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Os evangelhos: coração da Revelação - Módulo 3 – Evangelho de João

Ad usum privatum

EVANGELHO SEGUNDO JOÃO[1]


“Ninguém pode compreender o sentido do Evangelho de João se não se inclinou sobre o peito de Jesus e
não recebeu de Jesus, Maria como mãe” (Orígenes).

Autor, data e lugar de composição


A tradição é unânime em atribuir a autoria do IV Evangelho ao apóstolo João, filho de Zebedeu e irmão
do apóstolo Tiago (Maior). O primeiro a testemunhar a paternidade joanina do IV Evangelho, é Sto.
Irineu de Lião[2], que por volta do ano 180 d.C. escreveu:

Em seguida (ou seja, depois de Mt, Mc e Lc) João, o discípulo do Senhor, aquele que
repousou a cabeça sobre o seu peito, também ele publicou um evangelho, durante sua
permanência na Ásia[3].
O fato, porém, de coexistirem duas conclusões no final do Evangelho, levantou a suspeita de que existe
mais de um redator. Nos capítulos 20 e 21, de fato, lemos:

“Muitos outros sinais Jesus fez na presença de seus discípulos e que não constam neste livro. Estes ficam
escritos para que creiais que Jesus é o Messias, o Filho de Deus, e para que crendo tenhais vida por meio
[4].

“Restam muitas outras coisas feitas por Jesus. Se quiséssemos escrevê-las uma por uma, penso que os
livros escritos não caberiam no mundo”[5].

Os estudiosos perceberam que no texto existem traços de um complexo processo redacional,


provavelmente desenvolvido em etapas. R. Brown[6] identifica cinco etapas:
1º estágio: Existência de um corpo de material concernente às palavras e feitos de Jesus, cujas origens
eram independentes da tradição sinótica;
2º estágio: Este estágio é marcado pela pregação e ensino oral, enfim é colocado por escrito o que foi
pregado e ensinado. Provavelmente este estágio é obra de mais de um redator, que, pela unidade do
material, viviam em torno da testemunha ocular dos fatos narrados;
3º estágio: Organização deste material para a edição do quarto Evangelho. É lógico pensar que o
pregador do segundo estágio, seja o organizador do 3º. Para Brown, trata-se do “evangelista”;
4º estágio: Segunda edição feita pelo mesmo evangelista, para responder às objeções e dificuldades
dos diversos grupos;
5º estágio: Redação final por alguém que não era o evangelista, mas alguém que lhe era íntimo. Umas
das contribuições principais deste redator foi a preservação de todo o material joanino disponível no 2º
estágio.
Resumindo, embora nos tenhamos alongado algum tanto na decifração desta teoria dos cinco estágios
da composição do evangelho, queremos frisar que nas suas linhas fundamentais a teoria, de fato, não é
complicada, e quadra de modo plausível com o que se pensa sobre a composição dos outros
evangelhos. Uma destacada figura da Igreja primitiva pregou e difundiu ensinamentos concernentes a
Jesus, utilizando a matéria-prima de uma tradição as obras e palavras de Jesus, mas dando a esse
material um cunho teológico e expressão particular. Reuniu, por fim, a substância de sua pregação e
ensino em um evangelho, seguindo o tradicional modelo do batismo, do ministério, da paixão, morte e
ressurreição de Jesus. Como continuasse a pregar e ensinar após a edição do evangelho, fez
subsequentemente uma nova edição do seu evangelho, acrescentando novo material e adaptando o
evangelho para responder a novos problemas. Depois de sua morte um discípulo fez a redação final do
evangelho, incorporando outro material que o evangelista pregara e ensinara, e até algum material
fornecido pelos que haviam trabalhado com o evangelista[7].
Devemos, portanto, considerar uma diferença entre “autor” e “redator”, muito comum no mundo antigo:
Nos tempos modernos, aquele que escreve uma obra é também o seu autor e os dois termos
terminam por se equivaler. Não na antiguidade, onde o escritor poderia ser um secretário ou um
colaborador, que desenvolvia de forma pessoal o pensamento do autor. Este fornecia a matéria-
prima e era, no fundo, o avaliador do escrito. No nosso caso, João é o fundador e o animador de
uma comunidade que recolheu e elaborou as informações recebidas. Tal comunidade pode ser
chamada “escola teológica”. Será essa a responsável pelo escrito final, assim como o possuímos, e
que, por isso, lhe compete o título de scriptor, esta não faz que representar o testemunho de João,
que continua sendo o auctor do IV Evangelho. Sem João, não teríamos o IV Evangelho; sem a
“escola teológica joanina” não teríamos o IV Evangelho assim como o possuímos hoje[8].
Quanto ao lugar de composição e a data, permanece unânime a afirmação de ter sido composto em
Éfeso, entre 90-100 d.C.

Tema e estrutura[9]
“A espinha dorsal” do IV Evangelho é a progressiva manifestação do mistério de Jesus, sobretudo da
dimensão de revelador do Pai. Desde o início, ele é apresentado como o Logos, a Palavra que faz
conhecer o Pai. Apresentando o Pai, revela a si mesmo e mostra quem é o homem, dando origem a
uma relação que supera a fronteira do tempo: “Esta é a vida eterna: que conheçam a ti, o único
verdadeiro Deus, e aquele que enviaste, Jesus Cristo”[10].
Desta progressiva manifestação da pessoa de Jesus se pode pôr o interrogativo “quem é o homem?”, “o
que é a Igreja?”, então se responde: aqueles que creem em Jesus, o Cristo, o Filho de Deus e que,
crendo, tem a vida no seu nome. O Evangelho, portanto, apresentando Jesus, ajuda a compreender o
homem, a sua comunidade e o mundo no qual ele vive: “Na realidade, somente no mistério do Verbo
encarnado encontra luz o mistério do homem”[11].
O Evangelho compõe-se de:

 Prólogo (1,1-18) – um hino que canta a salvação dos homens, feitos filhos de Deus pelo Verbo que se
fez carne;
 Livro dos sinais (1,19-12,50) – inicia apresentando a figura de João Batista que prepara o caminho
para Jesus. A obra de Jesus se prolonga nos sinais (João não os chama de milagres) e nos discursos.
Os sinais são 7 (2,1ss; 3,46ss; 5,1ss; 6,1ss; 9,1ss; 11,1ss). Esta primeira parte mostra o drama que
atravessa todo o Evangelho: Cristo, a luz vinda para trazer a vida, é colocado à morte. O cap. 12,
concluindo a primeira parte, contém uma preciosa referência ao grão de trigo que morre para dar
vida[12];
 Livro da glória (13,1-20,21) – A princípio, desaparece a multidão e ficam apenas os amigos, os íntimos
aos quais Jesus faz revelações particulares, permitindo-lhes um conhecimento aprofundado do seu
mistério. São os discursos de adeus que iniciam com o lava-pés e se concluem com a oração sacerdotal
(13-17). Esta segunda parte também se chama “livro da hora”. A hora aqui, não é uma fração de tempo,
mas o momento da plena revelação, é a hora fixada pelo Pai; hora da sua glorificação, anunciada desde
o início (2,4). Esta hora torna-se, paradoxalmente, aquela da paixão e da morte, quando Jesus cumprirá
totalmente a vontade do Pai (consummatum est) numa doação total de infinito amor a Ele e aos
homens. Por isso, a narração da paixão revela um caminho rumo à glória.
 Epílogo e conclusão (21) – A Palavra eterna que se fez homem, continua sua obra na Igreja, a
comunidade dos que creem, tornados filhos de Deus.

Esquematicamente:
Prólogo (1,1-18)
Corpo central (1,19-20,31)
Livro dos sinais (1,19-12,50)
- Testemunho do Batista e chamado dos discípulos (1,19-51)
- Início dos sinais e acolhimento positivo de Nicodemos, da Samaritana e do funcionário real (2-4)
- Oposição dos judeus no contexto das grandes festas judaicas (5-10)
- O caminho de Jesus à morte (11-12)
Livro da glória (ou da hora) (13,1-20,31)
- Última ceia e discurso de adeus (13-17)
- Paixão e morte (18-19)
- Ressurreição e aparições (20)
Epílogo (21,1-25).
Dada a riqueza e complexidade do Evangelho Segundo João, citaremos apenas alguns dos temas caros
ao evangelista e que revelam a profundidade da sua mensagem teológica:

 Revelar[13]: Nas mais de 30 vezes que o termo aparece, está sempre atribuído a Jesus, que é
apresentado como Mestre, Rei, Messias, mas sobretudo Filho de Deus, Unigênito, Verbo eterno;
 Acolher[14]: Este tema é empregado a diversos personagens, especialmente três, que podem
representar a humanidade nas suas diversas situações: Nicodemos, a Samaritana e o funcionário real;
 Rejeitar[15]: Este tema aparece já no prólogo (1,5.11) e ao longo do escrito está ligado ao conceito de
pecado. Corresponde à parte negativa das antíteses muito caras a João: luz-treva, verdade-mentira,
vida-morte, crer-não crer, ser do alto-ser de baixo, amor-ódio, filho de Deus-filho do demônio.

No IV Evangelho podemos ainda ler a história de Jesus numa perspectiva litúrgica, porque o evangelista
apresenta a sua vida pública ritmada pelas festas judaicas, como vemos abaixo:

 Jo 2,13ss: Durante a festa de Páscoa, Jesus purifica o templo, expulsando os cambistas e revelando-se
o Novo templo;
 Jo 5,1ss: Jesus reinterpreta o repouso do sábado, quando realiza a cura do paralítico;
 Jo 7,1ss: Durante a festa das Cabanas, Jesus declara ser ele a luz do mundo e afronta o tema da água,
revelando seu significado salvífico;
 Jo 10,22ss: A festa da Dedicação, torna-se ocasião para Jesus revelar-se como o bom Pastor, porta do
Novo templo pela qual é preciso passar para alcançar a salvação;
 Jo 12,1ss: Na sua última festa de Páscoa (a terceira no Evangelho) Jesus é o verdadeiro Cordeiro
Pascal, oferecido em sacrifício por toda a humanidade.

Referência bibliográfica
BROWN, R.. Introduzione al Vangelo di Giovanni, Brescia: Queriniana 2007.
FABRIS, RINALDO – MAGGIONI, BRUNO. Os Evangelhos II, São Paulo: Edições Loyola 1992.
KONINGS, JOHAN. Evangelho Segundo João. Amor e fidelidade, São Paulo: Edições Loyola 2005.
MATEOS JUAN – BARRETO JUAN. Vocabulário Teológico do Evangelho de São
João, São Paulo: Edições Paulinas, 1989.
___ Il Vangelo di Giovanni. Analisi linguistica e comento exegético, Milano: Cittadella, 1982.
ORSATTI, MAURO, Giovanni. Il Vangelo ad alta definizione, Editrice Milano: Ancora, 1999.
___ Introduzione al Nuovo Testamento. Lugano: Eupress FTL, 2005.
PANIMOLLE, S.A., Il dono della legge e la grazia della verità (Gv 1,17). Roma: AVE, 1973.
[1] Profa. Ms. Josefa Alvez, Instituto Parresia.
[2] Sto. Irineu conheceu pessoalmente S. Policarpo de Esmirna, que foi discípulo de João.
[3] Adv. Haer., III,1,1.
[4] Jo 20,30-31.
[5] Jo 21,25.
[6] Cf. R. E. BROWN, Introduzione al Vangelo di Giovanni, Brescia 2007, 44-49.
[7] Brown, 49ss.
[8] Orsatti, 213.
[9] Esta parte é um resumo das pp. 215-216 de Orsatti, ob. cit.
[10] Jo 17,3.
[11] Gaudium et Spes, 22.
[12] Cf. 12,24.
[13] Cf. Orsatti, 217-219.
[14] Idem.
[15] Idem.

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