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Faculdade Dehoniana – Curso do Evangelho de Marcos e Mateus – Prof. P.

Claudio Buss,scj 1

II – Revelação da autoridade de Jesus1


Mc 1,14-45
No prólogo Marcos nos ofereceu as coordenadas das relações de Jesus: com o Pai, com o seu
desígnio e com Satanás. Do v. 14 Jesus inicia o seu verdadeiro e próprio caminho da vida pública, no
qual o evangelista convida a descobrir outros paradoxos. O primeiro arco narrativo apresenta aos
leitores o programa com a chamada dos primeiros discípulos (1,14-15.16-20) e logo depois um
diálogo-tipo, que Marcos coloca em Cafarnaum (1,21-45), quase querendo oferecer um modelo
concreto de evangelização.

O ANÚNCIO DO REINO
Em 1,14-15 encontramos o anúncio, a proclamação do euaggelion feito por Jesus e os efeitos
que este opera.
14
Meta. de. to. paradoqh/nai to.n VIwa,nnhn h=lqen o` VIhsou/j eivj th.n Galilai,an khru,sswn to.
euvagge,lion tou/ qeou/ 15 kai. le,gwn o[ti peplh,rwtai o` kairo.j kai. h;ggiken h` basilei,a tou/ qeou/ \
metanoei/te kai. pisteu,ete evn tw/| euvaggeli,w|Å
14
Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galileia proclamando o Evangelho de Deus:
15
“Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e credes no Evangelho”.
Notamos dois aspectos:
- o primeiro é que Jesus começa a anunciar o evangelho depois que João Batista vem preso. Eis
o paradoxo: tem a bela notícia proclamada, mas ao mesmo tempo vem intercalado com a prisão do
precursor; um mau auspício para o evangelho e seu mensageiro! O precursor, de qualquer maneira,
indica e percorre a estrada do Messias. Também ele será entregue à morte. A boa nova, de qualquer
maneira possui o sinal de uma ordem de “fracasso”! Marcos referirá mais adiante, os pormenores da
paixão do Batista (6,17-29). Por enquanto basta-lhe acenar a este dúplice movimento: João “está sendo
entregue”, como o Filho do Homem será entregue (9,31; 10,33; 14,21.41).2
- o segundo aspecto é que Jesus proclama o Kairós presente: se trata do tempo oportuno, que
Deus oferece o homem para converter-se e crer no Evangelho.
Nesta breve síntese, o evangelista utiliza a linguagem da catequese cristã: evangelho de Deus –
converter/crer. Isto pode servir para sublinhar a continuidade entre o anúncio de Jesus e o da
comunidade cristã. Mas no tema do Reino de Deus próximo ressoa ainda o eco da proclamação inicial
feita na Galileia. A espera do reino era viva no ambiente contemporâneo de Jesus, espera alimentada
pela fé nas promessas de Deus. Como quem diz: “terminou o tempo da espera histórica; o tempo
cumpriu-se, o momento decisivo, a ocasião propícia e favorável chegou. O Reino de Deus se torna
próximo na palavra e na ação de Jesus”.3

1
Texto adaptado: M. GRILLI, Paradosso e Mistero. Il Vangelo di Marco. Bologna, EDB, 2012.
2
Cf. Rinaldo FABRIS, op. cit. p. 436.
3
Ibidem.
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A única condição requerida para tomar parte nesta nova possibilidade é a decisão de mudar, se
converter, e a coragem de arriscar a vida sobre esta oferta anunciada: crer no evangelho.
Ou como Mateos e Camacho nos dizem aprofundando a temática social do Reino em exercício:
“esta boa-nova (1,1) anuncia que se abre a possibilidade de uma sociedade justa e nova, digna do
homem, a alternativa que Deus propõe à humanidade (aspecto social do reinado de Deus, a nova terra
prometida); exige como condição da parte do homem a renúncia à injustiça (ponto de partida) –
‘convertei-vos’ e a confiança de que essa meta (ponto de chegada) é atingível pela fé”.4
Logo depois, de fato, a cena do chamado das duas duplas de irmãos (1,16-20) mostra, de forma
paradigmática, o que significa converter-se e crer no evangelho: seguir Jesus, tornar-se seus discípulos
e servir ao Reino. Jesus os chama: “Vinde em meu seguimento...”: indicando uma meta que não é
visível, nem tangível e permanecendo de qualquer forma “vaga”: e farei de vós pescadores de homens.
E eles, deixando logo as redes, o seguiram. É uma cena ideal que explicita bem o que significa
converter-se. Como nos diz Rinaldo Fabris: “a tradição de Marcos viu nesta cena de chamamento não
só o começo histórico da comunidade dos discípulos em volta de Jesus, mas também o paradigma da
resposta cristã à fé”.5
Ainda algumas notas importantes:
• O mar da Galileia é fronteira e, ao mesmo tempo, conexão com o mundo pagão. Diante da
perspectiva do reinado de Deus, Jesus convida a colaborar com ele em primeiro lugar os
círculos inquietos de Israel.
• Vinde após mim...: recorda o chamado de Elias dirigido a Eliseu (1Rs 19,20s) e alude aqui
à comunicação do Espírito de Jesus aos seus seguidores (1,8).
• pescadores de homens...: insinua a missão universal, não limitada ao povo judaico (cf. Ez
47,8s). Diante do convite de Jesus, Simão e André abandonam sua forma de vida anterior:
a esperança de mudança suscita neles resposta favorável, embora a qualidade do seu
seguimento vá manifestando-se em sua conduta.6
Ainda é preciso notar que no AT (Ez 12,13; Hab 1,15.17; cf. Jr 16,16), a imagem da rede
de pesca ou de caça evoca antes o castigo. Aqui aplica-se à futura missão dos Doze:
pregando o Evangelho, eles congregarão homens em vista do julgamento e da entrada no
Reino de Deus.7
• Seguir Jesus é tornar-se seu discípulo. O abandono da profissão para viver com o mestre
exprime a novidade de vida com Jesus, de sorte que a experiência dos Doze serve de
protótipo para os crentes, por sua vez chamados a entrar na sua escola.8

A JORNADA DE CAFARNAUM
Depois deste momento inicial, no arco narrativo de 1,21-45 conta-se o início do ministério de
Jesus. É a jornada de Cafarnaum, um modelo do operar de Jesus.

4
Juan MATEOS; Fernando CAMACHO, Marcos. Texto e Comentário, p. 86.
5
Rinaldo FABRIS, op. cit. p. 437.
6
MATEOS; CAMACHO, op. cit. p. 90.
7
TEB Mc 1,17, nota c.
8
TEB Mc 1,18, nota d.
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As indicações temporais e de lugar evidenciam os passos desta jornada: ele vai a Cafarnaum (v.
21), entra na sinagoga (v. 23) e depois de uma cura sai e está na casa de Simão (v. 29); a noite (v. 32)
vai até a porta da cidade onde estão muitos doentes e, de manhã cedo, quando ainda é escuro, se levanta
e se retira a um lugar deserto para orar (v. 35). Inicia assim uma nova jornada de evangelização (vv.
36-45).
Através desta construção narrativa o evangelista apresenta o núcleo da atividade de Jesus e
antecipa qual será a sua missão. Consideremos alguns aspectos dessa missão:
1º aspecto: a liberdade de Jesus, que chega até as pessoas em todos os lugares: na sinagoga, na
casa, na porta da cidade (lugar de reuniões e de comércio), em lugares desertos. É o Reino que chega
ao ser humano em todas as situações, qualquer que seja.
2º aspecto: a libertação dos homens: os primeiros gestos que Jesus realiza são exorcismos e
curas, centrais no Evangelho de Marcos e que representam a luta contra o mal, nas suas várias formas.
OS MILAGRES DE JESUS
Como o evangelista Marcos lê o elemento prodigioso na vida de Jesus? Como considera os
milagres?
Marcos relata narrações de milagres, em contexto e formas literárias diversas. Pode-se pensar que
Marcos tenha primeiro introduzido no esquema do Evangelho a atividade taumatúrgica de Jesus,
dando-se um peso simétrico ao das palavras-ensinamento. Os milagres, na maior parte, são colocados
no ambiente da Galileia, ao passo que não se refere nenhum milagre em Jerusalém.
Em Marcos, podem-se individuar os seguintes relatos de milagres, segundo seu contexto e gênero
narrativo:
1. Os relatos de milagre: cura de um leproso (1,40-45), de dois cegos, de um surdo-mudo, de uma
mulher atacada por hemorragia crônica; duas curas de doenças atribuídas ao demônio (7,24-30; 9,14-
27), curas de diversos outros doentes, dos quais se fala nos sumários; ressurreição de uma menina
(5,35-41); Jesus caminha sobre as águas do lago (6,45-52); multiplicação dos pães (6,34-44; 8,1-12).
2. Controvérsias com relato de milagre: cura de um paralítico (2,1-12); cura de um homem com a
mão ressequida (3,1-5);
3. Exorcismos: relato de dois exorcismos (1,23-27; 5,1-20).
É importante perceber que para Marcos, o evangelho – isto é, a boa-nova do reino de Deus, que tem
por protagonista Jesus como Messias e Filho de Deus - se realiza através dos gestos de Jesus e das
suas palavras.
Gostaria a partir disso de fazer algumas considerações:
Primeira consideração
No ambiente judaico e helenístico vinham reconhecidos determinados homens e mulheres de
poderes extraordinários. Haviam também lugares e divindades, seja no mundo grego, seja no romano:
por exemplo Asclépio para os gregos ou Esculápio para os romanos. O milagre era considerado a prova
da existência da divindade evocada. Na literatura pagã e judaica encontramos narrativas similares aos
dos evangelhos.
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Na Palestina do primeiro século a visão da realidade era mágico-religosa, de forma que as


enfermidades físicas e mentais eram consideradas manifestações dos demônios ou espíritos. A
fronteira entre doença e possessão demoníaca era muito tênue: a medicina era conhecida também em
âmbito judaico (por exemplo, no livro de Sirácida cap. 38), todavia persistia uma antiga concepção
popular que não distinguia uma coisa da outra. Jesus partilha deste ambiente como um homem do seu
tempo.
Segunda consideração
Os termos adoperados no NT para indicar o milagre são substancialmente três: dynamis/ poder;
teras/ prodígio e semeion/sinal. Quem apresenta a realidade do milagre sem equívocos é o evangelista
João, que apresenta o sinal que remete a um “outro/realidade além”. Narrando os semeia, João remanda
o leitor a um “Outro” que está além; não focaliza a atenção sobre o fato em si, mas sobre o que significa.
Também em Marcos, os milagres não são atos de magia; nas suas narrativas ele elimina tudo o que é
mágico.
Terceira consideração
Em Marcos as curas e milagres não são prova da santidade de Jesus e não são destinados à sua
glorificação. Antes, quando Jesus se dá conta que seu agir prodigioso pode ser mal-entendido, se retira,
em solidão. Ao final da jornada de Cafarnaum, ele está sozinho e logo de manhã se retira para um lugar
deserto para orar; entende que as curas e os prodígios possam levar um “falso” entendimento da fé. O
texto afirma que Jesus “orava” (verbo no imperfeito e, portanto, com ideia de continuidade), mas não
se refere ao conteúdo desta oração; o fará ao final, no momento do extremo sofrimento, no Getsêmani.
Temos, portanto, momentos de solidão, os quais Jesus procura fugir da publicidade do milagre e do
exorcismo e para encontrar um outro tipo de relação com o Pai.
Podemos também dizer que Marcos insinua uma dúvida metodológica sobre os milagres, porque os
envolve no mistério. No primeiro milagre (paradigmático), que é aquele da sinagoga de Cafarnaum,
Jesus ordena ao endemoniado de calar-se e o mesmo faz com o leproso. Jesus impõe o silêncio. Esta
atitude fez com que os estudiosos falassem de “segredo messiânico”: a teoria vertia sobre a ideia de
um silêncio artificial, criado pelo evangelista, para explicar o fato que a messianidade de Jesus não era
reconhecida. Hoje esta teoria está parcialmente superada. Mas permanece um núcleo verdadeiro: no
evangelho de Marcos a personalidade de Jesus está envolva em mistério. O Messias não pode ser
acolhido através de prodígios, mas através da via da cruz. É de fato, sob o lenho da cruz que o centurião
reconhece Jesus como Filho de Deus, “vendo que morrera assim...” (15,39). Jesus vem reconhecido
como Filho de Deus no momento em que morre crucificado. A sua verdadeira identidade não se revela
no momento do prodígio, mas paradoxalmente no falimento e na derrota; não quando todos o cercam,
mas quando todos fogem, também os discípulos mais íntimos. Naquele momento se compreende o
desígnio do Pai e a verdadeira identidade de Jesus Filho. Eis porque este evangelho é um paradoxo
provocatório também para nós, porque esta dimensão é fundamental na definição da fé. A fé de uma
comunidade e de uma pessoa é medida também na relação que há com os milagres e com o prodigioso.
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Quarta consideração
Marcos coloca quase todos os milagres na primeira parte do seu livro; na segunda reporta somente
dois, de forma simbólica: a cura de um epiléptico (9,14-29) e do cego Bartimeu (10,46-52). Tal
construção narrativa esconde um intento teológico: Jesus mesmo, em um certo ponto, se distancia desta
estrada.
Quinta consideração
Positivamente, o que podemos dizer sobre as curas e milagres? O que significam? Estes gestos
prodigiosos significam primeiramente que a palavra de Jesus é eficaz: estes tornam a salvação visível
e atestam que a palavra de Deus faz aquilo que diz. E “salvação” significa reconstituição do homem
na sua plenitude: corporal e social. Não é por caso que o primeiro arco narrativo do evangelho inicia
com um exorcismo (1,23-26) e conclui com a cura de um leproso (1,40-45). Podemos dizer que esta
seção tem como moldura duas libertações, muito simbólicas, do ponto de vista individual e social.
Jesus restitui ao homem a originária plenitude; reconstrói a criação, reportando o ser humano à sua
harmonia original, à integridade; restitui as suas relações fundamentais: consigo, com o próprio corpo,
com o próprio ambiente.
Neste sentido é importante considerar que os milagres possuem uma dúplice perspectiva:
1. Cristológica: os milagres projetam luz sobre a pessoa de Jesus, dão a certeza de que as suas
proclamações quanto ao ser Messias, Servo, Senhor, Filho de Deus, recebem a confirmação do Pai. “O
divino inserido no humano mediante o gesto de Jesus converte o homem, o introduz no reino, antecipa
aqueles novos céus e aquela nova terra aguardados para o fim dos tempos, quando a criatura ficará
‘liberta da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus’(Rm 8,21)”. 9
O milagre, enquanto revela algo do mundo de Jesus, é convite para, por meio da fé, aceitar a totalidade
deste mundo e, enquanto torna evidente a libertação física, leva a desejar e a trabalhar pela libertação
integral, alcançada mediante a adesão à palavra.
2. Soteriológica: a intenção extraordinária de Jesus visa, antes de tudo, reconstituir o homem na sua
integridade física e psíquica, a torna-lo livre, não mais sujeito às limitações impostas pelas doenças ou
vencido pelo medo dos fenômenos naturais ou a morte. Neste sentido, a salvação presente no milagre
é uma libertação de situações de escravidão, em vista de uma plena imersão no mundo de Deus. O
milagre, portanto, estabelece o início do Reino, apontado com âmbito da vida, da comunhão, da paz,
da liberdade, harmonia...

Analisemos brevemente a última cura: a do leproso (1,40-45).


Um leproso foi até Ele, implorando-lhe de joelho: “Se queres, tens o poder de purificar-me”.
40
41
Movido de compaixão, estendeu a mão, toucou-o e disse-lhe: “Eu quero, sê purificado”. 42E logo a
lepra o deixou. E ficou purificado. 43Advertindo-o severamente, despediu-o logo. 44Dizendo-lhe: “Não
digas nada a ninguém; mas vai mostrar-te ao sacerdote e oferece por tua purificação o que Moisés
prescreveu, para que lhes sirva de prova”. Ele, porém, assim que partiu, começou a proclamar ainda

9
Benito MARCONCINI, Os Evangelhos Sinóticos, p. 232.
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mais e a divulgar a notícia, de modo que Jesus já não podia entrar publicamente numa cidade:
permanecia fora, em lugares desertos. E de toda parte vinham procurá-lo.
Com o termo lepra vinham indicadas várias doenças da pele, como a gangrena, nódulos, úlceras
etc. algumas vezes curáveis outras não.
A lepra era considerada como praga e castigo de Deus. Assim Ex 9,8-12 coloca a lepra entre as
“pragas” do Egito. Deus castigou os pecados de Maria (Nm 12,10-16) e do rei Ozias (2Cr 26,16-21)
com a lepra, e os “leprosos” tiveram de ser separados do povo de Israel.
A lepra torna “impura” a pessoa para participar do culto e a exclui da comunidade. Israel, por meio
do culto, criava uma “barreira de proteção” à sua relação para com Deus. As “prescrições de pureza”
estabeleciam uma defesa em relação aos cultos estrangeiros. Pessoas que contraíam “impureza” tinham
de ser separadas do povo.
O Antigo Testamento informa somente duas curas milagrosas de “lepra”: Maria curou-se pela
oração de Moisés, seu irmão (Nm 12) e o sírio Naamã pela palavra profética de Eliseu (2Rs 5); note-
se aqui também a lepra como castigo de Giezi, o servo tomado pela cobiça (2Rs 5,20-27).
No livro do Levítico constam regras que os leprosos deviam observar. De acordo com Lv 13 – 14,
uma cura de lepra tinha de ser comprovada pelos sacerdotes e confirmada por meio de uma oferenda,
antes que o curado pudesse retornar à sua comunidade.
A libertação da lepra era considerada, em nível popular, uma ressurreição. O leproso socialmente
era um morto: excluído do culto e da oferta dos sacrifícios, exilado da comunidade. Devia restar longe
dos centros habitados e gritar: “impuro, impuro”!
Estrutura do texto:
a) v. 40: o enfermo pede ajuda.
b) v. 41: com um gesto e uma palavra é curado.
c) vv. 42-45: confirma-se a cura. Este último passo é ampliado e desenvolvido em três partes:
v. 42: constatação do milagre.
v. 43-44: “admoestação ao silêncio” ao curado e ordem de mostrar-se ao sacerdote
com um sacrifício por sua cura.
v. 45: não-cumprimento da admoestação por parte do curado.

Comentário:
v. 40: até aqui Jesus curou em Cafarnaum. No caminho, fora da cidade, Jesus se encontra agora com
uma daquelas pessoas expulsas e isoladas do convívio comunitário.
As palavras com que o leproso se dirige diretamente à “vontade” de Jesus mostram que tinha
ouvido falar do seu poder extraordinário, que supera o de todos os outros (cf. Mc 1,22). De acordo
com as características religiosas da lepra, o enfermo pede com gesto humilde para ficar “limpo” dela;
não pede para ser “curado”.
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***Atendendo ao pedido do leproso, Jesus parece desafiar a Torá e assumir a prerrogativa


sacerdotal. Não é só isso porém, Marcos enfatiza que Jesus tocou o leproso. No entanto, ao passo que
de acordo com a ordem simbólica Jesus deveria ter sido contagiado pela doença. Marcos, ao contrário,
relata que o leproso ficou limpo. Por meio dessa ação simbólica, o poder da ordem simbólica foi
derrubado.10
O leproso vai até Jesus e lhe dirige uma súplica (oração): “Se queres, podes purificar-me”. Não é
uma expressão de dúvida, porque no evangelho de Marcos não é o milagre que suscita a fé, mas a fé
que realiza o milagre. “Se queres” é no sentido de uma disponibilidade ao projeto de Deus. O diz o
contexto e toda a história de milagres; “Se queres” significa um abandono confiante.
v. 41: a esse pedido correspondem as palavras de cura de Jesus. Jesus é movido de compaixão. O
narrador utiliza o verbo splagchnizomai/ ter compaixão, misericórdia (o mesmo verbo usado em Lucas
para designar o sentimento do pai diante do filho que retorna a casa).
Jesus depois toca o leproso, não para contrapor a lei, mas para realizar um ato de solidariedade,
aliás, para ser solidário com todos os que a sociedade coloca como emarginados; um gesto que faz eco
à presença de Jesus em meio aos pecadores. A resposta de Jesus é determinada como o seu gesto: “Eu
quero, sê purificado”! É a vontade de Deus diante da doença, mas também diante do pecado. A vontade
de Deus é o restabelecimento das relações. Eis porque o evangelista coloca esta cura ao final da
jornada, porque essa simboliza a vontade de Deus. O leproso, que devia permanecer fora do
acampamento, é reportado por Jesus ao interno da comunidade.
**Nota: há uma variante neste texto apontado pela própria tradução do texto: “Irado, estendeu a
mão...” Jesus é encolerizado, porque vem tomado de uma paixão: a paixão contra a doença, a exclusão.
A bíblia não é a limitação da paixão, quando são justas; nos textos sagrados estão presentes todos os
sentimentos e emoções humanas. Bastaria tomar o Cântico dos Cânticos para desmentir a opinião de
que a fé constitui um limite às paixões humanas. Jesus diante do mal, diante do homem que não se
realiza, que não vive em plenitude, se irrita, porque Deus não criou a dor, nem a doença. A sua irritação
exprime a aversão a tudo o que contradiz o projeto de Deus.
v. 43: o texto põe em destaque que Jesus adverte enfaticamente o homem que foi limpo a que guarde
“silêncio”. Os motivos são os mesmos que em 1,25 e 1,34: corre-se o perigo de entender erroneamente
o poder de Jesus e só os que ele envia podem anunciar o reino com autenticidade. No primeiro encontro
com Jesus não pode responder já com fé completa.
v. 44: Algumas interpretações:
a) a ordem de “cumprir” exatamente a lei da purificação significa que o próprio Jesus observa a lei.
Aqui se salienta também que este ato confirma a reincorporação em sua comunidade daquele que tinha
sido leproso.
b) no contexto do Evangelho de Marcos se reconhece que o “testemunho” para os sacerdotes não é
tanto uma prova da observância e “justiça” de Jesus em face da lei judaica, mas também uma
advertência a eles para que percebam a autoridade dele e para que a aceitem.
c) Ched MYERS parte da ideia que a tarefa do leproso não consiste em divulgar o milagre, senão
em ajudar no confronto com um sistema ideológico: a mudança de objeto (de “sacerdote” para “eles”)
10
Cf. Ched MYERS, O Evangelho de São Marcos, 1992, p. 194.
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sugere um protesto contra todo o aparato de pureza, que os sacerdotes supervisionam. Ele deve fazer
a oferta com a finalidade de “testemunhar contra eles”.11
v. 45: não obstante, o homem curado não pode calar-se. Difunde entusiasticamente o que lhe
aconteceu e, como consequência, apresentam-se as situações que Jesus queria impedir com sua
admoestação ao silêncio. A autoridade de Jesus foi entendida de forma errônea, razão pela qual ele se
retira e prega só em lugares afastados. Mesmo assim, as pessoas vêm de todas as partes para onde ele
se encontra. Jesus foge do sucesso, porque a verdade de Deus não se coloca sobre a popularidade, mas
sobre a fidelidade. O ser humano responde ao projeto de Deus não quando encontra o favor dos outros,
mas quando age com fidelidade, que não faz caso do sucesso.
Mas, também Ched MYERS tem razão ao dizer que: “Jesus agora é um homem marcado,
considerado impuro na cidade devido ao seu contato com o leproso”.12
Esta primeira ação simbólica de cura dá, assim, o tom para a campanha de Jesus: a libertação
provoca conflito.13

11
Op. cit. p. 195.
12
Op. cit. p. 195-196.
13
Op. cit. p. 196.

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