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2. INTRODUÇÃO AO EVANGELHO SEGUNDO MARCOS1

Prof. Pe. Claudio Roberto Buss,scj

PARA USO INTERNO DOS ESTUDANTES DA FACULDADE DEHONIANA – ANO ACADÊMICO 2021.

2.1. MARCOS NA TRADIÇÃO DA IGREJA


O Evangelho de Marcos foi pouco valorizado nos primeiros séculos do cristianismo,
mesmo que – redigido primeiro – era considerado um resumo de Mateus; Agostinho fala
da expressão “breviator Matthaei”. O texto de Mateus, muito mais lido e comentado, era
considerado o evangelho da Igreja. Até a época moderna, o evangelho de Marcos era
como que um texto secundário, era considerado um evangelho pouco teológico, pouco
estudado sob o ponto de vista literário.
As vozes que o consideram são tardias. Somente ao início do século XX – graças
sobretudo a teologia protestante – foi individuado em Marcos um núcleo teológico
fundamental, que William Wrede expressou com a locução “segredo messiânico”. Depois
disso começaram numerosos estudos sobre questões da vivacidade literária em Marcos e
sua forte e densa teologia. Na verdade, é um evangelho fascinante e, ao mesmo tempo,
não dá trégua ao leitor. Como dizia Nietzsche, um livro para ser interessante deve ser
como um martelo que racha as pedras. O livro de Marcos é isto: não foi escrito para
pessoas que procuram pacificações a bom mercado: agita, sacode, coloca-nos sempre em
caminho.
2.2. QUEM É MARCOS
Analisando a tradição que vem dos escritos, temos presente que ao início os quatro
evangelhos se apresentavam sem nenhum título. Ainda mais: até Marcos, o termo
evangelho não era evocado como sendo um livro; o vocábulo era utilizado somente para
indicar o nascimento de um imperador. O nosso autor escreve seguramente durante o I
século, mas a denominação Kata Markon/ segundo Marcos será necessário esperar o II
século, quando aparece o título que nos fala do autor. No NT somente as cartas paulinas
são redigidas com o nome de Paulo; os evangelhos não citam o nome do autor. Quem é
então Marcos?
2.2.1 O Testemunho dos Padres da Igreja
O primeiro testemunho sobre o segundo evangelho se encontra em Papias de
Gerápolis no ano 130 d.C.; ele afirma que Marcos não tinha pessoalmente seguido o
Senhor, mas havia escrito um evangelho como intérprete de Pedro; os eventos e as
palavras ali presentes seriam, portanto, o fruto da experiência do apóstolo Pedro.
Testemunho foi transmitido por Eusébio de Cesaréia na sua História Eclesiástica:

1
Cf. Texto adaptado a partir de: L.A. FERNANDES; M. GRENZER, Evangelho segundo Marcos. Eleição,
partilha e amor. São Paulo: Paulinas, 2012; I. R. REIMER, Compaixão, cruz e esperança. Teologia de
Marcos. São Paulo: Paulinas, 2012. M. GRILLI, Paradosso e Mistero. Il Vangelo di Marco. Bologna:
Centro Editoriale Dehoniano, 2012.
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E eis o que dizia o antigo: Marcos, intérprete de Pedro, escreveu com exatidão, mas
sem ordem, tudo aquilo que lembrava a respeito das palavras e atos do Senhor. Pois,
embora não tivesse ouvido nem acompanhado o Senhor, mais tarde acompanhou a Pedro.
Este dava seus ensinamentos conforme às necessidades, mas sem fazer uma síntese das
palavras do Senhor. Assim, Marcos não errou escrevendo conforme se lembrava. Seu
propósito, com efeito, não era senão o de nada deixar de lado do que tinha ouvido, e nada
falsear naquilo que reportava.
Segundo este testemunho, Marcos figura como discípulo e intérprete de Pedro, que
evangelizava adaptando o ensinamento às várias necessidades dos seus destinatários.
Com isso, a ordem dos fatos podia não ser ordenada, mas respeitava a ordem explícita
que Jesus deixava de evangelizar (cf. Mc 16,29 e paralelos). Aos destinatários, anunciava-
se a boa-nova segundo as exigências de quem ouve e não de quem fala. Esta “falta de
ordem” garante a autenticidade da pregação e atesta a ligação de Marcos com a tradição
apostólica. Lc 1,1-4 confirma este dado, pois atesta o esforço empreendido pelo
evangelista para assegurar este vínculo essencial.
Justino fala do Evangelho segundo Marcos como sendo um testemunho sobre a
“memória de Pedro”.
Irineu de Lião (180 d.C.) diz que, “depois da morte [de Pedro e de Paulo], Marcos, o
discípulo e intérprete de Pedro, nos transmitiu igualmente por escrito a pregação de
Pedro”.
Atestam este dado também Clemente e Orígenes: “O segundo é o Evangelho segundo
Marcos, que o escreveu conforme as narrações de Pedro, o qual o nomeia seu filho na
carta católica (cf. 1Pd 5,13)”.
São Jerônimo sintetiza as informações sobre a compilação do Evangelho segundo
Marcos como sendo a obra do intérprete de Pedro, com uma fórmula simples: “O
evangelho que Pedro anunciava, Marcos escrevia”.
Ainda segundo a tradição, Marcos teria evangelizado e fundado uma comunidade
cristã no Egito, em Alexandria, onde foi hostilizado e martirizado. No século IX, seu
corpo teria sido levado para Veneza.
Em resumo, como a maioria dos antigos escritores cristãos, o autor do segundo
evangelho não teve a intenção de “assinar” a sua obra. Marcos aparece associado a este
evangelho somente a partir do século II d.C., mas isto não invalida a aceitação dessa
tradição quanto à sua autoria.
Se identificou este Marcos com João Marcos de Jerusalém, do qual nos fala At 12,12:
discípulo de Paulo que, depois de uma discussão, permanece somente com Barnabé.
Alguns autores colocam em dúvida esta identificação, denunciando a sua finalidade
apologética, como por exemplo, Rudolf Pesch. Todavia, seria de maior efeito atribuir o
texto a um dos Doze ou ao menos a um dos discípulos mais conhecidos. Neste sentido se
pode reter alguma verossimilhança do personagem Marcos como autor do evangelho.
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De diversos indícios, se pode deduzir que foi um judeu-cristão de origem


jerosolimitana, que vive e escreveu em Roma: parece conhecer muito bem a cidade de
Jerusalém, e menos a Palestina e a explicação de diversos usos judaicos, confirma a tese
que os seus destinatários foram os pagãos-cristãos, que conheciam o grego. Este dado não
deve nos maravilhar, porque já Paulo, na Carta aos Romanos 16, nos informa que em
Roma existiam diversas igrejas domésticas cristãs.
*** Dados Escriturísticos:
Alguns dados sobre Marcos: sabe-se que a mãe de Marcos se chamava Maria, em cuja
casa, situada em Jerusalém, se fazia oração; local para o qual Pedro se dirigiu após ter
sido libertado da prisão (At 12,12).
A tradição também identificou esta casa como sendo a mesma em que Jesus realizou
a Última Ceia com os seus discípulos (cf. Mc 14,12-21). Esta casa pode ser a mesma que
ficou conhecida como Cenáculo, local da manifestação do Espírito Santo no dia de
Pentecostes (cf. At 1,12-13; 2,1).
João Marcos foi companheiro na primeira missão de Barnabé e Paulo, enviados pela
comunidade cristã de Antioquia, onde os seguidores de Jesus foram chamados, pela
primeira vez, de cristãos (cf. At 11,26). Não se sabe por qual motivo, mas João Marcos
abandonou a missão logo no seu primeiro momento, após chegarem a Perge, e regressou
para a sua casa em Jerusalém (cf. At 13,13).
Após a reunião eclesial que se deu em Jerusalém, para tratar da questão da circuncisão
dos cristãos oriundos do paganismo, Barnabé quis, novamente, levar João cognominado
Marcos consigo, mas Paulo se opôs devido à sua atitude durante a primeira missão (cf.
At 15,37-38). Isso se tornou motivo de uma forte contenda entre Paulo e Barnabé, que se
separaram. Barnabé tomou Marcos consigo, embarcando para Chipre, enquanto Paulo
tomou Silas consigo e partiu (cf. At 15,39-40). Uma notícia posterior atesta que Marcos
era primo de Barnabé. Isso explicaria o seu interesse e a sua preocupação em leva-lo para
a missão: Saúdam-vos Aristarco, meu companheiro de prisão, e Marcos, primo de
Barnabé, a respeito de quem já vos dei instruções: se ele aparecer por aí, recebei-o (Cl
4,10).
Barnabé continuou apostando em Marcos, mesmo após a sua primeira e falida missão
ao lado de Paulo. Todavia, Marcos reapareceu ao lado de Paulo durante o seu primeiro
cativeiro romano (cf. Cl 4,10; Fm 24), e o apóstolo dos gentios reclamou a sua ajuda
pouco antes de morrer (cf. 2Tm 4,11). Ao que tudo indica, porém, Marcos se saiu bem no
ministério e readquiriu a estima de Paulo, que o solicita e o considera um importante
colaborador. Por tais elementos, Marcos esteve ao lado tanto de Pedro como de Paulo.
Aceitar Marcos como autor do segundo evangelho canônico, de algum modo, permite
dizer que grande parte do material seja oriundo da pregação de Pedro.
Além desses testemunhos, Mc 14,51-52 oferece um particular: Um jovem o seguia, e
a sua roupa era só um lençol enrolado no corpo. E foram agarrá-lo. Ele, porém, deixando
o lençol, fugiu nu. Poder-se-ia pensar que essa referência seja uma marca deixada pelo
próprio evangelista?
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2.2.2. Destinatários, lugar e data


Destinatários
O segundo evangelho parece que foi escrito para convertidos pouco familiarizados
com o ambiente e com as tradições judaicas. A análise de alguns textos poderia confirmar
este parecer, pois, ao citar certos aramaísmos e costumes judaicos, o autor se preocupou
em dar explicações para os mesmos:
• Boanérges, isto é, filhos do trovão (Mc 3,17).
• Talítha Kum, o que significa: “Menina, eu te digo, levanta-te” (Mc 5,41).
• Corban, isto é, oferta sagrada (Mc 7,11).
• Effatha, que quer dizer: “Abre-te”! (Mc 7,34).
• Abba, (Pai)! (Mc 14,36).
• Gólgota, que, traduzindo, quer dizer: “O lugar do crânio” (Mc 15,22).
• Eloí, Eloí, lemá sabactâni, que, traduzindo, significa: “Deus meu, Deus meu,
por que me abandonastes? ” (Mc 15,34).
• Pois os fariseus e todos os judeus, presos à tradição dos antepassados, não
comem se não lavam as mãos até o cotovelo, e, ao voltarem do comércio, se
não se lavam, não comem, e muito outros costumes que observam por
tradição: lavar copos, jarros, vasos de cobre (Mc 7,3-4).
• No primeiro dia dos ázimos, quando se imolava a Páscoa (Mc 14,12).
• E, tendo chegado à tarde, sendo o dia da Preparação, isto é, a véspera de
sábado (Mc 15,42).

O autor do segundo evangelho canônico parece ser bem familiar ao apóstolo Pedro.
No episódio da figueira, Pedro protagoniza a fala: Pedro se lembrou e disse (Mc 11,21);
já, em Mateus, o mesmo episódio é protagonizado pelos discípulos (Mt 21,20). Sobre a
grandeza e a beleza do Templo, a pergunta admirada parece partir de Pedro (Mc 13,3-14),
enquanto em Mt 24,3 e em Lc 21,7 ela parte de todos os discípulos. No testemunho
apresentado pelas mulheres sobre a ressurreição de Jesus, Pedro encontra-se em destaque
(Mc 16,7). Em Mateus, porém, o anúncio é genérico e dirigido a todos os discípulos (Mt
28,7).

A comunidade

Quanto à comunidade a que Marcos escreve: “É preciso contentar-se com uma


configuração diáfana e incerta da comunidade de Marcos que, de qualquer modo devemos
supor essencialmente fiel ao evangelho escrito por ele; certamente não para reserva-lo a
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si mesmo em uma comunidade fechada, mas anuncia-lo a todos os povos (13,10) em todo
o mundo (14,9). (Segalla, Evangelo e vangeli, pp. 158s.).
Como já analisamos, é em grande parte formada por étnico-cristãos em vista dos quais explica
costumes e termos aramaicos. A comunidade está aberta à missão, com numerosas referências ao
querigma e à catequese deixam entrever (1,21-28; 7,24-30; 14,9). Essa comunidade está passando
ou passou pela perseguição de Nero (ano 65) e pelos efeitos da revolta judaica (66-70 d.C.). Em
consequência disso, a comunidade é sacudida em sua própria fé sobre a messianidade e o poder de
Jesus. Por isso, o evangelista elabora uma narração em que o ensinamento, muitas vezes enunciado,
não tem aparentemente nenhum conteúdo próprio (1,21-22; 2,13; 6,2.6.34; 10,1). Esse conteúdo,
de fato, coincide com a própria vida de Jesus, com a sua manifestação em meio a contradições e
sofrimentos até a cruz. A comunidade, portanto, é convidada a reinterpretar a própria vida à luz da
vida de Jesus. A narração que se dirige à comunidade tem também a finalidade de fixar a tradição,
a partir do momento em que as testemunhas da primeira geração estão desaparecendo. É uma
comunidade que se organiza não apenas para ajudar os que crêem em Jesus, como também a
anuncia-lo a quem não o conhece.

Lugar da escrita do Evangelho de Marcos

Conforme uma antiga tradição, o Evangelho segundo Marcos teria sido escrito em
Roma, lugar final da atividade apostólica de Pedro (cf. 1Pd 5,13). Esta tradição estaria
baseada em alguns indícios, pois certas expressões latinas foram transliteradas para o
grego ou foram explicadas pelo seu equivalente latino. Isto ajudaria a determinar o
ambiente no qual ou para o qual o segundo evangelho foi escrito.

São pormenores que indicam que os destinatários não são habituados ao aramaico,
mas ao latim. Por isso, a cidade de Roma foi considerada, por Irineu de Lião e Clemente
de Alexandria, o lugar da edição final deste evangelho. Além disso, a própria morte de
Jesus não é atribuída aos romanos, e o centurião faz uma solene profissão de fé em Jesus:
O centurião, que se achava bem defronte dele, vendo que havia expirado desse modo,
disse: “Verdadeiramente este homem era filho de Deus” (Mc 15,39).

Quando escreve Marcos?


Quanto à datação, é uma questão aberta e discutida. Pela fundamentação bíblica, nota-
se que o autor fala de um tempo de sofrimento e de perseguição, provavelmente a que foi
decretada por Nero entre os anos 64-67 d.C., e que levou Pedro e Paulo ao martírio. A
perseguição é uma insistente temática e que aparece em vários textos: Mc 8,34-35.38;
10,30.33.38-39.45; 13,8-10.13.
Em particular, Mc 13 divide a posição dos leitores e estudiosos desde a época
patrística. Clemente de Alexandria (150-215 d.C.) e o Prólogo da obra Antimarcionita
(180 d.C.) colocaram a redação do Evangelho segundo Marcos durante a vida e ministério
de Pedro em Roma. Já para Irineu de Lião, esse evangelho surgiu após o martírio de Pedro
e Paulo, entre os anos 64-67 d.C.
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Para alguns (FABRIS, 1990, p. 428), o Evangelho segundo Marcos teria surgido entre
os anos 65-70 d.C., visto que os pormenores sobre a destruição de Jerusalém não
aparecem com a mesma clareza (cf. Mc 13.14-23) como eles são apresentados por Mateus
e Lucas (Mt 24,15-25 e Lc 21,20-24).
Ao lado disso, percebe-se que as narrações de Marcos são espontâneas e cheias de
vivacidade. O ouvinte-leitor nota que tais narrações refletem as lembranças de uma
testemunha ocular dos acontecimentos. Nesse caso, nada impede que se esteja, de fato,
diante das “memórias do apóstolo Pedro”, como afirmado pelos Padres da Igreja.

Ponto de vista literário

Do ponto de vista literário, é preciso antes de mais nada observar que, diante do
Evangelho de Marcos, o leitor de fino paladar resta desconcertado. Não tem nada do estilo
claro e imponente de Mateus, nem da sensibilidade, beleza e aprofundamento das
parábolas de Lucas e nem mesmo do refino da Carta aos Hebreus (em absoluto o texto
melhor do NT). Sob o ponto de vista da forma parece quase que o autor queira – as vezes
– chocar o leitor com um estilo vivaz, popular, com frases breves e particulares, cheias
de repetições, e de grande simplicidade. Marcos não ama a subordinação, mas a parataxe
(na narração da tempestade acalmada a conjunção Kai recorre 17 vezes); ao invés do
aoristo, que é o tempo da narração (mais-que-perfeito), usa o presente, que permite um
estilo muito mais vivaz e dinâmico. O vocabulário é essencial: em tudo somente 1345
vocábulos diversos.
Um estilo que procura o leitor, não com o requinte da exposição, mas com uma
linguagem imediata. Parece que quase quer atirar o leitor para fazê-lo refletir. Não procura
satisfação nas exigências e gostos literários dos seus leitores; deixa de lado estes aspectos
para constrangê-lo a prestar atenção ao conteúdo que quer propor.
Como nos diz bem a TEB: “se o seu vocabulário é pobre (exceto quando fala de coisas
concretas e das reações provocadas por Jesus), as suas frases mal concatenadas, seus
verbos conjugados sem a preocupação com a concordância de tempo, suas próprias
deficiências contribuem para dar vida a uma narrativa muito próxima do estilo oral”. 2

2.3 ESTRUTURAS DO EVANGELHO


Deste a origem, diante do segundo evangelho se teve a impressão de um material
desordenado (cf. Papias). Todas as tentativas de reconstruir uma estrutura suscitaram
perplexidade; ultimamente o plano organizado em torno a critérios teológicos e literários
encontraram maior correspondência entre os biblistas.
A. Schweizer individuou o elemento estruturante deste evangelho no tema da
progressiva cristologia marcana. A obra foi dividida em duas partes: até 8,26 temos a

2
TEB, Introdução ao Evangelho de Marcos.
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progressiva revelação de Jesus como Messias diante do povo e de seus discípulos,


revelação que termina com a profissão de fé de Pedro em 8,27-30; de 8,31 Jesus introduz
o seus no mistério do sofrimento Filho do Homem.
Modelo geográfico
No evangelho de Marcos Jesus está sempre se deslocando, sempre caminhando. Isso
deu motivo a que muitas vezes se procurasse o plano do evangelho a partir da geografia:
1,1-13: Preparação do ministério de Jesus NA JUDÉIA.
1,14–7,23: Ministério de Jesus NA GALILEIA
7,14–10: Viagens de Jesus FORA DA GALILEIA
11–13: Ministério de Jesus EM JERUSALÉM
14–16: Paixão e ressurreição EM JERUSALÉM
Temos em Marcos uma geografia teológica. O espaço de Marcos é organizado, isto é,
os lugares são vistos em certa relação uns com os outros.

Adendo: Dupla oposição: Galileia – Jerusalém

A oposição Galileia e Jerusalém tem uma função importante no conjunto do livro. A


primeira parte (1,14 – cap. 9) se passa na Galileia. Depois Jesus vai para a Judéia e sobe
para Jerusalém (cap. 10) e em Jerusalém o livro termina (caps. 11 – 16). Nota-se que na
parte galilaica, quando se fala em Jerusalém, é sempre no sentido hostil. E, no fim da
seção que se passa em Jerusalém, é dito duas vezes que Jesus, “depois de sua ressurreição,
precederá seus discípulos na Galileia”. É na Galileia que o Evangelho deve difundir-se,
depois da ressurreição, como foi da Galileia que Jesus começou a proclamá-lo. Jerusalém
aparece como a cidadela da oposição, a cidade da qual vem o ataque mais hostil a Jesus
(3,22) e na qual os responsáveis pela nação o condenarão à morte e o entregarão aos
pagãos.
Outras estruturas são apresentadas abaixo:
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A conclusão canônica (16,9-20)


- O Evangelho se conclui com 16,8 que fala do medo das mulheres. Os vv. que seguem
faltam em vários manuscritos, entre os quais, os mais antigos (Vaticano e Sinaítico).
Clemente de Alexandria e Orígenes mostram de não os conhecer; Eusébio e Jerônimo
atestam que as passagens faltavam em quase todos os manuscritos gregos dos quais
tinham conhecimento. Portanto, se pode afirmar que, mesmo sendo parte da Escritura
(“final canônica”), não pertencem ao texto marcano; muito provavelmente foram
adicionados ao evangelho somente ao início do século II.
Portanto, sobre a base da evidência externa (os manuscritos mais antigos não possuem
os vv. 9-20) e interna (o estilo não é aquele de Marcos), possam reter que o evangelho se
conclui no v. 16,8.

2.4 Cristologia e Eclesiologia


O discurso a respeito de Jesus Cristo, sua identidade e missão (cristologia),
fundamenta e evidencia os laços estreitos que serão estabelecidos com a dinâmica que
Marcos apresentará a respeito do discípulo e do caminho que este deve percorrer para
viver como um autêntico cristão (eclesiologia).
O evangelho de Marcos não possui uma estrutura literária tão marcante como a que
se encontra, por exemplo, em Mateus e em Lucas.
A geografia e a biografia serviram de “pano de fundo” estrutural. Marcos, porém, não
quis fazer uma crônica sobre Jesus, mas encontrou um modo de apresentar a sua
identidade em duas etapas, unidas pela célebre confissão de Pedro em Cesareia de Filipe
(cf. Mc 8,27-30).
Primeira etapa: Jesus e as multidões
Esta primeira etapa acontece, principalmente, na região da Galileia, palco geográfico
sobre o qual acontecem os feitos de Jesus. Acentuam-se os milagres, principalmente
exorcismos, e nota-se a relação de Jesus com as multidões, que compreendem muito
pouco do seu “ensinamento” sobre o Reino de Deus.
Por causa desta “incompreensão”, no Evangelho de Marcos os fatos são privilegiados.
Os feitos de Jesus, mais do que os discursos, atestavam melhor o Reino de Deus para os
destinatários.
Todavia, apesar de Jesus realizar vários milagres, ele busca ocultar e preservar o seu
messianismo do perigo de não ser bem entendido pelo povo e até pelos próprios
discípulos. Este “ocultamento” é chamado de “segredo messiânico” (cf. Mc 1,33-34;
3,12; 5,43; 7,36; 8,26).
Segunda etapa: Jesus e os seus discípulos
A segunda etapa está ligada à Judeia e em particular à capital, Jerusalém, onde o
ministério de Jesus é consumado. Esta etapa pode ser dividida em dois momentos: (a) a
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viagem rumo a Jerusalém (cf. Mc 10,32-52); (b) os eventos em Jerusalém (cf. Mc 11,1–
16,8.9-20).
Nesta etapa, Jesus se dedica à e se interessa, em particular, pela formação dos seus
discípulos. Eles, por primeiro, são os que devem reconhecer e compreender o significado
do messianismo assumido por Jesus (cf. Mc 8,27-33). Por isso, Jesus lhes fala,
abertamente, sobre o centro da sua missão, paixão e morte, entendendo a natureza e a
razão última do ministério. O ponto culminante da revelação messiânica acontecerá em
duas fases ou momentos: (a) durante o processo de condenação de Jesus diante do Sumo
Sacerdote (cf. Mc 14,60-62); (b) no momento da sua morte de cruz diante do centurião
(cf. Mc 15,39).

2.4.1 A cristologia do Evangelho segundo Marcos3


Marcos tem o interesse de evidenciar o mistério de Jesus; revelando-o não somente
como Cristo, mas também como verdadeiro Filho de Deus (cf. Mc 1,1). O caminho para
alcançar esta meta é fatigoso e difícil, em meio a intrigas, incompreensões e ameaças de
morte. Ao lado disso, o segredo messiânico perpassa todo o evangelho, dando a entender
que para reconhecer e acolher Jesus como messias faz-se necessário acolher,
integralmente, a vontade de Deus, liberando-se do equívoco de ver o messias como
alguém intocável pelos homens. Os compatriotas de Jesus esperavam um messias nos
moldes do rei Davi, líder bélico, revestido de grandeza e majestade, e não como Jesus o
viveu, pelo serviço e doação.
Imagem de Jesus como servo sofredor, como o messias segundo o desígnio do Pai.
Por isso, o segredo messiânico transparece no Evangelho como uma tentativa de
salvaguardar o ministério público de Jesus para que não fosse ameaçado pelas falsas
pretensões em torno de um messias preocupado, apenas, em salvar o povo eleito no que
dizia respeito a questões materiais.
Jesus foi admirado, mas não compreendido nesta imagem de “Servo Sofredor”.
Rejeição por parte das multidões (cf. Mc 1,14–3,12; 6,1-6), os familiares (cf. 3,20-21) e
os seus discípulos (8,31-38): não conseguiram penetrar no íntimo e na lógica do
messianismo vivido por Jesus.
A identidade de Jesus é um mistério, é uma revelação que pertence somente ao Pai
(cf. Mc 1,11; 9,7), mas que, por palavras e obras, é dada aos discípulos em um momento
certo (cf. Mc 4,1-13; 8,27-30). Jesus, pessoalmente, também se revelará e se confessará
messias diante da insistente pergunta feita pelo Sumo Sacerdote (cf. Mc 14,60-62), mas,
na dinâmica do Evangelho, esta confissão ficou reservada ao centurião diante da sua cruz
(cf. Mc 15,39).

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A Cristologia dos Sinóticos é apresentada como um percurso ascendente, isto é, o reconhecimento sobre
a identidade e a missão de Jesus parte da sua humanidade para chegar à revelação da sua divindade. É um
método indutivo, pois parte-se, do elemento particular (o humano) para alcançar o elemento mais
abrangente (o divino).
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Importante observar que Jesus vai se revelando por etapas: sua identidade e missão:
1) no primeiro momento, a missão do Filho acontece através das suas palavras e obras
ligadas ao seu ministério na Galileia, que denunciam quem Ele é, isto é, revelam a sua
identidade.
As multidões, vendo tudo o que Jesus ensina e realiza, se interrogam a respeito dele,
mas não conseguem ir além do reconhecimento de que ele age como se fosse um profeta
(1,14–8,26). Não obstante isso, os milagres que Jesus opera e a sua palavra de autoridade
revelam a força da sua atuação salvífica. Por causa dessa autoridade, apresentam-se os
seus opositores: (a) os demônios (1,24.34; 5,7); (b) os fariseus, que tramam contra a sua
vida (Mc 3,6); (c) os apóstolos, que, não compreendendo, ficam perplexos diante das
palavras e das obras de Jesus (Mc 4,13; 6,52; 7,18; 8,17-21; 9,31-33).
2) No segundo momento, acontece a revelação do Filho como sendo o Cristo. Esta
revelação é feita aos discípulos, inicialmente, através da instrução que Jesus inicia a partir
da confissão que brota nos lábios de Pedro: Tu és o Cristo. Com essa confissão, tem início
a viagem de Jesus com os seus discípulos rumo a Jerusalém para concluir a sua missão
(Mc 8,27 – 13,23).
Jesus pretende mostrar aos discípulos que a confissão Tu és o Cristo não era uma
simples afirmação que brotara nos lábios de Pedro, mas consistia em uma revelação que
exigia assumir, aderir e entender o plano divino para o Messias, isto é, a realização do
Reino de Deus e de sua vontade.
A partir dessa confissão, as multidões saem parcialmente de cena, os milagres
diminuem e Jesus dedica-se exclusivamente, à instrução dos seus discípulos. Estes,
porém, não entendem o sentido do mistério messiânico de Jesus (Mc 8,33; 9,10.32;
10,38). Por três vezes Jesus anuncia a sua paixão-missão (Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,3234),
a fim de ajuda-los a superar o messianismo terreno do poder e da glória meramente
humanos. No fundo, Jesus pretende que eles alcancem uma plena compreensão da
revelação da sua identidade. Por isso, do seu ensinamento resulta que ele é o Filho e
Senhor de Davi (Mc 12,36; cf. 110,1), e o Filho do Homem vindo entre as nuvens (Mc
13,26; cf. Dn 7,14-15 e Ez 1,26-28).
Jesus é, ao mesmo tempo, o Filho do Homem e o Servo Sofredor, que seguirá a estrada
do sofrimento e da cruz para salvar e resgatar todos aqueles que o aceitarem (Mc 10,45
parece aludir a Is 52,13 – 53,12)4.
3) No terceiro momento, acontece a revelação de Jesus, como Messias e Filho de
Deus. Esse momento se realizou pela total doação de Jesus durante a sua entrega
eucarística, que antecipa a sua Paixão e morte. É a autorrevelação de Jesus como Messias
e Filho de Deus. A cruz é o sinal que visualiza a sua identidade e missão, concretizando,
assim, a teofania que ocorreu no momento do batismo (Mc 1,9-11 é uma chave de leitura
para todo o evangelho), da transfiguração (cf. Mc 9,7), e no momento em que um pagão,

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O título “filho do homem” pode ser considerado o primeiro estágio da cristologia neotestamentária. Nos
sinóticos ocorre 65 vezes e em João 12 vezes. No Evangelho segundo Marcos, o título filho do homem está
associado ao segredo messiânico, porque estava, em sua época, mais isento de conotações políticas.
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isto é, o executor da sentença, reconhece a filiação divina no crucificado:


Verdadeiramente este homem era filho de Deus (Mc 15,39).
Marcos, então, quer conduzir o ouvinte-leitor à total revelação da identidade-missão
de Jesus. Ele é o Filho do Homem anunciado pelo profeta Daniel 7,13-15 (cf. Mc 8,38;
13,26-27). Logo, é verdadeiro Deus. Ele é o Servo de YHWH, capaz de sofrer e de se
compadecer diante do sofrimento anunciado em Is 52–53 (cf. Mc 1,11; 9,7; 10,45). Logo,
Jesus é verdadeiro Homem. Essa dupla revelação envolve pessoas distintas:
a) O Pai, que tem a primazia, pois é Ele quem fala do Filho no Batismo (cf. Mc 1,10-
11) e na Transfiguração (cf. Mc 9,7), está presente na fala do Filho diante do Sumo
Sacerdote (cf. Mc 14,60-62); e enquanto envia um jovem para que anuncie a ressurreição
às mulheres, dando-lhes as devidas instruções (cf. Mc 16,5).
b) Os demônios, que também demonstraram ter este conhecimento ao declararem
Jesus como o Santo de Deus (cf. Mc 1,24), Filho de Deus (cf. Mc 3,11) e Filho do Deus
Altíssimo (cf. Mc 5,7), são proibidos expressamente de falar a respeito.
c) Pedro, quando afirma que Jesus é o Cristo (cf. Mc 8,2().
d) Enfim, o Centurião que, no crucificado, reconhece o Filho de Deus (cf. Mc 15,39).

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