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Estudo de

Caso

Leituras Contextuais da Bíblia

Professor Dr. Júlio Paulo Tavares Mantovani Zabatiero


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estudo de
caso

Este estudo de caso se refere ao uso da Escritura na tradição das Igrejas Cristãs do Ocidente
contemporâneo. Seu foco recai sobre o monopólio pastoral-clerical da interpretação da
Escritura e como superá-lo. Este é, portanto, o problema a ser resolvido: como superar o mo-
nopólio clerical da interpretação bíblica na Igreja?
Bom trabalho a todas e todos.

“A Palavra Proclamada”

Durante séculos, o monopólio clerical da proclamação tem sustentado o clericalismo e o


modo hierárquico de funcionamento das igrejas cristãs em geral e também transformou a
palavra proclamada em doutrinária (assertiva), reduzindo ao mínimo indispensável a dimen-
são expressiva (veridictória) da palavra na vida comunitária e na missão. Em um paradigma
pastoral cristocêntrico, a palavra proclamada não é monopolizada, ela circula livremente na
comunidade e faz parte da mutualidade que caracteriza a comunhão (koinonia) cristã. Nas
palavras de Paulo: “a palavra de Cristo habite em vós abundantemente, em toda a sabedoria;
ensinando-vos e admoestando-vos uns aos outros, com salmos, hinos e cânticos espirituais,
cantando ao Senhor com graça em vosso coração. E, quanto fizerdes por palavras ou por
obras, fazei tudo em nome do Senhor Jesus, dando por ele graças a Deus Pai” (Cl 3,16-17).

(1) Este texto paulino encaminha-nos à primeira característica teológica da palavra


proclamada: ela precisa ser, primeiramente, internalizada, incorporada, tornada
moradora da pessoa de fé. Habitar ricamente implica cada membro da comunidade
cristã ter um caso de amor com a palavra divina falada e corporificada no Messias
para que seja capaz de reparti-la com a comunidade. Essa incorporação da palavra
dá-se pelo menos de dois modos: (a) mediante a ação da comunidade que exorta,
ensina e edifica mutuamente os crentes, e (b) mediante a leitura e a meditação
particulares de cada cristão, como testemunhado por Paulo em relação a Timóteo:
“Desde a infância, sabes as sagradas letras, que podem tornar-te sábio para a
salvação pela fé em Cristo Jesus” (2 Tm 3,15).
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(2) A palavra internalizada deve, em seguida (do ponto de vista lógico, não
necessariamente cronológico), ser discernida, pois, ainda mais em nosso tempo, o
volume de palavras que circula entre as pessoas é imenso e sem controle, de modo
que é necessário “cuidado para que ninguém vos venha a enredar com sua filosofia
e vãs sutilezas, conforme a tradição dos homens, conforme os rudimentos do
mundo, e não segundo Cristo” (Cl 2,8). A palavra discernida é a palavra internalizada
refletida, criticada, analisada e verificada. Discernir é criticar, e a comunidade que
preza a Palavra de Deus não pode ter medo de exercer o discernimento crítico em
relação à palavra, especialmente em relação à sua própria palavra – é muito comum
que dogmas eclesiásticos bem como teologias e testemunhos pessoais sejam
confundidos com a palavra de Deus, e seus porta-vozes não mais sejam capazes de
perceber a diferença entre elas.

(3) A palavra discernida pode se tornar, então, palavra criativa – assim como a palavra
de Deus criou todo o mundo. A filosofia ocidental pós-virada linguística constata,
consensualmente, que o ser humano é ser de linguagem – a essência do ser
humano é a sua linguagem, que o distingue radicalmente de todas as demais
criaturas vivas na terra. Por meio da palavra, criamos mundos (seja na ficção, seja no
mito, seja na filosofia, seja na religião, seja na teologia, seja na ciência etc.), criamos e
recriamos a vida sociocultural e fazemos política, economia, ecologia etc. Por meio
da palavra criamos, infinitamente, os sinais e significados que dão sentido à vida
e ao mundo em que vivemos. A palavra proclamada gera vida, mas se distorcida,
gera morte: “Porque para Deus somos o bom perfume de Cristo, nos que se salvam
e nos que se perdem. Para estes certamente cheiro de morte para morte; mas para
aqueles, cheiro de vida para vida. E para estas coisas quem é idôneo? Porque nós
não somos, como muitos, falsificadores da palavra de Deus, antes falamos de Cristo
com sinceridade, como de Deus na presença de Deus” (2 Co 2,15-17).
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(4) A palavra proclamada precisa ser verídica, pois é “falando a verdade, em amor” que
edificamos a comunidade, assim como é por intermédio da palavra que destruímos
nosso irmão e nossa irmã, conforme advertia Tiago: “Porque todos tropeçamos em
muitas coisas. Se alguém não tropeça no falar, é perfeito varão, capaz de refrear
também todo o corpo. [...] Assim, também a língua, pequeno órgão, se gaba de
grandes coisas. Vede como uma fagulha põe em brasas tão grande selva” (Tg 3, 2-5).
A palavra, assim, pode escravizar como também libertar:

Por sua própria ambiguidade, que é uma parte fundamental e essencial dela, a linguagem
deixa o ouvinte com uma ampla margem de liberdade. Como o que fala, eu, de fato, convido
o que me ouve a exercer sua liberdade de duas maneiras. Primeiro, cada ato de fala supõe
a concordância ou a rejeição. Em outras palavras, eu coloco meu ouvinte, necessariamente,
em uma situação de escolha. Uma situação onde há escolha há também liberdade. Mas, ao
mesmo tempo, eu o convido a usar o dom da liberdade, inerente à linguagem, assim como
eu o usei. Ele deve falar na sua vez, fazendo uso consciente de sua liberdade. Eu o convido
para entrar na difícil jornada do autoconhecimento e da autoexpressão, da escolha, da au-
toexposição e do desvelamento.
A palavra é a ferramenta básica da ação pastoral – e a ação pastoral, aqui, entendida
como ação de toda a comunidade. O monopólio clerical da palavra é um dos imensos en-
traves à renovação da Igreja e à legitimação do Cristianismo, no mundo contemporâneo. A
palavra monopolizada torna-se palavra meramente assertiva, institucionalizada, distante da
vida e do contexto real, pende para o polo negativo da escravização e da morte do próximo,
perde sua característica de evento (aquilo que não tem controle e não controla a vida) e
se reduz ao acontecimento (dogmático, doutrinário ou clerical). A palavra pastoral, para ser
palavra edificante e viva, precisa ser socializada, dispersa na vida da comunidade, circulan-
do entre todos os membros da comunidade e aberta aos de fora da mesma. Assim, embora
permaneça ambígua, a palavra pode ser geradora de vida, pois será palavra criativa, discer-
nida, refletida, discutida.
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Vários movimentos de renovação das Igrejas Cristãs focaram na socialização da palavra.


Apenas dois exemplos para refrescar nossa memória. O primeiro, já distante no tempo, foi o
pietismo cuja estratégia fundamental era o estudo bíblico em pequenos grupos (juntamente
com a oração e a comunhão), que representava a resistência contra a institucionalização da
palavra na Igreja de então. O segundo, bem próximo de nós, é o das comunidades eclesiais
de base (bem como das pastorais ecumênicas e das igrejas protestantes vinculadas à luta
libertadora) e a sua leitura popular da Bíblia. Nelas, os especialistas da Palavra não tinham a
última palavra. Podiam, em muitos casos, ter a primeira, para animar o estudo a ser iniciado,
mas a última palavra não tinha dono – a interpretação da Bíblia era feita por todos e todas
(analfabetos inclusive), e a edificação era mútua. A palavra comunitária está muito mais
próxima da palavra divina do que a palavra monopolizada, pois a palavra comunitária não
legitima nem consolida o poder pastoral, mas a liberdade para a qual o Messias libertou-nos.
Muito bem, vimos uma descrição do monopólio da palavra e dois exemplos de movi-
mentos que superaram o monopólio da Palavra. Você concorda que o monopólio clerical da
Palavra ainda seja um problema nas Igrejas Cristãs? Se concorda, que você pode fazer, com
sua igreja local, para superar esse monopólio. Que caminhos podem ser seguidos para so-
cializar a Palavra entre toda a membresia da Igreja?

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