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Claudio Buss,scj 1
O ANÚNCIO DO REINO
Em 1,14-15 encontramos o anúncio, a proclamação do euaggelion feito por Jesus e os efeitos
que este opera.
14
Meta. de. to. paradoqh/nai to.n VIwa,nnhn h=lqen o` VIhsou/j eivj th.n Galilai,an khru,sswn to.
euvagge,lion tou/ qeou/ 15 kai. le,gwn o[ti peplh,rwtai o` kairo.j kai. h;ggiken h` basilei,a tou/ qeou/ \
metanoei/te kai. pisteu,ete evn tw/| euvaggeli,w|Å
14
Depois que João foi preso, veio Jesus para a Galileia proclamando o Evangelho de Deus:
15
“Cumpriu-se o tempo e o Reino de Deus está próximo. Arrependei-vos e credes no Evangelho”.
Notamos dois aspectos:
- o primeiro é que Jesus começa a anunciar o evangelho depois que João Batista vem preso. Eis
o paradoxo: tem a bela notícia proclamada, mas ao mesmo tempo vem intercalado com a prisão do
precursor; um mau auspício para o evangelho e seu mensageiro! O precursor, de qualquer maneira,
indica e percorre a estrada do Messias. Também ele será entregue à morte. A boa nova, de qualquer
maneira possui o sinal de uma ordem de “fracasso”! Marcos referirá mais adiante, os pormenores da
paixão do Batista (6,17-29). Por enquanto basta-lhe acenar a este dúplice movimento: João “está sendo
entregue”, como o Filho do Homem será entregue (9,31; 10,33; 14,21.41).2
- o segundo aspecto é que Jesus proclama o Kairós presente: se trata do tempo oportuno, que
Deus oferece o homem para converter-se e crer no Evangelho.
Nesta breve síntese, o evangelista utiliza a linguagem da catequese cristã: evangelho de Deus –
converter/crer. Isto pode servir para sublinhar a continuidade entre o anúncio de Jesus e o da
comunidade cristã. Mas no tema do Reino de Deus próximo ressoa ainda o eco da proclamação inicial
feita na Galileia. A espera do reino era viva no ambiente contemporâneo de Jesus, espera alimentada
pela fé nas promessas de Deus. Como quem diz: “terminou o tempo da espera histórica; o tempo
cumpriu-se, o momento decisivo, a ocasião propícia e favorável chegou. O Reino de Deus se torna
próximo na palavra e na ação de Jesus”.3
1
Texto adaptado: M. GRILLI, Paradosso e Mistero. Il Vangelo di Marco. Bologna, EDB, 2012.
2
Cf. Rinaldo FABRIS, op. cit. p. 436.
3
Ibidem.
Faculdade Dehoniana – Curso do Evangelho de Marcos e Mateus – Prof. P. Claudio Buss,scj 2
A única condição requerida para tomar parte nesta nova possibilidade é a decisão de mudar, se
converter, e a coragem de arriscar a vida sobre esta oferta anunciada: crer no evangelho.
Ou como Mateos e Camacho nos dizem aprofundando a temática social do Reino em exercício:
“esta boa-nova (1,1) anuncia que se abre a possibilidade de uma sociedade justa e nova, digna do
homem, a alternativa que Deus propõe à humanidade (aspecto social do reinado de Deus, a nova terra
prometida); exige como condição da parte do homem a renúncia à injustiça (ponto de partida) –
‘convertei-vos’ e a confiança de que essa meta (ponto de chegada) é atingível pela fé”.4
Logo depois, de fato, a cena do chamado das duas duplas de irmãos (1,16-20) mostra, de forma
paradigmática, o que significa converter-se e crer no evangelho: seguir Jesus, tornar-se seus discípulos
e servir ao Reino. Jesus os chama: “Vinde em meu seguimento...”: indicando uma meta que não é
visível, nem tangível e permanecendo de qualquer forma “vaga”: e farei de vós pescadores de homens.
E eles, deixando logo as redes, o seguiram. É uma cena ideal que explicita bem o que significa
converter-se. Como nos diz Rinaldo Fabris: “a tradição de Marcos viu nesta cena de chamamento não
só o começo histórico da comunidade dos discípulos em volta de Jesus, mas também o paradigma da
resposta cristã à fé”.5
Ainda algumas notas importantes:
• O mar da Galileia é fronteira e, ao mesmo tempo, conexão com o mundo pagão. Diante da
perspectiva do reinado de Deus, Jesus convida a colaborar com ele em primeiro lugar os
círculos inquietos de Israel.
• Vinde após mim...: recorda o chamado de Elias dirigido a Eliseu (1Rs 19,20s) e alude aqui
à comunicação do Espírito de Jesus aos seus seguidores (1,8).
• pescadores de homens...: insinua a missão universal, não limitada ao povo judaico (cf. Ez
47,8s). Diante do convite de Jesus, Simão e André abandonam sua forma de vida anterior:
a esperança de mudança suscita neles resposta favorável, embora a qualidade do seu
seguimento vá manifestando-se em sua conduta.6
Ainda é preciso notar que no AT (Ez 12,13; Hab 1,15.17; cf. Jr 16,16), a imagem da rede
de pesca ou de caça evoca antes o castigo. Aqui aplica-se à futura missão dos Doze:
pregando o Evangelho, eles congregarão homens em vista do julgamento e da entrada no
Reino de Deus.7
• Seguir Jesus é tornar-se seu discípulo. O abandono da profissão para viver com o mestre
exprime a novidade de vida com Jesus, de sorte que a experiência dos Doze serve de
protótipo para os crentes, por sua vez chamados a entrar na sua escola.8
A JORNADA DE CAFARNAUM
Depois deste momento inicial, no arco narrativo de 1,21-45 conta-se o início do ministério de
Jesus. É a jornada de Cafarnaum, um modelo do operar de Jesus.
4
Juan MATEOS; Fernando CAMACHO, Marcos. Texto e Comentário, p. 86.
5
Rinaldo FABRIS, op. cit. p. 437.
6
MATEOS; CAMACHO, op. cit. p. 90.
7
TEB Mc 1,17, nota c.
8
TEB Mc 1,18, nota d.
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As indicações temporais e de lugar evidenciam os passos desta jornada: ele vai a Cafarnaum (v.
21), entra na sinagoga (v. 23) e depois de uma cura sai e está na casa de Simão (v. 29); a noite (v. 32)
vai até a porta da cidade onde estão muitos doentes e, de manhã cedo, quando ainda é escuro, se levanta
e se retira a um lugar deserto para orar (v. 35). Inicia assim uma nova jornada de evangelização (vv.
36-45).
Através desta construção narrativa o evangelista apresenta o núcleo da atividade de Jesus e
antecipa qual será a sua missão. Consideremos alguns aspectos dessa missão:
1º aspecto: a liberdade de Jesus, que chega até as pessoas em todos os lugares: na sinagoga, na
casa, na porta da cidade (lugar de reuniões e de comércio), em lugares desertos. É o Reino que chega
ao ser humano em todas as situações, qualquer que seja.
2º aspecto: a libertação dos homens: os primeiros gestos que Jesus realiza são exorcismos e
curas, centrais no Evangelho de Marcos e que representam a luta contra o mal, nas suas várias formas.
OS MILAGRES DE JESUS
Como o evangelista Marcos lê o elemento prodigioso na vida de Jesus? Como considera os
milagres?
Marcos relata narrações de milagres, em contexto e formas literárias diversas. Pode-se pensar que
Marcos tenha primeiro introduzido no esquema do Evangelho a atividade taumatúrgica de Jesus,
dando-se um peso simétrico ao das palavras-ensinamento. Os milagres, na maior parte, são colocados
no ambiente da Galileia, ao passo que não se refere nenhum milagre em Jerusalém.
Em Marcos, podem-se individuar os seguintes relatos de milagres, segundo seu contexto e gênero
narrativo:
1. Os relatos de milagre: cura de um leproso (1,40-45), de dois cegos, de um surdo-mudo, de uma
mulher atacada por hemorragia crônica; duas curas de doenças atribuídas ao demônio (7,24-30; 9,14-
27), curas de diversos outros doentes, dos quais se fala nos sumários; ressurreição de uma menina
(5,35-41); Jesus caminha sobre as águas do lago (6,45-52); multiplicação dos pães (6,34-44; 8,1-12).
2. Controvérsias com relato de milagre: cura de um paralítico (2,1-12); cura de um homem com a
mão ressequida (3,1-5);
3. Exorcismos: relato de dois exorcismos (1,23-27; 5,1-20).
É importante perceber que para Marcos, o evangelho – isto é, a boa-nova do reino de Deus, que tem
por protagonista Jesus como Messias e Filho de Deus - se realiza através dos gestos de Jesus e das
suas palavras.
Gostaria a partir disso de fazer algumas considerações:
Primeira consideração
No ambiente judaico e helenístico vinham reconhecidos determinados homens e mulheres de
poderes extraordinários. Haviam também lugares e divindades, seja no mundo grego, seja no romano:
por exemplo Asclépio para os gregos ou Esculápio para os romanos. O milagre era considerado a prova
da existência da divindade evocada. Na literatura pagã e judaica encontramos narrativas similares aos
dos evangelhos.
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Quarta consideração
Marcos coloca quase todos os milagres na primeira parte do seu livro; na segunda reporta somente
dois, de forma simbólica: a cura de um epiléptico (9,14-29) e do cego Bartimeu (10,46-52). Tal
construção narrativa esconde um intento teológico: Jesus mesmo, em um certo ponto, se distancia desta
estrada.
Quinta consideração
Positivamente, o que podemos dizer sobre as curas e milagres? O que significam? Estes gestos
prodigiosos significam primeiramente que a palavra de Jesus é eficaz: estes tornam a salvação visível
e atestam que a palavra de Deus faz aquilo que diz. E “salvação” significa reconstituição do homem
na sua plenitude: corporal e social. Não é por caso que o primeiro arco narrativo do evangelho inicia
com um exorcismo (1,23-26) e conclui com a cura de um leproso (1,40-45). Podemos dizer que esta
seção tem como moldura duas libertações, muito simbólicas, do ponto de vista individual e social.
Jesus restitui ao homem a originária plenitude; reconstrói a criação, reportando o ser humano à sua
harmonia original, à integridade; restitui as suas relações fundamentais: consigo, com o próprio corpo,
com o próprio ambiente.
Neste sentido é importante considerar que os milagres possuem uma dúplice perspectiva:
1. Cristológica: os milagres projetam luz sobre a pessoa de Jesus, dão a certeza de que as suas
proclamações quanto ao ser Messias, Servo, Senhor, Filho de Deus, recebem a confirmação do Pai. “O
divino inserido no humano mediante o gesto de Jesus converte o homem, o introduz no reino, antecipa
aqueles novos céus e aquela nova terra aguardados para o fim dos tempos, quando a criatura ficará
‘liberta da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus’(Rm 8,21)”. 9
O milagre, enquanto revela algo do mundo de Jesus, é convite para, por meio da fé, aceitar a totalidade
deste mundo e, enquanto torna evidente a libertação física, leva a desejar e a trabalhar pela libertação
integral, alcançada mediante a adesão à palavra.
2. Soteriológica: a intenção extraordinária de Jesus visa, antes de tudo, reconstituir o homem na sua
integridade física e psíquica, a torna-lo livre, não mais sujeito às limitações impostas pelas doenças ou
vencido pelo medo dos fenômenos naturais ou a morte. Neste sentido, a salvação presente no milagre
é uma libertação de situações de escravidão, em vista de uma plena imersão no mundo de Deus. O
milagre, portanto, estabelece o início do Reino, apontado com âmbito da vida, da comunhão, da paz,
da liberdade, harmonia...
9
Benito MARCONCINI, Os Evangelhos Sinóticos, p. 232.
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mais e a divulgar a notícia, de modo que Jesus já não podia entrar publicamente numa cidade:
permanecia fora, em lugares desertos. E de toda parte vinham procurá-lo.
Com o termo lepra vinham indicadas várias doenças da pele, como a gangrena, nódulos, úlceras
etc. algumas vezes curáveis outras não.
A lepra era considerada como praga e castigo de Deus. Assim Ex 9,8-12 coloca a lepra entre as
“pragas” do Egito. Deus castigou os pecados de Maria (Nm 12,10-16) e do rei Ozias (2Cr 26,16-21)
com a lepra, e os “leprosos” tiveram de ser separados do povo de Israel.
A lepra torna “impura” a pessoa para participar do culto e a exclui da comunidade. Israel, por meio
do culto, criava uma “barreira de proteção” à sua relação para com Deus. As “prescrições de pureza”
estabeleciam uma defesa em relação aos cultos estrangeiros. Pessoas que contraíam “impureza” tinham
de ser separadas do povo.
O Antigo Testamento informa somente duas curas milagrosas de “lepra”: Maria curou-se pela
oração de Moisés, seu irmão (Nm 12) e o sírio Naamã pela palavra profética de Eliseu (2Rs 5); note-
se aqui também a lepra como castigo de Giezi, o servo tomado pela cobiça (2Rs 5,20-27).
No livro do Levítico constam regras que os leprosos deviam observar. De acordo com Lv 13 – 14,
uma cura de lepra tinha de ser comprovada pelos sacerdotes e confirmada por meio de uma oferenda,
antes que o curado pudesse retornar à sua comunidade.
A libertação da lepra era considerada, em nível popular, uma ressurreição. O leproso socialmente
era um morto: excluído do culto e da oferta dos sacrifícios, exilado da comunidade. Devia restar longe
dos centros habitados e gritar: “impuro, impuro”!
Estrutura do texto:
a) v. 40: o enfermo pede ajuda.
b) v. 41: com um gesto e uma palavra é curado.
c) vv. 42-45: confirma-se a cura. Este último passo é ampliado e desenvolvido em três partes:
v. 42: constatação do milagre.
v. 43-44: “admoestação ao silêncio” ao curado e ordem de mostrar-se ao sacerdote
com um sacrifício por sua cura.
v. 45: não-cumprimento da admoestação por parte do curado.
Comentário:
v. 40: até aqui Jesus curou em Cafarnaum. No caminho, fora da cidade, Jesus se encontra agora com
uma daquelas pessoas expulsas e isoladas do convívio comunitário.
As palavras com que o leproso se dirige diretamente à “vontade” de Jesus mostram que tinha
ouvido falar do seu poder extraordinário, que supera o de todos os outros (cf. Mc 1,22). De acordo
com as características religiosas da lepra, o enfermo pede com gesto humilde para ficar “limpo” dela;
não pede para ser “curado”.
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sugere um protesto contra todo o aparato de pureza, que os sacerdotes supervisionam. Ele deve fazer
a oferta com a finalidade de “testemunhar contra eles”.11
v. 45: não obstante, o homem curado não pode calar-se. Difunde entusiasticamente o que lhe
aconteceu e, como consequência, apresentam-se as situações que Jesus queria impedir com sua
admoestação ao silêncio. A autoridade de Jesus foi entendida de forma errônea, razão pela qual ele se
retira e prega só em lugares afastados. Mesmo assim, as pessoas vêm de todas as partes para onde ele
se encontra. Jesus foge do sucesso, porque a verdade de Deus não se coloca sobre a popularidade, mas
sobre a fidelidade. O ser humano responde ao projeto de Deus não quando encontra o favor dos outros,
mas quando age com fidelidade, que não faz caso do sucesso.
Mas, também Ched MYERS tem razão ao dizer que: “Jesus agora é um homem marcado,
considerado impuro na cidade devido ao seu contato com o leproso”.12
Esta primeira ação simbólica de cura dá, assim, o tom para a campanha de Jesus: a libertação
provoca conflito.13
11
Op. cit. p. 195.
12
Op. cit. p. 195-196.
13
Op. cit. p. 196.