuando em graça. E tal era o
testemunho agora prestado pelo Espírito Santo, pela boca dos
mensageiros que Ele tinha enviado; testemunho que, sendo
inteiramente fiel às promessas feitas aos Judeus, se dirigia, no
entanto, como “uma palavra de salvação” a todos aqueles que
temiam a Deus (verso 26). Mas os Judeus, invejosos do efeito do
Evangelho, que respondia assim às necessidades dos corações, o
que o seu sistema religioso não conseguia, opõem-se a Paulo e
blasfemam contra a doutrina de Cristo (verso 45).
Então Paulo e Barnabé voltam-se com ousadia para os
Gentios.
Era um momento decisivo e muito importante. Estes dois
mensageiros do Espírito Santo citam um testemunho profético do
Antigo Testamento acerca dos desígnios de Deus em graça para
com os Gentios, sustentando que Cristo devia ser a LUZ dos
Gentios — desígnios que eles mesmos cumpriam agora pelo poder
do Espírito e seguido a inteligência que Ele lhes dava. A passagem
a que Paulo e Barnabé fazem alusão encontra-se em Isaías 49,
onde a oposição de Israel, que tornava inútil o testemunho de Cristo
a respeito deles, dá ocasião a Deus de anunciar que a obra do
ajuntamento do Remanescente de Israel não era de somenos
importância, e que Cristo seria dado para luz às nações e para ser a
salvação de Deus até aos confins da Terra.
É importante notar esta última circunstância: A energia para
atuar, comunicada pela inteligência espiritual, e a maneira como as
declarações proféticas se tornam luz e autoridade para esta ação,
quando o Espírito de Deus lhes dá o verdadeiro sentido prático, isto
é, a perfeita aplicação. Talvez que os outros lhe não compreendam
o sentido, mas o homem espiritual tem, na Palavra de Deus, que ele
tem compreendido, uma plena garantia para a sua consciência. E o
resto, deixa-o a Deus!
Os Gentios alegram-se por causa do testemunho, e creem
todos aqueles que haviam sido destinados para a vida eterna (verso
48). A Palavra de Deus propaga-se por toda a região.
Os Judeus mostram-se agora no seu verdadeiro caráter de
inimigos do Senhor e da verdade, e Paulo e Barnabé sacodem
contra eles o pó dos seus pés. Os discípulos, fossem quais fossem
as dificuldades em que se encontrassem, estavam Cheios de fé o
do Espírito Santo — e isto era, superior a quaisquer dificuldades,
por maiores que fossem.
Mas a posição tomada aqui pelos Judeus, e na qual os
encontramos por toda a parte mostra bem que fonte perene de
aflição eles deveriam ter sido para o apóstolo.

CAPÍTULO 14

Os trabalhos missionários de Paulo e de Barnabé continuam


em Icônio, encontrando sempre a mesma oposição dos Judeus,
que, eles próprios incapazes de fazerem a obra, incitam os Gentios
contra aqueles que a fazem. Mas a oposição não era senão uma
razão para os obreiros perseveraram — enquanto se tratasse
apenas de oposição. Porém, advertidos a tempo de que estava
premeditada um ataque contra eles, fogem para Listra e Derbe
(versos 6-7).
Ali, tendo curado um homem paralítico, atraem o sentimento
idólatra desses pobres pagãos, que quiseram oferecer-lhes
sacrifícios, julgando-os deuses. Então os apóstolos, tendo ouvido
isto, cheios de horror e fiéis ao testemunho do seu Deus, demovem
a multidão do seu erro, com aquela energia que dá o poder do
Espírito Santo. Mas também em Listra os Judeus perseguem os
apóstolos! Note-se aqui que, se não nos quisermos aliar à idolatria
do coração humano e aceitar sermos exaltados pelos homens, o
poder do testemunho que estes admiraram no princípio (enquanto
pensaram poder elevar o homem e dar-lhe importância, se ele
aceitasse as suas lisonjas) torna-se numa fonte de ódio para o
coração. Os Judeus põem esse ódio em movimento e excitam o
povo a tal ponto que, tendo apedrejado a Paulo, o deixam por morto.
Mas Paulo levantasse, entra na cidade, fica ali mais um dia, partindo
no dia seguinte, com Barnabé, para Derbe.
Em seguida os dois apóstolos visitam de novo juntas as
cidades por onde tinham passado. Em Listra, em Icônio e em
Antioquia confirmam os discípulos na fé, e mostram-lhes que era
necessário passar pela tribulação para herdarem o Reino.
Estabelecem-lhes anciãos, e, atravessando outras cidades, chegam
ao lugar onde tinham desembarcado.
Voltam depois a Antioquia, onde tinham sido recomendados a
Deus para a obra, e são motivos de grande alegria para os
discípulos, anunciando-lhes que a porta da fé estava aberta aos
Gentios. A narrativa que acabamos de examinar apresenta-nos a
primeira missão formal no meio dos Gentios, pela qual as Igrejas
são constituídas, alguns anciãos estabelecidos pelos apóstolos, e a
hostilidade claramente manifestada dos Judeus contra a graça de
Deus, mesmo fora da sua nação e independentemente da sua fé
mosaica.
Por esta missão a obra tomou um caráter positivo entre os
Gentios, e a energia do Espírito Santo desenvolveu-se nesse
sentido, constituindo-os e organizando-os em Assembleias, e
estabelecendo nelas chefes locais, fora e independentemente da
Assembleia que se tinha formado em Jerusalém.
Porém, dentro em pouco se põe em Antioquia a questão de
se saber se o estabelecimento de Assembleias entre os Gentios,
inteiramente independentemente do Judaísmo e da autoridade da lei
de Moisés podia ser permitida. Já não se trata da oposição dos
Judeus, hostis ao Evangelho, mas da beatice daqueles que, tendo
abraçado este Evangelho, queriam impor aos Gentios convertidos a
lei de Moisés. Mas a graça de Deus provê ainda a mais esta
dificuldade, como vamos ver no capítulo seguinte.

CAPÍTULO 15

Alguns indivíduos, animados de um espírito de estreiteza


judaica, vem de Jerusalém, onde tudo caminhava ainda em relação
com as exigências da lei, e procuram impor essas exigências aos
Gentios no novo centro da obra, em Antioquia, que senda de ponto
de partida à evangelização dos Gentios. Deus quis que esta questão
se regulasse, não pela autoridade apostólica de Paulo ou pela ação
independente do Espírito divino, em Antioquia somente, o que teria
podido dividir a Igreja, mas por uma conferência em Jerusalém, de
maneira a conservar ia união, fossem quais fossem os preconceitos
dos Judeus. São notáveis os caminhos de Deus a este respeito,
mostrando como Ele dominou, em graça, sobre a Igreja. Lendo a
epístola aos Gálatas, visse que, no fundo, se trata de coisas que
tocam ao vivo os princípios do Cristianismo, dos seus fundamentos,
dos princípios mais profundos da graça, dos direitos de Deus, do
estado de pecado do homem, princípios sobre os quais é fundado
todo o edifício das eternas relações do homem com Deus. Se
alguém se fizesse circuncidar, colocava-se sob a lei; tinha
abandonado a graça, tinha decaído de Cristo. Mas Paulo, apóstolo;
Paulo cheio de fé, de energia e de inflamado ardor cristão deve
dirigir-se a Jerusalém, aonde ele não tinha desejo nenhum de ir,
para ali arrumar este assunto. Paulo tinha trabalhado em Antioquia,
mas a obra daquela cidade não era a sua obra. Ele não era o
apóstolo de Antioquia, como o era de Icônio, de Listra e em seguida
da Macedónia e da Grécia. Ele partira de Antioquia e do seio da
Igreja já ali formada, para a sua missão entre os Gentios. A questão
da sujeição dos Gentios à lei de Moisés devia ser regulada para a
Igreja, mas não sob a autoridade apostólica de Paulo. O apóstolo
deve curvar-se diante de Deus e dos Seus caminhos. Discute com
os que tinham vindo da Judeia, mas não obtém nenhum resultado
positivo. A Assembleia de Antioquia decide-se então a enviar a
Jerusalém uma deputação formada por alguns irmãos da Igreja, que
Paulo e Barnabé, tão profundamente interessados nesta questão,
deviam acompanhar (Gálatas 2:2). Aliás, Paulo teve uma revelação
que o fez subir a Jerusalém. Deus dirigia todos os seus passos!
É bom para o fiel, seja qual for a sua retidão e a sua energia
espiritual, ser algumas vezes obrigado a submeter-se...
A questão é, pois, tratada em Jerusalém. E já não era pouco
haver em Jerusalém quem se opusesse à sujeição dos Gentios à lei,
e, mais ainda, que nesse centro do Judaísmo se decidisse não os
sujeitar a ela! Vemos também aqui a sabedoria de Deus, que quis
que uma tal resolução tivesse a sua origem em Jerusalém. Se não
tivesse havido fanatismo, a questão nanca teria sida posta. Mas, ai!
...
O bem não se pratica senão através de toda a fraqueza e de
todas as tradições dos homens. Uma resolução tomada em
Antioquia teria tido um caráter muito diferente daquele que tem uma
resolução tomada em Jerusalém. A Igreja judaica não teria
reconhecido a verdade; a autoridade apostólica dos doze não lhe
teria dado a sua aprovação — e a Igreja ficaria dividida. O Caminho
de Antioquia e dos Gentios teria sido um Caminho à parte. Uma luta
sem fim teria começado entre os dois partidos, tendo cada um pelo
menos aparentemente, encontrado o seu ponto de apoio: um na
autoridade da Igreja primitiva e apostólica, e o outro na energia e na
liberdade do Espírito Santo com Paulo como seu representante. A
tendência judaizante da natureza humana está sempre pronta a
abandonar a poderosa energia do Espírito e a regressar à maneira
de ver e de sentir da carne. Esta tendência, alimentada por
tradições de fé antiga, tinha já dado suficientes penas e dificuldades
Aquele que, muito particularmente, trabalhava entre os Gentios,
segundo a liberdade do Espírito, para que fosse agora necessário
juntar-lhe, para a consolidar, a ação dos apóstolos e da Igreja em
Jerusalém.
Após uma longa discussão em Jerusalém, para a qual foi
deixada toda a liberdade, Pedro, tomando a iniciativa, conta o que
sucedeu a respeito de Cornélio. Em seguida Paulo e Barnabé
declaram o que foi a poderosa manifestação de Deus pelo Espírito
Santo entre os Gentios. Depois Tiago resume o julgamento da
Assembleia em palavras que obtêm o assentimento de todos — e
resolvem que os Gentios não sejam obrigados à circuncisão ou a
seguirem a lei de Moisés, sendo-lhes recomendado somente que se
abstenham do sangue, da carne de animais sufocados, da
prostituição e da carne dos animais oferecidos em sacrifício aos
ídolos.
O decreto agora feito requer que examinemos a sua natureza
e os artigos de que se compõe. É uma direção que ensina, não o
que é abstratamente bom ou mau, mas o que convinha no caso
presente. Era “necessário” (não justo aos olhos de Deus) evitar
certas coisas. Elas poderiam ser realmente más, mas não são aqui
encaradas dessa maneira. Havia práticas às quais os Gentios
estavam habituados e a que convinha que eles renunciassem, a fim
de que a Igreja andasse como devia, em paz diante de Deus.
Mas às outras ordenanças da lei, os Gentios não deviam ser
sujeitos. Moisés tinha já aqueles que o ensinavam, e isso bastava.
Não era, pois, necessário forçar os Gentios a submeteram-se às
suas leis, porque eles juntavam-se ao Senhor — e não aos Judeus.
Deste modo, o decreto que agora examinamos não se
pronuncia sobre a natureza das coisas proibidas ocupando-se
somente da sua oportunidade, visto os Gentios terem tido, de fato, o
hábito de fazer todas essas coisas. E será bom notar que essas
práticas não eram coisas proibidas somente pela lei: elas eram ou
contrárias à ordem natural estabelecida por Deus Criador, ou
contrárias a nova proibição feita a Noé, quando a carne lhe foi dada
a comer. A mulher não devia ter relações com o homem a não ser
na santidade do matrimónio — e isto é uma bênção muito grande. A
vida pertencia a Deus. Toda a comunhão com os ídolos era um
ultraje à autoridade do verdadeiro Deus. Que Moisés ensinasse as
suas próprias leis; mas estas coisas eram contrárias à sabedoria do
verdadeiro Deus. O que o decreto contém não é, pois, uma nova lei
imposta pelo Cristianismo, nem uma acomodação aos preconceitos
dos Judeus. O decreto não tem a mesma espécie de validade que
uma ordem moral, obrigatória em si mesma; mas é a expressão,
para a compreensão cristã, dos termos das verdadeiras relações do
homem com Deus, suas coisas da natureza. Dada pela bondade de
Deus, por intermédio dos chefes que estavam em Jerusalém, aos
Cristãos ignorantes, essa instrução prática isentava-os da lei e
esclarecia-os a respeito das relações de Deus com o homem e
acerca do que convinha ao homem, coisas que eles ignoravam,
saídos como eram da idolatria pagã.
Eu digo que essas orientações são dirigidas à inteligência
cristã, porque compreendo bem o verdadeiro caráter do decreto,
onde se vê não haver nada nele de inconsciente com a permissão
de comer de tudo o que é vendido no talho, porque, fazendo isso,
reconheço Deus, que deu essas coisas — e não um ídolo. Se,
porém, o ato implica comunhão com o ídolo, mesmo na consciência
de outrem, então estou provocando a Deus e peco contra Ele ou
contra o meu próximo. Quando me apresentam a carne, eu não sei
se o animal foi sufocado ou não, mas se atuo de maneira a fazer
supor que me é indiferente que a vida pertença ou não a Deus,
então eu peco mais ainda se aceito ou sanciono essa maneira de
proceder. Eu não saio maculado pela coisa que como, mas falto à
inteligência cristã acerca dos direitos do Deus Criador e Senhor de
todas as coisas. Quanto à prostituição, ela entra também na
categoria das ofensas contra a pureza cristã, do mesmo modo como
as ofensas contra a ordem de Deus Criador; de sorte que se trata
aqui diretamente do bem ou do mal e não somente dos direitos de
Deus, revelados à minha inteligência.
Isto era importante como princípio geral, mais ainda do que
no detalhe das próprias coisas.
Em suma, eis aqui os princípios estabelecidos: A pureza pelo
casamento segundo a instituição divina, tem a sua origem no fato de
que a vida pertence a Deus, na unidade de Deus, como único e
verdadeiro Deus. Por outras palavras: Deus, a vida, e a ordenança
de Deus para o homem, desde a origem...! O mesmo acontece com
as bases que a Assembleia põe para fundamento do seu decreto:
“Pareceu bem ao Espírito Santo e a nós”...
O Espírito Santo tinha-Se manifestado no caso de Cornélio e
na conversão dos Gentios, de que Pedro, e Paulo e Barnabé tinham
dado conta. Por outro lado os apóstolos eram os depositários da
autoridade de Cristo — depositários aos quais o governo da
Assembleia, na sua qualidade de fundada em relação com a
verdadeira fé judaica, tinha sido confiado. Eles representavam a
autoridade de Cristo elevado ao Céu, do mesmo modo como o
poder e a vontade do Espírito Santo tinham sido mostrados nos
exemplos que acabo de citar. Num certo sentido, essa autoridade
exercia-se em relação com tudo aquilo que representava a
continuação de um judaísmo ampliado por novas revelações, tendo
o seu centro em Jerusalém e reconhecendo inteiramente Jesus,
agora elevado ao Céu, como sendo, o Messias, rejeitado pelo povo.
Cristo tinha confiado aos apóstolos a autoridade necessária para o
governo da Igreja. E tinham sido selados, no dia de Pentecostes,
para exercerem essa autoridade.
O espírito de graça e de sabedoria mostra-se bem na sua
maneira de atuar: Eles põem o seu selo sobre a obra de Paulo e de
Barnabé, e enviam com eles algumas pessoas influentes, da
Assembleia de Jerusalém, para que, como poderia acontecer a
Paulo e a Barnabé, não pudessem ser suspeitos de levarem uma
resposta coliforme às suas próprias pretensões.
Como vimos já, os apóstolos e os anciãos reúnem-se para
deliberarem, mas toda a congregação atua de comum acordo com
eles. E Jerusalém decide que a lei de Moisés não é obrigatória para
os Gentios — e estes, sinceros no seu desejo de andarem com
Cristo, alegram-se muito por se verem livres desse jugo. Judas e
Silas, que eram profetas, exortam-nos e confirmam-nos. Depois, são
mamdadas em paz. Judas vai-se embora, mas Silas, animado pelo
Espírito, acha bem ficar em Antioquia, por sua própria conta,
preferindo a obra entre os Gentios em vez de Jerusalém.
Mas também Paulo e Barnabé, além de outros, continuam a
obra em Antioquia (verso 35), e nesta, cidade encontramos de novo
a plena liberdade do Espírito.
Algum tempo depois Paulo propõe a Barnabé porem-se a
caminho para irem visitar as Igrejas já formadas, por seu intermédio,
na Ásia Menor. Barnabé concorda, mas quer levar com eles Marcos
que, como vimos (capítulo 13:13), os tinha abandonado antes. Paulo
quer ter por companheiro alguém que não recue perante as
dificuldades da obra; Barnabé insiste, e estes dois preciosos servos
de Deus separam-se! Barnabé leva consigo Marcos e navega para
Chipre; Marcos era seu parente, e Chipre era o seu país.
Paulo, por seu lado, leva Silas, que tinha preferido a obra do
Senhor, em vez de Jerusalém. Note-se que o nome dele Silas ia
supor que este novo companheiro de Paulo era Helénico. Mas é
agradável saber-se que, mais tarde, Paulo fala de Barnabé com
grande afeto, e quer que Marcos venha juntar-se lhe, porque lhe é
útil para o ministério.
Paulo é recomendado pelos irmãos ao favor de Deus na sua
obra. O título dado a Paulo e a Barnabé pelos apóstolos mostra bem
a diferença entre a autoridade apostólica, estabelecida por Cristo
em pessoa e aquela que foi constituída pelo poder do Espírito
Santo. Paulo e Barnabé tinham sido enviados, sem dúvida, pelo
próprio Cristo; mas, na realidade, eles tinham partido de Antioquia
sob a direção do Espírito Santo, e legitimavam a sua missão pelo
Seu poder. Mas, para os doze apóstolos, estes dois homens não
têm outro título além da sua obra. Eles são “homens que têm
exposto as suas vidas pelo Nome do Senhor Jesus Cristo”. Eles são
o que o Espírito Santo os fez. Os apóstolos — são os doze. A
liberdade e o poder do Espírito caracterizam a Paulo.
Ele é o que o Espírito Santo o faz. Se Jesus lhe apareceu,
embora Ananias disso pudesse dar testemunho, Paulo deve
demonstrá-lo pelo poder do seu ministério. Este, assim como o seu
caráter, encontram-se narrados nos capítulos 16 a 20, que nos
mostrarão, de modo impressionante, a ação e a liberdade do
Espírito Santo.

CAPÍTULO 16

Neste aspecto, talvez não haja fato mais notável do que


aquele que Paulo praticou em relação a Timóteo: Serve se com toda
a liberdade da circuncisão para ultrapassar os preconceitos dos
Judeus. É muito duvidoso que, segundo a lei Timóteo devesse ser
circuncidado. Esdras e Neemias apresentam-nos exemplos de
mulheres estrangeiras que foram despedidas como profanas; mas
aqui, sendo a mãe de Timóteo judia, Paulo obriga o filho desse
casamento misto a seguir a regra dos Judeus — e, com efeito, a ela
o submete! A liberdade, que, pelo ato de o ser, está livre da lei,
reconhece essa mesma lei, quando ela está no seu devido lugar, e
distintamente verifica, para tranquilizar os Gentios, a ausência de
qualquer pretensão por parte dos Cristãos Judeus, de lhes impor a
lei. Paulo circuncida Timóteo, mas não se submete, nem por um
instante sequer, Aqueles que queiram constranger Tito a fazer o
mesmo. O apóstolo tornar-se-á Judeu para os Judeus, por amor,
mas os próprios Judeus devem renunciar a toda e qualquer
pretensão de imporem a sua lei aos outros. As ordenanças
estabelecidas pelos apóstolos em Jerusalém são remetidas às
Igrejas, preceito claro para todo o Judeu que queria subjugar os
Gentios ao Judaísmo. Esses decretos, podamos notá-lo, são os
decretos “dos apóstolos e dos anciãos” (verso 4).
É somente o Espírito Santo quem dirige Paulo. Proíbe-o de
pregar na província da Ásia e já não lhe permite passar em Bitinia.
Por uma visão, durante a noite, ele e os seus companheiros são
chamados para irem à Macedónia (verso 9 e seguintes). É aqui que
se lhes junta o próprio historiador dos seus trabalhos. O Senhor
chama-os para a Macedónia e eles procuram dirigir-se para lá
imediatamente.
E será bom notarmos aqui, que, sendo o Evangelho enviado,
pelo ministério de Paulo, a toda a criatura sob o Céu, há também
uma direção especial quanto aos lugares aonde devemos ir.
Chegado a Filipos, o apóstolo vai primeiramente para os
Judeus, embora não encontre senão algumas mulheres que se
reuniam à beira do rio, ao que parece lugar habitual de oração, por
não haver ali nenhuma sinagoga. Uma mulher grega, que adorava o
Deus de Israel, é convertida pela graça. Deste modo a porta fica
aberta, e outros creem também (verso 40). Aqui Satanás quer
intervir na obra que se está realizando, prestando um testemunho
aos ministros da Palavra (versos 16 e seguintes). Não é que este
espírito, de que se fala aqui, reconheça Jesus. Se o tivesse feito,
não seria um mau espírito, não teria tomado posse daquela jovem.
Fala dos ministros da Palavra de Deus, para também ter a sua parte
na glória da obra, como fala do Deus Altíssimo. É talvez forçado a
falar, pelo fato de o Espírito Santo estar presente, como outros
demônios foram forçados a falar pela presença de Jesus, quando se
viam perante o poder que Ele exercia. Um mau espírito nunca
reconheceria a Jesus por seu Senhor; e se Paulo não tivesse
permanecido fiel, talvez tivesse misturado a obra de Satanás com a
obra do Senhor. Mas não era um testemunho em seu favor que
Paulo procurava, nem tão pouco um testemunho prestado por um
demônio, fossem quais fossem as aparências desse testemunho. E
a prova que o demônio devia fornecer à presença do poder de
Deus, era ceder a esse mesmo poder, saindo daquela jovem —
como saiu. O demônio não podia apoiar a obra de Deus. Vemos,
nesta circunstância, a atitude desinteressada do apóstolo, o seu
discernimento espiritual, o poder de Deus com ele, e a fé, que não
quer outro apoio que não seja o de Deus. Tivesse sido cômodo para
Paulo ter um testemunho prestado ao seu ministério, e logo o
orgulho da carne teria podido dizer: “Eu não o procurei”! E a
perseguição teria sido evitada! Mas Deus não quer outro
testemunho além daquele que Ele presta a Si próprio. Nenhum outro
testemunho pode provir de Deus, porque Ele revela-Se a Si mesmo,
onde quer que não seja conhecido. E a fé, para prestar o
testemunho que é chamado a prestar, só pode e deve confiar-se
inteiramente a Ele. Neste caso, e de início Paulo deixou andar, sem
se preocupar com a malícia do Inimigo a seu respeito, e talvez,
prudentemente para evitar um conflito, onde não havia fruto para o
Senhor; mas o Adversário, pela sua insistência, forçou-o a prestar
aferição aos esforços que fazia. O Espírito de Deus não suporta a
presença de um demônio, quando este se manifesta ativamente na
Sua presença; mas não se presta às suas astúcias, dando-lhe
importância por uma intervenção voluntária, porque ele tem a Sua
própria obra e não Se desvia dela para Se ocupar do Inimigo. O
Espírito Santo ocupa-Se de todas as almas em amor, mas se
Satanás se coloca no Seu caminho, de modo a lançar as almas em
confusão, então o Espírito Santo revela-Se em toda a Sua energia
— e o Inimigo foge da Sua presença.
Mas Satanás não está sem recursos. O poder que ele não
pode exercer diretamente, emprega-o a sublevar as paixões e as
ganâncias dos homens, em oposição a um outro poder ao qual ele
não pode resistir face a face e ao qual não pode juntar-se ou
reconhece-lo. Assim como os Gadarenos rogaram a Jesus que se
retirasse do seu território, quando curou o homem chamado Legião
(Mateus 8: 37) também os Filipenses se sublevaram por aquele que
tinha perdido o seu desonesto ganho. Amotinam-se contra Paulo e
seus companheiros. Mas Deus, na Sua infinita sabedoria, dispõe de
tudo isso para dirigir o progresso da Sua obra e dar-Lhe a forma que
Ele achava boa: O carcereiro devia ser convertido, e os próprios
magistrados deviam reconhecer os seus erros acerca dos
mensageiros de Deus. A Igreja, um rebanho cheio de amor e de
afeição, é congregada; a epístola que lhe é dirigida é disso uma
prova bem eloquente.
Depois, cumprida esta missão, o apóstolo vai trabalhar noutra
parte. Vemos aqui um testemunho mais ativo, mais enérgico, e uma
intervenção de Deus mais deslumbrante do que num caso análogo
em que Pedro estava em cena.
É que, com Pedro, estamos na velha Jerusalém, usada, em
tudo, exceto no ódio, e Deus é fiel Aquele que a Ele se confia. O
ódio é contrariado. Paulo e Silas cantam, em vez de dormirem, na
prisão. Todas as portas se abrem, com grande estrondo. O próprio
carcereiro é convertido com toda a sua família, e os magistrados
são obrigados a vir, como suplicantes, a Paulo! Tal é o efeito do
motim em Filipos. Satanás aqui enganou-se! E se a obra do
apóstolo parou aqui, ele foi enviado a pregar noutro lugar, segundo
a vontade de Deus!
Não devemos passar aqui em silêncio esta energia que,
abraçando casas inteiras, as submete à fé cristã — energia que,
aliás, não se revela senão quando trata da introdução dos Gentios.
Cornélio, Lídia, o carcereiro de Filipos, são todos testemunhas
desse poder.
No entanto vemos em Lida e em Sarom (Sarom é uma região
ao longo da costa) algo de análogo à introdução de um povo (Atos
9:32-35). Todos Os que habitavam esta região, tendo ouvido falar do
milagre operado em Eneias, se voltaram para o Senhor.

CAPÍTULO 17

Em tudo o que sucedeu em Filipos vemos o poder que o


Inimigo exercia sobre as paixões dos Gentios, indo ao ponto de
suscitar uma perseguição contra os apóstolos; e em Tessalônica
encontramos a antiga e universal inimizade dos Judeus contra o
testemunho e a obra de Deus.
No entanto, muitos Judeus e prosélitos recebem o
Evangelho.
Porém, em seguida a um tumulto, os apóstolos vão para
Beréia (verso 10). Aqui os Judeus são mais nobres: Examinam as
Escrituras para verem se era mesmo assim o que se lhes anunciam.
Foi por isso que ali um tão grande número creu na mensagem e em
Jesus. Mas os Judeus de Tessalônica, invejosos do progresso do
Evangelho, dirigem-se a Beréia — e os irmãos apressam-se a fazer
sair Paulo da cidade, onde, no entanto, Silas e Timóteo continuam,
visto ser Paulo o principal objeto da perseguição dos Judeus.
O apóstolo dirige-se então a Atenas; e lá, dissertando na
sinagoga, e muito impressionado à vista da idolatria geral dessa
cidade indolente, disputa todos os dias na praça pública com os
filósofos. Depois, em seguida a essas acaloradas conversas, Paulo
anuncia o verdadeiro Deus, perante os principais daquela capital
intelectual do mundo de então, mandando entretanto dizer a
Timóteo e a Silas que fossem ter com ele.
Com um tal povo (tal é o efeito da cultura intelectual sem
Deus) é necessário que o apóstolo desça ao mais baixo escalão da
verdade. E é assim que ele demonstra a unidade de Deus, do Deus
Criador, e a relação do homem com Ele declarando também que
Jesus julgará este mundo, dando Deus disso a prova ao ressuscitá-
lo de entre os mortos (versos 22-31). Julgar-se-ia estarmos a ouvir
Pedro dirigindo-se aos Judeus, com a exceção apenas de que
Pedro substitui o julgamento deste mundo pela promessa da volta
de Jesus. Não é necessário supor que o historiador nos tenha
relatado todo o discurso de Paulo. O Espírito Santo dá-nos somente
o que caracteriza a sua maneira de aplicar a verdade às
circunstâncias daqueles a quem se dirige. Aqui, o que impressionou
o espírito dos auditores foi Paulo anunciar a Jesus e a ressurreição.
Parece mesmo ter havido quem tomasse por deuses tanto Jesus
como a ressurreição! Todavia, o apóstolo assenta bem a base do
Cristianismo, que é fundado sobre a Pessoa de Jesus e sobre o fato
da Sua ressurreição, — mas não vai além desse fundamento.
Eu disse que o seu discurso recorda a pregação de Pedro.
Com isto eu quis acentuar o elevado grau da sua doutrina a respeito
de Cristo. Notar-se-á também, e ao mesmo tempo, o quanto a
aplicação dos fato às pessoas, a quem Paulo se dirige, é justa e a
propósito. Pedro mostra o Cristo rejeitado, elevado ao Céu e pronto
a voltar, se os Judeus se arrependessem — o Cristo que devia
estabelecer, à Sua vinda, tudo aquilo de que os profetas tinham
falado. Aqui, em Atenas, o julgamento do mundo — sanção da
verdade para a consciência natural — é apresentado aos sábios e
ao povo curioso, mas nada poderia interessar o seu espírito
filosófico! Tratava-se, porém, de um testemunho claro e convincente
da loucura da idolatria deles, segundo o que a própria consciência
natural dos seus poetas tinha reconhecido.

CAPÍTULO 18

O ganho desonesto, a que Satanás proporcionava ocasião,


encontrou o Evangelho em Filipos. Em Atenas, este mesmo
Evangelho encontra-se perante a dureza e a indiferença moral do
saber que lisonjeava a vaidade humana, assim como encontra em
Tessalônica os esforços da inveja judaica.
O Evangelho, vitorioso sobre uma dessas disposições hostis
e cedendo ao efeito de uma outra, prossegue o seu caminho, e,
depois de ter exposto aos Atenienses instruídos tudo o que o seu
estado de espírito podia suportar, deixa-os, para ir encontrar, no
meio do luxo e dos costumes depravados da rica Corinto, um povo
numeroso, para juntar à Igreja! Tais são os caminhos de Deus e os
exercícios do Seu dedicado servo, conduzido pelo Espírito.
Note-se que esta energia, que procurava os Gentios, não
perde nunca de vista o favor de Deus para com o povo de Sua
escolha, favor que sempre procurava esse povo, até que ele mesmo
o rejeitou.
Em Tessalônica Paulo recebe por duas vezes socorros de
Filipos. Em Corinto, onde o dinheiro e o comércio abundam, trabalha
sossegadamente com dois dos seus compatriotas, que são do
mesmo ofício. Ainda aqui o apóstolo se dirige em primeiro lugar aos
Judeus. Estes opõem-se à sua doutrina e blasfemam. O apóstolo
toma então o seu partido com ousadia e decisão — com a ousadia e
decisão de um homem verdadeiramente conduzido por Deus, com
calma e conhecimento, de modo a não se deixar desviar.
Sacode as suas vestes, declarando que está puro do sangue
deles, e que, a partir dali, se virava para os gentios, segundo Isaías
49, tomando esta profecia como um mandamento de Deus.
Aqui, em Corinto, Deus tem “um grande povo”; emprega
também a incrédula indiferença de Gálio para frustrar os projetos e a
malícia dos Judeus, invejosos, como sempre, de uma religião que
anulava a sua importância, qualquer que fosse, aliás, a graça de
Deus para com eles, Paulo, depois de ter trabalhado durante muito
tempo em Corinto, parte em paz. Os seus amigos Judeus, Priscila e
Áquila, vão com ele. Tendo feito um voto, dirige-se a Jerusalém.
A oposição dos Judeus não tirava a Paulo a sua afeição pela
sua nação, nem a sua fidelidade em pregar-lhe sempre em primeiro
lugar o Evangelho e a reconhecer-lhe tudo o que lhe pertencia em
graça perante Deus. Submete-se mesmo às ordenanças judaicas.
Talvez os hábitos, anteriormente adquiridos, tivessem ainda sobre
ele alguma influência, sem ser a influência do Espírito Santo. Mas,
ainda que assim fosse, ele não tinha, segundo o Espírito, nenhum
pensamento que revelasse desconhecer o que a paciente graça de
Deus concedia ao povo. Dirige-se aos Judeus em Éfeso. Estes
estão dispostos a escutá-lo, mas ele quer celebrar a festa em
Jerusalém. Aqui, ele é ainda Judeu, com as suas festas e os seus
votos. É evidente que o Espírito Santo introduziu aqui essas
circunstâncias para nos dar um quadro verdadeiro e completo das
relações entre o sistema judaico e aquele de que Paulo era ministro,
o grau de libertação da influência de um, assim como da energia
que estabelecia o outro. Um antigo sistema que se liga à carne,
retém muitas vezes a sua influência, era certa medida, quando a
energia para atuar, segundo um outro sistema, que é espiritual,
existe em grau muito elevado. A liberdade que condescende aos
preconceitos e aos hábitos não é sujeição a esses mesmos
preconceitos, na nossa própria pessoa. As duas coisas misturam-se
na nossa fraqueza, mas são, de fato, opostas uma à outra.
Respeitar o que Deus respeita, quando somos chamados a atuar
em relação com um sistema, mesmo quando aquilo que
respeitamos já não é senão uma superstição e uma fraqueza, e o
próprio sistema tem perdido toda a força e todo o seu real valor é
algo muito diferente de um indivíduo se colocar sob o jugo da
superstição e da fraqueza. O primeiro modo de agir é o efeito do
Espírito, o segundo é o efeito da carne. Mas em nós, infelizmente,
não raro se confunde um com outro. A caridade torna-se a fraqueza
que lança a incerteza no nosso testemunho.
Paulo continua a sua viagem, sobe a Jerusalém e saúda a
Igreja (verso 22). Depois desce a Antioquia e visita de novo todas as
Igrejas que ele tinha fundado, unindo assim toda a sua obra,
Antioquia e Jerusalém. Deixo ao leitor o cuidado de julgar até que
ponto os seus antigos hábitos exerciam influência sobre ele na sua
maneira de atuar.
Ele era Judeu. E o Espírito Santo quis fazer-nos compreender
que o apóstolo estava tão longe quanto possível de desprezar o
antigo povo de Deus, para o qual o favor divino nunca mudará. O
sentimento de Paulo a este respeito era certamente justo, pois a
Palavra de Deus mostra-nos que, num outro caso, ele ultrapassou
os limites que o Espírito e a espiritualidade teriam posto a esse
sentimento. A Palavra de Deus aqui não nos dá senão os fatos, e o
apóstolo poderia ter tido alguma razão particular e válida, por causa
da posição especial em que se encontrava. Por vezes poderemos
achar-nos em circunstâncias tais que contradigam a liberdade do
Espírito Santo, e que, no entanto, quando estamos nelas, têm um
curto direito sobre nós, exercendo uma influência que,
necessariamente, enfraquece na alma a energia dessa liberdade.
Não temos razão de aí nos colocarmos, mais, uma vez que nos
encontremos lá, os direitos fazem-se valer e a influência exerce-se.
Por exemplo: Um homem chamado por Deus para O servir é
expulso da casa paterna, passando a andar na liberdade do
Espírito.
Mas mais tarde, sem que o pai tenha mudado, até volta à
casa paterna. Os direitos de seu pai como que renascem.
Onde estará agora a sua liberdade? Um homem possuindo
uma inteligência espiritual muito mais lúcida do que alguns dos seus
amigos, coloca-se, no entanto, no meio deles. A partir daí ser-lhe-á
quase impossível conservar um poder de julgamento espiritual. E é
do lado daquele que gozava da liberdade e da plenitude da graça
que o laço é voluntariamente formado com um sistema que estava
ainda sob o jugo da lei. Os Cristãos em Jerusalém ficam ao nível
dos seus antigos preconceitos, reclamando a paciência e a
indulgência daquele que era o vaso e a testemunha da liberdade do
Espírito de Deus.
Isto, com o suplemento da obra de Paulo em Éfeso, forma o
círculo dos trabalhos ativos do apóstolo, para nele nos mostrar os
caminhos do Espírito para o homem no Evangelho. Desde o verso
24 do capítulo 18 até ao verso 7 do capítulo 19 encontramos uma
espécie de resumo dos progressos da doutrina de Cristo e do poder
que a acompanhava.
Apolo não conhecia senão os ensinamentos de João, porém,
de coração reto, confessava diante de todos o que sabia, e
anunciava-o publicamente. Havia nele a fé de uma alma
regenerada. Áquila e Priscila esclarecem-no plenamente acerca dos
fatos do Evangelho e da doutrina de um Cristo morto, ressuscitado e
glorificado. Quando chega a Corinto, Apolo é já um poderoso doutor
do Evangelho do Senhor no meio dos Judeus, confirmando assim a
fé dos discípulos. A energia do Espírito Santo manifesta-se nele
sem nenhuma intervenção de Paulo nem de nenhum dos doze. Ele
atua independentemente, isto é, o Espírito atua nele
independentemente da autoridade já conferida a outros. Certas
pessoas podiam dizer: “Eu sou de Apolo” (1 Coríntios 1:12)! É
interessante ver essas diversas manifestações do poder e da
liberdade do Espírito Santo, e lembrar que o Senhor está acima de
tudo, e que, se atua muito em favor de um Paulo, atua também em
quem Ele quer e onde quer.
Por outro lado, no que se segue, encontramos o progresso da
revelação divina ligada ao poder apostólico de Paulo. A presença
desse poder no apóstolo é fartamente desenhada e verificada pelo
poder que ele tem de comunicar o Espírito Santo.

CAPÍTULO 19

Enquanto Apolo estava era Corinto, Paulo encontrou em


Éfeso doze pessoas que criam, mas que não tinham outros
conhecimentos além daqueles que João lhes ministrara. O seu
batismo reportava-se aos ensinamentos de João. Era um Cristo que
havia de vir que eles esperavam, e um Espírito Santo que deveria
ser comunicado por Ele.
Ora, o batismo de João exigia o arrependimento, mas de
maneira nenhuma saía do âmbito do Judaísmo, embora abrindo
uma perspectiva de coisas mais excelentes, que decorriam da
soberania de Deus e seriam o efeito da vinda de Cristo. Mas esse
batismo de João era um batismo de arrependimento para o homem
sobre a Terra, não significando a morte e a ressurreição. A graça
agia num Remanescente, mas um Remanescente de que Jesus era,
O Companheiro sobre a Terra. O Cristianismo (porque o pecado do
homem foi posto plenamente em evidência) baseia-se na morte e na
ressurreição; era primeiro lugar na de Cristo, pela qual a redenção é
efetuada, e em seguida na nossa morte e na nossa ressurreição
com Cristo, de modo a colocar-nos n’Ele e tal como Ele, diante de
Deus, numa vida sem pecado, tendo uma vida de que a Sua vida é
a fonte, e sendo lavados de todos os nossos pecados no Seu
sangue. De fato, o batismo de João ensinava apenas o
arrependimento neste mundo, para preparar os Judeus para
receberem a Cristo. Pelo contrário, o Cristianismo ensina a eficácia
da morte e da ressurreição de um Cristo rejeitado, em virtude da
qual se recebia o Espírito Santo, o Paracleto descido do Céu. Os
doze homens de Éfeso sabiam bem que João tinha anunciado que,
pela intervenção do Cristo, seríamos batizadas com o Espírito
Santo, mas não sabiam se o Espírito Santo já existia (1) prova clara
de que eles não tinham ainda entrado na Casa de Deus, onde o
Espírito Santo habitava.
Paulo explica-lhes tudo aquilo de que as suas almas
careciam, e eles são batizados em Nome de Jesus. Em seguida
Paulo, na sua qualidade de apóstolo, impõe-lhes as mãos, e eles
recebem o Espírito Santo; falam em línguas e profetizam (verso 6),
Importa que este poder do Espírito e aquele que dele é o
instrumento se desenhem claramente diante dos nossos olhos. A
capital da Ásia (isto é, da província romana desse nome) é a cena
onde esta ação do Espírito é posta em evidência. Nesta cidade
veremos desenvolver-se um poder que atua independentemente de
todas as formas tradicionais e domina tudo o que o rodeia: o
homem, o Inimigo, a consciência — um poder organizador que
forma dele mesmo e para ele mesmo as instituições e o corpo que
lhe convêm. O poder da graça ativa tinha sido desenvolvido na obra
de Paulo, desde Antioquia, e tinha-se manifestado de diversas
maneiras. Agora aqui, em Éfeso, temos pormenores sobre o
estabelecimento formal da obra desta graça num grande centro.
Durante três meses de paciência o apóstolo anuncia Jesus a
sinagoga e discute com os Judeus, conscientes da força divina e da
verdade. Concede a preeminência, como esfera de testemunho,
Aqueles que tinham sido o instrumento e o povo de Deus
“primeiramente ao Judeu”. Já se não pode dizer: “A salvação é dos
Judeus”: mas sim: esta salvação é anunciada a eles primeiramente.
No entanto, tendo a obra que o apóstolo fazia no meio deles
tido o seu desenvolvimento, e aparecendo muitos adversários,
Paulo atua, e da parte de Deus, como fundador daquilo que a Deus
convinha: Separa os discípulos e discursa acerca do Cristianismo na
sala de um Grego, que tinha uma classe pública, E assim continua
durante dois anos, de modo que a doutrina foi espalhada por todo o
país, quer entre os Judeus, quer entre os Gregos. Deus não deixa
de prestar testemunho à palavra da Sua graça, e o Seu poder é
desdobrado de modo notável em relação com a pessoa do apóstolo,
que apresenta esse testemunho. As manifestações do poder de
Satanás desaparecem diante da ação do poder libertador do Senhor
— e o Nome de Jesus é glorificado. A realidade da ação divina,
confiada às mãos do apóstolo, foi demonstrado de modo
impressionante: Por um lado a fonte da libertação divina concedida
ao homem na ação pessoal, positiva e real do Senhor; e por outro
lado a missão de Paulo e a fé como meio pelo qual esta força
sobrenatural operava foram publicamente pastas em evidência.
Certos Judeus querem servir-se dos nomes de Jesus e de Paulo,
como instrumentos de poder, no seu próprio interesse (versos 13 e
seguintes), e, sem fé, empregam o Nome de Jesus, que Paulo
pregava, como se esse Nome encerrasse uma espécie de encanto.
Mas o espírito mau, cujo poder era também verdadeiro e real,
embora no seu gênero, tal como o do Senhor — que ele era forçado
a reconhecer, quando em exercício — sabia muito bem que não
havia neles nem fé nem poder divino: “Conheço Jesus, e sei quem é
Paulo, mas vós quem sois?”, diz o espírito mau aos filhos de Ceva
— e o homem possesso se lançou sobre eles e espanca-os a todos!
Relevante testemunho este prestado à ação do Inimigo; mas
glorioso testemunho prestado também, e ao mesmo tempo, à força
superior que fazia parar essa ação, quando o achava conveniente, o
à realidade da intervenção de Deus, que operava por intermédio de
Paulo. Ora, quando Deus Se manifesta, a consciência mostra-se
sempre, e a influência do Inimigo sobre ela é anulada. O terror
apodera-se então dos espíritos dos Judeus e dos Gregos, e vários
daqueles que tinha crido trazem as provas das suas feitiçarias
passadas e queimam os seus livros. A poderosa ação do Espírito
Santo mostra-se na decisão que ela própria produziu, na realização
imediata e sem hesitação dos pensamentos e das resoluções
tomadas nos corações. Não se tratava de longos arrazoados
consigo mesmos; a presença e o poder de Deus tinham produzido
os efeitos que lhes eram próprios.
Todavia, os recursos do Inimigo não estavam ainda
esgotados! A obra de Deus estava feita, no sentido do
estabelecimento do testemunho pela obra apostólica, e Deus
enviava o Seu servo para outra parte (verso 21 e seguintes).
Satanás agora, como faz habitualmente, suscita um tumulto,
excita as paixões dos homens contra os instrumentos do
testemunho de Deus. Paulo tinha já manifestado o desejo de deixar
a Ásia, mas somente um pouco mais tarde. Tinha enviado à sua
frente Timóteo e Erasto, tencionando ele próprio visitar a Macedónia
e a Acaia, dirigindo-se dali a Jerusalém e depois a Roma. Portanto,
o apóstolo fica ainda algum tempo na Ásia.
Após a partida daqueles dois irmãos, que deviam preceder o
apóstolo, Demétrio, (o ourives), amotina o povo contra os Cristãos.
Irritado contra o Evangelho, que abalava todo o sistema em que
assentava a sua fortuna e que estava ligado a tudo aquilo que lhe
dava a importância de que gozava, este instrumento de Satanás
sabe atuar sobre as paixões dos artífices que trabalhavam no seu
próprio ofício, fazendo pequenos santuários portáteis de prata, da
deusa Diana. O trabalho deles ligava-se a algo que toda a gente
admirava, a algo que se apossara dos seus espíritos, a algo que
tinha dado, havia longo tempo, a sua cor aos hábitos religiosos do
país — e é motivo de grande conforto para os cegos de espírito que
haja objetos de culto com esse caráter. Uma grande parte da
influência que exercia esse ídolo sobre as massas populares não
era “Grande é Diana”, mas sim “Grande é a Diana dos Efésios”!
Além dos motivos especiais que dominavam Demétrio, havia em
tudo o que se passava em Éfeso o poder do Inimigo entre os
Gentios.
Os Judeus, ao que parece, querendo aproveitar-se daquele
estado de espírito do povo, tiram de entre a multidão um certo
Alexandre e impelem-no para a frente — talvez aquele que se tinha
oposto a Paulo e que, por conseguinte, eles supunham que seria
escutado pelos amotinados; mas era o demônio da idolatria que
agitava as multidões, e os Judeus ficaram decepcionados na sua
esperança! Então, ou os irmãos ou alguns dos Asiarcas (2)
impedem Paulo de se apresentar no teatro.
A Assembleia é dissolvida pelas autoridades da cidade, e
Paulo, tendo visto os discípulos, parte em paz (3). Ali, a sua obra
estava acabada, e o Evangelho estava implantado na capital da
província da Ásia e mesmo em toda a região. A Grécia e a
Macedônia já o tinham recebido.
Faltava ainda visitar Roma. De que maneira deveria Paulo
dirigir-se ali? É a questão que agora se põe. Termina aqui a vida
livre e ativa do apostolo, tanto quanto nos foi dada a conhecer pelo
Espírito Santo; vida abençoada de uma fé quase sem igual, de rara
energia que ultrapassou tudo o que já virmos em homens — vida
que, pelo poder divina que nela operava, produziu os efeitos mais
queridos de Deus, através de obstáculos aparentemente
intransponíveis, de toda a espécie de oposição, no desprezo e na
miséria, vida enfim que, como instrumento nas mãos de Deus,
manifestou o seu caráter na Igreja, dando-lhe existência.
E esta vida tem produzido os seus efeitos, apesar das duas
religiões hostis que partilham o mundo civilizado — apesar de um
sistema religioso que possuía a verdade, mas procurava sempre
retê-las nos limites das tradições que concedem amplo lugar à
carne; sistema que podia invocar a prioridade e o apoio dos hábitos
dos apóstolos, nomeados pelo próprio Senhor.
A Igreja, como Paulo previra, teria, dentro em pouco,
retomado os seus caminhos judaicos, quando a energia do apóstolo
lhe tivesse faltado. É necessário o poder do Espírito para subir mais
alto do que a religiosidade da carne. A piedade não sai
necessariamente desta, e o poder divino não é de forma alguma
uma tradição! O poder é sempre o poder, sendo, portanto,
independente do homem e das suas tradições, ainda que, por amor,
os suporte.
Assim a carne retoma sempre o caminho das tradições e das
formas, porque ela não é jamais poder nas coisas de Deus, embora,
eventualmente, possa reconhecer o dever. Por conseguinte, ela não
sobe ao Céu; não compreende a graça; pode ver o que o homem
deveria ser para Deus (sem, no entanto, ver nisso todas as
consequências, se Deus é revelado), mas de modo nenhum pode
ver o que Deus é para o homem na Sua graça soberana. Lá, onde o
Espírito tiver atuado, a carne guardará talvez a doutrina da graça,
como ortodoxa; mas nunca colocará a alma no gozo dessa graça.
Foi esse regresso carnal a um espírito legal e tradicional, mais ainda
do que as violências dos pagãos e o ódio dos Judeus, que magoou
o coração do apóstolo abençoado e fiel e que foi a origem de todas
as suas maiores angústias.
Paulo teve, por graça, um caráter, ou antes, uma posição
mais semelhante a Cristo do que nenhum outro sobre a terra. As
suas epístolas mostram-nos bem quão grandes foram os combates
a que essa posição o expôs, e qual tem sido esta alma ardente que,
abraçando nos seus pensamentos todos os desígnios revelados de
Deus, pondo cada porção no seu devido lugar e estendendo os seus
afetos a todo o conjunto da obra e da Igreja de Deus, sabia ao
mesmo tempo concentrar toda a energia do seu pensamento sobre
um único ponto importante, e toda a energia do seu afeto sobre um
pobre escravo que a graça lhe tinha dado nas suas cadeias. Como
instrumento do Espírito, ele brilha com celeste luminosidade no meio
de tudo aquilo que o rodeia na obra do Evangelho. Condescende à
fraqueza da fé dos seus irmãos em Jerusalém, eleva a sua voz com
força na Falácia, quando pervertem as almas, leva os apóstolos a
decidir que a liberdade dos Gentios deve ser mantida, e usa de toda
a liberdade para se fazer como Judeu entre os Judeus, e como sem
lei para aqueles que não tinham lei, — mas sempre inteiramente
submisso a Cristo. Oh!, mas como era tremenda a dificuldade para
manter a altura da vida e da revelação espiritual no meio de tantas
tendências contrárias! Era também “sem censura”; nada dentro dele
impedia a comunhão com Deus, esta comunhão em que ele bebia a
sua força para ser fiel no meio dos homens. Ele podia dizer, e mais
ninguém senão ele: “Sede meus imitadores, como também eu o sou
de Cristo” (1 Cor. 11:1). Ele podia dizer: “Tudo sofro, por amor dos
escolhidos, para que também eles alcancem a salvação que está
em Cristo Jesus, com eterna glória” (2 Tim. 2:10). Palavras como
estas não estariam fora de lugar na boca do próprio Salvador,
embora em sentido mais elevado, é evidente, porque o Salvador
trouxe para o próprio Paulo a cólera que teria sido a condenação
eterna deste; mas elas fazem sobressair a notável posição de Paulo
como vaso do Espírito Santo, que dele Se servia. “Cumpro na minha
carne”, diz ele, “o resto (4) das aflições de Cristo, pelo Seu corpo,
que é a Igreja, da qual eu fui feito ministro... para cumprir a palavra
de Deus” (Colossenses 1:24-25).
João, pelo seu íntimo conhecimento da Pessoa de Cristo,
nascido sobre a Terra e Filho de Deus, pôde manter esta verdade
essencial e individualmente vital, mesmo no campo onde Paulo
trabalhou; mas era a porção de Paulo o ser o instrumento ativo da
divulgação da verdade que salva a alma e que, pela fé, põe o
homem arruinado em relação com Deus, comunicando todos os
Seus desígnios em graça.
No entanto Paulo era homem, embora fosse um homem
maravilhosamente abençoado. A força intrínseca do Judaísmo em
harmonia com a relação deste com a carne é surpreendente. Com
efeito, pelo que diz respeito ao resultado final, se o homem desce
abaixo da graça, isto é, abaixo de Deus, então é melhor, pelo menos
em certo sentido, que ele seja homem sob a lei, do que homem sem
fé! É evidente que ele será ou uma coisa ou outra, mas, entrando na
ideia exclusiva do dever, o homem esquece Deus tal como Ele é,
porque Deus é amor; e Deus esquece também muitas vezes o
homem tal como ele é, porque o homem é pecado. Se o homem
reúne as ideias de dever e de pecado, a consequência é uma
escravidão contínua — e é a esta ideia de pecado e do dever,
juntando-lhe suma boa dose de ordenanças, para aliviar a
carregada consciência, que o Cristianismo foi geralmente reduzido.
Estabeleceram-se formas para criar a piedade, ali, onde falta a
comunhão.
Revestiriam do nome de Cristo e da autoridade da chamada
Igreja a existência real daquilo que, na sua realidade, se identifica
com o princípio da graça soberana (ver Efésios 5:24).

(1) Literalmente: “Se o Espírito Santo existe”. Esta expressão,


a mesma que aparece em João 7:39, é um impressionante
testemunho à importância e à presença distinta do Espírito Santo
sobre a Terra. Esta presença é chamada “o Espírito Santo”, embora
saibamos muito bem que Ele existe em todos os tempos. Mas o que
é chamado “o Espírito Santo”, quer dizer, a Sua presença neste
mundo, não tinha nunca tido lugar antes, pelo menos no sentido em
que aqui o tomamos.

(3) Talvez seja interessante para o leitor que indiquemos a


época em que Paulo escreveu algumas das suas epístolas; e estas
observações não serão destituídas de utilidade para ajudarem a
compreender esta parte da história do Novo Testamento. Paulo
escreve de Éfeso a primeira epístola aos Coríntios e mandou-lhe por
Tito. Enviou Timóteo para a Macedónia, e vemos que ele deveria,
talvez, ir à Grécia. “Se ele vem”, diz o apóstolo aos Coríntios.
Dá-se o motivo e a que a vida do apóstolo esteve em grande
perigo em Éfeso, e de que ele não pensava escapar com vida. Tinha
resolvido passar pela Grécia, ir a Macedónia e voltar em seguida à
Grécia; mas o estado de coisas em Corinto impede-o, e ele vai para
a Macedónia. De início dirige-se a Troas, mas não pára ali. Trabalha
muito na Macedónia, e sem descanso, porque Tito não tinha ainda
trazido notícias dos Coríntios. Entretanto chega Tito; encontra-o ali,
e o apóstolo é confortado na sua aflição pela boa notícia do
regresso dos Coríntios a sentimentos mais santos e mais Cristãos.
Nesta altura escreve-lhes a segunda carta, e, depois de ter visitado
as Igrejas, continua o seu caminho para Corinto. Dali escreve a sua
epístola aos Romanos.
Não me ocupo aqui senão do que se refere a esta parte da
história do apóstolo e dela alguma luz sobre os seus trabalhos.
(2) Os Asiarcas (habitantes da Ásia, como o nome indica)
eram magistrado honorários, tirados de entre os mais notáveis, e
encarregados de presidirem à celebração das festas religiosas.

(4) O leitor deve saber distinguir os sofrimentos do Senhor,


por causa do pecado, da parte de Deus, agindo em Justiça, — e os
Seus sofrimentos pela justiça, da parte dos homens pecadores. Nós
temos parte nestes últimos, enquanto que Cristo nos salvou dos
primeiros. De modo nenhum se trata, para nós, de participarmos nos
primeiros, mas sim de Cristo ter sofrido por nós, quando nós
merecíamos a condenação que é devida ao pecado.

CAPÍTULO 20

Logo que a calma é restabelecida em Éfeso, Paulo chama os


discípulos, abraça-os, e parte para a Macedônia. Visita todo este
país e depois segue para a Grécia. O princípio da segunda epístola
aos Coríntios dá os pormenores desta parte da história do apóstolo.
Fica três meses na Grécia. Depois, após as ciladas que lhe são
preparadas pelos Judeus, retorna o caminho da Macedónia, em
lugar de se dirigir diretamente à Síria. Em Trôade, onde uma porta
lhe tinha sido aberta, por ocasião da sua viagem para a Grécia, mas
onde o seu afeto pelos Coríntios lhe não tinha permitido ficar, passa
o primeiro dia da semana, mesmo toda a semana, a fim de ver os
irmãos. Vemos aqui a forma habitual da reunião dos fiéis: “Reuniam-
se para partirem o pão”. Vemos ainda que isso se faz habitualmente
“no primeiro dia da semana”. Paulo aproveita esta oportunidade
para falar toda a noite à Assembleia, mas a ocasião era
extraordinária. A presença e as exortações de um apóstolo não
foram suficientes para impedirem o sono de pelo menos um dos
assistentes! Não estavam, porém, reunidos em segredo ou em
trevas; havia muitas lâmpadas para iluminarem o cenáculo onde os
fiéis se reuniam. Podemos ver, pela natureza do local onde se
situava esta Assembleia, que as Igrejas se não compunham de
muita gente. O cenáculo, em Jerusalém, receberia talvez umas
cento e vinte pessoas. Por diversas saudações que encontramos
nas epístolas, poderemos ajuizar que se reuniam em casas
particulares, e provavelmente em várias, se o número dos crentes
assim o exigisse. Mas havia somente uma só Igreja ou Assembleia.
Êutico sofre o castigo da sua distração; mas, levantando-o de
um estado de morte, Deus presta testemunho à Sua própria
bondade e ao poder de que tinha dotado o apóstolo. Paulo,
descendo, inclina-se sobre o jovem, abraça-o, e diz que a sua alma
ainda está nele. Portanto, não se tratava aqui senão de restabelecer
a relação entre a alma e a organização física. Mas noutros casos
semelhantes a alma foi obrigada a regressar ao corpo.
Paulo, continuando o seu caminho, quer ir só de Trôade até
Assôs. Em toda a história que agora estudamos vemos que o
apóstolo, por aquele poder que o Espírito Santo lhe dava sobre os
seus companheiros, dispunha dos seus voluntários serviços, não
como senhor, sem dúvida, mas mais absolutamente do que se ele
fosse, de fato, seu amo! Ele é, sob Cristo, o centro do sistema em
que trabalha, o centro da energia! Ora, só Cristo pode ser, de direito,
o Centro quanto à salvação e à fé; e Paulo não era o centro dessa
mesma energia, senão enquanto estivesse cheio do Espírito de
Deus — e isto, como vimos já, não entristecendo o Espírito, e
procurando ter sempre uma consciência sem mácula, quer a
respeito de Deus, quer a respeito dos homens.
O apóstolo não quer deter-se em Éfeso, embora, num tal
centro, ele devesse permanecer algum tempo. Não era por falta de
afeição pelos seus queridos Efésios, e menos ainda o pensamento
de querer desprezá-los; mas era preciso evitar o que tinha um certo
direito moral sobre ele, se não queria ser retido pela obrigação que
lhe impunha esse direito. Paulo convoca os anciãos de Éfeso e
dirige antes um discurso que é necessário examinar um pouco,
porque ele apresenta a nós a posição em que se encontrava a Igreja
e a obra do Evangelho entre as nações.
As Igrejas estavam consolidadas sobre uma vasta área do
país, e, pelo menos em vários lugares, tinham tomado a forma de
uma instituição regularmente ordenada. Alguns anciãos tinham sido
já estabelecidos e reconhecidos como tal. O apóstolo pode convocá-
los; a sua autoridade também era por eles reconhecida. Paulo faz-
lhes do seu ministério como de uma coisa passada (que solene
pensamento este!), tomando-os como testemunhas não só de que
ele lhes pregara a verdade, mas uma verdade que se dirigia à
consciência deles, colocando-os, por um lado, perante Deus, e por
outro apresentando-lhes Aquele em quem Deus Se fazia conhecer
em quem Ele comunicava toda a plenitude da graça, isto é, Jesus,
objeto da sua fé e Salvador das suas almas. Tinha-lhes anunciado
tudo isso através das penas e das dificuldades, em presença da
inconsciente oposição dos Judeus, que tinham rejeitado o Cristo. O
apóstolo tinha cumprido a sua penosa tarefa, segundo a graça, que
o elevava muito acima desse mal, anunciando aos Judeus a
salvação, e ultrapassando os limites desse povo, porque se tratava
da graça, dirigindo-se aos Gentios, a todo o homem pecador e
responsável. Enfim, tinha feito tudo isso, não com o orgulho de um
doutor, mas com a humildade e a perseverança do amor. Aliás, o
apóstolo também desejava acabar o seu ministério, não faltando em
nada ao que Jesus lhe tinha confiado. E agora ia a Jerusalém,
sentindo-se constrangido no seu espírito a faze-lhe, não sabendo ao
certo o que iria acontecer-lhe, mas advertida pelo Espírito Santo de
que o esperavam cadeias e tribulações. Quanto aos fiéis de Éfeso,
Paulo sabia que o seu ministério estava terminado a respeito deles,
e que já não voltaria a vê-los. Doravante a responsabilidade pesaria
sobre eles.
Assim, o que o Espírito Santo nos apresenta nesta
comovente passagem da Escritura é que ali, onde a narrativa
pormenorizada do trabalho do apóstolo entre os Gentios, para
implantar entre eles o Evangelho, lhes apresenta um quadro perfeito
do resultado dos seus trabalhos, quer a respeito dos Judeus, que se
encontravam nesses lugares, quer a respeito dos próprios Gentios
— ali, ele despede-se da obra, para deixar aqueles, que tinte
reunido, numa nova posição.
Se Paulo alguma vez foi posto em liberdade e voltou a este
região — não necessariamente a Éfeso — como fariam supor as
epístolas aos Filipenses, a Filemom e talvez a segunda a Timóteo,
não temos narrativa escriturística a tal respeito.
Este discurso marca o fim de uma das fases da Igreja, a
saber, do período dos trabalhos apostólicos, e a sua entrada numa
outra fase, a da responsabilidade dos Cristãos, devendo
permanecer-se na posição em que os trabalhos dos apóstolos os
tinham colocado, agora que esses trabalhos tinham cessado.
Mostra-nos o serviço dos anciãos que eram estabelecidos pelo
Espírito Santo como vigilantes ou bispos e ao mesmo tempo os
perigos e as dificuldades que assinalariam a cessação dos trabalhos
apostólicos e complicariam a obra dos anciãos, aos quais a
responsabilidade seria agora mais particularmente entregue.
Uma primeira observação importante a fazer ao tema deste
discurso é que a sucessão apostólica é ali inteiramente negada. A
ausência do apóstolo, segundo o seu próprio testemunho, seria
causa de diversas dificuldades; e o próprio Paulo nos faz ver que
ninguém estaria lá, no seu lugar, para responder a essas
dificuldades ou para impedi-las de surgirem. O discurso do apóstolo
anuncia em segundo lugar que uma vez a energia apostólica
afastada, energia que refreava o espírito do mal, lobos roubadores
do exterior e doutores do interior, ensinando coisas perversas,
levantariam a cabeça e ocupar-se-iam a corromper a simplicidade
da Igreja e a destruir a sua felicidade. A Igreja seria atormentada
pelos esforços de Satanás, sem possuir a energia apostólica para
fazer face a esses esforços. Este testemunho ido apóstolo é da mais
alta importância a respeito de todo o sistema eclesiástico. A atenção
dos anciãos, aos quais é confiado o cuidado de velar, é dirigida em
algum lugar (agora que a Igreja já não tem o recurso dos cuidados
apostólicos, nem nada que tomasse oficialmente o seu lugar) para
ser guardada em paz e garantida do mal.
É a eles que compete cuidar da Assembleia em tais
circunstâncias.
Em seguida, o que eles tinham principalmente de fazer, para
se preveniram contra o mal, era pastorear o rebanho, velando, com
esse fim, quer sobre eles próprios, quer sobre o rebanho. E para
que o fizessem com sucesso, Paulo lembra-lhes como ele próprio os
tinha exortado dia e noite com lágrimas. Que velassem, pois! ...
O apóstolo não os recomenda nem a Timóteo nem a um
bispo, mas sim — e isto de maneira que põe inteiramente de parte
qualquer recurso oficial — a Deus e à palavra da Sua graça, que
bastava para os edificar e para lhes assegurar a herança.
Foi, pois, neste ponto que Paulo deixou a Igreja. O que ela
tem feito a partir daí não é tema de que nos ocupe aqui. E se João
veio, mais tarde, trabalhar nestas regiões, isso constitui um grande
favor de Deus, mas, oficialmente, não mudava em nada a situação.
Os trabalhos de João (salvo as suas advertências às Igrejas no
Apocalipse, onde se trata do julgamento) tinham em vista a vida
individual, o seu caráter e o que a alimentava.
Com um profundo e impressionante afeto, Paulo separa-se
da Igreja em Éfeso. Quem, pois, encheu o vazio que a sua ausência
deixou? O apóstolo apela ao mesmo tempo à consciência dos seus
auditores, como testemunhas da integridade do seu comportamento
durante a sua permanência no meio deles. Os livres trabalhos do
dos Gentios estavam terminadas — pensamento solene e
comovente! Deus tinha-o escolhido como instrumento para
comunicar ao mundo os Seus desígnios a respeito da Igreja, e para
fundar no mundo este objeto precioso dos Seus afetos, unido a
Cristo, à Sua direita. Que virá ela a ser neste mundo?...
Doravante o apóstolo deve dar contas de si mesmo e cumprir,
de maneira impressionante, as predições do Senhor.
Levado pela maldade dos Judeus perante os tribunais,
entregue pelo seu ódio nas mãos dos Gentios, tudo isso ia tornar-se
mais um testemunho. Os reis e os governadores ouvirão o
Evangelho, mas o amor de muitos se resfriará.
Tal era, em geral, a situação. Mas havia também alguns
pormenores que eram mais pessoais ao apóstolo.
Podemos notar agora um traço importante do livro que
estudamos e que ainda pouco observamos, a saber, o
desenvolvimento da inimizade dos Judeus, até à uma rejeição final,
enquanto colocados sob a sua própria responsabilidade.
Os Atos dos Apóstolos terminam pelo último exemplo da
obstinação deles, que se apresenta na história apostólica. No
decurso desta história, a obra entre os Judeus é deixada no
esquecimento, e a de Paulo ocupa toda a cena na narrativa histórica
dada pelo Espírito Santo. A oposição dos Judeus à manifestação da
Igreja, que substituía esse povo e na qual se apagava a distinção
entre os Judeus e os Gentios, encontra-se a cada passo na carreira
do apóstolo.
Essa distinção apagava-se totalmente pela introdução do Céu
e da graça plena e soberana — em contraste com a lei que, sendo
inteiramente universal nas suas direções, era, porém, dada a um
povo distinto — e todo o pecador aproveitava desta graça pela fé.
Embora o apóstolo usasse de todas as atenções possíveis para com
os Judeus, que ele amava como seu povo, o ódio que é sua obra
lhe acarretou da parte deles e que perseguiu o apóstolo em cada
passo da sua carreira, revela essa oposição em toda a sua
intensidade em Jerusalém, de que era o centro natural, e manifesta-
se nas violências da multidão e nos esforços feitos junto dos
Gentios, esforços que tinham por fim tirar um tal homem da face da
Terra. Era o que tornava muito séria a posição do apóstolo em
Jerusalém a respeito dos Gentios; nessa cidade, ainda mais
ciumenta da sua importância religiosa — importância que ela, na
realidade, tinha perdido sob a escravatura romana, transformando
esta importância num espírito de rebelião contra a autoridade que a
oprimia.

CAPÍTULO 21

Após a história do Cristianismo, como que ligando-se ao


Judaísmo (em relação com as promessas e seu cumprimento no
Messias), encontramos Paulo em três posições diferentes.
Primeiramente vemo-lo condescender aos sentimentos judaicos e à
consciência que os Judeus tinham das suas antigas relações com
Deus, com um fim de conciliação e tendo em consideração o que
existia em Jerusalém.
Dirige-se mesmo por toda a parte aos Judeus, nas suas
sinagogas, como sendo aqueles que tinham, administrativamente,
direito a ouvir em primeiro lugar o Evangelho: “Primeiramente ao
Judeu, depois ao Grego”, porque Jesus era Ministro da circuncisão,
para a verdade de Deus, para cumprir as promessas feitas aos pais.
Paulo nunca faltou a essa deferência aos caminhos de Deus e
comprova clara e dogmaticamente, na epístola aos Romanos, os
princípios sobre os quais este procedimento estava fundado.
Em seguida encontramos o apóstolo em toda a liberdade da
plena verdade da graça e dos desígnios de Deus. Esta liberdade,
decorrendo da plenitude da graça, manifesta-se na obra que era
própria para Paulo e caracteriza a verdadeira elevação espiritual do
seu ministério, elevação da qual ele baixava por graça. Isto é-nos
ensinado na Epístola aos Efésios. Nestas duas posições Paulo atua
sob a direção do Espírito Santo, realizando a vontade do Senhor.
Em terceiro lugar vemos o apóstolo disputando com a
hostilidade do Judaísmo legal, do qual ele encontrava
constantemente os emissários, e em cujo centro — na da sua
história que agora estudamos — ele se lança, por fim, dirigindo-se a
Jerusalém!
Temos também de considerar nesta história o que era de
Deus e o que representava a continuação dos esforços do próprio
Paulo. Está fora de dúvida que a mão de Deus tenha estado em
tudo o que aconteceu ao apóstolo, como também está fora de
dúvida que Deus, em resultado, tenha tudo dirigido para o bem da
Igreja e do Seu bem-amado servo. Não nos resta senão procurar
saber até que ponto a vontade e os pensamentos de Paulo
entraram, como meios de que Deus Se serviu, na produção do
resultado que Deus quis trazer, quer para a Igreja, quer para o Seu
servo, quer para os próprios Judeus. Estas considerações são do
mais alto interesse e exigem um humilde exame daquilo que Deus,
para nos instruir a tal respeito, nos apresentou na narrativa que nos
é dada pelo Espírito Santo dos últimos acontecimentos da vida de
Paulo.
A primeira coisa que nos detém, logo no início dessa
narrativa, é o que o Espírito Santo diz a Paulo, para não ir a
Jerusalém (verso 4). E esta advertência tem uma importância
considerável e bem evidente. O apóstolo sentia-se obrigado a subir
a Jerusalém; havia no seu espírito qualquer coisa que o atraía para
ali, um sentimento que o dominava interiormente e o comprometia
nessa atitude; mas o Espírito Santo, no Seu testemunho positivo e
exterior, diz-lhe que não suba a Jerusalém! ...
A intenção do apóstolo tinha sido ir a Roma; e Paulo, sendo
apóstolo dos Gentios, enviado para pregar o Evangelho a toda a
criatura, não teria nada em si, no seu projeto, que não fosse
segundo a graça de Deus (Romanos 1:13-15). No entanto Deus não
lhe tinha permitido nunca ir a Roma, e ele teve de escrever aos
Romanos a sua epístola, sem os ter visto! O Céu é a capital do
Cristianismo.
Roma e Jerusalém não deviam ter qualquer importância para
Paulo, a não ser naquilo que, por afeição, suportava a uma, e na
disposição que tivesse, quando isso fosse possível, de evangelizar a
outra. A passagem de Atos (cap. 19:21), que é muitas vezes
traduzida por: “Paulo propôs-se pelo Espírito”, ou: “por um
movimento do Espírito”, não se refere, na realidade, senão ao
espírito de Paulo. O apóstolo resolvia essas coisas “no seu espírito”,
quer dizer, no seu próprio pensamento, dizendo: “Quando me for
possível, é preciso que eu veja Roma também”. Depois vemo-lo
carregar-se das ofertas dos Santos em Acaia e na Macedónia.
Eles desejam provar o seu afeto pelos pobres do seu povo
(Gálatas 2:10). Isso era muito bom, mas não sei se seria uma
função apostólica. Era um sentimento evidentemente judaico, um
caso particular dos pobres de Jerusalém, partindo mesmo de
Jerusalém. Um Judeu preferia ser pobre em Jerusalém a ser rico
entre os Gentios. Alguns Cristãos pobres se encontravam, sem
dúvida, nessa cidade por ocasião da sua conversão; mas o afeto por
Jerusalém, natural num Judeu, e mesmo até louvável, ora a coisa
principal dessas relações entre os que moravam em Jerusalém e os
outros Judeus (comparar Neemias 11:2 e Atos 24:17). Esse
sentimento, que subsistia neles, mantinha as suas relações com o
Judaísmo (Romanos 15:25-28). A união do coração de Paulo à
nação a que pertencia, segundo a carne, que tinha sido o povo
querido de Deus e o era ainda, embora rejeitado por algum tempo,
tinha o seu lado verdadeiro e profundamente impressionante. O
Remanescente devia entrar no Reino de Deus pelo Cristianismo,
todavia, Israel permanecia sempre o povo bem-amado de Deus.
Mas esse sentimento de afeto do apóstolo por Israel
impressionava também a carne. O apóstolo — o mensageiro da
glória celeste que tem feito sobressair a doutrina da Igreja como
sendo composta de Judeus e Gentios, sem distinção, unidos no
corpo de Cristo, doutrina que, portanto, apagava o Judaísmo — foi
rejeitado por causa desse sentimento no seio do Judaísmo hostil, do
Judaísmo furioso contra essa igualdade espiritual.
No entanto a mão de Deus manteve, sem dúvida, a Sua
supremacia em tudo o que aconteceu. Paulo, individualmente,
encontrou o seu nível. Como instrumento da revelação de Deus,
tinha anunciado em toda a sua extensão e em toda a sua força os
desígnios da soberana graça de Deus.
O vinho não estava falsificado; estava puro, tal como o
apóstolo o tinha recebido. Ele próprio se conduz, e de maneira
notável, à altura da missão que lhe tinha sido confiada (Comp. 2
Coríntios 2:17; e 4:1-4). Mas Paulo, individualmente, é homem; é
preciso que seja exercitado e manifestado.
Ora, nos exercícios a que Deus nos sujeita, lá onde a carne
encontra o seu prazer, na esfera ande ela se deleita encontra
também a sua aflição, quando Deus atua. Todavia, embora Deus
achasse bem provar o Seu servo e manifestar-lhe qual era o seu
estiado nessa relação, permaneceu sempre perto dele e abençoou-
o através da mesma prova que fez servir ao testemunho do
apóstolo, tranquilizando o coração do seu bem-amado e fiel servo. A
manifestação daquilo que, neste caso, não era segundo o Espírito e
segundo a altura da sua vocação apostólica, era, em amor, para a
sua bênção e para a bênção da Igreja. Feliz aquele que também
puder andar fielmente e, por graça, manter-se no mesmo nível, do
caminho da graça. No entanto Cristo é o único modelo. Não vejo
ninguém que se tenha assemelhado tanto ao Senhor como Paulo,
na sua vida pública.
Quanto mais de perto seguirmos a carreira do apóstolo mais
se notará essa semelhança. Somente Cristo era o modelo da
perfeição absoluta em obediência, enquanto que no Seu precioso
servo se encontrava também a carne. O próprio Paulo teria sido o
primeiro a reconhecer que a perfeição somente poderia ser atribuída
a Jesus Cristo.
Eu creio, pois, que a mão de Deus estava nessa viagem de
Paulo. Creio que Ele queria na Sua infinita sabedoria, fazer passar o
Seu servo por esse caminho e abençoá-lo ali também, mas que o
meio empregado, segundo essa sabedoria soberana, para ali
introduzir o apóstolo, foi a sua afeição humana para o povo da sua
afinidade, segundo a carne, e não o Espírito Santo, agindo da parte
de Cristo na Igreja. Esta ligação ao seu povo, esta afeição humana
encontrou no mesmo povo aquilo que a punha no seu devido lugar.
Humanamente falando, o sentimento do apóstolo era um sentimento
louvável, mas não era o fruto próprio do poder do Espírito, fundado
sobre a morte e a ressurreição de Cristo. No resultado dessa obra
divina, nos pensamentos que ali dominavam, já não havia nem
Judeus nem Gentios. Em Cristo, vivendo neste mundo, esse
sentimento de união com Jerusalém era justo. Cristo, no fim da Sua
vida terrena, ia a Jerusalém para morrer. Ele tinha vindo para isso
mesmo.
A afeição de Paulo era boa, mas, como fonte de atividade,
não era segundo a altura da obra do Espírito, que, da parte de um
Cristo glorificado, tinha enviado Paulo para longe de Jerusalém,
para os Gentios, para revelar a Igreja unida a Cristo no Céu, como
um corpo unido à sua cabeça.
Os Judeus escutaram o apóstolo até ao momento em que ele
falou dessa missão. Só depois soltaram os gritos que o levaram à
prisão (1).

(1) É digno de nota que a vontade de Cristo era que Paulo


fosse para os Gentios. Juntemos a isso que Ele já tinha dado
outrora a conhecer essa vontade, pela declaração seguinte:
“Apressa-te, e sai logo de Jerusalém, porque não receberão o teu
testemunho a meu respeito” (capítulo 22:18). De modo que esta
declaração de Paulo, que o seu testemunho não seria recebido em
Jerusalém, foi a ocasião da sua captura. Tanto a palavra de Cristo
como a de Paulo mostravam bem que o seu serviço não era em
Jerusalém, mas sim noutra parte.
O apóstolo sofreu pela Verdade, mas num lugar aonde essa
Verdade não tinha acesso, segundo o testemunho do próprio Cristo.
Os Judeus deviam manifestar mais uma vez o seu ódio contra o
Evangelho e dar uma última prova da sua obstinada oposição aos
caminhos de Deus em graça. Ao mesmo tempo, quaisquer que
tivessem sido os trabalhos anteriores do apóstolo (se os houve), o
Espírito Santo não lhes faz menção. Paulo vê os Judeus em sua
casa, em Roma, e recebe aqueles que querem visitá-lo; mas a
página da narrativa traçada pelo Espírito fecha-se ali. Esta história
terminou. A missão apostólica entre os Gentios, em relação com a
fundação da Igreja, está encerada. Roma não é senão a prisão do
apóstolo da Verdade. Jerusalém rejeita-o, e Roma prende-o e mata-
o, tal como tinham feito a Jesus, a quem o bem-aventurado apóstolo
devia assemelhar-se nisso também, segundo o voto expresso no
capítulo 3 da epístola aos Filipenses, porque Cristo e a sua
conformidade a Ele foram o seu único objeto. Foi dado a Paulo
encontrar essa conformidade com o seu Senhor, no Seu serviço,
como existia já tão poderosamente gravada no seu coração e na
sua alma, com a necessária diferença entre um ministério que não
devia nem esmagar a cana quebrada, nem elevar a voz nas ruas —
e um ministério que, em testemunho, devia mostrar o julgamento
aos Gentios.
A missão dos doze aos Gentios, tendo Jerusalém como ponto
de partida, segundo Mateus 28, não teve nunca execução, não
relatando, portanto, o Espírito Santo esse fato (2).

(2) Marcos 16:20 é a única passagem da Escritura que


poderia parecer fazer alusão ao cumprimento dessa missão, mas
não lhe dá esse caráter, porque, como Colossenses 1:6, refere-se
ao mundo inteiro e é fundada sobre a ascensão de Cristo ao Céu.
Não se trata de uma missão aos Gentios, fundada somente sobre a
ressurreição.

Jerusalém reteve os doze. Nem sequer percorreram todas as


cidades de Israel. Pedro recebeu o ministério da circuncisão. O
ministério dos Gentios foi confiado a Paulo, em relação com a
doutrina da Igreja e de um Cristo glorioso, de um Cristo que o
apóstolo já não conheceu segundo a carne. Jerusalém, aonde ele
foi, atraído pelo seu afeto, rejeitou Paulo, do mesmo modo que
rejeitou a sua missão. O seu ministério para com os Gentios, como
livre efeito do poder do Espírito Santo, teve também o seu termo.
Talvez a História da Igreja nos possa dizer mais acerca da obra de
evangelização do mundo, mas Deus teve o cuidado de encerrar a
história dessa obra numa profunda obscuridade. O Espírito Santo
não reconhece nada dessa obra. Já se não ouve falar dos apóstolos
em Jerusalém — e Roma, como vimos, não teve apóstolos para
fundarem uma Igreja dentro dos seus muros (isto, tanto quanto o
Espírito reconhece a obra ali, realizada no relato que dela nos dá), a
não ser o apóstolo dos Gentios, que ali esteve prisioneiro e
finalmente ali foi morto. O homem falhou por toda a parte sobre a
Terra! Os centros religiosos e político do mundo, centros que Deus
tinha estabelecido nos Seus caminhos para com a Terra, rejeitaram
o testemunho, e mataram a testemunha! Mas o resultado foi o Céu
manter os seus direitos intactos e na sua pureza absoluta. A Igreja,
a verdadeira capital celeste e eterna da glória e dos caminhos de
Deus; a Igreja, que tinha o seu lugar nos desígnios de Deus antes
que o mundo existisse; a Igreja, que responde ao coração de Deus
em graça, como unida a Cristo na glória; a Igreja fica o objeto da fé!
É revelada segundo os pensamentos de Deus, perfeitamente, tal e
qual está, nos Seus desígnios, até que — Jerusalém celeste — seja
manifestada em glória, em relação com o cumprimento dos
caminhos de Deus sobre a Terra; quando Jerusalém for
restabelecida como centro dos Seus caminhos terrestres em graça,
como Seu trono, como Sua capital, mesmo no meio das nações, e o
poder dos Gentios, de que Roma era o centro e a sede, tiver
desaparecido.
Examinemos agora os pensamentos do apóstolo e o que,
historicamente, ele passou: O apóstolo escreve de Corinto aos
Romanos, quando tinha em vista a sua viagem a Roma.
O Cristianismo tinha ganhado raiz nesse centro do mundo,
sem que qualquer um dos apóstolos ali o tivesse implantado.
Paulo limita-se a segui-lo. A capital do Império é como que
uma parte do seu território apostólico, que lhe escapa (veja-se
Romanos 1:13-15, e 15, onde ele volta ao mesmo assunto). Se não
pode ir a Roma, porque Deus não quer começar pela capital do
mundo (comparar a destruição da capital Cananeia, Hazor, em
Josué 11:10-13), Paulo escreverá, pelo menos, aos Cristãos que
estão em Roma, baseando-se no seu apostolado universal para os
Gentios. Havia Cristãos já fixados em Roma. Deus, assim o quis.
Mas esses Cristãos eram de algum modo, da competência do
apóstolo, e muitas pessoas, que tinham estado em relação direta
com ele, se encontravam nesta cidade. O número e o caráter das
saudações, que se encontram no fim da epístola aos Romanos, são
notáveis e têm um cunho particular, fazendo ver que os Cristãos de
Roma eram, em grande parte, os filhos na fé de Paulo.
No capítulo 15:14-29, desta mesma epístola, Paulo expõe a
sua posição apostólica perante os Romanos e outros Gentios. Quer
também ir a Espanha, quando tiver visto os seus irmãos de Roma;
quer comunicar a estes algumas graças (Romanos 1), mas quer ser
também consolado pela fé mútua deles; quer gozar um pouco da
sua companhia.
Eles estão em relação com ele, mas sem a sua presença
pessoal em Roma. Quando, pois, os tiver visto e passado algum
tempo com eles, irá a Espanha. Tem, porém, estado desapontado
acerca dos seus projetos — e tudo o que o Espírito Santo nos dá a
conhecer é que ele foi prisioneiro em Roma. Quanto à sua ida a
Espanha — silêncio profundo!
Em vez de ir mais além, depois de ter visto os seus irmãos de
Roma e de lhes ter comunicado os seus dons, o apóstolo fica dois
anos prisioneiro em Roma, e não se sabe se ele foi alguma vez
libertado. Uns dizem que sim, outros dizem que não. A Palavra de
Deus nada nos diz a tal respeito.
Os seus antigos afetos pelo seu povo e Jerusalém intervêm
no momento em que, à sua passagem por Corinto, o apóstolo expõe
a sua intenção de ir a Roma e o caráter das suas relações, segundo
o Espírito, com essa cidade — um vasto campo a ocidente, que se
abria diante dele: “Mas agora, vou a Jerusalém, ao serviço dos
santos” (Romanos 15:25-28). Por que então não ir a Roma, segundo
a energia do Espírito, quando a sua obra na Grécia estava concluída
(Romanos 13:23)? Deus quis, sem dúvida, que tudo o que
aconteceu a Paulo em Jerusalém tivesse lugar, e que Roma e os
Romanos tomassem, acerca do testemunho de um Cristo glorioso e
da Igreja, o triste caráter de uma prisão; mas, quanto a Paulo,
porque colocar Jerusalém entre o seu desejo evangélico e a sua
obra? A sua afeição era louvável; o serviço era bom para um servo
para um diácono ou para um mensageiro das Assembleias, mas
para Paulo, que tinha todo o ocidente aberto aos seus
pensamentos, para ali pregar o Evangelho? ...
Jerusalém interceptou o seu projeto; mas também o Espírito
Santo, no caminho, o adverte, dizendo-lhe, como vimos já, que não
vá àquela cidade. O próprio apóstolo pressentia o perigo que corria
por lá. Estava certo de vir a Roma na plenitude da bênção do
Evangelho, mas não era menos certo que ele viria com alegria
(Rom. 15:29-32). Aquilo para que ele pedia as orações dos
Romanos modificou-se de tal modo que ele não o teria desejado
assim.
Foi libertado das mãos dos Judeus, em Jerusalém, mas como
prisioneiro! Quando chegou a Itália, ganhou coragem ao avistar-se
com os seus irmãos no Fórum de Ápio e nas Três Tavernas. Mas já
não havia, para ele, viagem a Espanha.
Tudo isto me parece muito solene. O Senhor, cheio de graça
e de ternura, tem estado com o Seu pobre, mas bem-amado servo.
Uma tal narrativa e uma descrição em que se trata de uma pessoa
como Paulo é do mais comovente interessa. Os caminhos do
Senhor são adoráveis e perfeitos em bondade. A realidade da fé
encontra-se plenamente em Paulo, Os caminhos da graça de Deus
para com ele são perfeitos, e perfeitos também em ternura no
Senhor.
Deus permanece com o Seu servo para o encorajar e para o
fortificar, mesmo na provação em que ele se encontra. Ao mesmo
tempo, a respeito desse seu desejo de ir a Jerusalém, o apóstolo é
advertido pelo Espírito Santo, e as consequências dessa viagem
são-lhe declaradas.
Não se demovendo do seu projeto, sofre a disciplina que põe
a sua alma no seu lugar, mas num lugar de plena benção diante de
Deus. O seu comportamento encontra o seu nível quanto ao poder
espiritual. Paulo sofre exteriormente o poder daquilo que,
moralmente, tinha exercido influência sobre ele, procurando entravar
o seu ministério — e um jugo sobre a carne responde à liberdade
que ele tinha concedido. Havia justiça nos caminhos de Deus. O
Seu servo era-lhe demasiado precioso, para que permitisse que as
coisas se passassem de outra maneira. Ao mesmo tempo, quanto
ao resultado e ao testemunho, Deus ordena tudo para a Sua própria
glória, e em perfeita sabedoria acerca do futuro da Igreja.
Como vimos, Jerusalém repele definitivamente o pensamento
de que um testemunho seja dirigido aos Gentios, e bem assim a
graça que o enviava. Numa palavra: os caminhos de Deus na Igreja
(compare 1 Tessalonicenses 2:14-16), e Roma vem a ser a prisão
desse testemunho! Não obstante, e segundo a promessa do Senhor,
o testemunho é levado perante governadores e reis, e perante o
próprio César.
Eu disse que a graça punha Paulo na posição em que tinha
estado Jesus entregue aos Gentios, pelo ódio dos Judeus. Era uma
grande graça! A diferença entre o amor infinito do Senhor,
entregando-Se Ele mesmo à morte, e a relação em que Paulo se
encontrava com os Judeus era esta: Jesus servia de alvo ao ódio
deles, como estando no Seu verdadeiro lugar diante de Deus. Que
Ele fosse entregue era, realmente, da Sua parte, o cúmulo da Sua
dedicação e do Seu serviço. Era, no fundo, oferecer-Se pelo Espírito
Eterno. Era a esfera própria do Seu serviço, como enviado de Deus.
Paulo, ele próprio, estava nessa esfera judaica de onde a energia do
Espírito Santo o tinha tirado: “livrando-te deste povo, e dos Gentios,
a quem agora te envio, para lhes abrir os olhos” (Atos 26:17-1-8).
Paulo tinha sido admitido por Jesus, que o tinha estabelecido, fora
dos Judeus e dos Gentios, para exercer um ministério que os unia a
ambos num só corpo, no Céu, com Cristo que o tinha assim
enviado. Paulo não conhecia ninguém segundo a Carne. Em Cristo
Jesus não havia nem Judeu nem Grego! ...
Mas retornemos a história do apóstolo: Como vimos já, ele é
advertido pelo Espírito Santo para não subir a Jerusalém (capítulo
21:4). No entanto ele continua o seu caminho.
Em Cesareia, um profeta, de nome Ágabo, descendo da
Judeia, anuncia-lhe que será preso e entregue aos Gentios (versos
10-11). Poder-se-á dizer que não havia nada ali que impedisse o
apóstolo de subir a Jerusalém, e isso é verdade; mas, segundo a
ordem que ele tinha recebido, esta advertência reforçava a direção
já dada pelo Espírito, para não ir lá. Quando Paulo andava na
liberdade do Espírito, e era advertido da existência de um perigo,
fugia para outro lugar, embora soubesse também enfrentar todos os
perigos, quando o testemunho o exigia. Por exemplo, em Éfeso
deixou-se persuadir a não entrar no teatro.
Regra geral, o Espírito Santo não adverte os crentes dos
perigos que podem ameaçá-los. Ele conduz no caminho do Senhor,
e se a perseguição vem, Ele dá força para a suportar. Mas aqui
Paulo, era constantemente advertido.
Os seus amigos também o exortam a não subir a Jerusalém,
mas ele não se deixa persuadir. Então eles calam-se, pouco
satisfeitas, dizendo: “Faça-se a vontade do Senhor” (verso 14). E
essa era, estou certo, a vontade do Senhor, mas para cumprimento
de desígnios que Paulo não conhecia pela inteligência dada pelo
Espírito Santo. Ele sentia-se apenas impelido a ir a Jerusalém,
pronto a tudo sofrer pelo Senhor.
Paulo sobe, pois, a Jerusalém; e, uma vez lá, vai à casa de
Tiago. Os anciãos reúnem-se ali (versos 17-18). Conta-lhes a obra
de Deus entre os Gentios. Eles invocam o Judaísmo de que a
multidão estava cheia e, regozijando-se do bem que Deus tinha
operado pelo Espírito, desejam que Paulo se mostre obediente à lei.
Era preciso que os crentes de Jerusalém se reunissem por ocasião
da chegada de Paulo, e era preciso satisfazer aos seus
preconceitos acerca da lei. Paulo colocou-se perante as exigências
dos homens: Recusar submeter-se-lhes teria sido declarar que as
seus pensamentos eram fundados a respeito dele; agir seguindo o
desejo deles, teria sido fazer uma regra, não da direção do Espírito,
em toda a liberdade do amor, mas do estado de preconceito e de
ignorância em que se encontravam aqueles que o rodeavam. A
causa da dificuldade era que ele se encontrava em Jerusalém, não
segundo o Espírito, mas sim segundo a sua afeição aos seus
antigos laços com o Judaísmo. É preciso estar muito acima dos
preconceitos dos outros, e livre da influência deles para poder
condescender em amor a esses preconceitos. Uma vez em
Jerusalém, Paulo não pôde fazer outra coisa senão satisfazer os
pedidos dos Cristãos judaizantes. Mas a mão de Deus estava ali:
Procurando agradar aos Judeus crentes, o ato de Paulo arroja-o ao
poder dos seus inimigos. Agora encontra-se na boca do leão, isto é,
nas mãos dos Judeus inimigos do Evangelho. Acrescentemos que a
partir desse momento já se não ouve falar dos Cristãos de
Jerusalém. Eles tinham feito a sua obra. Tinham aceitado bem, sem
dúvida, a esmola dos Gentios...
Toda a cidade estava alvoroçada e o templo fechado (verso
30). O comandante da praça vem livrar Paulo das mãos dos Judeus,
que queriam matá-lo, prendendo-o, no entanto, ele mesmo, porque
os Romanos estavam habituados a essas violências e desprezavam
profundamente o povo amado de Deus, mais igualmente orgulhoso
e degradado quanto ao seu estado espiritual. Não obstante Paulo
obtém o respeito do comandante pela sua maneira de interpelar, e
este permite-lhe falar ao povo.

CAPÍTULOS 22-26

Paulo tinha-se dirigido em Grego ao comandante; mas


sempre pronto a ganhar os outros pelas atenções que o amor lhe
inspirava, e visto tratar-se, mais particularmente, do povo bem-
amado, embora rebelde, o apóstolo fala ao povo em hebraico, isto é,
na sua língua vulgar. Ele não diz aqui o que o Senhor lhe disse,
quando Se lhe revelou, mas faz alusão principalmente a sua
conversa com Ananias, Judeu fiel e estimado de todos. Em seguida
aborda o ponto que caracterizava necessariamente a sua posição e
a sua defesa. Cristo apareceu-lhe e disse-lhe: “Eles não receberão o
teu testemunho a meu respeito em Jerusalém”, e: “Eu te enviarei
para longe aos Gentios” (versos 18-21). Bendito seja Deus, pois era
a verdade! Mas para quê recordar estas palavras do Senhor
Aqueles mesmos que, conforme Paulo lhes dizia, não queriam
receber esse testemunho? A única coisa que daria autoridade a
essa missão para com os Gentios era a pessoa de Jesus — e os
Judeus não criam n'Ele.
Era escusado o apóstolo apoiar-se na piedade judaica de
Ananias; por muito verdadeira que ela fosse, não era senão um
caniço quebrado no testemunho que Paulo entregava ao povo. No
entanto, o testemunho de Ananias era tudo o que o apóstolo
alegava, além do seu próprio.
O seu discurso teria apenas um mérito: fazer sobressair o
ódio violento e incorrigível desse pobre povo contra todo o
pensamento da graça de Deus, e o seu orgulho desenfreado que,
como é sabido, “precede a ruína” (Prov. 16:18).
O comandante, vendo a violência do povo e não
compreendendo nada do que se passava, ordena, com o orgulhoso
desprezo de um Romano, que acorrentassem Paulo e o
chicoteassem, para que ele dissesse qual era a causa da violência
da multidão contra ele. Ora, Paulo era cidadão romano, e como tal
nascido, enquanto que o comandante tinha comprado esse título.
Paulo diz-lhe, com doçura, que gozava desse título por direito de
nascimento, e os que iam açoitá-lo retiraram-se. O comandante
ficara com medo, porque o tinha amarrado, mas vendo que a sua
autoridade estava já comprometida, deixa-o ficar acorrentado. Só no
dia seguinte o desamarra e o faz comparecer perante o concílio ou
Sinédrio dos Judeus.
Não só os chefes tinham rejeitado a graça, mas também o
povo a tinha rejeitado. Paulo dirige-se ao Sinédrio com a seriedade
e o elevado espírito de um homem de boa-fé, habituado a andar
com Deus. O seu discurso não é um testemunho que lhes é
prestado para bem deles, mas sim a chamada de uma boa
consciência às suas consciências — se é que eles as têm ainda. A
resposta, imediata que o apóstolo recebe é um ultraje da parte do
juiz ou chefe do concílio. Paulo, indignado com tal procedimento, diz
a Ananias que Deus o ferirá; mas advertido de que Ananias era o
sumo sacerdote, desculpa-se, pois ignorava esse fato.
O sumo sacerdote não estava, certamente, vestido de
maneira a fazer-se reconhecer, e Paulo recorda que a lei proíbe
formalmente dizer mal do chefe do povo (capítulo 23:5).
Tudo isto era justo e estava no seu devido lugar, perante o
homem. Mas o Espírito Santo não pode dizer: “Eu não sabia”. O
discurso do apóstolo não era o resultado da atividade do Espírito
Santo, fazendo a obra da graça e do testemunho, mas sim o meio
do julgamento final de Deus sobre o povo. E é sob esse caráter, no
que respeita aos Judeus, que Paulo aparece aqui. O procedimento
de Paulo brilha diante da dos seus juízes, que se desonravam
completamente e mostravam o seu horrível estado de espírito; mas
o apóstolo não aparece para Deus diante deles...
Aproveita-se em seguida da composição do Sinédrio para o
lançar em completa desordem, anunciando-se-lhe como fariseu,
filho de fariseu e posto em causa por um dogma dessa seita
(capítulo 23:6). O fato era verdadeiro, mas um tal procedimento não
estava à altura da palavra do próprio apóstolo: “O que para mim era
ganho, isso considerei perda, por causa de Cristo” (Filipenses 3:7).
Entretanto os Judeus põem a nu o seu verdadeiro estado espiritual:
O que Paulo lhes diz suscita um tumulto entre eles; e o comandante,
recuando que o apóstolo fosse por eles despedaçado, retira-o do
seu meio. Deus tem sempre tudo a Sua disposição, para o utilizar,
quando se torna necessário! Um sobrinho de Paulo, acerca do qual
não mais ouvimos falar, tem conhecimento de uma cilada que os
Judeus preparam contra o apóstolo — e disso adverte Paulo. Este
envia o jovem ao comandante, e o apóstolo é enviado, sob escolta,
para Cesareia. Mais uma vez Deus velou pelo Seu servo, mas tudo
se passa agora ao nível dos caminhos humanos e providenciais.
Não há aqui nem o anjo de Pedro, nem o tremor de terra de Filipos.
Sente-se bem que estamos noutro terreno...
Paulo comparece sucessivamente perante todos os
governadores: O Sinédrio, Felix, Festo, Agripa e em seguida César!
Quando está perante eles, dirige bons apelos às suas
consciências, quando a ocasião se lhe apresenta favorável.
Quando se trata da sua defesa, as suas declarações,
vigorosas e honestas, de uma boa consciência, elevam-se acima
das paixões e dos interesses que o rodeavam.
Passo em silêncio o egoísmo mundano de Lísias e de Festo,
que se atribuem toda a espécie de boas qualidades e de bons
procedimentos.
Passo igualmente em silêncio a mistura de despertar de
consciência e de ausência de princípios que vemos em Felix, o
desejo dos governadores de agradarem aos Judeus, para
promoverem a sua própria importância e zelarem as suas
conveniências, ou para facilitarem o governo de um povo rebelde,
assim como o desprezo daqueles que não eram responsáveis pela
tranquilidade pública, tanto como Lísias.
A posição de Agripa e todos os pormenores da história deste
período têm um cunho de verdade notável e apresentam os
caráteres das diferentes pessoas de uma maneira tão viva que nos
encontramos como que transportados à cena que nos é descrita. É
como se víssemos, de fato, as pessoas que ali se movimentam.
Aliás, as narrativas de Lucas são também emocionantes sob
este aspecto.
Outros fato se apresentam aqui à nossa consideração: Festo
queria levar Paulo a Jerusalém, para com isso ganhar as simpatias
dos Judeus, mas Roma devia ter a sua parte na rejeição do
Evangelho da graça e do testemunho da Igreja — e Paulo apela
para César! Festo vê-se obrigado a enviar o apóstolo a Roma, mas
fica embaraçado por não saber que espécie de crime lhe imputar ao
enviá-lo ali!
Triste quadro este da injustiça dos homens! Mas tudo é feito
em cumprimento dos desígnios de Deus.
Com o seu apelo para César, Paulo não obtém muito melhor
resultado do que obtivera no esforço anteriormente feito para
contentar os Judeus. Aos olhos dos homens, este apelo era talvez o
único recurso que lhe restava naquelas circunstâncias, mas ele teria
podido (o Espírito Santo tem o cuidado de no-lo dizer) ser posto em
liberdade, se não tivesse apelado para César.
Em Agripa há, parece-me, mais curiosidade do que
consciência, embora pudesse ter algum desejo de aproveitar aquela
ocasião para conhecer um pouco melhor aquela doutrina, que
estava revolucionando os espíritos, e a sua disposição de disso se
dar conta podia ultrapassar a mera curiosidade. De um modo geral,
interpretam-se as suas palavras: “Por pouco me queres persuadir a
que me faça cristão!” (capítulo 26:28), como se ele não estivesse
longe de ser convencido da verdade do Cristianismo. Talvez o
tivesse sido, se as suas paixões não constituíssem um obstáculo.
Mas poderemos perguntar-nos se tal será a força do Grego,
como geralmente se supõe, e só não será antes a expressão: “Por
pouco tu vais fazer de mim um Cristão” uma forma de cobrir a sua
perturbação perante o apelo feito à sua profissão judaica, em
presença de Festo, sendo, portanto, uma observação afetada e
desdenhosa. Para mim, penso que tal era o caso. A noção: “ser
quase um Cristão” é um erro manifestamente grosseiro, embora
seja verdade que o espírito do homem possa, por vezes, estar sob
influências que deveriam a tal conduzir, mas que, no entanto, ele
rejeita.
Agripa teria ficado contente se Paulo fosse posto em
liberdade. Ele exprime a convicção de que Paulo teria, podido sê-lo,
se não tivesse apelado para César. Dá a sua opinião a Festo, como
bom em sensato e razoável; e, no fundo, a sua consciência ditava
as suas palavras, palavras que ele ousava dizer quando Festo e
todos os outros estavam de acordo em que Paulo não tinha feito
nada que merecesse a morte ou a prisão.
Deus quis demonstrar à face do mundo, a inocência do Seu
bem-amado servo. O discurso de Paulo tem esse fim.
Ele vai um pouco mais longe, mas o alvo do apóstolo é dar
conta do seu comportamento. A sua conversão miraculosa é
contada com a intenção de justificar a sua carreira subsequente,
mas é contada de maneira a agir sobre a consciência de Agripa, que
tinha conhecimentos judaicos e tinha, como é evidente, desejo de
aprender alguma coisa acerca do Cristianismo, que ele suspeitava
ser a Verdade. Aliás, o rei aproveita avidamente a ocasião que se
lhe apresenta para ouvir o apóstolo explicar a nova doutrina; mas
fica apenas quase convencido. No entanto Agripa desejava
ardentemente fazer com que Paulo falasse, e dirige-se direta e
particularmente ao rei que, de resto, o interpelava, evidentemente
preocupado com o assunto que Paulo ia tratar. Quanto a Festo, tudo
o que Paulo dizia não era, para ele, senão rapsódias. (Entre os
gregos antigos, trecho de poema épico recitado pelo rapsodo.
Fragmento de um poema.)
A dignidade de Paulo perante todos esses governadores é
perfeita. Dirige-se às suas consciências com um esquecimento total
de si próprio que mostra bem um homem em quem a comunhão
com Deus e a consciência das suas relações com Ele mantêm o
espírito muito acima do efeito das circunstâncias. Atua, da parte de
Deus, com perfeita deferência pela posição daqueles a quem se
dirige. Moralmente, está inteiramente acima deles. Quanto mais
humilhantes fossem as circunstâncias, mais essa superioridade se
revestia de beleza. Perante os Gentios, Paulo é missionário da parte
de Deus. Paulo reencontra-se a si próprio, Deus seja bendito. Tudo
o que ele disse aos Judeus era justo e merecido; mas por que ele,
que tinha sido libertado do povo, estava agora sujeito à total falta de
consciência e às cegas paixões deste, em quem mão havia lugar
para um testemunho? Devia, porém, ser assim, para que os Judeus,
de qualquer modo, atingissem o cúmulo da sua iniquidade e o bem-
amado apóstolo pudesse seguir nas pegadas do seu Mestre. O
discurso de Paulo ao rei Agripa dá-nos o quadro mais completo da
posição do apóstolo, como ele próprio a encarava, quando o seu
longo serviço e a luz do Espírito iluminavam todo o seu passado.
Não fala da Igreja. Esse assunto era doutrina destinada ao
ensino, e não tinha parte da sua história. Mas dá em pormenor tudo
o que diz respeito à sua história pessoal, em relação com o seu
ministério. Ele tinha sido um rigoroso Fariseu. E aqui o apóstolo liga
a doutrina de Cristo à esperança dos Judeus. Ele estava ligado
“pela esperança da promessa feita por Deus aos nossos pais”, na
qual entrava, sem dúvida, a ressurreição. Porque é que o rei havia
de julgar que uma ressurreição era impossível, ou porque havia ele
de supor que Deus não podia ressuscitar mortos?!
Isto leva o apóstolo a um outro campo: Ele mesmo tinha
pensado que era preciso fazer muito contra o Nome de Jesus de
Nazaré, e tinha posto o seu pensamento em ação com toda a
energia do seu caráter e com o fanatismo de um Judeu devoto. A
sua posição atual, como testemunha entre os Gentios, dependia da
mudança operada nele pela revelação do Senhor, quando ele se
encontrava ocupado em destruir o Seu Nome. Perto de Damasco
uma luz mais brilhante do que o sol o tinha deitado por terra, assim
como a todos os que o acompanhavam, embora só ele tivesse
ouvido a voz do Justo. Assim, ele sabia, da própria boca do Senhor,
que Ele era Jesus, e que esse Jesus considerava aqueles que criam
em Si como sendo Ele mesmo.
E o apóstolo não podia resistir a um tal testemunho. Mas
como a sua missão entre os Gentios era o grande agravo dos
Judeus, Paulo afirma que essa posição lhe tinha sido formalmente
designada pelo próprio Senhor. Ele fora chamado a prestar
testemunho da glória de Jesus, que ele próprio tinha visto, ou antes,
de Jesus nessa glória, e outras “coisas para a revelação das quais
Jesus lhe apareceria ainda”. Um Cristo glorioso, conhecido
(pessoalmente) somente no Céu, era o assunto do testemunho que
fora confiado a Paulo. Com esse fim, Jesus o tinha posto à parte,
separando-o dos Judeus e também dos Gentios, pertencendo a sua
missão diretamente ao Céu e tendo ali a sua origem.
O apóstolo tinha sido formalmente enviado aos Gentios pelo
Senhor da Glória, para mudar a posição deles diante de Deus, pela
fé nesse Jesus glorioso, para a abrir os seus olhos, para os trazer
das trevas à luz, do poder de Satanás a Deus, e dar-lhes uma
herança entre os santificados. Era uma obra bem definida. O
apóstolo não tinha sido desobediente à visão celeste. Tinha
ensinado os Gentios a voltarem-se para Deus e a serem-Lhe
obedientes. E eis as razões porque os Judeus procuravam matá-lo.
Nada mais simples e de mais verdadeiro do que esta história.
Ela punha a posição de Paulo e o comportamento dos Judeus em
plena luz do dia. Acerca da interpelação de Festo (capítulo 26:24),
que não via naturalmente nas palavras de Paulo senão um
insensato entusiasmo, o apóstolo, com uma admirável dignidade e
com o tatos mais perfeito, apela ao conhecimento que Agripa tinha
dos fato sobre os quais toda a sua narrativa se baseava, porque
nada daquilo de que ele falava tinha sido feito em segredo.
Agripa não estaria longe de ser convencido, mas o seu
coração não tinha mudado. O desejo de Paulo conduz as coisas à
sua realidade moral: A sessão é levantada; o rei retorna o seu lugar
de rei: torna-se cortês e condescendente; e o discípulo do Senhor
retorna o seu Lugar de prisioneiro.
Todavia, qualquer que fosse a sua posição, vê-se no apóstolo
um coração essencialmente feliz e cheio do Espírito de Deus.
Dois anos de prisão não tinha sido, para ele, uma causa de
abatimento de coração e de fé. O seu aprisionamento tinha-o
somente afastado das suas difíceis e penosas relações com os
Judeus — para lhe dar momentos de verdadeiro prazer espiritual,
passados em comunhão com o Senhor.
Agripa, de coração surpreso e arrebatado pela narrativa clara
e plena de retidão de Paulo, declara que está quase persuadido a
fazer-se Cristão (cap. 26:28). A caridade teria podido dizer:
“Prouvera a Deus que tu o fosses”, mas há no coração de Paulo
uma fonte que não pode parar ali!
“Prouvera a Deus” diz ele, “que não somente tu, mas também
todos quantos hoje me estão ouvindo se tornassem, por pouco ou
por muito, tais qual eu sou, exceto estas cadeias” (capítulo 26:29).
Que felicidade e que amor (e, em Deus, estas duas coisas andam
juntas) se exprimem nestas palavras! O pobre prisioneiro, já idoso e
rejeitado, no fim da sua carreira continua rico em Deus!...
Felizes, pois, os anos que ele tinha passado na prisão. Podia
dar-se como um modelo de felicidade, porque o seu coração dela
estava cheio. Este é um daqueles estados de alma que se
exprimem, sem que possamos enganar-nos. E porque é que o
apóstolo não havia de ser feliz?! As suas fadigas tinham terminado,
e o seu trabalho, em certo sentido, acabado também. O apóstolo
possuía a Jesus, e n'Ele possuía todas as coisas.
O Jesus glorioso, que o tinha feito entrar nas penas e no
labor do testemunho, era agora a sua possessão e a sua coroa. Tal
é sempre o caso. A cruz que é preciso carregar no serviço, em
virtude daquilo que Jesus é, torna-se, para a alma, o gozo de tudo o
que Ele é, quando o serviço acaba e, por assim dizer, a medida
desse gozo. Esta mesma mudança teve lugar no próprio Senhor
Jesus, em toda a sua plenitude. E é o mesmo que se dá conosco,
da nossa medida, segundo a soberana graça de Deus.
Simplesmente a expressão de Paulo supõe que o Espírito Santo
atua poderosamente no coração, a fim de que ele seja livre de
entrar plenamente nessa alegria. Supõe, portanto, que o Espírito
Santo não está contristado.
Um Jesus glorioso, um Jesus que o amava, um Jesus que
punha o selo da sua aprovação e do seu amor sobre o seu serviço,
um Jesus que o tomava para Ele na glória e com ele era UM
(conhecido por Ele segundo o abundante poder do Espírito Santo,
segundo a justiça divina), um Jesus que revelava o Pai e por quem
Paulo tinha recebido a adoção era a fonte infinita da sua alegria, o
objeto glorioso do seu coração e da sua fé; e, conhecido em amor,
enchia o seu coração desse amor que transbordada para com todos
os homens. Que poderia ele, pois, desejar de melhor aos seus
auditores do que serem o que ele era, exceto as suas cadeias?!
Como, gozando ele de um tal amor, poderia desejar coisa diferente,
ou não estar cheio dessa grande afeição, se Jesus dela era a
medida?!
Tendo sido plenamente estabelecida e reconhecida pelos
seus juízes a inocência do apóstolo, os desígnios de Deus não
poderiam deixar de se cumprir. O seu apelo a César conduzi-lo-á a
Roma, para também ali prestar testemunho. E mais uma vez, na sua
posição, o apóstolo se assemelha a Jesus. Porém, e ao mesmo
tempo, quando os comparamos, o servo, por muito abençoado que
tenha sido, empalidece e eclipsa-se diante do Mestre, de sorte que
já se não pensa mais no servo. Jesus oferecia-Se Ele mesmo em
graça.
Não apelava senão a Deus. Não respondia senão para
prestar testemunho à Verdade, e esta Verdade era a glória da Sua
Pessoa, os Seus próprios direitos, por muito humilhado que Ele
fosse. A Sua Pessoa brilha através das nuvens sombrias das
violências humanas, que não teriam tido nenhum poder sobre Ele,
se não fosse aquele o momento para cumprir a vontade de Deus. É
com esse fim que Ele se submete ao poder dos Seus inimigos,
como sendo um poder que lhes vem do Alto. Mas Paulo apela para
Cesar. Paulo é Romano; possui uma dignidade humana, conferida
pelo homem e proveitosa diante dos homens.
Paulo serve-se desse privilégio para seu próprio interesse, e
Deus cumpre assim os Seus desígnios. No entanto Paulo é
abençoado, assim como o seu serviço. Jesus é perfeito, é o assunto
perfeito do Seu próprio testemunho.
Todavia, se não vemos já, para Paulo, o livre serviço do
Espírito Santo, se o apostolo está prisioneiro nas mãos dos
Romanos, pelo menos a sua alma está cheia do Espírito Santo.
Entre ele e Deus tudo é liberdade e alegria. Tudo o que lhe sucede
lhe será tido em conta na salvação, quer dizer, na sua vitória
definitiva na luta com Satanás.
E que felicidade poder dizê-lo! Pelas comunicações do
Espírito de Jesus Cristo, a Palavra de Deus não será acorrentada.
Outros obreiros adquirirão mais força e liberdade devido às cadeias
do apóstolo — ainda que, no baixo estado em que a Igreja se
encontra, alguns disso tiram proveito. Mas Cristo será anunciado e
magnificado — e Paulo está satisfeito por isso. E como é verdade
isto alegrar o coração e satisfazê-lo plenamente! Nós somos os
objetos da graça — Deus seja bendito! — do mesmo modo que
somos os instrumentas da graça para o serviço do Senhor.
Só Cristo é o Objeto, e Deus garante a sua glória. É tudo o
que é necessário, e isso mesmo é a nossa parte e a nossa alegria
perfeita.
Note-se, nesta interessante história, que, no momento em
que Paulo poderia ter sido o mais perturbado, no momento em que
a sua marcha foi, ao que parece, o menos evidente, segundo o
poder do Espírito, e onde levou a desordem ao Sinédrio com
argumentos que talvez ele próprio hesite depois justificar
inteiramente — o Senhor aparece-lhe cheio de graça para o
encorajar e o fortificar! O Senhor, que, outrora, lhe tinha dito para
sair imediatamente de Jerusalém, porque não receberiam ali o seu
testemunho; o Sentar, que lhe tinha enviado advertências para não
subir ali, mas que, apesar de tudo, cumpria assim os Seus desígnios
de graça, na enfermidade, através de afeições humanas do Seu
servo, e até mesmo por seu intermédio exercendo por esses
mesmos meias, e segundo a Sua divina sabedoria, uma disciplina
salutar; Jesus aparece a Paulo para lhe dizer que, assim como ele
Lhe tinha prestado testemunha em Jerusalém, importava que
prestasse o mesmo testemunho em Roma.
E eis como o Senhor interpreta em graça tudo o que
aconteceu ao apóstolo, e todo o seu procedimento, no momento
para que ele teria podido sentir mais acertadamente o que havia de
penoso na sua posição e estar, talvez, acabrunhado ao lembrar-se
de que o Espírito lhe tinha dito para não subir a Jerusalém —
porque a dúvida é o maior tormento no momento da provação. O fiel
e bom Salvador intervém, pois, para encorajar o seu servo, para pôr
a Sua própria interpretação sobre a posição de Paulo e fazer
sobressair o caráter do Seu próprio amor. Se o Senhor teve de
exercer a disciplina para o bem do Seu servo, por causa do estado
de espírito de Paulo, e para o obrigar a fazer progressos, rumo à
perfeição, Ele mesmo esteve com o seu servo nessa disciplina!
Nada de mais impressionante do que a ternura se a oportunidade
desta graça. De resto, como dissemos já, tudo aquilo tendia, ao
cumprimento dos desígnios de Deus em relação aos Judeus, aos
Gentios e ao mundo; porque Deus sabe reunir numa só
dispensação os fins mais diversos.

CAPÍTULOS 27-28

Agora que Paulo está restabelecido e a sua coragem


reanimada pela graça, mostra-se, na sua viagem, senhor da
situação. É ele quem dá conselho, seguindo as comunicações que
recebe de Deus; é ele quem encoraja, quem atua, sempre da parte
de Deus, no meio de toda a cena.
A descrição, plena de vida e de realismo, que Lucas,
companheiro do apóstolo, nos dá dessa viagem, não carece de ser
assinalada: Ela é um admirável quadro vivo de toda a cena. O que
nos importa é ver nesta narrativa o que Paulo representou, quer no
meio da falsa confiança, quer no meio da aflição da equipagem: Em
Malta reencontramo-lo exercendo o seu habitual poder no meio do
povo bárbaro da ilha. Reconhecemos que Deus continua com o Seu
servo. No entanto, a evangelização não aparece na descrição da
estadia de Paulo em Malta nem na da sua viagem.
Depois do apóstolo ter desembarcado na Itália, vemo-lo
mergulhado em tristeza, mas o afeto dos irmãos encoraja-o e
reanima-o. Vai até Roma, onde permanece dois anos, numa casa
que alugou, sob a guarda de um soldado.
O governador Romano na Judeia tinha, provavelmente, feito
saber que as acusações apresentadas contra Paulo eram apenas
fruto da inveja e do ódio dos Judeus, porque, em toda a viagem,
usam da máxima delicadeza para com ele. Por outro lado, não
podemos esquecer que ele era Romano.
Chegado a Roma, o apostolo convoca os Judeus. E aqui,
pela última vez, é-nos apresentado o estado espiritual deles, assim
como o julgamento suspenso sobre as suas cabeças, desde que a
profecia (que se ligava mais particularmente à Casa de Davi e a
Judá) fora proferida por Isaías e tivera a sua aplicação ao povo,
segundo o testemunho do Senhor Jesus, quando Ele estava neste
mundo, porque eles O tinham rejeitado — julgamento cuja execução
e paciência de Deus tinha suspendido, até que o testemunho do
Espírito Santo fosse também rejeitado. Esse julgamento é recordado
aqui por Paulo, no fim da parte histórica do Novo Testamento. O
testemunho do apóstolo é a declaração solene do estado definitivo
dos Judeus, pelo enviado da graça soberana — estado que deve
permanecer até que Deus intervenha em poder para lhes dar o
arrependimento, para os libertar, e para Se glorificar neles segundo
a graça.
Já assinalamos o caráter de Atos, que sobressai aqui de
maneira clara e surpreendente. Vemos ali o pôr de lado os Judeus,
ou antes, e mais rigorosamente falando, o povo auto separando-se
pela rejeição do testemunho e da obra de Deus. Colocam-se fora de
tudo aquilo que Deus estabelece; não querem segui-Lo no
progresso dos caminhos da Sua graça, e por isso são deixados para
trás, sem Deus e sem comunicação presente com Ele. A Sua
Palavra permanece eternamente, assim como a Sua misericórdia,
mas os Judeus são substituídos por outros, que tomam o lugar da
relação positiva e atual com Deus.
Individualmente, eles podem entrar nessa outra esfera e em
outro pé, mas Israel desaparece, e, por um tempo, apaga-se da
vista de Deus.
É isto o que nos é patenteado nos Atos. No princípio da obra,
a paciência de Deus atua para com os Judeus na pregação do
Evangelho e a missão apostólica. Mas a hostilidade deles vai-se
desenvolvendo pouco a pouco, chegando ao seu cúmulo no caso de
Estêvão.
Paulo é suscitado como testemunha, na sua própria pessoa,
porque era de Israel, da graça para com eles, pelo menos no
chamamento de um Remanescente eleito. Mas Paulo introduz, em
relação com um Cristo celeste, algo inteiramente novo como
doutrina, a saber: a Igreja, corpo de Cristo no Céu, a Igreja abolindo
toda a distinção entre Judeu e Gentio, considerados quer como
pecadores, quer como tendo o seu lugar na unidade desse corpo.
Para conservar a unidade e a relação com as promessas, o
desenvolvimento dessa doutrina liga-se, historicamente, ao que
tinha sido estabelecido em Jerusalém; mas em si, como doutrina, a
Igreja era uma coisa escondida em Deus desde todos os séculos,
tendo estado nos desígnios da graça antes que o mundo existisse.
A hostilidade dos Judeus contra esta verdade não foi jamais
desmentida. Tudo puseram em jogo para excitar os Gentios contra
aqueles que propagavam a doutrina, e para impedir a formação da
própria Igreja. Mas Deus, tendo agido com uma paciência e uma
graça perfeitas até ao fim, substitui enfim os Judeus pela Igreja,
como sendo esta a Sua Casa e o vaso das Suas promessas sobre a
Terra, fazendo dessa Igreja a Sua habitação pelo Espírito. Os
Judeus são postos de lado como povo, mas, e infelizmente, o seu
espírito não tardou a apoderar-se da própria Igreja. A Igreja é
revelada; e a doutrina clara e positiva de que não há nenhuma
diferença entre Judeus e Gentio (todos sendo, por natureza, filhos
da ira), e que os seus privilégios, enquanto membros de um só
Corpo, são comuns e iguais, constitui a base de toda a relação com
Deus de uma alma em que encontre a fé.
Esta é a doutrina do apóstolo na sua epístola aos Romanos e
na epístola aos Efésios (1).
Ao mesmo tempo, o dom da vida eterna, como prometida
ainda antes que o mundo existisse, pôs em evidência, pela
regeneração (2), o começo de uma nova existência, tendo um
caráter divino, e a participação numa justiça divina.

(1) Em Romanos encontramos a posição pessoal; em Efésios


encontramos a posição como corpo.

(2) A palavra “Regeneração” não se aplica, nas Escrituras, ao


novo nascimento. É uma mudança de posição em nós, reportando-
se ao fato de que estamos mortos em Cristo, e à ressurreição.
Encontramos esta expressão duas vezes: Em Mateus 19:28, onde
se trata do Reino futuro de Cristo; e em Tito 3:5, onde se trata da
lavagem ou batismo da regeneração, como sendo, em tipo, o que
nos tira do estado do primeiro Adão, para nos introduzir no estado
Cristão, distinguindo-o da “renovação do Espírito Santo”.

O poder da vida divina e a excelência da justiça divina estão


reunidos na nossa ressurreição com Cristo; e pela qual, tendo sido
perdoados os nossos pecados, somos colocados diante de Deus,
como Cristo, que é, ao mesmo tempo, a nossa vida e a nossa
justiça. E esta vida manifesta-se em conformidade com a marcha de
Cristo sobre a Terra. Ele deixou-nos um exemplo, para que nós
andássemos segundo Ele andou. É a vida divina manifestada no
homem — em Cristo como Objeto, e em nós como testemunho.
A Cruz de Jesus é a base e o centro fundamental de todas as
verdades que se ligam às relações do homem com Deus. As
relações de Deus com o homem, tal como ele era; a
responsabilidade deste; a graça; a expiação; o fim da vida do
homem, no que respeita à relação com o pecado, a lei e o mundo; a
abolição do pecado pela morte de Cristo e suas consequências em
nós; todas essas coisas são demonstradas ou cumpridas na Cruz.
Elas dão lugar, pelo poder de vida que estava em Jesus (que sobre
essa Cruz glorificou perfeitamente a Deus), a esta nova existência
em que Jesus entrou como Homem junto do Pai, para glória do qual,
assim como pelo Seu próprio poder divino, e pela energia do
Espírito Santo foi ressuscitado.
Esta nova existência de Cristo e da Igreja não impede que,
quando a Igreja estiver completa e tiver sido arrebatada ao Céu,
Deus retome os Seus caminhos em governo com os Judeus sobre a
Terra. É o que Ele fará; segundo as Suas promessas, anunciadas
pelos profetas. É também o que o apóstolo explica na sua epístola
aos Romanos, mas esse assunto pertence ao estudo dessa
epístola.
O Apocalipse mostra-nos os caminhos de Deus em
julgamento para com os Gentios, na mesma época, do mesmo
modo que outras passagens das epístolas, que se reportam à vinda
de Jesus. Mostra-nos mesmo os caminhos de Deus no Seu governo
do mundo em geral, do princípio ao fim, com as necessárias
advertências para a Igreja, quando os tempos da incredulidade
começam a despontar e a desenvolver-se moralmente na ruína da
Igreja, considerada como testemunha de Deus no mundo.
Conduzido a Roma, o apóstolo declara (logo a seguir à
manifestação de incredulidade entre os Judeus, assinalada mais
acima) que a salvação de Deus é enviada aos Gentios — e
permanece dois anos inteiros na casa que tinha alugado, recebendo
ali todos os que vinham ter com ele (porque ele não podia deslocar-
se, visto ser prisioneiro), anunciando-lhes com toda a ousadia o
reino de Deus e o que dizia respeito ao Senhor Jesus, ninguém o
impedindo de o fazer (cap. 28:30-31).
Termina aqui a história desse precioso servo de Deus, amado
e honrado pelo seu Senhor, prisioneiro nessa Roma que, cabeça do
quarto império, devia ser a sede da oposição à verdade erre e os
Gentios, da oposição ao Reino e à glória de Cristo, como Jerusalém
é a sede da oposição entre os Judeus. O tempo para a plena
revelação dessa oposição não chegou ainda, mas o ministro da
Igreja e do Evangelho da glória é prisioneiro em Roma. É assim que
Roma começa a sua história em relação com o Evangelho que o
apóstolo pregou! No entanto Deus estava com o Seu servo.

FIM DOS ESTUDOS SOBRE


ATOS DOS APÓSTOLOS
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