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P rimeira P arte

A FORMAÇÃO
DOS EVANGELHOS
Os primeiros séculos do Cristianismo reconhecem com
convicção cada vez maior que os evangelhos foram escritos
nas décadas posteriores à morte de Jesus, de qualquer modo,
antes do final do século I, pelas pessoas às quais são atribuí­
dos. O primeiro testemunho, por volta do ano 110, propagado
por Eusébio, é de Pápias, bispo de Hierápolis e companheiro
de Policarpo. Ele fala de Marcos “intérprete” ( hermeneutés)
de Pedro e de Mateus que “ordenou os dizeres ilógia) e os
A IGREJA PRIMITIVA:
interpretou como pôde”. Tais afirmações referem-se ao va­
OS EVANGELHOS AUTÊNTICOS E FIDEDIGNOS
lor histórico dos evangelhos e têm o intuito de reafirmar a
Quatro aspectos se destacam nos primeiros séculos. canonicidade contestada por Marcião, sem se limitar a preo­
Já a aplicação exclusiva do termo evangelho, que teve início cupações de ordem lingüística e estética, como recentemente
no século II e se tomou comum a partir de então, reconhece se pretendeu sustentar. “A frase de Pápias ‘Mateus recolheu
nos escritos a capacidade de unir passado e presente, ou seja os lógia ’ não pode significar algo diferente da elaboração
a capacidade de trazer para o homem de hoje a salvação pro­ do evangelho canônico de Mateus, que no tempo em que
clamada por Jesus ontem. Para ser, de fato, “boa notícia”, é Pápias escrevia era bem conhecido na comunidade cristã”.3
necessária a existência de um acontecimento, a vida de Je­ O Cânon de Muratori (por volta de 160) menciona
sus, e a possibilidade de que isso continue a produzir alegria Marcos e Lucas, companheiro de Paulo e autor do terceiro
e salvação. A “boa notícia” chega, portanto, por meio de um evangelho; sendo apenas parcial, não faz menção a Mateus.
texto narrativo e é tal pela capacidade de “exprimir ao mesmo Irineu (por volta do ano 180) fala de Mateus, que escreve o
tempo os aspectos à primeira vista conflituosos, o histórico e evangelho em hebraico, enquanto Pedro e Paulo fundavam a
o salvífico, a referência feita ao passado e ao presente”.12 Igreja de Roma; menciona Marcos, que escreve o evangelho
depois da morte dos dois apóstolos, e Lucas que, como dis­
cípulo de Paulo, transmitiu por escrito a doutrina do mestre.
O final do século II e o início do século III disponibilizam
os dados comuns por meio dos testemunhos de Tertuliano,
1 Laconi, Vangelisinottici eAtti degli apostoli, cit., pp. 35-69,135-138; Fabris, R. Gesü
di Nazareth. Storia e interpretazione. 3. ed. Assisi, Cittadella, 1988. pp. 5-34 [ed.
bras.: Jesus de Nazaré, história e interpretação. São Paulo, Loyola, 1988]; L atourelle,
R. A Gesü attraverso i vangeli. Storia ed ermeneutica. Assisi, Cittadella, 1988. pp. 33-
81, 98-113.
2 Fusco, “Introduzione generale ai sinottici”, cit., em Laconi, Vangeli sinottici e Atti
3 C irillo, L. I vangeli giudeo-cristiani. In: N orelli, E. (Org.) La Bibbia neWantichità
degli apostoli, cit., p. 59.
cristiana. Bologna, Edb, 1993.1. Da Gesü a Origene. p. 277.

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de Clemente de Alexandria, de Orígenes que se juntam aos gua, do vocabulário, do ambiente histórico que nos situa antes
primeiros códigos do século i y que relatam a escritura “se­ do ano 70 (Marcos) ou por volta do ano 80 (Mateus e Lucas).
gundo Mateus”, “segundo Marcos”, “segundo Lucas” . Esses argumentos, assim tão preciosos nos meios católicos
em certa época, não perderam seu valor, mas são insuficien­
Tais testemunhos afirmam que os evangelhos foram
tes à luz das novas posições da crítica moderna.
escritos exatamente por aquelas pessoas chamadas Mateus,
Marcos, Lucas, (João), que viveram no século I d.C. A liga­ A perplexidade diante da pluralidade dos evangelhos
ção dos evangelhos com os nomes tradicionais tem seu va­ e o reconhecimento do seu valor alternam-se nos escritos
lor ainda hoje. Remontar às pessoas que se puseram a escre­ até o século VI. Há os que escolhem um evangelho, esque­
ver os evangelhos equivale a encontrar testemunhas ocula­ cendo-se dos demais, como faz, por exemplo, Marcião, op­
res. Na realidade, dois são apóstolos (Mateus e João) “que tando por Lucas; outros reduzem os quatro a uma só narrati­
nos acompanharam durante todo o tempo em que o Senhor va, como sucede no Diatessaron de Taciano, que em algu­
vivia no meio de nós” (At 1,21) e dois discípulos dos após­ mas Igrejas substituiu os evangelhos; outros ainda procu­
tolos, Marcos e Lucas, que fazem referência a Pedro e a Paulo, ram caminhos exegéticos novos, que dão em soluções con­
respectivamente. Assim é dada importância aos autores lite­ cordantes ou em intuições que anteciparam fecundas con­
rários e ao testemunho entendido como fidelidade ao que clusões modernas. Traços dessas duas orientações são en­
eles viram e transmitiram. contrados no De consensu evangelistarum [Sobre o consen­
so dos evangelistas], no qual Agostinho ora se rende diante
Os testemunhos sobre a contribuição de Mateus, Mar­
do concordismo, quando, por exemplo, para conciliar Mateus
cos e Lucas (“autenticidade”) não foram dados apenas pelas
(5,1) e Lucas (6,17), opina que Jesus começou o sermão na
grandes personalidades aqui lembradas, mas também pelas
montanha e o concluiu na planície, ora é de parecer que o
suas comunidades, das quais relatam o pensamento e a fé. É
evangelista não transmite as palavras de Jesus, mas o seu
a Igreja da Síria que fala com Teófilo e Taciano, a de Roma
significado global.
com Justino, a da Gália com Irineu. Alguns manuscritos,
entre os cinco mil existentes, distintos quanto à época e ao O uso freqüente dos evangelhos na liturgia, portanto,
valor, confirmam a antigüidade da escrita deles. Pense-se põe em evidência a atualização no hoje dos acontecimentos
no código vaticano (identificado com a letra B), escrito no salvíficos da vida, morte e ressurreição de Jesus, colocado
século IV, mas com um texto essencialmente idêntico ao dos sempre no centro de qualquer consideração e encaminha para
papiros P66e P75 que remontam aos séculos II-III; leve-se em uma leitura espiritual que terá prosseguimento e se desen­
consideração sobretudo o P52 (o papiro de Ryland) que trans­ volverá na Idade Média, de diversas maneiras, especialmen­
mite alguns versículos de João 18, que, como se deduz, foi te na Lectio divina. Não se perderá, contudo, o valor do sen­
escrito por volta do ano 120: uma fixação de data, portanto, tido literal, presente de maneira muito forte especialmente
ocorre depois do século I. Acrescente-se a questão da lín­ na “apologética”, dedicada a buscar argumentos contra aque­

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les que negarem a ressurreição, os milagres, as profecias. versais. E esses podem ser sintetizados, seguindo-se o prin­
“O esforço de atribuir um rosto aos autores, mas sem os cipal expoente, A. von Harnack (1851-1930), famoso prin­
separar do sujeito coletivo, a tradição, confirma que os evan­ cipalmente pelo seu livro A essência do cristianismo (1901),
gelhos têm sido considerados como testemunhos de acon­ na seguinte afirmação: valor da pessoa humana à luz da pa­
tecimentos, mas não um testemunho individual e meramente ternidade de Deus, capaz de instaurar uma fraternidade uni­
humano. A aceitação da pluralidade dos evangelhos, não versal entre os homens. A natureza histórica dos evangelhos
obstante as dificuldades que isso criava do ponto de vista é vista, portanto, numa tríplice dimensão: confiabilidade dos
histórico, a utilização, de um lado na liturgia e de outro dados biográficos, possibilidade de extrair deles ensinamen­
lado na apologética, a interpretação, ao mesmo tempo, es­ tos universais e necessidade de eliminar tudo aquilo que a
piritual e literária, confirmam a indissolubilidade das duas razão não consegue controlar, como os episódios dos mila­
dimensões” .4 gres, reduzindo Jesus a um pregador de religião e de moral.
Uma consciência mais apurada do mundo contempo­
ENTRE OS SÉCULOS XIX E XX: râneo judeu e grego, fruto das descobertas arqueológicas e
APENAS O JESUS DA HISTÓRIA papirológicas, contribuiu para redescobrir nos evangelhos
um conteúdo diferente, fundam entado na consciência
Para encontrar novidades relevantes — ainda que escatológica de Jesus. Ele, então, mais que pregador de al­
esboçadas por determinadas intuições críticas, especialmente tos valores morais, sociais e religiosos, é considerado por
por Reimarus (1694-1768) e Paulo (1761-1851) — é preci­ outros estudiosos como pregoeiro de uma iminente vinda do
so remontar ao final do século XIX.5 Entre 1800 e 1900, reino de Deus e vencedor do mal, em virtude do seu
com efeito, tornou-se agudo o problema da conciliação da empossar-se como Filho do homem. Essas novas perspecti­
dimensão histórica de Jesus, como homem pertencente a um vas, próprias da “escola escatológica”, iniciadas por J. Weiss,
tempo e a uma cultura determinada e o seu arrojo universal foram retomadas por A . Schweitzer (1875-1965), que con­
propenso a reunir todas as pessoas e a transmitir a sua dou­ sidera fracassada a tentativa feita por muito tempo pela
trina a todos os povos. De início impõe-se a chamada “esco­ exegese liberal em reconstruir uma vida de Jesus até em suas
la liberal” . Ela considera os sinóticos como documentos para particularidades. “O Jesus de Nazaré que apareceu como
reconstruir a vida de Jesus e fonte para explicar valores uni­ Messias, que anunciou a ética do reino de Deus, que fundou
sobre a terra o reino do céu e morreu para consagrar a sua
obra, nunca existiu” .6 Para sustentar a nova linha interpreta-
4 Fusco, “Introduzione generale ai sinottici”, cit., em Laconi, Vangeli sinottici e Atti
degli apostoli, cit., p. 69.
5 F abris, R. (org.). La Bibbia n ell’epoca moderna e contemporânea, Bologna, Edb,
1992. pp. 43-73; 101-145. 6 S chweitzer, A. Storia della ricerca sulla vita di Gesü. Brescia, Paideia, 1986. p. 744.

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nião que o querigma não nasceu da vida de Jesus e nem se­
tiva, há a conclusão sobre O segredo messiânico nos evan­
quer procura apoiar-se nessa vida. Os sinóticos não estão
gelhos (1901) feita por W. Wrede. Ele sustenta que o “segre­
empenhados em legitimar o querigma por meio da história,
do” não reflete um dado histórico, não constitui uma real e
e sim o contrário, estão empenhados em legitimar a história
gradual revelação da identidade de Jesus, mas é fruto da
por meio do querigma. É este último que ilumina tudo e a
releitura pós-pascal da comunidade; nova contribuição
tudo dá sentido. A fé cristã se inicia com o querigma que
antiliberal encontra-se em M. Kâhler (1835-1912), cujo pen­
substitui o Jesus da história. Ela começa quando aquele que
samento reflete-se brilhantemente em duas afirmações que
pregava é anunciado como a ação escatológica de Deus” .7
terão muito sucesso: os evangelhos são narrativas da paixão
com uma longa introdução; o Jesus da história é diferente
do Cristo que se prega.
A “história das formas”
Simplificando o problema, é possível encontrar em
DO CRISTO DA FÉ, APENAS, À NOVA quatro afirmações os princípios básicos dessa escola. Uma
DESCOBERTA DO JESUS HISTÓRICO primeira afirmação, sobre crítica literária, vê nos sinóticos
uma coleção de pequenas unidades, originariamente inde­
A partir de 1919 nasce uma nova escola, a “história pendentes e colocadas por um “redator” em um quadro fic­
das formas”, que abre perspectivas diferentes na interpreta­ tício: é necessário tirar a “moldura” e examinar as “formas ,
ção dos evangelhos. Leva o nome alemão Formgeschichte e reconstruindo-as em seu desenvolvimento histórico, após tê-
o nome inglês Form criticism e encontra seus principais re­ las classificado (parábolas, sentenças sapienciais, controvér­
presentantes em M. Dibelius (1883-1947), K. L. Schmidt sias, relatos de milagres): classificações e terminologias que
(1891-1956) e R. Bultmann (1884-1976), distinguindo-se são diferentes entre os estudiosos como, por exemplo, o que
pela “demitização” . Essencial para essa escola é a estreita é chamado “paradigma” por M. Dibelius, é “apoftegma” para
relação com a fé do material sinótico. Este, antes de ser es­ R. Bultmann. Este, particularmente, cuja classificação en­
crito, era objeto de pregação, destinada aos interessados de controu maior receptividade, divide o material sinótico em
uma comunidade toda propensa a proclamar Jesus como discursivo (parábolas, sentenças sapienciais, proféticas e
Senhor. Os textos compreendem o Cristo-pregador como apocalípticas e normas da comunidade, apoftegmas ou pro­
Ressuscitado, próprio do querigma: esse não está em conti­ nunciamentos políticos, didascálicos) e narrativo (milagres).
nuidade com o Jesus da história, cujos fatos dificilmente A “forma” é um modelo, um esboço narrativo usado na vida
são reconstruíveis e, como quer que seja, não têm valor
salvífico e nem mesmo estão em continuidade com os evan­
gelistas considerados redatores (compiladores de coisas que
7 Latourelle, A Gesü attraverso i vangeli... c it, p. 40.
foram ditas) e não verdadeiros autores. “Bultmann é de opi­
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concreta, breve e oral, capaz de ser expresso çapidamente Uma comunidade que registra descontinuidade entre
sem preocupações estéticas, diferentemente dos gêneros li­ pregação do reino e querigma, que proclama Jesus Filho de
terários, como o romance, a carta. Chega-se próximo ao con­ Deus, pode chamar-se “criadora” . A essa conclusão leva uma
ceito pensando-se na diferença entre um relatório de polícia, última afirmação, ao menos implícita, de ordem filosófica,
uma informação médica, um anúncio funerário. isto é, a impossibilidade de realmente ter acontecido algo
que supere as forças e as leis da natureza, pelo que se deverá
Uma segunda afirmação é de natureza sociológica.
definir “mítico” todo acontecimento que suponha que o ou­
A “forma” está sempre ligada a uma situação específica da
tro mundo interveio neste mundo: o que conduz àquele pro­
vida da comunidade (Sitz im Leben ), da qual ela depende e
cesso de “demitização” que caracteriza a escola.
que, por sua vez, influencia. O essencial é determinar as ne­
cessidades da comunidade que dão lugar ao surgimento, ao Essa, sem dúvida, tem seus méritos e fez com que se
desenvolvimento e à repetição de formas e de conseqüências dessem passos essenciais na exegese. A novidade metodoló­
que estabelecem um nexo lógico e inseparável com os evan­ gica, pela qual a compreensão dos evangelhos exige o estudo
gelhos. Se é legítimo admitir um vínculo estreito entre forma do momento oral, une-se à vantagem literária cujas narrativas
e situação existencial, é difícil precisar as exigências da e breves unidades perderam o seu referencial originário e fo­
comunidade que não podem limitar-se àquelas comuns ram inseridos em um contexto novo e secundário, tomando
(organizativas, de subsistência, genericamente religiosas), impossível a reconstituição da “vida” de Jesus, no sentido
mas precisam descobrir as exigências específicas daqueles moderno do termo. Os evangelhos passam a ser considerados
que crêem, para os quais a referência a Jesus é essencial. exatamente como livros da comunidade, expressão de sua vida
Este é um aspecto subvalorizado da escola. e de sua fé e, portanto, testemunho da sua tradição, sendo esta
redescoberta como anterior à Escritura, que é sua expressão.
Daí desponta um terceiro princípio de natureza histó­
A escola obriga, pois, a uma impostação nova da relação en­
rica. A comunidade procura resolver os próprios problemas
sem se preocupar com a dimensão histórica: anônima, po­ tre Jesus e os evangelhos, fazendo com que se complete a
argumentação tradicional que fundamentava a credibilidade e
pular, criativa, atraída por aquilo que ela sabe sobre o folclo­
a historicidade dos evangelhos na sua autenticidade (enquan­
re, vivamente interessada na pregação da fé pascal, não de­
to escritos por testemunhas oculares bem informadas e verí­
monstra interesse para conhecer como na realidade os fatos
dicas) e na integridade dos textos (são exatamente aqueles
devem ter acontecido. “Pode-se provar que [muitas palavras]
textos escritos pelos autores aos quais são atribuídos): é pre­
tiveram, antes, origem apenas no meio da comunidade, ao
ciso admitir uma distância entre Jesus e os evangelhos, trans-
passo que no caso de outras houve um processo de
reelaboração por parte da comunidade”.8 bordante da contribuição da comunidade.
Graves reservas impõem-se, contudo, não só em rela­
ção aos pressupostos filosóficos, mas principalmente em
8 B ultmann, R. Gesü. Brescia, Queriniana, 1972. p. 106. relação ao papel da comunidade em manter-se inseparável

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do Jesus da história e não “criadora” da figura mítica do A superação da “história das formas”
Salvador, os evangelistas, pois, não podem ser reduzidos a
São os próprios discípulos de Bultmann que reagem
meros compiladores. São inaceitáveis, portanto, aà seguin­
ao ceticismo quanto ao valor histórico e ratificam a capaci­
tes proposições dos dois expoentes máximos da escola. “Os
dade dos escritos em apresentar a autêntica figura de Jesus.
autores são escritores apenas em mínima parte; eles são so­
Eles não vêem apenas uma continuidade entre o Jesus terre­
bretudo coletores, transmissores, redatores” (M. Dibelius)...
no e o Cristo anunciado depois da Páscoa, mas destacam
“[a elaboração dos evangelhos] em linha de princípio não
como o querigma se tornaria inútil dissociado do Nazareno.
traz nada de novo, ou melhor, nada mais faz do que levar a
Iniciada por E. Kásemann (1953), essa “nova” busca do Jesus
cumprimento aquilo que teve início com a primeira tradição
histórico continua com G. Bomkamm, G. Ebeling, E. Fuchs e
oral” (R. Bultmann).9
principalmente com J. Jeremias que, especialmente nas Pará­
Impõe-se, portanto, uma correção em sentido “verti­ bolas e nas Palavras da última ceia, pôs em evidência a origi­
cal , ou seja, de reavaliação qualitativa da influência da co­ nalidade das palavras e dos feitos de Jesus em relação ao am­
munidade sobre o material da tradição. Isto é, o período de biente judaico. Contribuição significativa veio de estudiosos
mais ou menos trinta anos que estão intercalados entre a católicos, entre os quais X. Léon-Dufour e H. Schurmann.
morte de Jesus e as primeiras redações escritas dos evange­
Concomitantemente desenvolveu-se o estudo do pa­
lhos não pode ser analisado com o pressuposto de que uma
pel do evangelista sobre o material recebido da tradição, fo-
comunidade anônima, criadora, tenha desfigurado ou inven­
calizou-se o problema da passagem da pregação à forma es­
tado o querigma, mas com a persuasão de que uma comuni­
crita do evangelho, tomando em consideração a última fase
dade bem estruturada, toda ela propensa a conservar as tra­
da formação, ou seja, o trabalho do redator, dando lugar à
dições, tenha relido as palavras e os feitos do Senhor, in-
Redaktionsgeschichte (= história da redação), que chegou
serindo-os na própria vida, buscando nelas luz e estímulo
logo ao seu auge após a Segunda Guerra Mundial, assim
para encontrar na existência um sentido positivo sob a luz
como a Formgeschichte havia chegado a seu auge depois da
do Espírito de Jesus, guia seguro da Igreja. Deve-se ainda
Primeira Guerra Mundial. Sobressaem três estudos que apa­
fazer uma correção “horizontal”, isto é, um alargamento do
receram na Alemanha no espaço de quatro anos, de 1954 a
estudo da tradição em toda a sua extensão, lançando o olhar
1958, e traduzidos para o italiano após quase meio século.
em sentido contrário a Jesus e para frente até o trabalho
redacional dos evangelistas. É o que fez a crítica a partir da Abre a série deles H. Conzelmann,10*com uma coletâ­
década de 1950. nea de estudos sobre a teologia de Lucas com uma variação

9 Faço a citação extraída de W. Marxsen, Vevangelista Marco. Stucli sulla storia delia
reclazione dei vangelo (Casale Monferrato, Piemme, 1994, pp. 5ss ) (original 1956 2 10Conzelmann, H. 11centro dei tempo — La teologia di Luca. Casale Monferrato, Piemme,
ed. 1958). 1996 (original 1954, 6 ed. 1977, da qual foi feita a edição italiana).

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de temas, da idéia das anotações geográficas à escatologia, situação da comunidade na Galiléia, nos anos 60, que “tem
da história da salvação à eclesiologia. “Neste nosso livro as uma importância não principalmente histórica, mas teológi­
questões são concernentes à obra completa de Lucas tal como ca, como lugar da parusia que virá em breve [...] o lugar em
ela se apresenta em sua forma atual [...] o nosso objetivo é que ele agiu, em que ele — oculto na pregação — age ainda
elucidar a obra de Lucas em sua forma atual”.11 E^e junta os
hoje e agirá com a sua parusia e na sua parusia”.13
resultados de cada uma das análises colocando-as numa idéia
de conjunto, segundo a qual a pessoa e a pregação de Jesus W. Trilling14 reconhece no conceito do “verdadeiro
constituem o momento propício, o kairós de uma história Israel” a idéia-mestra de Mateus. “Nesse evangelho, junta­
salvífica, precedida na primeira etapa ou época pelo Antigo mente com a influência pessoal de um escritor, pode-se en­
Testamento, e concluída com o Batista e seguida pelos tem­ tender claramente a influência de uma comunidade com ca­
pos da Igreja. Como o tempo encontra o seu centro em Je­ racterísticas bem definidas, ou seja, de uma Igreja”.15 Isra­
sus, o espaço tem o seu centro em Jerusalém, onde se inicia el, depois de ter rejeitado o Messias, não é mais o povo de
(Lc 1,5-25) e onde termina (Lc 24) o evangelho: a geografia Deus: “O reino de Deus será tirado de vocês, e será entregue
está a serviço da teologia, ela exprime sempre um pensa­ a uma nação que produzirá seus frutos” (Mt 21,43). O Israel
mento teológico. “verdadeiro”, não o “novo”, porque toda a herança vetero-
testamentária passa para a Igreja, uma comunidade de “ir­
W. Marxsen, com o evangelista Marcos, “segue uma mãos” , todos filhos de Deus e “discípulos” de Jesus, comu­
linha de coerência análoga (com Conzelmann) e essa corre­
nidade que se propõe a viver a moral do Reino.
lação não me parece casual [...] os estudos aqui apresenta­
dos devem remeter a uma interpretação global do evange­
lho”.12 Essa totalidade, partindo do exame de quatro trechos
(narrativas sobre o Batista, o meio geográfico, conceito de
evangelho, o capítulo 13), acaba como uma reflexão sobre a

13 Ibidem, pp. 70s. O livro “conserva a importância (e o fascínio) dos clássicos e dos
pioneiros e ninguém poderá passar ao lado desse trabalho de Marxsen sem nele deter-
se atentamente” (B. Maggioni, “Introduzione alFedizione italiana”, em Marxsen,
11Ibidem, p. 11. “Este ensaio sobre a teologia lucana [...] constitui o impulso fundamen­ Vevangelista Marco..., cit., p. VIII).
tal para os sucessivos estudos sobre o díptico Iucano, do evangelho e dos Atos [...] [a
14 T rilling , W. II vero israele. Studi sulla teologia dei vangelo di Matteo. Casale
partir daí] terão início as contribuições de G. Rossé, de H. Schürmann, de J. A . Fitzmyer,
Monferrato, Piemme, 1992 (original alemão 1958; 3. ed. 1964; reimpr. 1975).
de E. Rasco e de L. Sabourin em Lucas, como também as contribuições de J. Dupont
e de J. Schneider nos Atos dos Apóstolos" (A. Pitta, “Introduzione alPedizione italia­ 15 Ibidem, p. 18. “ Essa proposta de um estudo da teologia de Mateus ainda permanece
na” , em Conzelmann, 11 centro dei tempo..., c it, p. 8). válida não só pelo método de análise redacional, mas também pelo novo horizonte
12 Marxsen, Vevangelista Marco..., cit., p. 3. aberto sobre a teologia do primeiro evangelho canônico” (R. Fabris, “Introduzione
alFedizione italiana”, em Frillins, II vero Israele..., cit., p. 14).

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ENFOCANDO UMA CONTINUIDADE dição sobre a morte e a ressurreição a uma das tantas ou
ENTRE JESUS-TRADIÇÃO-EVANGELISTA considerando-a até mesmo inexistente (W. Schmithals). Ou­
tros, já no lado oposto (Riesenfeld, Gerhardsson, Riesner)
A direção do caminho traçado pelos pioneiros da re­ absolutizam a tradição, considerando-a separada dos demais,
dação é irreversível. Isso, porém, requer uma tríplice corre­ inalteradamente transmitida como ensinamento, reduzida a
ção, como se pode ver nos estudos relativos a Mateus, Mar­ uma transmissão verbal. Essa concepção explica bem o iní­
cos e Lucas do último quarto de século qué inclui numero­ cio, o momento da fala de Jesus, mas é incapaz de compre­
sos e ilustres pesquisadores também na Itália.16 ender o seu desenvolvimento posterior.
O texto evangélico, na realidade, é mais rico que o pen­ Um balanço seletivo dos estudos leva a afirmar uma
samento atribuído ao evangelista, e daquele que emana dos continuidade no desenvolvimento da formação do material
seus acréscimos e ajustes. Guarda as riquezas da tradição que evangélico que sofre uma reviravolta com a ressurreição. Na
conserva uma orientação intrínseca para Jesus. Além disso, se origem está a figura de Jesus, reconhecido como mestre —
é correto ver nos evangelistas uma preocupação de atualiza­ provavelmente com autoridade já de tipo messiânico pe­
ção pela qual, a partir do presente se faz a releitura do passa­ los discípulos, que viviam com ele e atentos para receber
do, toma-se necessário percorrer também o caminho inverso seu ensinamento e transmiti-lo. A tradição não é anônima,
e ver ali um passado como base do presente. Atualização e folclórica, mas confiada a pessoas escolhidas e preparadas,
memória são imprescindíveis. Por fim, se a “história das tra­ capazes de transmiti-la com as técnicas universais próprias
dições” destacou as diferenças entre os evangelistas (“vai abs­ do meio hebraico. A ressurreição não assinala um rompi­
ter-se de harmonizar os evangelhos só porque esses — eu quase mento com o ensinamento pré-pascal e nem sequer se limita
ousaria dizer, casualmente — apresentam em ampla medida a confirmá-lo. É nova revelação, é entendimento mais pro­
o mesmo material”, afirma W. Marxsen), agora é preciso su­ fundo, é criatividade orientada pelo Espírito na resolução
blinhar — como já acontece em diversos estudos — o que dos novos problemas, é conciliação entre fidelidade e liber­
eles contêm em comum. É preciso deixar de tomar em consi­ dade na reformulação.
deração apenas uma parte, ou a diferença ou a harmonia.
Válidas são, portanto, as indicações da instrução Sancta
Alguns estudos,17 pelo contrário, frisam o conflito no Mater Ecclesia de 21 de abril de 1964, para a qual “o exegeta
interior das tradições pelo que já não se fala de kérygma, considere com diligência os três estágios pelos quais o ensi­
mas de kerygmata ou pluralidade de credo, reduzindo a tra­ namento e a vida de Jesus chegaram até nós” (n. 2). Essa
instrução, no ano seguinte, foi introduzida na Dei verbum
(n. 19), do seguinte modo: “Jesus Filho de Deus, vivendo
16 Fabris, La Bibbia nell'epoca moderna e contemporânea, cit., pp. 221-224, 240-245. entre os homens, realmente fez e ensinou para a eterna sal­
17 Fusco, “ Introduzione generale ai sinottici”, cit., em Laconi, Vangeli sinottici e Atti
degli apostoli, cit., pp. 50-54, 114-118.
vação deles, até o momento em que subiu aos céus” (cf. At

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1,1-2). Depois da ascensão do Senhor, os apóstolos ensina­ registram-se agudas tensões, que encontram seu nó decisivo
ram aos seus ouvintes aquilo que ele havia dito e feito. Eles na relação entre as duas dimensões: presente-passado, men­
próprios haviam adquirido melhor compreensão de tudo, ten­ sagem-história, leitura dos textos-reconstrução dos aconte­
do sido instruídos pelos acontecimentos gloriosos de Cristo cimentos”.'9
e ensinados pelas luzes do Espírito Santo de cujo dom usu­
fruíam. Os autores sagrados escreveram os quatro evange­ Os capítulos seguintes apresentarão algumas reflexões
lhos selecionando algumas entre as tradições orais e escritas sobre os três estágios ou momentos, com o intuito de ajudar
já existentes. Fizeram uma síntese, considerando, na exposi­ o leitor numa atitude de discernimento.
ção, a situação das Igrejas e mantendo a pregação de Jesus
na sua forma direta, para nos comunicar o que dele nos vem,
de maneira verdadeira e sincera”. Esse percurso em três eta­
pas da formação dos evangelhos encontra um claro funda­
mento no prólogo de Lucas (1,1-4) que fala dos “aconteci­
mentos que se passaram entre nós” (a vida de Jesus), fala de
“testemunhas oculares e ministros da palavra” e da própria
“narração bem ordenada”, depois que muitos se haviam en­
tregue a um trabalho semelhante.
Quanto ao aspecto prático, da experiência extraída da
Dei verbum (n. 21 e n. 25), surgem hoje dois direcionamentos
complementares e que talvez cheguem a cruzar-se. De um
lado, irrompe o desejo de uma atualização do texto com as­
p iraçõ es p redom inantem ente pasto rais, esp iritu ais e
catequéticas,18 inspiradas principalm ente no método da
Lectio divina e de outro lado “explodem críticas acerbas à
exegese moderna, e principalmente quanto aos evangelhos

18 G. Betori, “Tendenze attuali nell’uso e nell’interpretazione delia Bibbia”, em Fabris, 19 Fusco, “Introduzione generale ai sinottici”, cit., em Laconi, Vangeli sinottici e Atti
La Bibbia nelVepoca moderna e contemporânea, cit, pp. 247-291.
degli apostoli, cit., p. 42.

34 35
2

Momento histórico

A afirmação largamente partilhada quanto à existên­


cia de uma tríplice trajetória dos evangelhos na sua forma­
ção precisa ficar livre de dois equívocos, um deles concer­
nente ao leitor, o outro concernente ao texto bíblico. Não se
pense, entretanto, que para compreender e viver os evange­
lhos é necessário reconhecer em cada página o que se deve
atribuir a Jesus, à comunidade, ao evangelista. Essa é a tare­
fa dos especialistas que, todavia, divergem freqüentemente
na distribuição de cada um dos versículos nos três estágios.
Quanto ao leitor, basta que ele tenha consciência desse fe­
nômeno para não se escandalizar diante de repetições, con­
tradições, truncamentos de frases e ser capaz de ler critica­
mente os estudos propostos. Falar dos três estágios, além do
mais, não significa introduzir uma hierarquia de valores nas
páginas do evangelho, como se fossem palavra de Deus ape­
nas os versículos referentes a Jesus. Tudo é inspirado e tudo
é normativo para o homem, uma vez que foi sempre o Espí­
rito Santo quem orientou os hagiógrafos ou escritores sa­
grados a escolher palavras e fatos da vida de Jesus e quem
guiou a Igreja nas adaptações necessárias das suas palavras
às novas condições (“traduzir sem trair”).

37
O aprofundamento daquilo que se refere a Jesus se dá acima do mar, Carmelo (“vinha ou jardim de Deus”, ou seja,
em dois momentos. O primeiro, simples e descritivo, faz a vinha muito bonita). Mais ao sul os montes de Gelboe que
coleta dos dados histórico-geográficos e político-religiosos lembram a trágica morte de Saul (cf. ISm 31). O altiplano
que servem de documento quanto ao clima e ao ambiente vai descendo a leste em direção ao lago de Genezaré (tam­
dos anos 30, quando o material evangélico teve início com a bém chamado da Galiléia ou de Tiberíades), costeado por
pregação de Jesus; o segundo, mais científico, propõe-se a povoados e cidades, entre as quais sobressaem Cafarnaum
responder a questão sobre os critérios para estabelecer aqui­ (Mc 1,21; 2,1) e a cidade pagã de Tiberíades, não abrangida
lo que remonta a Jesus, sem excluir a possibilidade de che­ pela pregação de Jesus. A alta Galiléia é circundada por
gar àquelas que foram chamadas de ipsissima verba Jesu (as montes que ultrapassam os mil metros, e ao extremo norte
autênticas palavras de Jesus). se avista o mais elevado, Hermon. A Galiléia, onde Jesus
viveu, é uma região belíssima: a planície, o lago, as colinas,
a montanha, o verde, as suas matas, fazem da Galiléia um
ambiente tranqüilo e repousante, ainda que o céu não seja
A GEOGRAFIA DA PALESTINA tão limpo como o de Jerusalém.
A Samaria, ao centro, foi percorrida mais vezes por
A pátria de Jesus,1 com uma superfície de aproxima­
Jesus e chama a atenção pela variedade de paisagens, pela
damente 25 mil km2, está dividida em duas partes desiguais
abundância das chuvas e, em grande parte, pela fertilidade da
pelo rio Jordão e pela depressão do mar Morto com os seus
terra; é importante pelo monte mais alto, o Garizim (881 m),
400 metros abaixo do nível do mar. A leste situa-se a
lembrado pela samaritana no diálogo com Jesus (“Os nos­
Transjordânia (parte da atual Jordânia) com a Peréia e a
sos pais adoraram a Deus nesta montanha” (Jo 4,20). Nele
Decápole grega (cf. M t 4,25) e a oeste a Cisjordânia (atual
estava erigido um tem plo cism ático construído pelos
Estado de Israel), por sua vez dividida em três regiões.
samaritanos no século IV — em oposição ao culto no Tem­
A Galiléia, ao Norte, é formada por uma ampla e fér­ plo de Jerusalém — profanado por Antíoco IV no século II e
til planície e circundada por vicejantes altiplanos e peque­ destruído no ano 128 a.C. por João Ircano.
nos montes. Merecem menção especial a colina sobre a qual
A Judéia, ao sul, com a capital Jerusalém, estende-se
Nazaré está situada e os montes Tabor (altitude 588 m) e,
por 25 quilômetros na parte meridional na direção do deser­
to montanhoso, que tem o mesmo nome, atingindo o mar a
oeste até a cidadezinha portuária de Giaffa e ao norte até
aproximadamente doze quilômetros de Siquém. As frontei­
ras da Judéia nem sempre foram iguais, e por esse nome se
Cf. M arconcini, B. Introduzione al Nuovo Testamento. 2. ed. Roma, ISSR “Ut unum
sint”, 1982. pp. 9-23.
indica, por vezes, uma região maior.

38 39
SITUAÇÃO SOCIOECONÔMICA E POLÍTICA
co, sobressai a precária condição da mulher, excluída da vida
A vida econômica pública, da cultura e da leitura nas sinagogas. Até o divórcio
era concedido ao homem “por ter visto nela alguma coisa
Para o povo do tempo de Jesus a economia se baseava inconveniente” (Dt 24,1). Assim se entrevê, portanto, como
na agricultura, na criação de animais, no artesanato e no tra­ foi sobretudo a mulher, reconhecida na sua dignidade e sem­
balho público do Estado (cf. os publicanos e os coletores pre tão sensível a quem a acolhe com afeição sincera, que
públicos, especialm ente para a cobrança de im postos: seguiu Jesus com entusiasmo.
Lc 5,27; 19,1-2). Havia pequenos proprietários e grandes
empresários com trabalhadores assalariados (cf. Mt 20,lss),
subordinados a adm inistradores com poder delegado A vida política
(cf. Lc 16). Na Galiléia praticava-se a pesca e, por vezes, até
Politicamente, a Palestina era obrigada a pagar tribu­
em cooperativa (cf. Lc 5,7.10). O artesanato prosperava so­
tos a Roma, a cujo império fora anexada por Pompeu M ag­
bretudo em Jerusalém (que talvez contasse com 25 mil habi­
no no ano 63 a.C., se bem que ainda gozasse de liberdade
tantes) e para onde, por ocasião da Páscoa, afluíam 60 mil
religiosa. A partir desse momento os destinos políticos são
peregrinos, que se tornavam fonte de renda e motivo de pre­
conduzidos por um idumeu, Herodes, o Grande. Ele foi há­
ocupação para os habitantes. A Palestina inteira talvez pu­
bil a ponto de agir com sagacidade nas incertezas daquela
desse contar com um milhão e meio de habitantes. O comér­
época, fazendo-se proclamar pelo Senado “rei amigo e alia­
cio, florescente nas cidades, era regulamentado pela moeda
do do povo romano”, e igualmente cruel: matou até sua es­
dos hebreus (siclo), romana (denaro) e grega (a dracma) e
posa Mariamne, que a seu modo ele amava afetuosamente, e
também fenícia.
os seus filhos. Formalmente respeitou as instituições religio­
O Templo, além de lugar de oração, era um verdadeiro sas do povo hebreu, ampliou e embelezou o Templo (c f Jo
centro comercial pelas grandes receitas que para ele afluíam, 2,20; Mt 24,1). Os seus últimos anos foram marcados por
provenientes da taxa anual pessoal (imposto do Templo: cf. graves problemas internos e externos que o tomaram sus­
Mt 17,24), das oferendas dos peregrinos, dos sacrifícios e peito até de ordenar a chamada m atança dos inocentes
dos rendimentos dos bens fundiários. Com os tributos que o (cf. Mt 2,16-23).
cidadão devia pagar ao ocupante romano, pode-se calcular
Por ocasião de sua morte foi o próprio imperador
que não menos de 40% do mísero rendimento de cada pes­
Augusto quem dividiu o reino de Herodes, confiando a Judéia
soa se convertesse em taxas, destinadas também para aumen­
a Arquelau (o pai o queria herdeiro único), deposto dez anos
tar o bem-estar dos ricos (cÉTMt 18,23-30; Lc 16,1-7.19-20).
depois, no ano 6 d.C., por incapacidade e crueldade, em ra­
Na gritante desigualdade socioeconômica geral, ainda que
zão do que a Judéia foi governada por um administrador ro­
atenuada na Palestina pela influência do pensamento bíbli­
mano. As regiões do Norte, por sua vez, foram confiadas a
40
41
Herodes Antipas, o assassino do Batista, pelos conhecidos denação de Jesus (plenamente responsável ou instrumento
fatos de Herodíades (Mc 6,17-29) e inimigo de Jesus (Lc dos objetivos dos chefes judeus?) ainda necessita ser expli­
13,31-33; 23,6-12). Conservou o reino até o ano 39 d .C , cado.3 Já para os cristãos uma coisa é clara: Jesus “padeceu
quando foi deposto pelo domínio do primo Herodes Agripa I, sob Pôncio Pilatos”.
com quem Pedro teve de se haver. A Ituréia com as áreas
limítrofes no extremo Norte foram entregues a Herodes Fili­
pe II (cf. Lc 3,1), que delas cuidou pacificamente até 34 A vida religiosa
d.C., ano de sua morte. Ele não deve ser confundido com A educação religiosa do menino cabe sobretudo ao pai,
Herodes Filipe I, que em Roma cuidou de sua vida privada, que, assim que o menino começa a falar, ensina-lhe a oração
e cuja mulher Herodíades uniu-se a Herodes Antipas. do dia-a-dia, o shema‘ (a escuta), composta pelo texto do Dt
Portanto, o Herodes com quem Jesus teve de se haver 6,4-9, ao qual foram acrescentados Dt 11,13-21; Nm 15,37-
é Herodes Antipas, construtor da cidade de Tiberíades, for­ 41, e o Shemoneh ‘Esrèh (que em hebraico quer dizer dezoi­
malmente respeitoso — como seu pai — das tradições ju ­ to), composta de dezoito bênçãos, algumas delas semelhan­
daicas, tanto é que se deslocou em peregrinação até Jerusa­ tes ao pai-nosso. Quando já sabe andar é ainda o pai que o
lém (cf. Lc 23,7): inimigo acérrimo de Pilatos, que lhe retri­ leva à sinagoga e ao Templo, onde aos treze anos de idade
buía na mesma moeda, tomou-se seu amigo por ocasião da toma-se “filho do preceito”, com a leitura pública da Torá.
condenação de Jesus. Instigado pela ambição de Herodíades, É fácil encontrar junto do Muro das Lamentações, em Jeru­
deslocou-se para Roma a fim de pedir o título de rei, mas o salém, meninos de treze anos que, orientados por adultos,
imperador Calígula, acolhendo a petição de uma delegação lêem em voz alta a Bíblia. Uma tradição antiga fixa desta
de cidadãos, abandonou-o no exílio em Lião (39 d.C.). Me­ forma as etapas da vida de um menino: “Aos cinco anos de
rece ser mencionado o último (o quinto) procurador romano idade começa o estudo da Bíblia, aos dez anos a Mixná (tra­
na Judéia, Pôncio Pilatos (26-36 d.C.), violento, servil em dições orais), aos treze os preceitos da Lei, aos dezoito tem
relação aos superiores como também intransigente e arro­ lugar a Chuppali (celebração do casamento)” (Mixná, Abot
gante com os subordinados, desprovido das qualidades polí­ 5,21). Normalmente a mocinha contrai matrimônio aos 12-
ticas necessárias para governar uma província como a Judéia. 15 anos. A instrução básica ainda continua, quer pela
A fim de manter a ordem, estava pronto a recorrer “à violên­ freqüentação assídua da sinagoga, onde é lida de modo es­
cia, à extorsão, à brutalidade, às torturas e a toda sorte de pecial a Torá (“Lei”, ou melhor, “instrução divina”), quer
execuções sem qualquer julgamento”.2 O seu papel na con­ freqüentando a escola de alguém, como fez Paulo com

' FIi.on. Legatio ad Caium. p. 302. 3 Fabris, Gesü di Nazareth..., cit., pp. 295-301.

43
Gamaliel e os apóstolos com Jesus. Depois dessa instrução parte a imortalidade da alma, a ressurreição, a existência
fundamental e superior, há outros mestres que servem de dos anjos, a providência, e no terreno prático... a luta contra
guia para a pessoa por toda a vida. o domínio romano. Entre os aproximadamente seis mil adep­
tos, alguns acreditaram em Jesus, como Nicodemos (Jo 3,1;
O sumo sacerdote eleito com uma investidura solene
(cf. Ex 29,4-7; Lv 8,6-12) é o chefe da nação com poder cf. At 5,34) e Saulo, depois chamado Paulo, “fariseu quanto
religioso e civil, sendo esse último limitado pelos romanos. à lei” (F1 3,5).
Ele desempenha sua função especialmente no dia da Expia­ Os saduceus, mencionados juntamente com os fariseus
ção ou Kipur, vigia sobre o culto e sobre a aplicação da Lei, (Mt 3,7; 16,1.6) e citados isoladamente quando contestam a
preside a suprema assembléia do povo, o sinédrio. Este é ressurreição (Mt 22,23), representam a alta aristocracia sa­
formado por setenta membros escolhidos entre os pontífi­ cerdotal e o poder econômico. Amigos dos romanos, pere­
ces (isto é, os ex-sumos sacerdotes como Anás em João 18,13 ceram na guerra judaica dos anos 66-70, quando prevaleceu
e os membros das grandes famílias sacerdotais), entre os o partido nacionalista dos zelotes. Existem ainda outros gru­
anciãos (representados pela rica aristocracia leiga) e entre pos como os herodianos, sequazes da dinastia de Herodes e
os escribas ou doutores da Lei (normalmente membros do os essênios, de notável perfil espiritual e moral. Estes últi­
partido fariseu: cf. Mt 26,57; Mc 11,27; 14,43.53; 15,1; Lc mos, no século II a.C., tendo se separado da oficialidade
20,1), depositários da ciência (cf. Jo 7,15) e peritos nos so­ judaica de Jerusalém, refugiaram-se em um mosteiro e nas
fismas da lei (Mt 15,4-9). Definidos por Jesus como “guias grutas de Qumran,4 nas margens do noroeste do mar Morto,
cegos” (cf. Mt 15,14), os escribas provêm de dois grupos ou onde, desde 1947, em diversas etapas, foram encontrados
movimentos, bastante poderosos no tempo de Jesus, os preciosos manuscritos bíblicos contendo comentários de
fariseus e os saduceus. vários gêneros. Os essênios, os solitários do deserto, culti­
vavam uma viva expectativa do Messias (ou melhor, dois
Os fariseus se distinguem pela rigorosa observância
Messias, o de Davi e o de Aarão) sob a orientação do Mestre
das sutis prescrições a respeito dos sacrifícios, dos tributos,
da Justiça. Foram exterminados por Vespasiano pela sua par­
das oblações, do puro e do impuro, do sábado e dos seiscen­
tos e treze preceitos fixados pela tradição. Consideram-se ticipação na revolta contra Roma no ano 66 d.C.
santos e justos (Lc 18,9ss) e distribuem de maneira ostensi­
va esmolas ao povo (Mt 6,2). O desentendimento com Jesus
surge do orgulho com que defendem suas posições, da hos­
tilidade diante da liberdade do Mestre na interpretação da
Lei e no tomar-se amigo dospecadores (Mc 2,16): são des­
tinatários das célebres exclamações ou invectivas (Mt 23,13- 4 F itzmyer J A Qumrân. Le domande e le risposte essenzíali sui manoscritti dei Mar
Morto. 2. ed. Brescia, Queriniana, 1995. (GdT, 230). Nas páginas 145-154 fala dos
33). Do seu ensinamento, na maior parte das vezes, fazem
essênios.

44 45
A expectativa messiânica completa o quadro e a at­ no entanto, divergem quanto ao número e sobre o valor a ser
mosfera espiritual do ambiente em que se coloca a palavra atribuído aos diversos critérios.5
de Jesus: ela se faz mais intensa nos momentos difíceis,
É possível — e é preciso perguntar-se antes de mais
projetando-se em um libertador político, capaz de destruir
nada — chegar a algo objetivo, além da atitude do estudio­
o pesado jugo do estrangeiro. Jesus, alheio aos objetivos
so, além da sua perspectiva, do seu ponto de vista, daquilo
humanos, corresponderá mais aos anseios do povo hum il­
de e pobre. que com o termo técnico é chamado Vorverstandnis ou pré-
compreensão? Não há dúvida de que se alguém se aproxima
dos evangelhos pensando que eles não contêm nada de his­
OS CRITÉRIOS PARA SE CHEGAR A JESUS tórico, terá resultados diferentes de quem julgar que neles
vai encontrar sempre as próprias palavras de Jesus. Perma­
Os discípulos, depois da Páscoa, proclamam Jesus nece, contudo, verdadeiro que se pode alcançar o que Jesus
Messias e Senhor (At 2,36). Esse ato de fé pode ser enten­ viveu, a sua situação existencial por meio de um método
dido como um desenvolvimento em relação aos dados pré- correto de aproximação dos evangelhos. Esse método inclui,
pascais, mas apenas se conseguirmos chegar à experiência antes de mais nada, que consideremos verdadeiro o que os
de Jesus, ao seu modo de dizer e de fazer as coisas, especial­ evangelhos dizem, a menos que haja provas em contrário,
mente os seus gestos incomuns, como os milagres. Só assim assim como acontece nas relações com as pessoas. Além
pode aparecer a verdade, pela qual são os feitos de Jesus disso deve-se lembrar também como principalmente no
que levam os apóstolos a crer, e não a fé deles que cria os mundo antigo as formas literárias breves (uma frase ou um
fatos. relato) tendiam a permanecer imutáveis. Portanto, tirando
aquilo que é próprio do evangelista e o que é próprio da
catequese comunitária, aquilo que ainda sobra é de atribuir-
Uma observação metodológica
se a Jesus. Em uma terceira passagem — e é disso que nos
Repetidas vezes os evangelistas revelam a intenção de ocupamos agora — queremos descobrir razões seguras,
permanecer fiéis a tudo quanto receberam. Lucas, de modo
especial, afirma ter feito estudos cuidadosos (Lc 1,1 -4). Isso
é importante, mas não suficiente para o nosso problema de
análise, de pesquisa, ou seja, quanto aos critérios objetivos 5 L ambiasi, F. Uautenticità storica dei vangeli. Studio di criteriologia. Bologna Edb,
que tornam a fé um obséquio da razão, possibilitando uma 1987 (Studi Biblici, 4). la Potterie, I. de. Come impostare oggi il problema dei Gesú
storico. La Civiltà Cattolica, 120 (1969), II, pp. 447-463; Z edda, S. Criteri letterari e
resposta de esperança que está em nós (cf. 1Pd 3,15). Esse criteri reali nella ricerca dei Gesú storico. Rivista Biblica, 21 (1973), pp. 329-336,
discurso, iniciado nos anos 50 e aprofundado nos anos 60, Fusco, V. Tre approcci storici a Gesú. Rassegna di Teologia, 23 (1982), pp. 311-328;
Idem, “Introduzione generale ai sinottici”, cit., em Laconi, Vangeli sinottici e Atti
cm diversos aspectos tem a concordância dos estudiosos que, degli apostoli, cit, pp. 119-132.

46 47
argumentos cientificamente convincentes, critérios capazes las como a do filho pródigo acolhido com um am or
de nos tranqüilizar de que determinada palavra ou determi­ inalterado (Lc 15,11-32). A prática exorcista exercida por
nado fato remonta exatamente a Jesus. Esses critérios são Jesus é um dado certamente histórico.
“úw normas aplicadas ao material evangélico, que oferecem
É de se observar como essa múltipla atestação diz res­
a possibilidade de demonstrar a fundamentação histórica dos
peito não a palavras isoladas, mas a aspectos fundamentais
relatos e emitir um juízo sobre a autenticidade ou não do seu
da vida de Jesus ou da sua atividade: a pregação do reino
conteúdo”.6
como núcleo central da sua missão em oposição a um mes­
sianismo político, à contestação de escribas e fariseus a pro­
Cinco critérios convergentes pósito da observância superficial da Lei, à linguagem carac­
terística de Jesus, especialmente o uso do gênero parabóli­
a) O depoimento múltiplo co. Na prática, as passagens de tradição tríplice voltam-se
para a autenticidade, ainda que essa depois seja corroborada
Um dado evangélico remonta a Jesus se estiver pre­
pela presença de outros critérios.
sente em várias fontes. A sua diversidade pode ser reduzi­
da a uma tríplice origem: Marcos e Q na chamada “teoria
das duas fontes”, outras contribuições que Mateus e Lucas b) A descontinuidade
recebem por informações próprias e, por fim, os depoi­
mentos sobre Jesus presentes nos demais escritos neotes- É o critério que encontra maior consenso entre os es­
tamentários (Atos dos Apóstolos, evangelho de João, car­ tudiosos. Jesus é um personagem esperado, mas uma vez
tas paulinas, especialmente autênticas). A probabilidade de chegado é visto como um Messias diferente em relação às
que um trecho remonte a Jesus aumenta na proporção em expectativas comuns. Até o Batista o imaginava um homem
que se encontre em formas literárias diferentes. Assim, por de caráter forte, em vez de ser paciente e humilde. Descon­
exemplo, o amor de Jesus para com os pecadores encontra- tinuidade significa que o pensamento de Jesus é novo, que
se em relatos sobre a vocação como o chamamento do ele assinala um rompimento com a tradição judaica e tam­
publicano Levi Mateus, seguido do comentário “come e bém com aquilo que a Igreja primitiva desempenhará nessa
bebe junto com os cobradores de impostos e pecadores” ligação com situações diversas. A diversidade atinge ainda a
(Mc 2,16), em relatos de milagres, como a cura do paralíti­ forma literária. O evangelho, na realidade, não é propria­
co cujos pecados lhe são perdoados (Mc 2*^) e em parábo- I mente biografia, apologia, especulação doutrinal, e sim tes­
temunho sobre um homem único e irrepetível. Ele não se
identifica com nenhuma outra maneira de expressão própria
dos antigos e contém palavras singulares quanto ao seu sig­
I .atourelle, A Gesü attraverso i vangeli..., cit., p. 248. nificado. Assim, por exemplo, o cognome Abbà (papai,

48 49
painho), revela relações íntimas com Deus, desconhecidas do po de Jesus, tão caracteristicamente marcado na dimensão
judaísmo antigo; a interpretação da Lei como ajuda e serviço humana (trabalho, habitações, profissões), cultural (modo
ao homem, enquanto evita de fazer dele um transgressor ou de pensar, influência da língua aramaica), sociopolítica e
um legalista, posiciona-o contra a mentalidade comum que religiosa, especialmente na divisão dos grupos (fariseus,
exaltava exageradamente o valor do descanso sabático. Jesus saduceus, herodianos) como se expôs no item anterior. As
une na sua pessoa a majestade da descendência davídica e a passagens que refletem essa atmosfera têm grande proba­
humildade do servo sofredor; rompe com a tradição e escolhe bilidade de se terem originado exatamente no período da
os discípulos, quando comumente acontecia o contrário. vida pública de Jesus.
Não menos forte é a diferença com a visão da Igreja Outros estudiosos dão valor a uma conformidade com
primitiva. Essa que o adora como “Messias” e “Senhor” ja ­ o ensinamento central de Jesus, isto é, com a vinda iminente
mais o teria feito batizar juntamente com os pecadores, dei­ do reino messiânico. Nessa perspectiva tornam-se autênti­
xando, além do mais, transparecer uma inferioridade em re­ cas as palavras focadas no reino, as bem-aventuranças, os
lação a João Batista; o mesmo se diga de episódios como as milagres, as tentações no deserto, o confronto com satanás e
.tentações, a agonia, a morte na cruz. Algo semelhante apa­ os demônios. Esse critério completa o anterior sobre a
rece na conservação de dados pouco honrosos para os após­ descontinuidade que faz emergir a unicidade da pessoa e do
tolos, como a incompreensão das palavras de Jesus, a trai­ ensinamento de Jesus.
ção de Judas e a negação de Pedro. A ordem de Jesus de não
pregar fora da Palestina é observada mesmo quando a Igreja
já se difundia, com as viagens de Paulo, em todo o Império d) Explicação necessária
Romano. Esse critério faz encontrar um minimum seguro. Vamos partir de um exemplo. Quando o investigador
Seria errado, contudo, reduzir o dado histórico apenas a isso, policial tem diante de si elementos contraditórios, indícios
descartando apriori qualquer elemento que concorde com o diversos, ele formula uma hipótese que, obviamente, tem de
pensamento anterior ou posterior, recuperável como autên­ ser submetida a uma análise. Será verdadeira aquela hipóte­
tico à luz de outros critérios. se capaz de explicar todos os dados contrastantes. Esse cri­
tério possibilitará passar dos fenômenos à sua explicação.
Há nos evangelhos tantos dados (episódios e maneiras de
c) Conformidade
falar) que podem ser explicados apenas se na sua origem
Esse critério, referente com menos acerto à continui­ colocarmos uma pessoa extraordinária como a de Jesus. Se,
dade ou à coerência, é diversamente entendido em relação em vez disso, atribuirmos esses episódios e maneiras de fa­
à realidade com que se defende a conformidade ou a coe­ lar a uma comunidade mais ou menos típica, não se fica
rência. Para alguns trata-se do ambiente palestino do tem­ completamente satisfeito. Pense-se neste conjunto de dados:

50 51
o sucesso extraordinário da pregação, os dados contrastan­ os fariseus hipócritas e mentirosos, Jesus convida a todos a
tes na Galiléia e depois em Jerusalém, a fé constante em aproveitar a oportunidade única (o kairós) para encontrar a
Jesus Messias, Senhor, por parte dos apóstolos, decididos a salvação por meio dele. O seu estilo é simples, sóbrio, de
separar-se dos compatriotas ao preço de profundas lacerações quem fala com autoridade. Registramos algumas frases que
(cf. Rm 9,1-5), os milagres relatados, quer pela tradição atestam isso: “Menina, eu digo a você, levante-se... venha...
sinótica quer pela joânica, a afirmação peremptória de Jesus siga-me... a vocês foi dito..., mas eu lhes digo... o^céu e a
de ser filho na intimidade do Pai, a correlação permanente terra passarão, mas as minhas palavras não passarão . A sim­
dos prodígios com a própria missão: “Para que vocês sai­ plicidade, a sobriedade, a autoridade presentes nas palavras
bam que o Filho do Flomem tem poder na terra para perdoar pode ser encontrada também nos gestos e nos milagres. E
pecados — disse Jesus ao paralítico — eu ordeno a você: claro que o estilo por si só não é suficiente, mas ele adquire
Fevante-se, pegue a sua cama e vá para casa” (Mc 2,10-11). um valor (é definido um critério secundário) unido aos ante­
riores. A prova definitiva da autenticidade de uma passagem
Esse critério pode ser aplicado também a episódios é dada por vários critérios convergentes.
específicos. Assim, por exemplo, a historicidade da multi­
plicação dos pães (Mc 6,34-44 par.) resulta da confiança que Com a aplicação desses critérios chega-se a reconhe­
surgiu na multidão que queria proclamar Jesus rei, do con- cer o meio sociopolítico e religioso de Jesus, as grandes li­
seqüente surgimento de um movimento messiânico, da reti­ nhas de seu ministério (a começar com o entusiasmo inicial
rada imediata ordenada por Jesus, do destacado senso cris- até chegar às incompreensões, ao processo, à morte) e^os
tológico do episódio capaz de revelar quem ele é, e da im­ grandes acontecimentos: batismo, tentações, transfiguração,
portância que assume na tradição sinótica e joânica subse- milagres, exorcismos, o confronto com os fariseus, a traição
qiiente, na patrística e até mesmo na iconografia. de Judas, a vocação e a missão dos apóstolos, os aconteci­
mentos do mistério pascal.

tj O estilo de Jesus
O seu modo de falar é incisivo, cheio de autoridade,
Nolene, sublime, engajante do ouvinte que fica sendo sem­
pre livre diante das exigências do mestre. O estilo literário
demonstra o arcaísmo de tantas expressões (”èm verdade,
em verdade eu lhes digo...”) e abre ao estilo de vida que
revela na linguagem um modo inconfundível de pensar. Je-
■us demonstra paciência e amor para com os pecadores, uma
percepção profunda das mais variadas situações. Duro com
53
ia
3

Momento da tradição

A experiência pascal renova completamente o grupo


dos Doze. A certeza de que a morte de Jesus não foi um fim,
mas a plena realização de si, o cumprimento de uma vida de
doação, infunde coragem, torna os apóstolos ativos. E assim
eles se tomam “testemunhas” de um fato capaz de infundir
em cada pessoa a esperança, e iniciam uma missão que ten­
do como ponto de partida Jerusalém, a Samaria e as regiões
do Norte os impele até os confins da terra. Mesmo profun­
damente transformados, eles continuam sendo os mesmos;
“Jesus chamou os que desejava escolher... constituiu o gru­
po dos Doze, para que ficassem com ele e para enviá-los a
pregar” (Mc 3,13-15), com normas de conduta (Mt 10,1-5)
e com a perspectiva de sucessos e de riscos (Mt 10,6-42),
com o entusiasmo de ter vencido as forças demoníacas (Lc
10,17-18).
Depois da Páscoa a comunidade recebe um mandato
mais abrangente (“Vão e façam com que todos os povos se
tornem meus discípulos, batizando-os em nome do Pai, e
do Filho e do Espírito Santo e ensinando-os a observar tudo
o que ordenei a vocês” (Mt 28,19-20) e tudo se amplia.
Matias toma o lugar de Judas (At 1,24-25); algumas mu­
lheres e os parentes de Jesus (At 1,14) aparecem em posi-

55
ção de destaque; três mil pessoas (At 2,41), vindas de to­ O querigma
das as nações do mundo (At 2,5), unem-se no dia de Pente­ Essa palavra evoca o anúncio solene do arauto depois
costes e, depois da cura do aleijado, tornam-se cinco mil de uma retumbante vitória, a espontaneidade e a difusão rá­
(At 4,4). Em seguida, “a cada dia o Senhor acrescentava à pida de um acontecimento, o grito forte para tornar pública
comunidade outras pessoas que iam aceitando a salvação” e oficial a notícia: “Que todo o povo de Israel fique sabendo
(At 2,48): o aumento contínuo e rápido é destacado por com certeza que Deus tornou Senhor e Cristo aquele Jesus
Lucas com grande complacência (At 5,14; 6,1.7; 9,31; que vocês crucificaram [...] libertando-o das cadeias da
11,21.24; 13,48s; 16,5; 19,20) e torna-se prodigioso com morte” (At 2,36.24). O centro do querigma é o mistério pascal
as viagens de Paulo, que introduzem na Igreja pagãos de que registra um juízo diferente e uma atitude diferente em
línguas e de culturas diferentes. relação a Jesus: Deus o ressuscitou, o homem matou o autor da
E a vida e a atividade dessa comunidade em expansão vida. Isso se repete nos Atos dos Apóstolos (3,12-26; 4,8-12;
é o lugar do surgimento e do desenvolvimento dos evange­ 5,29-32; 10,34-43; 13,16-41) e no conjunto de cartas de Paulo
lhos, o seu Sitz im Leben que procuramos reconstituir em (IC or 15,3-5; 11,23-27; Rm 1,1-4).
quatro passagens. A primeira, descritiva, apresenta o modo A morte e a ressurreição de Jesus vão sendo compre­
de agir do grupo; a segunda, valorativa, faz uma reflexão endidas aos poucos, como projeto de Deus, presente nas
sobre as atitudes e as convicções de uma comunidade capaz Escrituras e testemunhado com maior evidência em qual­
de manter-se fiel a Jesus; a terceira passagem é retrospecti­ quer texto particular. “O kérygma se enriquece com os se­
va. Faz ver a existência de uma gradual “releitura” da vida guintes elementos: os tempos do cumprimento chegaram;
terrena, enquanto a quarta passagem, conservativa, condensa eles vêm caracterizados por: ministério, paixão, morte, res­
e fixa a vida de Jesus e da Igreja em um ou vários escritos surreição e glorificação de Jesus. A salvação se cumpre
que constituem a base dos nossos sinóticos. mediante a fé em Cristo e com o batismo que realiza a re­
missão dos pecados e infunde o Espírito. O kérygma instau­
ra um elo indivisível entre o acontecimento-Jesus e o seu
poder salvífico” .1 Isso está no centro entre um fato extraor­
ATIVIDADES DA COMUNIDADE dinário (por exemplo, a descida do Espírito em Pentecostes
ou a cura de um doente) e o convite à conversão, e aparece
A evangelização é um processo unitária de comunica­ em hinos, confissões de fé e em textos narrativos.1*
ção do acontecimento de Jesus morto e ressuscitado e pode
assumir fundamentalmente duas formas e duas etapas dife­
rentes e complementares.
1 L atourelle,R. Kérygma. In: Dizionario cli teologia fondamentale. Assisi, Cittadella,
1990. p. 627.

57
56
A catequese afirmar que a referência ao Antigo Testamento é uma di­
Constitui explicitação ulterior o aprofundamento, a mensão presente em todos os textos do evangelho, porque,
articulação do querigma. A extensão no tempo desse perío­ quer para aqueles que estão na origem da tradição Jesus e
do justifica a presença freqüentíssima do termo no Novo a comunidade pré-pascal — quer para aqueles transmitidos
Testamento.2 Os primeiros cristãos “eram perseverantes em nos diferentes estágios da tradição, era fundamental inter­
ouvir o ensinamento dos apóstolos” (At 2,42), os quais esta­ pretar cada episódio como realização do plano de Deus [...]
vam “no Templo ensinando o povo” (5,25). Livres da insti­ (a comunidade) chegou a atribuir ao que Jesus disse, que já
tuição dos diáconos, dedicam-se “à oração e ao serviço da antes gozava de grande prestígio, a mesma autoridade que a
Palavra” (6,4), assim como faz Paulo em Corinto, “onde fi­ palavra de Deus nas Escrituras [...] (pelo que) aquilo que
cou um ano e meio entre eles, ensinando a Palavra de Deus” Jesus falou pode passar por reelaborações e adaptações” .13
(18,11). O sermão da montanha (Mt 5-7) é um exemplo da Grande convite à reflexão vem, portanto, por meio da
atividade catequética na perspectiva moral, uma elaboração atividade missionária. A recuperação de alguns aspectos da
de princípios gerais de comportamento ou preceitos-meta e missão iniciada pelo Jesus terreno (cf. Mc 6,7-13; Mt 10) se
uma condensação de algumas aplicações específicas. une depois da Páscoa à aquisição de novas metodologias para
O objeto da catequese é tríplice. Com base no exem­ levar o evangelho a todos. Os discursos paulinos dos Atos
plo de Jesus, que explica “para os discípulos todas as passa­ dos Apóstolos podem ser lidos na perspectiva de como o
gens da Escritura que falavam a respeito dele” (Lc 24,27), a único anúncio de Jesus morto e ressuscitado é formulado e
comunidade ilumina com a Bíblia o acontecimento-Cristo, passa por adaptações quando é apresentado aos judeus (em
com preendido sempre mais como vértice de um plano Chipre, em Antioquia da Pisídia e em Icônio), aos pagãos
salvífico que foi se revelando paulatinamente. Prova disso é (pela decisão do concílio de Jerusalém na atuação histórica
o uso que João faz do verbo “lembrar”, empregado para in­ nas diferentes cidades) e aos cristãos (em Trôade e em
dicar uma compreensão em profundidade com o recuo do M ileto).4*Exemplo muito bom de catequese em períodos,
tempo: “Nesse momento, os discípulos não entenderam o correspondentes às três perguntas, é o diálogo entre Filipe e
que estava acontecendo. Mas quando Jesus foi glorificado, o eunuco (At 8,26-40), um excluído da comunidade pelo
eles se lembraram que haviam feito com Jesus aquilo que a seu estado físico, e, no entanto, certo de ser acolhido por
Escritura dizia” (Jo 12,16; cf. 2,22). A reflexão sobre a Bí­ Deus. Era necessário que alguém o deixasse entrever que o
blia é uma atitude constante da comunidade, “k ã o é demais

3 Monasterio & Carmona, Vangeli sinottici e Atti degli apostoli, c it, p. 35.
1 Kerygma ocorre 8 vezes no Novo Testamento e kerysso (anunciar) aparece 61 vezes;
4 Cf. M arconcini, B. Atti degli apostoli — Commento esegetico-spirituale. Leumann-
dkkichà (ensinamento-catequese) 30 vezes, e didásko (ensinar) 94 vezes.
Torino, Ldc, 1994. pp. 189-340.

59
texto obscuro de Isaías sobre a ovelha conduzida ao mata­ O trabalho de tradução se dá mediante uma admirável
douro (Is 53,7-8) dizia respeito a ele pessoalmente, que iden­ síntese de fidelidade e de criatividade, presente em quatro
tificasse então o personagem capaz de doar a vida pelos ou­ adaptações:6 lingüística, do aramaico para o grego com adap­
tros e o conduzisse, por fim, ao batismo como o momento tações, por exemplo, das palavras da ceia e do pai-nosso;
do encontro com Cristo. Está traçado aqui um programa de social, pela passagem de uma civilização rural para uma ci­
catequese para alcançar a fé: necessidade de um guia sobre vilização urbana das grandes cidades como Antioquia, Éfeso,
o valor amplo da Palavra, leitura cristológica dela conforme Corinto, Roma; cultural, com a extensão, por exemplo, da
uma linha de predição-cumprimento, profissão de fé no po­ proibição do divórcio também para a mulher no meio greco-
der salvífico de Cristo, que se une ao homem no sacramento. romano (cf. Mc 10,11-12); eclesial, com a evolução do rela­
O terceiro universo de catequese concerne à ilumina­ cionamento entre cristãos pelo aparecimento de novos pro­
ção dos problemas do dia-a-dia, às relações entre os diferen­ blemas (organizacionais, morais, religiosos).
tes grupos cristãos e às relações destes com o meio judaico e
pagão. O evangelho toma forma quando, da lembrança de Je­
sus os cristãos aprendem como comportar-se diante dos peca­ EVANGELHO DE TODA A VIDA DE JESUS
dores (Mc 2,16), do jejum (Mc 2,18), do repouso sabático Se de início o querigma se limitava a apresentar como
(Mc 2,24), do casamento (Mc 10,2.9), das riquezas (Mc 10,25),
salvífico o último momento da vida de Jesus, o mistério
do perdão (Mt 18,21), da virgindade (ICor 7,25) e da recep­
pascal da morte e ressurreição, ele recuperou depois todo o
ção dos pagãos na Igreja (At 11,16). “Quando alguém se en­
material “relativo a Jesus”, isto é, toda a vida terrena do
contrava diante de um novo problema, diante de uma nova
Mestre. Ela recebeu a releitura com aquele “mais pleno en­
situação, era levado a aprofundar este ou aquele aspecto do
tendimento” que deriva da luz da Páscoa e foi adquirida gra­
mistério, a lembrar-se deste ou daquele acontecimento, a fa­
dualmente, e que pode ser sintetizada em quatro fases.
zer referência a esta ou aquela palavra do Senhor que fosse
capaz de transmitir um esclarecimento”.5 A catequese, por­ A paixão foi o primeiro bloco que interessou os após­
tanto, também diz respeito ao comportamento moral e con­ tolos. O choque que eles sentiram exigiu uma reflexão ime­
duz à correspondência entre vida e credo por meio da exorta­ diata em vista de uma compreensão que cresce partindo de
ção. Exemplos célebres são as cartas paulinas, e nelas a exor­ Marcos, a Mateus, a Lucas, até chegar à concepção joânica
tação representa uma parte (ex. Rm 12-16) ou exatamente a da morte como glorificação. Prova dessa primeira atenção
metade do texto (Ef 4-6). É nas mesmas cartas que a atividade da comunidade guiada pelos apóstolos é a singular extensão
externa da comunidade é qualificada com “evangelizar”.

6 S egalla, G. Panorama letterario dei Nuovo Testamento. Queriniana, Brescia, 1986.


5 Auneau, J. et al. Vangeli sinottici e Atti degli apostoli. Roma, Borla, 1983. p. 30. (LoB, 3.6). pp. 72ss.

60 61
do texto a respeito das poucas horas que duraram os fatos Os evangelhos sobre a infância presentes em Mateus
(em Marcos representa um sexto de todo o seu texto), pelo (caps. 1-2) e Lucas (caps. 1-2) formam uma reflexão mais
que parece digna de menção a definição de M. Káhler do tardia e apresentam perspectivas divergentes, junto com al­
evangelho como “relato da paixão com uma longa introdu­ gumas convergências significativas.8 É possível compre­
ção”. Além do que comprovam isso o realismo das descri­ endê-las tendo presente o seu modo de expressar-se, que é
ções e a presença de uma idêntica sucessão das partes nos uma feliz síntese de história, midraxe9 (ou comentário
quatro evangelistas: paixão e ressurreição serão objeto de edificante), teologia, como será explicitado ao tratar dos
especial atenção na terceira parte deste livro. respectivos evangelhos.
Os ditos presentes em Q (= Quelle ou fonte) compre­
endem todo o material narrativo comum em Mateus e Lucas A A LM A DA EVANGELIZAÇÃO
e ausente em Marcos: estendem-se por 230-240 versículos,
um quinto dos dois evangelhos.7 Trata-se, em grande parte, Não basta encontrar uma ampla e diversificada ativi­
do sermão da montanha (Mt 5-7; Lc 6 e 11-13 ora sim, ora dade de transmissão que justifique um desenvolvimento a
não), de episódios iniciais (o Batista e as tentações) e de respeito dos ditos e feitos de Jesus. É preciso chegar à certe­
outros fatos como, por exemplo, a delegação do Batista e a za de que essa transmissão aconteceu com a característica
cura do endemoninhado. Esse material, pela metade quase da fidelidade. É necessário conhecer as atitudes interiores
idêntico na seqüência dos temas e no tom das palavras, está da comunidade, o espírito, as tendências, a mentalidade.
espalhado em Mateus nos cinco discursos e em Lucas na “Trata-se, pois, de descobrir por meio de uma espécie de
grande viagem. psicanálise quais os reflexos espontâneos, por assim dizer
viscerais, da comunidade primitiva em confronto com Jesus
Milagres, parábolas e controvérsias são unidades bem
e a sua palavra e, por conseqüência, qual a estrutura psicoló­
identificáveis. Constituem a seção dos milagres (Mc 4,35-5,43;
gica e mental dessa comunidade. Consideramos ser possível
Mt 8,1-9,7), as parábolas (Mc 4,1-34; Mt 13) e as cinco dis­
empreender uma pesquisa do gênero, mediante os caminhos
cussões relativas ao exorcismo (Mc 2,1-3,6 par.): a terceira
parte se ocupará extensamente desses textos.

8 B rown, R. E. La nascita dei Messia secondo Matteo e Luca, Assisi, Cittadella, 1981;
L aurentin, R. I vangeli d ell’infanzia di Cristo. La verità dei Natale al di là dei miti,
Cinisello Balsamo (Milano), Paoline, 1985; Idem. I vangeli del Natale, Casale
Monferrato (Al), Piemme, 1987; S egalla, G. Una storia annunciata. I racconti
7 Para uma documentação, cf.: M artini, C. M. Introduzione generale ai vangeli sinottici. dellinfanzia in Matteo, Brescia, Morcelliana, 1987.
In: Idem. I l messaggiodella salvezza: Matteo, Marco e opera lucana. Leumann-Torino,
Ldc, 1979. V. VI, pp. 52s, 64s; Fusco, V. Le prime comunità cristiane. Tradizioni e 9 Stemberger, G. Il midrash. Uso rabbinico della Bibbia, introduzione, testi, commend.
tendenze nel cristianesimo dette origini. Bologna, Edb, 1997. pp. 123-151. Bologna, Edb, 1992.

62 63
da semântica, tomando como ponto de partida os vocábulos fidelidade é a fé e é o amor à pessoa de Jesus enquanto sal­
cuja freqüência na Igreja nascente é tão grande a ponto de vador de todos e constantemente presente por intermédio de
em certa medida preencher toda a largueza da consciência seu Espírito. É determinante o vocabulário usado pelos trans­
cristã e manifestar a orientação profunda”.10 missores do evangelho: testemunhos, apóstolos, servidores
da Palavra. “Semelhante fé se conjuga de modo feliz com a
Manifestação de fidelidade é o binômio “receber-trans-
consideração de uma validade absolutamente duradoura das
mitir”, bastante atestado no Novo Testamento. A expressão
palavras de Jesus, de tal modo que elas não são vistas ape­
revela a consciência de não ter nada de próprio para ensinar
nas como atuais, mas são também atualizadas”.12*
e, ao mesmo tempo, a preocupação de redistribuir de manei­
ra íntegra e fiel o patrimônio doutrinal recebido. Para não
“correr em vão” (G1 2,2), Paulo, por exemplo, faz o con­
A CAMINHO DOS EVANGELHOS
fronto do seu evangelho com o das “colunas” da Igreja e
transfere, depois da conversão, a adesão às tradições dos Depois do que foi lembrado acima fica confirmado
padres alimentada por toda uma série de técnicas eficazes11 (cf. Lc 1,1) que houve tentativas para unir essas coisas todas
para o evangelho de Jesus. a fim de elaborar um só relato sobre a base, provavelmente,
de discursos semelhantes ao de Pedro a Cornélio. Tal discur­
Essa vontade é expressa particularmente em confron­
so faz, de fato, referência a várias passagens da vida de Je­
to com as verdades essenciais, como a ceia (IC or 11,23) e a
sus: o Batista, o batismo, lugares de evangelização (Gali-
ressurreição (IC or 15,3); nas cartas pastorais estabelecem-
léia, Judéia, Jerusalém), a paixão, a ressurreição, o envio
se exatamente os elos de garantia: Cristo, Paulo, Timóteo,
para evangelizar (cf. At 10,37-41). A fase que se seguiu à
os fiéis e outros (2Tm 1,6-11; 2,2). Essa fidelidade é para
pregação, o fato de deixar por escrito em vários documentos
ser entendida num sentido dinâmico, não fundamentalista.
é algo requerido pela natureza da concordantia discors [con­
A autêntica fidelidade consiste em uma verdadeira tradução
cordância discordante] destacada no início. De fato, a tradi­
para linguagens diferentes de um pensamento que permane­
ção oral pode explicar algumas das convergências e diver­
ce o mesmo na sua essência: a mensagem precisa mudar
gências, mas exige também uma explicação literária, uma
para conservar-se fiel. O milagre que concilia liberdade com

12Penna, R. Letture evangeliche. Saggi esegetici sui quattro vangeli. Roma, Borla, 1989.
[) LülourclJc, A Gesii attraverso i vangeli..., cit., p. 193.
O ilustre exegeta registra o exemplo da diversidade quanto à formulação da resposta
1Elemoiilo colocado em relevo por B. Gerhardsson em Memory \n d Manuscript (Lund, aos fariseus que haviam pedido um sinal do céu: nenhum sinal (Mc 8,11-13), o sinal
Gloerup, 1961) c por B. Riesenfeld em The Gospel Tradition (Oxford, Blackwell, de Jonas (Mt 16,1-4); Jonas como figura de Jesus que permanece por três dias no
1970), alndu que o paralelismo entre a escola dos rabinos e a dos apóstolos pareça um sepulcro (Mt 12,38-40); Jonas que foi ouvido pelos ninivitas; o oposto do que aconte­
poucu Ibrçiidu. ce a Jesus com os habitantes de Jerusalém (Lc 11,29-32).

64 65
correlação entre os evangelhos. Ou seja: só a tradição oral Lucas, ausente em Marcos, é derivada de uma fonte inde­
não apresenta condições de explicar as relações entre os pendente exatamente chamada Q ( Quelle) com exclusão,
sinóticos, como também nenhuma hipótese documentária. portanto, de uma dependência de Mateus em relação a Lucas
Além de opor-se diretamente à afirmação de Lucas, só a ou o contrário; Mateus e Lucas também usaram fontes pró­
tradição oral não explica a evidente diferença exatamente prias. Essa teoria não se aplica muito rigorosamente como
naqueles textos (por exemplo no pai-nosso) em que se espe­ se, por exemplo, cada perícope de Marcos devesse ser con­
rava um maior controle por parte da tradição. siderada sempre primitiva. As outras hipóteses ou reduzem
os documentos ou até admitem quatro, como faz Boismard.14
Se há uma concordância quase geral em postular do­
Talvez seja gratificante lembrar a sugestiva, ainda que supe­
cumentos escritos, há um desacordo entre os exegetas sobre
rada teoria de Agostinho, para quem primitivo teria sido
o tipo de hipótese proposta. A hipótese mais provável, capaz
Mateus, condensado por Marcos e reproduzido como sínte­
de oferecer uma explicação satisfatória, continua sendo a
teoria das duas fontes, que prevaleceu no século passado e se dos dois por Lucas.
ainda é compartilhada pela maioria dos estudiosos. “São O empenho em descobrir os documentos primitivos
necessárias, mas ao mesmo tempo também suficientes, como não tem sido inútil. Na realidade:
fontes Mc e Q”.13 A teoria pode ser reproduzida grafica­ • ajudou a esclarecer que há uma interdependência en­
mente da seguinte forma:
tre os sinóticos, com certa prioridade por parte de Marcos;
• demonstrou que os evangelhos não foram escritos
em série como se Mateus, Marcos e Lucas tivessem partido
do nada. Antes dos evangelhos existiam dados escritos, um
dos quais está na base da TT e o outro na base da DT;
• confirmou a existência de um escrito palestino (tal­
vez o Mateus aramaico) antes de Mateus, considerado ne­
cessário para explicar muitos trechos do evangelho.
O que expusemos comporta três afirmações. O mate­
rial da tríplice tradição provém de Marcos, mais provavel­
mente aquele atual, sem a necessidade de admitir um texto
anterior ([Ur-Markus): a tradição que é comum em Mateus e
14 Para uma documentação e uma motivação quanto às teorias, confira: Fusco,
“Introduzione generale ai vangeli sinottici”, cit., em Laconi, Vangeli sinottici e Atti
degli apostoli, cit., pp. 87-89; Monasterio & Carmona, Vangeli sinottici e A tti degli
" Fumo , /.<- prime comunità cristiane..., cit., p. 124. apostoli, cit., pp 57-67.

M 67
4

Momento redacional

A redação é a última fase da formação do evangelho e


diz respeito ao trabalho do evangelista. São três os aspectos
a serem considerados: a relação com a tradição, os métodos
usados para discernir o que é próprio dos evangelistas e as
características de cada um deles.

A R ELA Ç Ã O TRADIÇÃO-REDAÇÃO

Superadas estão, por fim, duas concepções opostas: a


da “história das formas” e a da “história da redação”, assim
como foram entendidas por Conzelmann e por Marxsen.
A prim eira destacava o papel da tradição, reduzindo o
evangelista a simples compilador (Bultmann o chama de
Sammler), raramente na origem de pensamentos próprios ou
de ordenações cronológicas e geográficas que fossem im­
portantes com respeito ao material recebido. Pelo contrário,
os partidários da “história da redação” da primeira hora de­
fendiam uma diferença entre os dois momentos e atribuíam
ao “redator” uma função de tal maneira crítica em face do
material à disposição a ponto de fazer surgir um pensamen­
to novo, mais próximo de uma intervenção criativa do que
de uma utilização livre.

69
Recentemente tomou-se consciência de que o evange­ dos na tradição manuscrita não antes do século IV, não aju­
lista não é nem um compilador nem um criador, e sim um dam muito a determinar a sua contribuição literária e teoló­
autor muito especial, dificilmente comparável com outros gica sobre os escritos. São eles mesmos que deixam emergir
escritores do tempo: ele é ao mesmo tempo intérprete e trans­ o autor implícito.
missor de uma tradição, com um equilíbrio ímpar entre li­
berdade e fidelidade. “Enquanto ligado à tradição, procura e
relata narrativas sobre Jesus e textos a respeito dele, trans­ OS MÉTODOS
mitidos oralmente ou por escrito; como autor ele procura Também para o momento redacional, como para os
entender, interpretar, coordenar em unidade orgânica o ma­ momentos precedentes, chegou-se à formulação de instru­
terial da tradição, ora seguindo as várias tradições, ora en­
mentos orientativos para estabelecer se uma palavra, um
trelaçando-as, ora sintetizando-as e, por vezes, ampliando-
conceito, uma estrutura pertencem ao evangelista.
as com elementos de outras tradições. Narrativas e orienta­
ções adquirem um significado, muitas vezes novo, na estru­ São três os métodos propostos para serem usados de
tura unitária do texto evangélico. Às vezes nos admiramos maneira adequada e crítica, sem absolutizar ou excluir ne­
com a fidelidade literal, outras vezes, porém, podemos até nhum deles. Vamos apresentá-los em ordem histórica de
escandalizar-nos com a liberdade que o evangelista toma aparecimento, o que constitui também uma ordem lógica.3
diante da tradição, elaborada e interpretada”.1 É necessário, antes de mais nada, um confronto entre os
sinóticos que ressalte convergências e divergências e inves­
Os evangelistas fazem parte de uma comunidade, para tigue as razões dessa diversidade. Deve-se ter especial aten­
a qual se propõem escrever e pela qual desempenham um ção quanto ao estilo, particularmente no caso de Marcos, no
papel de “servidores da Palavra”. Por isso, mais que da iden­ qual está ausente o material narrativo de Q: a análise do es­
tidade do autor (Mateus, Marcos, Lucas) sobre a qual se fun­
tilo ajuda, além disso, no confronto entre Mateus e Lucas,
damentava tanto a apostolicidade dos escritos como a vera­ nos quais as discordâncias podem provir também do material
cidade dos conteúdos, procura-se agora privilegiar a identi­ procedente de fontes próprias. Esse método da “história da
dade do escrito. “Não é o autor que confere valor ao texto,
redação”, atento à diacronia, examina cada perícope ou uni­
mas o proprio texto carrega em si todos os elementos que dades mais amplas, como a narrativa da paixão, mas não
possibilitam e exigem uma avaliação autônoma”.*2 Os no­ considera o conjunto da obra, a composição em sua totalida­
mes dos autores, que apareceram no século II e documenta­ de. É preciso, portanto, recorrer ao método sincrônico, à

' S egalla, G. E va n g eb e vangeli. Boiogna, Edb, 1993. (La Bibbianella storia). pp. 38s.
2 Penna, Letture evangeliche, cit., p. 18. 3 Segalla, Evangelo e vangeli, cit., pp. 21-36.

70 71
análise estrutural, àquela considerada na superfície, sem Mais difícil é determinar a contribuição redacional de
entrar na análise mais profunda que é própria dos vários es- Marcos, em confronto com as de Mateus e Lucas. O fato de
truturalismos. atribuir a um ou a outro o período de um trecho do evange­
A estrutura busca a relação entre as várias partes, quer lho tem valor orientativo; está sujeito a considerações pes­
das partes mais amplas que formam a obra quer das partes soais e por isso, muitas vezes, não encontra concordância
entre os estudiosos. De qualquer modo, a consciência da di­
mais breves que subdividem uma perícope para encontrar a
fícil formação dos evangelhos, unida à consciência de que a
unidade do todo e descobrir o conceito essencial que conduz
teologia do que vem escrito é maior do que a contribuição
toda a narração. Esse método deve ser conduzido por ele­
redacional, e que o uso correto do método histórico-científi­
mentos presentes no texto a fim de evitar o subjetivismo.
co conduz a resultados confiáveis, liberta de preocupações
Esses dois métodos ou aspectos de uma única m eto­ historicistas e predispõe para uma leitura proveitosa.
dologia baseiam-se no texto. Contudo, para compreendê-
lo é necessário também transcendê-lo, analisando o meio
que o produziu. O texto, portanto, vem inserido no campo A PERSPECTIVA FUNDAMENTAL
cultural, na sociedade e na Igreja em que surgiu. Não se DE CADA EVANGELISTA
trata, por exemplo, de conhecer apenas a comunidade idea­
Os sinóticos, de maneira concorde, apresentam o ma­
lizada e projetada por Lucas, mas também e antes de tudo
terial recebido pela tradição em um esboço geográfico que
aquela em que o evangelista está inserido. Isso, em um pri­
distribui a atividade de Jesus na Galiléia, na Samaria e em
meiro plano, inclui o conhecimento da língua, o grego,
Jerusalém. Marcos destaca o ministério de Jesus na Gali­
como símbolo do destino universal e do horizonte vetero-
léia, ministério ao qual dedica a metade do seu evangelho
testamentário (narração dos milagres, parábolas, lingua­
(1,16-8,26), enquanto Mateus lhe dedica pouco mais de um
gem apocalíptica). O segundo nível exige a reconstrução
terço (4,12-13,58) e Lucas pouco mais de um sexto (4,14-9,
do contexto sociopolítico da segunda metade do século I, a
50). O terceiro evangelista, por sua vez, destina grande es­
autoconcepção da Igreja e a relação desta com grupos da
paço ao período central, à viagem da Samaria a Jerusalém,
mesma época e com outras comunidades de fé. Por fim, a
durante a qual recolhe material diverso (9,51-19,28), restri­
colocação dos escritos no espaço e no tempo, ainda que
to em Mateus (14,1-20,34), ainda mais breve em Marcos
seja hipotética, é algo que não pode ser descuidado. Seja
(8,27-10,52); Mateus frisa a narração dos acontecimentos
como for, é preciso lembrar sempre que o escrito evangéli­ em Jerusalém e desenvolve a parte introdutória (1,1-4,11),
co não constitui apenas uma resposta a questões do mo­ concordando com Lucas (1,1-4,13): ambos dão ênfase quer
mento, mas que, por meio dela, apresenta soluções válidas à infância de Jesus quer à narração da ressurreição. Marcos
para os seres humanos de qualquer época. apenas faz aceno a esta (16,1-8) e ignora a infância. É im-

72 73
portante agora entender a intenção do narrador e o destina­ do segredo messiânico (16,20; 17,9), delineia a relação en­
tário da sua obra. tre Jesus e a sua Igreja (16,18); essa é convidada a “ensinar
tudo o que Jesus havia ordenado” (28,20), nos seus doutri-
Marcos está interessado em uma visão crisíológica.
namentos, especialmente no sermão da montanha (Mt 5-7).
Pretende apresentar ao leitor o mistério de Jesus, desvela­
do, e, ao mesmo tempo, velado pelo poder das obras e pela Lucas apresenta Jesus rico em misericórdia e modelo
impotência da paixão, em duas modalidades diferentes e para todo homem, mediante fatos cujo significado revela uma
complementares. De seu ponto de vista de narrador, Jesus história que tem o seu centro na vida do mestre e se expande
é reconhecido “Filho de D eus” do início (1,1) ao fim na vida da Igreja, chamada a confrontar-se com os aconteci­
(15,39). Por isso a incompreensão dos discípulos (6,52; mentos vividos por Jesus.
9,32) e as proibições de revelar a sua identidade (segredo Como conclusão, os sinóticos contemplam o Jesus
messiânico: 8,30; 9,9), como o estado de cegueira (10,46- terreno do ponto de observação da Páscoa para comunicá-
52) pertencem ao passado. Agora é urgente proclamar o lo ao leitor do seu tempo, convidado a voltar ao Jesus da
evangelho para todos (13,9-11), exprimir a profissão de fé história tendo presente que ele é agora o Ressuscitado. A
na messianidade (8,27-29) e divindade de Jesus (9,7). O variação e a modulação dessa base narrativa comum cons­
cristão, a quem o evangelho se destina, tem necessidade titui o conteúdo da segunda parte: antes de encará-la, va­
por sua vez de percorrer de novo o caminho da incompre­ mos examinar dois trechos que confirmam e esclarecem a
ensão à inteligência, da cegueira à luz, seja porque apenas
teoria exposta.
uma leitura repetida da narração lhe permite penetrar pro­
fundamente no mistério inexaurível do homem-Deus, seja
porque é convidado a proclamá-lo perante os outros. Nes­
se sentido, o evangelho, dirigido primeiramente para quem DOIS EXEMPLOS DE FORMAÇÃO DO TEXTO
já experimentou em si a força da paixão, é adequado tam ­ Até agora o interesse girava em tomo do entendimen­
bém para o pagão, exortado, no final, como o centurião to do caminho percorrido pelos evangelhos para chegar à
sob a cruz, a expressar o ato de fé e a recomeçar a leitura composição atual. Trata-se de verificar como o conhecimento
desde o início. O narrador parte do Jesus conhecido como dos três estágios de formação (histórico, tradicional, redacio-
ressuscitado para atingir a comunidade; o leitor é convida­ nal) ajuda a fazer aparecer a mensagem oculta. Assim, pas­
do pela experiência de fé a voltar a Jesus, percorrendo de sa-se da teoria à prática. O batismo de Jesus, um texto TT,
novo as etapas da sua revelação. possibilita um a análise horizontal, um confronto entre
Mateus proclama Jesus Senhor e mestre e o considera Mateus, Marcos e Lucas; a multiplicação dos pães, embora
principalmente em uma perspectiva comunitária. Mateus re­ narrada por todos os evangelistas, sugere uma análise preva-
tira a ignorância e a cegueira dos discípulos, conserva algo lentemente vertical, com a atenção voltada ao momento re-

74 75
dacional, pelo fato de que Marcos a narra duas vezes. Trata- A prim eira questão sobre o texto pode ser formulada
se, obviamente, de resumos suscetíveis de aprofundamentos.4 assim: Jesus realmente recebeu o batismo, partindo-se do
pressuposto de que esse rito é realizado para tirar os peca­
O batismo de Jesus e.f.5 dos? Esse questionamento é também percebido por Mateus
que adverte o leitor para não se escandalizar, porque tudo
Mateus 3,13-17 Marcos 1,9-11 Lucas 3,21-22 o que aconteceu constitui “o cumprimento de toda justiça”
3 .13 Então apareceu 1 .9 E aconteceu naqueles 21Então aconteceu (3,15), isto é, da vontade divina a ser acolhida mesmo quan­
Jesus vindo da Galiléia dias que Jesus veio que, quando todo o
para o Jordão, junto a de Nazaré da Galiléia povo foi batizado,
do se apresenta como incompreensível. Que Jesus tenha
João, para ser batizado cumprido a imersão no Jordão diante do Batista, testemu­
por ele. 14 Mas esse o
impedia dizendo: "Eu nha desse gesto perante todos, é algo verdadeiro e por vá­
tenho necessidade de ser
batizado por ti, e tu vens rios motivos:
a mim?”. 15 Mas Jesus
respondendo, disse-lhe:
"Deixa (fazer) por ora,
porque nos convém
cumprir, assim, toda
justiça”. Então, deixa-o a) O momento histórico: o fato acontecido
fazer.
16Ora, tendo sido batizado, e foi batizado no Jordão e tendo sido batizado
Jesus logo saiu da água; por João. (também) Jesus e
— Há uma atestação múltipla: de fato, o episódio é
e eis que se abriram os enquanto orava, abriu-se relatado por todos os evangelistas e faz parte da catequese
céus. WE logo, saindo da água, o céu,
viu os céus se abrirem 22e desceu o Espírito primitiva.
e viu o Espirito de Deus e o Espírito como pomba santo, em forma
descer como pomba, vir descer na direção dele. corpórea, — É um gesto que não se concilia quer com a menta­
sobre ele. como pomba sobre ele
' 7E, eis que, uma voz dos 11E (veio) uma voz e veio uma voz do céu:
lidade judaica, que relaciona o batismo com a remissão dos
céus, dizia: “Este é o meu dos céus: “Tu és o meu Filho, pecados, quer com a fé cristã, que considera Jesus isento de
Filho, o predileto, no qual “Tu és meu Filho, o predileto, em ti me
me regozijei". o predileto, em ti me regozijei". pecado: se o fato não tivesse acontecido, a Igreja não pode­
(SI 2,7; Gn 22,2; Is 42,1) regozijei".
(SI 2,7; Gn 22,2; Is 42,1) (SI 2,7; Gn 22,2; Is 42,1)
ria tê-lo inventado.
Qual é, porém, o significado que Jesus dá a esse ges­
to? Excluindo que seja pelos próprios pecados, o batismo
4 M arconcini, B. Tradizione e redazione in Mt 3,1-12. Rivista Bíblica, 19 (1971),
pp. 165-186; Idem. La predicazione del Battista in Marco e Luca confrontata con la atesta a consciência de Jesus de ser enviado para redimir os
redazione di Matteo. Rivista Bíblica, 20 (1972), pp. 451-466; L éon-D ufour, X. Studi outros e, portanto, já cobre de sombra a cruz. Jesus compar­
sul vangelo. Milano, Paoline, 1967 (examina 9 trechos); la P otterie, I. de. (Org.) Da
Gesú ai vangeli. Tradizione e redazione nei vangeli sinottici. Assisi, Cittadella, 1971 tilha, é solidário com o povo que nesse momento toma cons­
(científico: expõe a teoria e examina sete trechos). ciência do próprio pecado e inicia uma caminhada de con­
5O texto é retomado por A. Poppi, Sinossi dei quattro vangeli (2. ed. Padova, Messaggero versão: a sua presença dá valor a tais sentimentos.
1983), p. 102. ’

76 77
b) O momento da tradição: se” (Marcos) ou o “abrir-se dos céus” (Mateus e Lucas), mais
o fato meditado pela comunidade do que um fenômeno atmosférico, expressa a união entre
Deus e os homens, mediante o Cristo; a pomba é um símbo­
A comunidade recorre ao Antigo Testamento para com­
lo, quer pelo termo de comparação (“como uma pomba”),
preender a cena do batismo e encontra luz nas narrativas de
quer pela frase mais imprecisa de Lucas (“em forma corpó-
vocações proféticas (de Isaías, Jeremias, Ezequiel), na des­
rea”), anuncia Jesus como chefe do novo povo; a voz celestial,
cendência davídica, “do tronco de Jessé sairá um ramo, um
pela síntese das três passagens bíblicas, revela a identidade
broto nascerá de suas raízes, repleto do Espírito do Senhor”
de Jesus em confronto com o Pai.
(Is 11,1-2), no servo do Senhor em que é depositado o Espí­
rito (Is 42,1) e também naquela misteriosa figura que, reple­
ta do Espírito de Deus, é enviada a evangelizar os pobres (Is c) O momento redacional:
61,1). Jesus no momento do batismo é visto, portanto, como o fato intepretado pelo evangelista
o ponto de convergência de tantos personagens diferentes e
complementares, quase uma síntese e uma realização plena Mateus, cuja comunidade conhece bem o sentido do
de sua especial e peculiar qualidade (= cumprimento). Ao batismo em relação ao pecado, adverte o leitor quanto ao
mesmo tempo, a comunidade primitiva, em meditação, re­ misterioso plano de Deus que aí está subjacente. Portanto,
constrói a cena recorrendo a uma linguagem apocalíptica: o ele introduz os versículos 14-15 que — como mostra a si­
abrir-se dos céus, a voz do céu, o Espírito sob forma de pom­ nopse — não se encontram nos outros evangelistas. No diá­
ba. Essa última referência, provavelmente, vê na pomba um logo entre o Batista e Jesus, o verdadeiro pecador é o pri­
símbolo do povo e, portanto, Jesus sobre o qual pousa a pom­ meiro: “Sou eu que devo ser batizado por ti”. A “justiça” a
ba inicia a sua orientação de mestre e pastor. Também o sal­ que se refere Jesus é a vontade de Deus, como demonstram
mo 2, que faz referência à predileção e à eleição do rei por as outras passagens do primeiro evangelista (Mt 5,6.10.20;
parte de Deus e Gênesis 22, o chamado sacrifício de Isaac 6.1.33; 21,32).6
(“meu filho”), estão associados. Marcos, o mais próximo do fato, introduz poucas va­
A com unidade, além de olhar para trás, para os riantes no texto recebido: ele dá destaque à pessoa de Jesus
preanúncios e para as prefigurações, leva em consideração como acontecimento determinante da história: “Nesses dias,
as conseqüências para a vida cristã do batismo de Jesus e o
relaciona com o próprio batismo. O batizado, dessa forma,
vê-se designado para uma missão universal e, como Cristo, 6 “Justiça”, como muitos termos bíblicos, vai evoluindo no tempo. É a lealdade para com
candidato à cruz, quer dizer, à doação de si mesmo no amor. a comunidade nos profetas do pré-exílio (Amós, Oséias, o Primeiro Isaías) que se com­
promete com o pobre e o fraco; o dom do alto, o plano salvífico no Segundo Isaías (de
Essa dupla característica de m editação cristológica e onde é retomado por Mateus e Paulo); o reconhecimento por parte do Pai da inocência
eclesiológica aparece documentada três vezes. O “romper- de Jesus no processo que lhe foi apresentado pelo mundo, no evangelho de João.

78 79
Jesus chegou de Nazaré da Galiléia, e foi batizado por João A multiplicação dos pães7
no rio Jordão [...] e do céu veio uma voz Marcos cap. 6 Marcos cap. 8

1Naqueles dias, havia de novo uma


Já Lucas introduz uma importante novidade: “Jesus 9.34£ saindo (ele) viu uma grande
multidão, e teve compaixão deles, grande multidão, e não tendo nada
estava rezando”, enaltecendo assim a relação entre oração e pois eram como ovelhas que não para comer, chamando (a si) os
Espírito (cf. Lc 11,13), o que caracteriza por inteiro o tercei­ têm pastor (Nm 27,17; Ez 34,5; discípulos, disse-lhes:
1Rs 22,17); e começou a ensinar
ro evangelho. E possível distinguir outras diferenças entre muitas coisas para eles. 2“Tenho compaixão da multidão,
porque já está comigo há três dias e
os sinóticos. Vamos apresentar algumas entre tantas encon­ 35 E tendo chegado uma hora
bastante avançada, aproximando-se não tem nada para comer;
tráveis na sinopse. Mateus destaca a finalidade da ida de dele os seus discípulos diziam: 3 e se os deixar partir em jejum, para
suas casas, desfalecerão pelo
Jesus ao Jordão “para ser batizado”, Marcos tem uma obser­ “O lugar é deserto e a hora já vai
caminho; e alguns deles vieram de
avançada;
vação temporal a fazer (“Nesses dias”) e fala não da região 36 despede-os para que indo aos longe”.
(Galiléia) mas da cidade (Nazaré); Lucas nem sequer men­ campos e povoados vizinhos, 4 £ os seus discípulos lhe
comprem alguma coisa para comer”. responderam: “Onde alguém
ciona o Batista, mas dá como certo o batismo e se concentra 37 Mas ele, respondendo, disse-lhes: poderia saciar a esses, aqui no
em Jesus. “dêem-lhes vocês alguma coisa deserto?”
5 E perguntou-lhes: “Quantos pães
para comer”.
têm?” Eles disseram: “Sete".
Colhemos, em síntese, o significado proveniente dos £ lhe dizem: "Vamos, então, gastar
6 E manda que a multidão se sente no
duzentas moedas de prata para
três níveis da tradição. O batismo revela Jesus, filho de Deus comprar pão e dar-lhes de comer?” chão e, tomando os sete pães, tendo
dado graças, partiu-(os) e (os) dava
em um sentido determinante, desejoso em servir os irmãos, 38 Mas Jesus disse: “Quantos pães
aos seus discípulos para que (os)
vocês têm? Vão ver!” E sabendo
disposto a percorrer até o fim a estrada do amor que tem quantos, dizem a ele: “Cinco pães e distribuíssem; e (eles) os
distribuíram ao povo.
como ponto terminal a cruz como expressão de solidarieda­ dois peixes".
7 E tinham alguns peixinhos; depois de
39 E mandou que fizessem sentar a
de em um domínio de pecado. A lógica de Jesus envolve a todos em grupos de comensais na tê-los abençoado, disse para
distribuí-los também.
Igreja que, batizada no Pentecostes, percorre em seus mem­ erva verde.
8 £ comeram e ficaram saciados e
40 E se sentaram em forma de canteiro
bros o mesmo caminho percorrido por ele. de cem e de cinqüenta. recolheram os restos dos pedaços,
41 E, pegando os cinco pães e os dois sete cestos.
peixes, erguendo os olhos para o céu, 9 Ora, eram aproximadamente quatro
proferiu a bênção e partiu os pães mil; e os despediu.
e (os) dava aos discípulos, para que
os distribuíssem para eles; e dividiu
os dois peixes para todos.
42 £ comeram todos e ficaram saciados:
43 e recolheram os pedaços, doze
cestos cheios e (o resto) dos peixes.
44 £ os que haviam comido os pães
eram cinco mil homens.

1 Poppi, Sinossi dei quattro vangeli, cit, pp. 122-123, 126.

81
10
!
a) Momento histórico c) Momento redacional
A historicidade é deduzida de princípios conhecidos: O evangelista no capítulo 6 sublinha dois temas im­
o episódio, efetivamente, é narrado por todos os evangelis­ portantes, Jesus pastor do seu povo e o banquete messiânico
tas (Mt 14,13-21; Lc 9,12-17; Jo 6,1-13: princípio da atesta­ e escatológico; isso significa que Marcos relê o episódio à
ção múltipla), está em harmonia com as expectativas de re­ luz do salmo 23 (“O Senhor é meu pastor: não tenho falta de
petição de milagres no deserto, analogamente àqueles do nada; em pastos verdejantes me faz descansar, para águas
Exodo (princípio da homogeneidade) e, no entanto, supera tranqüilas me conduz”) o que apresenta o Messias como guia
qualquer expectativa na sua maneira de realização (princí­ e sustento do povo. Essa verdade é expressa por meio do
pio da descontinuidade). Na vida de Jesus, o acontecimento versículo 34 (“eram como ovelhas sem pastor e se pôs a en­
constitui um grande milagre que o faz ser conhecido como sinar-lhes muitas coisas”), do versículo 39 (“mandou-os que
Messias e novo Moisés. A primeira redação feita, provavel­ fizessem com que todos se sentassem [...] sobre a erva ver­
mente, correspondia a estas palavras: “Jesus pegou os cinco de”) e também do versículo 31 (“venham para um lugar afas­
pães e os dois peixes e os entregava aos discípulos para que tado, solitário, e descansem um pouco”). Em seguida, com
os distribuíssem. Dividiu entre todos também os dois pei­ os acréscimos dos versículos 39-40: (“sentar-se em grupos
xes. Todos comeram, ficaram satisfeitos, e recolheram doze [...] e sentaram-se em grupos e grupelhos de cem e de cin-
cestos cheios de pedaços de pão e também dos peixes. O qüenta”) alusivos ao banquete escatológico, Marcos vê nes­
número dos que comeram os pães era de cinco mil homens” sa multiplicação um sinal daquele maravilhoso estar juntos
(6,41.42-44). que acontecerá entre os bem-aventurados, geralmente repre­
sentado por um lauto banquete.
Marcos 8,1-9 insiste mais na participação dos gentios
b) Momento da tradição na eucaristia como centro de unidade dos povos. Aquela
multidão pela qual Jesus sente compaixão vem “de longe”,
Por indícios no texto vê-se que essa perícope é usada
frase que indica não tanto uma distância geográfica, mas
na catequese eucarística, isto é, começa-se a considerar a
antes uma distância psicológica e de fé: os de longe, reuni­
multiplicação dos pães como figura da eucaristia: dando um
dos na eucaristia, são os pagãos. Marcos, portanto, com al­
pão material, Jesus — assim reflete a comunidade — prepa­
guns arremates redacionais confere à narrativa transmitida
rava os seus para receber um mais importante, o seu corpo.
pela tradição um significado cristológico (Jesus pastor),
Fazem-no crer algumas observações principalm ente do
escatológico (tema do banquete) e eclesiológico (os de lon­
versículo 41 (cf. Mt 14,19) que reproduzem gestos típicos
ge se reúnem por causa da eucaristia).
que se tornaram clássicos na liturgia: “ergueu os olhos para
o céu, pronunciou a bênção, partiu os pães”. João 6 aproxi­ Uma catequese que quisesse propor o rico conteúdo
ma mais decisivamente o símbolo dos pães e a eucaristia. das narrativas podería com muito proveito seguir a forma-

82 83
ção das narrações, considerando antes como o milagre, his­
toricamente certo, é visto pelos contemporâneos de Jesus
como sinal de sua messianidade; é interpretado, portanto,
como símbolo da eucaristia e é relido por Marcos como
sinal de Jesus pasto r que conduzirá para o banquete
celestial, depois de tê-los reunido à mesa eucarística, tam­
bém os pagãos.

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