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PARA USO INTERNO DOS ESTUDANTES DA FACULDADE DEHONIANA – ANO ACADÊMICO 2021.
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Cf. Texto adaptado a partir de: L.A. FERNANDES; M. GRENZER, Evangelho segundo Marcos. Eleição,
partilha e amor. São Paulo: Paulinas, 2012; I. R. REIMER, Compaixão, cruz e esperança. Teologia de
Marcos. São Paulo: Paulinas, 2012. M. GRILLI, Paradosso e Mistero. Il Vangelo di Marco. Bologna:
Centro Editoriale Dehoniano, 2012.
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E eis o que dizia o antigo: Marcos, intérprete de Pedro, escreveu com exatidão, mas
sem ordem, tudo aquilo que lembrava a respeito das palavras e atos do Senhor. Pois,
embora não tivesse ouvido nem acompanhado o Senhor, mais tarde acompanhou a Pedro.
Este dava seus ensinamentos conforme às necessidades, mas sem fazer uma síntese das
palavras do Senhor. Assim, Marcos não errou escrevendo conforme se lembrava. Seu
propósito, com efeito, não era senão o de nada deixar de lado do que tinha ouvido, e nada
falsear naquilo que reportava.
Segundo este testemunho, Marcos figura como discípulo e intérprete de Pedro, que
evangelizava adaptando o ensinamento às várias necessidades dos seus destinatários.
Com isso, a ordem dos fatos podia não ser ordenada, mas respeitava a ordem explícita
que Jesus deixava de evangelizar (cf. Mc 16,29 e paralelos). Aos destinatários, anunciava-
se a boa-nova segundo as exigências de quem ouve e não de quem fala. Esta “falta de
ordem” garante a autenticidade da pregação e atesta a ligação de Marcos com a tradição
apostólica. Lc 1,1-4 confirma este dado, pois atesta o esforço empreendido pelo
evangelista para assegurar este vínculo essencial.
Justino fala do Evangelho segundo Marcos como sendo um testemunho sobre a
“memória de Pedro”.
Irineu de Lião (180 d.C.) diz que, “depois da morte [de Pedro e de Paulo], Marcos, o
discípulo e intérprete de Pedro, nos transmitiu igualmente por escrito a pregação de
Pedro”.
Atestam este dado também Clemente e Orígenes: “O segundo é o Evangelho segundo
Marcos, que o escreveu conforme as narrações de Pedro, o qual o nomeia seu filho na
carta católica (cf. 1Pd 5,13)”.
São Jerônimo sintetiza as informações sobre a compilação do Evangelho segundo
Marcos como sendo a obra do intérprete de Pedro, com uma fórmula simples: “O
evangelho que Pedro anunciava, Marcos escrevia”.
Ainda segundo a tradição, Marcos teria evangelizado e fundado uma comunidade
cristã no Egito, em Alexandria, onde foi hostilizado e martirizado. No século IX, seu
corpo teria sido levado para Veneza.
Em resumo, como a maioria dos antigos escritores cristãos, o autor do segundo
evangelho não teve a intenção de “assinar” a sua obra. Marcos aparece associado a este
evangelho somente a partir do século II d.C., mas isto não invalida a aceitação dessa
tradição quanto à sua autoria.
Se identificou este Marcos com João Marcos de Jerusalém, do qual nos fala At 12,12:
discípulo de Paulo que, depois de uma discussão, permanece somente com Barnabé.
Alguns autores colocam em dúvida esta identificação, denunciando a sua finalidade
apologética, como por exemplo, Rudolf Pesch. Todavia, seria de maior efeito atribuir o
texto a um dos Doze ou ao menos a um dos discípulos mais conhecidos. Neste sentido se
pode reter alguma verossimilhança do personagem Marcos como autor do evangelho.
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O autor do segundo evangelho canônico parece ser bem familiar ao apóstolo Pedro.
No episódio da figueira, Pedro protagoniza a fala: Pedro se lembrou e disse (Mc 11,21);
já, em Mateus, o mesmo episódio é protagonizado pelos discípulos (Mt 21,20). Sobre a
grandeza e a beleza do Templo, a pergunta admirada parece partir de Pedro (Mc 13,3-14),
enquanto em Mt 24,3 e em Lc 21,7 ela parte de todos os discípulos. No testemunho
apresentado pelas mulheres sobre a ressurreição de Jesus, Pedro encontra-se em destaque
(Mc 16,7). Em Mateus, porém, o anúncio é genérico e dirigido a todos os discípulos (Mt
28,7).
A comunidade
si mesmo em uma comunidade fechada, mas anuncia-lo a todos os povos (13,10) em todo
o mundo (14,9). (Segalla, Evangelo e vangeli, pp. 158s.).
Como já analisamos, é em grande parte formada por étnico-cristãos em vista dos quais explica
costumes e termos aramaicos. A comunidade está aberta à missão, com numerosas referências ao
querigma e à catequese deixam entrever (1,21-28; 7,24-30; 14,9). Essa comunidade está passando
ou passou pela perseguição de Nero (ano 65) e pelos efeitos da revolta judaica (66-70 d.C.). Em
consequência disso, a comunidade é sacudida em sua própria fé sobre a messianidade e o poder de
Jesus. Por isso, o evangelista elabora uma narração em que o ensinamento, muitas vezes enunciado,
não tem aparentemente nenhum conteúdo próprio (1,21-22; 2,13; 6,2.6.34; 10,1). Esse conteúdo,
de fato, coincide com a própria vida de Jesus, com a sua manifestação em meio a contradições e
sofrimentos até a cruz. A comunidade, portanto, é convidada a reinterpretar a própria vida à luz da
vida de Jesus. A narração que se dirige à comunidade tem também a finalidade de fixar a tradição,
a partir do momento em que as testemunhas da primeira geração estão desaparecendo. É uma
comunidade que se organiza não apenas para ajudar os que crêem em Jesus, como também a
anuncia-lo a quem não o conhece.
Conforme uma antiga tradição, o Evangelho segundo Marcos teria sido escrito em
Roma, lugar final da atividade apostólica de Pedro (cf. 1Pd 5,13). Esta tradição estaria
baseada em alguns indícios, pois certas expressões latinas foram transliteradas para o
grego ou foram explicadas pelo seu equivalente latino. Isto ajudaria a determinar o
ambiente no qual ou para o qual o segundo evangelho foi escrito.
São pormenores que indicam que os destinatários não são habituados ao aramaico,
mas ao latim. Por isso, a cidade de Roma foi considerada, por Irineu de Lião e Clemente
de Alexandria, o lugar da edição final deste evangelho. Além disso, a própria morte de
Jesus não é atribuída aos romanos, e o centurião faz uma solene profissão de fé em Jesus:
O centurião, que se achava bem defronte dele, vendo que havia expirado desse modo,
disse: “Verdadeiramente este homem era filho de Deus” (Mc 15,39).
Para alguns (FABRIS, 1990, p. 428), o Evangelho segundo Marcos teria surgido entre
os anos 65-70 d.C., visto que os pormenores sobre a destruição de Jerusalém não
aparecem com a mesma clareza (cf. Mc 13.14-23) como eles são apresentados por Mateus
e Lucas (Mt 24,15-25 e Lc 21,20-24).
Ao lado disso, percebe-se que as narrações de Marcos são espontâneas e cheias de
vivacidade. O ouvinte-leitor nota que tais narrações refletem as lembranças de uma
testemunha ocular dos acontecimentos. Nesse caso, nada impede que se esteja, de fato,
diante das “memórias do apóstolo Pedro”, como afirmado pelos Padres da Igreja.
Do ponto de vista literário, é preciso antes de mais nada observar que, diante do
Evangelho de Marcos, o leitor de fino paladar resta desconcertado. Não tem nada do estilo
claro e imponente de Mateus, nem da sensibilidade, beleza e aprofundamento das
parábolas de Lucas e nem mesmo do refino da Carta aos Hebreus (em absoluto o texto
melhor do NT). Sob o ponto de vista da forma parece quase que o autor queira – as vezes
– chocar o leitor com um estilo vivaz, popular, com frases breves e particulares, cheias
de repetições, e de grande simplicidade. Marcos não ama a subordinação, mas a parataxe
(na narração da tempestade acalmada a conjunção Kai recorre 17 vezes); ao invés do
aoristo, que é o tempo da narração (mais-que-perfeito), usa o presente, que permite um
estilo muito mais vivaz e dinâmico. O vocabulário é essencial: em tudo somente 1345
vocábulos diversos.
Um estilo que procura o leitor, não com o requinte da exposição, mas com uma
linguagem imediata. Parece que quase quer atirar o leitor para fazê-lo refletir. Não procura
satisfação nas exigências e gostos literários dos seus leitores; deixa de lado estes aspectos
para constrangê-lo a prestar atenção ao conteúdo que quer propor.
Como nos diz bem a TEB: “se o seu vocabulário é pobre (exceto quando fala de coisas
concretas e das reações provocadas por Jesus), as suas frases mal concatenadas, seus
verbos conjugados sem a preocupação com a concordância de tempo, suas próprias
deficiências contribuem para dar vida a uma narrativa muito próxima do estilo oral”. 2
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TEB, Introdução ao Evangelho de Marcos.
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viagem rumo a Jerusalém (cf. Mc 10,32-52); (b) os eventos em Jerusalém (cf. Mc 11,1–
16,8.9-20).
Nesta etapa, Jesus se dedica à e se interessa, em particular, pela formação dos seus
discípulos. Eles, por primeiro, são os que devem reconhecer e compreender o significado
do messianismo assumido por Jesus (cf. Mc 8,27-33). Por isso, Jesus lhes fala,
abertamente, sobre o centro da sua missão, paixão e morte, entendendo a natureza e a
razão última do ministério. O ponto culminante da revelação messiânica acontecerá em
duas fases ou momentos: (a) durante o processo de condenação de Jesus diante do Sumo
Sacerdote (cf. Mc 14,60-62); (b) no momento da sua morte de cruz diante do centurião
(cf. Mc 15,39).
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A Cristologia dos Sinóticos é apresentada como um percurso ascendente, isto é, o reconhecimento sobre
a identidade e a missão de Jesus parte da sua humanidade para chegar à revelação da sua divindade. É um
método indutivo, pois parte-se, do elemento particular (o humano) para alcançar o elemento mais
abrangente (o divino).
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Importante observar que Jesus vai se revelando por etapas: sua identidade e missão:
1) no primeiro momento, a missão do Filho acontece através das suas palavras e obras
ligadas ao seu ministério na Galileia, que denunciam quem Ele é, isto é, revelam a sua
identidade.
As multidões, vendo tudo o que Jesus ensina e realiza, se interrogam a respeito dele,
mas não conseguem ir além do reconhecimento de que ele age como se fosse um profeta
(1,14–8,26). Não obstante isso, os milagres que Jesus opera e a sua palavra de autoridade
revelam a força da sua atuação salvífica. Por causa dessa autoridade, apresentam-se os
seus opositores: (a) os demônios (1,24.34; 5,7); (b) os fariseus, que tramam contra a sua
vida (Mc 3,6); (c) os apóstolos, que, não compreendendo, ficam perplexos diante das
palavras e das obras de Jesus (Mc 4,13; 6,52; 7,18; 8,17-21; 9,31-33).
2) No segundo momento, acontece a revelação do Filho como sendo o Cristo. Esta
revelação é feita aos discípulos, inicialmente, através da instrução que Jesus inicia a partir
da confissão que brota nos lábios de Pedro: Tu és o Cristo. Com essa confissão, tem início
a viagem de Jesus com os seus discípulos rumo a Jerusalém para concluir a sua missão
(Mc 8,27 – 13,23).
Jesus pretende mostrar aos discípulos que a confissão Tu és o Cristo não era uma
simples afirmação que brotara nos lábios de Pedro, mas consistia em uma revelação que
exigia assumir, aderir e entender o plano divino para o Messias, isto é, a realização do
Reino de Deus e de sua vontade.
A partir dessa confissão, as multidões saem parcialmente de cena, os milagres
diminuem e Jesus dedica-se exclusivamente, à instrução dos seus discípulos. Estes,
porém, não entendem o sentido do mistério messiânico de Jesus (Mc 8,33; 9,10.32;
10,38). Por três vezes Jesus anuncia a sua paixão-missão (Mc 8,31-33; 9,30-32; 10,3234),
a fim de ajuda-los a superar o messianismo terreno do poder e da glória meramente
humanos. No fundo, Jesus pretende que eles alcancem uma plena compreensão da
revelação da sua identidade. Por isso, do seu ensinamento resulta que ele é o Filho e
Senhor de Davi (Mc 12,36; cf. 110,1), e o Filho do Homem vindo entre as nuvens (Mc
13,26; cf. Dn 7,14-15 e Ez 1,26-28).
Jesus é, ao mesmo tempo, o Filho do Homem e o Servo Sofredor, que seguirá a estrada
do sofrimento e da cruz para salvar e resgatar todos aqueles que o aceitarem (Mc 10,45
parece aludir a Is 52,13 – 53,12)4.
3) No terceiro momento, acontece a revelação de Jesus, como Messias e Filho de
Deus. Esse momento se realizou pela total doação de Jesus durante a sua entrega
eucarística, que antecipa a sua Paixão e morte. É a autorrevelação de Jesus como Messias
e Filho de Deus. A cruz é o sinal que visualiza a sua identidade e missão, concretizando,
assim, a teofania que ocorreu no momento do batismo (Mc 1,9-11 é uma chave de leitura
para todo o evangelho), da transfiguração (cf. Mc 9,7), e no momento em que um pagão,
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O título “filho do homem” pode ser considerado o primeiro estágio da cristologia neotestamentária. Nos
sinóticos ocorre 65 vezes e em João 12 vezes. No Evangelho segundo Marcos, o título filho do homem está
associado ao segredo messiânico, porque estava, em sua época, mais isento de conotações políticas.
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