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Introdução à Teologia do Novo

Testamento - um guia de estudos

Prof. Humberto Macharetti


h.macharetti@outlook.com

www.humbertomacharetti.blogspot.com.br

Seminário Teológico Batista Carioca

Rio de Janeiro

2019
Sumário
Uma Teologia do Novo Testamento, missão possível ou impossível? ..........................................................................1
1. O cristianismo do primeiro século - períodos históricos .......................................................................................1
2. Diversidade de crenças - as comunidades .............................................................................................................1
Quem é esse Jesus? Uma Cristologia do Novo Testamento ..........................................................................................4
1. Introdução – Porque fazer uma cristologia? ..........................................................................................................4
2. Marcos - o filho de Deus presente no meio dos homens .......................................................................................5
O filho de Deus ....................................................................................................................................................5
Sinais: curas, exorcismos e outros milagres. ........................................................................................................6
3. Paulo – a cristologia do Kyrios ressurreto .............................................................................................................9
Uma questão de prioridade ...................................................................................................................................9
Por que uma cristologia paulina? .........................................................................................................................9
A cristologia do Kyrios ........................................................................................................................................9
A identidade de Cristo Jesus .............................................................................................................................. 10
Jesus, o deus esvaziado ...................................................................................................................................... 10
O Cristo vitorioso e exaltado .............................................................................................................................. 11
4.Mateus - o segundo Moisés e descendente de Davi ............................................................................................. 11
5. Lucas - Jesus, o profeta controlado pelo espírito ................................................................................................ 14
6. Gnosticismo – Jesus parece homem, mas não é. ................................................................................................. 15
O que é gnosticismo? ......................................................................................................................................... 15
A cristologia gnóstica. ........................................................................................................................................ 16
Incompatibilidade da doutrina ............................................................................................................................ 16
7. João – O Cristo e filho de Deus .......................................................................................................................... 17
O testemunho de Deus........................................................................................................................................ 17
Os testemunhos dos homens............................................................................................................................... 19
O logos ............................................................................................................................................................... 19
8. Hebreus – o sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque ...................................................................... 20
9. Apocalipse – o Cristo vitorioso sobre tudo e sobre todos ................................................................................... 21
O que vocês esperam do futuro? Uma escatologia ...................................................................................................... 23
1. Introdução – Por que uma escatologia?............................................................................................................... 23
2. Escatologia judaica – o reino futuro de Deus ...................................................................................................... 23
O juízo cósmico e a recompensa ........................................................................................................................ 25
Ressurreição dos mortos..................................................................................................................................... 26
2. A pregação de João Batista – a iminente chegada do reino................................................................................. 28
3. A pregação de Jesus Cristo – o reino chegou, mas não de maneira completa. .................................................... 28
Como será o reino? - O sermão do monte. ......................................................................................................... 29
Como virá o reino? - A grande investida missionária ............................................................................................. 29
Por que não já? - O caminho mais longo ............................................................................................................ 30
Os dois fins ......................................................................................................................................................... 31
4. A escatologia de Atos dos Apóstolos – aguardando a volta de Jesus Cristo ....................................................... 32
5. A escatologia paulina – Jesus voltará muito breve.............................................................................................. 32
A ressurreição dos mortos .................................................................................................................................. 33
O corpo espiritual ............................................................................................................................................... 33
Quando acontecerão estas coisas? ...................................................................................................................... 34
Virá antes o filho da perdição............................................................................................................................. 34
Conclusão ........................................................................................................................................................... 35
6. Escatologia petrina – o tempo de Deus é diferente do nosso .............................................................................. 35
O retardo da parusia ........................................................................................................................................... 35
A longanimidade de Deus .................................................................................................................................. 36
O fim repentino e catastrófico ............................................................................................................................ 36
7. A escatologia do Apocalipse de João – O rei vencedor virá ............................................................................... 37
As duas narrativas apocalípticas (capítulos 4 – 21) ............................................................................................ 37
Primeira narrativa apocalítica (capítulos 4-11) .................................................................................................. 37
Segunda narrativa (capítulos 12-22)................................................................................................................... 38
A trindade maligna ............................................................................................................................................. 38
As pragas ............................................................................................................................................................ 39
A queda da Babilônia ......................................................................................................................................... 39
Novos céus e nova terra ..................................................................................................................................... 40
Conclusão ........................................................................................................................................................... 40
Eclesiologia do Novo Testamento. Afinal de contas, quem são vocês? ..................................................................... 41
1. Eclesiologia nos escritos de Pedro e Tiago e na epístola aos hebreus ................................................................. 41
Uma eclesiologia com sotaque oriental .............................................................................................................. 41
A epístola de Tiago ............................................................................................................................................ 42
Escritos de Pedro ................................................................................................................................................ 42
Eclesiologia na Epístola aos hebreus .................................................................................................................. 43
2. Eclesiologia nos escritos paulinos ....................................................................................................................... 43
A igreja doméstica .............................................................................................................................................. 44
A igreja urbana ................................................................................................................................................... 45
Três eclesiologias ............................................................................................................................................... 45
A herança paulina nas pastorais; a importância da estrutura da igreja ............................................................... 45
A herança paulina em Colossenses/Efésios; a Igreja como Corpo de Cristo que deve ser amado ..................... 46
A herança paulina em Lucas/Atos; a Igreja e o Espírito. ................................................................................... 47
Conclusão ........................................................................................................................................................... 48
3. Eclesiologia nos evangelhos sinóticos ................................................................................................................ 48
Soteriologia, quem mesmo será salvo? ........................................................................................................................ 50
1. Salvação, precedentes no Antigo Testamento ..................................................................................................... 50
Libertação e Salvação......................................................................................................................................... 50
Salvação na visão sacerdotal .............................................................................................................................. 51
Salvação na religião profética de Israel .............................................................................................................. 52
Salvação e pregação na apocalíptica judaica ...................................................................................................... 53
2. Salvação e perdição na pregação de João Batista ................................................................................................ 53
3. Salvação e perdição na pregação de Jesus Cristo ................................................................................................ 54
4. Salvação e perdição nos escritos paulinos........................................................................................................... 55
O mistério de Cristo ........................................................................................................................................... 55
A universalidade do pecado e da culpa .............................................................................................................. 55
A única chance de salvação ................................................................................................................................ 56
Fé e obras ........................................................................................................................................................... 56
5. Salvação e perdição nos escritos joaninos ........................................................................................................... 56
Os objetivos do autor .............................................................................................................................................. 56
Diálogos a respeito da vida ................................................................................................................................ 57
6. Salvação e perdição no Apocalipse de João ........................................................................................................ 57
Paracletologia – a ação continuada do Espírito Santo ................................................................................................. 58
1. Ação do Espírito no Antigo Testamento ............................................................................................................. 58
2. Espírito e Profecia ............................................................................................................................................... 59
3. O Espírito na apocalíptica judaica ....................................................................................................................... 59
4. O Espírito no ministério de Jesus ........................................................................................................................ 60
5. O Espírito nos Atos dos Apóstolos ..................................................................................................................... 60
6. O Espírito nas epístolas de Paulo ........................................................................................................................ 62
Bibliografia Recomendada

1. BRANICK, V, A igreja doméstica nos escritos de Paulo, São Paulo, Paulus 1994
2. BROWN, R. E. Introdução ao Novo Testamento, São Paulo, Paulinas, 2004.
3. BROWN, R. E. As igrejas dos apóstolos, São Paulo, Paulinas, 1986.
4. BRUCE, F. F. Paulo, o apóstolo da graça – sua vida, cartas e teologia, São Paulo, Shedd, 2003.
5. CARREZ, M., DORNIER, P., DUMAIS, M & TRIMAILLE, M. As cartas de Paulo,
6. Tiago, Pedro e Judas, São Paulo, Paulinas, 1987.
7. CULLMANN, OSCAR, Cristologia do Novo Testamento, São Paulo, Hagnos, 2008.
8. DUNN, JAMES D.G. Jesus, Paulo e os Evangelhos, Petrópolis, Vozes, 2017.
9. EHRMAN, BART D. Como Jesus se tornou Deus, São Paulo, LeYa, 2014.
10.GOOPELT, L Teologia do Novo Testamento, São Leopoldo, Sinodal / Vozes, 1982.
11.HORSLEY, R. A, Paulo e o Império, religião e poder na sociedade imperial romana, São Paulo, Paulus, 2004.
12.JEREMIAS. J. Jerusalém no Tempo de Jesus - pesquisas de história econômico social no período
neotestamentário. São Paulo, Paulinas, 1983.
13. KÄSEMAN, E., Perspectivas Paulinas, São Paulo, Teológica-Paulus, 2ª edição, 2003.
14.MOULE, C. F. D., As origens do Novo Testamento, São Paulo, Paulinas, 1979
15.PATTE, DANIEL, Paulo, sua fé e a força do evangelho, São Paulo, Paulinas, 1987.
16.PLATÃO, A República, Tradução Enrico Corvisieri, São Paulo, Best Seller, 2002.
17.REICKE, B. I., História do Tempo do Novo Testamento, São Paulo, Paulinas, 1996.
18.SAÔUT, F. Atos dos Apóstolos- ação libertadora, São Paulo, Paulinas, 1991.
19. SANDERS, E. P., Paulo, a Lei e o Povo Judeu, São Paulo, Paulinas, 1990.
20.SCHREINER, J. & DAUTZENBERG, G. Formas e estruturas do Novo Testamento, São Paulo, Paulinas, 1977.
21.TENNEY, M. C. O Novo Testamento, sua origem e análise, São Paulo, Vida Nova, 2a edição, 1989.
22.WÜSTENBERG, RALF K., Cristologia, como falar hoje sobre Jesus, São Leopoldo, Sinodal, 2011.
Uma Teologia do Novo Testamento, missão possível ou
impossível?
Quando analisamos a diversidade nas maneiras de crer e de cultuar dos cristãos do primeiro século surge-nos uma
pergunta: é possível falar em uma teologia do Novo Testamento? Ou, haveria várias teologias? Unificar as diversas visões
sob um mesmo rótulo é uma missão possível? Ou, estaremos diante de uma missão impossível?

Pretendemos abordar estas questões neste estudo introdutório. A metodologia adotada não poderia ser outra. Faremos um
estudo comparativo dos relatos a respeito das diferentes maneiras de viver e de crer dos primeiros cristãos e tentaremos
descobrir o que elas tem em comum e o que tem de diferente.

1. O cristianismo do primeiro século - períodos históricos


O primeiro século do cristianismo pode ser dividido em períodos históricos que possuíram características diferentes. O
conhecimento desses períodos históricos muito nos auxilia a compreender por que motivos foram possíveis a expansão
inicial do cristianismo e a formação do novo testamento.

É usual dividir o primeiro século nos períodos que seguem: 1. O período de Jesus Cristo vai do início do século até o
ano 33, quando ocorreu a ressurreição. 2. O período da igreja primitiva, que também pode ser chamado de período
apostólico, vai do ano 33 até o ano 70, quando o templo de Jerusalém foi destruído pelas tropas romanas comandadas
por Tito. 3. O período final, denominado pós-apostólico ou sub-apostólico, se estende do ano setenta até o final do
primeiro século. Cada um destes períodos teve características particulares e deu contribuições decisivas para a formação
do Novo Testamento.

No período de Jesus Cristo os cristãos eram um pequeno grupo de dissidentes religiosos, denominados inicialmente
como seita dos nazarenos, que não passava de cerca de duzentas pessoas, incluindo as mulheres. Neste período não
ocorreu composição de qualquer literatura escrita. O tempo em que Jesus ensinou e agiu foi rico na produção de material
que foi veiculado por seus discípulos na forma de tradição oral. Nesta categoria se encontram as parábolas de Jesus e as
narrativas de seus feitos: milagres, curas e exorcismos.

O período apostólico se caracteriza pelo aparecimento de igrejas com pequeno número de membros, reunidas em casas
de famílias, sob a direção de leigos orientados por apóstolos. Os apóstolos que permanecia na igreja urbana, visitava
periodicamente as demais igrejas a ele ligadas ou se comunicava com elas por meio de cartas. O adversário das igrejas
neste tempo era o poder religioso dos judeus que perseguiam os cristãos acusando-os de serem politeístas por confessarem
a divindade de Jesus Cristo. A ênfase do período foi a expansão missionária. Neste período foi composta a maioria das
epístolas e, provavelmente também o evangelho de Marcos. O período sub – apostólico (pós—apostólico) seguiu-se à
morte dos apóstolos e à destruição do templo de Jerusalém. Este período assistiu à estruturação das igrejas com seleção
e preparação de lideranças locais. O inimigo deixou de ser o governo judeu e passou a ser o império romano. O desafio
já não era expandir a fé e sim manter a convicção dos crentes diante das crescentes pressões para que seguissem heresias
diversas (gnosticismo) ou apostatassem da fé retornando ao judaísmo. Algumas epístolas, os evangelhos, o livro de Atos
e o Apocalipse foram compostos nesta época.

2. Diversidade de crenças - as comunidades


Os cristãos do primeiro século estavam organizados em comunidades. Para entendermos o que designamos por
comunidade, precisamos rever nossa conceituação do Cristianismo inicial. A população de cristãos do primeiro século
nunca foi, como vinha se acreditando há muito tempo, formada por um grupo homogêneo de igrejas, em termos de
doutrinas e de práticas religiosas. Pelo contrário, os cristãos do primeiro século formavam um grupo heterogêneo que
estava estruturado em comunidades - grupos de igrejas - que guardavam em comum, além de sua origem histórica, o

1
respeito a um mesmo líder e um repertório limitado de doutrinas e de práticas religiosas. 1 Esse repertório doutrinário de
cada uma das comunidades diferia bastante dos repertórios das outras comunidades congêneres com as quais ela se
identificava apenas pela aceitação de um núcleo doutrinário comum denominado kerygma apostólico, uma espécie de
profissão de fé primitiva que definia um programa mínimo de Cristianismo. Moule 2 nos declara que:

Um viajante, logo depois da metade do primeiro século, por exemplo, lá pelo ano 60, que fosse de Jerusalém para Éfeso,
encontraria uma variedade notável de doutrina e prática entre comunidades que, não obstante, reivindicavam todas estar
relacionadas com Jesus de Nazaré. Em qualquer lugar da Judeia, ele poderia encontrar o círculo de Tiago, irmão do
Senhor, que ainda prestava culto numa sinagoga cristã, formada de judeus praticantes, que também criam em Jesus como
o Messias de Deus, mas que podiam ter progredido muito pouco com respeito à formulação da doutrina da divindade de
Jesus: o cristianismo do tipo ebionita caracterizava--se por uma reduzida cristologia. E que podemos dizer a respeito do
tipo de cristianismo que se desenvolveu em Samaria? Provavelmente, tinham lá em alta conta o nome de João Batista
(cuja missão tinha sido intensa naquela região, e cujo túmulo talvez eles orgulhosamente custodiassem) e recolheram
tradições, muitas das quais estão agora incorporadas no Quarto Evangelho. Eles concebiam Jesus como aquele que estava
para vir, isto é, o profeta como Moisés. Na cosmopolita Antioquia (ainda que para julgar a partir de não mais que as
referências a ela no Novo Testamento, sem considerar a sua história posterior) poder-se-ia encontrar uma notável
variedade de tipos de comunidade, ou seja, gentias, judaicas, judaizantes, helenizantes, com diferentes formas de
cristologia; enquanto que, se nosso viajante seguisse pelo vale do Lico, encontraria uma estranha amálgama de astrologia
oriental, de legalismo judaico e de crenças cristãs (cf. a carta aos Colossenses e comentários a respeito). Ao fim de sua
viagem, ele estaria preparado para a fervilhante diversidade de Éfeso, onde as igrejas paulinas estavam sendo invadidas
rapidamente pelo antinomismo, pelo cristianismo do tipo joanino (Cf. Atos 20.29ss, Apocalipse 2.1ss, O Evangelho e as
Epístolas de João). Se, depois tomasse um navio de Mileto para Alexandria, ele mesmo podia ver-se confrontado ali com
uma ulterior variedade de comunidades cristãs, ou, se ele já as tivesse encontrado em Éfeso, ou em qualquer outro lugar,
nesta cidade elas estariam até mais concentradas e com uma fisionomia mais definida (cf., por exemplo, Hebreus e Atos
18.24ss). Finalmente, em Roma, ele poderia encontrar toda a sorte de tendências se acotovelando umas às outras; eram as
sinagogas cristãs judaizantes; as espécies de gnósticos mais liberais dentre os liberais, muito mais próximas do culto de
mistérios do que do Israel de Deus; congregações petrinas e paulinas, e tudo mais (cf. Fl. 12.17 e as impressões de
Rn.15.20).
Essa heterogeneidade doutrinária fica bem patente quando examinamos a vida de igrejas de grandes metrópoles como a
de Corinto3 cuja congregação era composta de crentes de diferentes origens e tendências doutrinárias: Uns eram de Paulo,
outros de Pedro (igreja apostólica), outros de Apolo (comunidade joanina) e outros de Cristo (I Co 3.1-7).

Na sua primeira epístola aos Coríntios o apóstolo Paulo tentou, por meio de restrições e de concessões parciais,
estabelecer um denominador comum que permitisse a irmãos que divergiam com tal intensidade conviver e comungar
sob um mesmo teto4. Para atingir tal objetivo era estritamente essencial saber distinguir o cerne da doutrina cristã dos

1
A maior parte dos livros do Novo Testamento foi escrita no último terço do Século I. Este período, que Brown, R.E.
(As Igrejas dos Apóstolos, São Paulo, Paulinas, 1986) chama de "período sub-apostólico", se caracterizou pela
organização das igrejas em comunidades centralizadas na pessoa de um apóstolo. Mais tarde, após a morte dos
apóstolos, as igrejas locais foram adquirindo maior autonomia.
2
Moule, C.F.D., " As origens do Novo Testamento ", São Paulo, Paulinas, 1979. pp. 175 -177.
3
Das formas de vida dos cristãos resulta um espectro que se estende desde um hebraico cristianismo aramaico,
passando por um cristianismo judaico hebraísta até um cristianismo gentílico helenista. Sob o ponto de vista
sociológico, porém ele não se apresenta geralmente como distribuição temporal e espacial sobre comunidades e
grupos de comunidades, mas como correntes que, em grande parte, correm paralelas. Como se podem constatar nos
partidos de Jerusalém (At. 6.1) e de Corinto (I Co. 1.11 s), essas correntes surgiam, na maioria das vezes, em um
mesmo lugar. Leonhard Goopelt, "Teologia do Novo Testamento", São Leopoldo, Sinodal / Vozes, 1982, 2o Vol. p.
313.
4
Paulo foi o grande artífice da unificação do Cristianismo primitivo. Por ser homem de formação eclética, versado tanto
na filosofia dos gregos, quanto na sabedoria dos judeus, conseguia entender e aceitar sem preconceitos crentes das
mais diversas raças e culturas. Para ele não poderia haver diferenças na igreja por que: não há grego nem judeu,
circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo ou livre, mas Cristo ‚ tudo em todos (Co 3.11). Pois quem faz
injustiça receberá a paga da injustiça que fez; e não há acepção de pessoas. (Co 3.25)

2
seus ramos supérfluos que podiam ser podados sem prejuízo para ninguém. Aceita-se hoje que a existência de várias
comunidades - diríamos em termos atuais, a existência de várias denominações dentre os cristãos primitivos - foi um dos
fatores determinantes do surgimento e da canonização da literatura constituinte do Novo Testamento. Cada comunidade
contribuiu pela composição de um ou mais livros.

A contribuição particular da comunidade joanina está constituída pelo quarto evangelho e pelas três epístolas que levam
o nome do apóstolo do amor. Cada comunidade era constituída por uma igreja mãe onde ficava o seu líder principal e de
várias igrejas filhas onde ficavam líderes regionais. O primeiro líder de cada comunidade foi um apóstolo - no sentido
mais amplo do significado desta palavra, um missionário cristão - o qual, após sua morte, foi sucedido por um bispo ou
um presbítero. O apóstolo e os seus sucessores eram os guardiães da fé‚ num tempo em que ainda não havia um Novo
Testamento escrito. Em seu conjunto, os líderes da comunidade formavam uma escola5.

Aceita-se hoje que o discípulo amado (João 21.24) foi o fundador da escola joanina e que seu primeiro sucessor foi o
presbítero (II João vs.1). Esse panorama - Um Cristianismo dividido em comunidades – perdurou até o final do século
primeiro. A partir do segundo, em decorrência da distância cada vez maior que os cristãos ficavam dos primitivos, tanto
no tempo quanto no espaço, e também por causa do desenvolvimento de uma palavra escrita resultante da junção dos
diversos “corpi”, as igrejas locais foram se tornando cada vez mais independentes. A responsabilidade de interpretação
da palavra escrita estava ao encargo do bispo de cada uma delas.

Diante de tal diversidade nas maneiras de crer e cultuar resta-nos uma pergunta: é possível falar em uma teologia do novo
testamento? Ou, haveria várias teologias? Unificar as diversas visões sob um mesmo rótulo é uma missão possível? Ou,
estaremos diante de uma missão impossível?

5
O fenômeno de transmissão de verdades religiosas por meio de escolas está muito bem estudado para o profetismo
veterotestamentário. Elias e Eliseu foram profetas de uma mesma escola. Fala-se hoje no livro da escola do profeta
Isaías (V. Joseph Schreiner, " O livro da escola de Isaías " in Schreiner, J. Ed., Palavra e Mensagem - Introdução
Teológica e Crítica aos Problemas do Antigo Testamento, São Paulo, Paulinas, 1978.).

3
Quem é esse Jesus? Uma Cristologia do Novo Testamento
1. Introdução – Porque fazer uma cristologia?
Por que fazer uma cristologia? Há cerca de dois mil anos passados, apareceu na Galileia dos gentios um artífice, filho de
família pobre, anunciando a chegada do reino de Deus. No nascimento, recebeu o mesmo nome do grande libertador de
Israel, Iechua, Josué, Jesus. Depois de sua morte e alegada ressurreição recebeu o cognome Hamashia (Cristo, o ungido)

Ele foi ouvido, aceito e seguido por um grupo não muito grande de homens, cerca de setenta, que se tornaram seus
discípulos e o acompanhavam nas intermináveis viagens a pé pelo território palestino. Dentre estes escolheu doze que
foram chamados de apóstolos, aos quais instruiu mais precisamente e concedeu autonomia para prosseguirem sozinhos
pregando a mesma mensagem que dele haviam ouvido: “O Reino de Deus chegou”6.

As autoridades locais viram nele uma ameaça à estabilidade política e social da região que era, naquela época, submissa
ao governo romano. Arquitetaram e executaram um plano que acabou ocasionando sua morte com a conivência da
autoridade dominadora.

Esperavam que essa morte colocasse um ponto final no movimento popular que ele iniciou e que reivindicava ser a
realização dos planos de Deus para a sua nação. Muito pelo contrário, o ânimo dos discípulos não arrefeceu, eles
continuaram pregando e fazendo novos adeptos7.

A parte mais importante da mensagem destes estava na declaração de que o seu mestre martirizado havia ressurgido
dentre os mortos e continuou a lhes dar instruções por um espaço de quarenta dias ao fim dos quais foi elevado aos céus8.
Ensinavam também que ele voltaria brevemente para completar a obra de instalação do Reino de Deus 9, que fora apenas
temporariamente interrompida.
Quem foi esse homem? Essa pergunta foi ouvida e respondida por aqueles que passaram a usar o nome de cristãos? De
onde ele veio? Para onde ele foi? O que ele faz agora? Quando ele voltará? Quem são vocês? O que esperam do futuro?
Essas perguntas fervilhavam nas cabeças de todos quanto, a partir da segunda geração de crentes, ouviam os testemunhos
dos primeiros seguidores. Os apóstolos e discípulos precisaram elaborar respostas inteligíveis aos questionadores para
responder com clareza o que pensavam de seu mestre.

Do conjunto dessas respostas nascia uma cristologia 10. Nasciam também uma escatologia11 e uma eclesiologia12. Na
cristologia os crentes definiam a identidade de seu mestre. Na eclesiologia definiam sua própria identidade. Na escatologia
criavam um sistema no qual ancoravam todas as suas esperanças para o futuro imediato e remoto.

6
Ora, depois que João foi entregue, veio Jesus para a Galileia pregando o evangelho de Deus e dizendo: O tempo está
cumprido, e é chegado o reino de Deus. Arrependei-vos, e crede no evangelho. Marcos 1.14,15.
7
Flávio Josefo (37-100 d.C.), Antiguidades Judaicas, livro 18, parágrafos 63 e 64, 93 d.C. " Havia neste tempo Jesus, um homem sábio [se é lícito
chamá-lo de homem, porque ele foi o autor de coisas admiráveis, um professor tal que fazia os homens receberem a verdade com prazer]. Ele
fez seguidores tanto entre os judeus como entre os gentios. [Ele era o Cristo] E quando Pilatos, seguindo a sugestão dos principais entre nós,
condenou-o à cruz, os que o amaram no princípio não o esqueceram; [porque ele apareceu a eles vivo novamente no terceiro dia; como os
divinos profetas tinham previsto estas e milhares de outras coisas maravilhosas a respeito dele]. E a tribo dos cristãos, assim chamados por
causa dele, não está extinta até hoje."
8
Ora, eu vos lembro, irmãos, o evangelho que já vos anunciei; o qual também recebestes, e no qual perseverais, pelo
qual também sois salvos, se é que o conservais tal como vo — lo anunciei; se não é que crestes em vão. Porque
primeiramente vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras;
que foi sepultado; que foi ressuscitado ao terceiro dia, segundo as Escrituras; que apareceu a Cefas, e depois aos
doze; depois apareceu a mais de quinhentos irmãos duma vez, dos quais vive ainda a maior parte, mas alguns já
dormiram; depois apareceu a Tiago, então a todos os apóstolos; I Co 15.1-7.
9
Estando eles com os olhos fitos no céu, enquanto ele subia, eis que junto deles apareceram dois varões vestidos de
branco, os quais lhes disseram: Varões galileus, por que ficais aí olhando para o céu? Esse Jesus, que dentre vós foi
elevado para o céu, há de vir assim como para o céu o vistes ir. At 1.10,11.
10
Cristologia é um discurso acerca de Jesus Cristo.
11
Estudo das coisas que acontecerão nos tempos futuros, no fim.

4
É necessário também que lembremos que o cristianismo não se desenvolveu isolado como se fosse uma planta de estufa
protegida das influências ambientais. Muito pelo contrário, desde o início, o estabelecimento e o crescimento dos cristãos
ocorreram em um campo onde eles tinham que dialogar constantemente com opositores que nem sempre eram muito
cordiais. Judeus, romanos, pagãos. Alguns deles passavam do diálogo à hostilidade com enorme facilidade. As
perseguições se tornaram inevitáveis e frequentes.

Em consequência, os cristãos necessitaram desenvolver um rígido e abrangente sistema doutrinário com o objetivo de
preparar os novos aderentes a firmarem sua fé e a não apostatarem nas horas em que mais sofriam as adversidades
decorrentes da escolha que fizeram. Ao mesmo tempo, precisavam ter argumentos para apresentar aos seus opositores
explicando tudo o que faziam e diziam. Acabaram elaborando uma teologia completa.

Neste estudo, pretendemos apreciar como os primeiros cristãos elaboraram seus ensinamentos acerca da pessoa de Jesus
Cristo, seu líder, apresentado tanto como deus quanto como homem.

Hoje os teólogos usam duas expressões para expor este assunto. Fala-se em baixa cristologia quando assumimos para
Jesus Cristo uma identidade que enfatiza sua humanidade. Por outro lado, fala-se em alta cristologia, quando se enfatiza
a sua divindade. Encontramos os dois modelos de cristologias no Novo Testamento.

A baixa cristologia presume a divinização de um ser humano, no caso, o Jesus de Nazaré, que em um determinado tempo
de sua vida, no caso, o momento de seu batismo como descreve o evangelho de Marcos, ou na sua ressurreição, é adotado
por Deus como filho e passa a mostrar atributos divinos recebidos do pai. Essa versão é conhecida como “adocianismo”.

A alta cristologia, por outro lado presume que um ser divino preexistente desce a este mundo por meio de uma encarnação
e assume todas as virtudes e vícios inerentes aos humanos.

Ehrman 12 propõe uma nomenclatura diferente para essas duas interpretações que é bastante elucidativa. Ele fala de
cristologia de exaltação para se referir a um processo no qual um ser humano normal é, em algum momento, exaltado ao
nível da divindade recebendo atributos que não são próprios de homens. Por outro lado, ele fala de uma cristologia de
encarnação para descrever o processo no qual um ser divino preexistente se desvincula de seus atributos divinos e assume
a humanidade.

Antes de mais nada precisamos estar atentos aos dois eventos fundantes do Cristianismo: a ressurreição de Jesus de Nazaré
e a efusão do espírito sobre os seus seguidores. Muito embora ilustres historiadores tenham se debruçado exaustivamente
sobre documentos canônicos e extrabíblicos somos forçados a admitir que nenhum desses dois eventos podem ser
comprovados historicamente. Como teólogos, não temos problemas com isso porque os aceitamos pela fé. Todas as
cristologias existentes foram elaboradas depois deles e refletem as repercussões deles no crer, no pensar e no agir de
nossos irmãos do passado.

2. Marcos - o filho de Deus presente no meio dos homens


O filho de Deus
O evangelho cuja autoria é atribuída a Marcos foi escrita por volta do ano 68 da era cristã em meio à guerra judaico
romana. Segundo a tradição, neste ano o apóstolo Paulo foi martirizado em Roma. Na sua composição existe uma grande
quantidade de material muito antigo, produzida por contemporâneos de Jesus Cristo e transmitida por tradição oral. A ela
agregaram-se interpretações da comunidade cristã das origens a respeito de seu fundador.

O mais aceito pela crítica bíblica atual é que o evangelho de Marcos foi escrito em Roma para cristãos gentios e teve
como propósito inocentar as autoridades romanas pela execução de Jesus Cristo na cruz. Ele descreve várias ocasiões em
que fariseus e herodianos se uniram para conspirar contra Jesus e apanhá-lo em algum erro que justificasse a aplicação
da pena de morte. Qual seria a razão do ódio que motivou a conspiração? A resposta é simples: fariseus e herodianos se

12
Ehrman, Bart D., Como Jesus se tornou Deus, tradução de Lúcia Britto, São Paulo, LeYa, 2014.

5
recusam a reconhecer e a aceitar que o Jesus de Nazaré era o “filho de Deus” e que, portanto, compartilhava da natureza
divina do PAI.

Neste evangelho Jesus é apresentado como “o filho de Deus”. O texto mais expressivo é aquele em que ele foi interrogado
pelo sumo sacerdote que lhe perguntou se ele era o filho do Deus bendito. Sua resposta foi: eu o sou” 13. Outras menções
de sua filiação divina são encontradas em: “Princípio do evangelho de Jesus Cristo, o filho de Deus” 14. Observa-se que a
expressão “filho de Deus” não aparece nos textos mais antigos deste versículo o que ocorre no “Códex Sinaiticus”.
Provavelmente um copista, que interpretou a posição teológica do autor a adicionou como nota marginal e,
posteriormente, foi incorporada ao texto. Essa expressão é colocada também na boca de espíritos imundos evidenciando
que eles estavam enfrentando alguém cuja autoridade reconheciam e respeitavam 15.

De onde teria vindo essa identificação? A terminologia “filius divi” (filho do divino) era usada pelos romanos como
fórmula de culto e reverência para honrar seu imperador. Ela foi usada, por exemplo, para César Augusto, primeiro
imperador romano que foi feito filho adotivo de Júlio César, o qual foi divinizado (exaltado) por decreto do senado
Romano. Outros imperadores a usaram posteriormente. O equivalente grego desta expressão “ὁ υἱὸς τοῦ θεοῦ”, é
usado várias vezes no Novo Testamento exclusivamente para Jesus e indica a exclusividade da qualificação. Jesus não é
um filho de um deus, ele é o filho do Deus altíssimo 16. Nós, os cristãos somos chamados de τέκνα θεοῦ17

Sinais: curas, exorcismos e outros milagres.


O evangelho de Marcos nos apresenta uma grande série de curas, exorcismos e de outros sinais maravilhosos operados
por Jesus Cristo. Cumpre-nos avaliar a intenção do autor ao relatá-los e o significado do relato.

Com relação às curas é necessário recuperar o entendimento que os contemporâneos de Jesus tinham a respeito das causas
das doenças e dos motivos das curas. Aceitavam os judeus naquele tempo que as doenças eram castigos divinos para
pecados cometidos por uma pessoa ou por um ancestral da mesma. O exemplo indiscutível dessa interpretação é visto na
história de Miriam, a irmã do profeta Moisés.

No livro de números18 se lê: “Assim se acendeu a ira do Senhor contra eles; e ele se retirou; também a nuvem se retirou
de sobre a tenda; e eis que Miriam se tornara leprosa, branca como a neve; e olhou Arão para Miriam e eis que estava
leprosa. ”

Esse “castigo” foi ocasionado pela crítica que Miriam e seu irmão “Arão” fizeram a Moisés depois que ele contraiu
núpcias com uma mulher estrangeira. A “ira do Senhor”, isto é, o braço vingativo de sua justiça, se voltou contra Miriam
e fez com que ela ficasse leprosa. Os judeus estendiam esse conceito ao extremo admitindo que o ser humano poderia
pecar mesmo antes do nascimento, enquanto ainda estava no útero da mãe?19

Outra possibilidade considerada seria de alguém sofrer em decorrência de pecados cometidos por antepassados. A tradição
sacerdotal advogava esta tese baseada no mandamento contra a idolatria “Não farás para ti imagem esculpida, nem figura
alguma do que há em cima no céu, nem em baixo na terra, nem nas águas debaixo da terra. Não te encurvarás diante
delas, nem as servirás; porque eu, o Senhor teu Deus, sou Deus zeloso, que visito a iniquidade dos pais nos filhos até a
terceira e quarta geração daqueles que me odeiam. ”20

Essa interpretação começou a ser demolida na tradição profética que fez com que a responsabilidade dos males que
ocorrem ao homem migrasse da esfera corporativa para a esfera individual: “Que quereis vós dizer, citando na terra de
Israel este provérbio: Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos se embotaram? Vivo eu, diz e Senhor Deus,

13
Marcos. 14.60-63.
14
Marcos.1.1.
15
Marcos.3.11.
16
Atos. 9.20
17
I João 3.1
18
Números. 12.9-10.
19
João. 9.1,2.
20
Êxodo. 20.4,5.

6
não se vos permite mais usar deste provérbio em Israel. Eis que todas as almas são minhas; como o é a alma do pai, assim
também a alma do filho é minha: a alma que pecar, essa morrerá.” 21

Se, por um lado, a doença era vista como um castigo por um pecado, por outro, a cura era entendida como recompensa
pelo perdão concedido ao pecador arrependido. Dessa forma, quem curava doenças tinha poder para perdoar pecados.
Sendo esse poder um atributo exclusivamente divino aquele que o ostentava participava, de alguma forma da natureza
divina.

No exemplo de Miriam, citado acima, Moisés foi o intermediário para a obtenção da cura:
Clamou, pois, Moisés ao Senhor, dizendo: Ó Deus, rogo-te que a cures. Respondeu o Senhor a Moisés: Se seu pai lhe
tivesse cuspido na cara não seria envergonhada por sete dias? Esteja fechada por sete dias fora do arraial, e depois se
recolherá outra vez. Assim Miriam esteve fechada fora do arraial por sete dias; e o povo não partiu, enquanto Miriam não
se recolheu de novo. ”22

O evangelho de Marcos mostra Jesus sendo questionado por fariseus por causa das curas que realizava. Caso os fariseus
admitissem a autenticidade da cura também teriam que admitir em Jesus a autoridade para perdoar pecados e, portanto,
sua divindade. Essa verdade fica bem evidente no episódio da cura do paralítico que foi trazido à presença de Jesus por
quatro amigos23.

Nisso vieram alguns a trazer-lhe um paralítico, carregado por quatro; e não podendo aproximar-se dele, por causa da
multidão, descobriram o telhado onde estava e, fazendo uma abertura, baixaram o leito em que jazia o paralítico. E Jesus,
vendo-lhes a fé, disse ao paralítico: Filho, perdoados são os teus pecados. Ora, estavam ali sentados alguns dos escribas,
que arrazoavam em seus corações, dizendo: Por que fala assim este homem? Ele blasfema. Quem pode perdoar pecados
senão um só, que é Deus? Mas Jesus logo percebeu em seu espírito que eles assim arrazoavam dentro de si, e perguntou-
lhes: Por que arrazoais desse modo em vossos corações? Qual é mais fácil? Dizer ao paralítico: Perdoados são os teus
pecados; ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito, e anda? Ora, para que saibais que o Filho do homem tem sobre a terra
autoridade para perdoar pecados (disse ao paralítico), a ti te digo, levanta-te, toma o teu leito, e vai para tua casa. Então
ele se levantou e, tomando logo o leito, saiu à vista de todos; de modo que todos pasmavam e glorificavam a Deus,
dizendo: Nunca vimos coisa semelhante.

Os exorcismos de Jesus se inserem no mesmo contexto. Os judeus criam na possibilidade da interação de espíritos
imundos (anjos decaídos) com os humanos. Quando isso ocorria, seguramente com a permissão divina, o homem ficava
afetado por uma enfermidade que o deixava ritualmente impuro. A restauração da saúde e, consequentemente, do estado
de pureza ritual, implicava, portanto, não apenas no perdão do pecado, mas também na expulsão do espírito impuro. A
história do patriarca Jó ilustra esta crença: “Saiu, pois, Satanás da presença do Senhor, e feriu Jó de úlceras malignas,
desde a planta do pé até o alto da cabeça. E Jó, tomando um caco para com ele se raspar, sentou-se no meio da cinza.”

A assimilação da cultura helenística pelo povo judeu que ocorreu a partir do século II a.C., fez com que os anjos decaídos
ou espíritos imundos fossem sincretizados com os demônios (povos invisíveis) da mitologia grega.

O fato de Jesus exorcizar espíritos imundos, ou demônios, também apontava para sua natureza e filiação divinas. Se era
necessário que Deus permitisse que um espírito imundo perturbasse a vida de um homem era também necessária uma
ordem divina para que ele deixasse o homem em paz.

Essa crença é esclarecida no episódio em que os fariseus acusam Jesus praticar exorcismos por haver feito um pacto com
Belzebu24 : E os escribas que tinham descido de Jerusalém diziam: Ele está possesso de Belzebu; e: É pelo príncipe dos
demônios que expulsa os demônios. Então Jesus os chamou e lhes disse por parábolas: Como pode Satanás expulsar
Satanás? Pois, se um reino se dividir contra si mesmo, tal reino não pode subsistir; ou, se uma casa se dividir contra si
mesma, tal casa não poderá subsistir; e se Satanás se tem levantado contra si mesmo, e está dividido, tampouco pode ele

21
Ezequiel.18.2-4.
22
Números 12.13-15.
23
Marcos 2.3-11. 39
24
Marcos.3.22-27.

7
subsistir; antes tem fim. Pois ninguém pode entrar na casa do valente e roubar-lhe os bens, se primeiro não amarrar o
valente; e então lhe saqueará a casa.

Jesus mencionava um escrito muito popular entre judeus daquele tempo. O livro conhecido como “Enoque etíope” porque
seu manuscrito mais antigo está escrito em língua etíope. Nessa obra existe uma descrição da rebelião dos anjos contra
Deus que foi comandada pelo arcanjo Azazel25. Como pena por sua rebelião, Azazel, mais tarde sincretizado por Satanás,
foi submetido e amarrado pelo Arcanjo Rafael que o encerrou em um profundo poço onde deveria aguardar o dia de seu
juízo26.

Jesus alegava em defesa própria que ele só podia saquear os bens do valente, isto é, resgatar as vidas sequestradas por
Satanás, porque já havia submetido e amarrado o próprio Satanás. Essa tarefa é inconcebível para um simples homem.
Apenas um ser divino pode executá-la. Segundo o texto paralelo de Mateus43 o fato de Jesus fazer exorcismo comprova
a chegada do reino de Deus a este mundo.

Outros milagres são citados mostrando que Jesus Cristo tinha poder sobre os elementos da natureza. No capítulo 4,
versículos 35 a 41, encontramos Jesus acalmando uma tempestade no mar da Galileia:

Naquele dia, quando já era tarde, disse-lhes: Passemos para o outro lado. E eles, deixando a multidão, o levaram consigo,
assim como estava, no barco; e havia com ele também outros barcos. E se levantou grande tempestade de vento, e as
ondas batiam dentro do barco, de modo que já se enchia. Ele, porém, estava na popa dormindo sobre a almofada; e
despertaram-no, e lhe perguntaram: Mestre, não se te dá que pereçamos? E ele, levantando-se, repreendeu o vento, e disse
ao mar: Cala-te, aquieta-te. E cessou o vento, e fez-se grande bonança. Então lhes perguntou: Por que sois assim tímidos?
Ainda não tendes fé? Encheram-se de grande temor, e diziam uns aos outros: Quem, porventura, é este, que até o vento e
o mar lhe obedecem?

Nesse episódio Jesus é mostrado como alguém que tem poder para controlar as forças da natureza. Para seus leitores
romanos, de cultura grega, a força dos ventos, que produziam as tempestades no mar, estavam sob controle do deus
Éolo27. Dessa forma, controlar ventos e tempestades não era coisa de homem, era coisa de Deus, ou do filho de Deus.

Em conclusão, Marcos nos apresenta uma baixa cristologia. Nada declara sobre a preexistência do Cristo, também não
menciona sua concepção virginal. Para ele Jesus é filho de Deus por adoção a partir do batismo. Poderíamos dizer que
Marcos nos apresenta uma proposta adocianista. Assim como César Augusto tornou-se “filho do divino” Júlio César28
quando foi por ele dotado, Jesus se tornou “filho do Altíssimo” quando foi adotado por Ele no batismo. Seus atos provam
que ele administrava o poder do Divino, entretanto, em proporção parecida com qualquer profeta da antiguidade.

25
Na antiga tradição judaica Azazel era o nome dado a um espírito que habitava no deserto. Segundo a lei, no dia da
expiação pelos pecados do povo, o sacerdote deveria tomar dois bodes e, por sorteio, determinar um que seria
oferecido ao Senhor como oferta pelo pecado. O segundo era levado ao deserto (azazel) vivo e oferecido a Azazel.
Levíticos 16.1-10.
26
O livro dos Anjos, primeira parte do livro de Enoque (I Enoque) in: Proença, E. & Proença, E.O., edd,, Apócrifos e
pseudoepígrafos da Bíblia. Novo Século, São Paulo. Pp. 261 – 264. 43 Mateus 12.28.
27
Éolo era o senhor da ilha Eólia, e era querido dos deuses imortais. Odisseu chegou à sua ilha, e lá passou um mês,
contando as suas aventuras. Éolo lhe entregou um saco de couro de um novilho de nove anos de idade, em que estavam
presos todos os ventos, porque Zeus fizera de Éolo o senhor dos ventos. Éolo deixou apenas o vento do Oeste solto, para
levar Odisseu de volta para sua casa, mas, seus homens, achando que havia ouro e prata no saco, o abriram, libertando
todos os ventos, o que os afastou de Ítaca, retornando para a ilha Eólia. Nas versões racionalizadas da mitologia grega,
Éolo foi um sábio que conhecia sobre os ventos, sendo por isso chamado de senhor dos ventos. Verbete Éolo – Wikipédia.
45 Mateus 13.52
28
... “O cônsul Antônio mandou um arauto ler, ao invés do elogio fúnebre, o senatus consulto que conferia a (Júlio) César
honras divinas e humanas”. Suetônio, A vida dos doze Césares, p.65.

8
3. Paulo – a cristologia do Kyrios ressurreto
Uma questão de prioridade
Paulo foi provavelmente o primeiro escritor do Novo Testamento. Suas epístolas mais antigas datam da década de 50. Se,
como querem alguns, ele foi precedido por Tiago, isso não faz diferença para nós porque a epístola desse apóstolo é
totalmente omissa em termos de Cristologia. É razoável, portanto, que passemos ao estudo da cristologia do Novo
Testamento nos escritos de Paulo.

Por que uma cristologia paulina?


A pergunta que se coloca inicialmente é: “Por que razão Paulo precisou elaborar uma cristologia?” Sua resposta deriva
da pesquisa histórica. Paulo foi, antes de tudo, um judeu vinculado à tradição de Israel. Foi também adepto do farisaísmo,
um grupo religioso que tinha exigências muito fortes em termos de pureza e de respeito à Lei de Moisés 29. Foi ainda um
indivíduo culto instruído nas artes e na filosofia helênica. Foi, como declara Heyer30, um “homem de dois mundos”.

Sua entrada no Cristianismo se deu de maneira espetacular e traumatizante. O Senhor ressurreto lhe apareceu no caminho
e o convocou a ser um profeta que levaria a mensagem do evangelho até os confins da terra. Depois dessa experiência,
Paulo nunca mais foi o mesmo. Chegou a desprezar seu nome de batismo que apontava para a realeza judaica e assumiu
um nome muito humilde que era usado por escravos.

Descobriu, pouco tempo depois, que seu público-alvo não era o povo judeu e sim os gentios que os judeus desprezavam
e que a ele fora reservada a missão de evangelizá-los. A base bíblica para essa interpretação ele a achou na narrativa de
chamada de Abraão31. A leitura que fez desse texto32 levou-o a concluir que o plano redentor de Deus não se restringia
aos seus irmãos de etnia, os judeus, mas, se estendia a todo e qualquer ser humano que fosse capaz de exercitar a fé no
Deus vivo.

Na execução de sua missão, Paulo necessitou apresentar Jesus como salvador a todos os seus ouvintes33. E estes não se
restringiam a judeus e a prosélitos do judaísmo. Seu público-alvo foi constituído por todos os súditos do Império Romano.

A cristologia do Kyrios
A palavra-chave que Paulo usou para identificar Jesus para os romanos foi a mesma que eles usavam para honrar seu
imperador: “κυρίoς”, Senhor34. Em contrapartida, a si mesmo se chamava “δοῦλος”, escravo.

É evidente que ninguém pode ser escravo de um morto e, portanto, para Paulo, o fato de que Jesus estava vivo implicava
em que ele havia ressuscitado dos mortos. Sua cristologia foi centrada na ressurreição. Outro aspecto importante é o fato
de que Paulo é praticamente o único autor do Novo Testamento que usa a expressão “Cristo Jesus” para identificar aquele
a quem ele prega. Todos os outros autores se referem a ele como Jesus Cristo. Essa escolha implica em dar prioridade ao
Cristo ressurreto em detrimento da pessoa do Jesus humano 35. Paulo nos apresenta, portanto, uma alta cristologia. Ele
enfatiza e divindade do Cristo e relativiza a humanidade do Jesus de Nazaré.

29
Filipenses 3,5,6,
30
Den Heyer, C. J., Paulo, um homem de dois mundos. São Paulo, Paulus, 2009.
31
Gênesis 12,1-3.
32
Romanos 4.
33
Romanos 10.13
34
O imperador Domiciano (81-96 d.C.) segundo nos informa o historiador romano Suetônio na obra “A vida dos doze
Césares”, com análoga arrogância, ditou em nome dos procuradores, uma carta circular que começava com o
seguinte período: “Nosso senhor e deus ordena que assim se faça”. A partir disso, então, o uso estabelecido, de
forma que ninguém, escrevendo ou falando, lhe chamasse de outra maneira
35
II Coríntios 5.16 - Por isso daqui por diante a ninguém conhecemos segundo a carne; e, ainda que tenhamos
conhecido Cristo segundo a carne, contudo agora já não o conhecemos desse modo. 20 A expressão: “Χριστοῦ
Ἰησοῦ” aparece no texto crítico do N.T.

9
A identidade de Cristo Jesus
Iniciando sua epístola aos cristãos de Roma, Paulo declara: “Paulo, servo de Cristo Jesus 20, chamado para ser apóstolo,
separado para o evangelho de Deus, que ele antes havia prometido pelos seus profetas nas santas Escrituras, acerca de
seu Filho, que nasceu da descendência de Davi segundo a carne, e que com poder foi declarado Filho de Deus segundo o
espírito de santidade, pela ressurreição dentre os mortos- Jesus Cristo nosso Senhor.36”

O primeiro ponto importante para a compreensão da cristologia paulina está na apresentação de Jesus Cristo como sendo
aquele cuja vinda foi prometida aos antigos por meio dos profetas, nas santas Escrituras, e que havia nascido, segundo a
carne da descendência de Davi. Nessa declaração fica evidente que Paulo desconhecia qualquer ideia a respeito de um
nascimento virginal de Jesus Cristo. Seu nascimento se deu naturalmente, segundo a carne. Essa declaração concorda
com a informação que Paulo passa aos crentes da Galácia: “mas, vindo a plenitude dos tempos, Deus enviou seu Filho,
nascido de mulher, nascido debaixo de lei”,37

O segundo aspecto colocado em evidência foi a sua divindade. Ela se revelou quando Jesus foi declarado Filho de Deus
(υἱοῦ θεοῦ). Para um judeu a palavra filho (υἱοῦ) implicava em compartilhamento da natureza do pai. Quando Jesus
chamou João e Tiago de “filhos do trovão”38 estava enfatizando sua natureza ruidosa. Paulo, ao chamar Jesus de filho de
Deus enfatizava sua natureza divina. Paulo definia, portanto, uma alta cristologia.

O terceiro aspecto esclarecido nesta passagem é a compatibilização da divindade de Jesus com sua humanidade. Este
tema permaneceu uma espécie de “espinho na carne” dos cristãos pelos milênios que se seguiram. Paulo declara que a
revelação da divindade de Jesus Cristo ocorre no momento de sua ressurreição. A partir daí ele passa a ser “Jesus Cristo
nosso Senhor”

Jesus, o deus esvaziado


Para Paulo Jesus foi homem desde que nasceu até o momento em que morreu pregado na cruz. Nada do que ele disse ou
fez pode ser explicado por uma pretensa divindade. Não podemos lhe atribuir onisciência, onipotência, onipresença ou
qualquer outro atributo divino. Dessa forma, só nos resta recorrer a uma vocação profética muito especial para explicar
as curas, os exorcismos ou as revelações particulares saídas de sua boca. Estamos tremendamente restringidos. Para Paulo
isso não era problema porque seu compromisso não foi com um Jesus judeu de Nazaré, mas com o Cristo universal.

A adoção de uma alta cristologia, entretanto, não pode prescindir da aceitação da preexistência do Cristo. Como poderia
um deus não ser eterno? Como poderia um deus haver surgido na história depois da existência do universo de cuja criação
ele mesmo havia participado? Paulo resolve esse problema com a “cristologia cenótica” ou “cristologia do esvaziamento”
exposta na epístola aos filipenses39.

Tende em vós aquele sentimento que houve também em Cristo Jesus, o qual, subsistindo em forma de Deus, não
considerou o ser igual a Deus coisa a que se devia aferrar, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo,
tornando-se semelhante aos homens; e, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até
a morte, e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou soberanamente, e lhe deu o nome que é sobre todo nome; para
que ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus, e na terra, e debaixo da terra, e toda língua confesse
que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.

A chave para a compreensão da compatibilização da humanidade de Jesus com a divindade do Cristo está em um processo
em que ele voluntariamente sede esvaziou (ἐκένωσεν) de seus atributos divinos e se submeteu ao processo de encarnação.
Ao assumir a humanidade, na identidade do Jesus de Nazaré, o Cristo preexistente se despojou de todos os seus atributos
divinos para poder se identificar com os homens e comunicar-se com eles. Quem olhava para ele não via um deus glorioso,

36
Romanos 1.1-4.
37
Gálatas 4.4.
38
καὶ Ἰάκωβον τὸν τοῦ Ζεβεδαίου καὶ Ἰωάννην τὸν ἀδελφὸν τοῦ Ἰακώβου, καὶ ἐπέθηκεν αὐτοῖς ὀνόματα Βοανηργές, ὅ
ἐστιν υἱοὶ βροντῆς·
39
Filipenses 2.5-11

10
mas, um homem humilhado. Tão humilhado que admitiu o vilipêndio da encarnação. Tão humilhado que assumiu a
maldição ao ser pregado no madeiro.

O Cristo vitorioso e exaltado


Depois de sua ressurreição, o Cristo foi exaltado sobremaneira e reassumiu a glória e os atributos divinos que ele havia
deixado. A simples menção de seu nome é suficiente para motivar todos os que estão nos céus (anjos fiéis e decaídos),
na terra (vivos), e debaixo da terra (mortos) a se ajoelharem e a confessar seu senhorio40. Uma expansão dessa cristologia
é encontrada na epístola aos colossenses, hoje considerada deuteropaulina:

“… e que nos tirou do poder das trevas, e nos transportou para o reino do seu Filho amado; em quem temos a redenção,
a saber, a remissão dos pecados; o qual é imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação; porque nele foram
criadas todas as coisas nos céus e na terra, as visíveis e as invisíveis, sejam tronos, sejam dominações, sejam principados,
sejam potestades; tudo foi criado por ele e para ele. Ele é antes de todas as coisas, e nele subsistem todas as coisas;
também ele é a cabeça do corpo, da igreja; é o princípio, o primogênito dentre os mortos, para que em tudo tenha a
preeminência, porque aprouve a Deus que nele habitasse toda a plenitude, e que, havendo por ele feito a paz pelo sangue
da sua cruz, por meio dele reconciliasse consigo mesmo todas as coisas, tanto as que estão na terra como as que estão nos
céus.41” Esse texto contém declarações que exaltam a divindade do Cristo:

1. É a imagem do Deus invisível, o primogênito de toda a criação – Aqui se ressalta o fato de que o Cristo não foi
criado e sim gerado por Deus antes mesmo de a criação ter sido feita. Ele é anterior e superior a tudo quanto foi
criado, sejam homens, anjos ou poderes espirituais.

2. Nele foram criadas todas as coisas – O universo e tudo que ele contém se inspira no Cristo. O próprio homem
reflete a sua imagem.

3. Tudo foi criado por ele – Sua participação não se limita a servir como modelo, mas serve também como agente
da criação. De maneira semelhante ao que foi imputado à sabedoria de Deus na leitura vétero - testamentária42,
ao Cristo foi imputada na visão dos escritores do Novo Testamento, a autoria de toda a obra criada.

4. Ele reconciliou consigo mesmo todas as coisas – destaca-se sua função redentora.
Aqui passamos da cristologia cenótica para a cristologia cósmica a qual, segundo Leonardo Boff43, “não visa apenas
entender as dimensões da realidade do Cristo que alcançaram até o Universo, mas quer também responder uma indagação
que está sempre presente no espírito humano: qual é o fator, a energia, o elo que faz com que o Universo seja um cosmos
e não um caos; que apresente uma surpreendente unidade no interior mesmo de sua incomensurável diversidade de seres,
de estrelas e de galáxias? ”

Em conclusão, Paulo nos apresenta uma alta cristologia. Admite a preexistência do Cristo.
Compatibiliza sua divindade com sua humanidade pelo fenômeno do esvaziamento. Exalta sua glorificação a partir da
ressurreição. Finalmente, aguarda sua volta imediata para implantar o reino de Deus neste mundo.

4.Mateus - o segundo Moisés e descendente de Davi


A leitura do evangelho segundo Mateus impressiona qualquer leitor pela riqueza de referências ao Antigo Testamento,
tanto à lei quanto aos profetas. Nele, mas que em qualquer outro livro do Novo Testamento, se percebe a ideia subjacente
de que em Jesus Cristo se deu o pleno cumprimento das promessas messiânicas feitas aos antigos.

40
Isaías 45.23,24.
41
Colossenses 1.13-20,
42
Provérbios 8.22-31.
43
Boff, L., Evangelho do Cristo cósmico, Rio de Janeiro, Record. 2008, p.12,

11
Este evangelho é claramente dirigido a uma comunidade de cristãos de cultura e raízes judaicas. Salvo apenas pela
epístola de Tiago, é o mais judaico de todos os livros do Novo Testamento. A autoria deste livro é tradicionalmente
atribuída a Mateus, um dos doze apóstolos. Papias (138 DC) menciona Mateus como autor e informa que ele teria escrito
originalmente em Aramaico. Seu livro teria sido posteriormente vertido para a língua grega. As evidências internas
apontam para um autor judeu convertido ao Cristianismo e que enfrentava dura oposição dos líderes da comunidade
judaica. A referência ao escriba que se converte45 tem sido interpretada como uma nota autobiográfica.

O evangelho de Mateus é posterior ao de Marcos uma vez que o seu autor utilizou aquele livro como roteiro para organizar
a sua obra e como fonte de material para a reconstituição histórica do ministério de Jesus Cristo. Como o livro de Marcos
foi escrito no período de 64 – 68 da era cristã, somos então levados a admitir data posterior para Mateus.

No evangelho de Mateus encontramos a narrativa da conhecida “Parábola das bodas”. No texto desta parábola 44
encontramos a declaração: “Mas o rei encolerizou-se; e enviando os seus exércitos, destruiu aqueles homicidas, e
incendiou a sua cidade.” Esta menção ao incêndio da cidade, inserida em uma parábola tipicamente antijudaica tem sido
interpretada como referência à destruição de Jerusalém pelas tropas romanas comandadas por Tito, que ocorreu no ano
70, feita com objetivo de lembrar o leitor que Jesus havia predito tudo quanto veio a ocorrer.

Os leitores originais eram judeus cristãos que estavam enfrentando a primeira crise de identidade do cristianismo: como
ser cristão sem deixar de ser judeu? Dessa forma, Jesus Cristo tinha de ser apresentado de maneira que pudesse ser
identificado pelos judeus com figuras existentes em sua cultura. O autor escolheu dois modelos o “filho de Davi” 45 e o
“segundo profeta”46 semelhante a Moisés.

O título “filho de Davi” é dado a Jesus Cristo nada menos de 10 vezes no curso desse livro. Fato significativo está em
que este evangelho, diferente do de Marcos que lhe serviu como base, apresenta uma rebuscada genealogia de Jesus
mostrando que ele era descendente (filho) de Abraão e descendente (filho) de Davi 49. Essa genealogia é apresentada
observando os princípios de sucessão prescritos na lei judaica. Dessa forma, Jesus é apresentado como descendente de
Abraão e de Davi por uma linhagem sucessória que passa por seu pai, José e não por Maria, sua mãe.

A semelhança com Moisés pode ser inferida das narrativas incluídas no texto. Moisés, pouco depois de seu nascimento,
foi miraculosamente salvo da morte ordenada por Faraó quando seus pais, divinamente orientados, o deixaram em um
cesto flutuando sobre as águas do rio Nilo, no Egito.47 Jesus, pouco depois do nascimento, foi salvo da morte ordenada
por Herodes porque seus pais, também divinamente orientados, fugiram para o Egito. 51

Moisés, antes de receber a lei permaneceu no monte quarenta dias em jejum: “E Moisés esteve ali com o Senhor quarenta
dias e quarenta noites; não comeu pão, nem bebeu água, e escreveu nas tábuas as palavras do pacto, os dez mandamentos.
”52

Jesus, da mesma forma, antes de começar seu ministério com a reformulação da lei, foi levado ao deserto, onde
permaneceu 40 dias: “Então foi conduzido Jesus pelo Espírito ao deserto, para ser tentado pelo Diabo. E, tendo jejuado
quarenta dias e quarenta noites, depois teve fome. 48

Moisés transcreveu a lei do Senhor para seu povo. Jesus se apresentou como sendo alguém com autoridade para interpretar
e atualizar a lei de Moisés. As expressões: “Ouvistes o que foi dito aos antigos … eu, porém, vos digo” aparecem repetidas
vezes no sermão do monte mostrando que Jesus tinha autoridade concedida por Deus para reformular a Tora. O próprio
evangelho é uma coleção de cinco discursos de Jesus, estruturados à semelhança dos discursos de Moisés, no
Deuteronômio.

44
Mateus 22.7
45
Mateus 21.9
46
Deuteronômio 18.15-19.
47
Êxodo 1.27-2.4 51
48
Mateus 4.1,2.

12
Essa visão, se tomada isoladamente, nos induz à conclusão de que Mateus nos apresenta uma baixa cristologia, isto é que
ele enfatiza a humanidade de Jesus, revelada nos seus ofícios real e profético, e despreza o lado divino de sua
personalidade. Mateus usa para Jesus o título “filho de Deus” apenas esporadicamente. Nas duas citações iniciais ele é
colocado na boca de Satanás49:

Chegando, então, o tentador, disse-lhe: Se tu és Filho de Deus manda que estas pedras se tornem em pães. Então o Diabo
o levou à cidade santa, colocou-o sobre o pináculo do templo, e disse-lhe: Se tu és Filho de Deus, lança-te daqui abaixo;
porque está escrito: Aos seus anjos dará ordens a teu respeito; e: eles te susterão nas mãos, para que nunca tropeces em
alguma pedra.

A seguir, ele é colocado na boca de possessos residentes em Gadara55;

E eis que gritaram, dizendo: Que temos nós contigo, Filho de Deus? Vieste aqui atormentar-nos antes do tempo?

O reconhecimento por parte dos homens é mais tardio. Ele aparece quando Jesus encontra os discípulos em um barco
caminhando sobre o Mar da Galileia 50: Então os que estavam no barco adoraram-no, dizendo: Verdadeiramente tu és
Filho de Deus.

De novo, ela aparece na voz de Pedro como resposta a uma pergunta do mestre 51: Respondeu-lhe Simão Pedro: Tu és o
Cristo, o Filho do Deus vivo.

Aparece também, no interrogatório do sumo sacerdote com resposta positiva 52: Jesus, porém, guardava silêncio. E o sumo
sacerdote disse-lhe: Conjuro-te pelo Deus vivo que nos digas se tu és o Cristo, o Filho do Deus. Respondeu-lhe Jesus: É
como disseste; contudo vos digo que vereis em breve o Filho do homem assentado à direita do Poder, e vindo sobre as
nuvens do céu.

Aparece ainda nas imprecações lançadas contra o mestre crucificado53: E dizendo: Tu, que destróis o santuário e em três
dias o reedificas, salva-te a ti mesmo; se és Filho de Deus, desce da cruz. De igual modo também os principais sacerdotes,
com os escribas e anciãos, escarnecendo, diziam: A outros salvou; a si mesmo não pode salvar. Rei de Israel é ele; desça
agora da cruz, e creremos nele; confiou em Deus, livre-o ele agora, se lhe quer bem; porque disse: Sou Filho de Deus.

Finalmente, aparece no testemunho de um pagão60: Ora, o centurião e os que com ele guardavam Jesus, vendo o terremoto
e as coisas que aconteciam, tiveram grande temor, e disseram: Verdadeiramente este era filho de Deus.

Essas citações têm um caráter mais apologético que confessional. A expressão “Filho de Davi” é aplicada a Jesus oito
vezes e mais uma a seu pai, José. Embora Mateus relate a concepção virginal de Jesus, ele nada fala a respeito de sua
preexistência. Mateus, em conclusão nos apresenta, da mesma forma que Marcos, uma baixa cristologia e restringe a
manifestação da glória divina em Jesus ao batismo e à transfiguração.

Os cristãos da comunidade de Mateus, que aceitavam a filiação divina de Jesus, foram perseguidos pelos judeus não
convertidos que os chamavam de politeístas porque a crença expressada pelos seguidores de Jesus de Nazaré conflitava
com o “shemá”, a profissão de fé judaica que declarava a existência de um só Deus. A ênfase do autor, entretanto, está
colocada no reformador da lei e não no operador de sinais maravilhosos.

Em conclusão, Mateus herdou de Marcos a cristologia adocianista, segundo a qual, a filiação divina de Jesus se revela no
batismo. Entretanto Mateus, seguindo uma tradição que se desenvolveu na segunda metade do século I, faz remontar a
filiação divina de Jesus Cristo ao seu nascimento. Ele menciona a crença na concepção virginal de Jesus operada pelo
Espírito Santo.

49
Mateus.4.3,5,6. 55
50
Mateus14.33.
51
Mateus16.16.
52
Mateus23.63,64.
53
Mateus .27.40-43

13
Essa interpretação á baseada, por um lado, na crença de filiação divina dos imperadores romanos, por outro, na alusão
encontrada no Gênesis de que os filhos de Deus coabitaram com as filhas dos homens e geraram filhos 54. Essa crença
está melhor descrita no livro dos guardiões, incluído no Enoque etíope.

Mateus, além disso, vincula a crença na concepção virginal de Jesus ao cumprimento de uma profecia do profeta Isaías:
“Portanto o Senhor mesmo vos dará um sinal: eis que uma virgem conceberá, e dará à luz um filho, e será o seu nome
Emanuel. ”55

5. Lucas - Jesus, o profeta controlado pelo espírito


Entramos agora em universo diferente. O terceiro evangelho é o único livro do novo testamento escrito por um autor não
judeu para leitores de cultura helenística. Ele é dedicado a um certo Teófilo, provavelmente um judeu helenista da
diáspora que se converteu ao cristianismo e desejava, tanto quanto precisava, conhecer melhor a personalidade do seu
salvador. O evangelho de Lucas tem composição contemporânea ao de Mateus, mas, dele se distingue por ter uma
população-alvo de cultura helenística e não judaico palestina.

A compreensão de Lucas a respeito da personalidade de Jesus não pode prescindir da análise das duas partes de sua obra:
O evangelho e o livro de Atos dos Apóstolos. Na elaboração do evangelho Lucas seguiu o esquema deixado por Marcos.
No livro de Atos ele foi totalmente original. O ponto de contato entre as duas obras que garante a harmonia e continuidade
é apenas um: O grande regente de tudo é o Espírito de Deus. Esse espírito que habitou nos profetas do passado e os
habilitou a realizar maravilhas também habitou no Jesus de Nazaré e nos seus apóstolos, depois de sua morte e
ressurreição.

Em Lucas Jesus é caracterizado como profeta, o que indica uma baixa cristologia. A sua apresentação inicial, colocada
na boca do anjo Gabriel destaca duas qualidades56: “Este será grande e será chamado filho do Altíssimo; o Senhor Deus
lhe dará o trono de Davi seu pai; e reinará eternamente sobre a casa de Jacó, e o seu reino não terá fim.”

Para Lucas sobressaem a grandeza e a realeza de Jesus, o filho (descendente) de Davi que será, pelo poder do Altíssimo,
que se declara seu pai, colocado em um trono do qual nunca será removido. Lucas, da mesma forma de Mateus, coloca a
tese da concepção provocada pela ação do Espírito Santo, mas ignora totalmente qualquer possibilidade de preexistência
do Salvador.

Mais tarde, descrevendo a ressurreição do jovem, filho de uma viúva residente na cidade de Naim, registra o comentário
do povo sobre o ocorrido57 “O medo se apoderou de todos, e glorificavam a Deus, dizendo: Um grande profeta se levantou
entre nós; e Deus visitou o seu povo.”

Jesus, o homem controlado pelo espírito. Diferentemente dos evangelhos de Marcos, Mateus e João, bem como da
pregação de Paulo, que são essencialmente cristocêntricos, o evangelho de Lucas é essencialmente paracletocêntrico 58.
A expressão Espírito Santo aparece na primeira parte de sua obra nada menos de treze vezes. Enquanto Mateus vê em
Jesus o cumprimento de profecias feitas aos antigos, Lucas identifica o cumprimento de determinações recentes do
Espírito.

Lucas começa informando que o nascimento sobrenatural de Jesus ocorreria porque o Espírito Santo assumiria a iniciativa
de provocá-lo59. No ato da circuncisão, quando Jesus foi levado ao templo, o Espírito Santo se apossou de Simeão e lhe
revelou que aquele menino era o ungido do Senhor, prometido aos antigos60.

54
Gênesis 6.1-4
55
Isaías 7.14, Mt.1.22,23.
56
Lucas1.32,33.
57
Lucas 7.16.
58
Confere maior importância à atuação do Espírito Santo que à atuação de Jesus Cristo.
59
Lucas1.31-35.
60
Lucas 2.25-32.

14
Nos Atos dos Apóstolos a expressão Espírito Santo aparece ainda quarenta vezes. Podemos então concluir que no drama
lucano Jesus foi um ator. Os apóstolos que o sucederam também foram atores. O diretor de toda a ação foi o Espírito
Santo que dava todas as ordens e orientações. Aos atores cumpria apenas seguir fielmente o “script”.

Em conclusão, a cristologia de Lucas pode ser classificada como uma baixa cristologia uma vez que ele não faz nenhuma
menção à preexistência de Jesus Cristo e atribui todas as maravilhas que ele operou a atuação do Espírito Santo por meio
dele. Lucas, da mesma forma que Mateus, seguindo uma tradição que se desenvolveu na segunda metade do século I, faz
remontar a filiação divina de Jesus Cristo ao seu nascimento. Ele menciona a crença na concepção virginal de Jesus
operada pelo Espírito Santo68.

6. Gnosticismo – Jesus parece homem, mas não é.


Incluir uma cristologia gnóstica em um estudo de cristologia do novo testamento pode parecer inadequado. A final de
contas, o gnosticismo foi combatido pelos pais da igreja dos três primeiros séculos tais como Tertuliano e Irineu e,
finalmente foi banido como heresia no século IV. Entretanto, enquanto conviveram com os membros da igreja apostólica,
os gnósticos interagiram com a fé cristã, tanto de maneira ativa quanto passiva e forneceram estímulo para que os cristãos
apostólicos formulassem e fixassem suas próprias doutrinas.

O que é gnosticismo?
O nome gnosticismo deriva da palavra grega “gnosis” que significa conhecimento revelado de caráter esotérico, em
contraste com o conhecimento empírico e experimental (episteme) 61. Podemos conceituar o Gnosticismo como um
sistema filosófico e religioso no qual a salvação é alcançada pelo conhecimento de nomes e fórmulas mágicas que o
adepto usará após a morte, na viagem de retorno para suas origens. O Gnosticismo da atualidade é organizado na forma
de sociedade secreta de cunho esotérico, análogo e relacionado à Ordem Rosa-cruz, à Teosofia e à Maçonaria.

Ensinavam os adeptos deste sistema religioso que o homem, cujo espírito se origina do pleroma 62, deve após a morte,
quando se libera da escravidão da matéria, empreender uma viagem de retorno às suas origens. Nessa viagem ele deverá
enfrentar a oposição dos governantes das sete esferas celestes63, os arcontes, que tentarão impedir a sua reintegração no
pleroma64.

Para ser vitorioso nesta viagem, o espírito precisa conhecer os nomes dos arcontes e as fórmulas mágicas que serão usadas
para iludi-los e conseguir a passagem para a esfera superior. Essas fórmulas mágicas, segundo os mestres gnósticos,
haviam sido reveladas aos primeiros líderes pelo “redentor que veio do céu”, atravessando as sete esferas, e que só
poderiam ser reveladas aos iniciados de sua escola.

Dessa forma, o Gnosticismo pode ser conceituado essencialmente como uma religião de mistério, ou esotérica, que
distingue os iniciados dos não iniciados.

61
Procurando salvar o homem não pelo reconhecimento e submissão a Deus, mas pelo conhecimento e pela " ciência do
bem e do mal ", a gnose ao mesmo tempo é um ateísmo prático e uma forma de racionalismo. " Concretamente,
escreve o prof. Drago Romano, o gnosticismo que contaminou nossa civilização é uma forma herética do
Cristianismo. Os gnósticos tinham conhecimento do dado revelado mas dele serviam-se como matéria a ser
informada pela racionalidade e até pela imaginação para [...] produzir cosmologias e antropologias fantasiosas " A
GNOSE E A " MORTE DE DEUS " Hélio Drago Romano
http://www.permanencia.org.br/revista/filosofia/drago3.htm
62
Pleroma é considerado como Plenitude, o Todo, o Tao. Acredita-se que sua definição esteja além da compreensão
humana, pois os antigos gnósticos o descrevem como o nada.
63
As sete esferas correspondem aos sete corpos celestes conhecidos na ocasião: Lua, Sol, Mercúrio, Vênus, Marte,
Júpiter e Saturno. Para os gnósticos cada um deles é governado por um príncipe ou arconte cuja função é dificultar
a reintegração do espírito ao pleroma a qual ocorre após a morte.
64
Efésios 6.10-12 - Quanto ao mais, sede fortalecidos no Senhor e na força do seu poder. Revesti-vos de toda a
armadura de Deus, para poderdes ficar firmes contra as ciladas do diabo; porque a nossa luta não é contra o sangue
e a carne, e sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra as forças
espirituais do mal, nas regiões celestes

15
A cristologia gnóstica.
A cristologia predominante no Gnosticismo nos tempos bíblicos foi o docetismo, palavra que significa aparência. Os
gnósticos identificavam o Jesus Cristo com o “redentor que veio do céu” de natureza essencialmente divina. Admitiam,
portanto, sua preexistência. Em decorrência dessa natureza divina, diziam eles, o Cristo jamais poderia ter sido envolvido
em um corpo de matéria porque a matéria é essencialmente má e corrupta, nada que é divino pode ter contato com a
matéria.

Ensinavam eles que o corpo de Cristo era imaterial, razão porque gozava de propriedades muito particulares tais como
atravessar paredes para penetrar em recintos fechados, caminhar sobre as águas do mar, andar sem deixar pegadas e se
apresentar com aspectos diferentes para duas ou mais pessoas ao mesmo tempo. Enquanto um discípulo via Cristo com
a aparência de um menino, o outro, ao mesmo tempo, o via com a aparência de um velho.

O corpo de Jesus Cristo era, para eles, algo semelhante a um holograma, uma aparência de corpo físico. Esta explicação
é inaceitável para cristãos autênticos porque se acreditamos que Jesus Cristo não viveu em um corpo de carne real, e sim
numa aparência de corpo, teremos que aceitar que sua morte também não foi real, foi apenas de aparência.

O quarto evangelho coloca a tese contrária. No prólogo lê-se “o verbo (Jesus) se fez carne65” e o testemunho de Tomé,
reconhecendo a divindade do Cristo foi dado depois de tocar o seu corpo, ver e sentir as marcas dos ferimentos deixados
pela execução na cruz66. Também a primeira epístola de João começa declarando a realidade da humanidade de Jesus
Cristo e conclui declarando e que qualquer pessoa que negue esta realidade não é, senão, o próprio anticristo.

Incompatibilidade da doutrina
O fato de os gnósticos docéticos negarem a realidade da humanidade de Jesus tem implicações muito sérias para a nossa
maneira de crer. O apóstolo Paulo, em sua primeira epístola aos crentes que habitavam na cidade de Corinto nos dá o que
podemos chamar de um protótipo do credo apostólico:

Ora, eu vos lembro, irmãos, o evangelho que já vos anunciei; o qual também recebestes, e no qual perseverais, pelo qual
também sois salvos, se é que o conservais tal como vo-lo anunciei; se não é que crestes em vão. Porque primeiramente
vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado; que
foi ressuscitado ao terceiro dia, segundo as Escrituras; que apareceu a Cefas, e depois aos doze; depois apareceu a mais
de quinhentos irmãos duma vez, dos quais vive ainda a maior parte, mas alguns já dormiram; depois apareceu a Tiago,
então a todos os apóstolos; e por derradeiro de todos apareceu também a mim, como a um abortivo 67.

O primeiro ponto a ser considerado é a declaração paulina de que “Cristo morreu por nossos pecados”. A se acreditar que
a humanidade de Cristo não foi real teremos que admitir que sua morte também não foi real. Foi uma encenação. Assim
sendo, teremos de negar qualquer efeito dela na nossa redenção. Para os gnósticos isso não trazia nenhum problema
porque eles ensinavam que “pecado não existe” e que o problema real do homem é a ignorância e não qualquer coisa que
possa ser identificada como pecado. Chegavam eles a elaborar explicações fantasiosas para a crucificação como aquela
que diz que Jesus Cristo foi substituído por Simão cireneu na hora de ser pendurado no madeiro.

O segundo ponto está na declaração de que ele “ressuscitou ao terceiro dia”. Para os gnósticos ressurreição não existe
porque o corpo de matéria é apenas um cárcere que detém o espírito do homem durante sua jornada terrena. Jamais
poderiam eles imaginar que um encarcerado, que tivesse acabado de cumprir sua pena, voltasse voluntariamente à prisão
depois de ter sido posto em liberdade.
No evangelho de Judas Iscariotes68 descreve-se o seguinte diálogo: Judas disse a Jesus, “Olha, o que farão os que foram
batizados em teu nome?” Jesus disse “Verdadeiramente eu digo [a você], Judas, aqueles que oferecem sacrifícios a
Saklas… tudo que é mau. Mas você excederá a todos eles. Pois você sacrificará o homem que me reveste”. Jesus está, na

65
João 1.14.
66
João 8.26-28.
67
I Coríntios 15.1-8.
68
Obra gnóstica do século II

16
prática, elogiando Judas Iscariotes por ter participado no planejamento e na execução de sua morte que o libertou da
escravidão da matéria.

Assim sendo, negam, contra a experiência de Tomé, que o Cristo que apareceu aos discípulos após a morte tivesse um
corpo material. Para eles era, da mesma forma que aconteceu antes da crucificação apenas uma aparência de corpo, uma
ilusão para aqueles com quem se relacionava.

Em conclusão, o gnosticismo nos apresenta uma alta cristologia. Um Jesus Cristo preexistente vem do mais elevado céu,
assume a forma humana, mas não a essência da humanidade, convive com um grupo de escolhidos e lhes comunica o que
necessitam saber para, após a morte, entrarem na plenitude da comunhão de Deus. Ele sempre foi deus, mas nunca foi
homem.

7. João – O Cristo e filho de Deus


O autor do quarto evangelho declara seu objetivo: Jesus, na verdade, operou na presença de seus discípulos ainda muitos
outros sinais que não estão escritos neste livro; estes, porém, estão escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho
de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome78.

Este evangelho foi escrito no final do século I ou, quem sabe no início do século II. O público-alvo do autor se constituía
de judeus legalistas que, peremptoriamente, se recusavam a aceitar que o Jesus de Nazaré, que havia convivido com a
geração que lhes antecedeu, era o ungido (cristo) e filho de Deus.

A estratégia adotada pelo autor para convencê-los foi recontar o episódio da paixão, morte e ressurreição, precedido de
uma coleção muito bem elaborada de testemunhos de homens e de Deus, a respeito de sua autoridade. O autor do quarto
evangelho não se preocupou em historiar a vida de Jesus Cristo. Nada fala de seu nascimento ou de sua infância. Para ele
a vida pública de Jesus inicia quando ele se vincula ao grupo de convertidos de João Batista.

A ênfase dada por ele aos sinais praticados durante o ministério terreno de Jesus vem da sua concepção teológica que
entendia Jesus como o profeta semelhante a Moisés, um homem celestial preexistente, a um tempo divino e humano.
Assim como o ministério de Moisés foi confirmado por muitos sinais o de Jesus também o foi. O livro dos sinais não é
uma obra biográfica e sim uma obra apologética que visa provar aos líderes dos judeus que, naquele tempo, tinham sua
sede em Jâmnia, a divindade de Jesus.

A narrativa desses sinais também objetiva provar que Jesus, por ser de natureza divina, tinha poder para subjugar os
inimigos que o homem temia: O poder da Lei e de seus representantes, as forças da natureza, as doenças (cuja ocorrência
era atribuída pelo povo ignorante à atuação de demônios), e, também, a própria morte. Muitas das passagens deste livro
tem sido e continuarão sendo usadas como permanente fonte de inspiração para a confecção de sermões evangelísticos.

O testemunho de Deus
Primeiro sinal: Transformação da água em vinho nas bodas em Caná da Galileia 69 - O primeiro sinal apresentado pelo
autor já nos mostra alguns dos critérios usados na escolha de todos eles. Em primeiro lugar ele foi feito em público – uma
festa de casamento – diante dos olhos de muitas testemunhas. Adicionalmente, ele foi objeto do exame de um especialista
no assunto: O Mestre-sala, provavelmente o único, além de Jesus Cristo, que não estava bêbado durante o casamento,
examinou o vinho recentemente chegado e atestou a qualidade superior do mesmo. Esse sinal nos remete à crença helênica
de que Dionísio (Baco), o deus da vegetação e, portanto, também do vinho, era capaz de transformar água em vinho
justamente porque era deus. Jesus, transformando água em vinho, comprovava sua natureza divina e, fazendo o melhor
vinho, mostrava sua superioridade aos deuses greco-romanos.

Segundo sinal: Uma cura à distância 70 - Nesta ocasião Jesus se encontrava em Caná, a mesma cidade onde havia
transformado a água em vinho. Foi procurado por um homem cujo filho estava doente, à beira da morte, na cidade de

69
João.2.1-11
70
João 4.43-54

17
Cafarnaum, há quilômetros de distância. Este lhe pediu que restaurasse a saúde do filho. Jesus prometeu àquele homem
que seu filho não morreria e o despediu. Chegando em casa aquele homem encontrou o filho curado e, perguntando a que
horas a melhora havia acontecido, recebeu a informação de que foi exatamente na hora em que Jesus lhe disse que seu
filho não morreria. Esse milagre parece apontar para a onipresença (virtude divina) de Jesus, que podia operar em dois
lugares diferentes ao mesmo tempo.

Terceiro sinal: Cura de um paralítico no sábado71 - A cura do paralítico no alpendre do tanque de Bethesda coloca em
evidência a onipotência de Jesus Cristo quando mostra que para ele o impossível não existe. A crença popular dizia que
periodicamente um anjo descia naquele local e que o vento provocado pelo movimento de suas asas agitava as águas. O
primeiro que tocava as águas nesse momento seria curado. A cura do paralítico era impossível porque ele não tinha
nenhuma chance de ser o primeiro a tocar as águas agitadas. Jesus o curou sem necessitar das águas. Outro aspecto
importante é que o ex - paralítico saiu correndo e pulando imediatamente depois da cura mesmo carregando o peso de
uma paralisia de 38 anos de duração. A experiência de qualquer pessoa que tenha sido submetida a uma imobilização
temporária depois de uma cirurgia ortopédica mostra que é necessário um longo tempo de fisioterapia para a remoção
dos bloqueios articulares e para a recuperação da musculatura atrofiada. Aquele homem imediatamente se levantou e saiu
andando. Só Jesus, por ser Deus, pode fazer semelhante coisa!

Quarto sinal – A multiplicação dos pães72 - Neste episódio Jesus, dispondo apenas de cinco pães e dois peixes, alimenta
uma multidão de milhares de pessoas. Esse sinal aponta para a onipotência do Mestre que não era limitado por falta de
poder. Alguns críticos querem ver aqui uma interpretação alternativa segundo a qual o milagre consistiria apenas em
estimular a solidariedade do povo e levar cada um a expor o alimento que trazia escondido. Ainda que assim fosse seria
um milagre, mas, não parece que essa interpretação esteja coerente com objetivo teológico do autor do evangelho.

Quinto sinal – Jesus anda sobre as águas 73 - Mas uma vez, a mitologia helênica nos ajuda a entender o significado de
uma perícope bíblica. Os gregos acreditavam que Poseidon (Netuno para os romanos) podia caminhar sobre as águas
porque era deus dos mares. Mostrando que Jesus era capaz de caminhar sobre as águas, o autor, mais uma vez coloca um
argumento a favor da divindade de Cristo. A referência ao vento impetuoso lembra a figura de outro deus da mitologia
grega: Éolo que controlava a fúria dos ventos.

Sexto sinal – Jesus cura um cego de nascença74 - A narrativa deste sinal está muito bem documentada, inclusive com a
referência a um processo instaurado pelos fariseus no qual o cego e os pais dele foram ouvidos. O peculiar deste sinal,
que aponta mais uma vez para a superioridade de Jesus, é colocado pelo próprio autor no texto: “Nunca se ouviu dizer
que alguém houvesse aberto os olhos a um cego de nascença”. Para os judeus a cura de um cego de nascença era um dos
três milagres de competência exclusiva do Messias75. Dessa forma foi feito imediatamente um inquérito para comprovar
sua veracidade. O fato de o cego ter sido curado é um argumento fortíssimo a favor da messianidade de Jesus Cristo e
esta é a razão porque esse sinal foi incluído na coleção de relatos.

Sétimo sinal – A ressurreição de Lázaro de Betânia 86- Ressurreição era uma doutrina judaica. Os gregos, alternativamente
acreditavam na imortalidade da alma e na possibilidade de um retorno à vida em outro corpo de carne (reencarnação).
Esse sinal, portanto, é colocado visando abalar as concepções judaicas. O diferente neste sinal é que os judeus, bem como
outros povos da antiguidade, admitiam que a ressurreição só era possível enquanto se preservava a integridade do corpo
do defunto, o que, em países frios, têm um limite aproximado de três dias. Jesus, ressuscitando um homem, morto por
um tempo superior a este, não estava apenas devolvendo a vida, estava também devolvendo a integridade a um corpo em
princípio de degradação. Ele estava criando matéria nova, coisa que nenhum homem, apenas Deus, podia fazer.

71
João 5.1-16
72
João 6.1-15
73
João 6.16-24
74
João 9. 1-41
75
Fruchtembaum,A.G, .Os três milagres messiânicos; http://www.arunrjesh.com/ BibleStudy/mbs035m.pdf.

18
Os testemunhos dos homens
O autor apresenta alguns testemunhos de pessoas que eram consideradas dignas de confiança pela comunidade ou que
representavam um número significativo de testemunhas oculares. Dentre eles destacamos Nicodemos, João Batista e toda
uma aldeia de Samaritanos.

O testemunho de Nicodemos76 se descreve dessa forma: “Ora, havia entre os fariseus um homem chamado Nicodemos,
um dos principais dos judeus. Este foi ter com Jesus, de noite, e disse-lhe: Rabi, sabemos que és Mestre, vindo de Deus;
pois ninguém pode fazer estes sinais que tu fazes, se Deus não estiver com ele.”

Nicodemos é descrito como fariseu, homem muito religioso, conhecedor da lei, e principal (príncipe, líder) dos judeus.
Era alguém com autoridade para analisar os fatos e emitir opinião sobre os mesmos. Ele descreve sua conclusão de
maneira simples: Tu, Jesus és Mestre de origem divina porquê de outra forma não poderias fazer os sinais que tu fazes.

João o batista, que era tido por todos os judeus como profeta, portanto uma pessoa de cuja boca saiam palavras de Deus,
se referiu a Jesus dizendo: “Este é aquele de quem eu disse: o que vem depois de mim passou adiante de mim porque
antes que eu existisse ele já existia”.77 Ao proclamar a preexistência de Jesus, João proclamava também sua divindade.
João era reconhecido por todos como profeta e, portanto, sua palavra não podia ser posta em dúvida.

Um grupo de samaritanos que ouviram a palavra da mulher e foram por ela levados a Jesus declararam: “e diziam à
mulher: Já não é pela tua palavra que nós cremos; pois agora nós mesmos temos ouvido e sabemos que este é
verdadeiramente o salvador do mundo”.78

O logos
O prólogo do quarto evangelho usa para Jesus uma designação particular: O verbo (logos). Essa palavra aparece apenas
quatro vezes no novo testamento e sempre na literatura joanina: João 1.1, João 1.14, I João 1.1 e Apocalipse 19.13.

O Logos (em grego λόγος), significava inicialmente a palavra escrita ou falada — o Verbo. Passa a ser um conceito
filosófico traduzido como razão, tanto como a capacidade de racionalização individual ou como um princípio cósmico da
Verdade e da Beleza. Podemos afirmar que o logos era o princípio que garantia o funcionamento harmônico e produtivo
de todas as forças do universo. Lógico é tudo aquilo que está sob o controle do logos. Na cultura hebraica esse papel cabia
à sabedoria de Deus. No livro de Provérbios encontramos o cântico da sabedoria, texto que inspirou o autor do prólogo
do quarto evangelho79:

O Senhor me criou como a primeira das suas obras, o princípio dos seus feitos mais antigos. Desde a eternidade fui
constituída, desde o princípio, antes de existir a terra. Antes de haver abismos, fui gerada, e antes ainda de haver fontes
cheias d`água. Antes que os montes fossem firmados, antes dos outeiros eu nasci, quando ele ainda não tinha feito a terra
com seus campos, nem sequer o princípio do pó do mundo. Quando ele preparava os céus, aí estava eu; quando traçava
um círculo sobre a face do abismo, quando estabelecia o firmamento em cima, quando se firmavam as fontes do abismo,
quando ele fixava ao mar o seu termo, para que as águas não traspassassem o seu mando, quando traçava os fundamentos
da terra, então eu estava ao seu lado como arquiteto; e era cada dia as suas delícias, alegrando-me perante ele em todo o
tempo; folgando no seu mundo habitável, e achando as minhas delícias com os filhos dos homens.

Este cântico declara a preexistência e o poder criador da sabedoria de Deus. Declara ainda que a sabedoria foi gerada por
Deus e dele nasceu. Declara ainda que a sabedoria participou ativamente de toda a obra da criação. Todos esses atributos
são conferidos ao logos, no prólogo do quarto evangelho.

76
João 3.1,2.
77
João 1.15
78
João 4.42
79
Jó 8,22-31

19
O particular nesse caso é a afirmação sobre a encarnação do logos glorioso: “E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós,
cheio de graça e de verdade; e vimos a sua glória, como a glória do unigênito do Pai.”

A cristologia joanina é a mais elevada do Novo Testamento. Jesus, o logos, preexistente e encarnado. É também glorioso
não apenas nos momentos do batismo, da transfiguração ou da ressurreição. Ele é glorioso todos os dias de sua vida:
“Assim deu Jesus início aos seus sinais em Caná da Galileia, e manifestou a sua glória; e os seus discípulos creram
nele”80.

8. Hebreus – o sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque


A epístola aos hebreus é dedicada a judeus que haviam aceito Jesus como o ungido de Deus e estavam sendo estimulados
a apostatar da fé e retornar ao judaísmo legalista para ficar livres da perseguição movida pelo império: “não abandonando
a nossa congregação, como é costume de alguns, antes admoestando-nos uns aos outros; e tanto mais, quanto vedes que
se vai aproximando aquele dia.”81 Até hoje não foi identificado seu autor. Entretanto, algumas características dele podem
ser inferidas do texto. Aceita-se que se tratava de um judeu culto, provavelmente natural de Alexandria, no Egito, que
cria em Jesus Cristo como o ungido de Israel e que se chocou ao ver muito de seus irmãos israelitas desistirem da fé
quando atingidos pela feroz perseguição ocorrida, provavelmente, no tempo do imperador Nero.

Sua tese é grandiosa e maravilhosa. Ele tenta convencer seus leitores da superioridade inquestionável e absoluta de Jesus
Cristo. Trabalha uma argumentação baseada na lógica aristotélica que pretende desestimulá-los de voltar do meio do
caminho. Sua conclusão: Para o cristão fiel o único caminho possível é a perseverança.

Na sua exposição da pessoa do salvador ele parece ignorar completamente os aspectos pura e simplesmente humanos de
sua personalidade. A ele interessam apenas os aspectos sobrenaturais e divinos. Começa por afirmar a superioridade de
Jesus a todos os profetas, inclusive Moisés:

Havendo Deus antigamente falado muitas vezes, e de muitas maneiras, aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias a nós
nos falou pelo Filho, a quem constituiu herdeiro de todas as coisas, e por quem fez também o mundo 93;

O primeiro contraste é feito entre a palavra trazida por meio do ministério dos profetas (προφήταις) e a palavra trazida
por meio do ministério do filho (υἱῷ) que foi constituído herdeiro de todas as coisas e que participou da criação de tudo
(o mundo - αἰῶνας). Se o filho participou na criação do mundo, ou do universo, ele é anterior à criação e, portanto,
preexistente. O autor começa se mostrando defensor de uma alta cristologia.

Sendo ele o resplendor da sua glória e a expressa imagem do seu Ser, e sustentando todas as coisas pela palavra do seu
poder, havendo ele mesmo feito a purificação dos pecados, assentou-se à direita da Majestade nas alturas82.

A seguir, aborda um outro tema muito apropriado à ocasião. Jesus é superior aos anjos. Naquela época quando, por falta
de escrituras cristãs autorizadas pela igreja, muitas versões equivocadas de liturgia se espalhavam nas igrejas. No final
do primeiro século espalhou-se dentre os cristãos uma linha de pensamento que preconizava a adoração aos anjos. Tal foi
o caso na chamada “heresia colossense”. O autor dessa epístola chama a atenção de seus leitores para o fato de que o filho
(υἱῷ) é superior aos anjos (ἀγγέλων).

Existe aqui uma construção de raciocínio lógico magistral: Se a palavra falada por meio dos profetas se cumpriu. E se a
palavra falada por meio dos anjos, também se cumpriu. Não há justificativa para que não demos crédito à palavra trazida
pelo filho que é superior aos profetas a aos anjos.

Um outro ponto colocado em discussão pelo autor é a sucessão de sacerdócios. Ele destaca o caráter transitório e finito
do sacerdócio levítico e enfatiza o aspecto perene e eterno do sacerdócio de Jesus 83.

80
João 2.11.
81
Hebreus 10.25
82
Hebreus 1.3.
83
Hebreus 7.11-17.

20
De sorte que, se a perfeição fosse pelo sacerdócio levítico (pois sob este o povo recebeu a lei), que necessidade havia
ainda de que outro sacerdote se levantasse, segundo a ordem de Melquisedeque, e que não fosse contado segundo a ordem
de Arão? Pois, mudando-se o sacerdócio, necessariamente se faz também mudança da lei. Porque aquele, de quem estas
coisas se dizem, pertence a outra tribo, da qual ninguém ainda serviu ao altar, visto ser manifesto que nosso Senhor
procedeu de Judá, tribo da qual Moisés nada falou acerca de sacerdotes. E ainda muito mais manifesto é isto, se à
semelhança de Melquisedeque se levanta outro sacerdote, que não foi feito conforme a lei de um mandamento carnal,
mas segundo o poder duma vida indissolúvel. Porque dele assim se testifica: Tu és sacerdote para sempre, segundo a
ordem de Melquisedeque.

O modelo cristológico adotado pelo autor aponta para o unigênito de Deus, preexistente à própria criação, que desce ao
mundo e assume um sacerdócio superior ao sacerdócio levítico cujo ocupante ofereceu sacrifício único por toda
humanidade e assumiu o lugar de honra à direita de Deus no céu. Observa-se reflexos de uma cultura oriental na qual um
Deus transcendente, inaccessível, cercado de seres celestiais denominados como principados, potestades, hostes etc., abre
um canal de comunicação com os seres humanos por meio de profetas que Ele chama, nomeia e habilita conferindo-lhes
parte reduzida de Seus próprios poderes.

Em um segundo tempo, o próprio Deus assume a forma humana pela encarnação e se torna o Deus imanente que conversa
com os homens face a face sem perder nenhum de seus atributos divinos. Ele, o Deus filho é superior a tudo e a todos.

Salvo apenas pela encarnação do logos joanino, essa é a mais elevada cristologia de todo o novo Testamento.

9. Apocalipse – o Cristo vitorioso sobre tudo e sobre todos


O apocalipse de João é uma espécie de “corpo estranho” no cânone do novo testamento. Ele usa uma linguagem totalmente
simbólica para falar dos males que afligiam a igreja no tempo em que foi escrito. Não chega a surpreender que isso tenha
acontecido. É muito frequente que autores que escrevem em tempos de opressão e de perseguição governamental tenham
que usar símbolos, figuras e até pseudônimos para não atrair para si a ira dos governantes.

Esse livro foi escrito em uma situação desse tipo. Acredita-se que sua primeira versão tenha sido produzida na época da
perseguição movida pelo imperador Nero e que sua edição tenha sido fechada na época do imperador Domiciano.
Podemos datá-lo, então da quinta a décima década do primeiro século. Nesses períodos os cristãos foram muitas vezes
oprimidos pelos governantes que faziam questão de ser não apenas saudados, mas também adorados como “senhor e
deus”. Esse foi, por exemplo, o caso do imperador Domiciano, como nos narra seu historiador Suetônio84.

Com análoga arrogância, ditou [Domiciano] em nome dos procuradores, uma carta circular que começava com o seguinte
período: “Nosso senhor e deus ordena que assim se faça”. A partir disso, então, o uso estabelecido, de forma que ninguém,
escrevendo ou falando, lhe chamasse de outra maneira.

O livro é dirigido principalmente aos cristãos da província da Ásia que estavam sendo pressionados pelas autoridades
locais à prestação de culto ao imperador. Apresenta-lhes um desafio: “aquele que perseverar até o fim será salvo” e um
estímulo “o Cristo que perseverou e venceu”.

A imagem que melhor descreve Jesus Cristo neste livro é a do cavaleiro assentado sobre um cavalo branco: “E vi o céu
aberto, e eis um cavalo branco; e o que estava montado nele chama-se Fiel e Verdadeiro; e julga a peleja com justiça. Os
seus olhos eram como chama de fogo; sobre a sua cabeça havia muitos diademas; e tinha um nome escrito, que ninguém
sabia senão ele mesmo. Estava vestido de um manto salpicado de sangue; e o nome pelo qual se chama é o Verbo de
Deus. Seguiam-no os exércitos que estão no céu, em cavalos brancos, e vestidos de linho fino, branco e puro. Da sua
boca saía uma espada afiada, para ferir com ela as nações; ele as regerá com vara de ferro; e ele mesmo é o que pisa o
lagar do vinho do furor da ira do Deus Todo-Poderoso. No manto, sobre a sua coxa tem escrito o nome: Rei dos reis e
Senhor dos senhores85.”

84
v. nota de rodapé 12.
85
Apocalipse 19,11-16,

21
A visão se explica por si mesma. A cor branca simboliza vitória. Assim como o imperador Domiciano, alguns anos antes
(70 d.C.,) havia entrado em Jerusalém, cavalgando um cavalo branco, para comemorar a vitória das tropas comandadas
por seu irmão mais velho, Tito, sobre a resistência Judaica, agora, o grande vencedor descerá do céu cavalgando um
cavalo branco para extinguir o poder do império sustentado pela energia de Satanás.

O manto salpicado de sangue aponta para a profecia de Isaías 98:

Quem é este, que vem de Edom, de Bozra, com vestiduras tintas de escarlate? Este que é glorioso no seu traje, que marcha
na plenitude da sua força? Sou eu, que falo em justiça, poderoso para salvar. Por que está vermelha a tua vestidura, e as
tuas vestes como as daquele que pisa no lagar? Eu sozinho pisei no lagar, e dos povos ninguém houve comigo; eu os pisei
na minha ira, e os esmaguei no meu furor, e o seu sangue salpicou as minhas vestes, e manchei toda a minha vestidura.
Porque o dia da vingança estava no meu coração, e o ano dos meus remidos é chegado. Olhei, mas não havia quem me
ajudasse; e admirei-me de não haver quem me sustivesse; pelo que o meu próprio braço me trouxe a vitória; e o meu furor
é que me susteve. Pisei os povos na minha ira, e os embriaguei no meu furor; e derramei sobre a terra o seu sangue.

Sua identidade é colocada de maneira inequívoca em três títulos: “Verbo de Deus” e “Rei dos Reis” e “Senhor dos
senhores”. A grande promessa do Apocalipse de João é o regresso do Jesus vitorioso e glorificado acima de tudo e de
todos.

22
O que vocês esperam do futuro? Uma escatologia
1. Introdução – Por que uma escatologia?
Chamamos e escatologia ao estudo das últimas coisas no plano individual e no plano cósmico. A investigação pode estar
interessada em dois aspectos particulares. Podemos perguntar o que nos espera, a cada um de nós, como indivíduos, no
final da vida transitória que experimentamos em nossa passagem pelo planeta Terra. Estaremos então fazendo uma
escatologia individual. Por outro lado, poderemos estar interessados em investigar o que se convencionou chamar de "
fim do mundo " ou, pelo menos o fim da era cósmica que vivemos, aquilo que os gregos chamavam de aion. Estaremos
então a braços com a escatologia cósmica.

Todos nós nos interessamos pelo fim da história. Seja da história de nossa vida seja na história da vida do planeta que
habitamos. Os filmes, sobre catástrofes que ocorrerão no fim, têm sucesso de bilheteria garantido nos cinemas. O que o
futuro nos reserva é uma indagação generalizada. Isso ocorre porque a escatologia é uma espécie de solo submerso no
qual lançamos nossa esperança que é, com diz a Bíblia, a âncora da nossa alma86.

Nossos irmãos do primeiro século do cristianismo também estavam preocupados com o que lhes aconteceria no futuro.
A pergunta que os discípulos lançaram ao Cristo ressurreto é um poderoso testemunho dessa preocupação: " Aqueles,
pois, que se haviam reunido perguntavam-lhe, dizendo: Senhor, é nesse tempo que restauras o reino a Israel?" 87 A reposta
parece-nos decepcionante: " Respondeu-lhes: A vós não vos compete saber os tempos ou as épocas, que o Pai reservou à
sua própria autoridade." 88O senhor parece dizer que não era da competência dos discípulos daquele tempo questionar o
que o Pai faria nem quando o faria. Podemos concluir, a partir daí, que essa tarefa também não nos pertence e que,
portanto, o estudo da escatologia não passa de uma inutilidade.

Entretanto, ontem, hoje, ou em qualquer tempo, o ser humano não consegue reprimir a pergunta: " O que nos espera no
futuro? " Por esse motivo é impossível não deixar de fazer uma escatologia. Além do mais, a eclesiologia 89 e a
soteriologia90 são filhas da escatologia. Os cristãos só começaram a se reunir em igrejas para terem um local em que
pudessem permanecer reunidos esperando a volta do Senhor quando experimentariam a salvação final. 91

As expectativas dos cristãos se vinculam com a esperança messiânicas do antigo Israel. Por essa razão começaremos
investigando o que os judeus do tempo em que Jesus pregou esperavam do futuro. A seguir, veremos a escatologia dos
evangelhos sinóticos que preservam as tradições mais antigas a respeito das pregações de João, o batista e de Jesus Cristo.
Consideraremos também os Atos dos Apóstolos que são a continuação do Evangelho de Lucas e que mostram como a
expectativa escatológica moldou a maneira de viver dos primeiros cristãos.

Mais adiante, analisando os escritos paulinos, veremos como o apóstolo dos gentios estendeu a esperança messiânica dos
judeus e a colocou ao alcance de todos os povos, independentemente de etnia, cultura, língua, sexo ou classe social.

2. Escatologia judaica – o reino futuro de Deus


A vinda do reino de Deus foi a ideia dominante na escatologia do Velho Testamento, no período pós-exílio na Babilônia.
Diferentemente da concepção cristã, que aguarda a realização final de seus objetivos em uma vida futura e/ou em um

86
Hebreus 6.18,19.
87
Atos1.6
88
Atos1.7
89
Doutrina da igreja.
90
Doutrina da salvação.
91
porque eles mesmos anunciam de nós qual a entrada que tivemos entre vós, e como vos convertestes dos ídolos a
Deus, para servirdes ao Deus vivo e verdadeiro, e esperardes dos céus a seu Filho, a quem ele ressuscitou dentre os
mortos, a saber, Jesus, que nos livra da ira vindoura. I Ts. 1.9,10.

23
lugar diferente, a concepção original do hebreu do período patriarcal colocava sua esperança numa vida plenamente
realizada aqui mesmo neste mundo.

O antigo hebreu nada esperava para depois de sua morte. Não pensavam em outra vida, em imortalidade da alma, em
ressurreição nem em reencarnação: O salmista declara sua situação: “Já estou contado com os que descem à cova; estou
como homem sem forças, atirado entre os finados; como os mortos que jazem na sepultura, dos quais já não te lembras,
e que são desamparados da tua mão”92.

Suas esperanças diziam respeito exclusivamente à sua descendência. A promessa feita por Deus a Abraão exemplifica
bem essa concepção: Ora, o Senhor disse a Abrão: Sai-te da tua terra, da tua parentela, e da casa de teu pai, para a
terra que eu te mostrarei. Eu farei de ti uma grande nação; abençoar-te-ei, e engrandecerei o teu nome; e tu, sê uma
bênção. Abençoarei aos que te abençoarem, e amaldiçoarei àquele que te amaldiçoar; e em ti serão benditas todas as
famílias da terra93.

Mais tarde, quando os hebreus se fixaram na terra prometida e afastaram as ameaças dos vizinhos hostis, decidiram que
deveriam ter um rei. Procuraram o profeta Samuel e lhes apresentaram sua reivindicação: Então todos os anciãos de
Israel se congregaram, e vieram ter com Samuel, a Ramá, e lhe disseram: Eis que já estás velho, e teus filhos não andam
nos teus caminhos. Constitui-nos, pois, agora um rei para nos julgar, como o têm todas as nações. Mas pareceu mal aos
olhos de Samuel, quando disseram: Dá-nos um rei para nos julgar. Então Samuel orou ao Senhor. Disse o Senhor a
Samuel: Ouve a voz do povo em tudo quanto te dizem, pois não é a ti que têm rejeitado, porém a mim, para que eu não
reine sobre eles. Conforme todas as obras que fizeram desde o dia em que os tirei do Egito até o dia de hoje, deixando-
me a mim e servindo a outros deuses, assim também fazem a ti. Agora, pois, ouve a sua voz, contudo lhes protestarás
solenemente, e lhes declararás qual será o modo de agir do rei que houver de reinar sobre eles94.

Organizados como um reino com um soberano humano, inicialmente sob Saul, depois sob a família de Davi, colocaram
sua esperança na atuação de um rei terreno para conduzi-los à realização de seus objetivos, isto é para viverem em paz,
alegria e abundância. Os israelitas tiveram reis humanos apenas por uma concessão divina uma vez que seu rei, na verdade
era Deus. Um Deus que não compartilhava sua realeza com ninguém. A realeza humana foi frustrante para o povo e
acabou desmoralizada.

Quando a pretensão de ser uma nação livre e poderosa foi frustrada, especialmente depois do regresso do desterro na
Babilônia, os hebreus passaram a esperar pela implantação de um reino no qual o próprio Deus, no final dos tempos,
desceria dos céus para governar seu povo, com o qual se comunicaria por meio de um ser celestial especialmente ungido
para essa missão. Um reino escatológico onde Deus seria o rei, habitaria no meio dos homens, isto é sua glória voltaria a
ser residente no lugar santíssimo do templo de Jerusalém e o messias celestial (filho do homem) assumiria a liderança
política.

Maag define “reino de Javé” ou “reino de Deus” da seguinte forma: “O que se denominava ‘reino de Javé’ é, portanto,
uma realeza cujos domínios não se mantém constantes, antes se ampliam em todas as dimensões: na amplitude, na
profundidade e até na altitude. Pois através do domínio de Javé, algum dia, cessará todo o mal, toda a discórdia e todo o
medo. Paz e alegria configuram o objetivo final desse movimento expansivo. ” 95

Essa ideia se desenvolveu mais ainda na apocalíptica judaica, a partir do século II a.C. como registra o livro de Daniel:
“Eu continuei olhando, até que foram postos uns tronos, e um ancião de dias se assentou; o seu vestido era branco como
a neve, e o cabelo da sua cabeça como lã puríssima; o seu trono era de chamas de fogo, e as rodas dele eram fogo ardente.
Um rio de fogo manava e saía de diante dele; milhares de milhares o serviam, e miríades de miríades assistiam diante
dele”.109

92
Salmo 88.4,5.
93
Gênesis 12.1-3.
94
I Samuel 8.4-9.
95
Maag, Victor, Malkut Yaweh (Reino de Javé) in Gersterneberg, G.S. editor, Deus no Antigo Testamento, Coletânea.
São Paulo, ASTE, 1981. Pp, 201-217. 109 Daniel 7.9

24
Assentou-se para o juízo, e os livros foram abertos. Então estive olhando, por causa da voz das grandes palavras que o
chifre proferia; estive olhando até que o animal foi morto, e o seu corpo destruído; pois ele foi entregue para ser queimado
pelo fogo. Quanto aos outros animais, foi-lhes tirado o domínio; todavia foi-lhes concedida prolongação de vida por um
prazo e mais um tempo.

Eu estava olhando nas minhas visões noturnas, e eis que vinha com as nuvens do céu um como filho de homem; e dirigiu-
se ao ancião de dias, e foi apresentado diante dele. E foi-lhe dado domínio, e glória, e um reino, para que todos os
povos, nações e línguas o servissem; o seu domínio é um domínio eterno, que não passará, e o seu reino tal, que não
será destruído.96

Aqui se encontram os elementos essenciais do reino de Deus. Inicialmente o próprio Deus se apresentará visível aos seus
servos fiéis, acompanhado da totalidade das milícias celestiais. Em segundo lugar, o rei terá a exclusividade do poder.
Diante dele todos os reinos humanos, representados por animais terríveis, sucumbirão. Em terceiro lugar, na sua
inauguração haverá um grande juízo do qual ninguém escapará. Em quarto e último lugar, Deus empossará no poder o
“filho do homem”, uma figura messiânica que presidirá o juízo e dominará totalmente todos os povos, nações e etnias os
quais virão prestar-lhe as honras devidas. Essa visão, quase um devaneio, dominou as expectativas do povo no período
do judaísmo do segundo templo e foi transferida aos cristãos que identificaram o Jesus de Nazaré, seu líder, com o próprio
filho do homem da visão apocalíptica de Daniel.

O primeiro livro de Enoque, contemporâneo de Daniel que não chegou a ser canonizado, descreve o que acontecerá na
instalação do reino: “Naquele dia acontecerá uma mudança para os santos e os escolhidos: a luz do dia brilhará
perenemente sobre eles, e a honra e a glória voltar-se-ão para os santos. No dia da tribulação acumular-se-á desgraça
sobre os pecadores, enquanto que os justos triunfarão em nome do Senhor dos Espíritos; e Ele deixará que aqueles
presenciem isso, para que façam penitência e renunciem aos atos de suas mãos.” 97

Aqui de fala de um juízo com a separação entre justos e pecadores. Os justos serão agraciados com honra e glória. Aos
pecadores será reservada a desgraça e o castigo. Entretanto, o Senhor (dos Espíritos) lhes dará uma última chance. Eles
verão o estado glorioso dos justos para que se arrependam e mudem seus procedimentos.

Nenhuma honra alcançará através do Nome do Senhor dos espíritos, todavia serão salvos, pelo seu NOME. E o Senhor
dos espíritos compadecer-se-á deles, pois, grande é a sua misericórdia. Ele é justo no seu julgamento, e diante da sua
Glória nenhuma iniquidade subsiste. Aquele, porém, que não fizer penitência estará condenado, “Desse momento em
diante não mais me compadecerei deles”, diz o Senhor dos Espíritos 98.

Aqui temos a base para a doutrina da salvação pela graça para todo aquele que invocar o nome do Senhor. 99 Essa salvação
não decorre de méritos do pecador e sim, apenas da misericórdia de Deus100. Não se sustenta aqui a tese de que o homem
pode ser salvo por suas próprias obras.

O juízo cósmico e a recompensa


Na concepção judaica o reino de Deus não seria para todos os judeus, mas apenas para aqueles que, durante sua vida se
mantivessem fiéis à aliança feita com o Criador e que, apesar dos sofrimentos pelos quais tivessem passado, fossem
capazes de perseverar até o fim nessa dedicação. Os que não cumprissem essas condições seriam excluídos em um juízo
que ocorreria na grande inauguração do reino. Quem seria o Juiz na ocasião? A apocalíptica judaica colocou sobre os
ombros do filho do homem a responsabilidade de julgar e, portanto, atribuir sentenças de absolvição ou de condenação a
todos os homens.

96
Daniel 7.14.
97
I Enoque 50.1,2
98
I Enoque 50,4.5
99
Romanos 10.13
100
Efésios 2.4-9

25
O livro de Enoque (Enoque etíope), muito popular ente os judeus no primeiro século de nossa era, fornece excelente
esclarecimento sobre o assunto. Uma passagem interessante é aquela em que o Altíssimo decreta uma sentença contra
Azazel, o líder dos anjos rebelados:

E a Rafael disse o Senhor: “Amarra Azazel de mãos e pés e lança-o nas trevas! Cava um buraco no deserto de Dudael e
atira-o ao fundo! Deposita pedras ásperas e pontiagudas por baixo dele e cobre-o de escuridão! Deixa-o permanecer lá
para sempre e veda-lhe o rosto, para que não veja a luz! No dia do grande Juízo ele deverá ser arremessado ao tremedal
de fogo! Purifica a terra, corrompida pelos Anjos, e anuncia-lhes a Salvação, para que terminem os seus sofrimentos e
não se percam todos os filhos dos homens, em virtude das coisas secretas que os Guardiões revelaram e ensinaram aos
seus filhos. ”101

Esse texto, que está na base histórica do milênio, informa que o líder dos anjos rebelados (Azazel, mais tarde identificado
com Satanás) será amarrado e confinado a um local escuro onde ficará até o dia do juízo e não poderá mais fazer nenhum
mal aos filhos dos homens. No início de seu ministério, Jesus Cristo foi acusado pelos fariseus de operar exorcismo
porque havia feito uma aliança com Belzebu (outro nome para Azazel)102, o líder dos demônios. Respondeu fazendo uma
citação livre desse episódio descrito no livro de Enoque103.

O livro de Enoque fala ainda do julgamento dos homens: “Naquele dia, o meu Eleito se assentará sobre um trono de glória
e provará todas as suas obras. Os seus lugares de descanso serão incontáveis e os santos, que tem apelado ao meu
glorioso nome, serão fortalecidos em espírito quando virem o meu Eleito. Naquele dia, eu farei com que o meu Eleito
habite no meio deles; e então eu mudarei a face do céu e o iluminarei por toda a eternidade. Eu também mudarei a face
da terra, e a abençoarei; e farei com que os meus eleitos habitem sobre ela. Mas aqueles que tem praticado a iniquidade
não mais permanecerão sobre a terra. Porque eu satisfarei os justos com a minha paz, concedendo-lhes misericórdia, e
fazendo com que habitem diante de mim. Mas os pecadores virão diante de mim para julgamento, para que eu possa
destruí-los da face da terra. ”104

Vemos aqui uma descrição do juízo final presidida pelo messias (filho do homem) chamado “meu Eleito” que fará
distinção entre os justos e os pecadores. Os justos habitarão sobre a face da terra na presença do eleito, mas os pecadores
serão destruídos (aniquilados). Esse é o cenário diante do qual sobressaem as bem-aventuranças do sermão do monte.

Ressurreição dos mortos


A ressurreição, na apocalíptica judaica, é descrita como um processo de volta à vida reservada aos mortos para que
pudessem ser avaliados e aprovados no juízo escatológico. Ela permitiria aos justos receber recompensa de Deus por seus
valorosos feitos. Permitiria ainda aos pecadores ter uma nova chance de arrependimento e, no caso de a desprezarem,
experimentar o furor da ira de Deus.

A palavra ressurreição, que aparece quarenta e uma vezes no Novo Testamento, está ausente no Antigo. Alguns textos
do Novo Testamento fazem referência à possibilidade de um morto voltar à vida. O autor da epístola aos hebreus declara
que Abraão ofereceu seu filho em sacrifício a Deus sobre o monte Moriá porque cria que seu Deus era poderoso até para
ressuscitá-lo dos mortos105. Trata-se evidentemente de uma releitura cristã pós-pascal de um evento muito antigo, que
foi influenciada pela crença na ressurreição de Jesus Cristo. Essa razão não é, entretanto, suficiente para descartá-la como
se fosse uma lenda saída de uma fértil imaginação de um escritor.

A ideia de ressurreição entre os judeus só se popularizou e fortaleceu após o retorno dos deportados para a Babilônia. O
conceito de ressurreição do corpo físico aparece em II Macabeus, segundo o qual o evento ocorrerá pela recriação da
carne: Tendo morrido também este, começaram a torturar da mesma forma o quarto. Estando para morrer, ele falou: “É

101
I Enoque 10.3,4
102
Mateus 12,24
103
Marcos 3.22-27
104
I Enoque 43.2-4.
105
Hebreus.11.27-29

26
melhor para nós, entregues à morte para os homens, esperar, da parte de Deus, que seremos ressuscitados por Ele. Para
ti, porém, ó rei, não haverá ressurreição para a vida”106.

Os judeus não podiam aceitar, que, contrariamente aos princípios da justa retribuição, os crentes que fossem fiéis a Deus
o suficiente para se submeterem ao martírio, não tivessem a oportunidade de receber a recompensa por sua justiça. Dessa
forma elaboraram a doutrina de que eles seriam recuperados do reino dos mortos para receber seu prêmio em uma nova
vida. A ideia aqui transmitida é de que aquele que morresse conservando sua fidelidade ao Senhor retornaria para receber
o merecido prêmio de uma nova vida. Eles não perderiam sua memória da vida anterior nem sua identidade e poderiam,
portanto, ser reconhecidos por aqueles que os encontrassem.

A ressurreição dos mortos também é mencionada no livro de Enoque 119, no Apocalipse de Baruque e no II Esdras. A
ressurreição não se confunde com a crença helenística da reencarnação que também previa o retorno do morto a este
mundo depois de cumprido um período de, pelo menos, 100 anos de espera, que seria a duração ideal da vida humana.

A história de Er, narrada na “República de Platão” 107, versa sobre um guerreiro que pereceu em uma batalha e cujo
cadáver foi recolhido perfeitamente preservado dez dias depois. Levado para casa a fim de ser enterrado, ressuscitou no
décimo segundo dia e narrou aos parentes e amigos o que tinha presenciado em seu período de ausência da vida.
Contou Er que, logo que desfaleceu sua alma, se encontrou em um local onde havia um grande número de outras almas
que deveriam se apresentar diante de um tribunal para serem julgadas. As almas dos justos deveriam tomar a direção da
direita e se dirigirem a um caminho que levava ao céu carregando à sua frente um letreiro onde estavam anotadas suas
virtudes. As dos injustos, por outro lado, tomavam a direção da esquerda, no caminho descendente que levava às
profundezas da terra e conduziam nas costas um letreiro onde se liam todas as suas maldades. Ansioso por conhecer sua
sentença. Er aproximou-se dos juízes e foi informado que não havia sentença para ele porque ele deveria voltar ao mundo
de origem para relatar aos homens tudo que estava presenciando.

Foi, a seguir, levado a uma grande planície onde havia almas que vinham de volta dos céus ou das profundezas da terra.
Essas, tendo recebido a recompensa por sua virtude ou tendo cumprido a pena por sua maldade, tinham a oportunidade
de retornar a este mundo e de escolher a forma como voltariam. Misturavam-se almas de homens e de animais que
poderiam, cada uma de per si, escolher o tipo de vida que levariam no seu retorno. Depois de haverem passado sete dias
nessa planície deveriam caminhar até o local de retorno à terra aonde chegariam quatro dias depois.

Nesse local se encontravam o trono da Necessidade e três sereias (Laquesis, Cloto e Átropos) que presidiam a cerimônia
de retorno. Depois de haverem escolhido o tipo de vida que queriam levar daí para frente, as almas deveriam atravessar
o rio Ameles, onde deveriam beber uma pequena quantidade de água. As almas, entretanto, se descuidavam e bebiam
mais água do que deviam e, consequentemente, perdiam a memória da vida passada. Atravessado o rio, um grande trovão
se ouvia e as almas eram endereçadas para os locais onde deveriam nascer, de nada mais se lembrando.

Algumas diferenças marcantes podem ser observadas. A primeira é que os gregos acreditavam na imortalidade da alma.
Isto é, o homem continuava a viver em estado incorpóreo depois de sua morte. A segunda, não havia nenhuma relação
entre a vida do reencarnado e a sua vida anterior. Um homem poderia reencarnar como um elefante. Uma águia poderia
reencarnar como homem.

Em terceiro lugar o reencarnado não conservava sua identidade nem a memória da vida que havia vivido no ciclo anterior.
Cada vida iniciava tudo de novo. Essas características são bem diversas daqueles da ressurreição aceita pelos judeus.
Para estes os ressurretos conservavam sua humanidade, sua identidade que lhes permitia serem identificados por outros
e suas memórias da vida anterior o que os habilitava a receber recompensas por sua fidelidade e por sua perseverança.

106
II Macabeus 7.13,14
107
A República de Platão, tradução de Enrico Corvisieri, Nova Cultural, São Paulo, 2002. Pp 390-398, Livro X.

27
2. A pregação de João Batista – a iminente chegada do reino
A pregação do precursor de Jesus Cristo está baseada na compreensão judaica do que seria o reino de Deus: Naqueles
dias apareceu João, o Batista, pregando no deserto da Judeia, dizendo: Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos
céus. Então iam ter com ele os de Jerusalém, de toda a Judeia, e de toda a circunvizinhança do Jordão, e eram por ele
batizados no rio Jordão, confessando os seus pecados. Mas, vendo ele muitos dos fariseus e dos saduceus que vinham ao
seu batismo, disse-lhes: Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira vindoura? Produzi, pois, frutos dignos de
arrependimento, e não queirais dizer dentro de vós mesmos: Temos por pai a Abraão; porque eu vos digo que mesmo
destas pedras Deus pode suscitar filhos a Abraão108.

E já está posto o machado a raiz das árvores; toda árvore, pois que não produz bom fruto, é cortada e lançada no fogo.
Eu, na verdade, vos batizo em água, na base do arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que
eu, que nem sou digno de levar-lhe as alparcas; ele vos batizará no Espírito Santo, e em fogo. A sua pá ele tem na mão,
e limpará bem a sua eira; recolherá o seu trigo ao celeiro, mas queimará a palha em fogo inextinguível 109.

Em um momento quando a Palestina era dominada pelo poder imperial romano que ensinava que César era o único rei e
devia ser adorado como Deus110, segundo Lucas, no décimo quarto ano do imperador Tibério César, João aparece numa
região erma da Judeia apregoando a instalação de uma nova realidade escatológica.
Por razões óbvias para quem entendeu as ponderações anteriores, essa pregação despertou o interesse de uma pequena
multidão entre os judeus. Privados de sua soberania há quase um século, mais precisamente em 63 a.C., quando o general
romano Pompeu tomou posse da terra em nome do império, agradavam-se ao ouvir que agora Deus implantaria seu
próprio reino e eles poderiam viver livres da opressão imperial.

O ingresso nesse reino exigia, entretanto, arrependimento e confissão de pecados. Os judeus que queriam se tornar adeptos
de João deveriam admitir publicamente que haviam desprezado a lei maior dada pelo próprio Deus e que, agora estavam
dispostos a novamente se submeterem a ela. Como sinal de aceitação na comunidade eram submetidos ao batismo no rio
Jordão.

O temor do juízo que se daria na inauguração do reino levou fariseus e saduceus a buscar o batismo como se ele fosse um
ato que lhes concederia imunidade diante da justiça divina. João, então lhes declarou que deveriam arrepender-se das más
obras que praticavam. Asseverava-lhes que sua etnia judaica não lhes garantia a entrada no reino. Eles precisavam, de
fato, mudar de vida. Informava ainda a urgência em aderir ao processo. O reino estava às portas e o juízo era iminente. A
figura do machado na raiz da árvore é dramática. Não existia a possibilidade de procrastinar. Além disso, àqueles que
fossem reprovados no juízo, identificados com a “árvore que não produz bom fruto” estava reservada a destruição. A
pregação de João apontava para uma ação iminente de Deus e para uma destruição irreversível (aniquilamento) dos
condenados no juízo.

3. A pregação de Jesus Cristo – o reino chegou, mas não de maneira


completa.
A pregação de Jesus Cristo reproduz e dá continuidade à pregação do Batista: “Ora, depois que João foi entregue, veio
Jesus para a Galileia pregando o evangelho de Deus e dizendo: O tempo está cumprido, e é chegado o reino de Deus.
Arrependei-vos, e crede no evangelho. ”111

Podemos questionar o tipo de relacionamento entre as duas pregações. O primeiro aspecto a ser considerado é que Jesus
se tornou, pelo batismo, discípulo de João e que, quando João foi preso, assumiu a liderança entre seus pares e continuou
o trabalho que o seu mestre não podia mais fazer. A razão de sua ida para a Galileia admite duas hipóteses. A primeira é

108
Mateus 3.1,8-9
109
Mateus 3.10-12.
110
Alguns imperadores tais como César Augusto, Vespasiano e Tito foram deificados pelo senado romano. Calígula a
si mesmo declarou-se "Deus e Senhor".
111
Marcos 1.14,15.

28
a de que Jesus deu continuidade a um trabalho que João havia iniciado naquela região. A segunda está na observação da
hostilidade de Herodes que levou Jesus a concluir que deveria afastar-se temporariamente do centro dos acontecimentos
políticos da época.

A pregação de Jesus se desenvolveu com três pontos: 1. O reino de Deus chegou, 2. Arrependei-vos, 3. Crede no
evangelho. Portanto, nada ele inovou. Continuou exatamente na linha inaugurada por seu precursor, João.

Como será o reino? - O sermão do monte112.


A visão de reino de Jesus Cristo está declarada no sermão do monte. O primeiro grande discurso de Jesus, registrado no
evangelho de Mateus é nosso mapa para entender como viverão aqueles que, por serem considerados justos, serão
agraciados pelo Pai com a entrada no reino.

O ideal judaico de felicidade é expresso na palavra “shalom” que pode ser traduzida por paz. Essa paz não é apenas a
ausência de conflitos externos ou internos, mas é também a plena satisfação de todas as necessidades do ser humano. Na
visão cristã o mesmo ideal é colocado na palavra felicidade.

Jesus inicia o sermão declarando que os incluídos no reino serão felizes. Bem-aventurados (μακάριοι). Serão felizes os
pobres (de espírito), os que choram, os mansos, os que têm fome e sede de justiça, os misericordiosos, os limpos de
coração, os pacificadores, os perseguidos por causa da justiça e os injuriados por causa do evangelho porque quando o
reino chegar tudo quanto lhes traz sofrimento será afastado. A seguir, trata da maneira como viverão os incluídos: Eles
terão uma atuação marcante nos aspectos essenciais da vida de tal forma que ninguém deixará de perceber sua presença.

A lei do reino será uma forma aperfeiçoada e muito mais abrangente da lei dada aos antigos. Ela não atentará apenas para
os aspectos exteriores do comportamento humano, manifesto em ações. Ela corrigirá também os aspectos interiores
consolidados nas intenções. A religiosidade dos incluídos no reino não será desenvolvida como resposta às leis ou às
regras. Mais importante do que as práticas religiosas (oração, jejum, caridade) são as motivações que nos levam a aderir
às mesmas. Por trás de tudo isso estão as duas grandes motivações da vida: O amor a Deus acima de tudo e o amor ao
próximo como a si mesmo. Por fim Jesus adverte aqueles que querem participar do reino de que não lhes basta ouvir e
decorar os ensinos que ele lhes dá. É necessário colocá-los em prática113.

Como virá o reino? - A grande investida missionária


Jesus tinha pressa. Estava plenamente consciente da urgência em anunciar a chegada do reino e em advertir aqueles que
deveriam se preparar para entrar nele. No capítulo 10 do Evangelho de Mateus ele comissiona doze de seus discípulos
para saírem pelo país anunciando a próxima chegada do reino.

Capacitação. Os doze escolhidos, numa espécie de pentecostes inicial, receberam autoridade do espírito para
desempenhar a missão que lhes foi dada: “E, chamando a si os seus doze discípulos, deu-lhes autoridade sobre os espíritos
imundos, para expulsarem, e para curarem toda sorte de doenças e enfermidades. ” 114 Da mesma forma que acontecera
aos escolhidos do passado, aquela capacitação foi temporária e limitada ao período em que estivessem pregando.

População-alvo: A população-alvo estava bem definida:115 “A estes doze enviou Jesus, e ordenou-lhes, dizendo: Não
ireis aos gentios, nem entrareis em cidade de samaritanos; mas ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel; e indo,
pregai, dizendo: É chegado o reino dos céus.” A mensagem era exclusivamente para judeus. Estariam os demais excluídos
do reino? Podemos dizer que não. No texto do apocalipse de Enoque, já citado anteriormente (51.1,2), declara-se que no
juízo haverá uma oportunidade para que os pecadores se arrependam e sejam salvos: “Naquele dia acontecerá uma
mudança para os santos e os escolhidos: a luz do dia brilhará perenemente sobre eles, e a honra e a glória voltar-se-ão
para os santos. No dia da tribulação acumular-se-á desgraça sobre os pecadores, enquanto que os justos triunfarão em

112
Mateus 5,6,5.
113
Mateus 7.24-29
114
Mateus 10.1
115
Mateus 10.5-7

29
nome do Senhor dos Espíritos; e Ele deixará que aqueles presenciem isso, para que façam penitência e renunciem aos
atos de suas mãos”.

Podemos concluir que Jesus planejava instalar um projeto-piloto do reino com os judeus. E que os demais viriam a se
arrepender e receber a graça de Deus por testemunharem o que Ele fazia com os seus escolhidos. Essa hipótese concorda
também com a descrição profética de Zacarias116: Naquele dia também acontecerá que correrão de Jerusalém águas-
vivas, metade delas para o mar oriental, e metade delas para o mar ocidental; no verão e no inverno sucederá

isso. E o Senhor será rei sobre toda a terra; naquele dia um será o Senhor, e um será o seu nome. Então todos os que
restarem de todas as nações que vieram contra Jerusalém, subirão de ano em ano para adorarem o Rei, o Senhor dos
exércitos, e para celebrarem a festa dos tabernáculos.

Urgência: Várias das expressões usadas pelo Mestre permitem perceber que ele tinha urgência na execução do programa
que dava aos discípulos 117 : “Em qualquer cidade ou aldeia em que entrardes, procurai saber quem nela é digno, e
hospedai-vos aí até que vos retireis. E, ao entrardes na casa, saudai-a; se a casa for digna, desça sobre ela a vossa paz;
mas, se não for digna, torne para vós a vossa paz. E, se ninguém vos receber, nem ouvir as vossas palavras, saindo daquela
casa ou daquela cidade, sacudi o pó dos vossos pés. Quando, porém, vos perseguirem numa cidade, fugi para outra;
porque em verdade vos digo que não acabareis de percorrer as cidades de Israel antes que venha o Filho do homem.”

Os pregadores não deveriam insistir com aqueles que se mostrassem contrários a participar no reino. Deveriam, outrossim,
sair rapidamente do local e buscar outros que se mostrassem mais amigáveis ao convite. Se houvesse uma reação hostil
eles não deveriam oferecer resistência. Deveriam fugir e continuar a tarefa com a maior urgência possível. Estavam
trabalhando contra o relógio.

Por que não já? - O caminho mais longo


A consideração das ações posteriores do Mestre, nos levam a concluir que ele teria desistido desse projeto-piloto no qual
os israelitas seriam os protagonistas humanos. A pergunta é inevitável: Por que razão Jesus cancelou o projeto-piloto e
mudou a estratégia? Seguramente a única coisa que pode impedir a realização dos planos de Deus é a negativa dos homens
que Ele escolhe para dar sequência ao seu projeto, no caso os judeus, de aderir ao que lhes é proposto.

Uma sequência de eventos foi desencadeada pela morte de João Batista, o precursor e mestre de Jesus 130. Quando Jesus
teve notícia da execução de seu amigo ficou profundamente abalado, retirou-se para um lugar deserto para ficar só,
meditar e recuperar-se do choque. Mas, não conseguiu. As multidões o acompanharam. Após haver alimentado as
mesmas, despediu os discípulos e subiu ao monte para orar sozinho. Terminada a oração, partiu e, para continuar
desfrutando da solidão, foi encontrar os discípulos caminhando sobre as águas do mar da Galileia 118.

Quando saiu do mar um novo Jesus havia surgido. Os que presenciaram a cena testemunharam: “verdadeiramente tu és
filho de Deus”. A partir desse momento o discurso de Jesus muda. Ele passa a tratar os líderes religiosos de Israel com
hostilidade. Frequentemente os substantivos escribas e fariseus são acompanhados do adjetivo hipócritas. Os judeus foram
rejeitados.

Sua expectativa para seu próprio futuro também muda. “Desde então começou Jesus Cristo a mostrar aos seus discípulos
que era necessário que ele fosse a Jerusalém, que padecesse muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes, e dos
escribas, que fosse morto, e que ao terceiro dia ressuscitasse.” 119

Apesar de tudo isso, os contemporâneos de Jesus creram que a instalação do reino seria imediata; “Disse-lhe Jesus: Hoje
veio a salvação a esta casa, porquanto também este é filho de Abraão. Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o

116
Zacarias 14.8,9,16.
117
Mateus 10.11-14,23
118
Mateus 14. 13-23
119
Mateus 16.21

30
que se havia perdido. Ouvindo eles isso, prosseguiu Jesus, e contou uma parábola, visto estar ele perto de Jerusalém, e
pensarem eles que o reino de Deus se havia de manifestar imediatamente.”133
Às portas de Jerusalém, Jesus prediz o que aconteceria àquela cidade rebelde: “E quando chegou perto e viu a cidade,
chorou sobre ela, dizendo: Ah! Se tu conhecesses, ao menos neste dia, o que te poderia trazer a paz! Mas, agora isso está
encoberto aos teus olhos. Porque dias virão sobre ti em que os teus inimigos te cercarão de trincheiras, e te sitiarão, e te
apertarão de todos os lados, e te derribarão, a ti e aos teus filhos que dentro de ti estiverem; e não deixarão em ti pedra
sobre pedra, porque não conheceste o tempo da tua visitação.134”

E, lembrando o que havia acontecido ao seu amigo e mestre, João Batista, entoa uma candente lamentação: “Jerusalém,
Jerusalém, que matas os profetas, apedrejas os que a ti são enviados! Quantas vezes quis eu ajuntar os teus filhos, como
a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e não o quiseste! Eis aí abandonada vos é a vossa casa. Pois eu vos
declaro que desde agora de modo nenhum me vereis, até que digais: Bendito aquele que vem em nome do Senhor. ” 120

Os judeus haviam esgotado as medidas, exaurido os mananciais da misericórdia divina e perdido a oportunidade de
servirem como instrumentos para a instalação do reino de Deus. Contudo a esperança dos discípulos não se extinguiu.
Mais tarde, quando o Cristo ressurreto ascendeu aos céus, eles indagaram “Aqueles, pois, que se haviam reunido
perguntavam-lhe, dizendo: Senhor, é nesse tempo que restauras o reino a Israel? 136” Estava inaugurada a escatologia
iminente.

Os dois fins
O sermão escatológico de Jesus Cristo, registrado nos capítulos 24 e 25 do evangelho de
Mateus se constitui em preciosa fonte de informações para a compreensão da escatologia sinótica. Sua apresentação foi
motivada por uma dupla pergunta dos discípulos: “Declara-nos quando serão essas coisas, e que sinal haverá da tua vinda
e do fim do mundo”.

Pouco antes, comentando a admiração dos discípulos ao contemplar a glória do templo, o mestre havia lhes lançado um
“balde de água fria”: “Em verdade vos digo que não se deixará aqui pedra sobre pedra que não seja derribada.” Tendo
ido para o seu lugar preferido de repouso, o monte das oliveiras, de onde se podia contemplar o templo, os discípulos
colocaram as perguntas motivadoras. Pode parecer que estas perguntas não pareçam apropriadas porque envolvem dois
assuntos diferentes: 1 – Quando tais coisas acontecerão? 2 – Que sinais haverá de tua vinda e do fim do mundo?

Existia, entretanto um nexo causal que as ligava na compreensão dos discípulos. Segundo a tradição judaica o reino de
Deus se instalaria em Jerusalém e, para o judeu esperançoso, o único lugar onde Deus poderia habitar junto com os
homens era o “santo dos santos” no templo de Jerusalém. Caso o templo fosse destruído, Jesus não teria como voltar para
instalar o reino porque o trono de Deus já não mais existiria.

A indagação sobre “fim do mundo” não é uma tradução muito apropriada. A expressão usada pelos discípulos é:
συντελείας τοῦ αἰῶνος, que pode ser melhor traduzida por “término desta era” que estamos vivendo. Na realidade, os
discípulos perguntavam: Senhor, quando terminará esse tempo de opressão em que nossos dominadores nos obrigam a
servi-los e a adorar seus governantes como se fossem deuses? As duas questões estão, portanto, muito ligadas. Na
realidade, os discípulos sugeriam que quando o templo fosse destruído não haveria mais oportunidade para Jesus Cristo
voltar e instalar o reino.

Na resposta, Jesus desvincula as duas ideias. Em uma profecia de extrema clarividência descreve com precisão o que viria
a acontecer cerca de quarenta anos mais tarde quando tropas romanas, comandadas pelo general Tito, invadiram
Jerusalém, derrubaram o muro e destruíram o templo. Essa é uma página virada no livro da História.

A seguir, adverte-os a não perder tempo procurando por sinais de sua volta porque, pura e simplesmente não haveria
nenhum sinal. Tudo ocorreria de maneira repentina e inesperada121. Mais uma vez Jesus surpreende seus seguidores,

120
Mateus 23.37-39
121
Mateus 24:36-38: Daquele dia e hora, porém, ninguém sabe, nem os anjos do céu, nem o Filho, senão só o Pai. Pois
como foi dito nos dias de Noé, assim será também a vinda do Filho do homem. Porquanto, assim como nos dias

31
inclusive os de hoje, mostrando que não precisava de nenhum edifício construído por mãos humanas para sediar o reino
que ele vai implantar: “O meu reino não é deste mundo; se o meu reino fosse deste mundo, pelejariam os meus servos,
para que eu não fosse entregue aos judeus; entretanto o meu reino não é daqui. ” 138

4. A escatologia de Atos dos Apóstolos – aguardando a volta de Jesus


Cristo
O livro de Atos dos Apóstolos não desenvolve um ensino específico sobre escatologia. Mas, na medida que descreve a
maneira como viviam as primeiras comunidades de cristãos, permite-nos perceber o que eles esperavam do futuro.
Encontramos nesse livro duas comunidades cristãs distintas, os cristãos hebreus de fala aramaica e os cristãos helenistas
de fala grega122. Os cristãos hebreus eram liderados pelos apóstolos e conservavam hábitos herdados do judaísmo:

Todos os que criam estavam unidos e tinham tudo em comum. E vendiam suas propriedades e bens e os repartiam por
todos, segundo a necessidade de cada um. E, perseverando unânimes todos os dias no templo, e partindo o pão em casa,
comiam com alegria e singeleza de coração, louvando a Deus, e caindo na graça de todo o povo. E cada dia
acrescentava-lhes o Senhor os que iam sendo salvos140.

Observamos que estes cristãos, que ainda não haviam compreendido adequadamente os ensinamentos do Mestre,
desenvolveram uma vida religiosa dependente do templo. Isso os levou a se fixarem em Jerusalém, desprezando a
recomendação que haviam recebido do Senhor: “Mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e ser-me-
eis testemunhas, tanto em Jerusalém, como em toda a Judeia e Samaria, e até os confins da terra. ” 141 Essa situação
perdurou até que, impelidos por uma perseguição deflagrada após a morte de Estêvão, foram dispersos pelos países
vizinhos. Eles iam todos os dias ao templo porque esperavam que, a qualquer momento, reencontrariam seu mestre
ressurreto que havia voltado dos céus para, finalmente, inaugurar o desejado reino de Deus na terra.

Encontramos ainda os cristãos de língua grega, em sua grande maioria, judeus helenistas da diáspora que não prezavam
muito o templo nem a tradição sacerdotal que ele abrigava; estes, inicialmente, permaneceram em Jerusalém, obedecendo
a orientação dos apóstolos. Essa convivência não foi exatamente pacífica. O livro de atos registra que um deles, Estêvão,
foi o primeiro cristão a ser martirizado por entrar em conflito com as autoridades do templo. Depois houve a questão
sobre a distribuição desigual de víveres para as viúvas que gerou uma crise no seio da comunidade.

Na primeira oportunidade, eles se afastaram, passaram pelas regiões vizinhas, e foram se estabelecer em Antioquia da
Síria, isto é, na mesma província romana, mas, fora da tutela das autoridades religiosas judaicas, e escolheram como
objetivo de trabalho a proclamação do evangelho aos gentios. Eles estavam mais preocupados que os cristãos hebreus
com o dito de Jesus: “E este evangelho do reino será pregado no mundo inteiro, em testemunho a todas as nações, e então
virá o fim. ”123

5. A escatologia paulina – Jesus voltará muito breve.


Que pensava o apóstolo Paulo sobre a volta de Jesus Cristo e o fim daquela era? Seguramente Paulo, que se declarava
judeu de judeus e fariseu zeloso pelo cumprimento da lei, não poderia deixar de ter uma explicação a respeito da
expectativa que intrigava todos os cristãos: quando virá o fim?

As epístolas mais antigas de Paulo: I Tessalonicenses e I Coríntios, apresentam secções muito significativas dedicadas à
escatologia. Outras como Romanos, II Tessalonicenses, Efésios e Colossenses também abordam o assunto. Muitas eram
as questões que ele precisava responder. A maioria delas não se relacionava com o tempo e sim em como a implantação
do reino se realizaria.

anteriores ao dilúvio, comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento, até o dia em que Noé entrou na arca, e não
o perceberam, até que veio o dilúvio, e os levou a todos; assim será também a vinda do Filho do homem. 138 João
18.36
122
Atos 6.1.
123
Mateus 24.14

32
Na epístola mais antiga, I Tessalonicenses, encontramos um delineamento da escatologia paulina que pode ser resumido
em alguns pontos124: 1. Jesus Cristo voltará ainda em nossos dias. 2. Os que estiverem vivos serão arrebatados para se
encontrarem com ele nas nuvens. 3.Os que dormiram em Cristo retornarão com ele. 4. Viveremos para sempre com o
Senhor. Os três primeiros pontos estão declarados no versículo 17: “Depois nós, os que ficarmos vivos, seremos
arrebatados com eles, nas nuvens, ao encontro do Senhor nos ares, e assim estaremos para sempre com o Senhor.”

Observa-se que Paulo tinha a esperança de que ele mesmo e muitos de seus leitores estariam vivos no retorno do Senhor.
O retorno se daria naqueles dias. Tratava-se então de uma escatologia de realização iminente. Os vivos seriam arrebatados
para se encontrarem com Cristo nas nuvens, portanto seriam vistos por todos os que fossem excluídos do processo. Daí
para frente estariam para sempre com o Senhor. Permaneceriam neste mundo e alcançariam a graça da imortalidade. A
morte já teria sido definitivamente vencida.

A ressurreição dos mortos


Quanto aos crentes que já haviam morrido, ou dormido como Paulo declara, só restava uma opção: a ressurreição:” Porque
o Senhor mesmo descerá do céu com grande brado, à voz do arcanjo, ao som da trombeta de Deus, e os que morreram
em Cristo ressuscitarão primeiro.” Essa declaração, anotada no versículo 16, foi o grande problema para a aceitação da
escatologia paulina pelos crentes do primeiro século. Muitos deles não criam que mortos pudessem ressuscitar.

Poucos anos mais tarde, encontramos Paulo discorrendo sobre o assunto na sua primeira epístola aos coríntios: 125 Ora,
eu vos lembro, irmãos, o evangelho que já vos anunciei; o qual também recebestes, e no qual perseverais, pelo qual
também sois salvos, se é que o conservais tal como vo-lo anunciei; se não é que crestes em vão. Porque primeiramente
vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu por nossos pecados, segundo as Escrituras; que foi sepultado e
que foi ressuscitado ao terceiro dia, segundo as Escrituras; que apareceu a Cefas, e depois aos doze; 6 depois apareceu
a mais de quinhentos irmãos duma vez, dos quais vive ainda a maior parte, mas alguns já dormiram; depois apareceu a
Tiago, então a todos os apóstolos;e por derradeiro de todos apareceu também a mim, como a um abortivo.

Ora, se se prega que Cristo foi ressuscitado dentre os mortos, como dizem alguns entre vós que não há ressurreição de
mortos? Mas se não há ressurreição de mortos, também Cristo não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi ressuscitado, logo
é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé.

Porque, se os mortos não são ressuscitados, também Cristo não foi ressuscitado. E, se Cristo não foi ressuscitado, é vã a
vossa fé, e ainda estais nos vossos pecados. Logo, também os que dormiram em Cristo estão perdidos. Se é só para esta
vida que esperamos em Cristo, somos de todos os homens os mais dignos de lástima. Mas na realidade Cristo foi
ressuscitado dentre os mortos, sendo ele as primícias dos que dormem.

A argumentação utilizada pelo apóstolo toma como ponto de partida a ressurreição de Jesus Cristo. Ele considera que
Jesus Cristo havia morrido e sido sepultado. Desse fato ninguém duvidava. Coloca ainda que, depois de sua morte, ele
foi visto vivo por um incontável número de testemunhas dignas de todo o crédito. Conclui então com a afirmativa: se
Jesus Cristo esteve morto e ressuscitou então mortos podem ressuscitar. E coloca sua versão. Jesus foi o primeiro a
ressuscitar e inaugurou uma nova era em se tornou possível a ressurreição dos mortos que morreram crendo nele.

O corpo espiritual
Restava, entretanto, uma questão a resolver. Mesmo os judeus que aceitavam a ressurreição criam que ela só seria possível
enquanto o corpo físico do morto estivesse preservado. Em locais de clima frio, como o Oriente Médio e a Europa, havia
um prazo limite de cerca de três dias. Era, portanto, natural que os crentes perguntassem: Paulo, com que corpo os mortos
vão ressuscitar se o corpo que tiveram durante a vida já se decompôs em meio à corrupção?

124
I Tessalonicenses 2.13-18.
125
I Coríntios 15.1-8, 12-14, 16-18.

33
Paulo responde afirmando a existência de um corpo espiritual que o ressurreto receberia no momento de seu retorno 126:
“Mas alguém dirá: Como ressuscitam os mortos? E com que qualidade de corpo vêm? Insensato! O que tu semeias não é
vivificado, se primeiro não morrer. E, quando semeias, não semeias o corpo que há de nascer, mas o simples grão, como
o de trigo, ou o de outra qualquer semente. Mas Deus lhe dá um corpo como lhe aprouve, e a cada uma das sementes um
corpo próprio.”

Assim também é a ressurreição, é ressuscitado em incorrupção. Semeia-se em ignomínia, é ressuscitado em glória.


Semeia-se em fraqueza, é ressuscitado em poder. Semeia-se corpo animal, é ressuscitado corpo espiritual. Se há corpo
animal, há também corpo espiritual. Assim também está escrito: O primeiro homem, Adão, tornou-se alma vivente; o
último Adão, espírito vivificante. Mas não é primeiro o espiritual, senão o animal; depois o espiritual.

Como será esse corpo espiritual? Paulo não nos dá muitas informações. O assunto não chega a ser abordado em amplitude
nem em profundidade na literatura canonizada. Escrevendo aos crentes de Filipos, Paulo reafirma sua convicção: “Mas a
nossa pátria está nos céus, donde também aguardamos um Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que transformará o corpo da
nossa humilhação, para ser conforme ao corpo da sua glória, segundo o seu eficaz poder de até sujeitar a si todas as
coisas.”146

Paulo nos declara que teremos um corpo idêntico ao do Cristo glorificado. Um corpo que não sofre as restrições das leis
da física, podendo entrar e sair de espaços hermeticamente fechados. Um corpo não mais sujeito às necessidades
fisiológicas. Contudo, um corpo que preservava sua identidade e podia ser reconhecido pelos que o viam.

Quando acontecerão estas coisas?


Alguns anos se passaram. O povo cristão do primeiro século havia experimentado uma grande crise: A ausência do cristo
visível que ocorreu depois de sua morte; a certeza da ressurreição confirmada pela descida do Espírito Santo permitiu aos
cristãos sobreviver a esta crise porque lhes conferiu a certeza de que embora o Cristo não estivesse com eles de modo
visível, continuava agindo em seu meio de maneira invisível pela atuação do próprio Espírito na igreja.

Agora uma nova crise se apresentava. Aqueles que se mantiveram unidos na fé e na comunhão aguardando o retorno
imediato do Mestre começavam a desanimar por causa da demora. A segunda epístola aos tessalonicenses foi com os
objetivos de complementar e atualizar seus ensinamentos a respeito da parusia, isto é, da volta de Jesus Cristo.

Ora, quanto à vinda de nosso Senhor Jesus Cristo e à nossa reunião com ele, vos rogamos, irmãos, que não vos movais
facilmente do vosso modo de pensar, nem vos perturbeis, quer por espírito, quer por palavra, quer por epístola como
enviada de nós, como se o dia do Senhor estivesse já perto. Ninguém de modo algum vos engane; porque isto não sucederá
sem que venha primeiro a apostasia e seja revelado o homem do pecado, o filho da perdição,127

Alguns pregadores espalharam em Tessalônica, interpretações equivocadas a respeito da volta de Jesus Cristo. A mais
provável dizia respeito a uma escatologia plenamente realizada. Diziam à igreja que Jesus Cristo já havia voltado, mas
que eles não foram considerados suficientemente dignos para serem arrebatados e, por essa razão, haviam sido deixados
para trás.

O autor da epístola informa que antes da parusia deveriam ocorrer dois fatos na igreja: primeiramente a apostasia, isto é,
muitos crentes abandonariam a fé. A seguir, seria revelado um personagem que receberia os títulos de “homem do pecado”
e de “filho da perdição”. Só depois Jesus voltaria para destruí-lo com seu poder excepcional. Deveriam, portanto, esperar.

Virá antes o filho da perdição


Aquele que se opõe e se levanta contra tudo o que se chama Deus ou é objeto de adoração, de sorte que se assenta no
santuário de Deus, apresentando-se como Deus. Não vos lembrais de que eu vos dizia estas coisas quando ainda estava
convosco? E agora vós sabeis o que o detém para que a seu próprio tempo seja revelado. Pois, o mistério da iniquidade

126
I Coríntios 15.35-38,42-45. 146
127
I Tessalonicenses 2.1-3.

34
já opera; somente há um que agora o detém até que seja posto fora; e então será revelado esse iníquo, a quem o Senhor
Jesus matará como o sopro de sua boca e destruirá com a manifestação da sua vinda; a esse iníquo cuja vinda é segundo
a eficácia de Satanás com todo o poder e sinais e prodígios de mentira, e com todo o engano da injustiça para os que
perecem, porque não receberam o amor da verdade para serem salvos. E por isso Deus lhes envia a operação do erro, para
que creiam na mentira; para que sejam julgados todos os que não creram na verdade, antes tiveram prazer na injustiça.

Quem será o filho da perdição? A descrição é dramática: Alguém que se opõe e se levanta contra tudo que se chama Deus
ou é objeto de adoração. Alguém que se assenta no santuário de Deus, apresentando-se como Deus. Dois modelos podem
ser encontrados.

O primeiro: No século II a.C., quando a Palestina estava sob o domínio dos reis da dinastia Selêucida, Antíoco IV,
cognominado Epífanes, empreendeu um movimento de Helenização da Palestina. Ele determinou que fossem construídos
ginásios e estádios onde os jovens se exercitavam nus. Determinou também que um altar a Zeus fosse construído no
recinto do templo de Jerusalém e que os judeus fossem proibidos, sob pena de morte, de circuncidar seus filhos, obedecer
à Lei e guardar os rituais do culto. O “abominável da desolação” de que fala o profeta Daniel, e também o primeiro livro
de Macabeus se refere a este episódio.

O segundo: O historiador judeu Flávio Josefo nos conta em “Guerras dos Judeus” que o imperador romano Caio Calígula
(37–41 E. C.) determinou a Petrúcio, alto oficial romano sediado em Antioquia da Síria que introduzisse sua estátua no
templo de Jerusalém. Ele partiu para lá com uma tropa a fim de atingir este objetivo, mas foi interceptado por uma
comitiva de Judeus quando acampou na cidade de Tolemaida. Os judeus o convenceram a não colocar a estátua e a
escrever ao imperador solicitando a revogação da ordem. Venturosamente, enquanto este processo tramitava, Calígula
veio a morrer assassinado em um complô dos senadores com a guarda pretoriana. Como no Império Romano a validade
dos decretos do imperador acabava com sua morte, as estátuas nunca chegaram à Jerusalém. Entende-se, portanto que o
“filho da perdição” seria um governante incrédulo e perverso que exigiria que o cultuassem como se fosse um Deus.

Conclusão
A escatologia paulina é uma escatologia de implantação iminente do reino de Deus neste mundo. Nada existe em Paulo
de destruição do mundo pelo fogo nem da ascensão dos salvos para o céu. Este mundo será restaurado na volta de Cristo
e os salvos viverão nele para sempre. Não apenas os homens terão suas vidas restauradas, mas, toda a obra criada,
contaminada e prejudicada pelos pecados dos homens, será também recuperada 128. Toda a escatologia paulina pode ser
resumida em uma só frase:” Maranata, ora, vem Senhor Jesus! ” 129

“Porque a criação aguarda com ardente expectativa a revelação dos filhos de Deus. Porquanto a criação ficou sujeita à
vaidade, não por sua vontade, mas por causa daquele que a sujeitou, na esperança de que também a própria criação há de
ser liberta do cativeiro da corrupção, para a liberdade da glória dos filhos de Deus. Porque sabemos que toda a criação,
conjuntamente, geme e está com dores de parto até agora; e não só ela, mas até nós, que temos as primícias do Espírito,
também gememos em nós mesmos, aguardando a nossa adoração, a saber, a redenção do nosso corpo.”

6. Escatologia petrina – o tempo de Deus é diferente do nosso


O retardo da parusia
O problema, na época em que a segunda epístola de Pedro foi escrita é o mesmo abordado nas epístolas paulinas: o retardo
da parusia. Os cristãos questionavam as razões por que Cristo ainda não havia voltado e o reino não havia sido instalado:

Amados, já é esta a segunda carta que vos escrevo; em ambas as quais desperto com admoestações o vosso ânimo sincero;
para que vos lembreis das palavras que dantes foram ditas pelos santos profetas, e do mandamento do Senhor e Salvador,
dado mediante os vossos apóstolos; sabendo primeiro isto, que nos últimos dias virão escarnecedores com zombaria
andando segundo as suas próprias concupiscências, e dizendo: Onde está a promessa da sua vinda? Porque, desde que os

128
Romanos 8.18-23
129
II Coríntios 16.22

35
pais dormiram, todas as coisas permanecem como desde o princípio da criação. Pois eles de propósito ignoram isto, que
pela palavra de Deus já desde a antiguidade existiram os céus e a terra, que foi tirada da água e no meio da água subsiste;
pelas quais coisas pereceu o mundo de então, afogado em água 130;

A igreja estava sendo desafiada por pregadores cuja mensagem apresentava uma declaração contrária à doutrina recebida
dos pais. Eles diziam que os cristãos não deveriam ficar aguardando a volta do mestre porque os seus predecessores
dormiram (morreram) e nada de novo aconteceu. A esperança que eles tinham não apresentava evidências de se
concretizar em fatos.

Em resposta, o autor lembra a experiência dos antigos ocorrida no dilúvio. Aqueles que não creram na mensagem de Noé
viviam suas vidas como se nada de novo pudesse acontecer e, de repente, foram tragados pelo dilúvio e morreram
afogados. A expectativa agora não é de água, mas de fogo purificador:

A longanimidade de Deus
Mas os céus e a terra de agora, pela mesma palavra, têm sido guardados para o fogo, sendo reservados para o dia do juízo
e da perdição dos homens ímpios. Mas vós, amados, não ignoreis uma coisa: que um dia para o Senhor é como mil anos,
e mil anos como um dia. O Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns a têm por tardia; porém é longânime
para convosco, não querendo que ninguém se perca, senão que todos venham a arrepender-se131.

Avizinha-se o juízo como ato inaugural da instalação do reino. Nessa ocasião os ímpios serão destruídos. Deus, entretanto,
na sua inesgotável misericórdia, está concedendo um prazo para que os ímpios vejam o que ele está fazendo pelos justos
e se arrependam. Deus está lhes dando nova chance de salvação. Diz mais: Deus não conta o tempo como nós o contamos.
O tempo de Deus é elástico. Sua longanimidade não se esgota.

O fim repentino e catastrófico


Pedro aprendeu a lição ensinada por Jesus. Não devemos perder nosso tempo buscando os “sinais dos tempos” que
precederão a volta do mestre porque eles, pura e simplesmente não aparecerão.

Virá, pois, como ladrão o dia do Senhor, no qual os céus passarão com grande estrondo, e os elementos, ardendo, se
dissolverão, e a terra, e as obras que nela há, serão descobertas. Ora, uma vez que todas estas coisas hão de ser assim
dissolvidas, que pessoas não deveis ser em santidade e piedade, aguardando, e desejando ardentemente a vinda do dia
de Deus, em que os céus, em fogo se dissolverão, e os elementos, ardendo, se fundirão?132

A figura usada aqui é a mesma que Jesus usou no sermão escatológico. O dia do Senhor virá repentinamente como o
ladrão que ataca sorrateiramente sem dar aviso prévio ou sinal de sua aproximação. Não devemos, portanto, nos
envolvermos na tarefa de calcular quando Cristo voltará. A história comprova que todos quanto fizeram isso erraram. O
esforço é inútil.

Só nos resta, então, viver nesse mundo, como quem aguarda ardentemente a volta do Senhor. Aqueles que vivem em
países comprometidos com a guerra vivem todos os dias esperando a notícia de que, enfim, fez-se paz. Essa deve ser
também nossa atitude

Novos céus e nova terra e juízo

Nenhuma expectativa nos é apresentada de uma retirada para outro lugar, nem mesmo de um arrebatamento.

130
II Pedro 3.1-6
131
II Pedro 3.7-9.
132
II Pedro 3.10-12.

36
Nós, porém, segundo a sua promessa, aguardamos novos céus e uma nova terra, nos quais habita a justiça. Pelo que,
amados, como estais aguardando estas coisas, procurai diligentemente que por ele sejais achados imaculados e
irrepreensível em paz;133

Céus e terra serão renovados e todos nós que formos aprovados no juízo (a salvação escatológica) viveremos em um
mundo renovado.

7. A escatologia do Apocalipse de João – O rei vencedor virá


O apocalipse de João é uma obra cuja importância extrapola a da própria Bíblia. Suas narrativas inspiraram romances,
filmes e novelas. Seus personagens são divulgados em obras de grande circulação na “media” falada, escrita e televisada.
Ele é frequentemente associado ao terror. O apocalipse de João é, entretanto, uma obra de consolação que anuncia a
vitória final dos crentes fiéis ao final dos sofrimentos aos quais eles estavam sendo submetidos.

As duas narrativas apocalípticas (capítulos 4 – 21)


A obra é escrita em estilo caracteristicamente apocalíptico, isto é, estruturada na forma de relatos de visões que versam
essencialmente sobre temas escatológicos. Ela começa com um convite para que o vidente suba até o céu onde tem visões
que se sucedem mostrando ora animais de aspecto irreal, ora os justos na glória (o céu), ora lutas entre os exércitos do
bem e os exércitos do mal (a terra). As visões são seriadas em grupos de sete e alguns deles mostram pragas semelhantes
às descritas no Êxodo. Tudo marcha para o "grand finale" quando o inimigo é definitivamente derrotado e aqueles que
permanecem fiéis herdam o novo céu e a nova terra.

Nesta parte podemos identificar duas narrativas apocalípticas. A primeira começa no capítulo 4, com a ascensão do
vidente ao céu e termina com o toque da sétima trombeta (capítulo 11). A segunda inicia no capítulo 12 com a visão da
mulher perseguida pelo dragão e encerra no capítulo 22 com a descida da Jerusalém celestial e a implantação final do
reino de Deus no novo mundo.

Segundo se crê, a primeira narrativa, que vai dos capítulos 4 até 11, foi redigida no tempo do Imperador Nero (54-68 da
era cristã). A segunda narrativa, que começa no capítulo 12 e se estende até o final do livro foi escrita no tempo do
imperador Domiciano (81-96) quase no final do século I. Os capítulos 1 a 3 foram adicionados posteriormente como
introdução. Evidentemente que ao escrever a segunda narrativa o autor não tinha mais em mãos o primeiro manuscrito.
Por essa razão, a segunda narrativa é uma paráfrase e não uma cópia da primeira.

Primeira narrativa apocalítica (capítulos 4-11)


Os selos
A primeira narrativa apocalíptica, escrita no tempo do imperador Nero (54-68), descreve a maneira como Deus agiria
para destruir o inimigo da igreja, o Império Romano. Os quatro primeiros selos descrevem o irresistível avanço dos
inimigos (guerreiros partos, que viviam ao oriente, além do rio do Eufrates) autorizados e mobilizados por Deus, para
oferecer um combate demolidor ao Império Romano que oprimia os cristãos.

O primeiro cavalo (branco) simboliza a vitória dos inimigos134. O segundo cavalo (vermelho) representa a guerra. O
terceiro cavalo (negro) representa a fome. O quarto cavalo (amarelo ou verde) personifica a morte. Uma sucessão lógica
do que ocorre nos países assolados pela guerra.

O quinto selo introduz o clamor dos oprimidos e que rogam a Deus por vingança. Deus lhes responde que eles não foram
esquecidos, mas que precisam aguardar o tempo próprio para a ocorrência dos males que vem contra os inimigos.

133
II Pedro 3.13-14
134
No ano 70, quando as tropas romanas invadiram Jerusalém, Domiciano, ainda muito jovem, acompanhou o pai e o
irmão no cortejo vitorioso, cavalgando um cavalo branco.

37
O sexto selo mostra Deus mobilizando as forças da natureza para enfraquecer a resistência do inimigo e transformá-lo em
um alvo mais fácil para o invasor. O modelo é retirado das pragas descritas no livro do Êxodo, que enfraqueceram o Egito
para permitir a saída do povo de Israel, especialmente a praga das trevas.

A narrativa apocalíptica só pode ser bem entendida por aqueles que estão sendo oprimidos por causa do evangelho e
julgam que Deus não se importa com o que lhes acontece. A Bíblia nos ensina que o Senhor nunca se esquece dos que
lhe são fiéis e que, no tempo apropriado, lhes providencia o socorro necessário.

As trombetas
A abertura do sétimo selo introduz uma série de sete pragas que são anunciadas pelo som das sete trombetas tocadas pelos
anjos. Os toques das trombetas anunciam as intervenções divinas que preparam o inimigo para a derrocada final. Elas
anunciam a ação salvadora de Deus a favor de seu povo oprimido. Existe ainda aqui uma analogia com as pragas
derramadas sobre o império do Egito, que enfraqueceram o poder do Faraó, facilitando a saída dos Judeus.

Nosso objetivo é apreciar a correspondência entre os fatos ocorridos no Egito e as providências divinas anunciadas pelas
trombetas no Apocalipse de João, para que possamos entender que o nosso Deus não muda. O que Ele fez por Israel no
passado continua fazendo por sua igreja em nossos dias. A narrativa das trombetas, de certa forma, reproduz o que já se
havia visto com os selos. A ordem aqui, porém, está invertida; primeiramente, são recrutadas as forças da natureza para
enfraquecer o inimigo. Os efeitos das pragas são parciais, atingem apenas a menor parte (um terço) de cada um dos locais
mencionados. Finalmente os guerreiros do oriente são liberados para o ataque fulminante.

A primeira trombeta anuncia a praga da saraiva (chuva de pedras) acompanhada de fogo que atinge a terra firme
destruindo uma pequena parte (um terço) de toda a sua vegetação (cf. Êxodo 9.18-19). A segunda trombeta anuncia a
praga lançada contra o mar (águas salgadas), atingindo um terço de sua vida. A terceira trombeta anuncia o cataclismo
que atinge as águas doces (fontes e rios), que se tornam amargas e não podem ser bebidas pelos homens (cf. Êxodo 7.19).
A quarta trombeta anuncia a praga dirigida contra os céus (atmosfera), que escurece durante uma parte do dia levando os
homens a andar em trevas (cf. Êxodo 10.21,22). Os quatro elementos da natureza (terra seca, águas salgadas, águas doces
e ar) são atingidos preparando a derrocada dos inimigos do Senhor.

A segunda série começa com a quinta trombeta que introduz a praga dos gafanhotos (cf. Êxodo 10.12). Neste contexto,
eles são muito mais malignos e poderosos. São dotados de poder para atormentar os homens causando-lhes grandes
sofrimentos. O toque da sexta trombeta anuncia, por fim, a invasão inimiga. Eles são anunciados como os quatro anjos
da morte que vêm do lado oriental do Eufrates. Seus cavalos e cavaleiros trazem mais três pragas mortais: fogo, fumaça
e enxofre.

A sétima trombeta anuncia o fim com a vitória do Senhor: A ira das nações se derrama sobre o opressor, Deus reina e o
Seu santuário, que estivera oculto aos homens, pode enfim ser visto novamente em toda a sua glória.

A sequência de eventos introduzidos pelo toque das trombetas dos arcanjos concorda com o que já havia sido anunciado
na abertura dos selos. Aqui, entretanto a intensidade e a dramaticidade estão aumentadas. Como aconteceu no Egito, os
rebeldes opressores são os alvos exclusivos de todas as pragas. Os justos e obedientes são poupados e não sofrem nenhum
mal. Deus vela e zela por aqueles que lhe são fiéis e não permite que nada de mal lhes aconteça.

Segunda narrativa (capítulos 12-22)


A trindade maligna
Nesta segunda versão da narrativa as personagens opressoras são o Dragão (Satanás), A besta que veio do mar (O
imperador romano), a besta que veio da terra (o governo da província da Ásia). Adicionalmente, a grande prostituta
identificada como Babilônia (Roma, a capital do Império) entra em cena. A ação se encaminha para a derrocada final da
grande Babilônia e de todos quantos nela confiam.

A primeira parte de cena se passa nos céus. Uma mulher (a nação de Israel) grávida está prestes a dar à luz um filho (O
Cristianismo). Seu inimigo mortal (Satanás, simbolizado por um dragão) a vigia com a intenção de lhe devorar o filho

38
(Jesus Cristo) e impedir que ele domine o mundo. O Arcanjo Miguel, defensor de Israel135 (Daniel 12.1), é o primeiro
libertador que faz guerra contra o dragão e o vence. Este texto é baseado na narrativa da queda dos anjos, da apocalíptica
judaica que é encontrada no apocalipse de Enoque.

O dragão derrotado desce à terra e, não podendo mais agir de maneira autônoma, faz aliança com poderes humanos.
Transfere parte de seu poder para a besta que veio do mar, o Império Romano. Este livro foi escrito para os cristãos da
província da Ásia. Os habitantes desta província conheciam que os romanos tinham chegado do ocidente, navegando pelo
mar Mediterrâneo que eles chamavam de “Mare Nostrum” (o nosso mar).

Em seguida, a besta entrega parte de sua autoridade ao falso profeta (a besta que veio da terra) que representa o governo
provincial da Ásia. Este, para agradar seu patrono, constrange os moradores da terra a prestar culto ao imperador (a
primeira besta) e a levar sobre si o seu número (666)136. Os que não concordam são presos, torturados e mortos.

As pragas
Mais uma vez a linha de raciocínio do autor é apresentada com clareza absoluta. Deus não muda e continua agindo
exatamente da mesma forma Ele fere os homens direta e indiretamente por meio dos elementos da natureza. Aqui, mais
uma vez, o modelo seguido é o das pragas do Êxodo. Elas são recontadas com uma linguagem apocalítica, rica de novas
imagens e de novos significados. Os homens atingidos pelas pragas, rebelam-se e se reúnem para guerrear contra Deus.
Mera inutilidade. Os desígnios de Deus não podem ser mudados por nenhum tipo de reação humana.

Aqui a história se repete sob nova apresentação: A ordem é dada para a liberação de sete anjos. Eles não trazem trombetas
e sim taças. Cada uma das taças contém pragas que visam um objetivo específico. A soma de seus efeitos é o
enfraquecimento do opressor para que ele possa ser derrotado com maior facilidade.

A primeira praga se dirige contra os adoradores marcados com o sinal da besta que são feridos com úlceras (Êxodo 9.8-
12). Logo a seguir, uma maldição é lançada sobre o mar. A terceira praga atinge todos os rios e fontes de água doce
(Êxodo 7.14-25). A quarta praga se lança contra o sol e a quinta traz trevas sobre o trono da besta (Êxodo 10.2126). A
sexta praga faz com que sequem as águas do rio Eufrates (Êxodo 14.21-27). A diferença aqui está em que o afastamento
das águas beneficia os invasores que lutarão contra a besta.

Os homens reagem para lutar contra Deus, reunidos no Armagedom 137. Enquanto esperam o fim se precipita sobre eles.
A sétima praga é derramada e acontece a queda da Grande Cidade (Babilônia). Tudo chegou ao fim determinado.

Provavelmente o autor se inspirou nos fatos ocorridos durante a erupção do vulcão Vesúvio no ano 79 (o ano em que
morreu o imperador Vespasiano), que destruiu as cidades de Pompeia e Herculano. Quando ele escreveu os fatos estavam
recentes na memória de todos.

Muitos governantes se sentem absolutamente seguros em seus poderosos castelos e desprezam os clamores de seus
governados. Eles se esquecem de quantos impérios poderosos, e considerados invencíveis, chegaram ao fim.

A queda da Babilônia
Deus anuncia por meio de seus mensageiros (anjos) que a cidade ímpia (Babilônia = Roma) não ficaria de pé. Seria
destruída sem nenhuma chance para os que com ela se associavam. Não é possível construir um império alicerçado sobre
o mal e ser bemsucedido para sempre. Mais cedo ou mais tarde o edifício vai ruir.

A cidade de Roma é aqui chamada de Babilônia. Para os judeus este nome era sinônimo de terra do desterro e da opressão.
Historicamente, a Babilônia (atual Iraque) foi a terra para onde os nativos de Judá foram deportados após a invasão de
Nabucodonosor. Lá ficaram por um período de cerca de setenta anos, privados da possibilidade de subir a Jerusalém para
prestar culto no templo. Compare os salmos 122 e 137.

135
Alguns intérpretes acreditam que Miguel seria aqui um "tipo" do próprio Cristo.
136
Acredita-se que aqui existe uma referência cifrada ao nome do imperador Nero César.
137
Referência ao monte de Megido, local onde, no tempo da monarquia, Israel havia sofrido uma grande derrota.

39
Roma, capital do Império Romano é a nova Babilônia. Suas tropas invadiram Jerusalém no ano 70 d.C., destruíram o
templo e puseram fim ao culto. Os judeus dispersos já não tinham onde cantar nem oferecer seus sacrifícios. Os cristãos
não podiam adorar seu Senhor, eram constrangidos à adoração de César.

Ela se tronou a terra do suplício para os mártires. A arena do “circus máximus” ficava embebida no sangue de cristãos
despedaçados pelas feras. Uma boa imagem era a prostituta embriagada com o sangue dos mártires.

Todos os que tinham seus negócios na capital imperial se lamentaram quando a sua ruína se precipitou. Negociantes de
todas as nacionalidades e de todas as especialidades perderam em um momento seu mercado mais próspero. Anuncia-se
aqui a queda do Império Romano e sua cabeça, Roma, a grande babilônia rolará.

Novos céus e nova terra


Aqui encerramos o estudo do Apocalipse de João. Nosso objetivo é compreender que Deus não muda seus propósitos
apesar de todos os contratempos que o homem introduz na história. O final dos tempos retorna ao princípio. No Gênesis
se descreve a criação da terra e dos céus. No critério de qualidade do Criador eles eram perfeitos. A adesão do homem ao
pecado prejudica o projeto original e corrompe a criação. Depois que for vencido o opositor e os seus adeptos forem
eliminados, Deus retomará o projeto original fazendo surgir novos céus e nova terra. Tudo começa de novo.

Conclusão
Satanás está derrotado, mas ainda não está aniquilado. Mesmo tendo seus poderes restritos ele continua oferecendo
combate aos escolhidos do Senhor. Em momentos históricos importantes ele se associa aos governantes sedentos de poder
que desprezam o respeito aos direitos fundamentais do ser humano e passam a oprimi-lo. Ainda hoje esta história está
acontecendo com irmãos nossos que vivem em países onde os governantes são totalitários e adotam religiões de caráter
fundamentalista. Nossos missionários em países árabes, especialmente nos governados por xiitas, e em outras terras
dominadas por religiões animistas e fetichistas, vêm sofrendo perseguições

O clímax do Apocalipse é a habitação de Deus no meio de Seu povo. Como Ele não pode ter nenhum contato com o que
é contaminado e comprometido pelo pecado, a chegada do Senhor deve ser precedida pelo afastamento de todos que se
contaminaram com os poderes malignos e pela restauração da própria natureza (Romanos 8.18-23). O projeto original do
Senhor chegará ao seu objetivo final.

Como se observa, a escatologia do Apocalipse de João é uma escatologia que prevê a volta iminente do Cristo vitorioso
para libertar seus servos fiéis da perseguição da grande besta (Império Romano) que lhes causa grande sofrimento. O ato
final continua sendo a implantação do Reino de Deus na terra com a descida da Jerusalém celeste que substituirá a
Jerusalém terrestre destruída pelos invasores, céus e terras serão renovados. Os fiéis viverão em paz e os rebelados serão
confinados por toda a eternidade em um local onde não terão acesso à presença do Senhor e não poderão causar qualquer
mal aos que Deus escolheu e libertou.

40
Eclesiologia do Novo Testamento. Afinal de contas, quem são
vocês?
Eclesiologia é um termo da língua grega derivada de ἐκκλησίαs (assembleia, igreja). É, portanto, um estudo sobre a
igreja. Em termos teológicos dizemos que eclesiologia diz respeito à doutrina da igreja. No presente estudo, estamos
interessados em abordar a forma como a ideia de reunião em assembleias ou igrejas foi assimilada e desenvolvida pelos
crentes do tempo em que foram escritos os livros do Novo Testamento.

Os judeus, no período do segundo templo, reuniam-se em congregações: sinagogas (συναγωγ), que significa um conjunto
de pessoas convocadas para estarem juntas com os objetivos de prestar culto a Deus e de aprender a observar as Suas leis.

Os cristãos perseguiram os mesmos objetivos, mas adotaram o modelo grego de reunião. Nas cidades gregas, em que a
forma de governo era a democracia, os cidadãos se reuniam periodicamente em assembleias para decidirem, pelo voto,
todos os assuntos de interesse da comunidade. Os cristãos que se converteram no mundo helenista se organizaram na
forma de assembleias para tratarem dos assuntos que interessavam suas comunidades. Esses assuntos se relacionavam
principalmente com as expectativas que tinham para o futuro e com a maneira como deveriam se comportar em meio as
hostilidades dos perseguidores.

Em sua primeira carta aos cristãos de Tessalônica o apóstolo Paulo recorda a maneira como sua comunidade foi fundada:

“Porque, partindo de vós fez-se ouvir a palavra do Senhor, não somente na Macedônia e na Acaia, mas também em todos
os lugares a vossa fé para com Deus se divulgou, de tal maneira que não temos necessidade de falar coisa alguma; porque
eles mesmos anunciam de nós qual a entrada que tivemos entre vós, e como vos convertestes dos ídolos a Deus, para
servirdes ao Deus vivo e verdadeiro, e esperardes dos céus a seu Filho, a quem ele ressuscitou dentre os mortos, a saber,
Jesus, que nos livra da ira vindoura.”138

Nessa pequena recordação Paulo lembra que a igreja dos tessalonicenses era uma reunião de pessoas convertidas dos
ídolos a Deus, isto é, pessoas que haviam trocado a idolatria pela adoração do Deus Verdadeiro. Lembra ainda que se
tratava de um grupo de pessoas que fez o propósito de servir ao Deus vivo e verdadeiro, o que significa que o propósito
de suas vidas era cooperar com a implantação do reino de Deus no mundo. Termina dizendo que eles se mantinham
reunidos para esperar a parusia, isto é a volta dos céus do Filho ressurreto que, como juiz escatológico, os livraria da
ira de Deus no dia do juízo. Nosso estudo perseguirá o objetivo de entender como essas ideias se desenvolveram e se
firmaram no meio dos cristãos que viveram no primeiro século.

1. Eclesiologia nos escritos de Pedro e Tiago e na epístola aos hebreus


Uma eclesiologia com sotaque oriental
A comunidade cristã das origens estava dividida. Duas grandes divisões: helenistas e hebreus, são mencionadas nos atos
dos apóstolos139. As epístolas de Tiago, de Pedro e aos hebreus refletem o que costuma ser chamado de cristianismo
judaico hebreu. Em contraste, as epístolas paulinas que refletem um cristianismo gentílico helenista. Tiago e Pedro são,
segundo a tradição, judeus do da Galileia, contemporâneos de Jesus Cristo que, da mesma forma que ele, falavam a língua
aramaica. Sua visão de comunidade de fé coincidia com a da comunidade judaica reunida em congregações (sinagogas)
nas várias cidades pelas quais os judeus se haviam dispersado no período pós babilônico. É evidente que não se pode
esperar uma eclesiologia muito elaborada nesses escritos. Mas, não podemos ignorar a maneira como esses irmãos do
passado viviam, congregavam e comungavam.

138
1 Tessalonicenses 1.8-10
139
Atos 6.1

41
A epístola de Tiago
Tiago identifica seus leitores como “as doze tribos da dispersão” 140 . A reunião deles é chamada de congregação
(sinagoga)141. A palavra igreja nunca aparece nesta epístola. Esse linguajar reflete o ambiente instalado na Judeia e
vizinhanças no período que sucedeu a execução pública de Estêvão e consequente dispersão que, nada mais eram que
judeus fiéis a Deus que acreditaram que Jesus de Nazaré, apesar de ter sido morto, havia ressuscitado e era o messias
prometido pelos profetas. Eles se reuniam em sinagogas e sua liturgia em nada diferia daquela dos judeus não convertidos.

Escritos de Pedro
A palavra igreja também não é encontrada nos escritos atribuídos a Pedro. O texto básico desse autor que nos permite
entender a visão que ele tinha da comunidade de crentes aparece no início de sua primeira epístola 142:

Deixando, pois, toda a malícia, todo o engano, e fingimentos, e invejas, e toda a maledicência, desejai como
meninos recém-nascidos, o puro leite espiritual, a fim de, por ele, crescerdes para a salvação, se é que já provastes
que o Senhor é bom;

E, chegando-vos para ele, pedra viva, rejeitada, na verdade, pelos homens, mas, para com Deus eleita e preciosa, vós
também, quais pedras vivas, sois edificados como casa espiritual para serdes sacerdócio santo, a fim de oferecerdes
sacrifícios espirituais, aceitáveis a Deus por Jesus Cristo.

Por isso, na Escritura se diz: Eis que ponho em Sião uma principal pedra angular, eleita e preciosa; e quem
nela crer não será confundido. E assim para vós, os que credes, é a preciosidade; mas para os descrentes, a
pedra que os edificadores rejeitaram, esta foi posta como a principal da esquina, e: Como uma pedra de tropeço
e rocha de escândalo; porque tropeçam na palavra, sendo desobedientes; para o que também foram destinados.

Mas vós sois a geração eleita, o sacerdócio real, a nação santa, o povo adquirido, para que anuncieis as grandezas
daquele que vos chamou das trevas para a sua maravilhosa luz; vós que outrora nem éreis povo, e agora sois de
Deus; vós que não tínheis alcançado misericórdia, e agora a tendes alcançado.

Amados, exorto-vos, como a peregrinos e forasteiros, que vos abstenhais das concupiscências da carne, as quais
combatem contra a alma; tendo o vosso procedimento correto entre os gentios, para que naquilo em que falam
mal de vós, como de malfeitores, observando as vossas boas obras, glorifiquem a Deus no dia da visitação.

O versículo chave é o de número nove. Nele a comunidade dos crentes é chamada de: geração eleita, sacerdócio real,
nação santa, povo adquirido. Todas essas imagens são derivadas daquelas que descrevem o relacionamento do Senhor
com o povo de Israel nos tempos passados. Mais adiante, Pedro sugere que a comunidade dos cristãos sucede a Israel na
designação como povo de Deus: “vós, que outrora nem éreis povo, e agora sois de Deus” (v.10).

O desafio que esse povo recebe é viver aquela vida que o Israel do passado não conseguiu viver: Deixar de lado toda a
malícia, engano, fingimento, inveja e maledicência (v.1) e, na qualidade de peregrinos e forasteiros neste mundo, abster-
se das concupiscências da carne e ter um procedimento correto entre os gentios a fim servir como exemplo e como
motivação para que eles glorifiquem a Deus no dia da visitação (Episcopado, inspeção, equivalente a juízo) (vv.11,12).

Embora não encontremos aqui a palavra santificação, podemos observar a colocação de um elevado padrão de santidade
como alvo para os cristãos. Observamos que, para o autor desta epístola, nós os cristãos herdamos dos judeus a
responsabilidade de sermos o mostruário de Deus, para que, na instalação do reino, os rebeldes vejam nosso procedimento
aprovado, se convertam de seus maus caminhos e alcancem as misericórdias do Senhor.

140
Tiago 1.1
141
Tiago 2.2
142
I Pedro 2.1-9

42
Essa comunidade, da mesma forma que as das sinagogas judias, era dirigida por anciãos ou presbíteros aos quais competia
testemunhar os sofrimentos de Cristo, apascentar o rebanho de Deus e servir como exemplo para os membros da
comunidade143:

Aos anciãos (presbíteros), pois, que há entre vós, rogo eu, que sou ancião com eles e testemunha dos
sofrimentos de Cristo, e participante da glória que se há de revelar: Apascentai o rebanho de Deus, que está entre
vós, não por força, mas espontaneamente segundo a vontade de Deus; nem por torpe ganância, mas de boa
vontade; nem como dominadores sobre os que vos foram confiados, mas servindo de exemplo ao rebanho. E,
quando se manifestar o sumo Pastor, recebereis a imarcescível coroa da glória.

A segunda epístola, mais tardia, teve como objetivos fortalecer a fé dos crentes que estavam sendo perseguidos e a
esperança da volta de Jesus Cristo que, naquela época, estava sendo questionada e negada por falsos profetas. 144

Eclesiologia na Epístola aos hebreus


A epístola aos hebreus foi escrita para desafiar cristãos do primeiro século que estavam sendo assediados por pregadores
judaizantes a abandonar a fé exclusiva em Jesus Cristo e a assumir um compromisso maior com o modo de vida dos
judeus.

Em consonância com a cultura hebraica a reunião local dos crentes é chamada de congregação: “não abandonando a nossa
congregação (ἐπισυναγωγὴν ἑαυτῶν ), como é costume de alguns, antes admoestando-nos uns aos outros; e tanto
mais, quanto vedes que se vai aproximando aquele dia.”165

A palavra igreja é citada fazendo referência à reunião universal dos crentes: “Pois tanto o que santifica como os que são
santificados, vêm todos de um só; por esta causa ele não se envergonha de lhes chamar irmãos, dizendo: Anunciarei o teu
nome a meus irmãos, cantar-te-ei louvores no meio da congregação(ἐκκλησίας).”145

O uso de duas palavras para o conjunto dos crentes na mesma epístola nos alerta para o fato de que na época em que esta
epístola foi escrita estava se desenvolvendo uma dupla eclesiologia. Ele usa uma baixa eclesiologia quando se refere à
reunião local de crentes chamando-a de congregação como era o hábito entre os judeus. Usa também uma alta eclesiologia
quando se refere ao conjunto de todos os crentes sob o comando único do salvador chamando-os de igreja.

2. Eclesiologia nos escritos paulinos146


Todas as epístolas paulinas foram escritas para igrejas ou para pessoas que se encontravam nas lideranças de igrejas
(pastores). Não podemos, portanto, ignorar que igreja era o assunto de maior importância em suas cartas. Várias dessas
cartas eram respostas para questões formuladas pelas próprias igrejas solicitando esclarecimentos sobre doutrinas ou
sobre procedimentos de caráter ético.

As cartas de Paulo têm uma estruturação bastante uniforme. Em primeiro lugar encontramos uma introdução na qual o
autor se identifica, identifica os destinatários aos quais se dirige, apresenta uma saudação à comunidade e, por fim ora
agradecendo a Deus pela vida e pelo testemunho da igreja a qual se dirige.

A seguir, a seção principal, discute assuntos ocasionais de duas ordens: problemas teológicos ligados a doutrinas e à
prática da liturgia bem como problemas de caráter ético, orientando sobre os relacionamentos familiares e sociais.
Finalmente, a despedida apresenta menções a vários dos conhecidos do autor que congregavam na igreja, uma “bênção
apostólica”167 e, ou uma “doxologia”168.

143
I Pedro 5.1-4
144
II Pedro 3.4
145
Hebreus 2.11,12.
146
Coríntios 13.14, 2 Coríntios 13.13

43
Dois modelos de igreja são encontrados na experiência de Paulo. As igrejas domésticas, que se reuniam na casa de um
crente, e as igrejas urbanas que eram assembleias dos crentes em uma cidade. Não encontramos na coleção das epístolas
paulinas canonizadas nenhuma carta dirigida a uma igreja doméstica e sim cartas dirigidas a igrejas urbanas. A exceção
a essa regra é a epístola a Filemon que foi endereçada a um líder em cuja casa se reunia uma igreja 147.

A igreja doméstica
A igreja doméstica se constituía em um grupo de cristãos que se reunia na casa de um convertido que voluntariamente se
oferecia para abrigá-lo. O texto já citado da epístola a Filemon usa uma expressão que se repete várias vezes nos escritos
paulinos: “a igreja que está (se reúne) em (sua) casa (de).”

Segundo narrativa de Atos dos Apóstolos, os cristãos que permaneceram em Jerusalém após o dia de pentecostes,
compareciam diariamente ao templo para os ofícios religiosos judaicos e se reuniam em casas onde celebravam a
comunhão: “E, perseverando unânimes todos os dias no templo, e partindo o pão em casa, comiam com alegria e singeleza
de coração. ”148 Essa foi a primeira forma de organização cristã.

Segundo a mesma fonte, primeira igreja doméstica da Europa se formou na cidade de Filipos, na província da Macedônia.

E certa mulher chamada Lídia, vendedora de púrpura, da cidade de Tiatira, e que temia a Deus, nos escutava e o
Senhor lhe abriu o coração para atender às coisas que Paulo dizia. Depois que foi batizada, ela e a sua casa,
rogou-nos, dizendo: Se haveis julgado que eu sou fiel ao Senhor, entrai em minha casa, e ficai ali. E nos
constrangeu a isso.149

O autor descreve a primeira conversão no território europeu. Tratava-se de uma mulher de posses, uma empresária, natural
da cidade de Tiatira, que havia fixado residência em Filipos. Fazia parta de um grupo de mulheres que se reunia à margem
de um rio para orar aos sábados. Tratava-se, portanto, de uma judia helenista da diáspora ou de uma aderente ao judaísmo.
Um comentário deixado no texto informa que ela “temia a Deus”.

O autor descreve ainda que “o Senhor lhe abriu o coração para atender às coisas que Paulo dizia”, o que significa que ela
se converteu e com ela, sua família. Imediatamente convidou os missionários para entrarem em sua casa e ali os abrigou.
Sua casa se tornou o primeiro centro de difusão do evangelho naquela cidade, isto é a primeira igreja doméstica em
continente europeu.

Branick, em importante obra sobre o assunto150, nos dá uma descrição das casas de famílias abastadas do mundo greco-
romano. Elas tinham a forma de um átrio romano e tinham uma sala de jantar (triclínio) com cerca de trinta e seis metros
quadrados e um átrio com cerca de cinquenta e cinco metros quadrados. Calcula o autor que essas casas podiam abrigar
confortavelmente de trinta a quarenta pessoas. Além disso tinham quartos extras que podiam ser alugados para estranhos,
o que lhes permitia abrigar forasteiros, como era o caso dos primeiros missionários.

O livro de Atos registra ainda o que ocorreu com os missionários depois que foram libertados da prisão em Filipos: Então
eles saíram da prisão, entraram em casa de Lídia, e, vendo os irmãos, os confortaram, e partiram 173. O mesmo autor nos
apresenta uma relação importante de pessoas proeminentes que são citadas em ligação com as igrejas domésticas 151:
Priscila e Áquila, Tício Justo, Crispo, Estéfanas e Gaio, em Corinto. Erasto, Febe, Pricila e Áquila, em Roma. Filemon
em Colossos.

Na atualidade, as igrejas domésticas continuam sendo importantes agências de disseminação do evangelho, elas vêm
sendo chamadas de pontos de pregação, congregações, missões, núcleos de estudos bíblicos nos lares, pequenos grupos,
células etc. O mecanismo é sempre o mesmo: uma família aceita as boas novas de Cristo e abre as portas de sua casa que

147
Filemon 1,2.
148
Atos 2.46
149
Atos 16.14,15
150
Branick, V, A igreja doméstica nos escritos de Paulo, São Paulo, Paulus 1994, p. 37 ss.
151
Branick, V. op. cit. PP 58-77.

44
se torna um centro de divulgação da mensagem. Muitas das igrejas que têm hoje centenas ou, até mesmo, milhares de
membros começaram como pequenas igrejas domésticas.

A igreja urbana
Paulo foi um fundador de igrejas urbanas. Fazia delas sua base de operações missionárias. Os crentes de uma cidade,
reunidos em grupos maiores podia não apenas testemunhar aos locais, mas também se tornar um núcleo de divulgação
missionária e promover a pregação em outros lugares. Paulo usava a mesma técnica que as legiões romanas para difundir
o domínio do Império. As igrejas urbanas eram os quartéis de Paulo na guerra contra as forças da maldade que operavam
no mundo.

Ainda o autor do livro de Atos registra que ao chegar a uma cidade o missionário ia inicialmente à sinagoga dos judeus.
Quando rejeitado por estes voltava sua atenção para os gentios. Foi exatamente isso que ocorreu em Tessalônica 152.
Quando o clima na cidade permitia, iniciava trabalhando com seus adeptos em uma igreja doméstica, como ocorreu em
Corinto153 e, quando o grupo se avolumava, fundava uma igreja urbana.

As epístolas de Paulo, em sua maioria, são dirigidas a igrejas urbanas. Existe, inclusive, uma recomendação para que as
igrejas filiadas ao apóstolo trocassem as cartas recebidas entre elas: “Depois que for lida esta carta entre vós, fazei que o
seja também na igreja dos laodicenses; e a de Laodiceia, lede-a vós também. ”154

É necessário lembrar que a moderna crítica bíblica coloca a epístola aos colossenses, que traz essa recomendação, entre
as deuteropaulinas, isto é, igrejas escritas após a morte de Paulo. Essa colocação, entretanto, não invalida a recomendação
dada pelo apóstolo, ou por um sucessor dele, para que as igrejas da comunidade, compartilhassem entre si as epístolas
recebidas.

Três eclesiologias
O que Paulo pensava a respeito da igreja? Provavelmente esta seja a pergunta chave para entendermos a eclesiologia
paulina. Brown 155 declara que podemos encontrar três eclesiologias na herança de Paulo: 1. A herança paulina nas
pastorais; a importância da estrutura da igreja, 2. A herança paulina em Colossenses/Efésios; a Igreja como Corpo de
Cristo que deve ser amado, e 3. A herança paulina em Lucas/Atos; a Igreja e o Espírito.

A herança paulina nas pastorais; a importância da estrutura da igreja


As epístolas pastorais foram escritas nas três últimas décadas do primeiro século do cristianismo. Esse tempo é conhecido
como período pós-apostólico porque, segundo se crê, nesse tempo a maioria dos apóstolos já tinha perecido.
Provavelmente João foi a exceção.

Em um tempo quando ainda não havia um Novo Testamento escrito as igrejas ficavam na exclusiva dependência da
tradição oral transmitida por líderes de reconhecida idoneidade para solucionar os problemas relativos às doutrinas e às
práticas litúrgicas156. As epístolas pastorais dedicam boa parte de seu texto a passar recomendações de critérios para
seleção e preparo dos líderes das igrejas que deveriam suceder os apóstolos na condução de seus destinos.

152
Atos 17.1-9.
153
Atos 18.1-8.
154
Colossenses 4.16.
155
Brown, R..E. As igrejas dos apóstolos, São Paulo, Paulinas, 1986.
156
Lucas 1.2

45
Especial atenção é dedicada aos ofícios de bispo e diáconos. Esses líderes deveriam ser pessoas preparadas, confiáveis e,
acima de tudo, ter um padrão de vida inquestionável. Tudo isso era exigido como garantia de que sua palavra merecia
crédito157.

A herança paulina em Colossenses/Efésios; a Igreja como Corpo de Cristo que


deve ser amado
A primeira imagem de Paulo para a igreja em Colossenses/Efésios é a comparação com o corpo de Cristo. Essa expressão
aparece várias vezes e escritos do autor:

Porventura o cálice de bênção que abençoamos, não é a comunhão do sangue de Cristo? O pão que
partimos, não é porventura a comunhão do corpo de Cristo? Pois nós, embora muitos, somos um só
pão, um só corpo; porque todos participamos de um mesmo pão 158.

Porque, assim como o corpo é um, e tem muitos membros, e todos os membros do corpo, embora
muitos, formam um só corpo, assim também é Cristo. Pois em um só Espírito fomos todos nós batizados
em um só corpo, quer judeus, quer gregos, quer escravos quer livres; e a todos nós foi dado beber de
um só Espírito159.

Pois assim como em um corpo temos muitos membros, e nem todos os membros têm a mesma função,
assim nós, embora muitos, somos um só corpo em Cristo, e individualmente uns dos outros.160

Aqui Paulo generaliza para a igreja o tipo de relacionamento originalmente encontrado na família. Da mesma forma que
na família, na igreja somos membros uns dos outros. Esse tipo de relacionamento ressalta o fato de que acima de nossas
diferenças e divergências existe uma relação de fraternidade e de mútua dependência funcional que nos une. Somos
irmãos e precisamos uns dos outros.

Como membros de um corpo, somos todos dirigidos por um só e mesmo Espírito. Isso significa que os valores e as
vontades individuais são sujeitaos aos desígnios do Espírito de Jesus Cristo que nos une provocando a verdadeira
comunhão. Essa comunhão está simbolizada no fato de participarmos da mesma mesa, tomarmos do mesmo cálice e de
comermos do mesmo pão na celebração da eucaristia. Paulo sempre usa essa imagem para igrejas locais. Ele nunca pensa
em uma igreja globalizada ou universalizada. Para Paulo o real é o conjunto das igrejas locais.

A segunda imagem é a da esposa amada por Cristo:

“Vós, maridos, amai a vossas mulheres, como também Cristo amou a igreja, e a si mesmo se
entregou por ela, a fim de a santificar, tendo-a purificado com a lavagem da água, pela palavra, para
apresentá-la a si mesmo, igreja gloriosa, sem mácula, nem ruga, nem qualquer coisa semelhante, mas
santa e irrepreensível. ”161

Aqui Paulo usa o laço matrimonial para simbolizar a união mística de Cristo com sua igreja. Os maridos devem amar suas
esposas da mesma forma que Cristo amou a igreja. Devem estar dispostos a se entregarem (dar sua vida) por suas esposas
da mesma forma que Cristo deu a dele pela igreja.

Como entender esse relacionamento? Uma palavra interessante vem de George Gordon Byron, melhor conhecido como
Lorde Byron, poeta britânico (1768 – 1824). Disse ele que: “É mais fácil morrer por uma mulher do que viver com ela.”
162
Isso significa que, assim como o convívio harmonioso entre cônjuges não é fácil, o convívio de Jesus com a igreja

157
1 Timóteo 3.1-10
158
1 Coríntios 10. 16,17
159
1 Coríntios 12.12,13
160
Romanos 12.4,5
161
Efésios 5.25-27
162
https://kdfrases.com/frase/144725

46
também é desafiador. Mas o amor que Jesus dedica à sua igreja faz com que ele suporte todas as adversidades do
relacionamento e cuide dela com amor para aperfeiçoá-la de modo a, no fim, ter uma igreja gloriosa, perfeita, sem
manchas nem rugas.

De certa forma as duas imagens se equivalem porque, pelo casamento, esposa e marido se tornam ambos uma só carne 163
e, portanto, compartilham um mesmo corpo. Em todos os casos, Paulo pensa na igreja como um grupo local de crentes
unidos aguardando a volta de Jesus Cristo que os livrará da ira de Deus no dia do Juízo.

A herança paulina em Lucas/Atos; a Igreja e o Espírito.


Sobressai na narrativa de atos dos apóstolos o papel predominante do Espírito Santo na vida da igreja local. O caso típico
é o início da obra missionária:

Ora, na igreja em Antioquia havia profetas e mestres, a saber: Barnabé, Simeão, chamado Níger, Lúcio
de Cirene, Manaém, colaço de Herodes o tetrarca, e Saulo. Enquanto eles ministravam perante o Senhor
e jejuavam, disse o Espírito Santo: Separai-me a Barnabé e a Saulo para a obra a que os tenho chamado.
Então, depois que jejuaram, oraram e lhes impuseram as mãos, os despediram.164

Na descrição do autor os líderes da igreja (profetas e mestres) ministravam e jejuavam. Não tomaram nenhuma iniciativa,
apenas aguardaram. O Espírito lhes falou determinando o que deveriam fazer. Deveriam separar Barnabé e Saulo para a
obra de evangelização. Assim o fizeram e tiveram sucesso.

A segunda viagem missionária é a contraprova do que foi dito:

Decorridos alguns dias, disse Paulo a Barnabé: Tornemos a visitar os irmãos por todas as cidades em
que temos anunciado a palavra do Senhor, para ver como vão. Ora, Barnabé queria que levassem
também a João, chamado Marcos. Mas a Paulo não parecia razoável que tomassem consigo aquele que
desde a Panfília se tinha apartado deles e não os tinha acompanhado no trabalho. E houve entre eles tal
desavença que se separaram um do outro, e Barnabé, levando consigo a Marcos, navegou para Chipre.
Mas Paulo, tendo escolhido a Silas, partiu encomendado pelos irmãos à graça do Senhor 165.

Observa-se que aqui a iniciativa não foi do Espírito e sim de homens: Paulo e Barnabé decidiram. O alvo também foi
estabelecido por homens: tornemos a visitar os irmãos por todas as cidades em que temos anunciado a palavra do Senhor.
Imediatamente os problemas começaram a aparecer. Paulo e Barnabé se desentenderam a respeito da participação de João
Marcos na empreitada e acabaram se separando.

O prosseguimento da viagem foi cheio de contratempos: Atravessaram a região frígio gálata, tendo sido impedidos pelo
Espírito Santo de anunciar a palavra na Ásia e tendo chegado diante da Mísia, tentavam ir para Bitínia, mas o Espírito de
Jesus não lho permitiu166. Cada decisão que os missionários tomavam era contestada pelo Espírito de forma enfática. O
Espírito lhes falava “não é isso que vocês estão planejando o que eu quero que façam”, mas eles não entendiam.

Finalmente, encontraram o caminho certo: Então, passando pela Mísia, desceram a Trôade. De noite
apareceu a Paulo esta visão: estava ali em pé um homem da Macedônia, que lhe rogava: Passa à
Macedônia e ajuda-nos. E quando ele teve esta visão, procurávamos logo partir para a Macedônia,
concluindo que Deus nos havia chamado para lhes anunciarmos o evangelho 167.
Os homens (de cabeça dura) necessitaram passar por diversos insucessos para, por fim, receber uma chamada
extraordinária e para concluir que suas vontades não poderiam prevalecer contra a vontade do Senhor. Em uma visão, o

163
Gênesis 2.24
164
Atos 13.1-4
165
Atos 15.36-39
166
Atos 16.6,7
167
Atos 16.8-10

47
Senhor lhes mostra claramente o que devem fazer. A obra missionária só funciona bem quando é integralmente controlada
pelo espírito.

Assim é a vida da igreja. Na sua primeira epístola aos Coríntios, o apóstolo Paulo dá instruções precisas sobre a maneira
como os dons espirituais devem ser utilizados na igreja.168 A regra funcional básica a ser observada determina “Assim
também vós, já que estais desejosos de dons espirituais, procurai abundar neles para a edificação da igreja.
”191

A igreja só é edificada, de fato, quando o espírito está no comando e quando os membros se submetem ao controle dele
não apenas no estabelecimento dos objetivos, mas também na escolha da metodologia utilizada.

Conclusão
A eclesiologia paulina, em suas múltiplas vertentes é, sempre, uma baixa eclesiologia. Paulo pensa, tanto na igreja
doméstica quanto na igreja urbana, como grupos de convertidos que se reúnem em locais específicos para servirem a
Deus e para aguardar a volta de Jesus Cristo. Podemos, assim, dizer que sua eclesiologia é subsidiária de sua escatologia.
A igreja foi fundada para esperar a volta de Cristo e existirá enquanto ele não voltar.

3. Eclesiologia nos evangelhos sinóticos


Embora escritos depois das epístolas paulinas, quando as igrejas de cristãos já estavam em pleno funcionamento, os
evangelhos sinóticos não dedicam grande atenção à eclesiologia. A palavra igreja só aparece três vezes nesta literatura e
sempre no evangelho de Mateus. A primeira faz parte da resposta de Jesus à confissão de Pedro: “Pois também eu te digo
que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha igreja, e as portas do hades não prevalecerão contra ela;” 192

Aqui a palavra igreja é provavelmente a tradução do hebraico “Qahal” que foi tomada do texto da Septuaginta. Ela faz
referência à congregação do povo de Israel reunida diante da tenda da aliança em resposta à convocação feita pelos toques
de trombetas dos sacerdotes nas ocasiões festivas.

As duas outras fazem parte de uma perícope na qual o Mestre instrui seus discípulos a respeito da forma como se deve
tratar um irmão ofensor: Ora, se teu irmão pecar, vai, e repreende-o entre ti e ele só; se te ouvir, terás ganho teu irmão;
mas se não te ouvir, leva ainda contigo um ou dois, para que pela boca de duas ou três testemunhas toda palavra seja
confirmada. Se recusar ouvi-los, dize-o à igreja; e, se também recusar ouvir a igreja, considera-o como gentio e publicano.
Em verdade vos digo: Tudo quanto ligardes na terra será ligado no céu; e tudo quanto desligardes na terra será desligado
no céu.169

Uma vez que o evangelho de Mateus foi escrito após o final da guerra judaico romana, mais provavelmente na oitava
década do primeiro século, podemos admitir que elas foram adicionadas a partir de uma camada mais recente de tradição
que não remontam o autor original.

De fato, no tempo em que Jesus de Nazaré viveu e pregou nada havia que pudesse ser identificado como igreja. Ele era
um mestre religioso independente que, como qualquer judeu religioso, frequentava as sinagogas 170 e dava preleções a
seus discípulos em meio a peregrinações por toda a Galileia. Não tinha nenhuma base fixa de atuação 195.

Apesar desse aspecto, a leitura dos sinóticos permite encontrar textos característicos de uso no meio eclesiástico. O
próprio evangelho de Mateus é estruturado na forma de cinco discursos de Jesus, em analogia com os discursos de Moisés
registrados no Deuteronômio. Essa analogia nos permite concluir que havia um ciclo anual de leitura desses discursos

168
I Coríntios 12-14.
169
Mateus 18.15-18
170
Mateus 4.3

48
nas igrejas (pelo menos naquelas filiadas à comunidade de Mateus, de cultura hebraica) à semelhança com o que os judeus
faziam no ciclo anual de leitura da lei e dos profetas nas sinagogas.

O evangelho de Lucas, obra provavelmente de produção contemporânea a de Mateus, registra quatro textos com
características de cânticos e recitações que, provavelmente, eram repetidos periodicamente nas igrejas da comunidade
paulina.

O primeiro deles é o “Magnificat” (engrandece), o cântico entoado por Maria quando soube que havia sido escolhida para
ser a mãe do salvador196. Magnificat é a palavra latina que significa engrandece, a primeira do cântico: Magnificat anima
mea domino, isto é, engrandece minha alma o senhor. Claramente se observa e que este texto é uma construção tardia da
igreja das origens baseada no cântico que Ana entoou após o nascimento de Samuel. 171Encontramos também o cântico
dos anjos anunciando o nascimento do Salvador172. O terceiro cântico é o “Benedictus”, palavra latina para bendito. Este
cântico foi entoado pelo profeta Zacarias 173 quando recuperou a voz, depois do nascimento de João Batista. O quarto e
último é o cântico entoado por Simeão quando toma o menino Jesus em seus braços.174 Todos esses cânticos foram
transmitidos por tradição oral como integrantes da liturgia da igreja e incorporados ao texto do terceiro evangelho.

Em conclusão, nos evangelhos sinóticos ainda temos de falar de uma baixa eclesiologia porque os autores, convivendo
com comunidades de crentes localizadas, não tinham ainda como pensar em uma igreja universal (católica) que
compreendesse a totalidade dos vivos e, muito menos, também aqueles que já haviam partido para a glória.

171
I Samuel 2.1-10.
172
Lucas 1.9-14
173
Lucas 1.68-75
174
Lucas 2.28-32

49
Soteriologia, quem mesmo será salvo?
Soteriologia é a doutrina que trata da salvação e da perdição. Ela está estritamente ligada à escatologia na medida que
salvação ou perdição somente serão consumadas no fim dos tempos. Enquanto na escatologia nos interessamos pelo que
acontecerá no fim, na soteriologia nos preocupamos em saber que caminho nos levará ao fim desejado. A maioria das
religiões importantes do mundo, especialmente as monoteístas, acreditam em uma vida após a morte. Acreditam também
que na vida futura o homem receberá a justa retribuição por seu procedimento correto ou por sua rebeldia. A receita para
garantir um futuro aprazível e livre de sofrimentos é tratada no estudo da soteriologia. Os livros do Novo Testamento não
ficaram alheios a esta expectativa. Todos eles, de certa forma, abordam o assunto e apresentam o caminho mais desejável.

1. Salvação, precedentes no Antigo Testamento


Libertação e Salvação
Libertação é o tema básico de todos os escritos bíblicos do Velho Testamento. De certa forma, salvação se confunde com
libertação. Podemos sempre encontrar o triângulo: oprimido, opressor, libertador (salvador). O episódio do Antigo
Testamento que melhor caracteriza a salvação do povo é a saída dos hebreus da terra do Egito, descrita no livro do Êxodo.
Encontramos a descrição na história bíblica com riqueza de detalhes.

Inicialmente veio a opressão: Entrementes se levantou sobre o Egito um novo rei, que não conhecera a José. Disse ele ao
seu povo: Eis que o povo de Israel é mais numeroso e mais forte do que nos. Eia, usemos de astúcia para com ele, para
que não se multiplique, e aconteça que, vindo guerra, ele também se ajunte com os nossos inimigos, e peleje contra nós
e se retire da terra. Portanto puseram sobre eles feitores, para os afligirem com suas cargas. Assim os israelitas
edificaram para Faraó cidades armazéns, Pitom e Ramessés 175.

O povo oprimido clamou a Deus e Deus ouviu: Disse mais: Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de
Isaque, e o Deus de Jacó. E Moisés escondeu o rosto, porque temeu olhar para Deus. Então disse o Senhor: Com efeito
tenho visto a aflição do meu povo, que está no Egito, e tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus exatores, porque
conheço os seus sofrimentos; e desci para o livrar da mão dos egípcios, e para o fazer subir daquela terra para uma
terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite e mel; para o lugar do cananeu, do heteu, do amorreu, do perizeu,
do heveu e do jebuseu. E agora, eis que o clamor dos filhos de Israel é vindo a mim; e também tenho visto a opressão
com que os egípcios os oprimem176.

Temos aqui caracterizados os três vértices do triângulo: O opressor é o governo egípcio que aflige o povo com pesados
encargos. O oprimido é o povo de Israel que se transferiu para o Egito no tempo dos patriarcas e que diante da situação
insustentável, clama a Deus. O libertador é o próprio Deus que ouve o clamor do oprimido, observa sua situação
angustiante e providência meios para que se dê a libertação. Salvação, nesse contexto, significa a saída de uma situação
tremendamente desconfortável e angustiante para outra onde o oprimido recebe o alívio definitivo para os seus
sofrimentos.

A libertação também pode ser operada no âmbito estritamente pessoal. Um exemplo bem conhecido é o de Ana, mãe de
Samuel203. Houve um homem de Ramataim-Zofim, da região montanhosa de Efraim, cujo nome era Encana, filho de
Jeroão, filho de Eliú, filho de Toú, filho de Zufe, efraimita. Tinha ele duas mulheres: uma se chamava Ana, e a outra
Penina. Penina tinha filhos, porém Ana não os tinha. Ora, a sua rival muito a provocava para irritá-la, porque o Senhor
lhe havia cerrado a madre. E assim sucedia de ano em ano que, ao subirem à casa do Senhor, Penina provocava a Ana,
pelo que ela chorava e não comia.

Aqui se repete a história. O oprimido é Ana, mulher estéril. A lei hebreia permitia ao homem que tinha uma mulher estéril,
tomar outra esposa para que tivesse filhos com ela e sua sucessão familiar não fosse interrompida. O opressor, aqui, é

175
Êxodo 1.8-11
176
Êxodo 3.6-9

50
Penina, a esposa fértil, que humilhava Ana, sua rival, por causa da esterilidade dela. A reação de Ana é descrita logo a
seguir204:

Ela, pois, com amargura de alma, orou ao Senhor, e chorou muito, e fez um voto, dizendo: ó Senhor
dos exércitos! Se deveras atentares para a aflição da tua serva, e de mim te lembrares, e da tua serva
não te esqueceres, mas lhe deres um filho varão, ao Senhor o darei por todos os dias da sua vida, e pela
sua cabeça não passará navalha.

No meio de seu sofrimento e de sua angústia, Ana fez um voto ao Senhor. Se recebesse a graça de ter um filho o dedicaria
ao Senhor todos os dias de sua vida. Esse filho foi Samuel. Depois de recebida a graça, Ana ora ao Senhor 177:

Então Ana orou, dizendo: O meu coração exulta no Senhor; o meu poder está exaltado no Senhor; a minha boca dilata-se
contra os meus inimigos, porquanto me regozijo na tua salvação. Ninguém há santo como o Senhor; não há outro fora
de ti; não há rocha como a nosso Deus.

A ideia chave nessa oração é aquela que expressa a gratidão de Ana pela salvação recebida. Daí para a frente ela não
seria humilhada por sua rival pelo simples fato de não poder ter filhos. Neste episódio, bem como no anterior, observa-
se o conceito estabelecido firmemente na história do povo de Israel: Deus é o salvador do seu povo. Não há outro a
quem possa recorrer.

O salmista, refletindo nesta situação, declara: “Elevo os meus olhos para os montes; de onde me vem o socorro? O meu
socorro vem do Senhor, que fez os céus e a terra. ”178 Em Israel era proibido construir santuários nos montes. Quem
olhasse para eles procurando um deus a quem pudesse pedir socorro nada encontraria. Mas, em seu coração sabia que o
socorro (salvação) não falharia porque o Senhor que fez os céus e a terra e, portanto, os montes, estava sempre atento
para intervir em favor do oprimido.

Salvação na visão sacerdotal


Após o estabelecimento das doze tribos na terra da Canaã, o povo se organizou como uma comunidade heterogênea no
que diz respeito às etnias, costumes e línguas. O “cimento” que mantinha a unidade era de caráter religioso. O povo
havia feito uma aliança com um deus na qual havia se obrigado a um compromisso de adoração exclusiva que
impossibilitava a convivência pacífica e harmoniosa com vizinhos de outras raças. Essa restrição impedia o casamento
de hebreus com mulheres de outras nacionalidades. Quando esse fato acontecia a repressão era violenta.

Essa religião, conhecida como Javismo, era centralizada em um santuário único, a princípio móvel (tabernáculo) e mais
tarde, após a instituição da monarquia, fixo na capital (templo), administrado por uma casta de sacerdotes da tribo de Levi
que detinha o monopólio da comunicação com a divindade e da recepção de impostos que lhes deviam ser entregues
anualmente na proporção de um décimo de tudo quanto a terra produzia. Uma autêntica teocracia. Ser religioso, nesse
contexto, se confundia com pertencer ou ser aceito no povo do pacto.

Um pesado e rígido código de leis foi criado para regulamentar os relacionamentos desse povo com seu deus e dos
adoradores desse deus uns com os outros. Desvios eram punidos com penas severas que podiam chegar à morte por
apedrejamento. O único caminho que permitia ao homem atingir seus objetivos de paz, prosperidade e felicidade era a
estrita obediência ao código de leis em vigor. Qualquer desvio era rotulado como transgressão e o retorno como
arrependimento.

Neste panorama totalitário não havia espaço para qualquer tipo de salvação individual. A única garantia que um adorador
podia ter era a de estar integrado no povo da aliança e observar com fidelidade todo o código legal. No caso de desvio,
poderia ser castigado com as penas da lei e com a ira de seu deus que extrapolava a pessoa do infrator atingindo também

177
I Samuel 2.1,2
178
Salmo 121.1,2

51
seus descendentes de maneira impiedosa 179 (maldição hereditária). Nesse contexto a excomunhão, com consequente
proibição de entrar no arraial, significava, na prática a condenação ao ostracismo e, talvez, a morte.

Salvação na religião profética de Israel


A instalação da monarquia em Israel, com a separação do poder político do religioso, permitiu o aparecimento no país de
uma classe de líderes carismáticos populares não vinculados nem à religião oficial administrada pelos sacerdotes que
monopolizavam o culto no santuário, nem aos reis que detinham o poderio militar e político, uma vez que podiam negociar
acordos de paz com os povos vizinhos.

Nela Deus não precisava ser adorado em um santuário exclusivo administrado por um clero monárquico. Ele vocacionava
profetas onde quisesse e mantinha aberto um canal de comunicação com os homens em qualquer lugar, inclusive fora da
terra santa. Esses líderes, passaram a exercer uma influência muito grande no meio do povo porque eles ofereciam uma
via alternativa para o acesso do adorador ao seu deus quebrando, de certa forma, o monopólio sacerdotal.

A religião profética, evoluiu do caráter corporativo para o individual. O que importava agora não era mais o pertencer ao
povo da aliança e, sim, estabelecer uma aliança individual com a divindade180. Esse relacionamento entre o eu e o Deus
que eu adoro passou a ser regido pela lei da recompensa que se aplicava estritamente a pessoa do adorador ou infrator.
Extinguiram-se os conceitos de bênção e de maldição hereditária. Cada adorador passou a ser responsável exclusivamente
por seus próprios atos,

Nesse panorama, a salvação foi conceituada com base exclusiva na misericórdia de Deus. Embora Deus pudesse
recompensar os bons com a abundância de bênçãos e os maus com castigos implacáveis, havia ainda a possibilidade de
esse mesmo Deus, se compadecer do transgressor e perdoá-lo independentemente de qualquer mérito que tivesse 209. O
caminho para a misericórdia, para a graça e para o perdão estava plenamente aberto.

Salvação e perdição na religião do segundo templo


O período que se sucedeu ao desterro na Babilônia afetou de maneira radical a compreensão do povo a respeito das
recompensas divinas. O prestígio da monarquia foi extinto. O prestígio dos profetas também decaiu no meio do povo que
retornou à terra natal porque a promessa de recuperação de liberdade plena para o país não se cumpriu. A bem da verdade,
os profetas foram silenciados. Sobrou apenas a hierarquia sacerdotal.

Nesse tempo, o templo foi reconstruído, as leis foram reformuladas e o culto centralizado em Jerusalém foi restabelecido
com todos os seus rituais.

Por outro lado, os judeus que não retornaram à terra natal espalharam-se por vários territórios da Ásia, África e Europa
constituindo o que ficou conhecido pelo nome de diáspora. Eles não tinham acesso ao templo a não ser, talvez, por uma
visita anual à capital no período da celebração da páscoa.

A unidade da fé era mantida pelo apego às atividades religiosas que podiam ser praticadas independentemente de tempo
e de local. Foram muito valorizadas a prática da circuncisão, a guarda do sábado e a observação rigorosa da lei. A
religião legalista e corporativa triunfou sobre a religião individual dos profetas. Entretanto a marca da retribuição por um
relacionamento correto com Deus foi preservada.

Nesse período, mestres religiosos especialmente preparados (rabis) assumiram a liderança no espaço deixado em aberto
pela ausência dos sacerdotes e dos profetas. Especialmente aqueles que pertenciam à escola dos fariseus assumiram a

179
Êxodo 20.5
180
Essa mudança é bastante clara na parábola das uvas verdes, referenciada pelos profetas Jeremias e Ezequiel, no
tempo do exílio babilônico.

52
hegemonia quase completa do processo de instrução religiosa bem como parte dos atributos do ofício profético. Nesse
tempo, a felicidade do homem (shalom) passou a ser vista como um prêmio ao estrito cumprimento da lei e a maldição
como um justo castigo pela desobediência. Nada existia que pudesse ser chamado de salvação.

Salvação e pregação na apocalíptica judaica


A partir do século II a.C. o pensamento apocalíptico se apoderou da cultura judaica e provocou mudanças radicais nas
maneiras de crer, compreender e viver de todo o povo. O apocaliptismo, em oposição a tudo quanto se conhecia
anteriormente, foi um movimento fatalista que admitia que as decisões divinas eram tomadas independentemente do
procedimento humano. Para os escritores apocalíticos as oportunidades de interação com a divindade haviam se esgotado
e Deus, na sua exclusiva onipotência, já havia determinado tudo quanto faria a esse mundo, sem oportunidade para
qualquer apelação. O homem não podia fazer nada para mudar os desígnios divinos.

Na visão apocalíptica Deus, em um tempo que é de sua exclusiva competência, determina a extinção de todos os poderes
terrenos maléficos, por mais fortes que sejam, e manda um juiz celestial (o filho do homem) para estabelecer o juízo na
terra e fundar um reino exclusivamente seu. Os aprovados no juízo viverão eternamente no reino de Deus estabelecido
pelo filho do homem. Os reprovados serão extintos ou aniquilados no meio de um fogo inextinguível.

Haverá, entretanto uma última oportunidade. O Senhor permitirá aos rebeldes conviver algum tempo com os escolhidos
a fim de que eles possam observar os benefícios de sua misericórdia, arrepender-se e ser perdoados para a salvação. Na
apocalíptica judaica a salvação não dependia do mérito humano e sim exclusivamente da misericórdia divina que se
expressava por meio de uma graça (favor) inesgotável.

2. Salvação e perdição na pregação de João Batista


Os tempos mudaram. Após quase quatro séculos de silêncio, a voz profética fez-se ouvir de novo nas cercanias do rio
Jordão. “No décimo quinto ano do reinado de Tibério César, sendo Pôncio Pilatos governador da Judeia, Herodes tetrarca
da Galileia, seu irmão Filipe tetrarca da região da Itureia e de Traconites, e Lisânias tetrarca de Abilene, sendo Anás e
Caifás sumos sacerdotes, veio a palavra de Deus a João, filho de Zacarias, no deserto.” 181O retorno da profecia inaugurou
um novo tempo no relacionamento do humano com o divino. Após longo silêncio Deus voltou a falar ao seu povo por
meio de líderes carismáticos sem nenhum vínculo com a religião oficial.

A pregação de João está baseada na apocalíptica judaica: Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos
céus182. O anúncio da próxima chegada do reino dos céus (de Deus) se constitui na resposta às
expectativas de um povo que vivia oprimido pelo poder do imperador romano. A instalação do
reino vindo de cima implicava na aniquilação do poder do opressor estrangeiro e era, portanto,
um ato libertador, ou salvador.

Para que esse reino se concretizasse era necessária a vinda do juiz celestial que faria a separação entre justos abençoados
e ímpios condenados. O critério de julgamento seria o desempenho pessoal de cada um (religião individual) e o prêmio,
ou castigo, seriam a justa retribuição por este desempenho.

O elemento de urgência está presente: “E já está posto o machado a raiz das árvores; toda árvore, pois que não produz
bom fruto, é cortada e lançada no fogo.183” O juiz escatológico chegará logo: “Eu, na verdade, vos batizo em água, na
base do arrependimento; mas aquele que vem após mim é mais poderoso do que eu, que nem sou digno de levar-lhe as
alparcas; ele vos batizará no Espírito Santo, e em fogo. 184”

João prega a iminente chegada do reino com a vinda de um ser celestial (o filho do homem) que presidirá o juízo no qual
os fiéis serão batizados no Espírito Santo (salvação) e os infiéis no fogo (aniquilação).

181
Lucas 3.1,2.
182
Mateus 3,2
183
Mateus 3.10
184
Mateus 3.11

53
3. Salvação e perdição na pregação de Jesus Cristo
Jesus Cristo foi inicialmente discípulo do Batista. Após a prisão dele assumiu a liderança de seu grupo e deu continuidade
à obra que ele fazia. Sua mensagem é a mesma que havia ouvido do seu mestre: “Desde então começou Jesus a
pregar, e a dizer: Arrependei-vos, porque é chegado o reino dos céus.185”. Não se tratava de
uma inovação e sim da continuidade do que já vinha sendo ouvido. A mensagem era exatamente
a mesma.

Segundo o relato do evangelista Mateus, Jesus Cristo ampliou os ensinos de João, seu antecessor, com uma instrução
completa sobre a maneira como a nova ordem das coisas funcionará quando for estabelecido o reino. O sermão do monte
(Mateus 4,5,6) apresenta normas de comportamento para o súdito do reino que excedem a excelência das leis de Moisés.

A urgência da pregação, causada pela instalação iminente do reino fica bem explícita no sermão de comissionamento de
seus apóstolos: A estes doze enviou Jesus, e ordenou-lhes, dizendo: Não ireis aos gentios, nem
entrareis em cidade de samaritanos; mas ide antes às ovelhas perdidas da casa de Israel; e indo,
pregai, dizendo: É chegado o reino dos céus. 186 Quando, porém, vos perseguirem numa cidade, fugi para
outra; porque em verdade vos digo que não acabareis de percorrer as cidades de Israel antes que venha o Filho do
homem187. Jesus parecia correr contra o relógio. Não dá para esperar. O momento é agora.

A pregação de Jesus era exclusivamente para judeus. As ovelhas perdidas da casa de Israel constituíam seu alvo único.
Esse cuidado nos mostra que no início do seu ministério Jesus tinha um projeto. Ele pretendia implantar o reino com os
judeus que, uma vez admitidos, serviriam como mostruário da misericórdia divina para motivar a conversão dos gentios
segundo a tradição recebida da apocalíptica judaica188.

No final de sua peregrinação terrena, no sermão escatológico, o mestre dá uma descrição clara e precisa de como se fará
o juízo: “Quando, pois, vier o Filho do homem na sua glória, e todos os anjos com ele, então se assentará no trono da
sua glória; e diante dele serão reunidas todas as nações; e ele separará uns dos outros, como o pastor separa as ovelhas
dos cabritos; e porá as ovelhas à sua direita, mas os cabritos à esquerda.189”, “Então dirá o Rei aos que estiverem à sua
direita: Vinde, benditos de meu Pai. Possuí por herança o reino que vos está preparado desde a fundação do mundo;
porque tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era forasteiro, e me acolhestes; estava nu, e me
vestistes; adoeci, e me visitastes; estava na prisão e fostes ver-me.190” “Então dirá também aos que estiverem à sua
esquerda: Apartai-vos de mim, malditos, para o fogo eterno, preparado para o Diabo e seus anjos; porque tive fome, e
não me destes de comer; tive sede, e não me destes de beber; era forasteiro, e não me acolhestes; estava nu, e não me
vestistes; enfermo, e na prisão, e não me visitastes. 191”

Na mensagem de Jesus Cristo salvação significa ficar livre do castigo, ou da ira divina, no julgamento escatológico. Os
justos (ovelhas) serão integrados ao reino e os perversos (cabritos) serão rejeitados. O critério de separação é a práxis de
vida de cada um. O princípio profético da justa retribuição está em pleno vigor.

Mais tarde, após a morte de João, o mestre parece ter concluído que seu projeto inicial era inviável. Não é possível contar
com os judeus. Pelo menos, não era possível contar com aqueles judeus que eram seus contemporâneos. Eles haviam
tropeçado na pedra angular e perdido seu rumo192. Tudo teria que começar do zero.

185
Mateus 4.17
186
Mateus 10.5-7
187
Mateus 10.23
188
I Enoque 50.1-4
189
Mateus 25.31-33
190
Mateus 25.34-36
191
Mateus 25. 4-43
192
Atos 4.11

54
“Desde então começou Jesus Cristo a mostrar aos seus discípulos que era necessário que ele
fosse a Jerusalém, que padecesse muitas coisas dos anciãos, dos principais sacerdotes, e dos
escribas, que fosse morto, e que ao terceiro dia ressuscitasse. 193”

Quando se aproxima da entrada de Jerusalém entoa uma lamentação que mais parece uma sentença de condenação
definitiva:194 " Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas, apedrejas os que a ti são enviados! quantas vezes quis eu
ajuntar os teus filhos, como a galinha ajunta os seus pintos debaixo das asas, e não o quiseste! Eis aí abandonada vos é a
vossa casa. Pois eu vos declaro que desde agora de modo nenhum me vereis, até que digais: Bendito aquele que vem em
nome do Senhor." A oportunidade para os judeus passou. O plano B teria que ser posto em ação e foi. Antes de se afastar
recomenda aos seus discípulos que anunciem seu plano não só em Jerusalém, mas também na Judeia, Samaria e até os
confins da terra.

4. Salvação e perdição nos escritos paulinos


Nos escritos de Paulo abrem-se novos horizontes na compreensão do relacionamento entre Deus e os homens. Ele,
seguindo a apocalíptica judaica e os ensinamentos de Jesus Cristo, ainda fala na instalação do reino escatológico neste
mundo. Mas, sua visão vai muito mais além daquela de um simples judeu convertido.

O mistério de Cristo
Um tema frequentemente abordado por Paulo em suas epístolas é o que ele denomina “o mistério de Cristo” e que,
esclarece, de certa forma, quando escreve aos crentes de Éfeso: Por esta razão eu, Paulo, o prisioneiro de Cristo Jesus
por amor de vós gentios...como pela revelação me foi manifestado o mistério, conforme acima em poucas palavras vos
escrevi, pelo que, quando ledes, podeis perceber a minha compreensão do mistério de Cristo, o qual em outras gerações
não foi manifestado aos filhos dos homens, como se revelou agora no Espírito aos seus santos apóstolos e profetas, a
saber, que os gentios são coerdeiros e membros do mesmo corpo e
coparticipantes da promessa em Cristo Jesus por meio do evangelho195;

Com essa formulação, Paulo derruba o conceito firmado na apocalíptica judaica de que a conversão dos judeus precederia
a instalação do reino e, só depois, os gentios seriam convidados a aderir ao mesmo ficando, dessa forma, como
subsidiários dos judeus. Para ele a diferença não existe mais. Judeus e gentios são iguais diante de Deus em oportunidades
para a participação no reino.

Entretanto, no capítulo 11 da epístola aos romanos Paulo defende a tese de que a rejeição dos judeus por Deus, que abriu
a porta para a participação dos gentios no plano de salvação, executado por Jesus Cristo, não é definitiva nem total. Ele
declara que permaneceu um remanescente fiel no povo para testemunhar e que, ao fim, os judeus e gentios serão
coparticipantes de mesma bênção. O critério agora não é a pertencer a uma etnia ou aderir a um pacto nacional pela
recepção do sinal da circuncisão e, sim, a aceitar a graça salvadora de Deus que é a mesma para todos por meio de Cristo:
“não há grego nem judeu, circuncisão nem incircuncisão, bárbaro, cita, escravo ou livre, mas
Cristo é tudo em todos.196”

A universalidade do pecado e da culpa


Em sua exposição aos crentes de Roma, Paulo inicia pela defesa de uma tese revolucionária para a sua época: Todo o ser
humano, pelo simples fato de ser humano, é competente para, pela simples observação da natureza, reconhecer a
existência de um deus criador de todas as coisas e entender a vontade dele para a vida de cada um. O fato de os judeus
terem recebido uma revelação especial não afeta significativamente a realidade em vigor: “Porque todos os que sem

193
Mateus 16.21
194
Mateus 23.37-39
195
Efésios 3.1-6
196
Colossenses 3.11

55
lei pecaram, sem lei também perecerão; e todos os que sob a lei pecaram, pela lei serão
julgados. ”197

Dessa forma, a universalidade do pecado, do qual ninguém escapa, faz com que todos os
homens, independentemente de nacionalidade, língua ou etnia sejam alvos da ira de Deus e
igualmente sujeitos à condenação no último dia.

A única chance de salvação


Para Paulo existe apenas uma chance de salvação. Assim como o náufrago só consegue sobreviver ao afogamento
agarrando-se em algo que flutue, o homem perdido no mar de maldades e impurezas sobrevive quando se agarra
exclusivamente à graça salvadora de Deus revelada por meio de Jesus Cristo. Esse processo é muito simples para o
homem. Basta invocar o nome do Senhor para ser salvo 198 . O homem precisa dei9xar de ser autossuficiente e se
reconhecer estritamente dependente da misericórdia divina.

O lado de Deus, entretanto é bem mais complexo. A justiça divina não pode deixar de ser satisfeita. Por essa razão, Jesus,
que não tinha pecados, morreu pelos nossos pecados para satisfazer a ira de Deus. 199 Deus o ressuscitou dos mortos200 e,
dessa forma, ele veio a ser o salvador de todos quanto nele creem. No final dos tempos ele voltará para tomar consigo
aqueles que nele crerem e perseverarem na fé apesar das tentações e das perseguições.

Fé e obras
Nesse panorama onde sobressaem a incompetência humana e a misericórdia divina, a salvação do homem se faz
exclusivamente pela graça de Deus. Nenhum ser humano poderá alegar qualquer mérito diante do juízo. O mérito é
exclusivamente de Jesus Cristo: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus;”
201
não vem das obras, para que ninguém se glorie.”

5. Salvação e perdição nos escritos joaninos


Os objetivos do autor
O autor do quarto evangelho declara para a posteridade os objetivos que tinha em mente quando elaborou seu escrito:
“Jesus, na verdade, operou na presença de seus discípulos ainda muitos outros sinais que não estão escritos neste livro;
estes, porém, estão escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu
nome. ” 202

Ele declara que seu objetivo é reunir argumentos que convençam o leitor de que Jesus é Cristo (ὁ Χριστὸς) e o Filho de
Deus (ὁ υἱὸς τοῦ θεοῦ). Declara ainda que deseja que o leitor, crendo, receba vida no nome dele. Não informa quando
nem como essa vida será recebida, mas de certa forma, temos aqui, um programa mínimo de salvação. Um fato a ser
destacado o nome υἱὸς nos escritos joaninos é usado exclusivamente para Cristo. Quando eles nos chamam de filhos de
Deus usam a palavra tekna (τέκνα θεοῦ).

197
Romanos 2.3
198
Romanos 10.13
199
1 Coríntios 15.3
200
Atos 13,37
201
Efésios 2.8,9
202
João 20.30,31

56
Diálogos a respeito da vida
Este evangelho não está muito envolvido com a proclamação de um plano de salvação e nem mesmo com a elaboração
de uma doutrina sobre o assunto, mas a observação de alguns diálogos nele contidos pode nos ajudar a entender o
pensamento do autor.

No capítulo 3 do quarto evangelho encontramos a descrição do diálogo de Nicodemos, um mestre e príncipe dos fariseus,
com Jesus. Ele, como pessoa versada em religião, percebe e confessa sua crença na procedência divina da pessoa e dos
atos de Jesus. Este desvia o assunto para outro campo e fala do novo nascimento como condição para ser admitido no
reino de Deus. Como seu interlocutor não entendeu o sentido de seu ensino, Jesus explica que não está falando do
nascimento físico e sim do espiritual. Ele precisava nascer da água (palavra de Deus) e do espírito. Vemos que, no
entendimento do autor, salvação não depende da nacionalidade ou da etnia ou de mérito do interessado.

A fórmula básica para a salvação é embutida nesse diálogo: “Porque Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu
Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna. Porque Deus enviou o seu Filho
ao mundo, não para que julgasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele.” 203 Aqui se vê que dois futuros
estão a escolha do homem: perecer ou ter vida eterna. A escolha da vida eterna depende apenas de crer no Filho unigênito
de Deus. Informa ainda que o objetivo da vinda dele ao mundo é a salvação do mundo inteiro e não apenas dos judeus.

A seguir, no capítulo 4, relata-se o diálogo do Mestre com uma mulher samaritana. Fica claro, mais uma vez, que os fatos
de ser mulher, de não pertencer ao povo eleito e, mesmo, de não ter uma vida eticamente recomendável, não são
empecilhos para receber a graça de Deus. Esse é o único relato onde aparece a palavra salvação (σωτηρία) neste
evangelho. Esses exemplos são suficientes para que concluamos que o quarto evangelho nos fala de salvação
exclusivamente pela graça e por meio da fé, da mesma forma que nos escritos paulinos.

6. Salvação e perdição no Apocalipse de João


No apocalipse de João ocorre uma volta às origens. O triângulo opressor, oprimido, libertador está mais uma vez ativo.
Aqui salvação volta a ser sinônimo de libertação. A salvação no apocalipse é ofertada apenas àqueles que já
experimentaram a graça divina revelada em Jesus Cristo e receberam o seu sinal. A única condição que devem cumprir é
perseverar até o fim. Mas, aqui a salvação não se refere ao destino escatológico após a morte e sim à sobrevivência em
meio a perseguições e provações.

O apocalipse é endereçado às igrejas da província da Ásia cujos membros estavam sendo ferozmente perseguido pelas
autoridades romanas porque se recusavam a prestar culto ao “divino” imperador. As sete cartas que lhes foram dirigidas
discorrem sobre vários aspectos da perseguição e sobre como os perseguidos estavam reagindo.

Duas narrativas de libertação são apresentadas. Na primeira, Deus, na sua soberania absoluta, utiliza primeiramente as
forças da natureza para abater o vigor do opressor. Depois, recruta os inimigos naturais dele que, vindos do oriente,
cruzam o rio Eufrates e promovem uma guerra de destruição final.

Na segunda, o mesmo panorama é apresentado em um contexto maior. Além da guerra que se passa na terra, outra ocorre
no céu. O inimigo aqui é satanás que comanda seus exércitos e se alia aos poderes terrenos representados pela besta e o
falso profeta; seu objetivo é aniquilar os escolhidos do cordeiro de Deus.

A sequência inicial de eventos repete a da primeira narrativa. Forças da natureza e inimigos humanos são recrutados por
Deus para enfraquecer e destruir os inimigos humanos. No clímax final, o Cristo vitorioso, intitulado rei dos reis e senhor
dos senhores, retorna dos céus, montado em um cavalo branco, comandando um grande exército e derrota os exércitos
satânicos. Satanás e seu anjos são derrotados na batalha final e, porque são imortais e não podem ser aniquilados como
os humanos, são lançados no lago de fogo onde passarão toda a eternidade; Céus e terra renovados são preparados para a
habitação dos justos que estarão livres de todos os inimigos, inclusive da morte. Aí eles viverão para sempre na presença
de seu Senhor e Libertador.

203
João 3.16,17

57
Paracletologia – a ação continuada do Espírito Santo
1. Ação do Espírito no Antigo Testamento
A atuação do Espírito de Deus é mencionada muitas vezes no Antigo Testamento. Sua primeira participação se deu no
ato da criação204. No livro do Êxodo, o espírito de sabedoria é concedido a pessoas especialmente escolhidas com o
objetivo de habilitá-las para diversas tarefas específicas tais como: confeccionar as vestes dos sacerdotes, executar todos
os ofícios de artesanato em ouro, cobre, pedras e tecidos preciosos. Habilitava-os também a contribuir generosamente
com seus próprios bens para a construção do tabernáculo. O espírito da sabedoria funciona aqui como um motor que é
acionado em uma ocasião específica para permitir que seja atingido um objetivo determinado. É, portanto, uma ação de
caráter limitado e temporário. Logo que o objetivo é atingido o espírito para de agir.

Um episódio bastante ilustrativo é narrado no livro de Números 205. Moisés estava assoberbado com o grande encargo de
ser juiz das questões de todo o povo. Queixa-se ao Senhor declarando que não tem condições de fazer todo o trabalho
sozinho. Deus lhe responde instruindo a escolher setenta homens que seriam seus colaboradores: " Disse então o Senhor
a Moisés: Ajunta-me setenta homens dos anciãos de Israel, que sabes serem os anciãos do povo e seus oficiais; e os trarás
perante a tenda da revelação, para que estejam ali contigo. Então descerei e ali falarei contigo, e tirarei do espírito que
está sobre ti, e o porei sobre eles; e contigo levarão eles o peso do povo para que tu não o leves só." Mais uma vez, o
espírito de sabedoria é distribuído a seres humanos para habilitá-los a cumprir uma missão específica. A missão, nesse
caso, é cooperar na administração das necessidades do povo.

No Deuteronômio encontramos o relato da transferência do comando do povo de Moisés para Josué: " Ora, Josué, filho
de Num, foi cheio do espírito de sabedoria, porquanto Moisés lhe tinha imposto as mãos; assim se filhos de Israel lhe
obedeceram, e fizeram como o Senhor ordenara a Moisés. 206" Nessa passagem temos uma informação adicional. O
espírito pode ser transferido de uma pessoa para outra pelo ato de imposição de mãos. Esse simples ato, da mesma forma
que a unção feita com azeite de oliva, representa a transferência do espírito.

Com o passar do tempo, firmou-se na comunidade israelita que todas as funções importantes nas quais um ser humano
era investido só poderiam ser exercidas por pessoas que recebessem uma habilitação especial decorrente da ação do
espírito. Isso acontecia especialmente aos líderes do povo, os sacerdotes e os reis.

Em I Samuel encontramos a narrativa da escolha de Saul para ser o primeiro rei em Israel. Deus usou o profeta Samuel
para revelar sua vontade e este o ungiu: " Ao virar Saul as costas para se apartar de Samuel, Deus lhe mudou o coração
em outro; e todos esses sinais aconteceram naquele mesmo dia. Quando eles iam chegando ao outeiro, eis que um grupo
de profetas lhes saiu ao encontro; e o Espírito de Deus se apoderou de Saul, e ele profetizou no meio deles."207
Mais tarde, após a rejeição de Saul, Davi foi escolhido para ser o novo rei. O mesmo autor narra as consequências para
Saul: " Então Samuel tomou o vaso de azeite, e o ungiu no meio de seus irmãos; e daquele dia em diante o Espírito do
Senhor se apoderou de Davi. Depois Samuel se levantou, e foi para Ramá. Ora, o Espírito do Senhor retirou-se de Saul,
e o atormentava um espírito maligno da parte do Senhor."208

Mais uma vez se observa que a presença do espírito de Deus na vida do homem perdura durante o tempo em que ele está
envolvido em uma missão da qual o próprio Deus o encarregou. Terminada a missão o espírito se retira e passa a outro
que o sucede. Observa-se também uma associação que se consagrou com o tempo. Aquele que tem o espírito profetiza: "
Não extingais o Espírito; não desprezeis as profecias,"238

204
Gênesis 1.2
205
Números 11.10-17
206
Deuteronômio 34.9
207
I Samuel 10.9,10
208
I Samuel 16.13,14

58
2. Espírito e Profecia
A religião profética do Antigo Testamento é uma religião de continuada atuação do espírito. Aquele sobre quem vem o
espírito profetiza. A profecia controlada pelo espírito é confirmada pela realização de sinais sobrenaturais na vida
daqueles a quem o profeta ministra. Diferentemente da profecia dos povos vizinhos onde ocorria o êxtase, isso é, o
profeta se projetava além dos limites físicos de sua personalidade, na profecia bíblica ocorria o entusiasmo. O espírito de
Deus entrava na personalidade e a controlava integralmente.

Fato bastante elucidativo ocorreu no processo em que Elias concluiu seu ministério profético e foi substituído por seu
discípulo Eliseu: " Havendo eles passado, Elias disse a Eliseu: Pede-me o que queres que eu te faça, antes que seja tomado
de ti. E disse Eliseu: Peço-te que haja sobre mim dobrada porção de teu espírito. Respondeu Elias: Coisa difícil pediste.
Todavia, se me vires quando for tomado de ti, assim se te fará; porém, se não, não se fará." 239

Os profetas bíblicos eram pessoas totalmente controladas pelo espírito. Nada faziam por inciativa própria e caso se
recusassem a obedecer eram responsabilizados por sua rebeldia. O profeta Ezequiel relata a instrução que havia recebido
do Senhor: " Filho do homem, eu te dei por atalaia sobre a casa de Israel; quando ouvires uma palavra da minha boca, os
avisarás da minha parte. Quando eu disser ao ímpio: Certamente morrerás; se não o avisares, nem falares para avisar o
ímpio acerca do seu mau caminho, a fim de salvares a sua vida, aquele ímpio morrerá na sua iniquidade; mas o seu sangue,
da tua mão o requererei: Contudo se tu avisares o ímpio, e ele não se converter da sua impiedade e do seu mau caminho,
ele morrerá na sua iniquidade; mas tu livraste a tua alma."209

A contraprova de tudo quanto foi dito é a malfadada história do profeta Jonas que, divinamente convocado a pregar aos
ninivitas, tentou esquivar-se de todas as formas possíveis e imagináveis. Entretanto, seus esforços não lograram êxito.
Por mais que não quisesse acabou fazendo o que o espírito havia determinado. Curiosamente, sentiu-se frustrado com o
sucesso obtido em sua pregação. A lição que Jonas nos deixou é de que a vontade do espírito sempre se realiza na vida
daqueles profetas que ele chama e habilita. É quase uma predestinação.

3. O Espírito na apocalíptica judaica


A apocalíptica judaica, como já foi dito, desenvolveu-se em um período de recesso da profecia. Os autores apocalípticos
se restringiram a dar novas interpretações às profecias dos tempos antigos e a descobrir nelas significados ocultos.
Observa-se que Daniel, embora tenha sido posteriormente identificado como profeta, nunca alegou ter recebido qualquer
revelação profética do Senhor, com fizeram seus antecessores Isaías, Jeremias ou Ezequiel. Ele se restringia a interpretar
os sonhos que outros tinham.

Enquanto na profecia sobressai a palavra de Deus comunicada aos homens por meio de um profeta que a ouve, na
apocalíptica o elemento chave é uma visão simbólica que precisa ser interpretada. Aqui não age o espírito da profecia e
sim o espírito da sabedoria.

De fato, a apocalíptica judaica não nos mostra Deus se comunicando com o homem por meio de seu Espírito. O quadro
aqui é mais complicado. Quando Deus quer comunicar seus desígnios ao homem mostra-lhe uma visão cheia de símbolos
enigmáticos. A visão é tão complicada e estonteante que aquele que a recebe não consegue perceber o sentido do que lhe
é apresentado, fica totalmente confuso.

A compreensão só é conseguida quando um ser celestial, da maior parte das hipóteses um anjo, coparticipante da sabedoria
divina, vem a ele e explica-lhe claramente o que está vendo. Cada signo tem seu sentido explicado com detalhes ao
vidente. A apocalíptica furta do Espírito a função de esclarecer o crente a respeito da vontade do Pai para a sua vida.
Deixa-a ao encargo de intermediários menores estimulando o culto às divindades inferiores.

209
Ezequiel 3.17-19.

59
4. O Espírito no ministério de Jesus
A melhor apresentação da maneira como o Espírito de Deus agiu na vida de Jesus de Nazaré nos é dada pelo evangelista
que responde pelo nome de Lucas. Seu evangelho é totalmente peculiar. Provavelmente porque ele não era judeu, e sim
sírio, segundo a tradição, ele não valoriza os formatos usados pelos os autores judeus para apresentar a obra do Mestre.

Ele não vê em Jesus o descendente de Davi ungido para restaurar a autonomia política de Israel. Esse é um assunto que
interessa exclusivamente a judeus. Ele também não vê um Jesus um segundo personagem que seria a reedição de Moisés.
Moisés era o libertador de Israel e não dos sírios.

Ele encontra em Jesus alguém que vem a esse mundo para divulgar uma mensagem de natureza divina, isto é um profeta.
E o profeta é alguém motivado e movido estritamente pelo Espírito. O evangelista Marcos descreve o batismo de Jesus
por João como uma experiência característica de chamada para uma missão profética: " E aconteceu naqueles dias que
veio Jesus de Nazaré da Galileia, e foi batizado por João no Jordão. E logo, quando saía da água, viu os céus se abrirem,
e o Espírito, qual pomba, a descer sobre ele; e ouviu-se dos céus esta voz: Tu és meu Filho amado; em ti me comprazo."
210

Estão aí bem caracterizados os elementos da investidura do profeta. Primeiramente, o espírito do Senhor vem sobre ele.
Em segundo lugar, esse fato lhe é apresentado na forma de uma visão (visão de chamada). Finalmente ele ouve uma
declaração de comissionamento. O particular, no caso de Jesus, está em que ele não é comissionado para uma missão
temporária. O verbo usado no presente do indicativo (Tu és meu filho) nos informa que ele foi investido em uma atividade
que nunca cessaria. Quem é filho nunca deixa de ser filho. Portanto, o espírito que veio a Jesus nunca se retiraria dele,
como ocorrera com os antigos profetas. Veio para ficar sempre com ele.

Esse espírito se manifestou na vida de Jesus de várias formas. Ele tinha revelações e, eventualmente, mostrava
conhecimento de fatos ocultos aos demais242. Ele curava doenças e, portanto, perdoava pecados. Ele expulsava espíritos
impuros das vidas dos atormentados.

Jesus não apenas agia no poder do Espírito, mas, também podia transferir esse poder, pelo menos em parte, e
temporariamente, aos seus seguidores 211 . No término de seu evangelho, João registra o que ficou conhecido como
pentecoste Joanino: " Disse-lhes, então, Jesus segunda vez: Paz seja convosco; assim como o Pai me enviou, também eu
vos envio a vós. E havendo dito isso, assoprou sobre eles, e disse-lhes: Recebei o Espírito Santo."244

O evangelista Lucas descreve todos os atos importantes de Jesus como sendo executados sob exclusivo controle do
Espírito Santo. Jesus, batizado por João, recebe a plenitude do Espírito. Posteriormente ele é direcionado pelo Espírito ao
deserto onde, no curso de 40 dias de jejum, é tentado pelo diabo. Mais tarde, Jesus, no poder do Espírito regressa à Galileia
onde incia seu ministério. Essa descrição nos passa uma visão de que Jesus não possuía autonomia de decisão, mas era
totalmente controlado pelo Espírito.

5. O Espírito nos Atos dos Apóstolos


O livro de Atos dos Apóstolos enfatiza a atuação do Espírito Santo por meio da igreja como conjunto de pessoas
convertidas e por meio de cada crente individualmente. Muitas vezes já foi sugerido que o nome desse livro deveria ser
mudado para Atos do Espírito Santo. Nele, o Espírito Santo é o líder inconteste de todas as iniciativas e realizações dos
cristãos. Ele escolhe as pessoas, ele as capacita, ele dá-lhes missões muito bem determinadas, ele as corrige quando se
tornam rebeldes e as premia quando são obedientes. Nada se faz sem sua iniciativa ou sem sua orientação. Ele é o líder
absoluto na vida da igreja e de cada crente.

210
Marcos 1.9-11, 242
211
Mateus 10.12 244

60
O livro de Atos começa com uma recomendação de Jesus para que não se ausentassem de Jerusalém até que tivessem
recebido a habilitação (batismo) dada pelo Espírito Santo 245. Só depois deveriam sair para testemunhar. Compreende-se
da recomendação que a missão de testemunhar não teria sucesso a menos que fosse movida pelo Espírito.

O dia prometido chegou. Na comemoração da festa de pentecostes, quando Jerusalém estava cheia de judeus vindos dos
mais diferentes recantos do Império Romano e até de fora dele. O Eunuco, mordomo mor de Candace, rainha dos Etíopes,
vinha de fora das fronteiras imperiais.

Os apóstolos reunidos foram subitamente batizados pelo Espírito. Esse batismo os habilitou a testemunhar com eloquência
nunca vista antes e a administrar as graças da cura, do exorcismo e da libertação. Além disso, os ouvintes foram
impactados por um sistema de tradução simultânea que os habilitava a ouvir a mensagem em suas próprias línguas sem
necessitar de recurso a qualquer personagem celestial para fazer a interpretação. Diante da exposição muitos se
converteram. O dom de línguas foi posto a serviço do dom da profecia.

O Espírito se apresenta também na inclusão de outras etnias no plano de salvação. Ele se manifesta na inclusão dos
samaritanos evangelizados por Filipe. Da mesma forma, ele assume o comando na evangelização do primeiro gentio
prosélito do Judaísmo. Cornélio de Cesareia. Divinamente instruído, Cornélio manda chamar Pedro que está na vizinha
cidade de Jope. Pedro, depois de receber um tratamento de choque pela tríplice visão de um lençol repleto de animais
imundos que deveriam ser consumidos por ele, se convence a entrar na casa de um gentio. Começa a pregar apresentando
o plano de salvação, mas é intempestivamente interrompido pela manifestação do Espírito. Mais tarde, em Jerusalém, ele
testemunha que foi motivado a batizar aqueles novos cristãos porque estava convencido de que eles compartilhavam do
mesmo Espírito que os judeus.

Na obra missionária, na igreja de Antioquia da Síria, mais uma vez a iniciativa é do Espírito. O Espírito Seleciona os
obreiros, determina suas tarefas, os acompanha na viagem e lhes concede vitória nas lutas contra os opositores.

A segunda viagem é uma valiosa contraprova dessa atuação. Aqui, a iniciativa não é do Espírito, mas de homens. Paulo
e Barnabé resolvem visitar as igrejas já estabelecidas e escolhem a rota da viagem. O Espírito estava calado. De início,
tudo deu errado. Os missionários se desentenderam por cauda de seu acompanhante mais jovem, João Marcos, e acabaram
se separando.

O prosseguimento da viagem foi um desastre. Paulo se fez acompanhar de Silas, outro colaborador. Cada inciativa tomada
pelos missionários era imediata e totalmente contrariada pelo Espírito. Não conseguiram ir a nenhuma cidade que haviam
projetado. Todas as portas estavam fechadas diante deles. Esse clima só mudou quando chegaram à Trôade, as margens
do Mediterrâneo. Uma visão, dada pelo Espírito, os orienta a cruzar o mar e entrar no território da Macedônia.

Quando eles se dispuseram a obedecer a orientação do Espírito tudo mudou. As vitórias vieram e foram absolutas. Muitas
personalidades importantes se converteram e abriram as portas de seus lares para abrigar os missionários e implantar
igrejas. Dessa forma, o autor de Atos dos Apóstolos nos apresenta um ministério do Espírito Santo que por meio da obra
missionária se estende até os confins da terra.

Paulo prega um evangelho Cristocêntrico. Esse fato não o impede de reconhecer a importância da atuação do Espírito na
vida do cristão. Um episódio narrado em Atos dos Apóstolos mostra bem a compreensão de Paulo sobre a obra do Espírito:

" E sucedeu que, enquanto Apolo estava em Corinto, Paulo tendo atravessado as regiões mais altas, chegou a Éfeso e,
achando ali alguns discípulos, perguntou-lhes: Recebestes vós o Espírito Santo quando crestes? Responderam-lhe eles:
Não, nem sequer ouvimos que haja Espírito Santo. Tornou-lhes ele: Em que fostes batizados então? E eles disseram: No
batismo de João. Mas Paulo respondeu: João administrou o batismo do arrependimento, dizendo ao povo que cresse
naquele que após ele havia de vir, isto é, em Jesus. Quando ouviram isso, foram batizados em nome do Senhor Jesus.
Havendo-lhes Paulo imposto as mãos, veio sobre eles o Espírito Santo, e falavam em línguas e profetizavam." 212

Alguns autores modernos nos declaram que não nos é possível compatibilizar totalmente o perfil de Paulo apresentado
nos Atos dos Apóstolos com aquele apresentado nas epístolas. Temos de concordar que a tarefa é difícil. A dificuldade,

212
Atos 19.1-6.

61
entretanto, não nos impede, de admitir que esse episódio foi fixado na literatura bíblica porque pertence a uma tradição
confiável.

Ele nos informa que, para Paulo, o Espírito Santo começa a participar na vida do crente no momento da conversão.
Diferentemente de algumas correntes teológicas modernas que ensinam que o Espírito é a segunda bênção na vida do
crente, Paulo entendia que a habitação do Espírito é simultânea e indissociável com o ato de crer.

Naquele momento em que foram esclarecidos pela palavra de Paulo a obra se completou, foram batizados e,
imediatamente, pela imposição das mãos do apóstolo, receberam o dom do Espírito. Essa recepção foi confirmada aos
que testemunhavam dela pela distribuição dos dons de profecia e de línguas.

Para Paulo, a atuação do Espírito era uma realidade sempre presente em sua vida: " Agora, eis que eu, constrangido no
meu espírito, vou a Jerusalém, não sabendo o que ali acontecerá, senão o que o Espírito Santo me testifica, de cidade em
cidade, dizendo que me esperam prisões e tribulações."213

O Espírito tem ainda uma atuação predominante na vida das igrejas nomeando líderes que cuidam delas: "Cuidai, pois de
vós mesmos e de todo o rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para apascentardes a igreja de Deus,
que ele adquiriu com seu próprio sangue."214

6. O Espírito nas epístolas de Paulo


Em suas epístolas, Paulo apresenta um tratamento extenso sobre a administração dos dons do Espírito na igreja. Esse
assunto é focalizado muito especialmente na primeira epístola aos cristãos de Corinto porque os crentes daquela cidade
estavam tendo dificuldades para entender como os dons do espírito deveriam ser utilizados em sua liturgia.

O clima em Corinto não era nada agradável. Os crentes se desentendiam e entravam em conflito porque uns se julgavam
mais espirituais que os outros na medida que acreditavam possuir mais do Espírito Santo e terem sido agraciados com
maior número de dons ou com dons mais importantes.

Esse assunto é tratado de maneira muito específica nos capítulos 12, 13 e 14 dessa epístola. Ali, Paulo nos deixou
recomendações lapidares que faremos bem em observar;

1. Inicialmente (capítulo 11) Paulo explica que o Espírito, a seu próprio critério, distribui dons diversos aos crentes
com o objetivo de habilitá-los a trabalhar em conjunto, complementando-se mutuamente e visando o bem
comum. Um só e o mesmo Espírito opera todas estas coisas, distribuindo particularmente a cada um como quer.

2. A seguir, usando como ilustração a diversidade de atividades dos membros de um corpo, Paulo mostra que no
corpo (de Cristo) nada existe que seja inútil ou de categoria inferior. Mesmo aqueles membros ou atividade que
parecem sem importância são essenciais à manutenção, ao crescimento e ao desenvolvimento do corpo como
um todo. Não há, portanto, justificativa para tentar estabelecer hierarquias de dons ou de funções na igreja.
Ninguém é mais importante do que ninguém.

3. No próximo tópico (capítulo 12) Paulo nos mostra o caráter transitório dos dons espirituais. Com exceção apenas
do amor, que jamais acaba, todos os outros dons são atribuídos aos homens para que possam ser bem usados em
ocasiões específicas. O amor é um dom permanente. Todos os outros são transitórios e serão aniquilados quando
os crentes atingirem o perfeito estado de maturidade espiritual.

4. Complementa (capítulo 14) estabelecendo regras para que o uso dos dons espirituais na igreja seja harmonioso
e produtivo. A primeira delas estabelece que todos os dons espirituais devem contribuir para a edificação da
igreja. O uso dos dons espirituais para exaltar individualidades ou para mero diletantismo está vedado. A segunda
estabelece que se observe igualdade de oportunidades para que todos exercitem seus dons, respeitada a regra

213
Atos 20.22,23
214
Atos 20.20

62
anterior. A terceira estabelece que deve haver uma harmonização perfeita no uso de dons de forma que tudo,
além de contribuir para a edificação espiritual da igreja, também se faça com decência e ordem.

Paulo aborda o mesmo tema na epístola aos romanos: " De modo que, tendo diferentes dons segundo a graça que nos foi
dada, se é profecia, seja ela segundo a medida da fé; se é ministério, seja em ministrar; se é ensinar, haja dedicação ao
ensino; ou que exorta, use esse dom em exortar; o que reparte, faça-o com liberalidade; o que preside, com zelo; o que
usa de misericórdia, com alegria."

O ensinamento subjacente a essas recomendações é que o homem é servo e os dons espirituais que recebe devem ser
usados exclusivamente para servir e beneficiar seus conservos. Ele não deve esperar promoção ou honra pessoal por causa
deles.

63

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